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HÁ 2000 ANOS...
FRANCISCO CÂNDIDO XAVIER
Há 2000 anos...
EPISÓDIOS DA HISTÓRIA DO CRISTIANISMO NO SÉCULO I
Romance de
EMMANUEL
FEDERAÇÃO ESPÍRITA BRASILEIRA
DEPARTAMENTO EDITORIAL
Rua Souza Valente, 17
20941-040 - Rio - RJ - Brasil
ISBN 85-7328-074-3
29ª edição
Do 386º ao 410º milheiro
Capa de CECCONI
B.N. 6.825
053-AA;000.52-O;9/1996
Copyright 1939 by
FEDERAÇÃO ESPÍRITA BRASILEIRA
(Casa-Máter do Espiritismo)
SGAN 603 - Conjunto F
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Rua Souza Valente, 17
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Na intimidade de Emmanuel
Ao Leitor
Leitor, antes de penetrares o limiar desta história, é justo
apresentemos à tua curiosidade algumas observações de Emmanuel, o exsenador
Públio Lentulus, descendente da orgulhosa "gens Cornelia",
recebidas desse generoso Espírito, na intimidade do grupo de estudos
espiritualistas de Pedro Leopoldo, Estado de Minas Gerais.
Através destas observações ficarás conhecendo as primeiras
palavras do Autor, a respeito desta obra, e suas impressões mais
profundas, no curso do trabalho, que foi levado a efeito de 24 de outubro
de 1938 a 9 de fevereiro de 1939, segundo as possibilidades de tempo do
seu médium e sem perturbar outras atividades do próprio Emmanuel, junto
aos sofredores que freqüentemente o procuram, e junto ao esforço de
propaganda do Espiritismo cristão na Pátria do Cruzeiro.
Em 7 de setembro de 1938, afirmava ele em pequena mensagem
endereçada aos seus amigos encarnados:
- "Algum dia, se Deus mo permitir, falar-vos-ei do orgulhoso patrício
Públio Lentu10
ROMANCE DE EMMANUEL
lus, a fim de algo aprenderdes nas dolorosas experiências de uma alma
indiferente e ingrata.
"Esperemos o tempo e a permissão de Jesus."
Emmanuel não esqueceu a promessa. Com efeito, em 21 de outubro
do mesmo ano, voltava a recordar, noutro comunicado familiar:
- "Se a bondade de Jesus nos permitir, iniciaremos o nosso esforço,
dentro de alguns dias, esperando eu a possibilidade de grafarmos as
nossas lembranças do tempo em que se verificou a passagem do Divino
Mestre sobre a face da Terra.
"Não sei se conseguiremos realizar tão bem, quanto desejamos,
semelhante intento. De ante-mão, todavia, quero assinalar minha confiança
na Misericórdia do Nosso Pai de Infinita Bondade."
De fato, em 24 de outubro referido, recebia o médium Xavier a
primeira página deste livro e, no dia seguinte, Emmanuel voltava a dizer:
- "Iniciamos, com o amparo de Jesus, mais um despretensioso
trabalho. Permita Deus que possamos levá-lo a bom termo.
"Agora verificareis a extensão de minhas fraquezas no passado,
sentindo-me, porém, confortado em aparecer com toda a sinceridade do
meu coração, ante o plenário de vossas consciências. Orai comigo,
pedindo a Jesus para que eu possa completar esse esforço, de modo que
o plenário se dilate, além do vosso meio, a fim de que a minha confissão
seja um roteiro para todos."
Durante todo o esforço de psicografia, o Autor deste livro não
perdeu ensejo de ensinar a humildade e a fé a quantos o acompanham. Em
30 de dezembro de 1938, comentava, em nova mensagem afetuosa:
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HÁ DOIS MIL ANOS...
- "Agradeço, meus filhos, o precioso concurso que me vindes
prestando. Tenho-me esforçado, quanto possível, para adaptar uma
história tão antiga ao sabor das expressões do mundo moderno, mas, em
relatando a verdade, somos levados a penetrar, antes de tudo, na essência
das coisas, dos fatos e dos ensinamentos.
"Para mim essas recordações têm sido muito suaves, mas também
muito amargas. Suaves pela rememoração das lembranças amigas, mas
profundamente dolorosas, considerando o meu coração empedernido, que
não soube aproveitar o minuto radioso que soara no relógio da minha vida
de Espírito, há dois mil anos.
"Permita Jesus que eu possa atingir os fins a que me propus,
apresentando, nesse trabalho, não uma lembrança interessante acerca de
minha pobre personalidade, mas, tão somente, urna experiência para os
que hoje trabalham na semeadura e na seara do Nosso Divino Mestre."
De outras vezes, Emmanuel ensinava aos seus companheiros
encarnados a necessidade de nossa ligação espiritual com Jesus, no
desempenho de todos os trabalhos. No dia 4 de janeiro de 1939, grafava
ele esta prece, ainda com respeito as memórias do passado remoto:
"Jesus, Cordeiro Misericordioso do Pai de todas as graças, são
passados dois mil anos e minha pobre alma ainda revive os seus dias
amargurados e tristes!...
"Que são dois milênios, Senhor, no relógio da Eternidade?
"Sinto que a tua misericórdia nos responde em suas ignotas
profundezas... Sim, o tempo é o grande tesouro do homem e vinte séculos,
como vinte existências diversas, podem ser vin12
ROMANCE DE EMMANUEL
te dias de provas, de experiências e de lutas redentoras.
"Só a tua bondade é infinita! Somente tua misericórdia pode
abranger todos os séculos e todos os seres, porque em Ti vive a gloriosa
síntese de toda a evolução terrestre, fermento divino de todas as culturas,
alma sublime de todos os pensamentos.
"Diante de meus pobres olhos, desenha-se a velha Roma dos meus
pesares e das minhas quedas dolorosas... Sinto-me ainda envolto na
miséria de minhas fraquezas e contemplo os monumentos das vaidades
humanas... Expressões políticas, variando nas suas características de
liberdade e de força, detentores da autoridade e do poder, senhores da
fortuna e da inteligência, grandezas efêmeras que perduram apenas por
um dia fugaz!... Tronos e púrpuras, mantos preciosos das honrarias
terrestres, togas da falha justiça humana, parlamentos e decretos
supostos irrevogáveis!... Em silêncio, Senhor, viste a confusão que se
estabelecera entre os homens inquietos e, com o mesmo desvelado amor,
salvaste sempre as criaturas no instante doloroso das ruínas supremas...
Deste a mão misericordiosa e imaculada aos povos mais humildes e mais
frágeis, confundiste a ciência mentirosa de todos os tempos, humilhaste
os que se consideravam grandes e poderosos!...
"Sob o teu olhar compassivo, a morte abriu suas portas de sombra e
as falsas glórias do mundo foram derruídas no torvelinho das ambições,
reduzindo-se todas as vaidades a um acervo de cinzas!...
"Ante minhalma surgem as reminiscências das construções
elegantes das colinas célebres; vejo o Tibre que passa, recolhendo os
detritos da grande Babilônia imperial, os aquedutos, os mármores
preciosos, as termas que pareciam
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HÁ DOIS MIL ANOS...
indestrutíveis... Vejo ainda as ruas movimentadas, onde uma plebe
miserável espera as graças dos grandes senhores, as esmolas de trigo, os
fragmentos de pano para resguardarem do frio a nudez da carne.
"Regurgitam os circos... Há uma aristocracia do patriciado
observando as provas elegantes do Campo de Marte e, em tudo, das vias
mais humildes até os palácios mais suntuosos, fala-se de César, o
Augusto!...
"Dentro dessas recordações, eu passo, Senhor, entre farraparias e
esplendores, com o meu orgulho miserável! Dos véus espessos de minhas
sombras, também eu não te podia ver, no Alto, onde guardas o teu sólio de
graças inesgotáveis...
"Enquanto o grande Império se desfazia em suas lutas inquietantes,
trazias o teu coração no silêncio e, como os outros, eu não percebia que
vigiavas!
"Permitiste que a Babel romana se levantasse muito alto, mas,
quando viste que se ameaçava a própria estabilidade da vida no planeta,
disseste: - "Basta! São vindos os tempos de operar-se na seara da
Verdade!" E os grandes monumentos, com as estátuas dos deuses
antigos, rolaram de seus pedestais maravilhosos! Um sopro de morte
varreu as regiões infestadas pelo vírus da ambição e do egoísmo
desenfreado, despovoando-se, então, a grande metrópole do pecado.
Ruíram os circos formidandos, caíram os palácios, enegreceram-se os
mármores luxuosos...
"Bastou uma palavra tua, Senhor, para que os grandes senhores
voltassem às margens do Tibre, como escravos misérrimos!...
Perambulamos, assim, dentro da nossa noite, até o dia em que nova luz
brotara em nossa consciência. Foi preciso que os séculos passassem,
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ROMANCE DE EMMANUEL
para aprendermos as primeiras letras de tua ciência infinita, de perdão e
de amor!
"E aqui estamos, Jesus, para louvar-te a grandeza! Dá que
possamos recordar-te em cada passo, ouvir-te a voz em cada som
distraído do caminho, para fugirmos da sombra dolorosa!... Estende-nos
tuas mãos e fala-nos ainda do teu ....... Temos sede imensa daquela água
eterna da vida, que figuraste no ensinamento à Samaritana...
"Exército de operários do teu Evangelho, nós nos movemos sob as
tuas determinações suaves e sacrossantas! Ampara-nos, Senhor, e não
nos retires dos ombros a cruz luminosa e redentora, mas ajuda-nos a
sentir, nos trabalhos de cada dia, a luz eterna e imensa do teu Reino de
paz, de concórdia e de sabedoria, em nossa estrada de luta, de
solidariedade e de esperança!..."
Em 8 de fevereiro último, véspera do término da recepção deste
livro, agradecia Emmanuel o concurso de seus companheiros encarnados,
em comunicado familiar, do qual destacamos algumas frases:
- "Meus amigos, Deus vos auxilie e recompense. Nosso modesto
trabalho está a terminar. Poucas páginas lhe restam e eu vos agradeço de
coração.
"Reencontrando os Espíritos amigos das épocas mortas, sinto o
coração satisfeito e confortado ao verificar a dedicação de todos ao firme
pensamento de evolução, para a frente e para o alto, pois não é sem razão
de ser que hoje laboramos na mesma oficina de esforço e boa vontade.
"Jesus há-de recompensar a cota de esforço amigo e sincero que
me prestastes e que a sua infinita misericórdia vos abençoe é a minha
oração de sempre."
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HÁ DOIS MIL ANOS...
Aqui ficam algumas das anotações íntimas de Emmanuel, fornecidas
na recepção deste livro. A humildade desse generoso Espírito vem
demonstrar que no plano invisível há, também, necessidade de esforço
próprio, de paciência e de fé para as realizações.
As notas familiares do Autor são um convite para que todos nós
saibamos orar, trabalhar e esperar em Jesus-Cristo, sem desfalecimentos
na luta que a bondade divina nos oferece para o nosso resgate, no
caminho da redenção.
Pedro Leopoldo, 2 de março de 1939.
A EDITORA
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PRIMEIRA PARTE
I
Dois amigos
Os últimos clarões da tarde haviam caído sobre o casario romano.
As águas do Tibre, ladeando o Aventino, deixavam retratados os
derradeiros reflexos do crepúsculo, enquanto nas ruas estreitas passavam
liteiras apressadas, sustidas por escravos musculosos e lépidos.
Nuvens pesadas amontoavam-se na atmosfera, anunciando
aguaceiros próximos, e as últimas janelas das residências particulares e
coletivas fechavam-se com estrépito, ao sopro dos primeiros ventos da
noite.
Entre as construções elegantes e sóbrias, que exibiam mármores
preciosos, no sopé da colina, um edifício havia que reclamava a atenção
do forasteiro pela singularidade das suas colunas severas e majestosas.
Uma vista de olhos ao seu exterior indicava a posição do proprietário,
dado o aspecto artístico e imponente.
Era, de fato, a residência do senador Públio Lentulus Cornelius,
homem ainda moço, que, à ma18
ROMANCE DE EMMANUEL
neira da época, exercia no Senado funções legislativas e judiciais, de
acordo com os direitos que lhe competiam, como descendente de antiga
família de senadores e cônsules da República.
O Império, fundado com Augusto, havia limitado os poderes
senatoriais, cujos detentores já não exerciam nenhuma influência direta
nos assuntos privativos do governo imperial, mas mantivera a
hereditariedade dos títulos e dignidades das famílias patrícias,
estabelecendo as mais nítidas linhas de separação das classes, na
hierarquia social.
Eram dezenove horas de um dia de maio de 31 da nossa era. Públio
Lentulus, em companhia do seu amigo Flamínio Severus, reclinado no
triclínio, terminava o jantar, enquanto Lívia, a esposa, expedia ordens
domésticas a uma jovem escrava etrusca.
O anfitrião era um homem relativamente jovem, aparentando menos
de trinta anos não obstante o seu perfil orgulhoso e austero, aliado à
túnica de ampla barra purpúrea, que impunha certo respeito a quantos se
lhe aproximavam, contrastando com o amigo que, revestindo a mesma
indumentária de senador, deixava entrever idade madura, iluminada de cãs
precoces, em penhor de bondade e experiência da vida.
Deixando a jovem senhora entregue aos cuidados domésticos,
ambos se dirigiram ao peristilo, por buscarem um pouco de oxigênio da
noite cálida, embora o aspecto ameaçador do firmamento prenunciasse
chuva iminente.
- A verdade, meu caro Públio - exclamava Flamínio, pensativo -, é
que te consomes a olhos vistos. Trata-se de uma situação que precisa
modificar-se sem perda de tempo. Já recorreste a todos os facultativos no
caso de tua filhinha?
- Infelizmente - retorquia o patrício com amargura - já lancei mão de
todos os recursos ao nosso alcance. Ainda nestes últimos dias, minha
pobre Lívia levou-a a distrair-se em nossa vivenda
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HÁ DOIS MIL ANOS...
de Tibur (1), procurando um dos melhores médicos da cidade, que afirmou
tratar-se de um caso sem remédio na ciência dos nossos dias. O
facultativo não chegou a positivar o diagnóstico, certamente em razão da
sua comiseração pela doentinha e pelo nosso paternal desespero; mas,
segundo nossas observações, acreditamos que o médico de Tibur
presume tratar-se de um caso de lepra.
- É uma presunção atrevida e absurda!
- Entretanto, se não podemos admitir qualquer dúvida com relação
aos nossos antepassados, sabes que Roma está cheia de escravos de
todas as regiões do mundo e são eles o instrumento de nossos trabalhos
de cada dia.
- É verdade... - concordou Flamínio, com amargura.
Um laivo de perspectivas sombrias transparecia na fronte dos dois
amigos, enquanto as primeiras gotas de chuva satisfaziam a sede das
roseiras floridas que enfeitavam as colunas graciosas e claras.
- E o pequeno Plínio? - perguntou Públio, como desejoso de
proporcionar novo rumo a conversação.
- Esse, como sabes, continua sadio, demonstrando ótimas
disposições Calpúrnia atrapalha-se, a cada momento, para satisfazer-lhe
os caprichos dos doze anos incompletos. Às vezes, é voluntarioso e
rebelde, contrariando as observações do velho Parmênides, só se
entregando aos exercícios da ginástica quando muito bem lhe apraz; no
entanto, tem grande predileção pelos cavalos. Imagina que, num momento
de irreflexão própria da idade, burlando toda a vigilância do irmão,
concorreu a uma tirada de bigas realizada nos treinos comuns de um
estabelecimento esportivo do Campo de Marte, obtendo um dos lugares de
maior destaque. Quando contemplo meus dois filhos, lembro-me sempre
da
__________
(1) Hoje Tivoli. (Nota da Editora.)
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ROMANCE DE EMMANUEL
tua pequena Flávia Lentúlia, porque bem sabes dos meus propósitos para
o futuro, no sentido de estreitar os antigos laços que prendem as nossas
famílias.
Públio ouvia o amigo, calado, como se a inveja lhe espicaçasse o
coração carinhoso de pai.
- Todavia - revidou -, apesar de nossos projetos, os áugures não
favorecem nossas esperanças, porque a verdade é que minha pobre filha,
com todos os nossos cuidados, mais parece uma dessas infelizes
criaturinhas atiradas ao Velabro (1).
- Contudo, confiemos na magnanimidade dos deuses
- Dos deuses? - repetiu Públio, com mal disfarçado desalento. - A
propósito desse recurso imponderável, tenho excogitado mil teorias no
cérebro fervilhante. Há tempos, em visita a tua casa, tive ocasião de
conhecer mais intimamente o teu velho liberto grego. Parmênides falou-me
da sua mocidade e permanência na Índia, dando-me conta das crenças
hindus, com as suas coisas misteriosas da alma. Acreditas que cada um
de nós possa regressar, depois da morte, ao teatro da vida, em outros
corpos?
- De modo algum - replicou Flamínio, energicamente. - Parmênides,
não obstante o seu caráter precioso, leva muito longe as suas divagações
espirituais.
- Entretanto, meu amigo, começo a pensar que ele tem razão. Como
poderíamos explicar a diversidade da sorte neste mundo? Porque a
opulência dos nossos bairros aristocráticos e as misérias do Esquilino? A
fé no poder dos deuses não consegue elucidar esses problemas
torturantes. Vendo minha desventurada filhinha com a carne dilacerada e
apodrecida, sinto que o teu escravo está com a verdade. Que teria feito a
pequena Flávia, nos
__________
(1) Bairro da antiga Roma e que se localizava sobre um pântano.
21
HÁ DOIS MIL ANOS...
seus sete anos incompletos, para merecer tão horrendo castigo das
potestades celestiais? Que alegria poderiam encontrar as nossas
divindades nos soluços de uma criança e nas lágrimas dolorosas que nos
calcinam o coração? Não será mais compreensível e aceitável que
tenhamos vindo de longe com as nossas dividas para com os poderes do
Céu?
Flamínio Severus meneou a cabeça, como quem deseja afastar uma
dúvida, mas, retomando o seu aspecto habitual, obtemperou com firmeza:
- Fazes mal em alimentar semelhantes conjeturas no teu foro íntimo.
Nos meus quarenta e cinco anos de existência, não conheço crenças mais
preciosas do que as nossas, no culto venerável dos antepassados. É
preciso considerares que a diversidade das posições sociais é um
problema oriundo da nossa arregimentação política, a única que
estabeleceu uma divisão nítida entre os valores e os esforços de cada um;
quanto à questão dos sofrimentos, convém lembrar que os deuses podem
experimentar nossas virtudes morais, com as maiores ameaças à
enfibratura do nosso ânimo, sem que necessitemos adotar os absurdos
princípios dos egípcios e dos gregos, princípios, aliás, que já os reduziram
ao aniquilamento e ao cativeiro. Já ofereceste algum sacrifício no templo,
depois de tão angustiosas dúvidas?
- Tenho sacrificado aos deuses, segundo os nossos hábitos -
respondeu Públio, compungida mente - e ninguém mais que eu se orgulha
das gloriosas virtudes de nossas tradições familiares. Entretanto, minhas
observações não surgem tão somente a propósito da filhinha. Há muitos
dias, ando torturado com o espantoso enigma de um sonho.
- Um sonho? Como pode a fantasia abalar, desse modo, a fibra de
um patrício?
Públio Lentulus recebeu a pergunta mergulhado em profundas
cismas. Seus olhos parados pre22
ROMANCE DE EMMANUEL
sumiam devorar uma paisagem que o tempo distanciara no transcurso dos
anos.
A chuva, agora em bátegas pesadas, caía continuadamente, fazendo
os mais fortes transbordamentos do implúvio e represando-se na piscina
que enfeitava o pátio do peristilo.
Os dois amigos haviam-se recolhido a um largo banco de mármore,
reclinando-se nos estofos orientais que o forravam, prosseguindo na
palestra amistosa.
- Sonhos há - prosseguiu Públio - que se distinguem da fantasia, tal
a sua expressão de realidade irretorquível
Voltava eu de uma reunião no Senado, onde havíamos discutido um
problema de profunda delicadeza moral, quando me senti presa de
inexplicável abatimento.
Recolhi-me cedo e, quando parecia divisar junto de mim a imagem
de Têmis, que guardamos no altar doméstico, considerando as singulares
obrigações de quem exerce as funções da justiça, senti que uma força
extraordinária me selava as pálpebras cansadas e doloridas. No entanto,
via outros lugares, reconhecendo paisagens familiares ao meu espírito,
das quais me havia esquecido inteiramente.
Realidade ou sonho, não o sei dizer, mas vi-me revestido das
insígnias de cônsul, ao tempo da República. Parecia-me haver retrocedido
à época de Lúcio Sergius Catilina, pois o via a meu lado, bem como a
Cícero, que se me figuravam duas personificações, do mal e do bem.
Sentia-me ligado ao primeiro por laços fortes e indestrutíveis, como se
estivesse vivendo a época tenebrosa da sua conspiração contra o Senado,
e participando, com ele, da trama ignominiosa que visava à mais intima
organização da República. Prestigiava-lhe as intenções criminosas,
aderindo a todos os seus projetos com a minha autoridade administrativa,
assumindo a direção de reuniões secretas, onde decretei assas23
HÁ DOIS MIL ANOS...
sínios nefandos... Num relâmpago, revivi toda a tragédia, sentindo que
minhas mãos estavam nodoadas do sangue e das lágrimas dos inocentes.
Contemplei, atemorizado, como se estivesse regressando
involuntariamente a um pretérito obscuro e doloroso, a rede de infâmias
perpetradas com a revolução, em boa hora esmagada pela influência de
Cícero; e o detalhe mais terrível é que eu havia assumido um dos papéis
mais importantes e salientes na ignomínia... Todos os quadros hediondos
do tempo passaram, então, à frente dos meus olhos espantados...
Todavia, o que mais me humilhava nessas visões do passado
culposo, como se a minha personalidade atual se envergonhasse de
semelhantes reminiscências, é que me prevalecia da autoridade e do poder
para, aproveitando a situação, exercer as mais acerbas vinganças contra
inimigos pessoais, contra quem expedia ordens de prisão, sob as mais
terríveis acusações. E ao meu coração desalmado não bastava o
recolhimento dos inimigos aos calabouços infectos, com a conseqüente
separação dos afetos mais caros e mais doces, da família. Ordenei a
execução de muitos, na escuridão da noite, acrescendo a circunstância de
que a muitos adversários políticos mandei arrancar os olhos, na minha
presença, contemplando-lhes os tormentos com a frieza brutal das vinditas
cruéis!... Ai de mim que espalhava a desolação e a desventura em tantas
almas, porque, um dia, se lembraram de eliminar o verdugo cruel!
Depois de toda a série de escândalos que me afastaram do
Consulado, senti o término dos meus atos infames e misérrimos, diante de
carrascos inflexíveis que me condenaram ao terrível suplício do
estrangulamento, experimentando, então, todos os tormentos e angústias
da morte.
O mais interessante, porém, é que revi o inenarrável instante da
minha passagem pelas águas escuras do Aqueronte, quando me parecia
haver
24
ROMANCE DE EMMANUEL
descido aos lugares sombrios do Averno, onde não penetram as
claridades dos deuses. A grande multidão de vítimas acercou-se, então, de
minhalma angustiada e sofredora, reclamando justiça e reparação e
rebentando em clamores e soluços, que me pereciam no recôndito do
coração.
Por quanto tempo estive, assim, prisioneiro desse martírio
indefinível? Não sei dizê-lo. Apenas me recordo de haver lobrigado a figura
celeste de Lívia, que, no meio desse vórtice de pavores, estendia-me as
mãos fúlgidas e carinhosas.
Afigurava-se-me que minha esposa me era familiar de épocas
remotíssimas, porque não hesitei um instante em lhe tomar as mãos
suaves, que me conduziram a um tribunal, onde se alinhavam figuras
estranhas e venerandas. Cãs respeitáveis aureolavam o semblante sereno
desses juizes do Céu, emissários dos deuses para julgamento dos homens
da Terra. A atmosfera caracterizava-se por estranha leveza, cheia de luzes
cariciosas que iluminavam, perante todos os presentes, os meus
pensamentos mais secretos.
Lívia devia ser o meu anjo-tutelar nesse conselho de magistrados
intangíveis, porque sua destra pairava sobre minha cabeça, como a imporme
resignação e serenidade, a fim de ouvir as sentenças supremas.
Desnecessário será dizer-te do meu espanto e do meu receio, diante
desse tribunal que eu desconhecia, quando a figura daquele que me
pareceu a sua autoridade central me dirigiu a palavra, exclamando:
- Públio Lentulus, a justiça dos deuses, na sua misericórdia,
determina tua volta ao turbilhão das lutas do mundo, para que laves as
nódoas de tuas culpas nos prantos remissores. Viverás numa época de
maravilhosos fulgores espirituais, lutando com todas as situações e
dificuldades, não obstante o berço de ouro que te receberá ao renasceres,
a fim de que edifiques tua consciência denegrida, nas do25
HÁ DOIS MIL ANOS...
res que purificam e regeneram!... Feliz de ti se bem souberes aproveitar a
oportunidade bendita da reabilitação pela renúncia e pela humildade...
Determinou-se que sejas poderoso e rico, a fim de que, com o teu
desprendimento dos caminhos humanos, no instante preciso, possas ser
elemento valioso para os teus mentores espirituais. Terás a inteligência e a
saúde, a fortuna e a autoridade, como ensanchas à regeneração integral de
tua alma, porque chegará um momento em que serás compelido a
desprezar todas as riquezas e todos os valores sociais, se bem souberes
preparar o coração para a nova senda de amor e humildade, de tolerância
e perdão, que será rasgada, em breves anos, à face escura da Terra!... A
vida é um jogo de circunstâncias que todo espírito deve entrosar para o
bem, no mecanismo do seu destino. Aproveita, pois, essas possibilidades
que a misericórdia dos deuses coloca ao serviço da tua redenção. Não
desprezes o chamamento da verdade, quando soar a hora do testemunho e
das renúncias santificadoras... Lívia seguirá contigo pela via dolorosa do
aperfeiçoamento, e nela encontrarás o braço amigo e protetor para os dias
de provações ríspidas e acerbas. O essencial é a tua firmeza de ânimo no
caminho escabroso, purificando tua fé e tuas obras, na reparação do
passado delituoso e obscuro!...
A essa altura, a voz altiva do patrício ia-se tornando angustiada e
dolorosa. Amargas comoções íntimas represavam-se-lhe no coração,
atormentado por incoercível desalento.
Flamínio Severus ouvia-o com interesse e atenção, rebuscando o
meio mais fácil de lhe desvanecer impressões tão penosas. Sentia ímpetos
de desviar-lhe o curso dos pensamentos, arrancando-lhe o espírito
daquele mundo de emoções impróprias da sua formação intelectual,
apelando para sua educação e para o seu orgulho; mas, ao mesmo tempo,
não conseguia sopitar as próprias dúvidas íntimas, em face daquele
sonho, cuja nitidez e aspecto de
26
ROMANCE DE EMMANUEL
realidade o deixavam aturdido. Compreendia que era necessário primeiro
restabelecer sua própria fortaleza de ânimo, entendendo que a lógica da
brandura deveria ser o escudo de suas palavras, para esclarecimento do
amigo que ele mais considerava irmão.
Foi assim que, pousando a mão esguia e branca nos seus ombros,
perguntou com amável doçura:
- E depois, que mais viste?
Públio Lentulus, sentindo-se compreendido, recobrou energias
novas e continuou:
- Depois das exortações daquele juiz severo e venerando, não mais
lobriguei o vulto de Lívia a meu lado, mas outras criaturas graciosas,
envolvidas em peplos que me pareciam de neve translúcida, confortavamme
o coração com os seus sorrisos acolhedores e bondosos.
Atendendo-lhes ao apelo carinhoso, senti que meu Espírito
regressava à Terra.
Observei Roma, que já não era bem a cidade do meu tempo; um
sopro de beleza estava reconstituindo a sua parte antiga, porque notei a
existência de novos circos, teatros suntuosos, termas elegantes e palácios
encantadores, que meus olhos não haviam conhecido antes.
Tive ocasião de ver meu pai entre os seus papiros e pergaminhos,
estudando os processos do Senado, tal qual se verifica hoje conosco, e,
depois de implorar a bênção dos deuses, no altar doméstico de nossa
casa, experimentei uma sensação de angústia no recesso de minhalma.
Pareceu-me haver sofrido dolorosa comoção cerebral e fiquei
adormentado numa vertigem indefinível...
Não sei descrever literalmente o que se passou, mas despertei com
febre alta, como se aquela digressão do pensamento, pelos mundos de
Morfeu, me houvesse trazido ao corpo dolorosa sensação de cansaço.
27
HÁ DOIS MIL ANOS...
Ignoro o teu julgamento, em face desta confidência amargurada e penosa,
mas desejaria me explicasses algo a respeito.
- Explicar-te? - obtemperou Flamínio, tentando imprimir à voz uma
tonalidade de convicção enérgica. - Bem sabes do respeito que me
inspiram os áugures do templo, mas, afinal, o que te ocorreu não pode
passar, simplesmente, de um sonho, e tu não ignoras como devemos
temer a imaginação dentro de nossas perspectivas de homens práticos.
Por sonharem excessivamente, os atenienses ilustres transformaram-se
em escravos misérrimos, constituindo obrigação de nossa parte o
reconhecimento da bondade dos deuses que nos concederam o senso da
realidade, necessário às nossas conquistas e triunfos. Seria lícito
renunciasses ao amor de ti mesmo e à posição de tua família, tão somente
levado pela fantasia?
Públio deixou que o amigo discorresse abundantemente sobre o
assunto, recebendo-lhe as exortações e conselhos, mas, depois, tomandolhe
as mãos generosas, exclamou angustiado:
- Meu amigo, eu seria indigno da magnanimidade dos deuses se me
deixasse conduzir ao sabor dos acontecimentos. Um simples sonho não
me daria margem a tão dolorosas conjeturas, mas a verdade é que ainda te
não disse tudo.
Flamínio Severus franziu o sobrolho, rematando:
- Ainda não disseste tudo? Que significam estas afirmativas?
No seu íntimo generoso, angustiosa dúvida fora já implantada com a
descrição minuciosa daquele sonho impressionante e doloroso, e era com
grande esforço que o seu coração fraternal trabalhava por ocultar ao
amigo as penosas emoções que intimamente o atormentavam.
Públio, mudo, tomou-lhe do braço, conduzindo-o às galerias do
tablino localizado a um canto do peristilo, nas proximidades do altar
doméstico,
28
ROMANCE DE EMMANUEL
onde oficiavam os mais puros e mais santos afetos da família.
Os dois amigos penetraram o escritório e a sala do arquivo com
profundo sinal de respeitoso recolhimento.
A um canto, dispunham-se em ordem numerosos pergaminhos e
papiros, enquanto, nas galerias, avultavam retratos de cera, de
antepassados e avoengos da família.
Públio Lentulus tinha os olhos úmidos e a voz trêmula, como se
profundas emoções o dominassem naquelas circunstâncias.
Aproximando-se de uma imagem de cera, entre as muitas que ali se
enfileiravam, chamou a atenção de Flamínio, com uma simples palavra:
- Reconheces?
- Sim - respondeu o amigo, estremecendo -, reconheço esta efígie.
Trata-se de Públio Lentulus Sura, teu bisavó paterno, estrangulado há
quase um século, na revolução de Catilina.
- Faz precisamente noventa e quatro anos que o pai de meu avô foi
eliminado nessas tremendas circunstâncias - exclamou Públio, com
ênfase, como quem está de posse de toda a verdade. - Repara bem os
traços desta figura, para verificares a semelhança perfeita que existe entre
mim e esse longínquo antepassado. Não estaria aqui a chave do meu
sonho doloroso?
O nobre patrício observou a notável identidade de traços
fisionômicos daquela efígie morta com o semblante do amigo presente.
Suas vacilações atingiram o auge, em face daquelas demonstrações
alucinantes. Ia elucidar o assunto, encarecendo a questão da linhagem e
da hereditariedade, mas o interlocutor, como se adivinhasse os mínimos
detalhes de suas dúvidas, antecipou o julgamento, exclamando:
- Eu também participei de todas as hesitações que ferem o teu
raciocínio, lutando contra a razão, antes de aceitar a tese de nossas
conversa29
HÁ DOIS MIL ANOS...
ções desta noite. A semelhança pela imagem, ainda a mais extrema, é
natural e é possível; isto, porém, não me satisfaz plenamente. Expedi,
nestes últimos dias, um dos servos de nossa casa, a Taormina, em cujas
adjacências possuímos antiga habitação, onde se guardava o arquivo do
extinto, que fiz transportar para aqui.
E, num movimento de quem estava certo de todos os seus
conceitos, revirava nas mãos nervosas vários documentos, exclamando:
- Repara estes papiros! São notas de meu bisavô, acerca dos seus
projetos no Consulado. Encontrei neste acervo de pergaminhos diversas
minutas de sentenças de morte, as quais já havia observado nas minhas
digressões do sonho inexplicável... Confronta estas letras! Não se
parecem com as minhas? Que desejaríamos mais, além destas provas
caligráficas? Há muitos dias, vivo este obscuro dilema no íntimo do
coração... Serei eu Públio Lentulus Sura, reencarnado?
Flamínio Severus deixou pender a fronte, com indisfarçável
inquietação e indizível amargura.
Numerosas haviam sido as provas da lucidez e da lógica do amigo.
Tudo conspirava para que o seu castelo de explicações desmoronasse,
fragorosamente, diante dos fatos consumados, mas procuraria novas
forças, a fim de salvaguardar o patrimônio das crenças e tradições dos
seus maiores, tentando esclarecer o espírito do companheiro de tantos
anos.
- Meu amigo - murmurou, abraçando-o -, concordo contigo, em face
destes acontecimentos alucinantes. O fato é dos que empolgam o espírito
mais frio, mas não podemos arriscar nossas responsabilidades no rumo
incerto das primeiras impressões. Se ele nos parece a realidade, existem
as realidades imediatas e positivas, aguardando o nosso concurso ativo.
Considerando as tuas ponderações e acreditando mesmo na veracidade
do fenômeno, não acredito devamos mergulhar o raciocínio
30
ROMANCE DE EMMANUEL
nestes assuntos misteriosos e transcendentes. Sou avesso a essas
perquirições, certamente em virtude das minhas experiências da vida
prática. Concordando, de modo geral, com o teu ponto de vista,
recomendo-te não estendê-lo além do círculo de nossa intimidade
fraternal, mesmo porque, não obstante a propriedade de conceitos com
que me dás testemunho da tua lucidez, sinto-te cansado e abatido nesse
torvelinho de trabalhos do ambiente doméstico e social.
Fez uma pausa nas suas observações comovidas, como quem
raciocinasse procurando recurso eficaz para remediar a situação, e
sugeriu com doçura:
- Poderias descansar um pouco na Palestina, levando a família para
essa estação de repouso.
Existem ali regiões de clima adorável, que operariam, talvez, a cura
de tua filhinha, restabelecendo simultaneamente as. tuas forças orgânicas.
Quem sabe? Esquecerias o tumulto da cidade, regressando mais tarde ao
nosso meio, com energias novas. O atual Procurador da Judeia é nosso
amigo. Poderíamos harmonizar vários problemas do nosso interesse e de
nossas funções, porquanto não me seria difícil obter do Imperador
dispensa dos teus trabalhos no Senado, de modo a que continuasses
recebendo os subsídios do Estado, enquanto permanecesses na Judeia.
Que julgas a respeito? Poderias partir tranqüilo, pois eu tomaria a meu
cargo a direção de todos os teus negócios em Roma, zelando pelos teus
interesses e pelas tuas propriedades.
Públio deixou transparecer no olhar uma chama de esperança, e,
como quem estivesse examinando, intimamente, todas as razões
favoráveis ou contrárias à execução do projeto, ponderou:
- A idéia é providencial e generosa, mas a saúde de Lívia não me
autoriza a tomar uma resolução pronta e definitiva.
- Porquê?
31
HÁ DOIS MIL ANOS...
- Esperamos, para breve, o segundo rebento do nosso lar.
- E quando esperas esse advento?
- Dentro de seis meses.
- Interessa-te a viagem depois do inverno próximo?
- Sim.
- Pois bem: estarás, então, na Judeia, precisamente daqui a um ano.
Os dois amigos reconheceram que a palestra havia sido longa.
Cessara o aguaceiro. O firmamento esplendia de constelações
lavadas e límpidas.
Iniciara-se já o tráfego das carroças barulhentas, com os gritos
pouco amáveis dos condutores, porque na Roma imperial as horas do dia
eram reservadas, de modo absoluto, ao tráfego dos palanquins patrícios e
ao movimento dos pedestres.
Flamínio despediu-se comovidamente do amigo, retomando a liteira
suntuosa, com o auxilio dos seus escravos prestos e hercúleos.
Públio Lentulus, tão logo se viu só, encaminhou-se ao terraço, onde
corriam céleres as brisas da noite alta.
À claridade do luar opulento, contemplou o casario romano
espalhado pelas colinas sagradas da cidade gloriosa. Espraiou os olhos
na paisagem noturna, considerando os problemas profundos da vida e da
alma, deixando pender a fronte, entristecido. Incoercível tristeza dominavalhe
o ânimo voluntarioso e sensível, enquanto uma onda de amor-próprio e
de orgulho lhe sopitava as lágrimas íntimas do coração atormentado por
angustiosos pensamentos.
32
II
Um escravo
Desde os primeiros tempos do Império, a mulher romana havia-se
entregado à dissipação e ao luxo excessivo, em detrimento das obrigações
santificadoras do lar e da família.
A facilidade na aquisição de escravos empregados nos serviços
mais grosseiros, como nos mais elevados misteres de ordem doméstica,
inclusive os da própria educação e instrução, havia determinado grande
queda moral no equilíbrio das famílias patrícias, porquanto a disseminação
dos artigos de luxo, vindos do Oriente, aliada à ociosidade, amolecera as
fibras de energia e de trabalho das matronas romanas, encaminhando-as
para as frivolidades da indumenta, para as intrigas amorosas, a preludiar a
mais completa desorganização da família, no esquecimento de suas
tradições mais apreciáveis.
Contudo, algumas casas haviam resistido heroicamente a essa
invasão de forças perversoras e criminosas.
Mulheres havia, ao tempo, que se orgulhavam do padrão das antigas
virtudes familiares, de quantas as tinham antecedido no labor construtivo
das gerações de tantas almas sensíveis e nobres.
33
HÁ DOIS MIL ANOS...
As esposas de Públio e Flamínio eram desse número. Criaturas
inteligentes e valorosas, ambas fugiam da onda corruptora da época,
representando dois símbolos de bom-senso e simplicidade.
As últimas expressões do inverno já haviam desaparecido, no ano
de 32, entornando pela terra, primaveril e alegre, uma taça imensa de flores
e perfumes...
Num dia claro e ensolarado, vamos encontrar Lívia e Calpúrnia, na
residência da primeira, em amável palestra, enquanto dois rapazinhos
desenham, distraidamente, a um canto da sala.
As duas senhoras organizam aprestos de viagem, corrigindo
defeitos de algumas peças de lã e trocando impressões íntimas, à meia
voz, em tom amigo e discreto.
Em dado momento, os dois meninos alcançam um dos quartos
contíguos, enquanto Lívia chama a atenção da amiga, nestes termos:
- Teus pequenos não têm hoje os exercícios habituais?
- Não, minha boa Lívia - respondeu Calpúrnia, com delicadeza
fraternal, adivinhando-lhe as intenções -, não só Plínio, mas, também,
Agripa, consagraram o dia de hoje à doentinha. Adivinho as suas
vacilações e escrúpulos maternos, considerando a boa saúde dos nossos
filhinhos; mas, os teus receios são infundados...
- Sabem os deuses, todavia, como tenho vivido nestes últimos
tempos, desde que ouvi a opinião franca e sincera do médico de Tibur.
Bem sabes que para ele o caso de minha filha é mal doloroso e sem cura.
Desde então, toda a minha vida tem sido uma série de preocupações e
martírios. Tomei todas as providências para que a pequena fosse isolada
do círculo de nossas relações, atendendo aos imperativos da higiene e à
necessidade de circunscrever, com o nosso próprio esforço, a moléstia
terrível.
34
ROMANCE DE EMMANUEL
- Mas, quem te diz que o mal é incurável? Acaso semelhante opinião
provejo da palavra infalível dos deuses? Não sabes quanto é enganosa a
ciência dos homens?
Há tempos, ambos os meus fílhinhos adoeceram com febre insidiosa
e destruidora. Chamados os médicos, observei que eles se revezavam no
mister de salvar os dois enfermos, sem resultados apreciáveis. Depois,
refleti melhor na providência dos céus e, imediatamente, ofereci um
sacrifício no templo de Castor e Pólux, salvando-os de morte certa. Graças
a essa providência, hoje os vejo sorridentes e felizes.
Agora que não tens somente a pequena Flávia, mas também o
pequenino Marcus, aconselho-te fazeres o mesmo, recorrendo aos deuses
gêmeos.
- É verdade, minha boa Calpúrnia, assim farei antes de nossa partida
próxima.
- E por falar na viagem, como te sentes em face desta mudança
imprevista?
- Bem sabes que tudo farei pela tranqüilidade de Públio e pela nossa
paz doméstica. Há muito noto Públio abatido e doente, em razão de suas
lutas exaustivas ao serviço do Estado. Jovial e expansivo, de tempos a
esta parte tornou-se taciturno e irritadiço. Enerva-se com tudo e por tudo,
acreditando eu que a saúde precária de nossa filhinha contribua
decisivamente para a sua misantropia e mau humor.
Considerando essas razões disponho-me, com satisfação, a
acompanhá-lo à Palestina, pesando-me apenas no íntimo a circunstância
de ser obrigada, ainda que temporariamente, a afastar-me da tua
intimidade e dos teus conselhos.
- Folgo de assim te ouvir, porque a nós nos compete examinar a
situação daqueles que o nosso coração elegeu para companheiros de toda
a vida, tudo envidando por suavizar-lhes os aborrecimentos do mundo.
35
HÁ DOIS MIL ANOS...
Públio é um bom coração, generoso e idealista, mas, como patrício
descendente de família das mais ilustres da República, é vaidoso em
demasia. Homens dessa natureza requerem grande senso psicológico da
mulher, sendo justo e necessário que aparentes igualdade absoluta de
sentimentos, de modo a poderes conduzi-lo sempre pelo melhor caminho.
Flamínio deu-me a conhecer todas as circunstâncias da tua
permanência na Judeia, mas, alguns pormenores existem que eu ainda
desconheço. Ficarás, de fato, em Jerusalém?
- Sim. Públio deseja que nos fixemos na mesma residência do seu
tio Sálvio, em Jerusalém, até que possamos eleger o melhor clima do país,
de maneira a beneficiar a saúde de nossa filhinha.
- Está bem - exclamou Calpúrnia, assumindo ares da maior discrição
-, em face da tua inexperiência, sou obrigada a esclarecer o teu espírito,
considerando a possibilidade de quaisquer complicações futuras.
Lívia surpreendeu-se com a observação da amiga, mas, toda
ouvidos, revidou impressionada:
- Mas, que queres dizer?
- Sei que não tens um conhecimento mais acurado dos parentes de
teu marido, que há tanto tempo se conservam ausentes de Roma -
murmurou Calpúrnia, com as minudências características do espírito
feminino - e constituí um dever de amizade aclarar o teu espírito, a fim de
não te conduzires com demasiada confiança por onde passares.
O pretor Sálvio Lentulus, que há muitos anos foi destituído do
governo das províncias, e agora tem simples atribuições de funcionário
junto do atual Procurador da Judeia, não é bem um homem idêntico a teu
marido, que, se tem certos defeitos de família, é um espírito muito franco e
sincero. Eras muito jovem quando se verificaram acontecimentos
deploráveis em nosso ambiente social, com referência às criaturas com
quem agora vais conviver.
36
ROMANCE DE EMMANUEL
A esposa de Sálvio, que ainda deve ser uma mulher moça e bem cuidada, é
irmã de Cláudia, mulher de Pilatos, a quem teu marido vai recomendado,
em caminho da alta administração da província.
Em Jerusalém vais encontrar toda essa gente, de costumes bem
diferentes dos nossos, e precisas pensar que vais conviver com criaturas
dissimuladas e perigosas.
Não temos o direito de reprovar os atos de ninguém, a não ser em
presença daqueles que consideramos culpados ou passíveis de
recriminações, mas devo prevenir-te de que o Imperador foi compelido a
designar essa gente para serviços no exterior, considerando graves
assuntos de família, na intimidade da Corte.
Que os deuses me perdoem as observações da ausência, mas é que,
na tua condição de romana e mulher de senador ainda jovem, serás
homenageada pelos nossos conterrâneos distantes, homenagens que
receberás em sociedade como ramalhetes de rosas cheios de perfume,
mas também cheios de espinhos...
Lívia ouviu a amiga, entre espantada e pensativa, exclamando em
voz discreta, como quem quisesse desfazer uma dúvida:
- Mas, o pretor Sálvio não é homem idoso?
- Estás enganada. É pouco mais moço que Flamínio, mas os seus
apuros de cavalheiro fazem da sua personalidade um tipo de soberba
aparência.
- Como poderei levar a bom termo os meus deveres, no caso de me
cercarem as perfídias sociais, tão comuns em nosso tempo, sem agravar o
estado espiritual de meu esposo?
- Confiemos na providência dos deuses - murmurou Calpúrnia,
deixando transparecer a fé magnífica do seu coração maternal.
Mas, as duas não conseguiram prosseguir na conversação. Um
ruído mais forte denunciava a aproximação de Públio e Flamínio, que
atravessavam o vestíbulo, procurando-as.
37
HÁ DOIS MIL ANOS...
- Então? - exclamou Flamínio, bem humorado, assomando à porta,
com malicioso sorriso. - Entre a costura e a palestra, deve sofrer a
reputação de alguém nesta sala, porque já dizia meu pai que mulher
sozinha pensa sempre na família; mas, se está com outra, pensa logo
nos... outros.
Um riso sadio e geral coroou as suas palavras alegres, enquanto
Públio exclamava contente:
- Estejamos sossegados, minha Lívia, porque tudo está pronto e a
nosso inteiro contento. O Imperador prontificou-se a auxiliar-nos
generosamente com as suas ordens diretas, e, daqui a três dias, uma
galera nos esperará nas cercanias de Óstia, de modo a viajarmos
tranqüilamente.
Lívia sorriu satisfeita e confortada, enquanto do apartamento da
pequena Flávia assomavam duas cabeças risonhas, preparando-se
Flamínio para receber nos braços, de uma só vez, os dois filhinhos.
- Venham cá, ilustres marotos! Porque fugiram ontem das aulas?
Hoje recebi queixa do ginásio, nesse sentido, e estou muito contrariado
com esse procedimento...
Plínio e Agripa ouviram a reprimenda paterna. desapontados,
respondendo o mais velho, com humildade:
- Mas, papai, eu não sou culpado. Como o senhor sabe, o Plínio
fugiu dos exercícios, obrigando-me a sair para procurá-lo.
- Isso é uma vergonha para você, Agripa - exclamou Flamínio,
paternalmente -, sua idade não permite mais a participação nas
traquinadas de seu irmão.
Ia a cena nessa altura, quando Calpúrnia interveio apaziguando:
- Tudo está muito certo, mas teremos de resolver o assunto em casa,
porque a hora não comporta discussões entre pai e filhos.
Ambos os meninos foram beijar a mão materna, como se lhe
agradecessem a intervenção carinhosa, e, daí a minutos, despediam-se as
duas famí38
ROMANCE DE EMMANUEL
lias, com a promessa de Flamínio, no sentido de acompanhar os amigos
até Óstia, nas proximidades da foz do Tibre, no dia do embarque.
