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segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Há 2000 Anos-Parte 1-Francisco Cândido Xavier

 

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HÁ 2000 ANOS...

FRANCISCO CÂNDIDO XAVIER

Há 2000 anos...

EPISÓDIOS DA HISTÓRIA DO CRISTIANISMO NO SÉCULO I

Romance de

EMMANUEL

FEDERAÇÃO ESPÍRITA BRASILEIRA

DEPARTAMENTO EDITORIAL

Rua Souza Valente, 17

20941-040 - Rio - RJ - Brasil

ISBN 85-7328-074-3

29ª edição

Do 386º ao 410º milheiro

Capa de CECCONI

B.N. 6.825

053-AA;000.52-O;9/1996

Copyright 1939 by

FEDERAÇÃO ESPÍRITA BRASILEIRA

(Casa-Máter do Espiritismo)

SGAN 603 - Conjunto F

78830-030 - Brasília - DF - Brasil

Composição, fotolitos e impressão offset das

Oficinas do Departamento Editorial e Gráfico da FEB

Rua Souza Valente, 17

20941-040 - Rio, RJ - Brasil

C.G.C. nº 33.644.857/0002-84 I.E. nº 81.600.503

Impresso no Brasil

PRESITA EN BRAZILO

Pedidos de livros à FEB - Departamento Editorial, via

Correio ou, em grandes encomendas, via rodoviário: por

carta, telefone (021) 589-6020, ou FAX (021) 589-6838.

Na intimidade de Emmanuel

Ao Leitor

Leitor, antes de penetrares o limiar desta história, é justo

apresentemos à tua curiosidade algumas observações de Emmanuel, o exsenador

Públio Lentulus, descendente da orgulhosa "gens Cornelia",

recebidas desse generoso Espírito, na intimidade do grupo de estudos

espiritualistas de Pedro Leopoldo, Estado de Minas Gerais.

Através destas observações ficarás conhecendo as primeiras

palavras do Autor, a respeito desta obra, e suas impressões mais

profundas, no curso do trabalho, que foi levado a efeito de 24 de outubro

de 1938 a 9 de fevereiro de 1939