Decorridas aquelas setenta e duas horas de azáfama e preparativos,
vamos encontrar nossas personagens numa galera confortável e elegante,
nas águas de Óstia, onde ainda não existiam as construções do porto, ali
edificadas mais tarde por Cláudio.
Plínio e Agripa ajudavam a acomodar a pequena enferma no interior,
instigados pelos pais, que os preparavam desde cedo para as delicadezas
da vida social, enquanto Calpúrnia e Lívia instruíam uma serva, a respeito
da instalação do pequenino Marcus. Públio e Flamínio trocavam
impressões, a distância, ouvindo-se a recomendação do segundo, que
elucidava o amigo confidencialmente:
- Sabes que os súditos conquistados pelo Império muitas vezes nos
olham com inveja e despeito, tornando-se preciso nunca desmerecermos
da nossa posição de patrícios.
Algumas regiões da Palestina, segundo os meus próprios
conhecimentos, estão infestadas de malfeitores e é necessário estejas
precavido contra eles, principalmente na tua marcha em demanda de
Jerusalém. Leva contigo, tão logo aportes com a família, o maior número
de escravos para a tua garantia e dos teus, e, na hipótese de ataques, não
hesites em castigar com severidade e aspereza.
Públio recebeu a exortação, atenciosamente, e, daí a minutos,
movimentavam-se ambos no interior da nave, onde o viajante interpelava o
chefe dos serviços:
- Então, Áulus, tudo está pronto?
- Sim, Ilustríssimo. Apenas aguardamos as vossas ordens para a
partida. Quanto aos nossos trabalhos, podeis ficar tranqüilo, porque
escolhi a dedo os melhores cartagineses para o serviço de remos.
39
HÁ DOIS MIL ANOS...
Com efeito, começaram ali as últimas despedidas. As duas senhoras
abraçavam-se com lágrimas enternecidas e afetuosas, enquanto se
expressavam promessas de perene lembrança e votos aos deuses pela
tranqüilidade geral.
Derradeiros abraços comovidos e largava a galera suntuosa, onde a
bandeira da águia romana tremulava orgulhosa, ao sopro suave das
virações marinhas. Os ventos e os deuses eram favoráveis, porque, em
breve, ao esforço hercúleo dos escravos no ritmo dos remos poderosos,
os viajantes contemplavam de longe a fita esverdeada da costa italiana,
como se avançassem na massa liquida para as vastidões insondáveis do
Infinito.
Transcorria a viagem com o máximo de serenidade e calma.
Públio Lentulus, não obstante a beleza da paisagem na travessia do
Mediterrâneo e a novidade dos aspectos exteriores, considerada a
monotonia dos seus afazeres na vida romana, junto dos numerosos
processos do Estado, tinha o coração cheio de sombras. Debalde a esposa
procurara aproximar-se do seu espírito irritado, buscando tanger assuntos
delicados de família, com o fim de conhecer e suavizar-lhe os íntimos
dissabores. Experimentava ele a impressão de que caminhava para
emoções decisivas do desenrolar de sua existência. Conhecera parte da
Ásia, porque, na primeira mocidade, havia servido um ano na
administração de Esmirna, de modo a integrar-se, da melhor maneira, no
mecanismo dos trabalhos do Estado, mas não conhecia Jerusalém, onde o
esperavam como legado do Imperador, para a solução de vários problemas
administrativos de que fôra incumbido junto ao governo da Palestina.
Como encontraria o tio Sálvio, mais moço que seu pai? Há muitos
anos não o via pessoalmente; entretanto, era pouco mais velho do que ele
próprio. E aquela Fúlvia, leviana e caprichosa, que lhe desposara o tio no
torvelinho dos seus numerosos es40
ROMANCE DE EMMANUEL
cândalos sociais, tornando-se quase indesejável no seio da família?
Recordava mais íntimos pormenores do passado, abstendo-se, todavia, de
comunicar à mulher as mais penosas expectativas. Refletindo, igualmente,
na situação da esposa e dos dois filhinhos, encarava com ansiedade os
primeiros obstáculos à sua permanência na Judeia, na qualidade de
patrícios, mas também como estrangeiros, considerando que as amizades
que os aguardavam eram problemáticas.
Entre as suas cismas e as preces da esposa, estava a terminar a
travessia do Mediterrâneo, quando chamou a atenção do seu servo de
confiança, nestes termos:
- Comênio, dentro em pouco estaremos às portas de Jerusalém;
mas, antes que isso se verifique, temos de realizar pequena marcha,
depois do ponto de desembarque, reclamando-se muito cuidado de minha
parte, com relação ao transporte da família. Esperam-se alguns
representantes da administração da Judeia, mas certamente estaremos
acompanhados dos teus cuidados, pois vamos aportar a região para mim
desconhecida e estrangeira. Reúne todos os servos sob as tuas ordens, de
modo a garantirmos absoluta segurança pelo caminho.
- Senhor, contai com o nosso desvelo e dedicação - respondeu o
servidor, entre respeitoso e comovido.
No dia imediato Públio Lentulus e comitiva desembarcavam em
pequeno porto da Palestina, sem incidentes dignos de menção.
Esperavam-no, além do legado do Procurador, alguns lictores e
numerosos soldados pretorianos, comandados por Sulpício Tarquinius,
munido de todos os aprestos e elementos exigidos para uma viagem
tranqüila e confortável, pelas estradas de Jerusalém.
Após o necessário repouso, a caravana pôs-se a caminho,
parecendo antes expedição militar que
41
HÁ DOIS MIL ANOS...
transporte de simples família, através das estações periódicas de
descanso.
As armaduras dos cavalos, os capacetes romanos reluzindo ao Sol,
os trajes extravagantes, palanquins enfeitados, animais de tração e os
carros pesados da bagagem davam idéia de expedição triunfal, embora
azafamada e silenciosa.
Ia a caravana a bom termo, quando, nas proximidades de Jerusalém,
ocorre um imprevisto. Um corpo sibilante cortou o ar fino e claro, alojandose
no palanquim do senador, ouvindo-se ao mesmo tempo um grito
estridente e lamentoso. Minúscula pedra ferira levemente o rosto de Lívia,
determinando grande alarme na massa enorme de servos e cavaleiros.
Entre os carros e os animais que pararam assustados, numerosos
escravos rodeiam os senhores, buscando, com precipitação, inteirar-se do
fato. Sulpício Tarquinius, num golpe de vista, dá largas ao galope da
montada, buscando prender um jovem que se afastava, receoso, das
margens do caminho. E, culpado ou não, foi um rapaz dos seus dezoito
anos apresentado aos viajantes, para a punição necessária.
Públio Lentulus recordou a recomendação de Flamínio, momentos
antes da partida, e, sopitando os seus melhores sentimentos de tolerância
e generosidade, resolveu prestigiar a sua posição e autoridade aos olhos
de quantos houvessem de lhe seguir a permanência naquele país
estrangeiro.
Ordenou providências imediatas aos lictores que o acompanhavam,
e ali mesmo, ante as claridades mordentes do Sol a pino e sob o olhar
espantado de algumas dezenas de escravos e centuriões numerosos,
determinou que vergastassem sem comiseração o rapaz, pela sua
leviandade.
A cena era desagradável e dolorosa.
Todos os servos acompanhavam, compungidos, o estalar do chicote
no dorso seminu daquele homem ainda moço, que gemia, em soluços
dolorosos, sob o látego despótico e cruel. Ninguém ousou con42
ROMANCE DE EMMANUEL
trariar as ordens impiedosas, até que Lívia, não conseguindo contemplar
por mais tempo a rudeza do espetáculo, pediu ao esposo, em voz súplice:
- Basta, Públio, porque os direitos da nossa condição não traduzem
deveres de impiedade...
O senador considerou, então, a sua severidade excessiva e rigorosa,
ordenou a suspensão do castigo doloroso, mas, a uma pergunta de
Sulpício, quanto ao novo destino do infeliz, falou em tom rude e irritado:
- Para as galeras!...
Os presentes estremeceram, porque as galeras significavam a morte
ou a escravidão para sempre.
O desventurado amparava-se, exânime, nas mãos dos centuriões
que o rodeavam, porém, ao ouvir as três palavras da sentença
condenatória, deitou ao seu orgulhoso juiz um olhar de ódio supremo e de
supremo desprezo No âmago de sua alma coriscavam relâmpagos de
vingança e de cólera, mas a caravana pôs-se novamente a caminho, entre
o ruído dos carros pesados e o tilintar das armaduras, ao movimento dos
cavalos fogosos e irrequietos.
A chegada a Jerusalém ocorreu sem outros fatos dignos de nota.
A novidade dos aspectos e a diversidade das criaturas é que
impressionaram os viajantes no seu primeiro contacto com a cidade, cuja
fisionomia, com raras mudanças, no decurso de todos os séculos, foi
sempre a mesma, triste e desolada, preludiando as paisagens ressequidas
do deserto.
Pilatos e sua mulher encontravam-se nas solenidades de recepção
ao senador, que ia, como legado de Tibério, junto da administração da
província, encarnando o princípio da lei e da autoridade.
Sálvio Lentulus e a esposa, Fúlvia Prócula, receberam os parentes
com aparato e prodigalidade. Homenagens numerosas foram prestadas a
Públio Lentulus e sua mulher, salientando-se que Lívia, fosse em razão das
advertências de Calpúrnia, ou em vista de sua acuidade psicológica,
reconheceu
43
HÁ DOIS MIL ANOS...
logo que naquele ambiente não palpitavam os corações generosos e
sinceros dos seus amigos de Roma, experimentando, no íntimo, dolorosa
sensação de amargura e ansiedade. Verificara, com satisfação, que a sua
pequena Flávia havia melhorado, não obstante a viagem exaustiva, mas, ao
mesmo tempo, torturava-se percebendo que Fúlvia não possuía amplitude
de coração para acolhê-los sempre com carinho e bondade. Notara que, ao
lhe apresentar a filhinha enferma, a patrícia vaidosa fizera um movimento
instintivo de recuo, afastando sua pequena Aurélia, filha única do casal, do
contacto com a família, apresentando pretextos inaceitáveis. Bastou um
dia de permanência naquele lar estranho, para que a pobre senhora
compreendesse a extensão das angústias que a esperavam ali, calculando
os sacrifícios que a situação exigiria do seu coração sensível e carinhoso.
E não era somente o quadro familiar, nos seus detalhes
impressionantes, que lhe torturava a mente trabalhada de expectativas
pungentes. Deparando-se-lhe Pôncio Pilatos, no próprio momento de sua
chegada, sentira, no íntimo, que havia encontrado um rude e poderoso
inimigo.
Forças ignoradas do mundo intuitivo falavam ao seu coração de
mulher, como se vozes do plano invisível lhe preparassem o espírito para
as provas aspérrimas dos dias vindouros. Sim, porque a mulher, símbolo
do santuário do lar e da família, na sua espiritualidade, pode, muitas vezes,
numa simples reflexão, devassar mistérios insondáveis dos caracteres e
das almas, na tela espessa e sombria das reencarnações sucessivas e
dolorosas.
Públio Lentulus, ao contrário, não experimentou as mesmas
emoções da companheira. A diversidade do ambiente modificara-lhe um
tanto as disposições íntimas, sentindo-se moralmente confortado em face
da tarefa que lhe competia desempenhar no cenário novo de suas
atividades de homem de Estado.
44
ROMANCE DE EMMANUEL
No segundo dia de permanência na cidade, tão logo regressara da
primeira visita às instalações da Torre Antônia, onde se aquartelavam
contingentes das forças romanas, observando o movimento dos casuístas
e dos doutores, no Templo famoso de Jerusalém, foi procurado por um
homem humilde e relativamente moço, que apresentava como credencial,
tão somente, o coração aflito e carinhoso de pai.
Obedecendo mais aos imperativos de ordem política que ao
sentimento de generosidade do coração, o senador quebrou as etiquetas
do momento, recebendo-o no seu gabinete privado, disposto a ouvi-lo.
Um judeu, pouco mais velho que ele próprio, em atitude de
respeitosa humildade e expressando-se dificilmente, de modo a fazer-se
compreendido, falou-lhe nestes termos:
- Ilustríssimo senador, sou André, filho de Gioras, operário modesto
e paupérrimo, não obstante numerosos membros de minha família terem
atribuições importantes no Templo e no exercício da Lei. Ouso vir até vós,
reclamando o meu filho Saul, preso, há três dias, por vossa ordem e
remetido diretamente para o cativeiro Perpétuo das galeras... Peço-vos
clemência e caridade na reparação dessa sentença de terríveis efeitos para
a estabilidade da minha casa pobre... Saul é o meu primogênito e nele
deponho toda a minha esperança paternal... Reconhecendo-lhe a
inexperiência da vida, não venho inocentá-lo da culpa, mas apelar para a
vossa clemência e magnanimidade, em face da sua ignorância de rapaz,
jurando-vos, pela Lei, encaminhá-lo doravante pela estrada do dever
austeramente cumprido...
Públio recordou a necessidade de fazer sentir a autoridade da sua
posição, revidando com o orgulho característico das suas resoluções:
- Como ousa discutir minhas determinações, quando guardo a
consciência de haver praticado a
45
HÁ DOIS MIL ANOS...
justiça? Não posso modificar minhas deliberações, estranhando que um
judeu ponha em dúvida a ordem e a palavra de um senador do Império,
formulando reclamações desta natureza.
- Mas, senhor, eu sou pai...
- Se o és, porque fizeste de teu filho um vagabundo e um inútil?
- Não posso compreender os motivos que levaram meu pobre Saul a
comprometer-se dessa maneira, mas, juro-vos que ele é o braço-forte dos
meus trabalhos de cada dia.
- Não me cabe examinar as razões do teu sentimento, porque a
minha palavra esta dada irrevogavelmente.
André de Gioras mirou Públio Lentulus de alto a baixo, ferido na sua
emotividade de pai e no seu sentimento de homem, esfuziando de dor e de
cólera reprimida. Seus olhos úmidos traíam íntima angústia, em face
daquela recusa formal e inapelável, mas, desprezando todos os
convencionalismos humanos, falou com orgulhosa firmeza:
- Senador, eu desci da minha dignidade para implorar vossa
compaixão, mas aceito a vossa recusa ignominiosa!...
Acabais de comprar, com a dureza do coração, um inimigo eterno e
implacável!... Com os vossos poderes e prerrogativas, podeis eliminar-me
para sempre, seja reduzindo-me ao cativeiro ou condenando-me a perecer
de morte infame; mas eu prefiro afrontar a vossa soberbia orgulhosa!...
Plantastes, agora, uma árvore de espinhos, cujo fruto, um dia, amargará
sem remédio o vosso coração duro e insensível, porque a minha vingança
pode tardar, mas, como a vossa alma inflexível e fria, ela será também
indefectível e tenebrosa!...
O judeu não esperou a resposta do seu interlocutor, amargamente
emocionado com a veemência daquelas palavras, saindo do recinto a
passo firme e de rosto erguido, como se houvesse obtido os melhores
resultados da sua curta e decisiva entrevista.
46
ROMANCE DE EMMANUEL
Num misto de orgulho e ansiedade, Públio Lentulus experimentou,
naquele instante, as mais variadas gamas de sentimento a dominar-lhe o
coração Desejou determinar a prisão imediata daquele homem que lhe
atirara em rosto as mais duras verdades, experimentando,
simultaneamente, o desejo de chamá-lo a si, prometendo-lhe o regresso do
filho querido, a quem protegeria com o seu prestígio de homem de Estado;
mas a voz se lhe sumiu na garganta, naquele complexo de emoções que de
novo lhe roubara a paz e a serenidade. Dolorosa opressão paralisou-lhe as
cordas vocais, enquanto no coração angustiado repercutiam as palavras
candentes e amarguradas.
Uma série de reflexões penosas enfileirou-se no seu mundo íntimo,
assinalando os mais fortes conflitos de sentimentos. Também ele não era
pai e não procurava reter os filhinhos perto do coração? Aquele homem
possuía as mais fortes razões para considerá-lo um espírito injusto e
perverso.
Recordou o sonho inexplicável que, relatado a Flamínio, fôra a causa
indireta da sua vinda para a Judeia e considerou as lágrimas de
compunção que derramara, em contacto com o turbilhão de lembranças
perniciosas da sua existência passada, em face de tantos crimes e
desvios.
Retirou-se do gabinete com a solução mental da questão em foco,
ordenando que trouxessem o jovem Saul à sua presença, com a urgência
que o caso requeria, a fim de recambiá-lo à casa paterna, e modificando,
dessa forma, as penosas impressões que havia causado ao pobre André.
Suas ordens foram expedidas sem delongas; todavia, esperava-o
desagradável surpresa, com as informações dos funcionários a quem
competia a providência de semelhantes serviços.
O jovem Saul desaparecera do cárcere, fazendo crer numa fuga
desesperada e imprevista. Os informes foram transmitidos à autoridade
superior, sem que Públio Lentulus viesse a saber que os maus
47
HÁ DOIS MIL ANOS...
servidores do Estado negociavam, muitas vezes, os prisioneiros jovens
com os ambiciosos mercadores de escravos, que operavam nos centros
mais populosos da capital do mundo.
Informado de que o prisioneiro se evadira, o senador sentiu a
consciência aliviada das acusações que lhe pesavam no intimo. Afinal,
pensou, tratava-se de caso de somenos importância, porquanto o rapaz,
distante do cárcere, procuraria imediatamente a casa paterna; e,
consolidando sua tranqüilidade, expediu ordens aos dirigentes do serviço
de segurança, recomendando se abstivessem de qualquer perseguição ao
foragido, a quem se levaria, oportunamente, o indulto da lei.
O caminho de Saul, todavia, fôra bem outro.
Em quase todas as províncias romanas funcionavam terríveis
agrupamentos de malfeitores, que, vivendo à sombra da máquina do
Estado, haviam-se transformado em mercadores de consciências.
O moço judeu, na sua juventude promissora e sadia, fora vítima
dessas criaturas desalmadas. Vendido clandestinamente a poderosos
escravocratas de Roma, em companhia de muitos outros, foi embarcado
no antigo porto de Jope, com destino à Capital do Império.
Antecipando-nos na cronologia de nossas narrativas, vamos
encontrá-lo, daí a meses, num grande tablado, perto do Fórum, onde se
alinhavam, em penosa promiscuidade, homens, mulheres e crianças,
quase todos em míseras condições de nudez, tendo cada qual um pequeno
cartaz pendurado ao pescoço. Olhos chispando sentimentos de vingança,
lá se encontrava Saul, seminu, um barrete de lã branca a cobrir-lhe a
cabeça e com os pés descalços levemente untado de gesso.
Junto daquela massa de criaturas desventuradas, passeava um
homem de ar ignóbil e repulsivo, que exclamava em voz gritante para a
multidão de curiosos que o rodeava:
48
ROMANCE DE EMMANUEL
- Cidadãos, tende a bondade de apreciar... Como sabeis, não tenho
pressa em dispor da mercadoria, porque não devo a ninguém, mas aqui
estou para servir aos ilustres romanos!...
E, detendo-se no exame desse ou daquele infeliz, prosseguia na sua
arenga grosseira e insultuosa:
- Vede este mancebo!... É um exemplar soberbo de saúde,
frugalidade e docilidade. Obedece ao primeiro sinal. Atentai bem para o
aprumo da sua carne firme. Doença alguma terá força sobre o seu
organismo.
Examinai este homem! Sabe falar o grego corretamente e é bem feito
da cabeça aos pés!...
Nesses pruridos de negocista, continuou a propaganda individual,
em face da multidão de compradores que o assediava, até que tocou a vez
do jovem Saul, que deixava transparecer, no aspecto miserável, os seus
ímpetos de cólera e sentimentos tigrinos:
- Atentai bem neste mancebo! Acaba de chegar da Judeia, como o
mais belo exemplar de sobriedade e saúde, de obediência e de força. É
uma das mais ricas amostras deste meu lote de hoje. Reparai na sua
mocidade, ilustres romanos!... Dar-vo-lo-ei ao preço reduzido de cinco mil
sestércios!...
O jovem escravo contemplou o mercador com a alma esfervilhante
de ódio e alimentando, intimamente, as mais ferozes promessas de
vingança. Seu semblante judeu impressionou a multidão que estacionava
na praça, aquela manhã, porque um intenso movimento de curiosidade lhe
cercou a figura interessante e originalíssima.
Um homem destacou-se da multidão, procurando o mercador, a
quem se dirigiu à meia voz, nestes termos:
- Flacus, meu senhor necessita de um rapaz elegante e forte para as
bigas dos filhos. Esse
49
HÁ DOIS MIL ANOS...
jovem me interessa. Não o darias ao preço de quatro mil sestércios?
- Vá lá - murmurou o outro em tom de negócio -, meu interesse é
bem servir à ilustre clientela.
O comprador era Valério Brutus, capataz dos serviços comuns da
casa de Flamínio Severus, que o incumbira de adquirir um escravo novo e
de boa aparência, destinado ao serviço das bigas dos filhos, nos grandes
dias das festas romanas.
Foi assim que, imbuído de sentimentos ignóbeis e deploráveis, Saul,
o filho de André, foi introduzido, pelas forças do destino, junto de Plínio e
de Agripa, na residência da família Severus, no coração de Roma, ao preço
miserável de quatro mil sestércios.
50
III
Em casa de Pilatos
A secura da natureza, onde se ergue Jerusalém, proporciona à
célebre cidade uma beleza melancólica, tocada de pungente monotonia.
Ao tempo do Cristo, seu aspecto era quase igual ao que hoje se
observa. Apenas a colina de Mizpa, com as suas tradições suaves e lindas,
representava um recanto verde e alegre, onde repousavam os olhos do
forasteiro, longe da aridez e da ingratidão das paisagens.
Todavia, devemos registrar que, na época da permanência de Públio
Lentulus e de sua família, Jerusalém acusava novidades e esplendores da
vida nova. As construções herodianas pululavam nos seus arredores,
revelando novo senso estético por parte de Israel. A predileção pelos
monólitos talhados na rocha viva, característica do antigo povo israelita,
fora substituída pelas adaptações do gosto judeu às normas gregas,
renovando as paisagens interiores da famosa cidade. A jóia maravilhosa
era, porém, o Templo, todo novo na época de Jesus. Sua reconstrução fôra
determinada por Herodes, no ano de 21, notando-se que os pórticos
levaram oito anos a edificar-se, e considerando-se, ainda,
51
HÁ DOIS MIL ANOS...
que os planos da obra grandiosa, continuados vagarosamente no curso do
tempo, somente ficaram concluídos pouco antes de sua completa
destruição.
Nos pátios imensos, reunia-se diariamente a aristocracia do
pensamento israelita, localizando-se ali o fórum, a universidade, o tribunal
e o templo supremo de toda uma raça.
Os próprios processos civis, além das discussões engenhosas de
ordem teológica, ali recebiam as decisões derradeiras, resumindo-se no
templo imponente e grandioso todas as ambições e atividades de uma
pátria.
Os romanos, respeitando a filosofia religiosa dos povos estranhos,
não participavam das teses sutis e dos sofismas debatidos e examinados
todos os dias, mas a Torre Antônia, onde se aquartelavam as forças
armadas do Império, dominava o recinto. facilitando a fiscalização
constante de todos os movimentos dos sacerdotes e das massas
populares.
Públio Lentulus, após o incidente do prisioneiro, que continuava a
considerar como episódio sem importância, retomava certa serenidade
para o desempenho de suas obrigações consuetudinárias. Os aspectos
áridos de Jerusalém tinham, para seus olhos cansados, encanto novo, no
qual o pensamento repousava das numerosas e intensas fadigas de Roma.
Quanto a Lívia, esta guardava o coração voltado para os seus afetos
distantes, analisando a aridez dos espíritos ao alcance do seu convívio.
Como por milagre, a pequena Flávia havia melhorado, observando-se
notável transformação das feridas que lhe cobriam a epiderme. Mas, as
atitudes hostis de Fúlvia, que lhe não perdoava a simplicidade encantadora
e os dotes preciosos de inteligência, sem perder ensejo para jogar-lhe em
rosto pequeninas indiretas, por vezes irônicas e mordentes, deixavam-lhe
o espírito aturdido num turbilhão de expectativas alucinantes.
Semelhantes acontecimentos
52
ROMANCE DE EMMANUEL
eram desconhecidos do marido, a quem a pobre senhora se abstinha de
relatar os seus mais íntimos desgostos.
Esses fatos, porém, não eram os elementos que mais contribuíam
para acabrunhá-la naquele ambiente de penosas incertezas.
Fazia uma semana que se encontravam na cidade e notava-se que,
contrariando talvez seus hábitos, Pôncio Pilatos comparecia diariamente à
residência do pretor, a pretexto de predileção pela palestra com os
patrícios recém-chegados da Corte. Horas a fio eram empregadas nesse
mister, mas Lívia, com as secretas intuições da sua alma, compreendia os
pensamentos inconfessáveis do governador a seu respeito, recebendo de
espírito prevenido os seus amáveis madrigais e alusões menos diretas.
Nessas aproximações de sentimentos que prenunciam a preamar
das paixões, via-se também a contrariedade de Fúlvia, tocada de venenoso
ciúme em face da situação que a atitude de Pilatos ia criando. Por detrás
daqueles bastidores brilhantes do cenário da amizade artificial, com que
foram recebidos, Públio e Lívia deveriam compreender que existia um
mamei de paixões inferiores, que, certo, haveria de tisnar a tranqüilidade
de suas almas. Não entenderam, todavia, os detalhes da situação e
penetraram de espírito confiante e ingênuo no caminho escuro e doloroso
das provações que Jerusalém lhes reservava.
Reafirmando incessantes obséquios e multiplicando gentilezas,
Pilatos fez questão de oferecer um jantar, no qual toda a família se
reconfortasse e a fraternidade e a alegria fossem perfeitas
No dia aprazado, Sálvio e Públio, acompanhados pelos seus,
compareciam à residência senhorial do governador, onde Cláudia
igualmente os esperava com um sorriso bondoso e acolhedor.
Lívia estava pálida, no seu traje simples e despretensioso, sendo de
notar que, contra toda a ex53
HÁ DOIS MIL ANOS...
pectativa do esposo, fizera questão de levar a filhinha doente, no
pressuposto de que o seu cuidado materno representasse alguma coisa
contra as pretensões do conquistador que o seu coração de mulher
adivinhava, através das atitudes indiscretas e atrevidas do anfitrião
daquela noite.
O jantar servia-se em condições essencialíssimas, segundo os
hábitos mais rigorosos e elegantes da Corte.
Lívia estava aturdida com aquelas solenidades a se desdobrarem
nos mais altos requintes da etiqueta romana, costumes esses oriundos de
um meio do qual ela e Calpúrnia sempre se haviam afastado, na sua
simplicidade de coração. Numerosa falange d escravos se movimentava
em todas as direções, como verdadeiro exército de servidores, em face de
tão reduzido número de comensais.
Depois dos pratos preparados, chegam os vocadores recitando os
nomes dos convivas, enquanto os infertores trazem os pratos dispostos
com singular simetria. Os convidados recostam-se então no triclínio,
forrado de penugens cetinosas e pétalas de flores. As carnes são trazidas
em pratos de ouro e os pães em açafates de prata, multiplicando-se os
servos para todos os misteres, inclusive aqueles que deviam provar as
iguarias, a fim de se certificar do seu paladar, para que fossem servidas
com a máxima confiança. Os copeiros servem um falerno precioso e
antigo, misturado de aromas, em taças incrustadas de pedras preciosas,
enquanto outros servos os acompanham apresentando, em galhetas de
prata, a água tépida ou fria, ao sabor dos convidados. Junto dos leitos,
onde cada comensal deve recostar-se molemente, conservam-se escravos
jovens, trajados com apuro e ostentando na fronte gracioso turbante,
braços e pernas seminus, cada qual com a sua função definida. Alguns
agitam nas mãos longos ramos de mirto, afugentando as moscas,
enquanto outros, curvados aos pés dos convi54
ROMANCE DE EMMANUEL
vas, são obrigados a limpar discretamente os sinais da sua gula e
intemperança.
Quinze serviços diferentes sucederam-se através dos esforços dos
escravos dedicados e humildes, quando, após o repasto, brilham os salões
com centenas de tochas, ouvindo-se agradáveis sinfonias. Servos jovens e
bem postos executam danças apaixonadas e voluptuosas em homenagem
aos seus senhores, mimoseando-lhes os sentimentos inferiores com a sua
arte exótica e espontânea, e, somente não foi levado a efeito um número
de gladiadores, segundo o costume nos grandes banquetes da Corte,
porque Lívia, de olhos súplices, pedira que poupassem naquela festa o
doloroso espetáculo do sangue humano.
A noite era das mais cálidas de Jerusalém, motivo por que, findos o
jantar e as cerimônias complementares, a caravana de amigos,
acompanhada agora de Sulpício Tarquinius, se dirigia para o amplo e bem
posto terraço, onde jovens escravas faziam deliciosa música do Oriente.
- Não julgava encontrar em Jerusalém uma noite patrícia como esta -
exclamou Públio, sensibilizado, dirigindo-se ao governador com respeitosa
cortesia. - Devo à vossa bondade fidalga e generosa a satisfação de reviver
o ambiente e a vida inesquecíveis da Corte, onde os romanos distantes
guardam o coração e o pensamento.
- Senador, esta casa vos pertence - replicou Pilatos com intimidade. -
Ignoro se a minha sugestão ser-vos-á agradável, mas só teríamos razão
para agradecer aos deuses, se nos concedêsseis a honrosa alegria de vos
hospedar aqui, com os vossos dignos familiares. Acredito que a residência
do pretor Sálvio não vos oferece o necessário conforto, e, acrescendo a
circunstância do íntimo parentesco que liga minha mulher à esposa de
vosso tio, sinto-me à vontade para fazer este oferecimento, sem quebra de
nossos costumes, em sociedade.
55
HÁ DOIS MIL ANOS...
- Lá isso não, exclamou por sua vez o pretor, que acompanhara
atento a gentileza da oferta. - Eu e Fúlvia nos opomos à realização dessa
medida - e, acenando confiante para a consorte, terminava a sua
ponderação -, não é verdade, minha querida?
Fúlvia, porém, deixando transparecer uma ponta de contrariedade,
redargüiu, com surpresa de todos os presentes:
- De pleno acordo. Públio e Lívia são nossos hóspedes efetivos;
contudo, não podemos esquecer que o objetivo de sua viagem se prende à
saúde da filhinha, objeto de todas as nossas preocupações no momento,
sendo justo que os não privemos de qualquer recurso que se venha a
verificar, a favor da pequena enferma...
E dirigindo-se instintivamente para o banco de mármore, onde
descansava a doentinha, exclamou com escândalo geral:
- Aliás, esta menina representa uma séria preocupação para todos
nós. Sua epiderme dilacerada acusa sintomas invulgares, recordando.. -
Mas, não conseguiu terminar a exposição de seus receios
escrupulosos, porque Cláudia, alma nobre e digna, constituindo uma
antítese da irmã que o destino lhe havia dado, compreendendo a situação
penosa que os seus conceitos iam criando, adiantou-se-lhe redargüindo:
- Não vejo razões que justifiquem esses temores; suponho a
pequena Flávia muito melhor e mais forte. Quero crer, até, que bastará o
clima de Jerusalém para a sua cura completa.
E avançando para a doentinha, como quem desejasse desfazer a
dolorosa impressão daquelas observações indelicadas, tomou-a nos
braços, osculando-lhe o rosto infantil, coberto de tons violáceos de mal
disfarçadas feridas.
Lívia, que trazia o semblante afogueado pela humilhação das
palavras de Fúlvia, recebeu a gentileza como bálsamo precioso para as
suas inquieta56
ROMANCE DE EMMANUEL
ções maternas; quanto a Públio, este, amargamente surpreendido,
considerou a necessidade de reaver a sua serenidade e energia máscula,
dissimulando o desgosto que o episódio lhe causara, retomando a direção
da palestra, sobremaneira comovido:
- É verdade, amigos. A saúde da minha pobre Flávia representa o
objeto primordial da nossa longa viagem até aqui. Resolvidos os
problemas do Estado, que me trouxeram a Jerusalém, há alguns dias que
examino a possibilidade de me localizar em qualquer região do interior, de
modo que a filhinha possa recuperar o precioso equilíbrio orgânico,
aspirando um ar mais puro.
- Pois bem - replicou Pilatos, com segurança -, em assuntos de
clima, sou aqui um homem entendido. Há seis anos que me encontro
nestas paragens em função do cargo e tenho visitado quase todos os
recantos da província e das regiões vizinhas, tendo motivos para afiançar
que a Galileia está em primeiro plano. Sempre que posso repousar dos
labores intensos que aqui me prendem, busco imediatamente a nossa vila
dos arredores de Nazaré, para gozar a serenidade da paisagem e as brisas
deliciosas do seu lago imenso. Concordo em que a distância é muito
longa, mas a verdade é que, se permanecesse nas cercanias da cidade,
nas minhas estações de repouso, perderia o tempo, atendendo às
solicitações incessantes dos rabinos do templo, sempre a braços com
inumeráveis pendências. Ainda agora, Sulpício terá de partir, a fim de
superintender alguns trabalhos de reparação da nossa residência, pois
tencionamos seguir para ali dentro de pouco tempo, a refazer as energias
esgotadas na luta cotidiana.
Já que a minha hospedagem não vos será necessária em Jerusalém,
quem sabe teremos o prazer de hospedar-vos, mais tarde, na vila a que me
refiro?
- Nobre amigo - exclamou o senador, agradecido -, devo poupar-vos
tanto trabalho, mas,
57
HÁ DOIS MIL ANOS...
ficar-vos-ei imensamente grato se o vosso amigo Sulpício providenciar em
Nazaré a aquisição de uma casa confortável e simples, que me sirva,
reformando-a de conformidade com os nossos hábitos familiares, e onde
possamos residir despreocupadamente por alguns meses.
- Com o máximo prazer.
- Muito bem - atalhou Cláudia, com bondade, enquanto Fúlvia mal
dissimulava venenoso despeito -, ficarei incumbida de adaptar a nossa boa
Lívia à vida campestre, onde a gente se sente tão bem em contacto direto
com a Natureza.
- Desde que se não transformem em judias... - disse o senador, bem
humorado, enquanto todos sorriam alegremente.
Neste comenos, ouvido sobre os detalhes dos serviços que lhe
seriam confiados em dias próximos, Sulpício Tarquinius, homem da
confiança do governador, sentiu-se com a liberdade de intervir no assunto,
exclamando, com surpresa para quantos o ouviam:
- E por falar de Nazaré, já ouvistes falar do seu profeta?
- Sim - continuou -, Nazaré possui agora um profeta que vem
realizando grandes coisas.
- Que é isso, Sulpício? - perguntou Pilatos, ironicamente - pois não
sabes que dos judeus nascem profetas todos os dias? Acaso as lutas no
templo de Jerusalém se verificam por outra coisa? Todos os doutores da
Lei se consideram inspirados pelo Céu e cada qual é dono de uma nova
revelação.
- Mas, esse, senhor, é bem diferente.
- Estarás, acaso, convertido a uma nova fé?
- De modo algum, mesmo porque compreendo o fanatismo e a
obcecação dessas miseráveis criaturas; mas fiquei realmente intrigado
com a figura impressionante de um Galileu ainda moço, quando passava,
há alguns dias, por Cafarnaum.
Ao centro de uma praça, acomodada em bancos improvisados, feitos
de pedra e de areia, vi consi58
ROMANCE DE EMMANUEL
derável multidão que lhe ouvia a palavra, em êxtase de admiração e
comoção...
Eu também, como se fôra tocado de força misteriosa e invisível,
sentei-me para ouvi-lo.
De sua personalidade, extraordinária de beleza simples, vinha um
"não sei quê", dominando a turba que se aquietava, de leve, ouvindo-lhe as
promessas de um eterno reinado... Seus cabelos esvoaçavam às brisas da
tarde mansa, como se fossem fios de luz desconhecida nas claridades
serenas do crepúsculo; e de seus olhos compassivos parecia nascer uma
onda de piedade e comiseração infinitas. Descalço e pobre, notava-se-lhe a
limpeza da túnica, cuja brancura se casava à leveza dos seus traços
delicados. Sua palavra era como um cântico de esperança para todos os
sofredores do mundo, suspenso entre o céu e a terra, renovando os
pensamentos de quantos o escutavam... Falava de nossas grandezas e
conquistas como se fossem coisas bem miseráveis, fazia amargas
afirmativas acerca das obras monumentais de Herodes, em Sebasto,
asseverando que acima de César está um Deus Todo-Poderoso,
providência de todos os desesperados e de todos os aflitos... No seu
ensinamento de humildade e amor, considera todos os homens como
irmãos bem-amados, filhos desse Pai de misericórdia e justiça, que nós
não conhecemos...
A voz de Sulpício estava saturada do tom emocional característico
dos sentimentos filhos da verdade.
O auditório se contagiara da comoção de sua narrativa, escutandolhe
a palavra com o maior interesse.
Pilatos, todavia, sem perder o fio de suas vaidades de governador,
interrompeu-o, exclamando:
- Todos irmãos! Isso é um absurdo. A doutrina de um Deus único
não é novidade para nós outros, nesta terra de ignorantes; mas, não
podemos concordar com esse conceito de fraternidade
59
HÁ DOIS MIL ANOS...
irrestrita. E os escravos? E os vassalos do Império? Onde ficam as
prerrogativas do patriciado?
O que mais me admira, porém - exclamou com ênfase, dirigindo-se
particularmente ao narrador -, é que, sendo tu um homem prático e
decidido, te tenhas deixado levar pelas palavras loucas desse novo
profeta, misturando-te com a turba para ouvi-lo. Não sabes que a anuência
de um lictor pode significar enorme prestígio para as idéias desse
homem?
- Senhor - respondeu Sulpício, desapontado -, eu próprio não saberia
explicar a razão de minhas observações daquela tarde. Considerei,
igualmente, de pronto, que as doutrinas por ele pregadas são subversivas
e perigosas, por igualarem os servos aos senhores, mas observei,
também, as suas penosas condições de pobreza, consideradas por seus
discípulos e seguidores como um estado alegre e feliz. o que, de algum
modo, não constitui motivo de receio para as autoridades provinciais.
Além disso, essas pregações não prejudicam os camponeses,
porque são feitas geralmente nas horas de ócio e descanso, no intervalo
dos trabalhos de cada dia, notando-se igualmente que os seus
companheiros prediletos são os pescadores mais ignorantes e mais
humildes do lago.
- Mas, como te deixaste empolgar assim por esse homem? - retornou
Pilatos, com energia.
- Enganais-vos, quanto a isso - respondeu o lictor, mais senhor de si
- não me sinto impressionado, como supondes, tanto assim que, notandolhe
a originalidade simples e formosa, não lhe reconheço privilégios
sobrenaturais e acredito que a ciência do Império elucidará o fato que vou
narrar, respondendo à vossa argüição do momento.
Não sei se conheceis Copônio, velho centurião destacado na cidade
a que me referi, mas cumpre-me cientificar-vos do fato por mim observado.
Depois que a voz do profeta de Nazaré havia deixado uma doce quietude
na paisagem, o meu conhe60
ROMANCE DE EMMANUEL
cido apresentou-lhe o filhinho moribundo, implorando caridade para a
criança que agonizava. Vi-o elevar os olhos radiosos para o firmamento,
como se obsecrasse a bênção dos nossos deuses e, depois, notei que
suas mãos tocavam o menino, que, por sua vez, parecia haver
experimentado um fluxo de vida nova, levantando-se de súbito, a chorar e
buscando o carinho paterno, após descansar no profeta os olhinhos
enternecidos...
- Mas, até centuriões já se metem com os judeus nas suas
perlengas? Preciso comunicar-me com as autoridades de Tiberíades,
sobre esses fatos - exclamou o governador, visivelmente contrariado.
- O caso é curioso - disse Públio Lentulus, intrigado com a narrativa.
- A verdade, contudo, meu amigo - objetou Pilatos, dirigindo-se a ele
-, é que nestas paragens nascem religiões todos os dias. Este povo é
muito diverso do nosso, reconhecendo-se-lhe visível deficiência de
raciocínio e senso prático. Um governador, aqui, não pode deixar-se
empolgar pelas figuras e sim manter rígidos os princípios, no sentido de
salvaguardar a soberania inviolável do Estado. É por esse motivo que,
atendendo às sábias determinações da sede do governo, não me detenho
nos casos isolados, para tão somente ponderar as razões dos sacerdotes
do Sinédrio, que representam o órgão do poder legítimo, apto a harmonizar
conosco a solução de todos os problemas de ordem política e social.
Públio dava-se por satisfeito com o argumento, mas as senhoras
presentes, com exceção de Fúlvia, pareciam fundamente impressionadas
com a descrição de Sulpício, inclusive a pequenina Flávia, que lhe bebera
as palavras com o máximo de curiosidade infantil.
Um véu de preocupações obscurecera a facécia de todos os
presentes, mas o governador não se resignou com a atitude geral,
exclamando:
61
HÁ DOIS MIL ANOS...
- Ora esta! um lictor que, em vez de fazer a justiça a nosso bem, age
contra nós próprios, obscurecendo o nosso ambiente alegre, merece
severa punição por suas narrativas inoportunas!...
Um riso geral seguiu-lhe a palavra ruidosa e leve, enquanto
rematava:
- Desçamos ao jardim para ouvir nova música, desanuviando o
coração desses aborrecimentos imprevistos.
A idéia foi aceita com geral agrado.
A pequena Flávia foi instalada pela dona da casa em apartamento
confortável, e, em poucos minutos, os presentes se dividiam em três
grupos distintos, através das alamedas do jardim, aclarado de tochas
brilhantes, ao som de músicas caprichosas e lascivas.
Públio e Cláudia falavam da paisagem e da natureza; Pilatos
multiplicava gentilezas junto de Lívia, enquanto Sulpício se colocava ao
lado de Fúlvia, tendo o pretor Lentulus resolvido permanecer no arquivo,
examinando algumas obras de arte.
Distanciando-se propositadamente dos demais grupos, o
governador notava a palidez da companheira que, naquela noite, se lhe
figurava mais sedutora e mais bela.
O respeito que a sua formosura discreta lhe infundia nalma, parecia
aumentar, naquela hora, o ardor do coração apaixonado.
- Nobre Lívia - exclamou com emoção -, não posso guardar por mais
tempo os sentimentos que as vossas virtudes cheias de beleza me
inspiraram. Sei da natural repulsa de vossa alma digna, em face de minhas
palavras, mas lamento não me compreendais o coração tocado dessa
admiração que me avassala!...
- Também eu - revidou a pobre senhora, com dignidade e energia
espontâneas - lastimo haver inspirado ao vosso espírito semelhante
paixão. Vossas palavras me surpreendem amarga62
ROMANCE DE EMMANUEL
mente, não só porque partem de um patrício revestido das elevadas
responsabilidades de procurador do Estado, como por considerar a
amizade confiante e nobre que vos consagra o meu esposo.
- Mas, em assuntos do coração - atalhou ele, solícito - não podem
prevalecer as formalidades da convenção política, mesmo as mais
elevadas. Tenho dos meus deveres a mais alta compreensão e sei encarar
a solução de todos os problemas do meu cargo, mas não me recordo onde
vos teria visto antes!... a realidade é que, há uma semana, tenho o coração
dilacerado e oprimido... Encontrando-vos, parecia deparar-se-me esta
imagem adorada e inesquecida. Tudo fiz por evitar esta cena desagradável
e penosa, mas, confesso que uma força invencível me confunde o
coração!...
- Enganais-vos, senhor! Entre nós não pode existir outro laço, além
do inspirado pelo respeito à identidade de nossas condições sociais. Se
tendes em tão alta conta as vossas obrigações de ordem política, não
deveis olvidar que o homem público deve cultivar as virtudes da vida
privada, incentivando, em si mesmo, a veneração e a incorruptibilidade da
própria consciência.
- Mas, a vossa personalidade me faz esquecer todos esses
imperativos. Onde vos teria visto, afinal, para que me sentisse empolgado
desta maneira?
- Calai-vos, pelos deuses! - murmurou Lívia, assustada e
empalidecida. - Nunca vos vi, antes de nossa chegada a Jerusalém, e apelo
para o vosso cavalheirismo de homem, a fim de me poupardes estas
referências que me amarguram!... Tenho razões para crer na vossa ventura
conjugal, junto de uma mulher digna e pura, tal como a vejo, reputando
uma loucura as propostas que vossas palavras me deixam entrever...
Pilatos ia prosseguir na sua argumentação, quando a pobre senhora,
amargamente surpreendida, sentiu-se desfalecer. Debalde mobilizou ela
63
HÁ DOIS MIL ANOS...
as suas energias vitais, com o fim de evitar o delíquio.
Presa de singular abatimento, encostou-se a uma árvore do jardim,
onde se desenrolava a palestra que acabamos de ouvir. Receando as
conseqüências, o governador tomou-lhe a mão delicada e mimosa,
torturado pelos seus inconfessáveis pensamentos, mas, ao seu contacto
ligeiro, a natureza orgânica de Lívia parecia reagir com decisão e
inquebrantável firmeza.
Recobrando as forças, fez com a cabeça um leve sinal de
agradecimento, enquanto Públio e Cláudia se acercavam de ambos,
renovando-se a palestra geral, com a satisfação de todos.
Todavia, a cena provocada pelas extravasões de afeto do
governador não ficou circunscrita apenas aos dois atores que a viveram
intensamente.
Fúlvia e Sulpício acompanharam-na em seus mínimos detalhes,
através dos claros abertos na ramagem sombria.
- Ora esta! - exclamou o lictor para a companheira, observando as
minudências da palestra que acabamos de descrever. - Então, já perdeste
as boas graças do procurador da Judeia?
A essa pergunta, Fúlvia, que por sua vez não tirava os olhos da cena,
estremeceu convulsivamente, dando guarida aos mais largos sentimentos
de ciúme e despeito.
- Não respondes? - continuava Sulpício, gozando o espetáculo. -
Porque me recusas tantas vezes, se tenho para oferecer-te um sentimento
profundo de dedicação e lealdade?
A interpelada continuou em silêncio, no seu posto de observação,
rugindo de cólera íntima, quando viu que o governador guardava, entre as
suas, a mão exânime da companheira, pronunciando palavras que seus
ouvidos não escutavam, mas os seus sentimentos inferiores presumiam
adivinhar naquele colóquio inesperado.
64
ROMANCE DE EMMANUEL
Tão logo, porém, Cláudia e Públio figuraram no cenário, Fúlvia
voltou-se para o companheiro, murmurando com voz cava:
- Acederei a todos os teus desejos, se me auxiliares num
cometimento.
- Qual?
- O de levarmos ao senador, em tempo oportuno, o conhecimento da
infidelidade de sua mulher.
- Mas, como?
- Primeiramente, evitarás a instalação de Públio em Nazaré, para
levá-la mais distante, de modo a dificultar as relações entre Lívia e o
governador, por ocasião de sua ausência de Jerusalém, porque estou
adivinhando que ela desejará transferir-se para Nazaré, em breves dias. Em
seguida, procurarei interferir, pessoalmente, de maneira que sejas
designado para proteger o senador na sua estação de repouso e, investido
nesse cargo, encaminharás os acontecimentos para consecução de
nossos planos. Isso feito, saberei recompensar teus esforços e bons
serviços de sempre, com a minha dedicação absoluta.
O lictor ouviu a proposta, silenciando, indeciso. Mas a interlocutora,
como se estivesse ansiosa por selar a aliança sinistra, interrogou em voz
firme:
- Tudo combinado?
- De pleno acordo!... - respondeu Sulpício, já resoluto.
E as duas personificações do despeito e da lascívia reuniram-se à
caravana fraterna, com a máscara das alegrias aparentes, depois de
concluído o pacto tenebroso.
As últimas horas foram consagradas às despedidas, com a
afabilidade exterior do convencionalismo social.
Lívia absteve-se de relatar ao esposo a cena penosa do jardim,
considerando não somente a sua
65
HÁ DOIS MIL ANOS...
necessidade de repouso íntimo, como também a importância social das
personalidades em jogo, prometendo a si mesma evitar, a todo transe,
qualquer expressão menos digna no terreno do escândalo pelas palavras.
66
IV
Na Galileia
No dia imediato a esses acontecimentos, às primeiras horas da
manhã, Públio Lentulus foi procurado, na intimidade do seu gabinete
particular, por Fúlvia, que se lhe dirigiu, criminosamente, nestes termos:
- Senador, o ascendente de nossas ligações familiares obriga-me a
procurar-vos para tratar de um assunto desagradável e doloroso, mas, nas
minhas experiências de mulher, cumpre-me aconselhá-lo a resguardar sua
esposa da insídia dos próprios amigos, pois que, ainda ontem, tive
oportunidade de surpreendê-la em íntimo colóquio com o governador...
O interpelado estranhou aquela atitude insólita, grosseira, contrária
a todos os seus métodos de homem de bem.
Repeliu dignamente a investida, encarecendo a nobreza moral de
sua esposa, passando Fúlvia a relatar-lhe, com os mais exaltados floreios
de sua imaginação doentia, a cena da véspera, nas suas mínimas
minudências.
67
HÁ DOIS MIL ANOS...
O senador ficou pensativo, mas sentiu-se com a precisa coragem
moral para repelir a insinuação caluniosa.
- Pois bem - disse ela, terminando a denúncia -, muito longe levais a
vossa confiança e boa fé. Um homem nunca perde por ouvir os conselhos
da experiência feminina. A prova de que Lívia caminha na estrada larga da
prevaricação tê-la-eis muito breve, porquanto ela há-de preferir a partida
imediata para Nazaré, onde o governador buscará encontrá-la.
E, dizendo-o, retirou-se apressadamente, deixando o senador algo
desalentado e compungido, pensando nos corações mesquinhos que o
rodeavam, porque, no tribunal da consciência, não se sentia disposto a
aceitar idéia que viesse conspurcar a valorosa nobreza de sua mulher.
Imenso véu de sombras cobriu-lhe o espírito sensível e afetuoso.
Sentiu que, em Jerusalém, conspiravam contra ele todas as forças
tenebrosas do seu destino, experimentando vasto deserto no coração.
Ali, não encontraria a palavra prudente e generosa de um amigo
como Flamínio, com quem pudesse desabafar as suas profundas mágoas.
Absorto nessas meditações angustiosas, não viu que as pétalas das
horas rodopiavam incessantes, nos torvelinhos do tempo. Só muito depois
percebeu o vozerio de um dos serviçais de confiança, vindo a saber que
Sulpício Tarquinius lhe solicitava o obséquio de uma entrevista particular,
pedido a que atendeu com o máximo de atenção.
Admitido ao interior do gabinete, o lictor referiu-se, sem preâmbulos,
aos fins da visita, explicando com desembaraço:
- Senador, honrado com a vossa confiança no caso de vossa
transferência para uma estação de repouso, venho sugerir-vos o
arrendamento de rica propriedade pertencente a um nosso compatrício,
nos arredores de Cafarnaum, encantadora cidade da
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ROMANCE DE EMMANUEL
Galileia, situada no caminho de Damasco. É verdade que já escolhestes
Nazaré, mas, ao longo da planície de Esdrelon, as casas confortáveis são
muito raras, acrescendo que seríeis obrigado a enormes dispêndios em
serviços de remodelação e benfeitorias. Em Cafarnaum, porém, o caso é
diferente. Tenho ali um amigo, Caio Gratus, decidido a arrendar por tempo
ir determinado a sua esplêndida vila, que é uma herdade provida de todo o
conforto, com pomares preciosos, num ambiente de absoluto sossego.
O senador ouvia o preposto de Pilatos como se o espírito lhe
pairasse noutra parte; mas, como se tivesse a atenção subitamente
despertada, exclamou, na atitude de quem argumenta consigo mesmo:
- De Jerusalém a Nazaré, temos setenta milhas... Onde fica
Cafarnaum?...
- Muito distante de Nazaré - obtemperou o lictor, com segunda
intenção.
- Está bem, Sulpício - respondeu Públio, com ares de quem tomou
uma resolução íntima -, estou muito agradecido pela tua gentileza, que não
esquecerei de recompensar em tempo oportuno. Aceito a tua sugestão que
reputo sensata, mesmo porque, de fato, não me pode interessar a
aquisição definitiva de qualquer imóvel na Galileia, atenta a necessidade
de regressar a Roma, dentro em breve. Ficas autorizado a concluir o
negócio, porquanto me louvo nas tuas informações, descansando,
confiadamente, no teu conhecimento do assunto.
Secreta satisfação transpareceu nos olhos de Sulpício, que se
despediu com fingido reconhecimento.
Públio Lentulus descansou novamente os cotovelos na mesa de
trabalho, submerso em profundas cismas.
Aquela sugestão de Sulpício chegava no instante psicológico de
suas angustiosas cogitações, porque, em face dessa nova providência,
conseguiria instalar a família longe de qualquer influência da
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HÁ DOIS MIL ANOS...
casa do procurador da Judeia, salvando, assim, a sua reputação dos
salpicos ignominiosos da maledicência.
A denúncia de Fúlvia, todavia, desdobrava sucessivas preocupações
no seu íntimo. Fosse pelo inopinado da calúnia, ou pelo espírito de
perversidade com que a mesma fôra urdida, seu pensamento mergulhou
em ansiosas expectativas.
À noite daquele mesmo dia, após o jantar, vamos encontrá-lo a sós
com Lívia, no terraço da residência do pretor, que, por sua vez, se
ausentara de casa por algumas horas, em companhia dos seus familiares,
para atender a imperativos de certas pragmáticas.
Notando-lhe no rosto os sinais evidentes de profunda contrariedade,
rompeu a esposa com a encantadora intimidade do seu coração feminino:
- Querido, pesa-me ver-te assim, dobrado ao jugo de tamanhos
desgostos, quando esta longa viagem deveria restituir-nos a tranqüilidade
necessária ao desenvolvimento dos teus encargos... Ouso pedir que
apresses a nossa mudança de Jerusalém para um ambiente mais calmo,
onde nos sintamos mais a sós, fora deste círculo de criaturas cujos
hábitos não são os nossos, e cujos sentimentos desconhecemos. Quando
partiremos para Nazaré?...
- Para Nazaré? - repetiu o senador, com voz irritada e sombria, como
se o tocasse o espírito venenoso do ciúme, lembrando, involuntariamente,
as acusações infundadas de Fúlvia.
- Sim - prosseguiu Lívia, súplice e carinhosa -, pois não foram essas
as providências ontem aventadas?
- É verdade, querida! - exclamou Públio, já pesaroso, voltando a si
dos maus pensamentos que havia abrigado por um instante - mas resolvi
depois instalarmo-nos em Cafarnaum, contrariando as últimas decisões...
70
ROMANCE DE EMMANUEL
E tomando a mão da companheira, como se buscasse um bálsamo
para a alma ferida, sussurrou-lhe de manso:
- Lívia, és tudo que me resta neste mundo!... Nossos filhos são flores
da tua alma, que os deuses nos deram para minha alegria!... Perdoa-me,
querida... Há quanto tempo tenho vivido absorto e taciturno, esquecendo o
teu coração sensível e carinhoso! Parece-me estar despertando agora de
um sono muito doloroso e muito profundo, mas despertando com a alma
receosa e oprimida. Andam-me, no íntimo, amargurados vaticínios... Temo
perder-te, quando quisera encerrar-te no peito, guardando-te no coração
eternamente... Perdoa-me...
Enquanto ela o contemplava, surpresa, seus lábios sequiosos lhe
cobriam as mãos de beijos ardentes. E não foram apenas os ósculos
afetuosos que brotaram nesse transbordamento de carinhos. Uma lágrima
lhe gotejou dos olhos cansados, misturando-se às flores da sua afeição.
- Que é isso, Públio? Choras? - exclamou Lívia, enternecida e
angustiada.
- Sim! Sinto os gênios do mal cercando-me o coração e a mente. Meu
íntimo está povoado de visões sombrias, prenunciando o fim da nossa
felicidade; mas eu sou um homem e sou forte... Querida, não me negues a
tua mão para atravessarmos juntos o caminho da vida, porque, contigo,
vencerei o próprio impossível!...
Ela estremeceu em face dessas observações, que lhe não eram
familiares.
Num relance, retrocedeu à noite anterior, considerando o
atrevimento do governador, que dignamente repelira, experimentando, ao
lado da aflição pelo companheiro, soberana tranqüilidade de consciência
e, tomando ligeiramente as mãos do esposo, levou-o a um canto do
terraço, onde se postou à frente de uma harpa harmoniosa e antiga,
cantando
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HÁ DOIS MIL ANOS...
baixinho, como se a sua voz, naquela noite, fosse o gorjeio de uma cotovia
apunhalada:
"Alma gêmea da minhalma,
Flor de luz da minha vida,
Sublime estrela caída
Das belezas da amplidão!...
Quando eu errava no mundo
Triste e só, no meu caminho,
Chegaste, devagarinho,
E encheste-me o coração.
Vinhas na bênção dos deuses,
Na divina claridade,
Tecer-me a felicidade,
Em sorrisos de esplendor!...
És meu tesouro infinito,
Juro-te eterna aliança,
Porque eu sou tua esperança,
Como és todo o meu amor!"
Tratava-se de uma composição dele, na mocidade, tão ao gosto da
juventude romana, dedicada a ela própria, e que o seu talento musical
guardava sempre, para circunstâncias especiais do seu sentimento.
Naquele instante, porém, sua voz tinha tonalidades diferentes, como
se houvera encerrado na garganta uma toutinegra divina, exilada dos
prados brilhantes do Paraíso.
Na última nota, tocada de tristeza e angústia indefiníveis, Públio
tomou-a brandamente de encontro ao peito, forte e resoluto, como se
quisesse reter para sempre, no coração, a sua jóia de inimaginável pureza.
Agora, era Lívia a chorar copiosamente nos braços do companheiro,
e este a beijá-la nos transportes de sua alma leal e, por vezes, impulsiva.
Depois daquele arroubo emotivo, Públio sentiu-se desanuviado e
satisfeito.
72
ROMANCE DE EMMANUEL
- Porque não regressarmos a Roma quanto antes? - perguntou Lívia,
como se o seu espírito estivesse clarificado por luzes proféticas, com
relação aos dias futuros. - Junto dos filhinhos retomaríamos nossas
obrigações habituais, cientes de que a luta e o sofrimento estão em todos
os lugares e de que toda alegria significa, neste mundo, uma bênção dos
deuses!..
O senador ponderou a proposta da companheira, estabelecendo a
análise de toda a situação no seu íntimo, obtemperando, por fim:
- Tua observação é justa e providencial, minha querida, mas, que
diriam os nossos amigos quando soubessem que, depois de tantos
sacrifícios com a viagem, havíamos resolvido a permanência de apenas
uma semana em região tão distante? E a nossa doentinha? Seu organismo
não tem reagido de modo eficaz, em contacto com o novo clima?
Estejamos confiantes e tranqüilos. Apressarei a partida para Cafarnaum e,
em breves dias, estaremos em novo ambiente, segundo os nossos
desejos.
Assim aconteceu, efetivamente.
Reagindo às vibrações perniciosas do meio, Públio Lentulus
providenciou a solução de todos os problemas atinentes à mudança,
fazendo ouvidos moucos às indiretas de Fúlvia, enquanto Lívia,
escudando-se na superioridade de sua alma, buscava insular-se dentro do
pequeno mundo de amor dos dois filhinhos, fugindo à presença do
governador, que não desistira dos seus assédios, e junto de quem a figura
nobre de Cláudia sabia despertar em todos a mais sincera simpatia.
Duas servas foram admitidas ao serviço do casal, na perspectiva de
sua transferência para Cafarnaum; não que fossem indispensáveis ao
desdobramento das atividades domésticas, em face dos servos
numerosos trazidos de Roma; contudo, o senador examinara a utilidade
dessa providência, considerando que ele e a família viriam a necessitar de
um contacto mais direto com os costumes e
73
HÁ DOIS MIL ANOS...
dialetos do povo, reconhecida a circunstância de que ambas conheciam a
Galileia.
Ana e Sêmele, recomendadas por amigos do pretor, foram recebidas
ao serviço de Lívia, que as acolheu com bondade e simpatia.
Trinta dias se passaram nos preparativos da projetada viagem.
Sulpício Tarquinius, estimulado pelas vantagens dos próprios
interesses materiais, não perdeu ensanchas de captar a plena confiança
do senador, organizando a propriedade com minúcias de atenção e
gentileza, provocando o contentamento e o elogio de todos.
Nas vésperas da partida, Públio Lentulus compareceu ao gabinete
de Pilatos, para o agradecimento das despedidas.
Depois de saudá-lo cordialmente, exclamou o governador, com
forçada jovialidade:
- É pena, caro amigo, que as circunstâncias o conduzam para
Cafarnaum, quando esperava ter a satisfação de retê-lo nas vizinhanças de
nossa casa, em Nazaré.
Mas, enquanto permanecer na Galileia, em vez de minhas habituais
visitas a Tiberíades, procurarei o norte para nos avistarmos.
Públio manifestou-lhe sua gratidão e reconhecimento e, quando se
preparava para sair, o procurador da Judeia continuou, em tom afetuoso e
conselheiral:
- Senador, não só como responsável pela situação dos patrícios na
província, como também na qualidade de amigo sincero, não posso deixálo
partir à mercê do acaso, tão somente na companhia de escravos e
servos de confiança. Acabo de designar Sulpício, homem que me merece
inteira confiança, para dirigir os serviços de segurança que vos são
devidos. Além dele, mais um lictor e alguns centuriões partirão para
Cafarnaum, onde permanecerão às suas ordens.
74
ROMANCE DE EMMANUEL
Públio agradeceu cortesmente, sentindo-se confortado com o
oferecimento, embora a pessoa do governador lhe causasse pouca
simpatia íntima.
Afinal, terminados os aprestos de viagem, a compacta caravana se
pôs em movimento, atravessando os territórios de Judá e as montanhas
verdes da Samaria, em demanda da sua estação de destino.
Alguns dias foram gastos através das estradas que contornam
muitas vezes as águas leves e límpidas do Jordão.
Prestes a chegar a Cafarnaum, à distância de meio quilômetro de
caminho, entre árvores frondosas, junto ao lago de Genesaré, uma
herdade imponente aguardava as nossas personagens para a sua estação
de repouso.
Sulpício Tarquinius desvelara-se nas mais íntimas minudências, no
que dizia com o bom gosto da época.
A propriedade estava situada em pequena elevação de terreno,
rodeada de árvores frutíferas dos climas frios, pois, há dois mil anos, a
Galileia, hoje transformada em poeirento deserto, era um paraíso de
verdura. Nas suas paisagens maravilhosas, desabrochavam flores de
todos os climas. Seu lago imenso, formado pelas águas cristalinas do rio
sagrado do Cristianismo, era talvez a mais piscosa bacia em todo o
mundo, descansando as suas vagas mansas e preguiçosas ao pé dos
arbustos ricos de seiva, cujas raízes se tocavam do perfume agreste dos
eloendros e das flores silvestres. Nuvens de aves cariciosas cobriam, em
bandos compactos, aquelas águas feitas de um prodigioso azul celeste,
hoje encarceradas entre rochedos adustos e ardentes.
Ao norte, as eminências nevosas do Hermon figuravam-se em linhas
alegres e brancas, divisando-se ao ocidente as alevantadas planícies da
Gaulanítida e da Pereia, envolvidas de sol, formando, juntas, um grande
socalco que se alonga de Cesareia de Filipe para o sul.
75
HÁ DOIS MIL ANOS...
Uma vegetação maravilhosa e única, operando a emanação
incessante do ar mais puro, temperava o calor da região, onde o lago se
localiza, muito abaixo do nível do Mediterrâneo.
Públio e sua mulher sentiram uma onda de vida nova, que seus
pulmões aspiravam a longos haustos.
Entretanto, o mesmo não acontecia à pequenina Flávia, cujo estado
geral piorava ao extremo, contra todas as previsões.
Agravaram-se as feridas que lhe cobriam o corpo magrinho e a
pobre criança não conseguia mais arredar pé do leito, onde se conservava
em profunda prostração.
Acentuava-se, desse modo, a angústia paterna que, embalde,
recorreu a todos os meios para melhorar as condições da doentinha.
Um mês havia transcorrido em Cafarnaum, onde, mais em contacto
com os dialetos do povo, já não lhes era desconhecida a fama das obras e
das pregações de Jesus.
Vezes inúmeras, pensou Públio em dirigir-se ao taumaturgo, a fim de
solicitar a sua intervenção a favor da filhinha, atendendo a um apelo
secreto do coração. Reconhecia no íntimo, porém, que semelhante atitude
representava humilhação para a sua posição política e social, aos olhos
dos plebeus e vassalos do Império, examinando as conseqüências que
poderiam advir de tal procedimento.
Não obstante essas ponderações, permitia que numerosos servos
de sua casa assistissem, aos sábados, às pregações do profeta de Nazaré,
inclusive Ana, que se tomara de respeitosa veneração por aquele a quem
os humildes chamavam Mestre.
Dele teciam os escravos as mais encantadoras histórias, nas quais o
senador nada via, além dos arrebatamentos instintivos da alma popular, se
bem não deixasse de o surpreender a opinião lisonjeira de um homem
como Sulpício.
76
ROMANCE DE EMMANUEL
Uma tarde, porém, os padecimentos da pequenina haviam atingido o
auge. Além das feridas que, de muitos anos, se haviam multiplicado no
corpinho gracioso, outras úlceras surgiram nas regiões da epiderme, antes
violáceas, transformando-lhe os órgãos delicados numa pústula viva.
Públio e Lívia, intimamente consternados, aguardavam um fim
próximo.
Nesse dia, após o jantar muito simples, Sulpício demorou-se até
mais tarde, a pretexto de confortar o senador com a sua presença.
É assim que vamos encontrá-los ambos no terraço espaçoso, onde
Públio lhe fala nestes termos:
- Meu amigo, que me diz desses rumores aqui propalados acerca do
profeta de Nazaré? Habituado a não dar ouvidos à palavra ignorante do
povo, gostaria de ouvir novamente as suas impressões sobre esse homem
extraordinário.
- Ah! sim - diz Sulpício, como quem se esforça por se lembrar de
alguma coisa -, intrigado com aquela cena que há tempos presenciei e que
tive ocasião de relatar na residência do governador, tenho procurado
seguir as atividades desse homem, na medida das minhas possibilidades
de tempo.
Alguns compatrícios nossos o têm na conta de visionário, opinião
que compartilho no que se refere às suas prédicas, cheias de parábolas
incompreensíveis, mas não no que respeita às suas obras, que nos tocam
o coração.
O povo de Cafarnaum anda maravilhado com os seus milagres e
posso assegurar-vos que, em torno dele, já se formou uma comunidade de
discípulos dedicados, que se dispõem a segui-lo por toda parte.
- Mas, afinal, que ensina ele às multidões? - perguntou Públio,
interessado.
- Prega alguns princípios que ferem as nossas mais antigas
tradições, como, por exemplo, a doutrina do amor aos próprios inimigos e
a fraternidade absoluta entre todos os homens. Exorta os
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HÁ DOIS MIL ANOS
ouvintes a buscarem o reino de Deus e a sua justiça, mas não se trata de
Júpiter, o senhor de nossas divindades; ao contrário, fala de um Pai
misericordioso e compassivo, que nos segue do Olimpo e para quem estão
patentes as nossas idéias mais secretas. De outras vezes, o profeta de
Nazaré se expressa acerca desse reino do céu com apólogos interessantes
e incompreensíveis, nos quais há reis e príncipes criados pela sua
imaginação sonhadora, que nunca poderiam ter existido.
O pior, todavia - rematou Sulpício, emprestando grave entono às
palavras -, é que esse homem singular, com esses princípios de um novo
reino, avulta na mentalidade popular como um príncipe surgido para
reivindicar prerrogativas e direitos dos judeus, dos quais, talvez, queira
assumir a direção algum dia...
- Que providência adotam as autoridades da Galileia, no exame
dessas idéias revolucionárias? - indagou o senador, com maior interesse
- Aparecem já os primeiros indícios de reação, por parte dos
elementos mais ligados a Ântipas. Há alguns dias, quando passei por
Tiberíades, notei que se formavam algumas correntes de opinião, no
sentido de levar o assunto à consideração das altas autoridades.
- Bem se vê - exclamou o senador - que se trata de simples homem
do povo, a quem o fanatismo dos templos judaicos encheu de pruridos de
reivindicações injustificáveis. Suponho que a autoridade administrativa
nada tem a recear de semelhante pregador, mestre de uma humildade e
fraternidade incompatíveis com as conquistas contemporâneas. Por outro
lado, ao ouvir de tua boca a descrição dos seus feitos, sinto que esse
homem não pode ser criatura tão vulgar, como vimos supondo.
- Desejaríeis conhecê-lo mais de perto? - perguntou Sulpício,
atencioso.
78
ROMANCE DE EMMANUEL
- De modo algum - respondeu Públio, alardeando superioridade. - Tal
cometimento de minha parte viria quebrar a compostura dos deveres que
me competem como homem de Estado, desmoralizando-se minha
autoridade perante o povo. Aliás, considero que os sacerdotes e
pregadores da Palestina deveriam fazer estágios de trabalho e de estudo,
na sede do governo imperial, a fim de renovar-se esse espírito de
profetismo que aqui se observa em toda parte. Em contacto com o
progresso de Roma, haveriam de reformar suas concepções íntimas
acerca da vida, da sociedade, da religião e da política.
Enquanto os dois mantêm essa palestra sobre a personalidade e os
ensinos do mestre de Nazaré, penetremos no interior da casa.
No quarto da doentinha, vamos encontrar Lívia e Ana pensando as
feridas que cobriam a epiderme da pequenina enferma, agora
transformadas em uma só úlcera generalizada.
Ana, coração bondoso e meigo, pouco mais velha que sua senhora,
se havia transformado em companheira predileta, no círculo dos seus
afazeres domésticos. Naquele deserto de corações, era naquela serva,
inteligente e afetuosa, que a alma sensível de Lívia encontrara um oásis
para as confidências e lutas de cada dia.
- Ah! senhora - exclamava a serva, com sincero carinho a lhe
transparecer dos olhos e dos gestos -, guardo no coração profunda fé nos
milagres do Mestre, acreditando mesmo que, se levássemos esta criança
para receber a bênção de suas mãos, sarariam as chagas e ela ressurgiria
para o seu amor maternal... Quem sabe?
- Infelizmente - respondeu Lívia, com ponderação e tristeza - eu não
me atreveria a lembrar essa providência, consciente de que Públio haveria
de recusá-la, dada a nossa posição social; mas, francamente, desejaria ver
esse homem caridoso e extraordinário de que sempre me falas.
79
HÁ DOIS MIL ANOS...
- Ainda no último sábado, senhora - respondeu a serva, animada
pelas palavras de simpatia que acabava de ouvir -, o profeta de Nazaré
recebeu nos braços numerosas crianças.
Ao sair da barca de Simão, nós o esperávamos em massa, para lhe
beber os ensinos consoladores. Precipitamo-nos para ele, ansiosos todos
de receber ao mesmo tempo os sagrados eflúvios da sua presença
confortadora, mas, nesse dia, muitas mães compareceram à prédica,
conduzindo os filhinhos que se confundiam em algazarra ensurdecedora,
como um bando de passarinhos inconscientes. Simão e mais alguns
discípulos começaram a repreender severamente os meninos, a fim de que
não perdêssemos o encanto suave e doce das palavras do Mestre. Mas,
quando menos esperávamos, sentou-se Ele na pedra costumeira e
exclamou com indizível ternura: - "Deixai vir a mim os pequeninos, porque
o reino do céu lhes pertence." Houve, então, prodigioso silêncio entre os
ouvintes de Cafarnaum e os peregrinos que haviam chegado de Corazim e
de Magdala, enquanto aqueles petizes trêfegos acorriam ao seu regaço
amoroso, beijando-lhe a túnica com indefinível alegria.
Muitas crianças eram enfermas que as mães conduziam às
pregações do lago, para que se curassem de mazelas antigas, ou de
doenças consideradas incuráveis...
- O que me contas é de uma beleza edificante - exclamou Lívia,
profundamente emocionada -; entretanto, possuindo à mão todos os
recursos materiais, sinto que não poderei receber os altos benefícios do
teu Mestre.
- E é pena, senhora, porque muitas mulheres de posição o
acompanham na cidade. Não somos apenas os mais humildes que
comparecemos às suas predicações, mas numerosas senhoras de
destaque em Cafarnaum, esposas de funcionários de Herodes e de
publicanos, assistem às lições carinhosas do lago, confundindo-se com os
pobres e os escravos.
80
ROMANCE DE EMMANUEL
E o profeta não desdenha a ninguém. A todos convida para o reino
de Deus e sua justiça. Contrariamente a todos os enviados do céu, que
conhecemos, ele se esquiva dos favorecidos da sorte, para manter
relações com as criaturas mais infelizes, considerando a todos como
irmãos muito amados do seu coração...
Lívia escutava a palavra da serva com atenção e embevecimento. A
figura daquele homem, famoso e bom, exercia atração singular no seu
espírito.
E, enquanto seus grandes olhos expressavam o maior interesse
pelas narrações encantadoras e simples da serva leal, não reparavam
ambas que a doentinha as acompanhava com aguçada curiosidade,
característica das almas infantis, não obstante a febre alta que lhe
devorava o organismo.
Neste comenos, o senador, após as despedidas de Sulpício, busca o
apartamento da pequena enferma, satisfazendo à sua ansiedade paternal.
Diante dele, calam-se as duas mulheres, entregando-se tão somente
aos afazeres que as retinham junto ao leito da pequenina, agora gemendo
dolorosamente.
Públio Lentulus debruçou-se sobre o leito da filha, com os olhos
rasos de pranto.
Brincou com as suas mãozinhas mirradas e feridas, fazendo-lhe
festas, com o coração tocado de infinita amargura.
- Filhinha, que queres hoje para dormir melhor? - perguntou com a
voz estrangulada, arrancando lágrimas dos olhos de Lívia.
Comprar-te-ei muitos brinquedos e muitas novidades... Dize ao papai
o que desejas...
Copioso suor empastava as excrescências ulcerosas da doentinha,
que deixava transparecer angustiosa ansiedade. Notava-se-lhe grande
esforço, como se estivesse realizando o impossível para responder à
pergunta paterna.
81
HÁ DOIS MIL ANOS...
- Fala, filhinha - murmurava Públio, sufocado, observando-lhe o
desejo de expressar qualquer resposta.
Buscarei tudo que quiseres... Mandarei a Roma um portador,
especialmente para trazer todos os teus brinquedos...
Ao cabo de visível esforço, pôde a pequenina murmurar com voz
cansada e quase imperceptível:
- Papai... eu quero... o profeta... de Nazaré...
O senador baixou os olhos, humilhado e confundido em face do
imprevisto daquela resposta, enquanto Lívia e Ana, como se fossem
tocadas por força invisível e misteriosa, pelo inopinado da cena,
escondiam o rosto inundado de pranto.
82
V
O Messias de Nazaré
O dia seguinte amanheceu trazendo as mais sérias preocupações a
Públio e sua família.
Ainda cedo, vamos encontrá-lo em íntimo colóquio com a esposa,
que se lhe dirige em voz súplice e afetuosa:
- Considero, querido, que devias atenuar um pouco os rigores da
posição em que o destino nos colocou, procurando esse homem
generoso, para benefício de nossa filha. Todos se referem às suas ações,
empolgados por sua bondade edificadora, e eu acredito que o seu coração
se apiedará da nossa desditosa situação.
O senador ouviu-a apreensivo e incerto, exclamando afinal:
- Pois bem, Lívia; acederei aos teus desejos, mas só a angústia que
nos vai nalma me faz transigir, de maneira tão rude, com os meus
princípios.
Não procederei, todavia, conforme sugeres. Irei sozinho à cidade,
como se me encontrasse em hora de simples entretenimento, passando
pelo trecho do caminho que nos conduz às margens do lago, sem chegar
ao cúmulo de abordar pessoalmente o pro83
HÁ DOIS MIL ANOS...
feta, de modo a não descer da minha dignidade social e política, e, no caso
de sobrevir alguma circunstância favorável, far-lhe-ei sentir o prazer que
nos causaria a sua visita, com o fim de reanimar a nossa doentinha.
- Muito bem! - disse Lívia, entre confortada e agradecida - guardo
nalma a mais sincera e profunda fé. Vai sim, querido!... Ficarei rogando a
bênção dos céus para a nossa iniciativa. O profeta, que agora surge como
verdadeiro médico das almas, saberá que atrás da tua posição de senador
do Império, há corações que sofrem e choram!...
Públio notou que a esposa se exaltava nas suas considerações,
deixando-se conduzir pelo que julgava um excesso de fraqueza e
pieguismo; entretanto, nada lhe admoestou a respeito, em face das
amarguras do momento, suscetível de desvairar o cérebro mais forte.
Deixou que as horas movimentadas do dia se escoassem com as
claridades do poente e, quando o crepúsculo entornava as suas meiastintas
na paisagem maravilhosa, saiu, fingindo distração e alheamento,
como se desejasse conhecer de perto a antiga fonte da cidade, motivo de
atração para todos os forasteiros.
Após haver percorrido uns trezentos metros de caminho, encontrou
transeuntes e pescadores, que se recolhiam e o encaravam com mal
disfarçada curiosidade.
Uma hora passou sobre as suas amargas cogitações íntimas.
Um velário imenso de sombras invadia toda a região, cheia de
vitalidade e de perfumes.
Onde estaria o profeta de Nazaré naquele instante? Não seria uma
ilusão a história dos seus milagres e da sua encantadora magia sobre as
almas? Não seria um absurdo procurá-lo ao longo dos caminhos,
abstraindo-se dos imperativos da hierarquia social? Em todo caso, deveria
tratar-se
84
ROMANCE DE EMMANUEL
de homem simples e ignorante, dada a sua preferência por Cafarnaum e
pelos pescadores.
Dando curso às idéias que lhe fluíam da mente incendiada e abatida,
Públio Lentulus considerou dificílima a hipótese do seu encontro com o
mestre de Nazaré.
Como se entenderiam?
Não lhe interessara o conhecimento minucioso dos dialetos do povo
e, certamente, Jesus lhe falaria no aramaico comumente usado na bacia de
Tiberíades.
Profundas cismas entornavam-lhe do cérebro para o coração, como
as sombras do crepúsculo que precediam a noite.
O céu, porém, àquela hora, era de um azul maravilhoso, enquanto as
claridades opalinas do luar não haviam esperado o fechamento absoluto
do leque imenso da noite.
O senador sentiu o coração perdido num abismo de cogitações
infinitas, ouvindo-lhe o palpitar descompassado no peito opresso.
Dolorosa emoção lhe compungia agora as fibras mais íntimas do espírito.
Apoiara-se, insensivelmente, num banco de pedras enfeitado de silvas, e
deixara-se ali ficar, sondando o ilimitado do pensamento.
Nunca experimentara sensação idêntica, senão no sonho
memorável, relatado unicamente a Flamínio.
Recordava-se dos menores feitos da sua vida terrestre, afigurandose-
lhe haver abandonado, temporariamente, o cárcere do corpo material.
Sentia profundo êxtase, diante da Natureza e das suas maravilhas, sem
saber como expressar a admiração e reconhecimento aos poderes
celestes, tal a clausura em que sempre mantivera o coração insubmisso e
orgulhoso.
Das águas mansas do lago de Genesaré parecia-lhe emanarem
suavíssimos perfumes, casando-se deliciosamente ao aroma agreste da
folhagem.
85
HÁ DOIS MIL ANOS...
Foi nesse instante que, com o espírito como se estivesse sob o
império de estranho e suave magnetismo, ouviu passos brandos de
alguém que buscava aquele sítio.
Diante de seus olhos ansiosos, estacara personalidade
inconfundível e única. Tratava-se de um homem ainda moço, que deixava
transparecer nos olhos, profundamente misericordiosos, uma beleza
suave e indefinível. Longos e sedosos cabelos molduravam-lhe o
semblante compassivo, como se fossem fios castanhos, levemente
dourados por luz desconhecida. Sorriso divino, revelando ao mesmo
tempo bondade imensa e singular energia, irradiava da sua melancólica e
majestosa figura uma fascinação irresistível.
Públio Lentulus não teve dificuldade em identificar aquela criatura
impressionante, mas, no seu coração marulhavam ondas de sentimentos
que, até então, lhe eram ignorados. Nem a sua apresentação a Tíbério, nas
magnificências de Capri, lhe havia imprimido tal emotividade ao coração.
Lágrimas ardentes rolaram-lhe dos olhos, que raras vezes haviam chorado,
e força misteriosa e invencível fê-lo ajoelhar-se na relva lavada em luar.
Desejou falar, mas tinha o peito sufocado e opresso. Foi quando, então,
num gesto de doce e soberana bondade, o meigo Nazareno caminhou para
ele, qual visão concretizada de um dos deuses de suas antigas crenças, e,
pousando carinhosamente a destra em sua fronte, exclamou em linguagem
encantadora, que Públio entendeu perfeitamente, como se ouvisse o
idioma patrício, dando-lhe a inesquecível impressão de que a palavra era
de espírito para espírito, de coração para coração:
- Senador, porque me procuras? - e, espraiando o olhar profundo na
paisagem, como se desejasse que a sua voz fosse ouvida por todos os
homens do planeta, rematou com serena nobreza: - Fôra melhor que me
procurasses publicamente e na hora mais clara do dia, para que pudesses
adquirir,
86
ROMANCE DE EMMANUEL
de uma só vez e para toda a vida, a lição sublime da fé e da humildade...
Mas, eu não vim ao mundo para derrogar as leis supremas da Natureza e
venho ao encontro do teu coração desfalecido!...
Públio Lentulus nada pôde exprimir, além das suas lágrimas
copiosas, pensando amargamente na filhinha; mas o profeta, como se
prescindisse das suas palavras articuladas, continuou:
- Sim... não venho buscar o homem de Estado, superficial e
orgulhoso, que só os séculos de sofrimento podem encaminhar ao regaço
de meu Pai; venho atender às súplicas de um coração desditoso e
oprimido e, ainda assim, meu amigo, não é o teu sentimento que salva a
filhinha leprosa e desvalida pela ciência do mundo, porque tens ainda a
razão egoística e humana; é, sim, a fé e o amor de tua mulher, porque a fé
é divina... Basta um raio só de suas energias poderosas para que se
pulverizem todos os monumentos das vaidades da Terra...
Comovido e magnetizado, o senador considerou, intimamente, que
seu espírito pairava numa atmosfera de sonho, tais as comoções
desconhecidas e imprevistas que se lhe represavam no coração, querendo
crer que os seus sentidos reais se achavam travados num jogo
incompreensível de completa ilusão.
- Não, meu amigo, não estás sonhando... - exclamou meigo e
enérgico o Mestre, adivinhando-lhe os pensamentos. - Depois de longos
anos de desvio do bom caminho, pelo sendal dos erros clamorosos,
encontras, hoje, um ponto de referência para a regeneração de toda a tua
vida.
Está, porém, no teu querer o aproveitá-lo agora, ou daqui a alguns
milênios... Se o desdobramento da vida humana está subordinado às
circunstâncias, és obrigado a considerar que elas existem de toda a
natureza, cumprindo às criaturas a obrigação de exercitar o poder da
vontade e do
87
HÁ DOIS MIL ANOS...
sentimento, buscando aproximar seus destinos das correntes do bem e do
amor aos semelhantes.
Soa para teu espírito, neste momento, um minuto glorioso, se
conseguires utilizar tua liberdade para que seja ele, em teu coração,
doravante, um cântico de amor, de humildade e de fé, na hora
indeterminável da redenção, dentro da eternidade...
Mas, ninguém poderá agir contra a tua própria consciência, se
quiseres desprezar indefinidamente este minuto ditoso!
Pastor das almas humanas, desde a formação deste planeta, há
muitos milênios venho procurando reunir as ovelhas tresmalhadas,
tentando trazer-lhes ao coração as alegrias eternas do reinado de Deus e
de sua justiça!
Públio fitou aquele homem extraordinário, cujo desassombro
provocava admiração e espanto.
Humildade? que credenciais lhe apresentava o profeta para lhe falar
assim, a ele senador do Império, revestido de todos os poderes diante de
um vassalo?
Num minuto, lembrou a cidade dos césares, coberta de triunfos e
glórias, cujos monumentos e poderes acreditava, naquele momento,
fossem imortais.
- Todos os poderes do teu império são bem fracos e todas as suas
riquezas bem miseráveis.
As magnificências dos césares são ilusões efêmeras de um dia,
porque todos os sábios, como todos os guerreiros, são chamados no
momento oportuno aos tribunais da justiça de meu Pai que está no Céu.
Um dia, deixarão de existir as suas águias poderosas, sob um punhado de
cinzas misérrimas. Suas ciências se transformarão ao sopro dos esforços
de outros trabalhadores mais dignos do progresso, suas leis iníquas serão
tragadas no abismo tenebroso destes séculos de impiedade, porque só
uma lei existe e sobreviverá aos escombros da inquietação do homem - a
lei do amor, instituída por meu Pai, desde o princípio da criação...
88
ROMANCE DE EMMANUEL
Agora, volta ao lar, consciente das responsabilidades do teu
destino...
Se a fé instituiu na tua casa o que consideras a alegria com o
restabelecimento de tua filha, não te esqueças que isso representa um
agravo de deveres para o teu coração, diante de nosso Pai, Todo-
Poderoso!...
O senador quis falar, mas a voz tornara-se-lhe embargada de
comoção e de profundos sentimentos.
Desejou retirar-se, porém, nesse momento, notou que o profeta de
Nazaré se transfigurava, de olhos fitos no céu...
Aquele sítio deveria ser um santuário de suas meditações e de suas
preces, no coração perfumado da Natureza, porque Públio adivinhou que
ele orava intensamente, observando que lágrimas copiosas lhe lavavam o
rosto, banhado então por uma claridade branda, evidenciando a sua beleza
serena e indefinível melancolia..
Nesse instante, contudo, suave torpor paralisou as faculdades de
observação do patrício, que se aquietou estarrecido.
Deviam ser vinte e uma horas, quando o senador sentiu que
despertava.
Leve aragem acariciava-lhe os cabelos e a Lua entornava seus raios
argênteos no espelho carinhoso e imenso das águas.
Guardando na memória os mínimos pormenores daquele minuto
inesquecível, Públio sentiu-se humilhado e diminuído, em face da fraqueza
de que dera testemunho diante daquele homem extraordinário.
Uma torrente de idéias antagônicas represava-se-lhe no cérebro,
acerca de suas admoestações e daquelas palavras agora arquivadas para
sempre no âmago da sua consciência.
Também Roma não possuía os seus feiticeiros? Buscou rememorar
todos os dramas misteriosos da cidade distante, com as suas figuras
impressionantes e incompreensíveis.
89
HÁ DOIS MIL ANOS...
Não seria aquele homem uma cópia fiel dos magos e adivinhos que
preocupavam igualmente a sociedade romana?
Deveria ele, então, abandonar as suas mais caras tradições de pátria
e família para tornar-se um homem humilde e irmão de todas as criaturas?
Sorria consigo mesmo, na sua presumida superioridade, examinando a
inanidade daquelas exortações que considerava desprezíveis. Entretanto,
subiam-lhe do coração ao cérebro outros apelos comovedores. Não falara
o profeta da oportunidade única e maravilhosa? Não prometera, com
firmeza, a cura da filhinha à conta da fé ardente de Lívia?
Mergulhado nessas cogitações íntimas, abriu cautelosamente a
porta da residência, encaminhando-se ansioso ao quarto da enferma e, oh!
suave milagre! a filhinha repousava nos braços de Lívia, com absoluta
serenidade.
Sobre-humana e desconhecida força mitigara-lhe os padecimentos
atrozes, porque seus olhos deixavam entrever uma doce satisfação
infantil, iluminando-lhe o semblante risonho. Lívia contou-lhe, então, cheia
de júbilo maternal, que, em dado momento, a pequenina dissera
experimentar na fronte o contacto de mãos carinhosas, sentando-se em
seguida no leito, como se uma energia misteriosa lhe vitalizasse o
organismo de maneira imprevista. Alimentara-se, a febre desaparecera
contra todas as expectativas; ela já revelava atitudes de convalescente
palestrando com a mãezinha, com a graça espontânea da sua meninice.
Terminado o relato, a jovem senhora concluiu com entusiasmo:
- Desde que saíste, eu e Ana oramos com fervor junto da nossa
doentinha, implorando ao profeta que atendesse ao teu apelo, ouvindo os
nossos rogos e, agora, eis que a nossa filhinha se restabelece!... Poderá,
querido, haver felicidade maior do que esta?... Ah! Jesus deve ser um
emissário direto de Júpiter, enviado a este mundo
90
ROMANCE DE EMMANUEL
em gloriosa missão de amor e de alegria para todas as almas!...
Ana, porém, que escutava comovida, interveio num gesto
espontâneo e incoercível, oriundo da grata satisfação daquele momento.
- Não, minha senhora!... Jesus não vem da parte de Júpiter. Ele é o
Filho de Deus, seu Pai e nosso Pai que está nos céus, e cujo coração está
sempre cheio de bondade e misericórdia para todos os seres, conforme o
Mestre nos ensina. Louvemos, pois, o Todo-Poderoso, pela graça recebida,
agradecendo a Jesus com uma prece de humildade...
Públio Lentulus acompanhou a cena, em silêncio, intimamente
contrariado, com o verificar a intimidade estreita de sua mulher com uma
simples serva da casa. Observou, com profundo desagrado, não só a
espontaneidade da gratidão entusiástica de Lívia, como a intromissão de
Ana na conversa, o que considerava ousadia. Num relance, mobilizou
todas as reservas do seu orgulho para restabelecer a disciplina interna da
sua casa, e, retomando o aspecto altivo da sua expressão fisionômica,
dirigiu-se secamente à esposa.
- Lívia, torna-se preciso que te coíbas destes arrebatamentos! Afinal,
não vejo nada de extraordinário no que acaba de ocorrer. Nada tem faltado
à nossa doente, no tocante ao tratamento e cuidados necessários, e era
lógico que esperássemos uma reação salutar do organismo, em face da
nossa continuada assistência.
Quanto a ti, Ana - disse, voltando-se com arrogância para a serva
intimidada -, acredito já cumprida a missão que te fazia demorar neste
quarto, porquanto, considerando as melhoras da menina, não vejo
necessidade da tua permanência junto da patroa, que trouxe de Roma as
servas do seu serviço pessoal.
Ana fitou compungidamente a senhora, que mostrava no rosto os
sinais evidentes da sua amargura pelo imprevisto daquelas palavras
intempes91
HÁ DOIS MIL ANOS...
tivas, e, fazendo ligeira e respeitosa mesura, saiu do aposento onde havia
empregado as melhores energias da sua fraternal abnegação.
- Que é isso, Públio? - perguntou Lívia, fundamente comovida. -
Justamente agora, quando deveríamos mostrar à dedicada serva a alegria
do nosso reconhecimento, procedes com semelhante aspereza?
- Tuas infantilidades obrigam-me a fazê-lo. Que dirão da matrona que
se dá de alma aberta às suas escravas mais humildes? Como se haverá o
teu coração com estes excessos de confiança? Noto com desgosto que
entre nós existem, agora, profundas divergências. Porque essa demasiada
confiança no profeta de Nazaré, quando ele não é superior aos magos e
feiticeiros de Roma? E, além disso, onde colocas as tradições de nossas
divindades familiares, se não sabes guardar a fé em torno do altar
doméstico?
- Não concordo contigo, querido, nestas ponderações. Tenho plena
convicção de que a nossa Flávia foi curada por esse homem
extraordinário... No instante de sua melhora súbita, quando ela nos falava
das mãos sublimadas que a acariciavam, vi, com os meus olhos, que o
leito da doentinha estava saturado de luz diferente, como nunca havia
visto, até então...
- Luz diferente? Certo desvairas, depois de tantas fadigas; ou então
estás contagiada das alucinações deste povo de fanáticos, em cujo seio
tivemos a pouca sorte de cair...
- Não, meu amigo, não se trata de desvario. Não obstante as tuas
palavras, que reconheço partidas do coração que mais adoro e admiro na
Terra, tenho a certeza de que o Mestre de Nazaré acaba de curar nossa
filhinha; e, quanto a Ana, querido, acho injusta a tua atitude, aliás, em
desacordo com a tua proverbial generosidade com os servos de nossa
casa. Não podemos nem devemos esquecer que ela tem sido de uma
dedicação a toda prova,
92
ROMANCE DE EMMANUEL
junto de mim e de nossa filha, nestes lugares ermos. Outras podem ser as
suas crenças, mas presumo que a sua conduta honesta e santificante só
pode honrar o serviço de nossa casa.
O senador considerou a elevação dos conceitos da mulher,
sentindo-se arrependido do seu ato de impulsividade, e capitulou diante do
bom-senso daquelas palavras.
- Está bem, Lívia, aprecio-te a nobreza do coração e estimarei a
continuidade de Ana nos teus serviços privados; mas, não transijo no caso
da cura de nossa filhinha. Não admito que se atribua ao mago de Nazaré o
restabelecimento da mesma. Quanto ao mais, deverás lembrar, sempre,
que me apraz saber só a mim reservada a tua confiança e intimidade. A
servos ou desconhecidos não deve o patrício, e com especialidade a
matrona romana abrir as portas do coração.
- Sabes como acato as tuas ordens - disse-lhe a esposa, mais
confortada, dirigindo-lhe um olhar carinhoso e agradecido - e peço-te
perdoar-me se te ofendi a alma generosa e sensível!...
- Não, minha querida, se existe aqui um problema de perdão, sou eu
quem devo pedi-lo, mas não desconheces que esta região me atormenta e
apavora. Sinto-me confortado, reconhecendo a reação benéfica da
natureza orgânica da nossa filhinha, porque isto significa o nosso
regresso a Roma em tempo breve. Esperaremos, apenas, mais alguns dias,
e amanhã mesmo pedirei a Sulpício iniciar as providências para a nossa
volta.
Lívia concordou com as observações do marido, acariciando a
filhinha reanimada e refeita do abatimento profundo que a prostrara por
espaço de muitos dias. Intimamente, agradecia, satisfeita, a Jesus, pois
falava-lhe o coração que o acontecimento era uma bênção que o Pai dos
Céus lhe enviara ao espírito maternal, através das mãos caridosas e
santas do Mestre.
93
HÁ DOIS MIL ANOS...
Públio, contudo, obedecendo ao impulso de suas vaidades pessoais,
não desejava recordar a figura extraordinária que tivera ante os olhos
deslumbrados. Arquitetava castelos de teorias na sua imaginação
superexcitada, para afastar a interferência direta daquele homem no caso
da cura da filhinha, respondendo, assim, às objeções do seu próprio
espírito de observador e analista meticuloso.
Não podia esquecer que o profeta o envolvera em. forças ignoradas,
emudecendo-lhe a voz e fazendo-o ajoelhar-se, doendo-lhe ao orgulho
despótico essa circunstância, considerada como dolorosa humilhação.
Idéias martirizantes povoavam-lhe o cérebro exausto de tantas lutas
interiores e, depois de uma invocação aos gênios protetores da família, no
altar doméstico, buscou repousar das amargas fadigas íntimas.
Naquela noite, todavia, sua alma experimentava as mesmas
recordações da existência pregressa, nas asas embaladoras do sonho.
Viu-se vestido com as mesmas insígnias de Cônsul ao tempo de
Cícero, reviu as atrocidades praticadas por Públio Lentulus Sura, sua
expulsão do Consulado, as reuniões secretas de Lúcio Sergius Catilina, as
perversidades revolucionárias, sentindo-se de novo levado à presença
daquele mesmo tribunal de juizes austeros e venerandos, que no sonho
anterior lhe haviam notificado o seu renascimento na Terra, em época de
grandes claridades espirituais.
Diante daqueles magistrados veneráveis, ostentando togas alvas de
neve, experimentou amarga sensação de angústia, batendo-lhe
descompassadamente o coração.
O mesmo juiz respeitável levantou-se, no ambiente sublimado de
luzes espirituais, exclamando:
- Públio Lentulus, porque desprezaste o minuto glorioso, com o qual
poderias ter comprado
94
ROMANCE DE EMMANUEL
a hora interminável e radiosa da tua redenção na eternidade?
Estiveste, esta noite, entre dois caminhos - o do servo de Jesus e o
do servo do mundo. No primeiro, o jugo seria suave e o fardo leve; mas,
escolheste o segundo, no qual não existe amor bastante para lavar toda a
iniquidade... Prepara-te, pois, para trilhá-lo com destemor, porque
preferiste o caminho mais escabroso, em que faltam as flores da
humildade, para atenuar o rigor dos espinhos venenosos!...
Sofrerás muito, porque nessa estrada o jugo é inflexível e o fardo
pesadíssimo; mas agiste com liberdade de consciência, no jogo amplo das
circunstâncias de tua vida... Conduzido a uma oportunidade maravilhosa,
perseveraste no propósito de percorrer a via amarga e dolorosa das
provações mais ríspidas e mais agudas.
Não te condenamos, para tão somente lamentar o endurecimento do
teu espírito em face da verdade e da luz! Retempera todas as fibras do teu
"eu", pois enorme há-de ser, doravante, a tua luta!...
Ouvia, atento, aquelas exortações comovedoras, mas, nesse
instante, despertou para a" sensações da vida material, experimentando
singular abatimento psíquico, a par de tristeza indefinível.
Ainda cedo, sua atenção foi reclamada por Lívia, que lhe
apresentava a pequena Flávia, convalescente e feliz. A epiderme como que
se alisara, submetida a processo terapêutico desconhecido e maravilhoso,
desaparecendo os tons violáceos que, anteriormente, precediam as rosas
de chaga viva.
O senador recuperou alguma coisa da sua serenidade íntima, com o
verificar as melhoras positivas da filhinha, que apertou amorosamente de
encontro ao coração, exclamando mais tranqüilo:
- Lívia, é bem verdade que ontem, à noite, estive com o chamado
mestre de Nazaré, mas, com a lógica da minha educação e dos meus
conheci95
HÁ DOIS MIL ANOS...
mentos, não posso admitir seja ele o autor do restabelecimento de nossa
filha.
E, de seguida, passou a relatar de modo superficial os
acontecimentos que já conhecemos, sem referir. todavia, os pormenores
que mais o impressionaram.
Lívia ouviu atenciosamente a narrativa, mas, notando-lhe as íntimas
disposições para com o profeta, que ela considerava criatura superior e
venerável, não quis externar seu pensamento em torno do assunto,
receosa de um atrito de opiniões, inoportuno e injustificável. No seu
coração, agradecia àquele Jesus carinhoso e compassivo, que lhe
atendera às angustiosas súplicas maternais e, no imo dalma, acariciava a
esperança de beijar-lhe a fímbria da túnica, com humildade, em
testemunho do seu sincero reconhecimento, antes de regressar a Roma.
Quatro dias decorridos, a enferma apresentava sinais evidentes de
seguro restabelecimento físico, dando motivo ao mais amplo júbilo de
todos os corações.
Em radiosa manhã, vamos encontrar a jovem Lívia acalentando o
filhinho, prestes a completar um ano, e instruindo a criada de nome
Sêmele, de origem judia, designada para velar pela criancinha, tal o
interesse que demonstrara pelo pequenino Marcus, desde o instante de
sua admissão ao serviço. Em dado momento, exclama a serva, apontando
para o largo caminho empedrado:
- Senhora, lá vêm dois cavaleiros desconhecidos, a todo galope.
Ouvindo-lhe a observação, Lívia pôde vê-los, igualmente, ao longo
da estrada ampla, e logo se foi para o interior, a fim de prevenir o marido.
Efetivamente, daí a minutos estacavam à porta dois cavalos suados
e ofegantes. Um homem trajado à romana, em companhia de um guia
judeu, apeava rápido e bem disposto.
96
ROMANCE DE EMMANUEL
Tratava-se de Quirilius, liberto de confiança de Flamínio Severus,
que vinha, em nome do patrão, trazer a Públio e família algumas noticias e
numerosas lembranças.
Essa surpresa amável encheu o dia de gratas recordações e sadios
prazeres, motivando horas das mais inefáveis alegrias. O nobre patrício
não esquecera os amigos distantes, e, entre as notícias confortadoras e
considerável remessa de dinheiro, vieram doces lembranças de Calpúrnia,
endereçadas a Lívia e aos dois fílhinhos.
Naquele dia, Públio Lentulus ocupou-se tão somente de encher
numerosos rolos de pergaminho, para mandar ao companheiro de luta
notícias minuciosas de todas as ocorrências. Entre elas estava a boa-nova
do restabelecimento da filhinha, atribuído ao clima adorável da Galileia.
Mas, como possuía naquele valoroso descendente dos Severus uma alma
de irmão dedicado e fiel, a cujo coração jamais deixara de confiar as mais
recônditas emoções do seu espírito, escreveu-lhe longa carta, em
suplemento. com vistas ao Senado Romano, sobre a personalidade de
Jesus-Cristo, encarando-a serenamente, sob o estrito ponto de vista
humano sem nenhum arrebatamento sentimental. E, por fim, Públio e Lívia
anunciavam alegremente, aos seus amigos distantes, que retornariam a
Roma possivelmente dentro de um mês, dado o perfeito restabelecimento
da pequena Flávia.
Terminado o longo expediente, já era tarde; mas, nesse mesmo dia,
ao cair da noite, quando os dois esposos se entretinham no triclínio a reler
as doces palavras dos queridos ausentes, tecendo as esperanças risonhas
do breve regresso, eis que Sulpício se faz anunciar em companhia de um
mensageiro de Pilatos.
Atendendo-os no gabinete particular, o senador recebe a visita do
emissário, que se lhe dirige, respeitosamente, nestes termos:
97
HÁ DOIS MIL ANOS...
- Ilustríssimo, o senhor governador da Judeia participa-vos haver
chegado à sua residência dos arredores de Nazaré, onde espera o grato
prazer de vossas ordens e notícias.
- Agradecido! - replicou Públio, bem humorado, acrescentando: -
Ainda bem que o senhor procurador não está distante, ensejando-me
pouca demora em Jerusalém, no meu regresso a Roma em breves dias!...
Algumas expressões protocolares foram trocadas, mas Públio
Lentulus não reparou nas atitudes de Sulpício, que lhe deitava olhares
significativos.
98
VI
O rapto
Ao tempo do Cristo, a Galileia era um vasto celeiro que abastecia
quase toda a Palestina.
Nessa época, o formoso lago de Genesaré não apresentava nível tão
baixo, como na atualidade. Todo o terreno circunvizinho era de regadio,
em vista das fontes numerosas, dos canais e do serviço das noras que
elevavam as águas, dando origem a uma vegetação luxuriante que
enfeitava de frutos e enchia de perfumes aquelas paisagens paradisíacas.
O trigo, a cevada, as abóboras, as lentilhas, os figos e as uvas eram
elementos de semeadura e colheita em todo o ano, dando à vida satisfação
e abundância. Nas eminências da terra, misturando-se aos extensos
vinhedos e olivais, elevavam-se palmeiras e tamareiras preciosas, cujos
frutos eram os mais ricos da Palestina.
Em Cafarnaum, além dessas riquezas, prosperava a indústria da
pesca, dada a abundância do peixe no então chamado "Mar da Galileia", o
que resumia uma vida simples e tranqüila. Dentre todos os outros povos
dos centros galileus, o de Cafar99
HÁ DOIS MIL ANOS...
naum se distinguia por sua beleza espiritual, despretensiosa e singela.
Consciencioso e crente, aceitava a Lei de Moisés, mas estava muito longe
das manifestações hipócritas do farisaísmo de Jerusalém. Foi em virtude
dessa simplicidade natural e dessa fé espontânea e sincera que a
paisagem de Cafarnaum serviu de palco às primeiras lições inesquecíveis
e imortais do Cristianismo, em sua primitiva pureza. Ali encontrou Jesus o
carinho de corações devotados e valorosos, e foi ali que o mundo
espiritual encontrou os melhores elementos para a formação da escola
inolvidável, onde o Divino Mestre exemplificaria os seus ensinos.
Em todas as cidades da região havia sinagogas, para que as lições
da Lei fossem ministradas aos sábados, dia que todos os indivíduos
deveriam dedicar exclusivamente ao descanso do corpo e às atividades do
espírito. Nessas pequenas sinagogas, franqueava-se a palavra a quantos
desejassem utilizá-la, mas Jesus preferia o templo suave da Natureza para
a difusão dos seus ensinos.
Todas as classes humildes acorriam às suas prédicas ao ar livre,
cuja extraordinária beleza seduzia os corações mais empedernidos.
Antiga convenção, entre os senhores, determinava o repouso dos
servos no dia consagrado aos estudos da Lei, e os próprios romanos
procuravam cultivar aquelas tradições regionais, buscando a simpatia do
povo conquistado.
Nessa época, grande era a afluência dos escravos às pregações
consoladoras do Messias de Nazaré.
Uma semana havia decorrido após o recebimento das notícias de
Roma e, nesse sábado, às primeiras horas da tarde, vamos encontrar Lívia
e Ana em conversação íntima e carinhosa.
- Sim - dizia a jovem patrícia à serva, que se encontrava em trajes de
sair -, se te for possível, hoje, agradecerás de viva voz ao profeta, em meu
nome, já que me sinto tão feliz, graças à sua
100
ROMANCE DE EMMANUEL
infinita bondade. E dize-lhe que, se eu puder, nas vésperas de partir para
Roma procurarei conhecê-lo, a fim de lhe beijar as mãos generosas, em
testemunho do meu reconhecimento!...
- Não esquecerei vossas ordens e espero que possais ir até à casa
de Simão para visitá-lo, antes de vos retirardes destes lugares... Ainda hoje
- prosseguiu em tom confidencial - devo encontrar na cidade o velho tio
Simeão, que veio de Samaria especialmente para receber a sua bênção e
os seus ensinos. Não sei se a senhora sabe que entre os samaritanos e os
galileus há rixas muito antigas; mas o Mestre, muitas vezes, nas suas
lições de amor e fraternidade, tem louvado os primeiros pela sua caridade
leal e sincera. Numerosos milagres já foram efetuados por ele, na Samaria,
e meu tio é um desses beneficiados que hoje virá receber a bênção de
suas mãos consoladoras!...
Uma doce e comovente fé ungia a alma daquela mulher do povo,
intensificando em Lívia o desejo de conhecer aquele homem extraordinário
que sabia iluminar, com as suas graças, os corações mais ignorantes e
mais singelos.
- Ana, espera um pouco disse, sensibilizada, dirigindo-se aos seus
aposentos. E voltando com a fisionomia radiante, satisfeita por começar ali
mesmo a sua fraternização cristã, deu à empregada algumas moedas,
exclamando com a maior alegria:
- Leva este dinheiro ao tio Simeão, em meu nome... Ele veio de longe
para ver o Messias e tem necessidade de recursos!
Ana recebeu a importância, que era de alguns denários, agradeceu,
radiante, aquela dádiva considerada como verdadeira fortuna e, daí a
minutos, com Sêmele e outras companheiras dirigiu-se pela estrada de
Cafarnaum, em demanda do lago, onde aguardariam o cair da tarde,
quando a barca de Simão Barjona trouxesse o Messias para as pregações
costumeiras.
101
HÁ DOIS MIL ANOS...
Na cidade, seu primeiro cuidado foi correr a uma choupana pobre e
antiga, onde o velho Simeão a estreitou carinhosamente nos braços,
chorando de alegria. Grande júbilo alvoroçou em seguida aqueles
corações desprotegidos da sorte, em face da generosa oferta de Lívia, a
qual significava para eles um pequeno tesouro.
Deixando as companheiras no local do costume, em virtude daquela
circunstância, Ana não pôde reparar que, logo após a sua ausência,
Sêmele se retirou apressadamente em demanda de uma casa oculta entre
oliveiras numerosas, ao fim de uma viela quase completamente
abandonada.
Algumas pancadas na porta e uma senhora de boa aparência veio
atendê-la, solícita.
- Chegou o nosso amigo? - perguntou a empregada, fingindo
despreocupação.
- Sim, o senhor André aqui está desde ontem. à sua espera. Faça o
favor de esperar um pouco.
Daí a minutos, uma personagem de nosso conhecimento vinha ter
com Sêmele, num dos ângulos da sala, abraçando-a com efusão, corno se
fosse pessoa de sua profunda estima.
Era André de Gioras, que vinha a Cafarnaum para o golpe de
represália, favorecido por uma aliada que a sua sede de vindita conseguira
colocar, em Jerusalém, na casa de Públio Lentulus, através de uma
sagacidade cruel -
Depois de longa palestra em voz muito baixa, ouçamos a serva do
senador, que lhe fala nestes termos:
- Não há dúvida... Já consegui captar toda a confiança dos patrões e
a simpatia do pequeno. Pode, pois, ficar tranqüilo, porque o momento é
oportuno, visto que o senador pretende voltar para Roma em breves dias!
- Infame! - exclamou André, cheio de cólera - já pensa, então, no
regresso? Muito bem!... Aquele maldito romano conseguiu escravizar para
sempre o meu pobre filho, desatendendo às minhas
102
ROMANCE DE EMMANUEL
súplicas paternas, mas há-de pagar muito caro a sua ousadia de
conquistador, porque seu filho há-de ser um servo da minha casa! Um dia,
hei-de mostrar-lhe a minha desforra, provando-lhe que também sou um
homem!.
Estas palavras ele as disse entre dentes, em voz soturna, de olhos
parados e brilhantes, como que se apostrofasse seres invisíveis.
- Então, tudo pronto? perguntou a Sêmele, denunciando uma
resolução definitiva.
- Perfeitamente - respondeu a serva, com a maior serenidade.
- Pois bem; de hoje a três dias irei até lá, a cavalo, nas primeiras
horas da madrugada.
E entregando-lhe um frasco minúsculo, que ela ocultou
cuidadosamente nas próprias vestes, continuou em voz abafada:
- Bastam vinte gotas para que a criança adormeça e não desperte
senão ao fim de doze horas... Quando for noite alta, aplique-lhe a
beberagem num pouco de água levemente misturada de vinho fraco e
espere o meu sinal. Estarei nas proximidades da casa, que desde ontem
fiquei conhecendo, a aguardar a preciosa carga. Abrigará você a criança
adormecida, de tal maneira que o volume não denuncie o conteúdo, visto a
alguma distância, e, como em assuntos dessa natureza há-de contar com a
possibilidade do testemunho de olhos estranhos, irei trajado à romana,
esperando que você consiga vestir uma das túnicas da patroa, de modo a
evitarmos que a culpa deste rapto venha a recair sobre alguém da nossa
raça, caso surja alguma testemunha inoportuna e imprevista... Dado o sinal
de minha presença na estrada que margina o pomar, virá você ter comigo,
entregando-me o precioso fardo.
E, de olhos perdidos na visão antecipada da sua vingança, André de
Gioras exclamou, cerrando os punhos:
103
HÁ DOIS MIL ANOS...
- Se os malditos romanos nos escravizam os filhos, sem piedade,
podemos também escravizar os seus desgraçados descendentes!... Os
homens nasceram com iguais direitos neste mundo...
Ouvindo-lhe as palavras, atenciosamente, objetou Sêmele, algo
amedrontada:
- Mas, e eu? Não acompanharei o pequenino Marcus na mesma
noite?
- Seria grande imprudência. Você deverá ficar em Cafarnaum todo o
tempo necessário, até que se percam todas as pistas do futuro senador,
que não passará, aliás, de futuro escravo. Sua fuga seria indício seguro,
agora ou mais tarde, e nós precisamos obstruir esse caminho certo.
Como sabe, tenho parentes afortunados na Judeia, e não é demais
esperar que um golpe da sorte me conceda o lugar preeminente a que
aspiro, no templo de Jerusalém. Não podemos, portanto, manter
complicações com a justiça, podendo você ficar tranqüila, pois, mais tarde,
o seu esforço de hoje será largamente recompensado.
A serva suspirou resignada, acedendo a todas as sugestões daquele
espírito vingativo.
Daí a horas, ao cair da noite, voltavam à herdade os servos de
Públio, em palestra animada e alegre, comentando os pequeninos
incidentes e preocupações do dia.
Sêmele não parecia preocupada, mesmo porque, havia muito, vinha
sendo instruída pacientemente por André, de modo a colaborar
decididamente naquele plano de vingança. Numerosos laços ligavam-na à
família de Gioras, e, cooperando naquela trama sinistra em favor da
desforra, mais não fazia, segundo supunha, que resgatar numerosas
dívidas de ordem material.
Afinal, pensava ela consigo, liquidando o caso do pequenino,
regressaria a Jerusalém quando muito bem lhe aprouvesse, consciente de
haver cumprido um dever, obedecendo as tremendas exigências de André.
104
ROMANCE DE EMMANUEL
No dia seguinte, calculou todas as possibilidades de êxito do
cometimento, e, na data aprazada, tomou todas as providências precisas.
A obtenção de uma túnica do uso particular de Lívia não lhe era
difícil. A senhora as possuía em grande número e quase que diariamente
Ana se incumbia de preparar as que se encontravam fora de seus
apartamentos privados, para o necessário serviço de higiene; e foi assim
que, burlando a dedicação e vigilância da colega, conseguiu Sêmele uma
túnica elegante e discreta, da senhora, de modo a observar, integralmente,
as advertências daquele de quem se fizera cúmplice.
Em casa, nunca o senador e sua mulher haviam vivido momentos de
tanta paz e tantas esperanças, desde que chegaram à Palestina. A cura da
filha era a doce felicidade de cada instante, ensejando os mais carinhosos
planos de ventura para os dias do porvir.
Lívia já organizava todos os seus apetrechos de viagem,
considerando que em poucos dias estariam no antigo porto de Jope, de
regresso à metrópole querida.
Uma serenidade, que parecia imperturbável, descansava agora sobre
o casal, fazendo-lhe os corações tranqüilos e ditosos.
Públio havia esquecido totalmente as advertências do sonho, que
considerava tão somente resultado da sua palestra impressionante com o
profeta de Nazaré, e o coração se lhe desanuviara, ponderando o valor dos
poderes humanos, dentro da vaidade orgulhosa que lhe abafava todas as
preocupações de ordem espiritual. Um pensamento único lhe dominava o
coração - voltar a Roma, dentro de poucos dias.
Nessa noite, porém, iam desmoronar-se todas as suas esperanças e
modificar-se, para sempre, as linhas do seu destino na Terra.
Quem conhecesse a trama urdida na sombra pelo espírito vingativo
de André, depois da meia105
HÁ DOIS MIL ANOS...
-noite poderia ouvir um longo silvo que se repetiu por três vezes, no
soturno silêncio do arvoredo.
Um homem trajado à romana apeara de fogoso corcel, a alguns
metros da casa, no largo caminho que separava a vegetação do campo das
árvores frutíferas. Em seguida, uma porta abriu-se furtivamente e uma
mulher trajada à moda patrícia veio ter com o cavaleiro que a esperava
ansioso, depondo-lhe nas mãos, com o máximo cuidado, um embrulho
volumoso.
- Sêmele - exclamou ele baixinho -, esta hora é decisiva em nossos
destinos!
A serva de Lentulus nada pôde responder, sentindo o peito opresso.
Nesse instante, os atores de cena não observaram a aproximação de
um homem que estacara, à distância de alguns passos, na espessura das
ramagens sombrias.
- Agora - tornou a dizer o cavaleiro, antes de partir em desabalada
carreira não se esqueça que o silêncio é ouro e que, se algum dia você
for ingrata, pode pagar com a vida a descoberta do nosso segredo!...
Dito isso, André de Gioras partiu precipitadamente, a largo trote,
pelos caminhos ensombrados, levando consigo o volume para ele tão
precioso.
A serva ainda o acompanhou com a vista por alguns instantes, entre
assustada e compungida, recolhendo-se a passos cambaleantes.
Ambos não sabiam que os olhos de um caluniador são piores que os
braços de um ladrão e que esses olhos os espreitavam na solidão da noite.
Era Sulpício que, por coincidência, se recolhia tarde naquela noite,
surpreendendo a cena palidamente iluminada pelos raios da Lua.
Observando, de longe, que um homem e uma mulher, trajados à
romana, se encontravam na estrada em hora tão imprópria, amorteceu os
passos de felino, entre as árvores, com o fim de identificá-los mais de
perto.
106
ROMANCE DE EMMANUEL
A cena fôra, todavia, muito rápida, chegando-lhe tão somente aos
ouvidos as últimas palavras "nosso segredo", proferidas por André, na sua
promessa odiosa e ameaçadora.
Em seguida, observou que a mulher, com a retirada do cavaleiro,
regressava ao interior a passos vacilantes, como que presa de incoercível
abatimento. Estugou então os passos para surpreendê-la, reparando-lhe o
vulto a poucos metros de distância. Mas, não se atreveu a aproximar-se,
apenas identificando as características da vestimenta, à luz fraca da noite.
Aquela túnica era-lhe conhecida. Aquela mulher, a seu ver, era Lívia, a
única que podia trajar de tal modo, naquelas cercanias.
Num instante, suas idéias rápidas de homem experimentado nas
piores ações do mundo, associaram fatos, personalidades e coisas.
Lembrou, em seus íntimos pormenores, a cena que tivera ocasião de
presenciar no jardim de Pilatos, crendo que a esposa de Públio se fizera
amada pelo governador, cujo coração ela avassalara em poucos minutos,
em virtude da sua peregrina beleza; recordou, por último, a estada do
procurador da Judeia, em Nazaré, e concluiu, monologando:
- Um governador, na sua alta posição, não deixará, por isso, de ser
um homem, e um homem é muito capaz de cobrir toda a noite, em boa
montaria, uma distância como a que vai de Cafarnaum a Nazaré, para se
encontrar com a mulher amada... Ora esta!... temos agora de prosseguir,
observando um casal de apaixonados... O único acontecimento
estranhável é a facilidade com que essa mulher, aparentemente tão
austera, se deixou dominar dessa maneira! Mas, como tenho os meus
interesses com Fúlvia, vamos examinar o melhor modo de cientificar esse
pobre homem que, senador, tão jovem e tão rico, é um marido tão
desventurado!...
E depois de assim monologar cautelosamente, Sulpício recolheu-se
intimamente satisfeito, por se ver dono da situação, já antegozando o
instante em
107
HÁ DOIS MIL ANOS...
que faria Públio conhecedor do seu segredo, a fim de exigir mais tarde, em
Jerusalém, o preço ignominioso da sua perversidade, segundo as
promessas de Fúlvia.
O dia imediato constituiu dolorosa surpresa para o senador e sua
mulher, aturdidos com o inopinado acontecimento.
Ninguém conhecia as circunstâncias em que se verificara o rapto da
criança, no silêncio da noite.
Como louco, Públio Lentulus tomou todas as providências
possíveis, junto às autoridades de Cafarnaum, sem lograr resultado
favorável. Numerosos servos de sua confiança foram expedidos a fim de
bater os arredores, improficuamente, e, enquanto o marido se multiplicava
em ordens e providências, Lívia recolhia-se ao leito, tomada de indefinível
angústia.
Sêmele, que fingia a mais profunda consternação, auxiliava os
desvelos de Ana, junto da senhora, sucumbida de dor.
Naquela mesma tarde, Públio ordenou a Comênio, então com as
honras de capataz de todos os trabalhos da herdade, a reunião geral dos
servos da casa, a fim de que aprendessem no castigo severo, infligido aos
escravos incumbidos do serviço noturno de vigilância, e, durante todas as
horas do crepúsculo, trabalhou o açoite na carne de três homens robustos,
que debalde imploravam clemência e misericórdia, protestando a sua
inocência. Somente diante daquelas criaturas injustamente castigadas,
considerou Sêmele a extensão do seu procedimento, mas, intimamente
apavorada com as conseqüências que poderiam advir do delito, cobrou
ânimo para ocultar, ainda mais, a culpa e o terrível segredo.
Prosseguiam as ações punitivas, até que Lívia, atormentada por
aqueles gritos lancinantes e comovedores, se levantou com extrema
dificuldade e, chamando o esposo a um canto da varanda, de onde ele
108
ROMANCE DE EMMANUEL
assistia impassível ao horrível sacrifício daquelas míseras criaturas, faloulhe
súplice:
- Públio, basta de castigo para esses homens fracos e infelizes!...
Não seria um excesso de rigor da nossa parte para com os nossos servos
a causa de tão dolorosa punição dos deuses para conosco? Esses
escravos não são também filhos de criaturas que muitos os amaram neste
mundo? Na minha angústia materna, considero que ainda possuímos
direitos e recursos para manter junto de nós os filhinhos idolatrados; mas,
como será torturante o martírio da mãe de um desventurado, e que o vê
arrebatado de seus braços carinhosos para ser vendido por ignóbeis
mercadores de consciências humanas!...
- Lívia, o sofrimento sugeriu-te singulares desvarios do coração -
exclamou o senador, com serena energia.
Como poderias pensar numa igualdade absurda de direitos, entre a
cidadã romana e a serva miserável? Não vês que entre ti e a mãe de um
cativo existem consideráveis diferenças de sentimento?
- Penso que te enganas - revidou a esposa, com intraduzível
amargura -, porque os próprios animais possuem os mais elevados
instintos, em se tratando de maternidade...
E ainda assim, querido, mesmo que eu não tivesse nenhuma razão,
manda o raciocínio que examinemos a nossa posição de pais, para
considerarmos que ninguém, mais que nós próprios, é passível de culpa
pelo acontecido, visto que os filhos são um depósito sagrado dos deuses,
que no-los confiam ao coração, impondo-nos como dever de cada minuto
a multiplicação do carinho e vigilância necessários; se sofro
amargamente, é por considerar o amor sublime que nos une aos filhos,
sem poder atinar com a causa deste crime misterioso, sem poder imputar
aos nossos servos a culpa desse tenebroso acontecimento...
109
HÁ DOIS MIL ANOS...
A voz de Lívia, porém, extinguia-se rapidamente. Um delíquio foi o
resultado de suas palavras veementes, ao findar daquele dia de tantas e
tão amarguradas emoções. Amparada pelas mãos carinhosas e desveladas
de Ana, a pobre senhora recolheu-se ao leito com febre alta. Quanto a
Públio, este, porque sentia que as verdades amargas da mulher lhe doíam
fundo no coração, mandou cessar imediatamente o castigo, com alívio
geral, recolhendo-se ao gabinete para meditar a situação.
Naquela mesma noite, recebeu a visita de Sulpício, que lhe veio
trazer o infrutífero resultado de suas indagações, na pista do pequeno
Marcus.
Ao despedir-se, exclamou o lictor, com grande surpresa de Públio,
que lhe observara o tom enigmático das palavras:
- Senador, eu não posso decifrar esse doloroso enigma do
desaparecimento do vosso filhinho, mas talvez possa orientar-vos
nalguma pista segura, com as minhas observações pessoais, relativas ao
assunto.
- Mas, se tens semelhantes elementos, abre-te sem receios -
exclamou Públio, com o máximo interesse.
- Meus elementos de observação não são pontos de aclaramento
positivo, e, como existem alguns remédios que em vez de curarem uma
ferida produzem outras úlceras incuráveis, acho melhor adiar para amanhã
à noite as minhas impressões individuais sobre os fatos.
Gozando com a atitude de estupefação do interlocutor
profundamente impressionado com as suas insinuações criminosas,
Sulpício rematou as despedidas, acrescentando intencionalmente:
- Amanhã aqui estarei a estas mesmas horas e, se hoje não vos
satisfaço ao desejo, aqui permanecendo até mais tarde, é que me esperam
alguns afazeres no meu gabinete de trabalho, em vista de alguns pedidos
de informações das nossas autoridades administrativas.
110
ROMANCE DE EMMANUEL
Dominado pelas expressões daquele enigma, Públio Lentulus
apresentou-lhe as despedidas da noite, tendo forças para murmurar:
- Então, até amanhã. Esperarei o cumprimento da tua promessa, de
modo a aliviarem-se-me os receios do coração.
Ficando a sós, o senador submergiu-se no mar profundo de suas
inquietações e receios.
Justamente quando contava regressar a Roma, eis que surge o
inesperado, com piores características que a própria moléstia da filha,
tantos anos suportada com serenidade e resignação, porque, agora, era o
rapto inexplicável de uma criança, envolvendo sérias questões da
moralidade de sua casa, e a própria honra da família.
No íntimo, sentia-se como um homem sem inimigos na Palestina,
porquanto, com exceção do jovem Saul, filho de André, que, a seu ver,
deveria estar tranqüilo no lar paterno, nunca humilhara os brios de
nenhum israelita, visto que a todos dispensava o máximo de sua pessoal
atenção.
Onde a causa daquele crime misterioso?
Em suas reminiscências aflorou a palavra segura de Flamínio
Severus, quando lhe aconselhou muita prudência e valor individual, na
Palestina, em razão de certos malfeitores que infestavam a região; mas,
por outro lado, recordava o sonho simbólico e, com os olhos da
imaginação, parecia lobrigar o vulto venerando daquele juiz austero e
incorrupto, que lhe profetizara existência fértil de amarguras, dado o seu
desprezo e indiferença pelas verdades salvadoras de Jesus de Nazaré.
Trabalhado pela dor de angustiados pensamentos, debruçou-se à
mesa de trabalho e deixou que o orgulho ferido chorasse copiosamente,
considerando a sua impotência para conjurar as forças ocultas e
impiedosas que conspiravam contra a sua ventura, nos caminhos
ensombrados do seu doloroso destino.
111
HÁ DOIS MIL ANOS...
Alta noite, procurou desabafar o coração, junto à carinhosa
solicitude da esposa, trocando ambos as suas lamentações e as suas
lágrimas.
- Públio - exclamava ela, com a ternura característica do seu coração
-, procuremos reanimar nossas energias em favor de nós mesmos... Nem
tudo está perdido!... Com os direitos que nos competem, podemos
determinar todas as providências precisas, em busca do nosso anjinho.
Adiaremos o regresso a Roma, indefinidamente, se tanto for necessário, e
o resto os deuses farão por nós, reconhecendo nossa angústia e
abnegação.
O que não é justo é que nos entreguemos, irremediavelmente, ao
nosso desespero, inutilizando as derradeiras forças para a luta.
A pobre senhora mobilizava os últimos recursos de suas energias
maternas no proferir aquelas palavras de esperança e consolação. Sabia
Deus, porém, das suas inenarráveis torturas íntimas, naqueles momentos
angustiosos, e apenas o seu sentimento acrisolado, de renúncia e de
amor, transformaria em forças as fragilidades da mulher, para poder
confortar o coração angustiado do esposo, em tão penosas conjunturas.
- Sim, minha querida, farei tudo que estiver ao meu alcance para
esperar a providência dos deuses - disse o senador, mais ou menos
reanimado em face do valor de que lhe dava ela testemunho.
O dia seguinte decorreu nas mesmas expectativas angustiosas, com
os mesmos movimentos incertos de buscas infrutíferas.
À noite, segundo prometera, lá estava Sulpício Tarquinius esperando
o seu momento decisivo.
Após o jantar, a que Lívia não pôde comparecer, em virtude do seu
profundo abatimento físico, Públio recebeu o lictor com toda a intimidade,
ali mesmo no triclínio, em cujos leitos macios ambos se estiraram para a
palestra costumeira.
- Então, ainda ontem - exclamou o senador, dirigindo-se ao suposto
amigo -, despertaste o meu
112
ROMANCE DE EMMANUEL
paternal interesse, falando-me de tuas observações pessoais, que somente
hoje me poderias transmitir...
- Ah! sim - redargüiu o lictor, com fingida surpresa -, é bem verdade
que desejaria solicitar vossa atenção para as ocorrências misteriosas
destes últimos dias. Tendes algum inimigo, aqui na Palestina, interessado
na continuidade de vossa permanência em regiões pouco adaptáveis aos
hábitos de um patrício romano?
- De modo algum - revidou o senador, eminentemente surpreendido.
- Suponho encontrar-me num ambiente de amizades sinceras, em se
tratando das nossas autoridades administrativas, e acredito que ninguém
haja interessado na minha ausência de Roma. Ficaria muito satisfeito se
esclarecesses melhor as tuas observações.
- É que na Judeia, há alguns anos, houve um caso idêntico ao vosso.
Conta-se que um dos antecessores do governador atual se deixou
apaixonar perdidamente pela esposa de um patrício romano, que teve a
pouca sorte de se fixar em Jerusalém e, conquistados seus objetivos, tudo
fez por obstar o regresso de suas vítimas à sede do Império. E quando
notou que de nada valiam os empecilhos de sua autoridade, cometeu o
crime de seqüestrar um filhinho do casal, fazendo acompanhar o feito de
outras atrocidades, que ficaram impunes, dado o seu prestígio político
perante o Senado.
Públio ouviu essas observações com o pensamento em brasa.
Em razão da sua intensidade emotiva, o sangue afluiu-lhe ao
cérebro, parecendo represar-se em largas correntes junto ao dique das
têmporas. Uma palidez de cera cobriu, em seguida, o seu rosto, numa
facies cadavérica, sem poder definir a emoção que lhe assaltava o íntimo,
em face de tais insinuações contra a sua dignidade pessoal e contra as
honrosas tradições da família.
113
HÁ DOIS MIL ANOS...
Num instante, reviveu todas as acusações de Fúlvia e, julgando os
seus semelhantes pelo estalão dos próprios sentimentos, não podia
admitir no espírito de Sulpício uma ferocidade de tal quilate.
Enquanto mergulhava o pensamento em cismas atrozes, sem
responder ao lictor, que o observava gozando o efeito de suas tenebrosas
revelações, prosseguiu o caluniador, com fingida humildade:
- Bem reconheço o alcance de minhas palavras, para as quais, aliás,
suplico a benevolência de vossa discrição, mas eu não abriria o coração
neste sentido, senão tocado pelo profundo interesse que a vossa amizade
conseguiu inspirar à minhalma dedicada e sincera. Francamente, não
desejava constituir-me delator de quem quer que seja, perante o vosso
espírito justo e generoso; todavia, passarei a narrar-vos o que vi com os
próprios olhos, de modo a orientar com mais segurança o esforço de
vossas pesquisas em busca do menino.
E Sulpício Tarquinius, com a falsa modéstia de suas palavras
venenosas, desfiou um rosário longo de calúnias, entremeando os
argumentos de consecutivos goles de vinho, o que exaltava ainda mais a
fonte prodigiosa das suas fantasias.
Contou ao seu interlocutor, que o ouvia atônito. pela coincidência de
suas observações com as denúncias de Fúlvia, os mais íntimos
pormenores da cena do jardim em casa de Pilatos, e, em seguida, narrou o
que observara na noite do rapto, salientando a coincidência da estada do
governador em Nazaré.
O senador ouvia-lhe a narrativa, ocultando, a muito custo, o seu
espanto doloroso. A prevaricação da esposa, segundo aquela denúncia
espontânea, era um fato indubitável. Entretanto, ele queria acreditar o
contrário. Durante todo o tempo da vida conjugal, Lívia manifestara o mais
pronunciado retraimento dos ambientes sociais, vivendo tão somente para
ele e para os filhinhos idolatrados. Era na sua palavra criteriosa e sincera
que o seu
114
ROMANCE DE EMMANUEL
espírito ia buscar as necessárias inspirações para o êxito nas lutas da
vida; mas aquela denúncia lhe atordoava o coração e anulava todos os
fatores da antiga confiança. Além disso, penosas coincidências vinham
ferir o seu raciocínio, despertando-lhe amarguradas suspeitas no íntimo
dalma.
Não fôra ela que intercedera a favor dos escravos, no momento do
castigo, súplice, como se a culpa do acontecido também lhe pesasse no
coração?
Ainda na véspera, sugerira a continuidade da permanência de ambos
na Palestina, demonstrando um valor pouco vulgar. Não seria isso um
gesto de suposta consolação para o marido ultrajado, obedecendo a
intuitos inconfessáveis?
Um turbilhão de idéias antagônicas entrechocava-se no mar de suas
meditações dolorosas.
Por outro lado, considerou, num relance, a sua posição de homem
de Estado, as responsabilidades austeras que lhe competiam no
organismo social.
O cargo proeminente, as severas obrigações a que se consagrara no
mecanismo das relações de cada dia, o orgulho do nome e as tradições de
família, amalgamaram a energia precisa para o domínio das emoções do
momento, e, escondendo o homem sentimental que era por natureza, para
tão somente revelar o homem público, teve forças para exclamar:
- Sulpício, agradeço o teu interesse, desde que as tuas palavras
sejam reflexo da tua generosidade sincera, mas devo considerar, perante o
conceito que acabas de expender sobre minha mulher, que não aceito
nenhum argumento que lhe fira a dignidade e austera nobreza, predicados
esses que ninguém, mais que eu, deve conhecer.
A entrevista no jardim de Pilatos, a que te referes, foi por mim
autorizada, e as tuas observações na noite do rapto não estão bem
definidas, dado o caráter positivo que se requer das nossas investigações.
115
HÁ DOIS MIL ANOS...
Assim, pois, agradeço-te a dedicação em meu favor, mas a tua
opinião abre entre nós, doravante, uma linha divisória que a minha
confiança não mais ousará transpor.
Ficas, assim, dispensado do serviço que te retinha junto de minha
família, mesmo porque a perspectiva da minha volta a Roma se
desvaneceu com o desaparecimento do pequeno. Não poderemos
regressar à sede do Império, enquanto não lograrmos o seu
reaparecimento ou a certeza dolorosa da sua morte.
Deste modo, eu seria imprudente exigindo a continuidade dos teus
préstimos em Cafarnaum, sacrificando decisões de teus superiores
hierárquicos, razão por que serás demitido de minha casa sem escândalos
que prejudiquem a tua carreira profissional.
Aguardarei o ensejo de me comunicar com o governador, a teu
respeito, quando então serás desligado oficialmente do meu serviço, sem
nenhum prejuízo para o teu nome.
Vês, assim, que, como homem de Estado, agradeço o teu interesse e
sei apreciar a tua dedicação, mas, como amigo, não me é mais possível
depositar em ti o mesmo grau de confiança.
O lictor, que não esperava semelhante resposta, ficou lívido no seu
indisfarçável desapontamento, mas atreveu-se ainda a revidar,
fingidamente:
- Senhor senador, chegará o instante em que havereis de valorizar o
meu zelo não só como servidor de vossa casa, mas também como amigo
desvelado e sincero. E já que não tendes outra recompensa melhor que o
desprezo injusto para corresponder ao meu impulso de amizade, é com
prazer que me sinto desligado das obrigações que me prendiam junto de
vossa autoridade.
Em seguida, Sulpício pronunciou algumas palavras de despedida, a
que Públio respondeu secamente, atormentado pelos mais profundos
desgostos.
116
ROMANCE DE EMMANUEL
No silêncio do seu gabinete, examinou o quanto de energia as
circunstâncias haviam exigido do seu coração em tão penosas
conjunturas. Bem reconhecia que adotara para com o lictor a atitude mais
conveniente e consentânea com a situação, mas, no íntimo, guardava
angustiosa incerteza, acerca da conduta de Lívia. Tudo conspirava contra
ela, tendendo a apresentá-la, ao seu coração de marido pundonoroso,
como a personificação da falsa inocência.
Naquele tempo, ainda não se vulgarizara no mundo o "orai e vigiai"
dos ensinamentos eternamente doces do Cristo, e o senador, entregandose
quase que totalmente ao império das amargas emoções que o
acabrunhavam, debruçou-se sobre numerosos rolos de pergaminho,
entrando a chorar convulsivamente.
117
VII
As pregações do Tiberíades
Alguns dias haviam decorrido sobre os fatos que acabamos de
narrar.
Em Cafarnaum, não somente o cenário, mas também os atores,
guardavam a mesma fisionomia.
Compelido pela atitude irrevogável e enérgica do senador, Sulpício
Tarquinius regressara a Jerusalém, obedecendo às ordens de Pilatos que,
por sua vez, recebera a notificação de Públio Lentulus, referente à
dispensa do lictor.
Não devemos esquecer que Públio permanecia na Palestina com
poderes amplos, na qualidade de emissário de César e do Senado, e a
quem todas as autoridades da província, inclusive o governador, eram
obrigados a acatar com especial atenção e máximo respeito.
O procurador da Judeia não se esquecera, portanto, de substituir
Sulpício, do melhor modo possível, buscando conhecer, com interesse, os
motivos do seu afastamento, assunto que o senador solucionou com o
mais largo espírito de superioridade, do ponto de vista político. Pilatos
coadjuvou, com a melhor boa vontade, o serviço de pesquisa, quanto
118
ROMANCE DE EMMANUEL
ao paradeiro do pequeno Marcus, movimentando funcionários de sua
inteira confiança, e vindo pessoalmente a Cafarnaum, a fim de conhecer na
sua intimidade as diligências efetuadas.
O senador recebeu-lhe a visita com as mais altas mostras de
consideração e aceitou-lhe a cooperação, sinceramente confortado, em
vista de os acontecimentos desmentirem, perante o seu foro íntimo, as
caluniosas acusações de que era vítima a esposa.
Sua vida doméstica, porém, sofrera as mais profundas alterações.
Não sabia mais viver aquelas horas de colóquio feliz com a esposa, da
qual o separava um véu de dúvidas amargas e infinitas.
Várias vezes tentou, improficuamente, readquirir a antiga confiança
e a sua espontaneidade afetiva.
Rugas de pesar vincaram-lhe então o semblante, ordinariamente
altivo e orgulhoso, esfumando-lhe os traços fisionômicos num nevoeiro de
preocupações angustiosas.
Todos os seus íntimos, inclusive a esposa, atribuíam ao
desaparecimento do filhinho tão singular metamorfose.
Nas horas habituais das refeições, notava-se-lhe o esforço para
desanuviar a fisionomia.
Dirigia-se, então, à mulher ou respondia às suas perguntas
carinhosas com monossílabos apressados, acentuando as palavras com
laconismo incompreensível.
Sofrendo amargamente com aquela situação, Lívia apresentava-se
cada vez mais abatida, tentando em vão decifrar o motivo de tantas
provações e infortúnios.
Muitas vezes procurou sondar o espírito de Públio, de modo a levarlhe
um pouco de carinho e consolação, mas ele evitava as expansões
afetuosas, com pretextos decisivos. Quase que lhe aparecia tão somente
no triclínio e, feita a refeição costumeira, retirava-se, abruptamente, para o
grande
119
HÁ DOIS MIL ANOS...
salão do arquivo, onde passava todas as suas horas de inquietadoras
meditações.
De Marcus, nenhuma notícia havia, que lhe proporcionasse a mais
ligeira sombra de esperança.
Por uma formosa manhã da Galileia, vamos encontrar Lívia em
palestra íntima com a serva dedicada e amiga fiel, a quem replica nestes
termos, depois de carinhosamente inquirida, acerca do seu estado de
saúde:
- Sinto-me bem mal, minha boa Ana!... À noite, o coração bate-me
descompassadamente e, hora a hora, vejo crescer-me no íntimo dolorosa
impressão de amargura. Não poderia bem definir meu estado, ainda que o
quisesse... O desaparecimento do pequeno enche-me a alma de lúgubres
presságios, multiplicando o peso das minhas aflições maternas quando
não posso vislumbrar, nem de leve, a causa de tamanhos padecimentos...
E agora é, sobretudo, o estado de Públio o que mais me acabrunha.
Ele foi sempre um homem puro, leal e generoso; mas, de algum tempo a
esta parte, noto-lhe singulares diferenças no temperamento, agravando-selhe
os sintomas doentios com maior intensidade, após o incompreensível
desaparecimento do nosso filhinho.
A mim se me figura que ele vem sofrendo os mais fortes distúrbios
sentimentais, com sérios prejuízos para a saúde...
- Bem vejo, senhora, quanto sofreis! - aventou a serva carinhosa.
Sei que sou uma criatura humilde e sem nenhum valor, mas pedirei a Deus
que vos proteja incessantemente, restabelecendo a paz do vosso coração.
- Criatura humilde e sem valor? - diz a pobre senhora, buscando
demonstrar-lhe o grau de sua estima sincera. - Não digas isso, mesmo
porque não sou dessas almas que aferem o valor de cada um pelas
posições que desfruta ou pelas honras que recebe.
120
ROMANCE DE EMMANUEL
Filha única de pais que me legaram considerável fortuna, cidadã
romana, com as prerrogativas de mulher de um senador, vês quanto sofro
nos trabalhos amargos deste mundo.
Os títulos que o berço me outorgou não conseguiram eliminar as
provações que o destino também me trouxe, com a mocidade e a fortuna
fácil.
Reconhece, pois, que, sendo eu patrícia e tu uma serva, não
possuímos um coração diverso, mas sim o melhor sentimento de
fraternidade, que nos abre a porta de uma compreensão carinhosa, a valer
por asilo suave nos dias tristes da vida.
De mim para comigo, sempre supus, contrariamente à educação
recebida, que todas as criaturas são irmãs, filhas de uma origem comum,
sem conseguir atinar com as linhas divisórias entre aqueles que possuem
muitos haveres e muitos títulos e os que nada possuem neste mundo além
do coração, onde costumo localizar os valores de cada um, nesta vida.
- Senhora - exclamou a serva, tocada da mais grata surpresa -,
vossas palavras me comovem, não somente por partirem dos vossos
lábios, dos quais me habituei a ouvir-vos sempre com carinho e
veneração, mas também porque o profeta de Nazaré nos tem dito a mesma
coisa em suas prédicas.
- Jesus?!... - perguntou Lívia, de olhos brilhantes, como se aquela
referência lhe lembrasse uma fonte de consolação, da qual se houvesse
momentaneamente esquecido.
- Sim, minha senhora, e por falar nele, porque não buscardes um
pouco de conforto nas suas divinas palavras? Juro-vos que as suas
expressões, sábias e amorosas, vos consolariam no meio de todos os
pesares, proporcionando-vos sensações de vida nova!... Se quisésseis, eu
poderia conduzir-vos à casa de Simeão, discretamente, a fim de
receberdes o benefício de suas lições carinhosas. Receberíeis, assim, a
alegria da sua bênção, sem vos
121
HÁ DOIS MIL ANOS...
expordes às críticas alheias, nutrindo o vosso coração dos seus
luminosos ensinamentos.
Lívia pensou intensamente naquele alvitre, que se lhe figurava
providência salvadora, respondendo, por fim:
- Os sofrimentos da vida muitas vezes me têm dilacerado o coração,
renovando os meus raciocínios acerca dos princípios que me foram
ensinados desde o berço, e é por isso que, acolhendo a tua idéia, acho de
meu dever procurar a Jesus publicamente, como o fazem outras mulheres
destes lugares
Era minha intenção procurá-lo antes do nosso regresso a Roma,
para lhe manifestar meu reconhecimento pela cura de Flávia, fato que me
deixou profundamente impressionada, mas que não nos foi possível
comentar, em razão da atitude hostil de meu marido; agora, novamente
desamparada, no estuar das minhas dores, recorrerei ao profeta para obter
um lenitivo ao coração opresso e torturado.
Mulher de um homem que, por força da sua carreira política, ocupa
agora o mais alto cargo desta província, irei a Jesus como criatura
deserdada da sorte, em busca de amparo e consolação.
- Senhora, e vosso esposo? - perguntou Ana, antevendo as
conseqüências daquela atitude.
- Procurarei cientificá-lo da minha resolução; mas, se Públio
esquivar-se, ainda uma vez, à minha presença para um entendimento mais
íntimo, irei mesmo sem ouvi-lo, com respeito ao assunto. Vestirei os trajes
humildes desta região de criaturas simples, irei a Cafarnaum, hospedandome
com os teus parentes, nas horas necessárias, e, no momento das
práticas, quero ouvir a palavra do Messias, de coração contrito e alma
compadecida pelos infortúnios dos meus semelhantes...
Sinto-me profundamente insulada nestes últimos dias e tenho
necessidade de conforto espiritual para o meu coração combalido nas
provas ásperas.
122
ROMANCE DE EMMANUEL
- Senhora, Deus abençoe os vossos bons propósitos. Em
Cafarnaum, os meus parentes são muito pobres e muito humildes, mas
vossa figura está ali no santuário da gratidão de todos, bastando uma
palavra vossa para que se ponham à vossa disposição, como escravos.
- Para mim não existe fortuna que se iguale a essa, da paz e do
sentimento.
Não procurarei o profeta para solicitar-lhe atenções especiais,
porque basta a sua caridade, no caso de minha filha, hoje sadia e forte,
graças à sua piedade de justo, mas tão somente para buscar conforto ao
meu coração dilacerado.
Pressinto que, em lhe ouvindo as exortações carinhosas e amigas,
alcançarei energias novas para enfrentar as provações mais amargas e
rudes.
Sei que ele me conhecerá nos trajes pobres da Galileia; todavia, na
sua intuição divinatória, compreenderá que, dentro do peito da romana,
pulsa um coração amargurado e infeliz.
As duas combinaram, então, ir juntas à cidade, na tarde do primeiro
sábado.
Embalde, procurou Lívia uma oportunidade para solicitar a
ambicionada permissão do marido, a favor da sua pretensão. Inúmeras
vezes buscou, improficuamente, sondar o espírito de Públio, cuja frieza lhe
afugentava a coragem para a necessária consulta.
Ela, porém, havia resolvido procurar o Mestre, de qualquer maneira.
Abandonada numa região em que somente o marido podia compreendê-la
integralmente, dentro da sua esfera de educação, e rudemente provada nas
fibras mais sensíveis da sua alma feminina, de esposa e mãe, a pobre
senhora assim deliberou com pleno assentimento da sua consciência
honesta e pura.
Talhou uma roupa nova, de conformidade com os usos galileus, de
maneira a não se fazer notada na multidão comum nas prédicas do lago, e,
cientificando a Comênio da necessidade que tinha de
123
HÁ DOIS MIL ANOS...
sair naquele dia, a fim de que o marido fosse avisado à hora do jantar,
dirigiu-se, na data previamente determinada, pelos caminhos que já
conhecemos, em companhia da serva de confiança.
Na residência humilde de pescadores, onde se abrigavam os
familiares de Ana, Lívia sentiu-se envolvida em radiosas vibrações de
serenidade amiga e doce. Era como se o seu coração desalentado
encontrasse uma claridade nova naquele ambiente de pobreza, de
humildade e ternura.
A figura patriarcal do velho Simeão, da Samaria, porém, destacavase
a seus olhos entre todos os que a receberam com as mais elevadas
demonstrações de carinhosa bondade. Do seu olhar profundo e das cãs
veneráveis emanavam as doces irradiações da maravilhosa simplicidade
do antigo povo hebreu, e a sua palavra, ungida de fé, sabia tocar os
corações nas cordas mais sensíveis, quando narrava as ações prodigiosas
do Messias de Nazaré.
Lívia, acolhida por todos com simpatia franca, parecia devassar um
mundo novo, até então desconhecido, na sua existência. Confortava-lhe,
sobremaneira, a expressão de sinceridade e candura, daquela vida simples
e humilde, sem atavios nem artifícios sociais, mas também sem
preconceitos nem fingimentos perniciosos.
À tardinha, confundida com os pobres e os doentes que iam receber
as bênçãos do Senhor, vamos encontrá-la de coração aliviado e sereno,
esperando o momento ditoso de ouvir do Mestre uma palavra de amor e
consolação.
O crepúsculo de um dia claro e quente emprestava um reflexo de luz
dourada a todas as coisas e a todos os contornos suaves da paisagem.
Encrespavam-se as águas mansas de Tiberíades ao sopro carinhoso dos
favônios da tarde, que se impregnavam do perfume das flores e das
árvores. Brisas frescas eliminavam o calor ambiente, espalhando
sensações agradáveis de vida livre, no seio robusto e farto da Natureza.
124
ROMANCE DE EMMANUEL
Afinal, todos os olhares se dirigiam para um ponto escuro que se
desenhava no espelho cristalino das águas, muito ao longe, no horizonte.
Era a barca de Simão, que trazia o Mestre para as dissertações
costumeiras.
Um sorriso de ansiedade e de esperança clareou, então, todos aqueles
semblantes que o aguardavam, no desconforto de seus sofrimentos.
Lívia reparou aquela turba que, por sua vez, também lhe notara a
estranha presença. Operários humildes, pescadores rudes, mães
numerosas em cujos rostos macerados se podiam ler as histórias amargas
dos mais incríveis padecimentos, criaturas da plebe anônima e sofredora,
mulheres adúlteras, publicanos gozadores da vida, enfermos
desesperados e crianças numerosas, que traziam consigo os estigmas do
mais doloroso desamparo.
Conservava-se Lívia ao lado do velho Simeão, cuja expressão
fisionômica de firmeza e doçura inspirava o mais profundo respeito aos
que se lhe aproximavam; e quantos lhe notavam o delicado perfil romano,
enfiada na simplicidade do traje galileu, presumiam na sua figura alguma
jovem de Samaria da Judeia, que tivesse vindo igualmente de longe,
atraída pela fama do Messias.
A barca de Simão acostara brandamente à margem, ensejando a que
o Mestre se dirigisse ao local costumeiro de suas lições divinas. Sua
fisionomia parecia transfigurada em resplendente beleza. Os cabelos,
como de costume, caíam-lhe aos ombros, à moda dos nazarenos,
esvoaçando levemente aos ósculos cariciosos dos ventos brandos da
tarde.
A esposa do senador não pôde mais despregar os olhos
deslumbrados, daquela figura simples e maravilhosa.
Começara o Mestre um sermão de beleza inconfundível e suas
palavras pareciam tocar os espíritos mais empedernidos, figurando-se que
os ensinamentos ressoavam nas devesas de toda a Galileia,
125
HÁ DOIS MIL ANOS...
ecoando pelo mundo inteiro, previamente modelados para caminhar no
mundo com a própria eternidade.
"Bem-aventurados os humildes de espírito, porque a eles pertencerá
o reino de meu Pai que está nos céus!...
"Bem-aventurados os pacíficos, porque possuirão a Terra!...
"Bem-aventurados os sedentos de justiça, porque serão saciados!...
"Bem-aventurados os que sofrem e choram, porque serão
consolados nas alegrias eternas do reino de Deus!..."
E a sua palavra enérgica e branda disse da misericórdia do Pai
Celestial; dos bens terrestres e celestes; do valor das inquietações e
angústias humanas, acrescentando que viera ao mundo não para os mais
ricos e mais felizes, mas para consolar os mais pobres e deserdados da
sorte.
A assembléia heterogênea escutava-o embevecida nos seus
transportes de esperança e gozo espiritual.
Uma luz serena e caridosa parecia vir do Hebron, clarificando a
paisagem em tonalidade de opalas e safiras eterizadas.
A hora ia adiantada e alguns apóstolos do Senhor resolveram trazer
alguns pães aos mais necessitados de alimento. Dois grandes cestos de
merenda frugal foram trazidos, mas os ouvintes eram em demasia
numerosos. Jesus, porém, abençoou-lhes o conteúdo e, como num suave
milagre, a escassa provisão foi partida em pequenos pedaços, que foram
religiosamente distribuídos por centenas de pessoas.
Lívia recebeu igualmente a sua parte e, ao ingeri-la, sentiu um sabor
diferente, como se houvera sorvido um remédio apto a lhe curar todos os
males da alma e do corpo, porque uma certa tranqüilidade lhe anestesiou o
coração flagelado e desiludido. Comovida até às lágrimas, viu que o
Mestre atendia, caridosamente, a numerosas mulheres, en126
ROMANCE DE EMMANUEL
tre as quais muitas, segundo o conhecimento do povo de Cafarnaum, eram
de vida dissoluta e criminosa.
O velho Simeão quis também aproximar-se do Senhor, naquela hora
memorável da sua passagem pelo planeta. Lívia acompanhou-o
automaticamente, e, em poucos minutos, achavam-se ambos diante do
Mestre, que os acolheu com o seu generoso e profundo sorriso.
- Senhor - exclamou, respeitosamente, o ancião de Samaria -, que
deverei fazer para entrar, um dia, no vosso reino?
- Em verdade te digo - replicou-lhe Jesus, carinhosamente - que
muitos virão do Ocidente e do Oriente, procurando as portas do Céu, mas
somente encontrarão o reino de Deus e de sua justiça aqueles que amarem
profundamente, acima de todas as coisas da Terra, ao nosso Pai que está
nos Céus, amando o próximo como a si mesmos.
E espraiando o olhar compassivo e misericordioso por sobre a
assembléia vasta, continuou com doçura:
- Muitos, também, dos que foram aqui chamados, serão escolhidos
para o grande sacrifício que se aproxima!... Esses me encontrarão no reino
celestial, porque as suas renúncias hão-de ser o sal da Terra e o sol de um
novo dia!...
- Senhor - aventurou o ancião, com os olhos rasos de lágrimas -,
tudo faria eu por ser um dos vossos escolhidos!...
Mas Jesus, fitando fixamente o patriarca de Samaria, murmurou com
infinita ternura:
- Simeão, vai em paz e não tenhas pressa, porque, em verdade,
aceitarei o teu sacrifício no momento oportuno...
E estendendo o raio de luz dos seus olhos até à figura de Lívia, que
lhe devorava as palavras com a sede ardente da sua atenção, exclamou
com as claridades proféticas de suas exortações:
127
HÁ DOIS MIL ANOS...
- Quanto a ti, regozija-te em Nosso Pai, porque as minhas palavras e
ensinamentos te tocaram para sempre o coração. Vai e não descreias,
porque tempo virá em que saberei aceitar as tuas abnegações
santificantes!
Essas palavras foram ditas numa tal atitude, que a esposa do
senador não teve dificuldade em lhes apreender o sentido profundo, para
um futuro distante.
Aos poucos, dispersou-se a grande assembléia dos pobres, dos
enfermos e dos aflitos.
Era noite quando Lívia e Ana regressaram à casa solarenga,
confortadas pelas graças recebidas das mãos caridosas do Messias.
Profunda sensação de alívio e conforto inundava-lhe a alma.
Penetrando, porém, nos seus aposentos, Lívia encontrou de frente a
figura enérgica do marido, que deixava, transparecer na fisionomia
carregada os mais intensos sinais de irritação, como acontecia nos
momentos de seu mais ríspido mau humor. Ela notou-lhe a exacerbação de
ânimo, mas, ao contrário de outras vezes, parecia inteiramente preparada
para vencer as mais tremendas lutas do coração, porque, com serenidade
imperturbável, o encarou face a face, enfrentando-lhe o olhar suspeitoso.
Afigurava-se-lhe que a flor de eterna paz espiritual lhe desabrochara no
íntimo, ao suave calor das palavras do Cristo, porquanto lhe parecia haver
atingido o terreno, até então desconhecido, de serenidade estranha e
superior.
Depois de fitá-la de alto a baixo com o seu olhar duro e inquiridor,
exclamou Públio, mal sopitando a cólera incompreensível:
- Então, que é isso? Que poderosas razões levariam a senhora a
ausentar-se de casa em horas tão impróprias para as mães de família?
- Públio - respondeu com humildade, estranhando aquele tratamento
cerimonioso -, por mais que buscasse comunicar-te minha resolução de
sair
128
ROMANCE DE EMMANUEL
na tarde de hoje, fugiste sempre de minha presença, esquivando-te à
minha consulta e eu necessitava procurar o Messias de Nazaré, de modo a
acalmar meu coração desventurado
- E precisavas de disfarce para encontrar o profeta do povo? -
atalhou o senador, com ironia.
É a primeira vez que noto uma patrícia usando tais artifícios para
consolar o coração. Vai a tanto, assim, o seu menosprezo pelas nossas
mais sagradas tradições familiares?
- Supus não me ficasse bem fazer-me notada na multidão das
pessoas pobres e infelizes que procuram a Jesus nas margens do lago, e,
identificando-me com os sofredores, não presumi desacatar nossos
costumes familiares, mas, sim, acreditei agir em favor do nosso nome,
considerando a circunstância de ocupares, no momento, nesta província, a
mais alta expressão política do Império.
- A menos que esteja disfarçando algum outro sentimento, como
dissimula a posição social com a indumentária, muito errou procurando o
Messias nesses trajes, porque, afinal, estou investido de poderes para
requisitar a presença de qualquer pessoa da região em minha casa!
- Mas Jesus - revidou Lívia, corajosamente - deve estar para nós
muito acima dos poderes humanos, que sabemos tão precários, por vezes.
Acho que a cura da nossa filhinha, diante da qual todos os nossos
recursos foram impotentes, é o bastante para fazê-lo credor da nossa
gratidão imperecível.
- Ignorava que a sua organização mental fosse tão frágil em face dos
sucessos do Mestre de Nazaré, aqui em Cafarnaum - continuou o senador,
asperamente.
A cura de nossa filha? Como assegurar uma coisa que a sua
argumentação pessoal não pode provar com dados positivos? E ainda que
esse homem, revestido de forças divinas para o espírito simples e
ignorante dos pescadores galileus, tivesse
129
HÁ DOIS MIL ANOS...
operado essa cura com a sua intervenção sobrenatural, vindo a este
mundo da parte dos deuses, poderíamos chamar-lhe impiedoso e cruel,
sarando uma menina enferma de tantos anos e permitindo que os gênios
do mal e da perversidade nos arrebatassem o filhinho sadio e carinhoso,
em cuja fronte colocava a minha ternura de pai todo um futuro brilhante e
promissor!
- Cala-te, Públio! - revidou ela, tomada de uma força superior que lhe
conservava toda a serenidade do coração. - Recorda-te que os deuses
podem humilhar-nos, com dureza, a vaidade e o orgulho absurdos... Se
Jesus de Nazaré nos curou a filhinha bem-amada, que apertávamos nos
braços frágeis contra os poderes imensos da morte, podia permitir que
fôssemos tocados no mais sagrado sentimento de nossa alma, com o
incompreensível desaparecimento do nosso Marcus, para que nos
sentíssemos inclinados à piedade e à comiseração pelos nossos
semelhantes!...
- A senhora se compromete com essa demasiada tolerância, que vai
ao absurdo da fraternização com os escravos - disse Públio, com rispidez
e austera severidade.
Tal atitude de sua parte me fez pensar, seriamente, que a sua
personalidade mudou no decurso deste ano, porque as suas idéias, longe
do nível social da sede do Império, baixaram ao terreno dos sentimentos
mais relaxados, em face da compostura que se exige da mulher de um
senador, ou da matrona romana.
Lívia ouvira, angustiadamente, as palavras injustificáveis do marido.
Nunca o vira tão irritado, em todo o transcurso da vida conjugal; mas,
verificara, em si própria, uma renovação singular, como se o pão rústico,
abençoado pelo Mestre, lhe transfigurasse as mais recônditas fibras da
consciência. Seus olhos se enchiam de lágrimas, não por um orgulho
ferido ou pela ingratidão que aquelas admoestações injustas revelavam,
mas com profunda com130
ROMANCE DE EMMANUEL
paixão do esposo, que não a compreendia, e adivinhando a dolorosa
tempestade que lhe fustigava o coração generoso, porém arbitrário, no
plano de suas resoluções. Serena e silenciosa, não se justificou perante as
severas reprimendas.
Foi quando, então, compreendendo que aquele atrito não deveria
prosseguir, dirigiu-se o senador para a porta de saída do apartamento,
abrindo-a com estrépito, a exclamar:
- Jamais fiz uma viagem tão penosa e tão infeliz! Gênios malditos
parecem presidir ás minhas atividades na Palestina, porque, se curei uma
filha, perdi um filhinho no desconhecido e começo a perder a mulher no
abismo das irreflexões e da incoerência; e acabarei, também, perdendo-me
para sempre.
Dizendo-o, bateu a porta com toda a força dos seus movimentos
instintivos, encaminhando-se ao gabinete, enquanto a esposa, de coração
genuflexo, dirigia o pensamento para aquele Jesus carinhoso e terno, que
viera ao mundo para salvar todos os pecadores. Lágrimas dolorosas
fluíam-lhe dos olhos, fixos ainda na paisagem do lago de Genesaré, aonde
parecia haver regressado em espírito, novamente. Lá estava o Mestre, em
atitudes doces de prece, cravando nas estrelas do céu os olhos
fulgurantes.
Figurou-se-lhe que Jesus também lhe notara a presença naquela
hora sombria da noite, porque desviara o olhar fúlgido do firmamento
constelado e estendia-lhe os braços compassivos e misericordiosos,
exclamando com infinita doçura:
- Filha, deixa que chorem os teus olhos as imperfeições da alma que
o Nosso Pai destinou para gêmea da tua!... Não esperes deste mundo mais
que lágrimas e padecimentos, porque é na dor que os corações se
lucificam para o céu... Um momento chegará em que te sentirás no acume
das aflições, mas não duvides da minha misericórdia, porque no momento
oportuno, quando todos te desprezarem, eu te chamarei ao meu reino de
divinas
131
HÁ DOIS MIL ANOS...
esperanças, onde poderás aguardar teu esposo, no curso incessante dos
séculos!...
Pareceu-lhe que o Mestre continuaria a embalar-lhe o coração com
suaves e carinhosas promessas de bem-aventurança, mas um ruído
qualquer a separara daquela visão de luz e de felicidade indefiníveis.
Quebrara-se o quadro da sua preocupação espiritual, como se feito
de tenuíssimas filigranas.
Todavia, a esposa do senador compreendeu que não fôra vítima de
uma perturbação alucinatória, e guardou, com amor, no âmago do coração,
as doces palavras do Messias. E, enquanto despia os trajes galileus, a fim
de retomar o curso de suas obrigações domésticas, de alma límpida e
consolada, parecia, ainda, lobrigar o vulto sereno e amado do Senhor, nas
eminências verdejantes das margens do Tiberíades, através da neblina
suave, que lhe embaciava os olhos úmidos de pranto.
132
VIII
No grande dia do Calvário
Desde a sua altercação com a esposa, fechara-se Públio Lentulus na
mais penosa taciturnidade.
Dolorosas suspeitas lhe vergastavam o coração impulsivo, acerca
do procedimento daquela que o destino algemara ao seu espírito, para
sempre, no instituto da vida conjugal. Não pudera compreender o disfarce
de que Lívia se utilizara para o encontro com o profeta de Nazaré, pois seu
temperamento orgulhoso rebelava-se contra aquela atitude da mulher,
considerando a sua posição social um penhor da veneração e do respeito
de todos e dando guarida, assim, às mais penosas desconfianças,
intoxicado pelas calúnias de Fúlvia e Sulpício.
Algum tempo decorrera e, enquanto ele se enclausurava no seu
mutismo e na sua melancolia, Lívia abroquelava-se na fé, nas palavras
carinhosas e persuasivas do Nazareno. Nunca mais voltara ela a
Cafarnaum, com o fim de ouvir as consoladoras prédicas do Messias; mas,
por intermédio de Ana, que lá comparecia pontualmente, procurou auxiliar,
sempre que possível, os pobres que busca133
HÁ DOIS MIL ANOS...
vam a palavra de Jesus, na medida dos seus recursos materiais. Profunda
tristeza lhe invadia o coração sensível e generoso, ao observar as atitudes
incompreensíveis do companheiro; mas, a verdade é que já não colocava
suas esperanças em qualquer realização do orbe terrestre, volvendo as
mais ardentes aspirações para aquele reino de Deus, maravilhoso e
sublime, onde tudo devia transpirar amor, ventura e paz, no seio farto de
soberanas consolações celestes.
Aproximava-se a Páscoa no ano 33. Numerosos amigos de Públio
haviam aconselhado a sua volta temporária a Jerusalém, a fim de
intensificar os serviços da procura do filhinho, no curso das festividades
que concentravam, na época, as maiores multidões da Palestina,
estabelecendo possibilidades mais amplas ao reencontro do
desaparecido. Peregrinos incontáveis, de todas as regiões da província,
dirigiam-se para Jerusalém, a participar dos grandes festejos, oferecendo,
simultaneamente, os tributos de sua fé, no suntuoso templo. A nobreza
indígena também se fazia notar ali, em tais circunstâncias, através de seus
elementos mais representativos. Todos os partidos políticos se
arregimentavam para os serviços extraordinários das solenidades que
reuniam as maiores massas do judaísmo, encaminhando-se para lá os
homens mais importantes do tempo. As autoridades romanas, por sua vez,
concentravam-se, igualmente, em Jerusalém, na mesma ocasião, reunindose
na cidade quase todos os centuriões e legionários, destacados a
serviço do Império, nas paragens mais remotas da província.
Públio Lentulus não desdenhou o alvitre e, antes que a cidade se
enchesse de romeiros e exploradores, já ali se encontrava com a família,
fornecendo instruções aos servos de confiança, conhecedores do
pequenino Marcus, de maneira a estabelecer um cordão de investigadores
atentos e permanentes, enquanto perdurassem os festejos.
134
ROMANCE DE EMMANUEL
Em Jerusalém, o convencionalismo social não se modificara,
notando-se apenas a circunstância de Públio haver dispensado a
residência do tio Sálvio, adquirindo uma vila confortável e graciosa em
plena rua movimentada, de onde pudesse observar, igualmente, as
manifestações populares.
As vésperas da Páscoa chegaram com a volumosa preamar de
peregrinos de todas as classes e de todas as localidades provinciais.
Interessante observar-se, naqueles blocos heterogêneos de povo, os
hábitos mais dispares entre si.
Caravanas sem conto, revelando os mais esquisitos costumes,
atravessavam as portas da cidade, patrulhadas por numerosos soldados
pretorianos
E enquanto o senador fazia comparações de ordem econômica,
social e política, observando as massas de povo que afluíam às ruas
movimentadas, vamos encontrar Lívia em palestra íntima com a serva de
sua amizade e confiança.
- Sabeis, senhora, que também o Messias chegou ontem à cidade? -
exclamava Ana, com um raio de alegria nos grandes olhos.
- Verdade? - perguntou Lívia, surpresa.
- Sim, desde ontem chegou Jesus a Jerusalém, saudado por grandes
manifestações populares.
A ressurreição de Lázaro, em Betânia, confirmou suas divinas
virtudes de Filho de Deus, entre os homens mais descrentes desta cidade,
e acabo de saber que sua chegada foi objeto de imensas alegrias da parte
do povo. Todas as janelas se enfeitaram de flores para a sua passagem
triunfal, as crianças espalharam palmas verdes e perfumadas no caminho,
em homenagem a ele e aos seus discípulos!... Muita gente acompanhou o
Mestre desde as margens do lago de Genesaré, seguindo-o até aqui,
através de todas as localidades.
Quem me trouxe a notícia foi um conhecido pessoal, portador do tio
Simeão, que também veio a Jerusalém, nessa grande caminhada, apesar
da sua idade avançada...
135
HÁ DOIS MIL ANOS...
- Ana, essa notícia é muito confortadora -disse-lhe a senhora, com
bondade - e se eu pudesse iria ouvir a palavra do Mestre, onde quer que
fosse; mas, bem sabes as dificuldades para a consecução deste intento.
Entretanto, ficas livre de tuas obrigações e trabalhos, durante a
permanência de Jesus em Jerusalém, de modo a bem aproveitares as
festas da Páscoa, ouvindo, ao mesmo tempo, as prédicas do Messias, que
tanto bem nos fazem ao coração.
E, entregando à criada o indispensável auxílio pecuniário, observava
que Ana partia satisfeita em demanda das cercanias do Monte das
Oliveiras, onde estacionavam massas compactas de peregrinos, entre os
quais se notava a presença do velho Simeão, de Samaria, romeiro
desassombrado que não trepidara, apesar da idade avançada, em aderir ao
movimento das peregrinações pelos mais escabrosos e longos caminhos.
Em casa de Lentulus não havia tanto interesse pelas grandes
festividades do judaísmo.
Um único motivo justificava a presença do senador em Jerusalém,
naqueles dias turbulentos: o da busca incessante do filho, que parecia
perdido para sempre.
Diariamente ouvia os servos de confiança, após as diligências
empreendidas e, de instante a instante, sentia-se mais acabrunhado por
acerbas desilusões, considerando a luta inútil naquelas pesquisas
exaustivas e infrutíferas.
Na vivenda clara e ajardinada, as horas passavam vagarosas e
tristes. Embalde se movimentavam as ruas, patrulhadas por soldados e
cheias de criaturas de todos os matizes sociais. O vozerio das ruidosas
manifestações populares transpunha aquelas portas quase silenciosas,
como ecos apagados de rumores longínquos.
A penosa situação conjugal, em que se colocara, separava o
senador da mulher, como se estivessem
136
ROMANCE DE EMMANUEL
irremediavelmente distantes um do outro e destruídos os laços sagrados
do coração.
Foi a esse retiro de calma aparente que Ana voltou, certa manhã,
passados alguns dias, a fim de cientificar a senhora da inesperada prisão
do Messias.
Com a simplicidade espontânea e sincera da alma popular, que ela
encarnava, a serva humilde historiou, com os mais íntimos pormenores, a
cena provocada pela ingratidão de um dos discípulos, em virtude do
despeito e da ambição dos sacerdotes e fariseus do templo da grande
cidade israelita.
Amargamente compungida em face do acontecimento, Lívia
considerou que, se fosse noutro tempo, recorreria imediatamente à
proteção política do marido, de modo a evitar ao profeta de Nazaré os
ataques das ambições desmesuradas. Agora, porém, reconhecia não lhe
ser possível socorrer-se do prestigio do companheiro, em tais
circunstâncias. Mesmo assim, procurou aproximar-se dele, por todos os
modos, embora improficuamente. De uma sala contígua ao seu gabinete,
notou que Públio atendia a numerosas pessoas que o procuravam
particularmente, em atitude discreta; e o interessante é que, segundo as
suas observações, todos expunham ao senador o mesmo assunto, isto é, a
prisão inesperada de Jesus Nazareno - acontecimento que desviara todas
as atenções das festividades da Páscoa, tal o interesse despertado pelos
feitos do Mestre, em todos os espíritos. Alguns solicitavam a sua
intervenção no processo do acusado; outros, da parte dos fariseus ligados
aos sacerdotes do Sinédrio, encareciam aos seus olhos o perigo das
pregações de Jesus, apresentado por muitos como revolucionário
inconsciente, contra os poderes políticos do Império.
Debalde esperou Lívia que o marido lhe concedesse dois minutos de
atenção, no compartimento próximo do seu gabinete privado.
137
HÁ DOIS MIL ANOS...
Sua ansiedade tocava o apogeu, quando lobrigou a figura de
Sulpício Tarquinius, que vinha da parte de Pilatos solicitar ao senador o
obséquio da sua presença, imediatamente, no palácio do governo
provincial, a fim de resolver um caso de consciência.
Públio Lentulus não se fez rogado.
Ponderando os deveres de homem de Estado, concluiu que deveria
esquecer quaisquer prevenções da sua vida particular e privada,
marchando ao encontro das obrigações que devia ao Império.
Lívia perdeu, então, toda a esperança de implorar-lhe auxílio para o
Mestre, naquele dia. Sem saber porque, intensa amargura invadia-lhe o
mundo íntimo. E foi com a alma envolta em sombras que elevou ao Pai
Celestial as suas preces fervorosas e sinceras, por aquele que seu
coração considerava lúcido emissário dos céus, suplicando, a todas as
forças do bem, livrassem o Filho de Deus da perseguição e da perfídia dos
homens.
Ao chegar à corte provincial romana, naquele dia inesquecível de
Jerusalém, Públio Lentulus foi tomado de extraordinária surpresa.
Ondas compactas de povo se adensavam na praça extensa, em
gritaria ensurdecedora.
Pilatos recebeu-o com deferência e solicitude, conduzindo-o a um
gabinete amplo, onde se reunia pequeno número de patrícios, escolhidos a
dedo em Jerusalém. O pretor Sálvio, funcionários de destaque, militares
graduados e alguns poucos romanos civis, de nomeada, que passavam
eventualmente pela cidade, ali se aglomeravam, convocados pelo
governador, que se dirigiu a Públio Lentulus, nestes termos:
- Senador, não sei se tivestes ensejo de conhecer, na Galileia, um
homem extraordinário que o povo se habituou a chamar Jesus Nazareno.
Esse homem foi agora preso, em virtude da condenação dos membros do
Sinédrio, e a massa popular que o havia recebido, nesta cidade, com
palmas e flores, pede agora, nesta praça, o seu imediato julgamento
138
ROMANCE DE EMMANUEL
por parte das autoridades provinciais, em confirmação da sentença
proferida pelos sacerdotes de Jerusalém.
Eu, francamente, não lhe vejo culpa alguma, senão a de ardente
visionário de coisas que não posso ou não sei compreender,
surpreendendo-me amargamente o seu penoso estado de pobreza.
Neste comenos, penetraram na sala as duas irmãs, Cláudia e Fúlvia,
que tomaram assento nesse conselho íntimo de patrícios.
- Ainda esta noite - continuou Pilatos, apontando para a esposa -,
parece que os augúrios dos deuses se manifestaram para a minha
orientação, pois Cláudia sonhou que uma voz lhe recomendava que eu não
deveria arriscar minha responsabilidade no julgamento desse homem
justo.
Resolvi, portanto, agir em consciência, aqui reunindo todos os
patrícios e romanos notáveis de Jerusalém, para examinarmos o assunto,
de modo que o meu ato não prejudique os interesses do Império, nem
colida com o meu ideal de justiça.
Que dizeis, pois, dos meus escrúpulos, na qualidade de
representante direto do Senado e do Imperador, entre nós, neste
momento?
- Vossa atitude - obtemperou o senador, compenetrado de suas
responsabilidades -- revela o máximo critério nas questões
administrativas.
E, recordando, no íntimo, os bens que havia recebido do profeta com
a cura da filhinha, embora as dúvidas levantadas por seu orgulho e
vaidade, continuou:
- Conheci de perto o profeta de Nazaré, em Cafarnaum, onde
ninguém o tinha na conta de conspirador ou revolucionário. Suas ações,
ali, eram as de um homem superior, caridoso e justo, e jamais tive
conhecimento de que sua palavra se erguesse contra qualquer instituto
social ou político, do Império. Certamente, alguém o toma aqui como
pretendendo a autoridade política da Judeia, cevando-se no seu nome as
ambições e o despeito dos
139
HÁ DOIS MIL ANOS...
sacerdotes do templo. Mas, já que guardais no coração os melhores
escrúpulos, porque não enviais o prisioneiro ao julgamento de Ântipas, a
quem, com mais propriedade, deve interessar a solução de semelhante
assunto? Representando, nestes dias, o governo da Galileia aqui em
Jerusalém, acho que ninguém, melhor que Herodes, pode resolver em sã
consciência um caso como este, considerando-se a circunstância de que
julgará um compatrício seu, já que não vos supondes de posse de todos
os elementos para proferir sentença definitiva nesse processo insólito.
A idéia foi unanimemente aceita, sendo o acusado conduzido à
presença de Herodes Ântipas, por alguns centuriões, obedecendo-se,
rigorosamente, as determinações de Pilatos nesse sentido.
Todavia, no palácio do Tetrarca da Galileia, foi Jesus de Nazaré
recebido com profundo sarcasmo.
Apelidado pela gente simples como "Rei dos Judeus" e
simbolizando a esperança de certas reivindicações políticas para
numerosos de seus seguidores, entre os quais se incluía o famoso
discípulo de Kerioth, o mestre de Nazaré foi tratado pelo príncipe de
Tiberíades como vulgar conspirador, humilhado e vencido.
Ântipas, porém, para fazer sentir ao Procurador da Judeia a conta de
ridículo em que tomava os seus escrúpulos, mandou que se tratasse o
prisioneiro com o máximo de ironia.
Vestiu-lhe uma túnica alva, igual à indumentária dos príncipes do
tempo, colocando-lhe nos braços uma cana imunda à guisa de cetro, e
coroou-lhe a fronte abatida com uma auréola de venenosos espinhos,
devolvendo-o à sanção de Pilatos, no turbilhão de gritarias da populaça
exacerbada.
Muitos soldados romanos cercavam o acusado, protegendo-o das
investidas da massa furiosa e inconsciente.
Jesus, trajando, por irrisão, a túnica da realeza, coroado de espinhos
e empunhando uma cana
140
ROMANCE DE EMMANUEL
como símbolo do seu reinado no mundo, deixava transparecer, nos olhos
profundos, indefinível melancolia.
Cientificado de que o prisioneiro era devolvido por Ântipas ao seu
julgamento, o governador dirigiu-se novamente aos seus conterrâneos,
exclamando:
- Meus amigos, não obstante nossos esforços, Herodes apela
também para nós outros, a fim de se confirmar a peça condenatória do
profeta Nazareno, recambiando-o com a sua situação penosamente
agravada perante o povo, porquanto, como suprema autoridade em
Tiberíades, tratou o prisioneiro com revoltante sarcasmo, dando-nos a
entender o desprezo com que supõe deva ele ser encarado pela nossa
justiça e administração.
Tão amarga situação contrista-me bastante, porque o coração me diz
que esse homem é um justo; mas, que fazermos em semelhante
conjuntura?
Da câmara isolada, onde se reunia o apressado e reduzido conselho
de patrícios, podiam observar-se os ecos rumorosos da turba amotinada,
em espantosa gritaria.
Um ajudante de ordens do governador, de nome Polibius, homem
sensato e honesto, penetrou no recinto, pálido e quase trêmulo, dirigindose
a Pilatos:
- Senhor Governador, a multidão enfurecida ameaça invadir a casa,
se não confirmardes a sentença condenatória de Jesus Nazareno, dentro
do menor prazo possível...
- Mas, isso é um absurdo - retrucou Pilatos, emocionado. - E, afinal,
que diz o profeta, em tais circunstâncias? Sofre tudo sem uma palavra de
recriminação e sem um apelo oficial aos tribunais de justiça?
- Senhor - replicou Polibius, igualmente impressionado -, o
prisioneiro é extraordinário na serenidade e na resignação. Deixa-se
conduzir pelos
141
HÁ DOIS MIL ANOS...
algozes com a docilidade de um cordeiro e nada reclama, nem mesmo o
supremo abandono em que o deixaram quase todos os diletos discípulos
da sua doutrina!
Comovido com os seus padecimentos, fui falar-lhe pessoalmente e,
inquirindo-o sobre os seus martírios, afirmou que poderia invocar as
legiões de seus anjos e pulverizar toda a Jerusalém dentro de um minuto,
mas que isso não estava nos desígnios divinos e, sim, a sua humilhação
infamante, para que se cumprissem as determinações das Escrituras. Fizlhe
ver, então, que poderia recorrer à vossa magnanimidade, a fim de se
ordenar um processo dentro de nossos dispositivos judiciários, de
maneira a comprovar sua inocência e, todavia, recusou semelhante
recurso, alegando que prescinde de toda proteção política dos homens,
para confiar tão somente numa justiça que diz ser a de seu Pai que está
nos céus!
- Homem extraordinário!... - revidou Pilatos, enquanto os presentes o
acompanhavam estupefatos.
Polibius - continuou ele -, que poderíamos fazer para evitar-lhe a
morte nefanda, nas mãos criminosas da massa inconsciente?
- Senhor, em vista da necessidade de resolução rápida, sugiro a
pena dos açoites na praça pública, por ver se assim conseguimos amainar
as iras populares, evitando ao prisioneiro a morte ignominiosa nas mãos
de celerados sem consciência...
- Mas, os açoites?! - diz Públio Lentulus, admirado, antevendo as
torturas do horrível suplício.
- Sim, meu amigo - redargüiu o governador, dirigindo-lhe a palavra
com atenção respeitosa -, a idéia de Polibius é bem lembrada. Para
evitarmos ao acusado a morte ignominiosa, temos de lançar mão deste
recurso. Vivendo na Judeia há quase sete anos, conheço este povo e sei
de suas temíveis atitudes, quando as suas paixões se desencadeiam.
142
ROMANCE DE EMMANUEL
O suplício foi, então, ordenado, no pressuposto de evitar maiores
males.
Diante de todos, foi Jesus açoitado, de maneira impiedosa, aos
berros estridentes da multidão amotinada.
Nesse instante doloroso, Públio e alguns romanos se ausentaram
por momentos da câmara privada onde se reuniam, a fim de observarem
os movimentos instintivos da massa fanática e ignorante. Não parecia que
os peregrinos de Jerusalém haviam acorrido à cidade para as
comemorações alegres da Páscoa, mas, tão somente, para procederem à
condenação do humilde Messias de Nazaré. De quando em quando, faziase
mister o concurso decidido de centuriões desassombrados, que
dispersavam certos grupos mais exaltados, a golpes de chanfalho.
O senador fez questão de aproximar-se do supliciado, na suas
provações dolorosas e extremas.
Aquele rosto enérgico e meigo, em que os seus olhos haviam
divisado uma auréola de luz suave e misericordiosa, nas margens do
Tiberíades, estava agora banhado de suor sangrento a manar-lhe da fronte
dilacerada pelos espinhos perfurantes, misturando-se de lágrimas
dolorosas; seus delicados traços fisionômicos pareciam invadidos de
palidez angustiada e indescritível; os cabelos caíam-lhe na mesma
disposição encantadora sobre os ombros seminus e, todavia, estavam
agora desalinhados pela imposição da coroa ignominiosa; o corpo
vacilava, trêmulo, a cada vergastada mais forte, mas o olhar profundo
saturava-se da mesma beleza inexprimível e misteriosa, revelando
amargurada e indefinível melancolia.
Por um momento, seus olhos encontraram os do senador, que
baixou a fronte, tocado pela imorredoura impressão daquela sobrehumana
majestade.
Públio Lentulus voltou intimamente compungido ao interior do
palácio, onde, daí a poucos
143
HÁ DOIS MIL ANOS...
minutos, retornava Polibius, cientificando o governador de que a pena do
açoite não havia saciado, infelizmente, as iras da população enfurecida,
que reclamava a crucificação do condenado.
Penosamente surpreendido, exclamou o senador, dirigindo-se a
Pilatos, com intimidade:
- Não tendes, porventura, algum prisioneiro com processo
consumado, que possa substituir o profeta em tão horrorosas penas? As
massas possuem alma caprichosa e versátil e é bem possível que a de
hoje se satisfaça com a crucificação de algum criminoso, em lugar desse
homem, que pode ser um mago ou visionário, mas é um coração caridoso
e justo.
O governador da Judeia concentrou-se por momentos, recorrendo à
memória, com o fim de encontrar a desejada solução.
Lembrou-se então de Barrabás, personalidade temível, que se
encontrava no cárcere aguardando a última pena, conhecido e odiado de
todos pelo seu comprovado espírito de perversidade, respondendo afinal:
- Muito bem!... Temos aqui um celerado, no cárcere, para alívio de
todos, e que poderia, com efeito, substituir o profeta na morte infamante!...
E mandando fazer o possível silêncio, de uma das eminências do
edifício, ordenou que o povo escolhesse entre o bandido e Jesus.
Mas, com grande surpresa de todos os presentes, a multidão
bradava com sinistro alarido, numa torrente de impropérios:
- Jesus!... Jesus!... Absolvemos Barrabás!... Condenamos a Jesus!...
Crucificai-o!... Crucificai-o!...
Todos os romanos se aproximaram das janelas, observando a
inconsciência da massa criminosa, no ímpeto de seus instintos
desencadeados.
- Que fazer diante de tal quadro? - perguntou Pilatos, emocionado,
ao senador que o ouvia atentamente.
144
ROMANCE DE EMMANUEL
- Meu amigo - respondeu Públio, com energia -, se a decisão
dependesse tão somente de mim, fundamentá-la-ia em nossos códigos
judiciários, cuja evolução não comporta mais uma condenação tão
sumária como esta, e mandava dispersar a multidão inconsciente à pata de
cavalo; mas, considero que as minhas atribuições transitórias, junto ao
vosso governo, não me outorgam direito a tais desmandos e, além disso,
tendes aqui uma experiência de sete anos consecutivos.
De minha parte, suponho que tudo foi feito para que as decisões não
fossem precipitadas.
Antes de tudo, o prisioneiro foi enviado ao julgamento de Ântipas,
que complicou a situação, diante da populaça irresponsável, dentro das
suas infelizes noções da tarefa de um governo, deixando-vos a
responsabilidade da última palavra sobre o assunto; em seguida,
determinastes o suplício do açoite para satisfazer ao povo amotinado, e,
agora, acabais de indicar outro criminoso para a crucificação, em lugar do
acusado. Tudo inutilmente.
Como homem, estou contra este povo inconsciente e infeliz e tudo
faria por salvar o inocente; mas, como romano, acho que uma província,
como esta, não passa de uma unidade econômica do Império, não nos
competindo, a nós outros, o direito de interferência nos seus grandes
problemas morais e presumindo, desse modo, que a responsabilidade
desta morte nefanda deve caber agora, exclusivamente, a essa turba
ignorante e desesperada, e aos sacerdotes ambiciosos e egoístas que a
dirigem.
Pilatos enterrou a fronte nas mãos, como a refletir maduramente
naquelas ponderações; mas, antes que pudesse externar sua opinião, eis
que Polibius aparece aflito, exclamando em atitude discreta:
- Senhor governador, é preciso apressar vossa decisão. Espíritos
maldizentes começam a duvidar da vossa fidelidade aos poderes de César,
compelidos pela intriga dos sacerdotes do templo,
145
HÁ DOIS MIL ANOS...
colocando a vossa dignidade em terreno equívoco para todos... Além
disso, a populaça tenta invadir a casa, tornando-se necessário assumirdes
atitude decisiva, sem perda de um minuto.
Pilatos ficou rubro de cólera, diante de semelhantes injunções,
exclamando irritado, como se estivesse sob o jugo do mais singular dos
determinismos:
- Está bem! Lavarei as mãos deste ignominioso delito! O povo de
Jerusalém será satisfeito...
E, procedendo a esse ato que o celebrizaria para sempre, dirigiu
algumas palavras ao condenado, mandando, em seguida, recolhê-lo a uma
cela, onde pudesse permanecer alguns minutos, sem as grosseiras
investidas da turba impetuosa, antes que a multidão o conduzisse ao
Gólgota, que, na linguagem usual, deverá ser traduzido por Lugar da
Caveira.
Um sol abrasador tornara sufocante e insuportável a atmosfera.
Saciada, afinal, a fúria da multidão nos seus desvairamentos
infelizes, numerosos soldados seguiram o prisioneiro, que demandava o
monte da crucificação, a passos vacilantes sob o madeiro da ignomínia,
que a justiça da época destinava aos bandidos e aos ladrões.
Até o momento de sua saída sob a cruz, ninguém se interessara por
ele, junto à autoridade ([o governador da Judeia.
Depreendia daí o senador que, quantos seguiam o Mestre de Nazaré
nas margens do lago, em Cafarnaum, o haviam abandonado inteiramente.
De uma das janelas do palácio, considerou, penalizado, o desprezo
infligido àquele homem que, um dia, o dominara com a força magnética da
sua personalidade incompreensível, observando a ondulação da turba
enfurecida, ao sair o inesquecível cortejo.
Ao lado do Mestre não se via mais a carinhosa assistência dos
discípulos e seus numerosos segui146
ROMANCE DE EMMANUEL
dores. Apenas algumas mulheres - entre as quais se destacava o vulto
impressionante e agoniado de sua mãe - o amparavam afetuosamente, no
doloroso e derradeiro transe.
Aos poucos, a praça extensa aquietou-se ao calor sufocante da tarde
que se avizinhava.
A distância, ouvia-se ainda a vozearia da plebe, aliada ao relinchar
dos cavalos e ao tinir das armaduras.
Impressionados com o espetáculo que, aliás, não era incomum na
Palestina, reuniram-se os romanos em uma das salas amplas do palácio
governamental, em animada palestra, comentando os instintos e paixões
ferozes da plebe enfurecida.
Daí a minutos, Cláudia mandava servir doces, vinhos e frutas, e,
enquanto a conversação timbrava os problemas da província e as intrigas
da corte de Tibério, mal imaginava aquele punhado de criaturas que, na
cruz grosseira e humilde do Gólgota, ia acender-se uma gloriosa luz para
todos os séculos terrestres.
147
IX
A calúnia vitoriosa
Se Jesus de Nazaré havia sido abandonado por seus discípulos e
seguidores mais diretos, o mesmo não se verificara quanto ao grande
número de criaturas humildes que o acompanhavam com devoção
purificada e sincera.
É verdade que essas almas, raras, não revelaram francamente as
suas simpatias perante a turba desvairada, temendo-lhe as sanhas
destruidoras, mas, muitos espíritos piedosos, como Ana e Simeão,
contemplaram de perto os martírios do Senhor sob o açoite infamante,
cheios de lágrimas angustiosas e esperando que, a cada momento, se
pudesse manifestar a justiça de Deus contra a perversidade dos homens, a
favor do Messias.
Contudo, esvaeceram-se-lhes as derradeiras esperanças, quando,
sob o peso da cruz, o supliciado caminhou a passos cambaleantes, para o
monte da última injúria, depois de confirmada a ignóbil sentença.
Foi assim que Ana e seu tio, reconhecendo inevitável o martírio da
crucificação, deliberaram
148
ROMANCE DE EMMANUEL
seguir para a residência de Públio, para suplicar o patrocínio de Lívia,
junto ao governador.
Enquanto o cortejo sinistro e impressionante se punha em marcha
nos seus movimentos vagarosos, ambos se desviaram da massa,
encaminhando-se por uma viela ensolarada, em busca do almejado
socorro.
Penetrando na residência, enquanto Simeão a esperava,
pacientemente, numa calçada próxima, dirige-se Ana à esposa do senador,
que a recebeu surpresa e angustiada.
- Senhora - diz, mal ocultando as lágrimas -, o profeta de Nazaré já
está a caminho da morte ignominiosa na cruz, entre os ladrões!...
Uma emoção mais forte embargara-lhe a voz, sufocada de pranto.
- Como? - respondeu Lívia, penosamente surpreendida - se a prisão
data de tão poucas horas?
- Mas é a verdade... - revidou a serva, compungida. - E em nome
daqueles mesmos sofredores que vistes consolados pela sua palavra
carinhosa e amiga, Junto às águas do Tiberíades, eu e meu tio Simeão
vimos implorar o vosso auxílio pessoal perante o governador, a fim de
fazermos um esforço derradeiro pelo Messias!...
- Mas, uma condenação como essa, sem estudo, sem exame, é lá
possível? Vive, então, aqui este povo sem outra lei que não a da barbaria?
- exclamou a senhora, visivelmente revoltada com a inopinada notícia.
Como se desejasse arrancá-la a qualquer divagação incompatível
com o momento, a serva insistiu com decisão e amargura:
- Entretanto, senhora, não podemos perder um minuto.
- Antes de tudo, porém, eu precisava consultar meu marido sobre o
assunto... - monologou a esposa do senador, recordando-se,
repentinamente, dos seus deveres conjugais.
149
HÁ DOIS MIL ANOS...
Onde estaria Públio naquele instante? Desde a manhã, não
regressara a casa, após o chamado insistente de Pilatos. Teria colaborado
na condenação do Messias? Num relance, a pobre senhora examinou toda
a situação nos seus mínimos detalhes, recordando, igualmente, os bens
infinitos que o seu coração havia recebido das mãos caridosas e
complacentes do Mestre Nazareno, e, como se estivesse iluminada por
uma força superior que lhe fazia esquecer todas as questões transitórias
da Terra, exclamou com heróica resolução:
- Está bem, Ana, irei em tua companhia pedir a proteção de Pilatos
para o profeta.
Esperar-me-ás um momento, enquanto vou retomar aqueles trajes
galileus que me serviram naquela tarde de Cafarnaum, dirigindo-me, deste
modo, ao governador, sem provocar a atenção da turbamulta desenfreada.
Em poucos minutos, sem refletir nas conseqüências da sua
desesperada atitude, Lívia estava na rua, novamente enfiada nos trajes
simples da gente pobre da Galileia, trocando amarguradas impressões
com o ancião de Samaria e sua sobrinha, acerca dos dolorosos
acontecimentos.
Aproximando-se da sede do governo provincial, seu coração
palpitou com mais força, obrigando-a a mais demorados pensamentos.
Não seria uma temeridade da sua parte procurar o governador, sem
prévio conhecimento do marido? Mas, tudo não fizera ela, em vão, para
aproximar-se do esposo arredio e irritado, de maneira a reerguer sua
antiga confiança? E Pilatos? Na sua imaginação, guardava ainda os
pormenores das amargas comoções daquela noite em que lhe fôra ele
mais franco, quanto aos sentimentos inconfessáveis que a sua figura de
mulher lhe havia inspirado
Lívia hesitou ao penetrar num dos ângulos da grande praça, agora
adormecida por um sol causticante, de brasas vivas.
150
ROMANCE DE EMMANUEL
Seu raciocínio contrariava a atitude que assumira aos apelos da
serva, que representava, aos seus olhos, a súplica angustiada de inúmeros
espíritos desvalidos; seu coração, porém, sancionava plenamente aquele
derradeiro esforço em favor do emissário celeste que lhe havia curado as
chagas da filhinha, enchendo de tranqüilidade inalterável o seu coração
atormentado de esposa e mãe, tantas vezes incompreendido. Além disso,
nesse conflito interior da razão e do sentimento, este último lhe fazia
lembrar que Jesus, nas margens do lago, lhe falara de amargurados
sacrifícios pela sua grande causa, e não seria aquela a hora sagrada da
gratidão de sua fé ardente e do seu testemunho de reconhecimento?
Aliviada pela íntima satisfação do cumprimento do seu carinhoso dever,
avançou então, desassombradamente, deixando os dois companheiros à
sua espera, num dos largos recantos da praça, enquanto procurava ganhar
as adjacências do edifício, com ligeiro desembaraço.
Batia-lhe o coração descompassadamente.
Como encontrar o governador da Judeia àquela hora? Um sol
ardente concentrava, em tudo, calor intolerável e sufocante.
O cortejo, em demanda do Gólgota, partira havia quase uma hora e o
palácio parecia agora mergulhado numa atmosfera de silêncio e de sono,
após as penosas confusões daquele dia.
Apenas alguns centuriões montavam guarda ao edifício e, quando
Lívia alcançou menor distância das portas principais de acesso ao interior,
eis que se lhe depara a figura de Sulpício, a quem se dirigiu com o máximo
de confiança e de inocência, pedindo-lhe o obséquio de solicitar uma
audiência privada e imediata ao governador, em seu nome. a fim de falarlhe
quanto à dolorosa situação de Jesus de Nazaré.
O lictor mirou-a de alto a baixo com o olhar de lascívia e cupidez que
lhe eram características e, crendo piamente nas relações ilícitas daquela
151
HÁ DOIS MIL ANOS... 151
mulher com o Procurador da Judeia, em virtude de suas observações
pessoais, por coincidências que se lhe figuravam a realidade perfeita
daquela suposta prevaricação, presumiu, naquele ato insólito, não o
motivo apresentado, que lhe pareceu ótimo pretexto para afastar quaisquer
desconfianças, mas o objetivo de se encontrar com o homem de suas
preferências.
Criatura ignóbil, de que se utilizava o governador para instrumento
de suas paixões malignas, entendeu que semelhante entrevista deveria ser
levada a efeito na maior intimidade, e, sabendo que Públio Lentulus ainda
lá se encontrava em animada palestra com os companheiros, conduziu
Lívia a um gabinete perfumado, onde se alinhavam preciosos vasos de
aromas do Oriente, saturados de fluidos sutis e entontecedores, e onde
Pilatos recebia, por vezes, a visita furtiva das mulheres de conduta
equívoca, convidadas a participar dos seus licenciosos prazeres.
Ignorando, por completo, o mecanismo de circunstâncias que a
conduziam a uma penosíssima situação, Lívia acompanhou o lictor ao
gabinete aludido, onde, embora estranhando a suntuosidade extravagante
do ambiente, se demorou alguns minutos, a sós, aguardando
ansiosamente o instante de implorar, de viva voz, ao procurador da Judeia
a sua prestigiosa interferência a favor do generoso Messias de Nazaré.
Nem ela, nem Sulpício, todavia, chegaram a perceber que uns olhos
perscrutadores os acompanharam com profundo interesse, desde o
exterior do edifício ao gabinete privado a que nos referimos.
Era Fúlvia, que, conhecendo semelhante apartamento do palácio,
surpreendera a esposa do senador, sob o disfarce daquela túnica humilde,
da vida rural, enchendo-se-lhe o coração de pavorosos ciúmes, ao verificar
aquela visita inesperada.
Enquanto Sulpício Tarquinius fazia um sinal familiar ao governador,
a que este atendeu de pron152
ROMANCE DE EMMANUEL
to, indo imediatamente ao seu encontro num vasto corredor, onde
murmuraram ambos algumas palavras em tom discreto, cientificando-se
Pilatos da almejada entrevista em particular, aquela maliciosa criatura
demandava alcovas do seu íntimo conhecimento, de maneira a certificarse,
positivamente, através dos reposteiros, da presença de Lívia na câmara
privada do governador, destinada às suas expansões licenciosas.
Certificada, em absoluto, do acontecimento, a caluniadora
antegozou o instante em que tomaria Públio pelas mãos, a fim de conduzilo
à visão direta do suposto adultério de sua mulher e, quando regressava
ao vasto salão, deixando transparecer levemente a satisfação sinistra da
sua alma, ainda ouviu Pilatos exclamar com delicadeza para os seus
convidados:
- Meus amigos, espero me concedam alguns minutos para atender a
uma entrevista privada e urgente, que eu não esperava neste momento.
Acredito que, consumada a condenação do Messias de Nazaré, batem já a
estas portas os que não tiveram coragem para defendê-lo publicamente,
no momento oportuno!. . Vamos ver!
E retirando-se com o assentimento unânime dos presentes, o
governador atingia o gabinete reservado, onde, eminentemente
surpreendido, encontrou o vulto nobre de Lívia, mais bela e mais sedutora
naqueles trajes despretensiosos e simples, e que lhe falou nestes termos:
- Senhor governador, embora sem o consentimento prévio de meu
marido, resolvi chegar até aqui, em virtude da urgência do assunto, a
suplicar o vosso amparo político para a absolvição do profeta de Nazaré.
Homem humilde e bom, caridoso e justo, que mal teria praticado para
morrer assim, de morte aviltante, entre dois ladrões? É por isso que,
conhecendo-o pessoalmente e tendo-o na conta de um inspirado do céu,
ouso invocar as vossas
153
HÁ DOIS MIL ANOS...
elevadas qualidades de homem público, em favor do acusado!...
Sua voz era trêmula, indicando as emoções que lhe iam nalma.
- Senhora - respondeu Pilatos, fazendo o possível para sensibilizar e
seduzir-lhe o coração com a fingida ternura de suas palavras -, tudo fiz
para evitar a Jesus a morte no madeiro infamante, vencendo todos os
meus escrúpulos de homem de governo, mas, infelizmente, tudo está
consumado. Nossa legislação foi vencida pelas iras da multidão
delinqüente, nas explosões injustificadas do seu ódio incompreensível.
- Então, não é licito esperarmos nenhuma providência mais a
beneficio desse homem caridoso e justo, condenado como vulgar
malfeitor? Será ele, então, crucificado pelo crime de praticar a caridade e
plantar a fé no coração dos seus semelhantes, que ainda não sabem
adquiri-la por si próprios?
- Infelizmente, assim é... - replicou Pilatos, contrafeito. - Tudo
fizemos a fim de evitar os desatinos da plebe amotinada, mas os meus
escrúpulos não conseguiram vencer, sendo obrigado a confirmar a pena
de Jesus, a contragosto.
Por um momento, entregou-se Lívia às suas meditações dolorosas,
como se estivesse inquirindo, a si mesma, qualquer providência nova a
adotar sem perda de um minuto.
Quanto ao governador, depois de imprimir uma pausa às suas
palavras, deixou que os instintos do homem surgissem, plenamente,
naquelas circunstâncias.
Aquele dia havia sido de lutas penosas e intensas. Singular
abatimento físico lhe dominava os centros mais poderosos da força
orgânica, mas, diante dos seus olhos habituados à conquista e, muitas
vezes, aos recursos da própria crueldade, estava aquela mulher, que lhe
resistira... Poderosa algema parecia imantá-lo à sua personalidade simples
e carinhosa, e ele, mais que nunca, desejou
154
ROMANCE DE EMMANUEL
possuí-la, tornando-a, como as outras, um instrumento de suas
transitórias paixões. O ambiente, sobretudo, conturbava-lhe as fontes mais
puras do raciocínio. Aquele gabinete era destinado, exclusivamente, às
suas extravagâncias noturnas, e fluidos entontecedores pairavam em
todos os seus escaninhos, embotando os mais nobres pensamentos.
Via a mulher ambicionada, perdida por alguns segundos em
graciosas cismas, diante da sua presença dominadora.
Aquela graça simples, saturada de generosidade quase infantil e
aliada aos olhos límpidos e profundos de madona do lar, obscureceu-lhe o
cavalheirismo que, por vezes, aflorava no modo brusco das suas injustiças
e crueldades de homem da vida particular e da vida pública.
Avançando como tomado por força incoercível, exclamou
inopinadamente, fazendo-lhe sentir o perigo da posição em que se
colocara:
- Nobre Lívia - começou ele, na inquietação de seus impuros
pensamentos -, nunca mais olvidei aquela noite, cheia de músicas e de
estrelas, em que vos revelei pela primeira vez a ardência do meu coração
apaixonado... Esquecei, por um momento, esses judeus incompreensíveis
e ouvi, ainda uma vez, a palavra sincera dos profundos sentimentos que
me inspirastes com as vossas virtudes e peregrina beleza!.
- Senhor!... - teve forças para exclamar a pobre senhora, procurando
aliviar-se da afronta.
Mas, o governador, com a ousadia dos homens impetuosos, não
teve outro gesto senão o de obedecer aos seus caprichos impulsivos,
tomando-lhe as mãos, atrevidamente.
Lívia, todavia, movimentando todas as suas energias, alcançou
recursos para se desvencilhar dos seus braços longos e fortes,
redargüindo, intrépida:
- Para trás, senhor! Acaso será esse o tratamento de um homem de
Estado para com uma
155
HÁ DOIS MIL ANOS...
cidadã romana e esposa de um senador ilustre do Império? E, ainda que
me faltassem todos esses títulos, que me deveriam dignificar aos vossos
olhos cúpidos e desumanos, suponho que não deveríeis faltar, neste
momento, com o comezinho dever de cavalheirismo respeitoso, que
qualquer homem é obrigado a dispensar a uma mulher!
O governador estacou ante aquele gesto heróico e imprevisto, tão
habituado estava ele aos mais avançados processos de sedução.
A resistência daquela mulher espicaçava os desejos de vencer-lhe o
orgulho nobre e a virtude incorruptível.
Tinha ímpetos de se atirar àquela criatura delicada e frágil, no
turbilhão de lascívia e voluptuosidade que lhe obumbravam o raciocínio;
no entanto, força incoercível parecia impor-se aos seus caprichos
perigosos de apaixonado, inutilizando-lhe as forças necessárias à
execução de semelhante cometimento.
Neste comenos, a esposa do senador, lançando-lhe um olhar
doloroso onde se podia ler toda a. extensão do seu sofrimento e do seu
desprezo em face do ultraje recebido, retirou-se profundamente
emocionada, com o cérebro fervilhante dos mais desencontrados
pensamentos.
Antes, porém, que a vejamos sair do gabinete, somos obrigados a
retroceder alguns minutos, quando Fúlvia solicitou ao sobrinho de seu
marido o obséquio de uma palavra em particular, pondo-o ao corrente de
tudo o que se passava.
O senador experimentou um choque terrível no coração,
pressentindo que a prevaricação da mulher estava prestes a confirmar-se
diante dos seus próprios olhos, e, contudo, hesitou ainda acreditar em
semelhante vilania.
- Lívia, aqui? - perguntou soturnamente à esposa do tio, dando a
entender, pela inflexão da voz, que tudo não passava de criminosa calúnia.
156
ROMANCE DE EMMANUEL
- Sim - exclamou Fúlvia, ansiosa por fornecer-lhe a prova tangível de
suas asserções -, ela está em colóquio com o governador, no seu
compartimento privado, sem ajuizar da situação e das circunstâncias em
que se verifica tal encontro, porque, afinal, Cláudia ainda está nesta casa
e, perante a lei, minha irmã é a esposa legitima de Pilatos, mal habituado
com os costumes dissolutos da Corte, de onde foi enviado para cá em
virtude de sérios incidentes desta mesma natureza!
Públio Lentulus arregalou os olhos, na sua ingenuidade, dando
guarida aos mais horríveis sentimentos, intoxicando-se com o veneno da
mais acerba desconfiança, em vista de todas as circunstâncias operarem
contra sua mulher, embora jogasse ele no assunto com os mais vastos
cabedais da sua tolerância e liberalidade.
Sua atitude de expectativa revelava ainda o máximo de
incredulidade, com respeito às acusações que ouvira, mas, observando a
caluniadora o seu angustiado silêncio, acudiu ansiosa, exclamando:
- Senador, acompanhai-me através destas salas e vos entregarei a
chave do enigma, porquanto verificareis a leviandade de vossa esposa,
com os vossos próprios olhos.
- Desvairais? - perguntou ele, com serenidade terrível. - Um chefe de
família da nossa estirpe social, a menos que uma confiança mais forte lhe
outorgue esse direito, não deve conhecer as intimidades domésticas de
uma casa que não seja a sua própria.
Percebendo que o golpe falhara, voltou Fúlvia a exclamar com a
mesma firmeza:
- Está bem, já que não desejais fugir aos vossos princípios,
aproximemo-nos de uma dessas janelas. Daqui mesmo, podereis observar
a veracidade de minhas palavras, com a retirada de Lívia dos apartamentos
privados deste palácio.
E quase a tomar o interlocutor pelas mãos, tal o abatimento moral
que se apossara dele, a
157
HÁ DOIS MIL ANOS...
mulher do pretor aproximou-se do parapeito de uma janela próxima,
seguida pelo senador, que a acompanhava, cambaleante.
Não foram necessários outros argumentos que melhor o
convencessem.
Chegados ao local preferido de Fúlvia, como posto de observação,
em poucos segundos viram abrir-se a porta do gabinete indicado, ao
mesmo tempo que Lívia se retirava, nos seus disfarces galileus, deixando
transparecer na fisionomia os sinais evidentes da sua emoção, como se
quisesse fugir de situação que a acabrunhava penosamente.
Públio Lentulus sentiu a alma dilacerada para sempre. Considerou,
num relance, que havia perdido todos os patrimônios de nobreza social e
política, de envolta com as aspirações mais sagradas do seu coração.
Diante da atitude de sua mulher, considerada por ele como indelével
ignominia que lhe infamava o nome para sempre, supôs-se o mais
desventurado dos homens. Todos os seus sonhos estavam agora mortos,
e perdidas, terrivelmente, todas as esperanças. Para o homem, a mulher
escolhida representa a base sagrada de todas as realizações da sua
personalidade nos embates da vida, e ele experimentou que essa base lhe
fugia desequilibrando-lhe o cérebro e o coração.
Contudo, nesse turbilhão de fantasmas da sua imaginação
superexcitada, que escarneciam de suas mentirosas venturas, lobrigou o
vulto suave e doce dos filhinhos, que o fitavam silenciosos e comovidos.
Um deles vagava no desconhecido, mas a filha esperava-lhe o carinho
paternal e deveria ser, doravante, a razão da sua vida e a força de todas as
suas esperanças.
- Que dizeis, agora - exclamou Fúlvia, triunfante, arrancando-o do
seu doloroso silêncio.
- Vencestes! - respondeu secamente, com a voz embargada de
emoção.
E, dando à expressão fisionômica o máximo de energia, voltou ao
salão extenso, a passos pesados e
158
ROMANCE DE EMMANUEL
soturnos, despedindo-se heroicamente dos amigos, a pretexto de leve
enxaqueca.
- Senador, esperai um momento. O governador ainda não voltou dos
seus aposentos particulares - exclamou um dos patrícios presentes.
- Muito agradecido! - disse Públio, gravemente. Mas os prezados
amigos hão-de desculpar a insistência, apresentando minhas despedidas e
agradecimentos ao nosso generoso anfitrião.
E, sem mais delongas, mandou preparar a liteira que o conduziria de
regresso ao lar, pelas mãos fortes dos escravos, de modo a proporcionar
algum repouso ao coração supliciado por emoções dolorosas e
inesquecíveis.
Enquanto o senador se retira profundamente contrariado,
acompanhemos Lívia, de volta à praça, a fim de notificar aos dois amigos o
resultado improfícuo da sua tentativa.
Profundas amarguras lhe pungiam o coração.
Jamais pensara, na sua generosidade simples e confiante, que o
procurador da Judeia pudesse receber-lhe a súplica com tamanha
demonstração de indiferença e impiedade pela sua situação de mulher.
Procurou refazer-se daquelas emoções, em se aproximando de Ana
e do tio, porquanto lhe competia ocultar aquele desgosto no mais íntimo
do coração.
Junto de ambos os companheiros humildes, da mesma crença,
deixou expandir a sua angústia, exclamando pesarosa:
- Ana, infelizmente tudo está perdido! A sentença foi consumada e
não há mais nenhum recurso!... O profeta carinhoso de Nazaré nunca mais
voltará a Cafarnaum para nos levar as suas consolações brandas e
amigas!... A cruz de hoje será o prêmio, deste mundo, à sua bondade sem
limites!...
Todos os três tinham os olhos orvalhados de lágrimas.
159
HÁ DOIS MIL ANOS...
- Faça-se, então, a vontade do Pai que está nos céus - exclamou a
serva, prorrompendo em soluços.
- Filhas - disse, porém, o ancião de Samaria, com o olhar profundo e
límpido, fito no céu, onde fulguravam as irradiações do sol ardente -, o
Messias nunca nos ocultou a verdade dos seus sacrifícios, dos martírios
que o aguardavam nestes sítios, a fim de nos ensinar que o seu reino não
está neste mundo! Nas sombras da minha velhice, estou apto a reconhecer
a grande realidade das suas palavras, porque honras e vanglórias,
mocidade e fortuna, bem como as alegrias passageiras do plano terrestre,
de nada valem, pois tudo aqui vem a ser ilusão que desaparece nos
abismos da dor e do tempo... A única realidade tangível é a de nossa alma
a caminho desse reino maravilhoso, cuja beleza e cuja luz nos foram
trazidas por suas lições inesquecíveis e carinhosas...
- Mas - obtemperou Ana, entre lágrimas -nunca mais veremos a
Jesus de Nazaré, confortando-nos o coração!...
- Que dizes, filha - exclamou Simeão, com firmeza. - Não sabes,
então, que o Mestre afiançou que a sua presença consoladora é sempre
inalterável entre os que se reúnem e se reunirão, neste mundo, em seu
nome? Regressando, agora, a Samaria, erguerei uma cruz à porta da nossa
choupana e reunirei, ali, a comunidade dos crentes que desejarem
continuar as amorosas tradições do Messias.
E, depois de uma pausa em que parecia despertar sob o peso de
pungentes preocupações, acentuou:
- Mas, não temos tempo a perder... Sigamos para o Gólgota... Vamos
receber, ainda uma vez, as bênçãos de Jesus!
- Muito grato me seria acompanhá-los - retrucou Lívia,
impressionada -; entretanto, urge volte a casa, onde me esperam os
cuidados com a
160
ROMANCE DE EMMANUEL
filha. Sei que hão-de relevar minha ausência, porque a verdade é que
estou, em pensamento, junto à cruz do Mestre, meditando nos seus
martírios e inomináveis padecimentos... Meu coração acompanhará essa
agonia indescritível, e que o Pai dos céus nos conceda a força precisa
para suportarmos corajosamente o angustioso transe!...
- Ide, senhora, que os vossos deveres de esposa e mãe são também
mais que sagrados - exclamou Simeão, carinhosamente.
E enquanto o velho e a sobrinha se dirigiam para o Calvário,
escalando as vias públicas que demandavam a colina, Lívia regressava ao
lar, apressadamente, buscando os caminhos mais curtos, através das
vicias estreitas, de modo a voltar, quanto antes, não só pela circunstância
inesperada de sair à rua em trajes diferentes, compelida pelos imperativos
do momento, mas também porque inexplicável angústia lhe azorragava o
coração, fazendo-lhe experimentar uma necessidade mais forte de preces
e meditações.
Chegando ao lar, seu primeiro cuidado foi retomar a túnica habitual,
buscando um recanto mais silencioso dos seus apartamentos, para orar
com fervor ao Pai de infinita misericórdia.
Daí a minutos, ouviu os ruídos indicativos da volta do esposo, que,
notou, se recolhia ao gabinete particular, fechando a porta com estrépito.
Lembrou-se, então, que de sua casa era possível avistar ao longe os
movimentos do Gólgota, procurando um ângulo de janela, de onde
conseguisse contemplar os penosos sacrifícios do Mestre de Nazaré.
Bastou buscasse fazê-lo, para que enxergasse nas eminências do monte o
grande ajuntamento de povo, enquanto levantavam as três cruzes
famosas, daquele dia inesquecível.
A colina era estéril, sem beleza, e através da distância podiam seus
olhos lobrigar os caminhos poeirentos e a paisagem desolada e árida, sob
um sol causticante.
161
HÁ DOIS MIL ANOS...
Lívia orava com toda a intensidade emotiva do seu espírito,
dominada por angustiosos pensamentos.
À sua visão espiritual, surgiram ainda os quadros suaves e
encantadores do "mar" da Galileia, conhecendo que à memória lhe revinha
aquele crepúsculo inolvidável, quando, entre criaturas humildes e
sofredoras, aguardava o doce momento de ouvir a confortadora palavra do
Messias, pela primeira vez. Via ainda a tosca barca de Simão, encostandose
às flores mimosas das margens, enquanto a renda branca das espumas
lambia os seixos claros da praia... Jesus ali estava, junto da multidão dos
desesperados e desiludidos, com seus grandes olhos ternos e profundos...
Todavia, aquela cruz que se levantava, no monte da Caveira, trazialhe
o coração em amargosas cismas.
Depois de orar e meditar longamente, examinou de longe os três
madeiros, presumindo escutar o vozeio da multidão criminosa, que se
acotovelava junto à cruz do Mestre, em terríveis impropérios.
De repente, sentiu-se tocada por uma onda de consolações
indefiníveis. Figurava-se-lhe que o ar sufocante de Jerusalém se havia
povoado de vibrações melodiosas e intraduzíveis. Extasiada, observou, na
retina espiritual, que a grande cruz do Calvário estava cercada de luzes
numerosas.
Ao calor invulgar daquele dia, nuvens escuras se haviam
concentrado na atmosfera, prenunciando tempestade. Em poucos minutos,
toda a abóbada celeste permanecia represada de sombras espessas. No
entanto, naquele momento, Lívia notara que se havia rasgado um longo
caminho entre o Céu e a Terra, por onde desciam ao Gólgota legiões de
seres graciosos e alados. Concentrando-se, aos milhares, ao redor do
madeiro, pareciam transformar a cruz do Mestre em fonte de claridades
perenes e radiosas.
Atraída por aquele imenso foco de luz resplandecente, sentiu que
sua alma desligada do corpo
162
ROMANCE DE EMMANUEL
carnal se transportava ao cume do Calvário, a fim de prestar a Jesus o
último preito do seu devotamento. Sim! via, agora, o Messias de Nazaré
rodeado dos seus lúcidos mensageiros e das legiões poderosas de seus
anjos. Jamais supusera vê-lo tão divinizado e tão belo, de olhos voltados
para o firmamento, como em visão de gloriosas beatitudes.
Ela o contemplou, por sua vez, tocada de sua maravilhosa luz, alheia
a todos os rumores que a rodeavam, implorando-lhe fortaleza, resignação,
esperança e misericórdia.
Em dado instante, seu espírito sentiu-se banhado de consolação
indefinível. Como se estivesse empolgada pela maior emoção de sua vida.
notou que o Mestre desviara levemente o olhar, pousando-o nela, numa
onda de amor intraduzível e de luminosa ternura. Aqueles olhos serenos e
misericordiosos, nos tormentos extremos da agonia, pareciam dizer-lhe: -
"Filha, aguarda as claridades eternas do meu reino, porque, na Terra, é
assim que todos nós deveremos morrer!..."
Desejava responder às exortações suaves do Messias, mas seu
coração estava sufocado numa onda de radiosa espiritualidade. Todavia,
no íntimo, afirmou, como se estivesse falando para si mesma: - "Sim, é
desse modo que deveremos morrer!... Jesus, concedei-me alento,
resignação e esperança para cumprir os vossos ensinamentos, para
alcançar um dia o vosso reino de amor e de justiça!..."
Lágrimas copiosas banhavam-lhe o rosto, naquela visão beatífica e
maravilhosa.
Nesse momento, porém, a porta abriu-se com estrépito e a voz
soturna e desesperada do marido vibrou no ar abafado, despertando-a
bruscamente, arrancando-a de suas visões consoladoras.
- Lívia! - bradou ele, como se estivesse tocado por comoções
decisivas e desesperadas.
163
HÁ DOIS MIL ANOS...
Públio Lentulus, regressando ao lar, encaminhou-se imediatamente
ao gabinete, onde se deixou ficar por muito tempo, engolfado em atrozes
pensamentos. Depois de sentir o cérebro trabalhado pelas mais
antagônicas resoluções, lembrou-se de que deveria suplicar a piedade dos
deuses para os seus penosos transes. Dirigiu-se ao altar doméstico onde
repousavam os símbolos inanimados de suas divindades familiares, mas,
enquanto Lívia alcançara o precioso conforto, aceitando no coração os
ensinos de Jesus com o perdão, a humildade e a prática do bem, debalde o
senador procurou esclarecimento e consolo, elevando as suas orações
aos pés da estátua de Júpiter, impassível e orgulhoso. Debalde suplicou a
inspiração de suas divindades domésticas, porque esses deuses eram a
tradição corporificada do imperialismo da sua raça, tradição que se
constituía de vaidade e de orgulho, de egoísmo e de ambição.
Foi assim que, intoxicado pelo ciúme, procurou a esposa, sem mais
delongas, a fim de cuspir-lhe em rosto todo o desprezo da sua amargurada
desesperação.
Ao chamá-la, bruscamente, observou que seus olhos semicerrados
estavam cheios de lágrimas, como a contemplar alguma visão espiritual
inacessível à sua observação. Jamais Lívia lhe parecera tão espiritualizada
e tão bela, como naquele instante; mas o demônio da calúnia lhe fez sentir,
imediatamente, que aquele pranto nada representava senão sinal de
remorso e compunção ante a falta cometida, ciente, como deveria achar-se
a esposa, da sua presença no palácio governamental, depreendendo-se daí
que ela deveria esperar a possibilidade da sua severa punição.
Arrancada ao seu êxtase pela voz vibrante do marido, a pobre
senhora observou que a sua visão se desvanecera inteiramente, e que o
céu de Jerusalém fôra invadido por intensa escuridão, ouvindo-se os
ribombos formidáveis de trovões longí164
ROMANCE DE EMMANUEL
quos, enquanto relâmpagos terríveis riscavam a atmosfera em todas as
direções.
- Lívia - exclamou o senador, com voz forte e pausada, dando a
entender o esforço que despendia para dominar o complexo de suas
emoções -, as lágrimas de arrependimento são inúteis neste momento
doloroso dos nossos destinos, porque todos os laços de afetividade
comum, que nos uniam, estão agora rotos para sempre...
- Mas, que é isso? - pôde ela dizer, revelando o pavor que tais
palavras lhe produziam.
- Nem mais uma palavra - revidou o senador, pálido de cólera, dentro
de uma serenidade feroz e implacável -, observei, com os próprios olhos, o
seu nefando delito e agora conheço a finalidade dos seus disfarces
humildes de galileia... Ouvir-me-á a senhora até ao fim, eximindo-se de
qualquer justificativa, porque uma traição como a sua só poderá encontrar
justo castigo no silêncio profundo da morte.
Mas, não quero matá-la. Minha formação moral não se compadece
com o crime. Não porque haja piedade em minha alma, à vista do possível
arrependimento do seu coração, no tempo oportuno, mas porque tenho
ainda uma filha sobre cuja fronte recairia o meu gesto de crueldade contra
a sua felonia, que basta para nos tornar infelizes por toda a vida...
Homem honesto e pronto a desafrontar-me de qualquer ultraje, tenho
muito amor ao meu nome e ás tradições de minha família, de modo a me
não tornar um pai desnaturado e criminoso.
Poderia abandoná-la para sempre, na consideração do seu ato de
extrema deslealdade, porém os servos desta casa se alimentam
igualmente à minha mesa, e, sem reconhecer os outros títulos que me
ligavam à senhora, na intimidade doméstica, vejo ainda na sua pessoa a
mãe de meus filhos desventurados. É por isso que, doravante, desprezo,
em face das provas palpáveis da sua desonestidade,
165
HÁ DOIS MIL ANOS...
neste dia nefasto do meu destino, todas as expressões morais da sua
personalidade indigna, para conservar nesta casa, tão somente, a sua
expressão de maternidade, que me habituei a respeitar nos irracionais
mais humildes.
Os olhos súplices da caluniada deixavam entrever os indizíveis
martírios que lhe dilaceravam o coração carinhoso e sensibilíssimo.
Ajoelhara-se aos pés do esposo, com humildade, enquanto lágrimas
dolorosas lhe rolavam das faces pálidas.
Lembrava-se Lívia, então, de Jesus nos seus intraduzíveis
padecimentos. Sim... ela recordava as suas palavras e estava pronta para o
sacrifício. No meio de suas dores, parecia sentir ainda o gosto daquele pão
de vida, abençoado por suas divinas mãos, e figurava-se lavada de todas
as mundanas preocupações. A idéia do reino dos céus, onde todos os
aflitos são consolados, anestesiava-lhe o coração dolorido, nas suas
primeiras reflexões a respeito da calúnia de que era vítima o seu espírito
fustigado pelas provas aspérrimas.
Não obstante essa atitude de serena humildade, o senador
continuou no auge da angústia moral:
- Dei-lhe tudo que possuía de mais puro e mais sagrado neste
mundo, na esperança de que correspondesse aos meus ideais mais
sublimes; entretanto, relegando todos os deveres que lhe competiam, não
vacilou em derramar sobre nós um punhado de lama... Preferiu, ao
convívio do meu coração, os costumes dissolutos desta época de
criaturas irresponsáveis, no capítulo da família, resvalando para o
desfiladeiro que conduz a mulher aos abismos do crime e da impiedade.
Mas ouça bem minhas palavras que assinalam os mais terríveis
desgostos do meu coração!
Nunca mais se afastará dos labores domésticos, das obrigações
diárias de minha casa. Mais um ato, com que provoque as derradeiras
reservas
166
ROMANCE DE EMMANUEL
da minha tolerância, não deverá esperar outra providência que não seja a
morte.
Não me solicite as mãos honestas para um ato de tal natureza. Se as
tradições familiares desapareceram no âmago do seu espírito, continuam
elas cada vez mais vivas em minhalma, que as deseja cultivar
incessantemente no santuário de minhas recordações mais queridas. Viva
com o seu pensamento na ignomínia, mas abstenha-se de zombar
publicamente dos meus sentimentos mais sagrados, mesmo porque, a
paciência e a liberdade também têm os seus limites.
Saberei ressurgir desta queda em que as suas leviandades me
atiraram!...
De ora em diante, a senhora será nesta casa apenas uma serva,
considerando a função maternal que hoje a exime da morte; mas, não
intervenha na solução de qualquer problema educativo de minha filha.
Saberei conduzi-la sem o seu concurso e buscarei o filhinho perdido talvez
pela sua inconsciência criminosa, até o fim de meus dias. Concentrarei
nos filhos a parcela imensa de amor que lhe reservara, dentro da
generosidade da minha confiança, porquanto, doravante, não me deve
procurar com a intimidade da esposa, que não soube ser, pela sua
injustificável deslealdade, mas com o respeito que uma escrava deve aos
seus senhores!...
Enquanto se verificava uma ligeira pausa na palavra acrimoniosa e
amargurada do senador, Lívia dirigiu-lhe um olhar de angustia suprema.
Desejava falar-lhe como dantes, entregando-lhe o coração sensível e
carinhoso; todavia, conhecendo-lhe o temperamento impulsivo, adivinhou
a inutilidade de qualquer tentativa para justificar-se.
Passadas as primeiras reflexões e ouvindo, amargurada de dor,
aquela terrível insinuação acerca do desaparecimento do filhinho, deixou
vagar no coração vacilações injustificáveis e numerosas. Ante aquelas
calúnias que a faziam tão desditosa, chegava a pensar se as boas ações
não seriam vistas
167
HÁ DOIS MIL ANOS...
por aquele Pai de infinita bondade, que ela acreditava velar, dos céus, por
todos sofredores, de conformidade com as promessas sublimes do
Messias Nazareno. Não guardara ela uma conduta nobre e exemplar, como
mãe dedicada e esposa carinhosa? Todo o seu coração não estava posto
em tributos de esperança e de fé naquele reino de soberana justiça, que se
localizava fora da vida material? Além disso, sua ida precipitada a Pilatos,
sem a audiência prévia do marido, fôra tão somente com o elevado
propósito de salvar a Jesus de Nazaré da morte infamante. Onde o socorro
sobrenatural que não chegava para esclarecer a penosa situação dela e
mostrar tal injustiça?
Lágrimas angustiosas enevoavam-lhe os olhos cansados e abatidos.
Mas antes que o marido recomeçasse as acusações, viu-se de novo
defronte da cruz, em pensamento.
Uma brisa suave parecia amenizar as úlceras que o libelo do esposo
lhe abrira no coração. Uma voz, que lhe falava aos refolhos mais íntimos
da consciência, lembrou-lhe ao espírito sensível que o Mestre de Nazaré
também era inocente e expirara, naquele dia, na cruz, sob os insultos de
algozes impiedosos. E ele era justo, bom e compassivo. Daqueles a quem
mais havia amado, recebera a traição e o abandono na hora extrema do
testemunho e, de quantos havia servido com a sua caridade e o seu amor,
tinha recebido os espinhos envenenados da mais acerba ingratidão. Ante a
visão dos seus martírios infinitos, Lívia consolidou a sua fé e rogou ao Pai
Celestial lhe concedesse a intrepidez necessária para vencer as provações
aspérrimas da vida.
Suas meditações angustiosas haviam durado um momento. Um
minuto apenas, após o qual, continuou Públio Lentulus com voz
desesperada:
- Aguardarei mais dois dias, nas pesquisas de meu filhinho
desventurado! Decorridas estas poucas
168
ROMANCE DE EMMANUEL
horas, voltarei a Cafarnaum para afrontar a passagem do tempo. . Ficarei
neste cenário maldito, enquanto for necessário e, quanto à senhora,
recolha-se doravante em sua própria indignidade, porque, com o mesmo
ímpeto generoso com que lhe poupo a existência neste momento, não
vacilarei em lhe infligir a derradeira punição no momento oportuno!...
E, abrindo a porta de saída, que estremecera aos ribombos do
trovão, exclamou com terrível acento:
- Lívia, este momento doloroso assinala a perpétua separação dos
nossos destinos. Não ouse transpor a fronteira que nos isola um do outro,
para sempre, no mesmo lar e dentro da mesma vida, porque um gesto
desses pode significar a sua inapelável sentença de morte.
Atrás dele, fechara-se a porta com estrépito, abafado pelos rumores
da tempestade.
Jerusalém estava sob um verdadeiro ciclone de destruição, que ia
deixar, após sua passagem, sinal de ruína, desolação e morte.
Ficando só, Lívia chorou amargamente.
Enquanto a atmosfera se lavava com a chuva torrencial que descia a
cântaros no fragor das trovoadas, também a sua alma se despia das
ilusões amargas e purificadoras.
Sim... estava só e profundamente desventurada.
Doravante, não poderia contar com o amparo do marido, nem com o
afeto suave da filhinha, mas um anjo de serenidade velava à sua cabeceira,
com a doçura das sentinelas que nunca se afastam do seu posto de amor,
de redenção e de piedade. E foi esse Espírito luminoso que, fazendo
gotejar o bálsamo de esperança no cálice do seu coração angustiado, deulhe
a sentir que ainda possuía muito: - o tesouro da fé, que a unia a Jesus,
ao Messias da renúncia e da salvação, a esperá-la em seu reino de luz e de
misericórdia.
169
X
O Apóstolo da Samaria
No dia seguinte, Públio Lentulus incentivou as pesquisas do
filhinho, entre quantos peregrinavam nas festas da Páscoa, em Jerusalém,
instituindo o prêmio de um Grande Sestércio (1), ou sejam dois mil e
quinhentos asses, para quem apresentasse aos seus servos a criança
desaparecida.
Não devemos esquecer que a criada Sêmele, bem como suas
companheiras de serviço foram submetidas ao mais rigoroso inquérito,
por ocasião do castigo aos servos imprevidentes, encarregados da
vigilância noturna em casa do senador.
Públio não admitia castigos físicos às mulheres, mas, no caso
misterioso do desaparecimento do filhinho, submeteu as criadas a um
interrogatório francamente impiedoso.
Inútil declarar que Sêmele protestara a mais absoluta inocência,
nada deixando transparecer que pudesse comprometer sua conduta.
Entretanto, as três servas que mais diretamente cuidavam do
pequeno, entre as quais estava
__________
(1) Mil sestércios.
170
ROMANCE DE EMMANUEL
ela incluída, foram obrigadas a colaborar com os escravos na procura de
Marcus, pelas praças e ruas de Jerusalém, embora tivessem suas horas
diárias consagradas ao descanso. Essas horas, aproveitava-as Sêmele
para visitar ou rever relações amigas, passando a maior parte do tempo no
sítio onde André cultivava as suas oliveiras e vinhedos frondosos, a pouca
distância da estrada para os centros principais.
Nesse dia, vamos encontrá-la ai em animada palestra com o raptor e
sua mulher, enquanto a criança dormitava ao canto de um compartimento.
- Com quê então, o senador instituiu o prêmio de um Grande
Sestércio a quem lhe devolva a criancinha? - pergunta André de Gioras,
admirado.
- É verdade - exclamou Sêmele, pensativa. E, na realidade, trata-se
de grande soma em dinheiro romano, que facilmente ninguém ganhará
neste mundo.
- Se não fosse o meu justo e ardente desejo de vingança - replicou o
raptor com o seu malicioso sorriso -, era o caso de irmos abocanhar essa
respeitável quantia. Mas, deixa estar que não precisamos de semelhante
dinheiro. Nada necessitamos desses malditos patrícios!
Sêmele escutava-o indiferente e quase completamente alheia à
conversa; entretanto, o interlocutor não perdia de vista as características
fisionômicas de sua cúmplice, como se tentasse descobrir no seu modo
simples e humilde algum pensamento reservado.
Foi assim que, no intuito de lhe sondar a atitude psicológica, disse
em tom aparentemente calmo e despreocupado, como a inquirir dos seus
propósitos mais secretos:
- Sêmele, quais são as últimas noticias de Benjamim?
- Ora, Benjamim - respondeu ela, aludindo ao noivo - ainda não se
resolveu a marcar o casa171
HÁ DOIS MIL ANOS...
mento, em definitivo, atento às nossas inúmeras dificuldades.
Como não ignora, todo o meu desejo no trabalho se resume na
consecução do nosso ideal de adquirir aquela casinha de Betânia, já sua
conhecida, e tão logo venhamos a conseguir nosso intento estaremos
unidos para sempre.
- Ainda bem - disse André, com a atitude psicológica de quem
encontrara a chave de um enigma -, com tempo haverão de conseguir todo
o necessário à ventura de ambos. Da minha parte, pode ficar descansada,
porque tudo farei por auxiliá-la paternalmente.
- Muito grata! - exclamou a moça, reconhecida. - Agora há-de permitir
que volte ao trabalho, porque as horas parecem adiantadas.
- Ainda não - falou André resolutamente -, espere um momento.
Quero dar-lhe a provar do nosso vinho velho, aberto hoje somente para
comemorar a circunstância feliz de nos acharmos com vida, depois do
medonho temporal de ontem!
E, correndo ao interior, penetrou na adega, onde tomou de uma bilha
de vinho espumante e claro, deitando-o, com fartura, numa taça antiga. Em
seguida, foi a um quarto contíguo, de onde trouxe um tubo pequenino,
deixando cair na taça algumas gotas do conteúdo, monologando baixinho:
- Ah! Sêmele, bem poderias viver, se não surgisse esse prêmio
maldito, que te condena à morte!... Benjamim... o casamento é uma
situação de amargurosa pobreza. - Uma soma de mil sestércios constitui
tentação a que não poderia resistir o espírito mais bem intencionado e
mais puro... Enquanto foram as aperturas e outros castigos, estava certo,
mas agora é o dinheiro e o dinheiro costuma condenar as criaturas
humanas à morte!...
E, misturando o tóxico violento no vinho que espumava, continuou
resmungando:
172
ROMANCE DE EMMANUEL
- Daqui a seis horas minha pobre amiga estará penetrando o reino
das sombras... Que fazer? Nada me resta senão desejar-lhe boa viagem! E
nunca mais alguém saberá, neste mundo, que em minha casa existe um
escravo com o sangue nobre dos aristocratas do Império Romano!...
Em dois minutos a desventurada serva do senador ingeria satisfeita
o conteúdo da taça, agradecendo a sinistra gentileza com palavras
comovidas.
Da porta de sua vivenda empedrada, observou André os passos
derradeiros da sua cúmplice, nas derradeiras curvas do caminho.
Ninguém mais pleitearia o Grande Sestércio oferecido pela
desesperação de Lentulus, porque, precisamente à noitinha, quase às
dezenove horas, Sêmele experimentou uma sensação de súbito mal-estar,
recolhendo-se ao leito imediatamente.
Suores abundantes e frios lavaram-lhe as faces já descoradas, onde
se notava o palor característico da morte.
Ana, que já havia regressado, compungida, aos afazeres
domésticos, foi chamada à pressa, a fim de ministrar-lhe os socorros
precisos, encontrando-a, porém, no auge da aflição que assinala os
moribundos prestes a se desvencilharem do cárcere da matéria.
- Ana... - exclamou a agonizante, com voz sumida -, eu morro... mas
tenho a... consciência... pesada... intranqüila...
- Sêmele, que é isso? - replicou a outra, fundamente comovida.
Confiemos em Deus, nosso Pai Celestial, e confiemos em Jesus, que ainda
ontem nos contemplava da cruz dos seus sofrimentos, com um olhar de
infinita piedade!
- Sinto... que é... tarde... - murmurou a agonizante, nas ânsias da
morte -, eu... apenas... queria... um perdão...
Todavia, a voz entrecortada e rouca não pôde continuar. Um soluço
mais forte abafara as últi173
HÁ DOIS MIL ANOS...
mas palavras, enquanto o rosto se cobria de tons violáceos, como se o
coração houvesse parado instantaneamente, estringido por incontrastável
força.
Ana compreendeu que era o fim e suplicou a Jesus recebesse em
seu reino misericordioso a alma da companheira, perdoando-lhe as faltas
graves que, por certo, haviam dado motivo às palavras angustiosas dos
últimos momentos.
Chamado um médico ao exame cadavérico, verificou, no empirismo
da sua ciência, que Sêmele expirara por deficiência do sistema cardíaco e,
longe de se descobrir a verdadeira causa daquele fato inesperado, o
segredo de André de Gioras se envolvia nas sombras espessas do túmulo.
Ana e Lívia tiveram ensejo de trocar impressões sobre o doloroso
acontecimento, mas ambas, embora a funda impressão que lhes causavam
as derradeiras palavras da morta, encaravam a sua passagem para a outra
vida, na conta dessas fatalidades irremediáveis.
Públio Lentulus, em seguida a esse fato, apressou o regresso à
vivenda de Cafarnaum, que adquirira ao antigo dono, em caráter definitivo,
prevendo a possibilidade de longa permanência em tais lugares. O
regresso foi triste, jornada trabalhosa e sem esperanças.
Os servos numerosos não chegaram a perceber a profunda
divergência agora existente entre ele e a esposa, e foi assim que,
verdadeiramente separados pelo coração, continuaram no lar a mesma
tradição de respeito perante os subordinados.
Depois de alguns dias de sua segunda instalação na cidade
próspera e alegre onde Jesus tantas vezes fizera soar doces e divinas
palavras, o senador preparou copioso expediente para o amigo FIamínio,
bem como para outros elementos do Senado, enviando Comênio a Roma,
como portador de sua inteira confiança.
Odiando a Palestina, que tantas e tão amargas provações lhe
reservara, mas preso a ela pelo desa174
ROMANCE DE EMMANUEL
parecimento misterioso do pequenino Marcus, o senador solicitava a
Flamínio a sua intervenção particular para que seu tio Sálvio regressasse à
sede dos seus serviços na Capital do Império, tentando livrar-se da
presença de Fúlvia naqueles lugares, porquanto lhe dizia o coração, na
intimidade do pensamento, que aquela mulher tinha uma influência nefasta
no seu destino e no de sua família. Ao mesmo tempo, saturado de terrível
aversão pela personalidade de Pôncio Pilatos, punha o amigo distante a
par de numerosos escândalos administrativos que ele, após o incidente da
Páscoa, resolvera corrigir com o máximo de severidade. Prometia, então, a
Flamínio Severus, conhecer mais de perto as necessidades da província, a
fim de que as autoridades romanas ficassem cientes de graves
ocorrências na administração, de modo que, em tempo oportuno, fosse o
governador removido para outro setor do Império, e prometendo
relacionar, sem demora, todas as injustiças da atuação de Pilatos na vida
pública, em vista das reclamações reiteradas e consecutivas que lhe
chegavam aos ouvidos, de todos os recantos da província.
Nessas cartas particulares pedia ainda, ao amigo, as providências
precisas, a fim de que lhe fosse enviado um professor para a filhinha,
abatendo-se, contudo, de referir-se aos dolorosos dramas da vida privada,
com exceção do caso do filhinho, por ele citado nesses documentos como
causa única da sua demora indefinita, em tais lugares.
Comênio partiu de Jope, com o máximo de precaução, obedecendo
rigorosamente às suas ordens e atingindo Roma daí a algum tempo, onde
faria chegar aquelas notícias às mãos dos seus legítimos destinatários.
Em Cafarnaum, a vida corria triste e silenciosa.
Públio apegara-se ao seu arquivo volumoso, aos seus processos,
aos seus estudos e às suas
175
HÁ DOIS MIL ANOS...
meditações, preparando os planos educativos da filha ou organizando
projetos concernentes às suas atividades futuras, fazendo o possível para
reerguer-se do abatimento moral em que mergulhara com os dolorosos
sucessos de Jerusalém.
Quanto a Lívia, esta, conhecendo a inflexibilidade do caráter
orgulhoso do marido, e sabendo que todas as circunstâncias aparentavam
a sua culpa, encontrara na alma dedicada da serva uma confidente
extremosa no afeto, vivendo quase permanentemente mergulhada em
orações sucessivas e fervorosas. Os sofrimentos experimentados
patentearam-se-lhe no rosto, revelando profundos vestígios nos sulcos da
face descorada. Os olhos, todavia, demonstrando a têmpera e o vigor da
fé, clareavam-lhe as expressões fisionômicas de brilho singular, apesar do
seu visível abatimento.
Em Cafarnaum, os seguidores do Mestre de Nazaré organizaram
imediatamente uma grande comunidade de crentes do Messias, tornandose
muitos em apóstolos abnegados de sua doutrina de renúncia, de
sacrifício e de redenção. Alguns pregavam, como Ele, na praça pública,
enquanto outros curavam os enfermos em seu nome. Criaturas rústicas
haviam sido tomadas, estranhamente, do mais alto sopro de inteligência e
inspiração celeste, porque ensinavam com a maior clareza as tradições de
Jesus, organizando-se com a palavra desses apóstolos os pródromos do
Evangelho escrito, que ficaria mais tarde no mundo como a mensagem do
Salvador da Terra a todas as raças, povos e nações do planeta, qual
luminoso roteiro das almas para o Céu.
Todos quantos se convertiam à idéia nova, confessavam na praça
pública os erros da sua vida, em sinal da humildade que lhes era exigida,
portas a dentro da comunidade cristã. E para que o meigo profeta de
Nazaré jamais fosse esquecido em seus martírios redentores no Calvário,
o povo
176
ROMANCE DE EMMANUEL
simples e humilde, de então, organizou o culto da cruz, crendo fosse essa
a melhor homenagem à memória de Jesus Nazareno.
Lívia e Ana, no seu profundo amor ao Messias, não escaparam a
essa adesão natural às tradições populares. A cruz era objeto de toda a
sua veneração e absoluto respeito, não obstante representar. naquele
tempo, o instrumento de punição para todos os criminosos e celerados.
Ana continuou a freqüentar as margens do lago, onde alguns
apóstolos do Senhor prosseguiam cultivando as suas lições divinas, junto
dos sofredores deserdados da sorte. E era comum verem-se esses antigos
companheiros e ouvintes do Messias, como pegureiros humildes,
atravessando estradas agrestes, no mais absoluto desconforto, a fim de
levarem a todos os homens as palavras consoladoras da Boa Nova. Tipos
impressionantes de homens simples e abnegados percorriam os mais
longos e escabrosos caminhos, de vestes rotas e calçando alpercatas
grosseiras, pregando, porém, com perfeição e sentimento, as verdades de
Jesus, como se as suas frontes humildes estivessem tocadas da graça
divina. Para muitos deles, o mundo não passava da Judeia ou da Síria;
mas a realidade é que as suas palavras desassombradas e serenas iam
permanecer no mundo para todos os séculos.
Mais de um mês decorrera sobre a Páscoa de 33, quando o senador,
por uma tarde formosa e quente da Galileia, se aproximou da esposa para
lhe dizer dos seus novos propósitos:
- Lívia - começou ele, reservado -, tenho a comunicar-lhe que
pretendo viajar algum tempo, afastando-me desta casa talvez por dois
meses, em cumprimento dos meus deveres de emissário do Imperador, em
condições especiais nesta província.
Como esta viagem se verificará através de pontos numerosos,
porquanto tenciono estacionar um pouco em todas as cidades do
itinerário, até Jerusalém, não me é possível levá-la em minha
177
HÁ DOIS MIL ANOS...
companhia, deixando-a, neste caso, como guardiã de minha filha.
Como sabe, nada mais existe entre nós que lhe outorgue o direito de
conhecer minhas preocupações mais íntimas; todavia, renovo minhas
palavras do dia fatal do nosso rompimento afetivo. Conservada nesta casa,
apenas pela sua tarefa maternal, confio-lhe durante minha ausência a
guarda de Flávia, até que chegue de Roma o velho professor que pedi a
Flamínio.
Desejo firmemente acredite na confiança que deponho no seu
propósito de regeneração, como mãe de família, e que procure
restabelecer sua idoneidade que, outrora, não lhe negaria em tais
circunstâncias, e espero, assim, se abstenha de qualquer ato indigno, que
venha a perder minha pobre filha para sempre.
- Públio!... - pode ainda exclamar a esposa do senador, aflitamente,
tentando aproveitar aquele rápido minuto de serenidade do marido, a fim
de se defender das calúnias que lhe eram assacadas pelas mais
complicadas circunstâncias; mas, afastando-se repentinamente, fechado
na sua severidade orgulhosa, o senador não lhe deu tempo de continuar,
integrando-a, cada vez mais, no conhecimento da sua amargurada
situação dentro do lar.
Passada uma semana, partia ele para a sua viagem aventurosa.
Animavam-no, acima de tudo, o desejo de aliviar o coração de tantos
pesares, a tentativa da procura do filhinho desaparecido e o objetivo de
catalogar os erros e injustiças da administração de Pilatos, de modo a
alijá-lo dos poderes públicos na Palestina, em tempo oportuno.
Na sua resolução, todavia, pairava um erro grave, cujas
conseqüências dolorosas não conseguira ou não pudera prever no seu
íntimo atribulado. A circunstância de deixar esposa e filha expostas aos
perigos de uma região, onde eram
178
ROMANCE DE EMMANUEL
consideradas como intrusas, devia ser examinada mais detidamente pela
sua visão de homem prático Além disso, ele não podia contar, nessa
ausência, com a dedicação vigilante de Comênio, em viagem com destino
a Roma, onde o conduziam as determinações do patrão e leal amigo.
Todas essas preocupações andavam no espírito de Lívia, dotada,
como mulher, de sentimento mais apurado e mais justo, no plano das
conjeturas e previsões.
Foi assim, de alma aflita, que viu partir o marido, embora houvesse
ele recomendado a numerosos servos o máximo de vigilância nos
trabalhos da casa, junto aos seus familiares.
Festividades solenes foram determinadas por Herodes, em
Tiberíades, previamente avisado pelo senador, a respeito de sua visita
pessoal àquela cidade, que representava a primeira etapa da sua longa
excursão. Todas as localidades de maior destaque constavam como
pontos de parada da caravana, recebendo Públio, em todas elas, as mais
expressivas homenagens das administrações e contingentes de escolta e
servos inúmeros, que lhe auxiliavam os serviços, naquela demorada
excursão através das unidades políticas de menor importância, na
Palestina.
Devemos consignar, porém, que Sulpício Tarquinius se encontrava
justamente em missão junto de Ântipas, quando da festiva chegada de
Públio Lentulus à grande cidade da Galileia. Procurou, todavia, não se
fazer notado pelo senador, regressando no mesmo dia a Jerusalém, onde
vamos encontrá-lo em conferência íntima com o governador, nestes
termos:
- Sabeis que o senador Lentulus - dizia Sulpício, com o prazer de
quem dá uma notícia desejada e interessante - dispôs-se a efetuar longa
viagem por toda a província?
- Quê? - fez Pilatos grandemente surpreendido.
179
HÁ DOIS MIL ANOS...
- Pois é verdade. Deixei-o em Tiberíades, de onde se dirigirá para
Sebaste em breves dias, crendo mesmo, segundo o programa da viagem,
que pude conhecer graças ao concurso de um amigo, que não voltará a
Cafarnaum nestes quarenta dias.
- Que intuito terá o senador com viagem tão incômoda e sem
atrativo? Alguma determinação secreta da sede do Império? - inquiriu
Pilatos, receoso de alguma punição aos seus atos injustos na
administração política da província.
Mas, após alguns segundos de meditação, como se o homem
privado sobrepujasse as cogitações do homem público, perguntou ao
lictor, com interesse:
- E a esposa? Não o acompanhou? Teria o senador a coragem de
deixá-la só, entregue às surpresas deste pais, onde se aninham tantos
malfeitores?
- Reconhecendo que teríeis interesse em tais informes - tornou
Sulpício, com fingida dedicação e satisfeita malícia -, busquei inteirar-me
do assunto com um amigo que segue o viajante, como elemento de sua
guarda pessoal, vindo a saber que a senhora Lívia ficou em Cafarnaum, na
companhia da filha, e ali aguardará o regresso do esposo.
- Sulpício - exclamou Pilatos, pensativo -, suponho não ignoras
minha simpatia pela adorável criatura a que nos referimos...
- Bem o sei, mesmo porque, fui eu próprio, como deveis estar
lembrado, que a introduzi no vosso gabinete particular, não há muito
tempo.
- É verdade!
- Porque não aproveitais este ensejo para uma visita pessoal a
Cafarnaum? - perguntou o lictor, com segundas intenções, mas sem ferir
diretamente o melindroso assunto.
- Por Júpiter! - redargüiu Pilatos, satisfeito. - Tenho um convite de
Cusa e outros funcionários graduados de Ântipas, naquela cidade, que me
autoriza a pensar nisso. Mas, a que vem a tua sugestão neste sentido?
180
ROMANCE DE EMMANUEL
- Senhor - exclamou Sulpício Tarquinius, com hipócrita modéstia -,
antes de tudo, trata-se da vossa alegria pessoal com a realização desse
projeto e, depois, tenho igualmente grande simpatia por uma jovem serva
da casa, de nome Ana. cuja beleza admirável e simples é das mais
sedutoras que hei visto nas mulheres nascidas em Samaria.
- Que é isso? Nunca te observei apaixonado. Acho que já passaste a
época dos arrebatamentos da mocidade. Em todo caso, isso quer dizer que
não me encontro sozinho na satisfação que me traz a idéia dessa viagem
imprevista - replicou Pilatos, com visível bom humor.
E, como se naquele mesmo instante houvesse elaborado todos os
detalhes do seu plano, exclamou para o lictor, que o ouvia entre satisfeito
e envaidecido:
- Sulpício, ficarás aqui em Jerusalém apenas o tempo preciso ao teu
descanso ligeiro e imediato, regressando, depois de amanhã, para a
Galileia, onde irás diretamente a Cafarnaum avisar Cusa dos meus
propósitos de visitar a cidade e, feito isso, irás até à residência do senador
Lentulus, onde avisarás sua esposa da minha decisão, em tom discreto,
cientificando-a do dia previsto para a minha partida e chegada até lá.
Espero que, com a atitude inconsiderada do marido, deixando-a tão só em
tais regiões, venha ela pessoalmente a Cafarnaum encontrar-se comigo, de
modo a distrair-se da companhia dos galileus grosseiros e ignorantes, e
recordar por algumas horas os seus dias felizes da Corte, junto de minha
conversação e de minha amizade.
- Muito bem - redargüiu o lictor, não cabendo em si de contente. -
Vossas ordens serão rigorosamente cumpridas.
Sulpício Tarquinius saiu alegre e confortado nos seus sentimentos
inferiores, antegozando o instante em que se aproximaria novamente da
jovem samaritana, que despertara a cobiça dos seus sentidos materiais,
cobiça que não tivera tempo de
181
HÁ DOIS MIL ANOS...
manifestar quando da sua permanência no serviço pessoal de Públio
Lentulus.
Cumprindo as determinações recebidas, vamos encontrá-lo daí a
quatro dias em Cafarnaum, onde os avisos do governador foram recebidos
com grande contentamento por parte das autoridades políticas.
O mesmo, porém, não aconteceu na residência de Públio, onde sua
presença foi recebida com reservas pelos empregados e escravos da casa.
Ao seu chamado, apresentou-se-lhe Maximus, substituto de Comênio na
chefia dos serviços usuais, mas que estava longe de possuir a sua energia
e experiência.
Atendido, solicitamente, pelo antigo servo, que era seu conhecido
pessoal, solicitou-lhe o lictor a presença de Ana, de quem dizia ele precisar
de uma entrevista pessoal para a solução de determinado assunto.
O velho criado de Lentulus não hesitou em chamá-la à presença de
Sulpício, que a envolveu de olhares cúpidos e ardentes.
A criada perguntou-lhe, entre intrigada e respeitosa, a razão da visita
inesperada, ao que Tarquinius esclareceu tratar-se da necessidade de se
avistar, por um momento, com Lívia, em particular, tentando ao mesmo
tempo colocar a pobre moça ao corrente de suas pretensões
inconfessáveis, dirigindo-lhe as propostas mais indignas e insolentes.
Após alguns minutos, em que se fazia ouvir nas suas expressões
insultuosas, em voz abafada, que Ana escutava extremamente pálida, com
o máximo de cuidado e paciência para evitar qualquer nota escandalosa a
seu respeito, respondeu a digna serva com voz austera e valorosa:
- Senhor lictor, chamarei minha senhora para atender-vos, dentro de
poucos instantes. Quanto a mim, devo afirmar-vos que estais enganado,
porquanto não sou a pessoa que supondes.
182
ROMANCE DE EMMANUEL
E, encaminhando-se resolutamente para o Interior, cientificou a
senhora do persistente propósito de Sulpício em lhe falar pessoalmente,
surpreendendo-se Lívia não só com o acontecimento inesperado, senão
também com a expressão fisionômica da serva, presa da mais extrema
palidez, depois do choque sofrido. Ana tratou de não a inteirar de pronto,
do sucedido, enquanto murmurava:
- Senhora, o lictor Sulpício parece apressado. Presumo que não
tendes tempo a perder.
Todavia, sem se deixar empolgar pelas circunstâncias, Lívia buscou
atender ao mensageiro com o máximo de sua habitual atenção.
Ante a sua presença, inclinou-se o lictor com profunda reverência,
dirigindo-se-lhe respeitoso, no cumprimento dos deveres que o traziam:
- Senhora, venho da parte do Senhor Procurador da Judeia, que tem
a honra de vos comunicar a sua vinda a Cafarnaum nos primeiros dias da
próxima semana...
Os olhos de Lívia brilharam de justificada indignação, enquanto
inúmeras conjeturas lhe assaltaram o espírito; movimentando, porém, as
suas energias, teve a precisa coragem para responder à altura das
circunstâncias:
- Senhor lictor, agradeço a gentileza de vossas palavras; todavia,
cumpre-me esclarecer que meu marido se encontra em viagem, neste
momento, e a nossa casa a ninguém recebe na sua ausência.
E, com leve sinal, fez-lhe sentir que era tempo de se retirar, o que
Sulpício compreendeu, intimamente encolerizado. Despediu-se com
reverências respeitosas.
Surpreendido com aquela atitude, porquanto ao espírito do lictor a
prevaricação de Lívia representava um fato inconteste, retirou-se
sumamente desapontado, mas não sem conjeturar os acontecimentos na
sua depravada malícia.
183
HÁ DOIS MIL ANOS...
Foi assim que, encontrando-se com um dos soldados de guarda à
residência, seu conhecido e amigo pessoal, observou-lhe com fingido
interesse:
- Otávio, antes de uma semana talvez aqui esteja de volta e desejaria
encontrar de novo, nesta casa, a jóia rara de minha felicidade e de minhas
esperanças...
- Que jóia é essa? - perguntou, curioso, o interpelado.
- Ana...
- Está bem. Fácil é o trabalho que me pedes.
- Mas, ouve-me bem - exclamou o lictor, pressentindo, já, que a
presa tudo faria por fugir-lhe das mãos. - Ana costuma ausentar-se
freqüentemente e, caso isso se verifique, espero que a tua amizade não me
falte com os informes necessários, no instante oportuno...
- Pode contar com a minha dedicação.
Acabando de ouvir o pormenor mais importante desse diálogo,
voltemos ao interior, onde Lívia, de alma opressa, confia à serva amiga e
devotada as conjeturas dolorosas que lhe pesavam no coração. Depois de
externar-lhe os seus justificados temores, plenamente admitidos por Ana
que, por sua vez, a colocou ao corrente das insolências de Sulpício, a
pobre senhora desfiou à sua confidente, simples e generosa, o rosário
infindo de suas amarguras, relatando-lhe todos os sofrimentos que lhe
dilaceravam a alma carinhosa e sensibilíssima, desde o primeiro dia em
que a calúnia encontrara guarida no espírito orgulhoso do companheiro.
As lágrimas da serva, ante a singular narrativa, eram bem o reflexo da sua
alta compreensão das angústias da senhora, perdida naqueles rincões
quase selvagens, considerando-se a sua educação e a nobreza de sua
origem.
Ao finalizar o penoso relato de suas desditas, a nobre Lívia acentuou
com indisfarçável amargura:
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ROMANCE DE EMMANUEL
- Na verdade, tudo tenho feito por evitar os escândalos injustificáveis
e incompreensíveis. Agora, porém, sinto que a situação se agrava cada vez
mais, à vista da insistência dos meus algozes e da displicência de meu
marido em face dos acontecimentos, perdendo-se o meu espírito em
conjeturas amargas e dolorosas.
Se mando chamá-lo por um mensageiro, pondo-o ao corrente do que
se passa, a fim de que nos proteja com as suas providências imediatas,
talvez não compreenda a marcha dos fatos na sua intimidade, encarando
os meus receios como sintoma de culpas anteriores, ou tomando os meus
escrúpulos como desejo de regeneração por faltas que não cometi, em
virtude de suas enérgicas reprimendas e penosas ameaças; se não o aviso
dessas ocorrências graves, do mesmo modo se produziria o escândalo,
com a vinda do governador a Cafarnaum, aproveitando o ensejo da sua
ausência.
Tomo, unicamente, a Jesus por meu juiz nesta causa dolorosa, em
que as únicas testemunhas devem ser o meu coração e a minha
consciência!...
O que mais me preocupa, agora, minha boa Ana, não é tão somente
a obrigação de velar por mim, que já experimentei o fel amaríssimo da
desilusão e da calúnia impiedosa. É, justamente, por minha pobre filha,
porque tenho a impressão de que aqui na Palestina os malfeitores estão
nos lugares onde deveriam permanecer os homens de sentimentos puros
e incorruptíveis...
Como não ignoras, meu desventurado filhinho já se foi, arrebatado
nesse turbilhão de perigos, talvez assassinado por mãos indiferentes e
criminosas... Fala-me o coração maternal que o meu desgraçado Marcus
ainda vive, mas onde e como? Debalde temos procurado sabê-lo, em todos
os recantos, sem o mais leve sinal da sua presença ou passagem... Agora,
manda a consciência que resguarde a filhinha contra as ciladas
tenebrosas!...
185
HÁ DOIS MIL ANOS...
- Senhora - exclamou a serva, com fulgor estranho no olhar, como se
houvera encontrado uma solução repentina e apreciável para o assunto -,
o que dissestes revela o máximo bom-senso e prudência... Também eu
participo dos vossos temores e suponho que deveremos fazer tudo por
salvar a menina e a vós mesma das garras desses lobos assassinos...
Porque não nos refugiarmos nalgum local de nossa inteira confiança, até
que os malditos abandonem estas paragens?!
- Mas considero que seria inútil procurarmos abrigo em Cafarnaum,
em tais circunstâncias.
- Iríamos a outra parte.
- Aonde? - indagou Lívia, com ansiedade.
- Tenho um projeto - disse Ana esperançosa. - Caso assentísseis na
sua plena realização, sairíamos ambas daqui, com a pequenina,
refugiando-nos na própria Samaria da Judeia, em casa de Simeão, cuja
idade respeitável nos resguardaria de qualquer perigo.
- Mas, a Samaria - replicou Lívia, algo desalentada - fica muito
distante...
- A realidade, contudo, minha senhora, é que necessitamos de um
sítio dessa natureza. Concordo em que a viagem não será tão curta, mas
partiríamos com urgência, alugando animais descansados, tão logo
repousássemos um pouco, na passagem por Naim. Com um dia ou dois de
marcha, atingiríamos o vale de Siquém, onde se ergue a velha propriedade
de meu tio. Maximus seria cientificado da vossa deliberação, sem outro
pretexto que não seja o da necessidade de vossas decisões no momento
e, na hipótese do regresso imediato do senador, estaria o vosso esposo
integrado no conhecimento direto da situação, procurando inteirar-se, por
si mesmo, quanto à vossa honestidade.
- De fato, essa idéia é o recurso mais viável que nos resta - exclamou
Lívia mais ou menos confortada. - Além do mais, confio no Mestre, que não
nos abandonará em provas tão rudes.
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ROMANCE DE EMMANUEL
Hoje mesmo, faremos nossos aprestos de viagem e irás à cidade
providenciar, não só quanto aos animais que nos devam conduzir até
Naim, como também quanto à partida de um dos teus familiares conosco,
de modo a seguirmos com a maior simplicidade, sem provocar a atenção
dos curiosos, mas igualmente bem acompanhadas contra os dissabores
de qualquer eventualidade.
Não te preocupes com despesas, porque estou provida dos
necessários recursos financeiros.
Assim foi feito.
Na véspera da partida, Lívia chamou o servo que então
desempenhava as funções de mordomo da casa, esclarecendo-o nestes
termos:
- Maximus, motivos imperiosos me lavam amanhã a Samaria da
Judeia, onde me demorarei alguns dias, junto de minha filha. Levarei Ana
em minha companhia e espero do teu esforço a mesma dedicação de
sempre aos teus senhores.
O interpelado fez uma reverência, como quem se surpreendesse
com semelhante atitude da patroa, pouco afeita aos ambientes exteriores
do lar, mas entendendo que não lhe assistia o direito de analisar as suas
decisões, aventou, respeitoso:
- Senhora, espero designeis os servos que deverão acompanharvos.
- Não, Maximus. Não quero as solenidades do costume nas
excursões dessa natureza. Irei com pessoas amigas, de Cafarnaum, e
pretendo viajar com muita simplicidade. Interessa-me avisar-te dos meus
propósitos, tão somente pela necessidade de redobrar os serviços de
vigilância na minha ausência, e considerando a possibilidade do regresso
inopinado do teu amo, a quem cientificarás da minha resolução, nos
termos em que me estou exprimindo.
E, enquanto o criado se inclinava respeitoso, Lívia regressava aos
aposentos, solucionando todos os problemas relativos à sua tranqüilidade.
No dia imediato, antes da aurora, saia de Cafarnaum uma caravana
humilde. Compunham-na
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HÁ DOIS MIL ANOS...
Lívia, a filhinha, Ana e um dos seus velhos e respeitáveis familiares, que se
dirigiam pela estrada que contornava o grande lago, quase em caprichoso
semicírculo, acompanhando o curso das águas do Jordão a descerem
sussurrantes e tranqüilas para o Mar Morto.
Numa breve parada em Naim, trocaram-se os animais, seguindo os
viajantes o mesmo roteiro em direção do vale de Siquém, onde, à tardinha,
apearam à frente da casa empedrada de Simeão, que recebeu os
hóspedes, chorando de alegria.
O ancião de Samaria parecia tocado de um, a graça divina, tal o
movimento notável que desenvolvera em toda a região, não obstante a sua
idade avançada, espalhando os consoladores ensinamentos do profeta de
Nazaré.
Entre oliveiras umbrosas e frondejantes, erguera uma grande cruz,
pesada e tosca, colocando nas suas proximidades ampla mesa rústica, em
torno da qual se assentavam os crentes, em pobres bancos improvisados,
para lhe ouvirem a palavra amiga e confortadora.
Cinco dias venturosos decorreram ali para as duas mulheres, que se
encontravam à vontade naquele ambiente simples.
De tarde, sob as carícias da Natureza livre e sadia, no seio verde da
paisagem harmoniosa, reunia-se a assembléia humilde dos samaritanos,
inclinados a aceitar os pensamentos de amor e de misericórdia sublime do
Messias Nazareno.
Simeão, que ali vivia sem a companheira que Deus já havia levado e
sem os filhos que, por sua vez, já haviam constituído família, em aldeias
distantes, assumia a direção de todos, como patriarca venerável na sua
calma senectude, relatando os fatos da vida de Jesus como se a
inspiração divina o bafejasse em tais instantes, tal a profunda beleza
filosófica dos comentários e das preces improvisadas com a amorosa
sinceridade do seu coração.
188
ROMANCE DE EMMANUEL
Quase todos os presentes, naquela mesma poesia simples da Natureza,
como se estivessem ainda bebendo as palavras do Mestre junto do
Gerizim, choravam de comoção e deslumbramento espiritual, tocados pela
sua palavra profunda e carinhosa, magnetizados pela formosura das suas
evocações saturadas de ensinamentos raros, de caridade e meiguice.
Nessa época, os cristãos não possuíam os evangelhos escritos, que
somente um pouco depois apareciam no mundo grafados pelos Apóstolos,
razão pela qual todos os pregadores da Boa Nova colecionavam as
máximas e as lições do Mestre, de próprio punho ou com a cooperação
dos escribas do tempo, catalogando-se, desse modo, os ensinamentos de
Jesus para o estudo necessário nas assembléias públicas das sinagogas.
Simeão, que não possuía uma sinagoga. seguia, porém, o mesmo
método.
Com a paciência que o caracterizava, escreveu tudo que sabia do
Mestre de Nazaré, para recordá-lo nas suas reuniões humildes e
despretensiosas, prontificando-se do melhor grado a registrar todas as
lições novas do acervo de lembranças dos seus companheiros, ou
daqueles apóstolos anônimos do Cristianismo nascente, que, de
passagem por sua velha aldeia, cruzavam a Palestina em todas as
direções.
Fazia seis dias que as hóspedes se retemperavam naquele ambiente
caricioso, quando o respeitável ancião, naquela tarde, em suas
costumeiras evocações do Messias, se afigurava tocado de influências
espirituais das mais excelsas.
As derradeiras meias-tintas do crepúsculo entornavam na paisagem
um tom de esmeraldas e topázios, eterizados sob um céu azul indefinível.
No seio da assembléia heterogênea, notava-se a presença de
criaturas sofredoras, de todos os matizes, que ao espírito de Lívia
lembravam a tarde
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HÁ DOIS MIL ANOS...
memorável de Cafarnaum, quando ouvira o Senhor pela primeira vez.
Homens esfarrapados e mulheres maltrapilhas acotovelavam-se com
crianças esquálidas, fitando, ansiosamente, o ancião que explicava,
comovido, com a sua palavra simples e sincera:
- Irmãos, era de ver-se a suave resignação do Senhor, no derradeiro
instante!...
Olhar fixo no céu, como se já estivesse gozando a contemplação das
beatitudes celestes, no reino de nosso Pai, vi que o Mestre perdoava
caridosamente todas as injúrias! Apenas um dos seus discípulos mais
queridos se conservava ao pé da cruz, amparando a sua mãe no
angustioso transe!... Dos seus habituais seguidores, poucos estavam
presentes na hora dolorosa, certamente porque nós, os que tanto o
amávamos, não podíamos externar nossos sentimentos diante da turba
enfurecida, sem graves perigos para a nossa segurança pessoal. Não
obstante, desejaríamos, todos, experimentar os mesmos padecimentos!...
De vez em quando, um que outro mais atrevido de seus verdugos se
aproximava do corpo chagado no martírio, dilacerando-lhe o peito com a
ponta das lanças impiedosas!...
Uma vez por outra, o generoso ancião limpava o suor da fronte, para
continuar com os olhos úmidos:
- Notei, em dado instante, que Jesus desviara os olhos calmos e
lúcidos do firmamento, contemplando a multidão amotinada em criminosa
fúria!... Alguns soldados ébrios açoitaram-no, mais uma vez, sem que do
seu peito opresso, na angústia da agonia, escapasse um único gemido!...
Seus olhos suaves e misericordiosos se espraiaram, então, do monte do
sacrifício para o casario da cidade maldita! Quando o vi olhando
ansiosamente, com a ternura carinhosa de um pai, para quantos o
insultavam nos suplícios extremos da morte, chorei de vergonha pelas
nossas impiedades e fraquezas...
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ROMANCE DE EMMANUEL
A massa movimentava-se, então, em altercações numerosas... Gritos
ensurdecedores e impropérios revoltantes o cercavam na cruz, onde se lhe
notava o copioso suor do instante supremo!.. Mas o Messias, como se
visualizasse profundamente os segredos dos destinos humanos, lendo no
livro do futuro, fitou de novo as Alturas, exclamando com infinita bondade:
"Perdoa-lhes, meu Pai, porque não sabem o que fazem!"
O velho Simeão tinha a voz embargada de lágrimas, ao evocar
aquelas lembranças, enquanto a assembléia se comovia profundamente
com a narrativa.
Outros irmãos da comunidade tomaram a palavra, descansando o
ancião dos seus esforços.
Um deles, porém, contrariamente aos temas versados naquele dia,
exclamou, com surpresa para todos os circunstantes:
- Meus irmãos, antes de nos retirarmos, lembremos que o Messias
repetia sempre aos seus discípulos a necessidade da vigilância e da
oração, porque os lobos rondam, neste mundo, o rebanho das ovelhas!...
Simeão ouviu a advertência e pôs-se em atitude de profunda
meditação, de olhos fitos na grande cruz que se elevava a poucos metros
do seu banco humilde.
Ao cabo de alguns minutos de espontânea concentração, tinha os
olhos transbordando de lágrimas, fixos no madeiro tosco, como se no seu
topo vagasse alguma visão desconhecida de quantos o observavam...
Depois, encerrando as preleções da tarde, falou comovido:
- Filhos, não é sem justo motivo que o nosso irmão se refere hoje ao
ensino da vigilância e da prece! Alguma coisa, que não sei definir, fala-me
ao coração que o instante do nosso testemunho está muito próximo... Vejo
com a minha vista espiritual que a nossa cruz está hoje iluminada, anun191
HÁ DOIS MIL ANOS...
ciando, talvez, o glorioso minuto dos nossos sacrifícios... Meus pobres
olhos se enchem de pranto, porque, entre as claridades do madeiro, ouço
uma voz suave que me penetra os ouvidos numa entonação branda e
amiga, exclamando: "Simeão, ensina ao teu rebanho a lição da renúncia e
da humildade, com o exemplo da tua dedicação e do teu próprio sacrifício!
Ora e vigia, porque não está longe o instante ditoso de tua entrada no
Reino, mas preserva as ovelhas do teu aprisco das arremetidas tenebrosas
dos lobos famulentos da impiedade, soltos na Terra, ao longo de todos os
caminhos, consciente, porém, de que, se a cada um se dará segundo as
próprias obras, os maus terão, igualmente, seu dia de lição e castigo, de
conformidade com os próprios erros!..."
O velho samaritano tinha o rosto lavado em lágrimas, mas doce
serenidade irradiava do seu olhar carinhoso e compassivo, demonstrandolhe
as energias inquebrantáveis e valorosas.
Foi então que, alçando as mãos emagrecidas e longas ao
firmamento, onde brilhavam já as primeiras estrelas, dirigiu-se a Jesus, em
prece ardente:
- Senhor, perdoai nossas fraquezas e vacilações nas lutas da vida
humana, onde os nossos sentimentos são bem precários e miseráveis!...
Abençoai nosso esforço de cada dia e relevai as nossas faltas, se algum
de nós, que aqui nos reunimos, vem à vossa presença com o coração
saturado de pensamentos que não sejam os do bem e do amor que nos
ensinastes!... E, se chegada é a hora dos sacrifícios, auxiliai-nos com a
vossa misericórdia infinita, a fim de que não vacilemos em nossa fé, nos
dolorosos momentos do testemunho!...
A oração comovedora assinalou o fim da reunião, dispersando-se os
assistentes, que regressavam, impressionados, às suas choupanas
humildes e pobres.
192
ROMANCE DE EMMANUEL
O ancião, todavia, conseguiu repousar muito pouco naquela noite,
tomado de preocupação por Lívia e pela sobrinha, que o haviam
cientificado das graves ocorrências que as levaram a solicitar a sua
proteção. Figurava-se-lhe que apelos carinhosos do mundo invisível lhe
enchiam o espírito de ansiedade indefinível e de singulares impressões,
que lhe não era possível alijar do raciocínio para os necessários minutos
de repouso.
Contudo, enquanto ocorriam esses fatos no vale de Siquém,
voltemos a Cafarnaum, onde. na mesma tarde, chegara o governador com
grande aparato.
No burburinho das festanças numerosas, organizadas pelos
prepostos de Herodes Ântipas, o primeiro pensamento do viajante ilustre
não nos pode ser olvidado.
Sulpício, porém, após palestrar longamente com o seu amigo Otávio,
nas proximidades da residência do senador, onde foi posto ao corrente de
todos os fatos, voltou a informá-lo de que ambas as presas cobiçadas
haviam fugido como aves viajoras, para os bosques da Samaria.
O governador surpreendeu-se com a resistência daquela mulher, tão
acostumado estava ele às conquistas fáceis, admirando-lhe, intimamente,
o nobre heroísmo e pensando que, afinal, constituía atitude injustificável
da sua parte tal obstinação no assédio, mesmo porque, não lhe faltariam
mulheres tentadoras e formosas, desejosas de captarem a sua estima, no
caminho da sua alta posição social na Palestina.
Ao mesmo tempo que dava curso a esses pensamentos, o espírito
perverso do lictor, antegozando a trabalhosa conquista da sua vítima,
murmurava-lhe ao ouvido:
- Senhor governador, se consentirdes, irei a Samaria da Judeia
informar-me do assunto. Daqui ao vale de Siquém deve mediar pouco mais
de trinta milhas, o que vem a ser um salto para os nossos cavalos. Levaria
comigo seis soldados, bastando
193
HÁ DOIS MIL ANOS...
esses homens para manter a ordem em qualquer lugar destas paragens.
- Sulpício, por mim, não vejo mais necessidade de semelhantes
providências exclamou Pilatos, resignado.
- Mas, agora - explicou o lictor, com interesse -, se não é por vós,
deve ser por mim, porque me sinto escravizado a uma mulher que devo
possuir de qualquer maneira.
Sou eu agora quem vos pede, humildemente, a concessão dessas
providências - acentuou ele, desesperado, no auge dos seus pensamentos
impuros.
- Está bem - murmurou Pilatos, com displicência, como quem faz um
favor a servo de confiança -, concedo-te o que me pedes. Acho que o amor
de um romano deve superar qualquer afeição dos escravos deste país.
Podes partir, levando contigo os elementos da tua amizade, sem te
esqueceres, porém. de que devemos regressar a Nazaré, de hoje a três
dias. Não te bastarão dois dias para esse cometimento?
- Mas - continuou o lictor, maliciosamente -, e se houver alguma
resistência?
- Para isso levas os teus homens, autorizando-te eu a tomar as
iniciativas necessárias aos teus propósitos. Em qualquer missão, jamais te
esqueças prestar aos patrícios os favores da nossa consideração, mas,
aos que o não sejam, faze a justiça do nosso domínio e da nossa força
implacáveis.
Na mesma noite, Sulpício Tarquinius escolheu os homens de mais
confiança, e, pela madrugada, sete cavaleiros audaciosos puseram-se a
caminho, trocando os ginetes fogosos. nas paradas mais importantes, em
demanda de Samaria.
O lictor encaminhava-se para a sua aventura, como quem segue para
o desconhecido, com o propósito firme de atingir os fins sem cogitar dos
meios. Turbilhonavam-lhe no cérebro pensamentos
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ROMANCE DE EMMANUEL
condenáveis, afogando o coração inquieto e louco numa onda de anseios
criminosos e indefiníveis.
Voltando, todavia, nossa atenção para a casa humilde do vale,
vamos encontrar Simeão em grandes atividades, naquela manhã
inolvidável de sua vida.
Após o almoço frugal, organizadas todas as suas anotações e
pergaminhos, depois de mais de uma hora de meditação e preces
fervorosas, e quando o Sol já declinava, reuniu as hóspedas, falando-lhes
gravemente:
- Filhas, a visão de meus pobres olhos, em nossas preces de ontem,
representa uma séria advertência para o meu coração. Ainda esta noite e
hoje, durante o dia, tenho ouvido apelos suaves que me chamam e, sem
explicar a justa razão deles, tenho o íntimo saturado de branda serenidade,
na suposição de que não deve tardar muito a minha ida para o Reino...
Algo, porém, me fala ao espírito que ainda não soou a hora da vossa
partida e, considerando o ensinamento do nosso Mestre de bondade e
misericórdia, sobre os lobos e as ovelhas, devo resguardar-vos de
qualquer perigo. É por isso que vos peço acompanhar-me.
Assim dizendo, o respeitável ancião pôs-se de pé e, caminhando
para o seu casebre, deslocou blocos de pedra duma abertura na parede
empedrada, exclamando imperativamente, na sua serena simplicidade:
- Entremos.
- Mas, meu tio - obtemperou Ana, com certa estranheza -, serão
necessárias tais providências?
- Filha, nunca discutas o conselho daqueles que envelheceram no
trabalho e no sofrimento. O dia de hoje é decisivo e Jesus não me poderia
enganar o coração.
- Oh! mas será possível, então, que o Mestre nos vá privar de vossa
presença carinhosa e consoladora? - exclamou a pobre rapariga banhada
em
195
HÁ DOIS MIL ANOS...
pranto, enquanto Lívia os acompanhava sensibilizada, trazendo pela mão a
filha estremecida.
- Sim, para nós - revidou Simeão, com serena coragem, mirando o
azul do céu -, deve existir uma só vontade, que é a de Deus. Cumpram-se,
pois, nos escravos os desígnios do Senhor.
Neste comenos, penetraram os quatro numa galeria que, à distância
de poucos metros, ia dar num modesto refúgio talhado em pedras rústicas,
afirmando o ancião em tom solene:
- Ha mais de vinte anos não abro este subterrâneo a pessoa
alguma... Recordações sagradas de minha esposa fizeram-me encerrá-lo
para sempre, como túmulo de minhas ilusões mais queridas; mas, hoje de
manhã, o reabri resolutamente, retirei os tropeços do caminho, coloquei
aqui os apetrechos necessários ao descanso de um dia, pensando na
vossa segurança até à noite. Este abrigo está oculto nas rochas que, junto
das oliveiras, fazem o ornamento do nosso recanto de orações e, não
obstante parecer abafado, o ambiente recebe o ar puro e fresco do vale,
como a nossa própria casa.
Ficai aqui tranqüilas. Alguma coisa me diz ao coração que estamos
atravessando horas decisivas. Trouxe o alimento preciso para as três,
durante as horas da tarde, e caso eu não volte até à noitinha, já sabem
como devem mover a porta empedrada que dá para meu quarto. Daqui,
ouvem-se os rumores das cercanias, o que vos possibilitará a
compreensão de qualquer perigo.
- E mais ninguém conhece este refúgio? -perguntou Ana, ansiosa.
- Ninguém, a não ser Deus e os meus filhos ausentes.
Lívia, profundamente comovida, ergueu então a voz do seu sincero
agradecimento:
- Simeão - disse ela -, eu, que conheço a têmpera do inimigo,
justifico os vossos temores. Jamais esquecerei vosso gesto paternal,
salvando-me do verdugo impiedoso e implacável.
196
ROMANCE DE EMMANUEL
- Senhora, não agradeçais a mim, que nada valho. Agradeçamos a
Jesus os seus desígnios preciosos, no momento amargo das nossas
provas...
Arrancando uma pequena cruz de madeira tosca das dobras da
túnica humilde, entregou-a à esposa do senador, exclamando com voz
serena:
- Só Deus conhece o minuto que se aproxima, e esta hora pode
assinalar os derradeiros momentos do nosso convívio na Terra. Se assim
for, guardai esta cruz como recordação de um servo humilde... Ela traduz a
gratidão do meu espírito sincero...
Como Lívia e Ana começassem a chorar com as suas palavras
comovedoras, continuou o ancião com voz pausada:
- Não choreis, se este minuto constitui o instante supremo! Se Jesus
nos chama ao seu trabalho, uns antes dos outros, lembremo-nos de que,
um dia, nos reuniremos todos nas luzes cariciosas do seu reino de amor e
misericórdia, onde todos os aflitos hão-de ser consolados..
E, como se o seu espírito estivesse na plena contemplação de outras
esferas, cujas claridades o enchessem de intuições divinatórias,
prosseguiu, dirigindo-se à Lívia, comovidamente:
- Estejamos confiantes na Providência Divina! Caso o meu
testemunho esteja previsto para breves horas, confio-vos a minha pobre
Ana, como vos entregaria a minha recordação mais querida!... Depois que
abracei as lições do Messias, todos os filhos do meu sangue me
desampararam, sem me compreenderem os propósitos mais santos do
coração... Ana, porém, apesar da sua juventude, entendeu, comigo, o doce
Crucificado de Jerusalém!...
- Quanto a ti, Ana - disse pousando a destra na fronte da sobrinha -,
ama a tua patroa como se fosses a mais humilde das suas escravas!
Nesse instante, porém, um ruído mais forte penetrou no recinto,
como se um barulho incom197
HÁ DOIS MIL ANOS...
preensível proviesse das rochas, parecendo mais um tropel de numerosos
cavalos que se iam aproximando.
O ancião fez um gesto de despedida, enquanto Lívia e Ana se
ajoelharam diante da sua figura austera e carinhosa; ambas, entre
lágrimas, tomaram-lhe as mãos encarquilhadas, que cobriam de beijos
afetuosos.
Num relance, Simeão transpôs a pequena galeria, reajustando as
pedras na parede com o máximo cuidado.
Em poucos minutos, abria as portas da casa humilde e generosa a
Sulpício Tarquinius e seus companheiros, compreendendo, afinal, que as
advertências de Jesus, no silêncio de suas orações fervorosas, não
haviam falhado.
O lictor dirigiu-lhe a palavra sem qualquer cerimônia, fazendo o
possível por eliminar a impressão que lhe causava a majestosa aparência
do ancião, com os seus olhos altivos e serenos e as longas barbas
encanecidas.
- Meu velho - exclamou desabridamente -, por intermédio de teus
conhecidos já sei que te chamas Simeão, e igualmente que hospedas aqui
uma nobre senhora de Cafarnaum, com a sua serva de confiança. Venho
da parte das mais altas autoridades para falar particularmente com essas
senhoras, na maior intimidade possível..
Enganais-vos, lictor - murmurou Simeão, com humildade. - De fato, a
esposa do senador Lentulus passou por estas paragens; todavia, apenas
pela circunstância de se fazer acompanhar por uma de minhas sobrinhasnetas,
deu-me a honra de repousar nesta casa algumas horas.
- Mas deves saber onde se encontram neste momento.
- Não posso dizê-lo.
- Ignoras, porventura?
- Sempre entendi - replicou o ancião corajosamente - que devo
ignorar todas as coisas que
198
ROMANCE DE EMMANUEL
venham a ser conhecidas para o mal de meus semelhantes.
- Isso é outra coisa - redargüiu Sulpício, encolerizado, como um
mentiroso de quem se descobrissem os pensamentos mais secretos. -
Quer dizer, então, que me ocultas o paradeiro dessas mulheres, por
simples caprichos da tua velhice caduca?
- Não é isso. Conhecendo que no mundo somos todos irmãos, sintome
no dever de amparar os mais fracos contra a perversidade dos mais
fortes.
- Mas, eu não as procuro para fazer mal algum e chamo-te a atenção
para estas insinuações insultuosas, que merecem a punição da justiça.
- Lictor - revidou Simeão, com grande serenidade -, se podeis
enganar os homens, não enganais a Deus com os vossos sentimentos
inconfessáveis e impuros. Sei dos propósitos que vos trazem a estes sítios
e lamento a vossa impulsividade criminosa...Vossa consciência está
obscurecida por pensamentos delituosos e impuros, mas todo momento é
um ensejo de redenção, que Deus nos concede na Sua infinita bondade...
Voltai atrás da insídia que vos trouxe e ide noutros caminhos, porque
assim como o homem deve salvar-se pelo bem que pratica, pode também
morrer pelo fogo devastador das paixões que o arrastam aos crimes mais
hediondos...
- Velho infame... - exclamou Sulpício Tarquinius, rubro de cólera,
enquanto os soldados observavam, admirados, a serena coragem do
valoroso ancião da Samaria -, bem me disseram teus vizinhos, ao me
informarem a teu respeito, que és o maior feiticeiro destas paragens!...
Adivinho maldito, como ousas afrontar deste modo os mandatários
do Império, quando te posso pulverizar com uma simples palavra? Com
que direito escarneces do poder?
199
HÁ DOIS MIL ANOS...
- Com o direito das verdades de Deus, que nos mandam amar o
próximo como a nós mesmos... Se sois prepostos de um Império que outra
lei não possui além da violência impiedosa na execução de todos os
crimes, sinto que estou subordinado a um poder mais soberano do que o
vosso, cheio de misericórdia e bondade! Esse poder e esse Império são de
Deus, cuja justiça misericordiosa está acima dos homens e das nações!...
Compreendendo-lhe a coragem e a energia moral inquebrantáveis, o
lictor, embora fremente de ódio, revidou em tom fingido:
- Está bem, mas eu não vim aqui para conhecer as tuas bruxarias e o
teu fanatismo religioso. De uma vez por todas: queres ou não prestar-me
as informações precisas, acerca das tuas hóspedas?
- Não posso - replicou Simeão corajosamente -, minha palavra é uma
só.
- Então, prendei-o! - disse, dirigindo-se aos seus auxiliares, pálido de
cólera ao se ver derrotado naquele duelo de palavras.
O velho cristão da Samaria foi submetido aos primeiros vexames,
por parte dos soldados, entregando-se, porém, sem a mínima resistência.
Aos primeiros golpes de espada, exclamou Sulpício
sarcasticamente:
- Então, onde se encontram as forças do teu Deus, que te não
defende? Seu Império é assim tão precário? Porque não te socorrem os
poderes celestiais, eliminando-nos com a morte, em teu beneficio?
Uma gargalhada geral seguiu-se a essas palavras, partida dos
soldados que acompanhavam, gostosamente, os ímpetos criminosos do
seu chefe.
Simeão, todavia, tinha as energias preparadas para o testemunho da
sua fé ardente e sincera. De mãos amarradas, pôde ainda revidar, com a
serenidade habitual:
- Lictor, ainda que eu fosse um homem poderoso como o teu César,
nunca ergueria a voz para ordenar a morte de quem quer que fosse, à
200
ROMANCE DE EMMANUEL
face da Terra. Sou dos que negam o próprio direito da chamada legítima
defesa, porque está escrito na Lei que "Não Matarás", sem nenhuma
cláusula que autorize o homem a eliminar o seu irmão, nessa ou naquela
circunstância... Toda a nossa defesa, neste mundo, está em Deus, porque
só ele é o Criador de toda a vida e somente ele pode pôr e dispor de
nossos destinos.
Sulpício experimentou o apogeu do seu ódio em face daquela
coragem indomável e esclarecida e, avançando para um dos prepostos,
exclamou enraivecido:
- Mércio, toma à tua conta este velho imbecil e feiticeiro. Guarda-o
com atenção e não te descuides. Caso tente fugir, mete-lhe o chanfalho!
O venerável ancião, consciente de que atravessava as suas horas
supremas, encarou o agressor com heróica humildade.
Sulpício e os companheiros invadiram-lhe a casa e o quintal,
expulsando-lhe uma velha serva, a palavrões e pedradas. No seu quarto
encontraram as anotações evangélicas e os pergaminhos amarelecidos,
além de pequenas lembranças que guardava em memória dos seus afetos
mais queridos.
Todos os objetos de suas recordações mais sagradas foram trazidos
à sua presença, onde foram quebrados sem piedade. Perante seus olhos,
serenos e bons, dilaceraram-se túnicas e papiros antigos, entre sarcasmos
e ironias revoltantes.
Terminada a devassa, o lictor, de mãos nas costas, examinando,
intimamente, a melhor maneira de arrancar-lhe a desejada confissão sobre
o paradeiro de suas vítimas, andou pelas adjacências mais de duas horas,
voltando à mesma sala, onde o interpelou novamente.
- Simeão - disse ele, com interesse -, satisfaze os meus desejos e te
concederei a liberdade.
201
HÁ DOIS MIL ANOS...
- Por esse preço, toda a liberdade me seria penosa. Deve preferir-se
a morte a transigir com o mal - respondeu o ancião com a mesma
coragem.
Sulpício Tarquinius rilhou os dentes de fúria, ao mesmo tempo que
gritava possesso:
- Miserável! saberei arrancar-te a confissão necessária.
Isso dizendo, encarou fixamente o enorme cruzeiro que se levantava
a poucos metros da porta e, como se houvesse escolhido o melhor
instrumento de martírio para arrancar-lhe a revelação desejada, dirigiu-se
aos soldados em voz soturna:
- Amarremo-lo à cruz, como o Mestre das suas feitiçarias.
Recordando-se dos grandes momentos do Calvário, o ancião
deixou-se levar sem nenhuma relutância, agradecendo, intimamente, a
Jesus pelo seu aviso providencial, a tempo de salvar das mãos do inimigo
aquelas que considerava como filhas muito amadas.
Num ápice os soldados o amarraram na base do pesado madeiro,
sem que a vítima demonstrasse um único gesto de resistência.
Avizinhava-se o crepúsculo, e Simeão recordou que, horas antes,
sofria o Senhor com mais intensidade. Em prece ardente, suplicou ao Pai
Celestial ânimo e resignação para o angustioso transe. Lembrou-se dos
filhos ausentes, rogando a Jesus que os acolhesse no manto de sua
infinita misericórdia. Foi nesse ínterim que, amarrado à base da cruz pelos
braços, pelo tronco e pelas pernas, viu que se aproximavam alguns dos
companheiros de suas preces habituais, para as reuniões do crepúsculo,
os quais foram logo detidos pelos soldados e pelo chefe implacável.
Inquiridos, quanto ao ancião que ali se encontrava, com o dorso
seminu para os tormentos do açoite, todos, sem exceção de um só,
alegaram não conhecê-lo.
202
ROMANCE DE EMMANUEL
Mais que os ataques dos impiedosos romanos, semelhante
ingratidão doeu-lhe fundo, no espírito generoso e sincero, como se
envenenado espinho lhe penetrasse o coração.
Todavia, recompôs imediatamente as suas energias espirituais e,
contemplando o Alto, murmurou baixinho, numa prece ansiosa e ardente:
- Também vós, Senhor, fostes abandonado!... Éreis o Cordeiro de
Deus, inocente e puro, e sofrestes as dores mais amargas,
experimentando o fel das traições mais penosas!... Não seja pois o vosso
servo, mísero e pecador, que renegue os martírios purificadores do
testemunho!...
A essa hora, já o recinto se encontrava repleto de pessoas que, de
conformidade com as determinações de Sulpício, deveriam permanecer
nos bancos grosseiros, dispostos em semicírculo, de modo a assistirem à
cena selvagem, a titulo de escarmento para quantos viessem a
desobedecer à justiça do Império.
O primeiro soldado, à ordem do chefe, iniciou o flagício. Todavia, da
terceira vez que as suas mãos brandiam as extremas tiras de couro, na
execranda tortura, sem que o ancião deixasse escapar o mais ligeiro
gemido, parou, subitamente, exclamando para Tarquinius em voz baixa e
em tom discreto:
- Senhor lictor, no alto do madeiro há uma luz que paralisa os meus
esforços.
Encolerizado, mandou Sulpício que um novo elemento o
substituísse, mas o mesmo se repetiu com os seus algozes chamados ao
trabalho sinistro.
Foi então que, desesperado de ódio incompreensível, tomou
Sulpício dos açoites, brandindo-os ele mesmo no corpo da vítima, que se
contorcia em sofrimentos angustiosos.
Simeão, banhado de suor e sangue, sentia o estalar dos ossos
envelhecidos, que se quebravam aos pedaços, cada vez que o açoite lhe
lambia as carnes enfraquecidas. Seus lábios murmuravam
203
HÁ DOIS MIL ANOS...
preces fervorosas, apelos a Jesus para que os tormentos não se
prolongassem ao infinito. Todos os presentes, não obstante o terror que
os levara à defecção para com o velho discípulo de Jesus, viam-lhe, com
lágrimas, os inomináveis padecimentos.
Em dado instante, a fronte pendeu, quase desfalecida, prenunciando
o fim de toda a resistência orgânica, em face do martírio.
Sulpício Tarquinius parou, então, por um minuto, a sua obra nefanda
e, aproximando-se do ancião, falou-lhe ao ouvido, com ansiedade:
- Confessas agora?
Mas o velho samaritano, temperado nas lutas terrestres, por mais de
setenta anos de sofrimento, exclamou, exausto, em voz sumida:
- O... cristão... deve... morrer... com Jesus... pelo... bem... e... pela...
verdade...
- Morre, então, miserável!... - gritou Sulpício, em voz estentórica; e,
tomando da espada, enterrou-lhe a lâmina no peito deprimido.
Viu-se o sangue jorrar em borbotões vermelhos e abundantes.
Nessa hora, cansado já do martírio, o ancião viu sem temor o ato
supremo que poria termo aos seus padecimentos. Experimentou a
sensação de um instrumento estranho que lhe abria o peito dolorido,
sufocado por mortal angústia.
Num relance, porém, lobrigou duas mãos de neve, translúcidas, que
pareciam alisar-lhe carinhosamente os cabelos embranquecidos.
Notou que o cenário se havia transformado, enquanto fechara
ligeiramente os olhos, no momento doloroso.
O céu não era o mesmo, nem mais à sua frente via traidores e
verdugos. O ambiente estava saturado de luz branda e reconfortante,
enquanto aos seus ouvidos chegavam os ecos suaves de uma cavatina do
céu, entoada, talvez, por artistas invisíveis. Ouvia cânticos esparsos,
exaltando as dores de
204
ROMANCE DE EMMANUEL
todos os desventurados, de todos os aflitos do mundo, divisando,
maravilhado, o sorriso acolhedor de entidades lúcidas e formosas.
Afigurava-se-lhe reconhecer a paisagem que o recebia. Supunha-se
transportado aos deliciosos recantos de Cafarnaum, nos instantes suaves
em que se preparava para receber a bênção do Messias, jurando haver
aportado, por processo misterioso, numa Galileia de flores mais ricas e de
firmamento mais belo. Havia aves de luz, como lírios alados do paraíso,
cantando nas árvores fartas e frondosas, que deviam ser as do éden
celestial.
Buscou senhorear-se das suas emoções nas claridades dessa Terra
Prometida, que, a seus olhos, deveria ser o país encantado do "Reino do
Senhor".
Por um momento, lembrou-se do orbe terrestre, das suas últimas
preocupações e das suas dores. Uma sensação de cansaço dominou-lhe,
então, o espírito abatido, mas uma voz que seus ouvidos reconheceriam,
entre milhares de outras vozes, falou-lhe brandamente ao coração:
- Simeão, chegado é o tempo do repouso!... Descansa agora das
mágoas e das dores, porque chegaste ao meu Reino, onde desfrutarás
eternamente da misericórdia infinita do Nosso Pai!...
Pareceu-lhe, afinal, que alguém o tomara de encontro ao peito, com
o máximo de cuidado e carinho.
Um bálsamo suave adormentou o seu espírito exausto e
amargurado. O velho servo de Jesus fechou, então, os olhos,
placidamente, acariciado por uma entidade angélica que pousou, de leve,
as mãos translúcidas sobre o seu coração desfalecido.
Voltando, porém, ao doloroso espetáculo, vamos encontrar, junto à
casa do ancião de Samaria, regular massa de povo que assistia, transida
de pavor, à cena tenebrosa.
Amarrado ao madeiro, o cadáver do velho Simeão golfava sangue
pela enorme ferida aberta no coração. A fronte pendida para sempre, como
se
205
HÁ DOIS MIL ANOS...
reclamasse o repouso da terra generosa, suas barbas veneráveis se
tingiam de rubro, aos salpicos de sangue das vergastadas, porque
Sulpício, embora sabendo que o golpe de espada era o detalhe final do
monstruoso drama, continuava a açoitar o cadáver colado à cruz infamante
do martírio.
Dir-se-ia que as forças desencadeadas da Treva se haviam
apoderado completamente do espírito do lictor, que, tomado de fúria
epiléptica, intraduzível, vergastava o cadáver sem piedade, numa torrente
de impropérios, para impressionar a massa popular que o observava
estarrecida de assombro.
- Vede - gritava ele furiosamente -, vede como devem morrer os
samaritanos velhacos e os feiticeiros assassinos!... Velho miserável!...
Leva para os infernos mais esta lembrança!...
E o açoite caía, impiedoso, sobre os despojos destroçados da
vitima, reduzidos agora a uma pasta sangrenta.
Nisso, porém, fosse pela pouca profundidade da base da cruz, que
se abalara nos movimentos reiterados e violentos do suplício, ou pela
punição das forças poderosas do mundo invisível, viu-se que o enorme
madeiro tombava ao solo na vertigem de um relâmpago.
Debalde tentou o lictor eximir-se à morte horrível, examinando a
situação por um milésimo de minuto, porque o tope da cruz lhe abateu a
cabeça de um só golpe, inutilizando-lhe o primeiro gesto de fuga. Atirado
ao chão com uma rapidez espantosa, Sulpício Tarquinius não teve tempo
de dar um gemido. Pela base do crânio, esmigalhado, escorria a massa
encefálica misturada de sangue.
Num átimo, todos acorreram ao corpo abatido do lobo, trucidado
depois do sacrifício da ovelha. Um dos soldados examinou-lhe,
detidamente, o peito, onde o coração ainda pulsava nas derradeiras
expressões de automatismo.
A boca do verdugo estava aberta, não mais para a gritaria
blasfematória, mas da garganta
206
ROMANCE DE EMMANUEL
avermelhada descia uma espumarada de saliva e sangue, figurando a baba
repelente e ignominiosa de um monstro. Seus olhos estavam
desmesuradamente abertos, como se fitassem, eternamente, nos
espasmos do terror, uma interminável falange de fantasmas tenebrosos...
Impressionados com o acidente imprevisto, no qual adivinhavam a
influência da misteriosa luz que haviam lobrigado no topo do cruzeiro, os
soldados ignoravam como providenciar naquela conjuntura, igualmente
confundidos na onda de espanto e surpresa geral dos primeiros
momentos.
Foi nesse instante que assomou à porta a figura nobre de Lívia,
pálida de amarga perplexidade.
Ela e Ana, no interior da cava onde se haviam refugiado,
pressentiram o perigo, permanecendo ambas em fervorosas preces,
implorando a piedade de Jesus naquelas horas angustiosas.
A seus ouvidos chegavam os rumores imprecisos das discussões e
do vozerio do povo em altercações ruidosas, nos minutos do incidente,
encarado, por quantos a ele assistiram, como castigo do céu.
Ambas, aflitas e ansiosas, considerando o adiantado da hora,
deliberaram sair, fossem quais fossem as conseqüências da sua
resolução.
Chegando à porta e observando o espetáculo horrendo do cadáver
de Simeão reduzido quase a uma pasta informe, sob a base da cruz, e
vendo o corpo de Sulpício estendido à distância de poucos passos, com a
base do crânio esfacelada, experimentaram, naturalmente, um pavor
indefinível.
O paroxismo das emoções, contudo, poucos minutos durou.
Enquanto a serva se desfazia em soluços, Lívia, com a energia que
lhe caracterizava o espírito e a fé que lhe clarificava o coração,
compreendeu de relance o que se havia passado e, entendendo que a
situação exigia a força de uma vontade poderosa para que o equilíbrio
geral se restabelecesse, excla207
HÁ DOIS MIL ANOS...
mou para a serva, entregando-lhe a filha resolutamente:
- Ana, peço-te o máximo de coragem neste angustioso transe,
mesmo porque, cumpre-nos lembrar que a bondade de Jesus nos
preparou para suportar, dignamente, mais esta prova aspérrima e
dolorosa! Guarda Flávia contigo, enquanto vou providenciar para que a
tranqüilidade se restabeleça!.
A passos rápidos, avançou para a turba que se ia aquietando à sua
passagem.
Aquela mulher, de beleza nobre e graciosa, deixava transparecer no
olhar uma chama de profunda indignação e amargura. Seu aspecto severo
denunciava a presença de um anjo vingador, surgido entre aquelas
criaturas ignorantes e humildes, no momento oportuno.
Aproximando-se da cruz, onde jaziam os dois cadáveres, cercados
pela confusão, implorou de Jesus a coragem e fortaleza necessárias para
dominar o nervosismo e a inquietação de todos os que a rodeavam. Sentiu
que força sobre-humana se apossara da sua alma no momento preciso.
Por um minuto, pensou no esposo, nas convenções sociais, no escândalo
rumoroso daqueles acontecimentos, mas o sacrifício e a morte gloriosa de
Simeão eram para ela o exemplo mais confortador e mais santo. Tudo
olvidou para se lembrar de que Jesus pairava acima de todas as coisas
transitórias da Terra, como o mais alto símbolo de verdade e de amor, para
a felicidade imorredoura de toda a vida.
Um dos soldados, tomado de veneração e conhecendo perto de
quem seus olhos se encontravam, acercou-se-lhe, exclamando com o
máximo respeito:
- Senhora, cumpre-me apresentar-vos nossos nomes, a fim de que
possais utilizar-nos para o que julgardes necessário.
- Soldados - exclamou resoluta -, não precisais declinar nomes.
Agradeço a vossa dedicação espontânea, que poderia ter sido, minutos
antes,
208
ROMANCE DE EMMANUEL
uma inconsciência criminosa; lamentando, apenas, que seis homens
aliados a esta multidão permitissem a consumação deste ato de infâmia e
suprema covardia, que a justiça divina acaba de punir perante os vossos
olhos!...
Todos se haviam calado, como por encanto, ao ouvirem essas
enérgicas palavras.
A massa popular tem dessas versatilidades misteriosas. Basta, às
vezes, um gesto para que se despenhe nos abismos do crime e da
desordem; uma palavra chicoteante para fazê-la regressar ao silêncio e ao
equilíbrio necessários.
Lívia compreendeu que a situação era sua, e, dirigindo-se aos
prepostos de Sulpício, falou corajosamente:
- Vamos, providenciemos o restabelecimento da calma, retirando
esses cadáveres.
- Senhora - aventou um deles respeitosamente -, sentimo-nos na
obrigação de enviar um mensageiro a Cafarnaum, de modo que o senhor
governador seja avisado destes acontecimentos.
Todavia, com a mesma expressão de serenidade, respondeu ela
firmemente:
- Soldado, eu não permito a retirada de nenhum de vós outros,
enquanto não derdes estes corpos à sepultura. Se o vosso governador
possui um coração de fera, sinto-me agora na obrigação de proteger a paz
das almas bem formadas. Não desejo que se repita nesta casa uma nova
cena de covardia e de infâmia. Se a autoridade, neste país, atingiu o
terreno das crueldades mais absurdas, eu prefiro assumi-la, resgatando
uma dívida do coração para com os despojos deste apóstolo venerando,
assassinado com a colaboração da vossa criminosa inconsciência.
- Não desejais consultar as autoridades de Sebaste, a respeito do
assunto? - tornou um deles, timidamente.
- De modo algum - respondeu ela, com audaciosa serenidade. -
Quando o cérebro de um go209
HÁ DOIS MIL ANOS...
verno está envenenado, o coração dos governados padecem da mesma
peçonha. Esperaríamos em vão qualquer providência a favor dos mais
humildes e dos mais infelizes, porque a Judeia está sob a tirania de um
homem cruel e tenebroso. Ao menos hoje, quero afrontar o poder da
perversidade, invocando cm meu auxílio a misericórdia infinita de Jesus.
Silenciaram os soldados romanos, em face da sua atitude serena e
imperturbável. E, obedecendo-lhe às ordens, colocaram os despojos
inertes de Simeão sobre a mesa enorme e rústica das preces costumeiras.
Foi então que os mesmos companheiros, que haviam negado o
velho mestre do Evangelho, se acercaram piedosamente do seu cadáver,
beijando-lhe as mãos mirradas, com enternecimento. arrependidos da sua
covardia e fraqueza, cobrindo-lhe de flores os despojos sangrentos.
Anoitecia, mas as tênues claridades do crepúsculo, na formosa
paisagem da Samaria, ainda não haviam abandonado, de todo, o horizonte.
Uma força indefinível parecia amparar o Espírito de Lívia, alvitrandolhe
todas as providências necessárias.
Em pouco, ao esforço hercúleo de numerosos samaritanos, foram
retiradas pesadas pedras do grupo de rochas que protegia a cova, onde se
haviam abrigado as três fugitivas, enquanto, às ordens de Lívia, os seis
soldados abriram uma sepultura rasa, longe daquele local, para o corpo de
Sulpício.
Brilhavam, já, as primeiras constelações do firmamento, quando
terminou a improvisação dos serviços dolorosos.
No instante de transportarem os despojos do ancião, que Lívia
envolveu, pessoalmente, em alvo sudário de linho, ela fez questão de orar
rogando ao Senhor recebesse, no seu Reino de Luz e Verdade, a alma
generosa do seu apóstolo valoroso.
210
ROMANCE DE EMMANUEL
Ajoelhou-se como uma figura angélica junto àquele banco humilde e
tosco, onde tantas vezes se sentara o servidor de Jesus, entre as suas
oliveiras frondosas e bem-amadas. Todos os presentes, inclusive os
próprios soldados que se sentiam empolgados de misterioso temor,
prostraram-se genuflexos, acompanhando-lhe a reverência, enquanto, à
claridade de algumas tochas, sopravam perfumadas as brisas leves das
noites formosas e estreladas da Samaria de há dois mil anos...
- Irmãos - começou ela, emocionada, assumindo pela primeira vez a
direção de uma assembléia de crentes -, elevemos a Jesus o coração e o
pensamento!...
Uma sensação mais forte parecia embargar-lhe a voz, inundando-lhe
os olhos de lágrimas doloridas...
Mas, como se forças invisíveis e poderosas a alentassem, continuou
serenamente:
- Jesus, meigo e divino Mestre, foi hoje o dia glorioso em que partiu
para o céu um valoroso apóstolo do teu Reino... Foi ele, aqui na Terra,
Senhor, a nossa proteção, o nosso amparo e a nossa esperança!... Na sua
fé, encontramos a precisa fortaleza, e foi em seu coração compassivo que
conseguimos haurir o consolo necessário!... Mas julgaste oportuno que
Simeão fosse descansar no teu regaço amoroso e compassivo! Como tu,
sofreu ele os tormentos da cruz, revelando a mesma confiança na
Providência Divina, nos dolorosos sacrifícios do seu amargo testemunho...
Recebe-o, Senhor, no teu Reino de Paz e de Misericórdia! Simeão tornouse
bem-aventurado por suas dores, por seu denodo moral, por suas
angustiosas aflições suportadas com o valor e a fé que nos ensinaste...
Ampara-o nas claridades do Paraíso do teu amor inesgotável, e que nós,
exilados na saudade e na amargura, aprendamos a lição luminosa do teu
valoroso apóstolo da Samaria!... Se algum dia nos julgares também dignos
do mesmo sacrifício, forta211
HÁ DOIS MIL ANOS...
lece-nos a energia, para que provemos ao mundo a excelência dos teus
ensinamentos, ajudando-nos a morrer com valor, pela tua paz e pela tua
verdade, como o teu missionário carinhoso a quem prestamos, nesta hora,
a homenagem do nosso amor e do nosso reconhecimento...
Nesse ínterim, houve na sua oração um interregno. Todavia,
continuou:
- Jesus, a ti que vieste a este mundo, mais para os desesperados da
salvação, levantando os mais doentes e os mais infelizes, endereçamos,
igualmente, nossa súplica pelo celerado que não hesitou em tripudiar
sobre tuas leis de fraternidade e amor, martirizando um inocente, e que foi
arrebatado pela morte para o julgamento da tua justiça. Queremos
esquecer a sua infâmia, como perdoaste aos teus algozes do alto da cruz
infamante do martírio... Ajuda-nos, Senhor, para que compreendamos e
pratiquemos os teus ensinos!...
Levantando-se, comovida, Lívia descobriu o cadáver do apóstolo e
beijou-lhe as mãos pela última vez, exclamando em lágrimas, carinhosa:
- Adeus, meu mestre, meu protetor e meu amigo... Que Jesus te
receba o espírito iluminado e justo no seu Reino de luzes imortais, e que a
minha pobre alma saiba aproveitar, neste mundo, a tua lição de fé e
valoroso heroísmo!...
Repousado numa urna improvisada, o corpo inerte de Simeão foi
conduzido ao seu último jazigo. Numerosas tochas haviam sido acesas
para o ofício amargo e doloroso.
E enquanto o cadáver do lictor Sulpício descia à terra úmida, sem
outro auxílio além da cooperação dos seus prepostos, o nobre ancião ia
repousar à frente do seu templo e do seu ninho, entre as virações
cariciosas do vale, à sombra fresca das oliveiras que lhe eram tão
queridas!...
Lívia dispensou, em seguida, os soldados do governador e,
guardada por homens valorosos e
212
ROMANCE DE EMMANUEL
dedicados, passou o resto da noite em companhia de Ana e da filhinha, em
profundas meditações e dolorosas cismas
Ao raiar da aurora, retiravam-se definitivamente do vale de Siquém,
acompanhadas por um vizinho de Simeão, encaminhando-se, de volta, a
Cafarnaum, e levando, no íntimo, numerosas lições para toda a vida.
Sabedoras de que não se fariam esperar as represálias das
autoridades administrativas, regressaram por estradas diferentes, que
constituíam atalhos preciosos, sem tocar em Naim para a troca de animais.
Com algumas horas sucessivas, em marcha forçada, atingiam o solar
tranqüilo, onde iam descansar dos golpes sofridos.
Lívia remunerou largamente o seu dedicado companheiro de viagem,
retirando-se para os seus aposentos, onde fixou, em base preciosa, a
pequena cruz de madeira que lhe dera o apóstolo, algumas horas antes do
cruento martírio.
Alguns dias se passaram sobre os infaustos acontecimentos.
Pôncio Pilatos, contudo, informado de todos os pormenores do
ocorrido, rugiu de ódio selvagem. Reconhecendo que defrontava
poderosos inimigos, quais Públio Lentulus e sua mulher, buscou acionar
por outro lado o mecanismo de sinistras represálias. Recolhendo-se
imediatamente ao seu palácio de Samaria, fez que todos os habitantes da
região pagassem muito caro a morte do lictor, humilhando-os através de
medidas aviltantes e vexatórias. Assassínios nefandos foram praticados
entre os elementos da população pacífica do vale, propagando-se por
Sebaste e outros núcleos mais adiantados a rede de crimes e crueldades
da sua mentalidade vingativa e tenebrosa.
Estacionemos, todavia, em Cafarnaum e aguardemos aí a chegada
de um homem.
Ao cabo de alguns dias, com efeito, regressava o senador de sua
viagem através da Palestina.
213
HÁ DOIS MIL ANOS...
Após o seu regresso, Lívia cientificou-o de quanto ocorrera na sua
ausência. Públio Lentulus ouvia-lhe o relato silenciosamente. À medida
que se lhe tornavam conhecidas as ocorrências, sentia-se intimamente
tomado de indignação e de revolta contra o administrador da Judeia, não
só pela sua incorreção política, mas também pela extrema antipatia
pessoal que a sua figura lhe inspirava, resolvendo, em face do acontecido,
não vacilar um segundo em processá-lo acerbamente, como quem julgava
dever perseguir o mais cruel dos inimigos.
O leitor poderá, talvez, supor que o orgulhoso romano teria o
coração sensibilizado e modificados os sentimentos a respeito da esposa,
de quem presumia possuir as mais flagrantes provas de deslealdade e
perjúrio, no santuário do lar e da família. Mas, Públio Lentulus era humano,
e, nessa condição precária e miserável, tinha de ser um fruto do seu
tempo, da sua educação e do seu meio.
Ao ouvir as últimas palavras de sua mulher, pronunciadas em tom
comovido, como o de alguém que pede apoio e reclama o direito de um
carinho, replicou austeramente:
- Lívia, eu me regozijo com a tua atitude e rogo aos deuses pela tua
edificação. Teus atos simbolizam para mim a realidade da tua regeneração,
depois da fragorosa queda vista com os meus olhos. Bem sabes que para
mim a esposa não mais deve existir; contudo, louvo a mãe de meus filhos,
sentindo-me confortado porque, se não acordaste a tempo de seres feliz,
despertaste ainda com a possibilidade de viver... Tua repulsa tardia por
esse homem cruel me autoriza a crer na tua maternal dedicação e isso
basta!...
Essas palavras, pronunciadas em tom de superioridade e secura,
demonstraram a Lívia que a separação afetiva de ambos deveria continuar
no ambiente doméstico, irremissivelmente.
Abalada nas comoções do seu martírio moral, retirou-se para o
quarto, onde se prostrou diante
214
ROMANCE DE EMMANUEL
da cruz de Simeão, com a alma desalentada e combalida. Ali, meditou
angustiosamente na sua penosa situação, mas, em dado instante, viu que
a lembrança humilde do apóstolo da Samaria irradiava uma luz caridosa e
resplandecente, ao mesmo tempo que uma voz suave e branda murmurava
aos seus ouvidos:
- Filha, não esperes da Terra a felicidade que o mundo não te pode
dar! Aí, todas as venturas são como neblinas fugidias, desfeitas ao calor
das paixões ou destroçadas ao sopro devastador das mais sinistras
desilusões!... Espera, porém, o Reino da misericórdia divina, porque nas
moradas do Senhor há bastante luz para que floresçam as mais
santificadas esperanças do teu coração maternal!... Não aguardes, pois, da
Terra, mais que a coroa de espinhos do sacrifício...
A esposa do senador não se surpreendeu com o fenômeno.
Conhecendo de oitiva a ressurreição do Senhor, tinha a convicção plena
de que se tratava da alma redimida de Simeão, que a seu ver voltava das
luzes do Reino de Deus para lhe confortar o coração.
Por semanas a fio, recebeu Públio Lentulus a visita de samaritanos
numerosos, que lhe vinham solicitar enérgicas providências contra os
desmandos de Pôncio Pilatos, então instalado no seu palácio de Samaria,
onde permanecia raramente, ordenando o assassínio ou a escravidão de
elementos numerosos, em sinal de vingança pela morte daquele que
considerava como o melhor áulico da sua casa.
Daí a algum tempo, regressava Comênio de sua viagem a Roma, com
um professor competente para a pequena Flávia. Além desse preceptor
notável, que lhe mandava a carinhosa solicitude de Flamínio Severus,
chegavam-lhe também novas noticias, que o senador considerava
confortadoras. Em virtude da sua solicitação, as altas autoridades do
Império determinaram a volta do pretor Sálvio
215
HÁ DOIS MIL ANOS...
Lentulus, com a família, para a sede do governo imperial, pedindo-lhe o
amigo, particularmente, a remessa de dados positivos quanto à
administração de Pilatos na Judeia, a fim de que o Senado pleiteasse a sua
remoção.
Em virtude dessas circunstâncias, daí a algum tempo voltava
Comênio a Roma levando a Flamínio um volumoso processo, relacionando
todas as crueldades praticadas por Pilatos, entre os samaritanos. Em vista
das distâncias, por muito tempo rolou o processo nos gabinetes
administrativos, até que no ano de 35 foi o Procurador da Judeia chamado
a Roma, onde foi destituído de todas as funções que exercia no governo
imperial, sendo banido para Viena, nas Gálias, onde se suicidou, daí a três
anos, ralado de remorsos, de privações e de amarguras.
Públio Lentulus permaneceu com as suas esperanças de pai, na
mesma vivenda da Galileia, dedicando-se quase que exclusivamente aos
seus estudos, aos seus processos administrativos e à educação da filha,
que manifestara, muito cedo, pendores literários ao lado de apreciáveis
dotes de inteligência.
Lívia conservou Ana junto de sua tutela e ambas continuaram
orando junto à cruz que lhes dera Simeão no instante extremo, rogando a
Jesus a necessária força para as penosas lutas da vida.
Debalde a família Lentulus esperava que o destino lhe trouxesse, de
novo, o sorriso encantador do pequenino Marcus e, enquanto o senador e
filhinha se preparavam para o mundo, junto de Lívia e Ana, que traziam as
suas esperanças postas no Céu, deixemos passar mais de dez anos sobre
a dolorosa serenidade da vila de Cafarnaum, mais de dez anos que
passaram lentos, silenciosos, tristes.
FIM DA PRIMEIRA PARTE
216
SEGUNDA PARTE
I
A morte de Flamínio
O ano de 46 corria calmo.
Em Cafarnaum, vamos encontrar, de novo, as nossas personagens
mergulhadas numa serenidade relativa.
As autoridades administrativas, em Roma, não eram as mesmas.
Entretanto, apoiado no prestígio do seu nome e nas consideráveis
influências políticas de Flamínio Severus, perante o Senado, Públio
Lentulus continuava comissionado na Palestina, onde gozava de todos os
direitos e regalos políticos, na administração provincial.
Debalde continuara ali o senador, a despeito de todo o seu imenso
desejo de voltar à sede do governo imperial, esperando o ensejo de reaver
o filho, que o tempo continuava a reter no domínio das sombras
misteriosas. Nos últimos anos, perdera por completo a esperança de
atingir o seu desiderato, mesmo porque, considerava, a esse tempo
Marcus Lentulus deveria estar no seu primeiro período de juventude,
tornando-se irreconhecível aos olhos paternos.
217
HÁ DOIS MIL ANOS...
Outras vezes, ponderava o orgulhoso patrício que o filho não mais
vivia; que, certamente, as forças perversas e criminosas que o haviam
arrebatado do lar teriam exterminado, igualmente, o gracioso menino sob a
foice da morte, temendo uma punição inexorável. Lá dentro, porém, no imo
dalma, latejava a intuição de que Marcus ainda vivia, razão por que, entre
as indecisões e alternativas, de todos os dias, resolvera, antes de tudo,
ouvir a voz do dever paternal. lançando mão de todos os recursos para
reencontrá-lo, permanecendo ali indefinidamente, contra os seus projetos
mais decididos e mais sinceros.
A esse tempo, vamos encontrá-lo com os traços fisionômicos
ligeiramente alterados, embora treze anos houvessem dobado sobre os
dolorosos acontecimentos de 33. Seus cabelos ainda guardavam
integralmente a cor natural e apenas algumas rugas, quase imperceptíveis,
tinham vindo acentuar a sua facies de profunda austeridade. Serena
tristeza lhe pairava no semblante, invariavelmente, levando-o a isolar-se
quase da vida comum, para mergulhar tão somente no oceano dos seus
papéis e dos seus estudos, com a única preocupação de maior vulto, que
era a educação da filha, buscando dotá-la das mais elevadas qualidades
intelectivas e sentimentais. Sua vida no lar continuava a mesma, embora o
coração muitas vezes lhe pedisse reatar o laço conjugal, atendendo
àqueles treze anos de separação íntima, com a mais absoluta renúncia de
Lívia a todas e quaisquer distrações que não fossem as da vida doméstica
e da sua crença. fervorosa e sincera. A sós com as suas meditações,
Públio Lentulus deixava divagar o pensamento pelas recordações mais
doces e mais distantes e, nessas horas de introspecção, ouvia a voz da
consciência que subia do coração ao cérebro, como um apelo à razão
inflexível, tentando destruir-lhe os preconceitos, mas o orgulho vencia
sempre, com a sua rigidez inquebrantável. Algo lhe dizia no íntimo
218
ROMANCE DE EMMANUEL
que sua mulher estava isenta de toda mácula, mas o espírito de vaidade
preconceituosa lhe fazia ver, imediatamente, a cena inesquecível da
esposa ao deixar o gabinete privado de Pilatos, em vestes de disfarce,
ouvindo ainda, sinistramente, as palavras escarninhas de Fúlvia Prócula,
nas suas calúnias estranhas e ominosas...
Lívia, porém, se insulara, envolta num véu de triste resignação,
como quem espera as providencias sobrenaturais, que nunca aparecem no
inquieto decurso de uma existência humana. O esposo a conservava junto
da filha, atendendo simplesmente à condição de mãe, não lhe permitindo,
porém, de modo algum, interferir nos seus planos e trabalhos educativos.
Para Lívia, aquele golpe rude fôra o maior sofrimento da sua vida. A
própria calúnia não lhe doera tanto; mas, o reconhecer-se como
dispensável junto da filha do seu coração, constituía a seus olhos a mais
dolorosa humilhação da sua existência. Era por esse motivo que mais se
abroquelava na fé, procurando enriquecer a alma sofredora, com as luzes
da crença fervorosa e sincera.
Longe de conservar as energias orgânicas, tal como acontecera ao
marido, seu rosto testemunhava as injúrias do tempo, com a sua pesada
bagagem de sofrimentos e amarguras. Na sua fronte, que as dores haviam
santificado, pendiam já alguns fios prateados, enquanto os olhos
profundos se tocavam de brilho misterioso, como se houvessem
intensificado o próprio fulgor, de tanto se fixarem no infinito dos céus.
Seus traços fisionômicos, embora atestassem velhice prematura,
revelavam ainda a antiga beleza, agora transformada em indefinível e
nobre expressão de martírio e de virtude. Um único pedido fizera ao
esposo, quando se viu isolada dos seus afetos mais queridos, no ambiente
doméstico, longe do próprio contacto espiritual com a filha, circunstância
que ainda mais lhe afligia o coração amargurado: - foi apenas que lhe
permi219
HÁ DOIS MIL ANOS...
tisse continuar nas suas práticas cristãs, em companhia de Ana, que tanto
se lhe afeiçoara, com aquele espírito de dedicação que lhe conhecemos, a
ponto de desprezar as oportunidades que se lhe ofereceram para constituir
família. O senador deu-lhe ampla permissão em tal sentido, chegando a
facultar-lhe recursos financeiros para atender aos numerosos operários da
doutrina que a procuravam, discretamente, amparando-se nas suas
possibilidades materiais para iniciativas renovadoras.
Falta-nos, agora, apresentar Flávia Lentúlia aos que a viram na
infância, doente e tímida.
No esplendor dos seus vinte e dois anos, ostentava o fruto da
educação que o pai lhe dera, com a forte expressão pessoal do seu caráter
e da sua formação espiritual.
A filha do senador era Lívia, na encantadora graça dos seus dotes
físicos, e era Públio Lentulus, pelo coração. Educada por professores
eminentes, que se sucederam no curso dos anos, sob a escolha dos
Severus, que jamais se descuidaram dos seus amigos distantes, sabia o
idioma pátrio a fundo, manejando o grego com a mesma facilidade e
mantendo-se em contacto com os autores mais célebres, em virtude do
seu constante convívio com a intelectualidade paterna.
A educação intelectual de uma jovem romana, nessa época, era sem
dúvida secundária e deficiente. Os espetáculos empolgantes dos
anfiteatros, bem como a ausência de uma ocupação séria, para as
mulheres do tempo, em face da incessante multiplicação e barateamento
dos escravos, prejudicaram sensivelmente a cultura da mulher romana, no
fastígio do Império, quando o espírito feminino rastejava no escândalo, na
depravação moral e na vida dissoluta.
O senador, porém, fazia questão de ser um homem antigo. Não
perdera de vista as virtudes heróicas e sublimadas das matronas
inesquecíveis, das suas tradições familiares, e foi por isso que,
220
ROMANCE DE EMMANUEL
fugindo à época, buscou aparelhar a filha para a vida social, com a cultura
mais aprimorada possível, embora lhe enchesse igualmente o coração de
orgulho e vaidade, com todos os preconceitos do tempo.
A jovem amava a mãe com extrema ternura, mas à vista das ordens
do pai, que a conservava invariavelmente junto dele, nos seus gabinetes
de estudo ou nas pequenas viagens costumeiras. não fazia mistério da sua
predileção pelo espírito paterno, de quem presumia haver herdado as
qualidades mais fulgurantes e mais nobres. sem conseguir entender a
doce humildade e a resignação heróica da mãe, tão digna e tão
desventurada.
O senador buscara desenvolver-lhe as tendências literárias,
possibilitando-lhe as melhores aquisições de ordem intelectual,
admirando-lhe a facilidade de expressão, principalmente na arte poética,
tão exaltada naquela época.
O tempo transcorria com relativa calma para todos os corações.
De vez em quando, falava-se na possibilidade de regressar a Roma,
plano esse cuja realização era sempre procrastinada, em vista da
esperança de reencontrar o desaparecido.
Num dia suave do mês de março, quando as árvores frondosas se
cobriam de flores, vamos encontrar na casa do senador um mensageiro
que chegava de Roma a toda pressa.
Tratava-se de um emissário de Flamínio Severus, que em longa carta
comunicava ao amigo o seu precário estado de saúde, acrescentando que
desejava abraçá-lo antes de morrer. Comovedores apelos constavam
desse documento privado, suscitando ao espírito de Públio as mais
acurada ponderações. Todavia, a leitura de uma carta assinada por
Calpúrnia, que viera em separado, era decisiva. Nesse desabafo, a
veneranda senhora o informou do estado de saúde do marido, que, a seu
ver, era precaríssimo, acentuando os penosos dissabores e angustiosas
preocupações que ambos ex221
HÁ DOIS MIL ANOS...
perimentavam acerca dos filhos, que, em plena mocidade, se entregavam
às maiores dissipações, seguindo a corrente de desvarios sociais da
época. Terminava a carta comovedora, pedindo ao amigo que voltasse,
que os assistisse naquele transe, de modo que a sua amizade e paternal
interesse representassem uma força moderadora junto de Plínio e de
Agripa, que, homens feitos, se deixavam levar no turbilhão dos prazeres
mais nefastos.
Públio Lentulus não hesitou um instante.
Mostrou à filha os documentos recebidos e, depois de examinarem,
juntos, os pormenores do seu conteúdo, comunicou a Lívia o seu
propósito de voltar a Roma na primeira oportunidade.
A nobre senhora lembrou-se, então, de quão diversa lhe seria a vida
na grande cidade dos césares, com as idéias que agora possuía, e pediu a
Jesus não lhe faltasse a coragem necessária para vencer em todos os
embates que houvesse de sustentar na sociedade romana, para conservar
íntegra a sua fé.
A volta a Roma não reclamou, desse modo, grande demora. O
mesmo emissário levou as instruções do senador para os seus amigos da
Capital do Império e, daí a pouco, uma galera os esperava em Cesareia,
reconduzindo a família Lentulus, de regresso, depois da permanência de
quinze anos na Palestina.
Desnecessário dizer dos pequeninos incidentes do retorno, tal a
vulgaridade das viagens antigas, com a sua monotonia, aliada às
vagarosas perspectivas e ao doloroso espetáculo do martírio dos
escravos.
Cumpre-nos, entretanto, acrescentar que, nas vésperas da chegada,
o senador chamou a filha e a mulher, dirigindo-lhes a palavra em tom
discreto:
- Antes de aportarmos, convém lhes explique a minha resolução a
respeito do nosso pobre Marcus.
Há muitos anos, guardo o maior silêncio em torno do assunto, para
com os meus afeiçoados de
222
ROMANCE DE EMMANUEL
Roma e não desejo ser considerado mau pai, em nosso ambiente social.
Somente uma circunstância, como a que nos impõe esta viagem, me
levaria a regressar, porquanto não se justifica que um pai abandone o filho
em tais paragens, ainda mesmo torturado pela incerteza da continuidade
de sua existência.
Assim, resolvi comunicar, a quantos mo perguntem, que o filho está
morto há mais de dez anos, como, de fato, deverá estar para nós outros,
visto a impossibilidade de o reconhecermos, na hipótese do seu
reaparecimento.
Se soubessem de nossas mágoas, não faltariam embusteiros que
desejassem ludibriar nossa boa fé, explorando o sentimentalismo familiar.
Ambas assentiram na decisão, que lhes parecia a mais acertada, e,
dai a minutos, o porto de Óstia estava à vista, agora lindamente aparelhado
pelo zelo do Imperador Cláudio, que ali mandara executar obras
interessantes e monumentais.
Nessa hora, não se observava o contentamento, natural em tais
circunstâncias.
A partida, quinze anos antes, havia sido um cântico de esperança
nas expectativas suaves do futuro, mas o regresso estava cheio do
silêncio amargo das mais penosas realidades.
Além do desencanto da vida conjugal, Públio e Lívia não viam ali,
entre os rostos amigos que os esperavam, as silhuetas de Flamínio e
Calpúrnia, que consideravam irmãos muito amados.
Contudo, dois rapazes simpáticos e fortes, de gestos
desembaraçados, nas suas togas irrepreensíveis, dirigiram-se a eles
imediatamente, em escaleres confortáveis, mal a embarcação havia
ancorado, rapazes esses que o senador e esposa reconheceram de pronto,
num afetuoso e comovido abraço.
Tratava-se de Plínio e seu irmão que, incumbidos pelos pais, vinham
receber os queridos ausentes.
223
HÁ DOIS MIL ANOS...
Apresentados a Flávia, ambos fizeram um movimento instintivo de
admiração, recordando o dia da partida, quando a haviam acomodado no
beliche, entre os seus gemidos e caretas de criança doente.
A jovem impressionara-se, também, com a figura de ambos, de quem
possuía apagadas reminiscências, entre as recordações remotas da sua
infância. Principalmente Plínio Severus, o mais moço, a havia
impressionado profundamente, com os seus vinte seis anos completos, do
mesmo porte elegante e distinto com que ela havia idealizado o herói da
sua imaginação feminina.
Notava-se, igualmente, num relance, que o rapaz não ficara
indiferente àquelas mesmas emoções, porque, trocadas as primeiras
impressões da viagem e examinada a situação da saúde de FIamínio
Severus, considerada pelos filhos como excessivamente grave, Plínio
ofereceu o braço à jovem, enquanto Agripa lhe observava num leve tom de
ciúme:
- Mas que é isso, Plínio? Flávia pode suscetibilizar-se com a tua
intimidade excessiva!...
- Ora, Agripa - respondeu ele, com um franco sorriso -, estás muito
prejudicado pelos formalismos da vida pública. Flávia não pode estranhar
os nossos costumes, na sua condição de patrícia pelo nascimento e, ao
demais, não nasci para as disciplinas do Estado, tão do teu gosto!...
A essas palavras, ditas com visível bom humor, acrescentou Públio
Lentulus, confortado pelo ambiente da sua predileção:
- Vamos, meus filhos!
E dando o braço à esposa, para desempenhar a comédia da sua
felicidade conjugal na vida comum da grande cidade, seguido de Plínio,
que amparava a jovem no seu braço forte e conquistador em assuntos do
coração, desembarcaram junto de Agripa, a fim de descansarem um
pouco, antes de seguirem diretamente para Roma, e, para o que, todas as
providências haviam sido tomadas pelos irmãos
224
ROMANCE DE EMMANUEL
Severus, com o máximo de carinho e espontânea dedicação.
Lívia não se esqueceu de Ana, providenciando para o seu conforto
junto aos demais servos da casa, em todo o percurso de caminho que os
separava da residência.
Em direção à cidade, pensou então o senador que, finalmente, ia
rever o amigo muito amado. Há longos anos acariciava a idéia de
confessar-lhe, de viva voz, todos os seus desgostos na vida conjugal,
expondo lhe com franqueza e sinceridade as suas preocupações, acerca
dos fatos que o separavam da esposa, na intimidade do lar. Tinha sede de
suas palavras afetuosas e de explicações consoladoras, porque sentia que
amava a mulher acima de tudo, apesar de todos os dissabores
experimentados. Não crendo sinceramente na sua queda, apenas seu
orgulho de homem o afastava de uma reconciliação que cada dia se
tornava mais imperiosa e necessária.
Em breve defrontavam a antiga residência, lindamente ornamentada
para recebê-los. Numerosos servos se movimentavam, enquanto os
recém-vindos faziam o reconhecimento dos lugares mais íntimos e mais
familiares.
Havia quinze anos que o palácio do Aventino aguardava os donos,
sob o carinho de escravos dedicados e dignos.
Logo se servia uma refeição frugal no triclínio enquanto os irmãos
Severus, que participavam desse ligeiro repasto, esperavam os seus
amigos, a fim de seguirem todos juntos para a residência de Flamínio,
onde o enfermo os aguardava ansiosamente.
Plínio, em dado instante, como quem traz à baila uma notícia
interessante e agradável, exclamou, dirigindo-se ao senador:
- Há bem tempo, ficamos conhecendo vosso tio Sálvio Lentulus e
sua família, que residem perto do Fórum.
225
HÁ DOIS MIL ANOS...
- Meu tio? - perguntou Públio, impressionado, como se as
lembranças de Fúlvia lhe trouxessem ao íntimo uma aluvião de fantasmas.
Mas, ao mesmo tempo, como se estivesse fazendo o possível por
adormentar as próprias mágoas, acentuou com suposta serenidade:
- Ah! é verdade! Faz mais de doze anos que ele regressou da
Palestina...
Foi neste comenos que Agripa interveio como a vingar-se da atitude
do irmão, quando ainda não havia desembarcado, exclamando
intencionalmente:
- E por sinal que Plínio parece inclinado a desposar-lhe a filha, de
nome Aurélia, com quem mantém as melhores relações afetivas, de muito
tempo.
Ao ouvir essas palavras, Flávia Lentulus fitou o interpelado, como se
entre o seu coração e o filho mais moço de Flamínio já houvesse os mais
fortes laços de compromissos sentimentais, dentro das leis misteriosas
das afinidades psíquicas.
Enquanto se passava esse duelo de emoções, Plínio fitou o irmão
quase com ódio, dando a entender a impulsividade do seu espírito e
respondendo com ênfase, como a defender-se de uma acusação
injustificável, perante a mulher das suas preferências:
- Ainda desta vez, Agripa, estás enganado. Minhas relações com
Aurélia não têm outro fundamento, além do da pura amizade reciproca,
mesmo porque considero muito remota qualquer possibilidade de
casamento, na fase atual da minha vida.
Agripa esboçou um sorriso brejeiro, enquanto o senador,
compreendendo a situação, acalmava os ânimos, exclamando com
bondade:
- Está bem, filhos; mas falaremos depois sobre meu tio. Sinto-me
ansioso por abraçar o querido enfermo e não temos tempo a perder.
226
ROMANCE DE EMMANUEL
Em breves minutos um grupo de liteiras encaminhava-se para a
nobre residência dos Severus, onde Flamínio aguardava o amigo,
ansiosamente.
Sua fisionomia não acusava mais aquela mobilidade antiga e a
empolgante expressão de energia que a caracterizava, mas, em
compensação, grande placidez se lhe irradiava dos olhos, sensibilizando a
quantos o visitavam nos seus derradeiros dias de lutas terrestres. A
expressão do semblante era a do lutador derribado e abatido, exausto de
combate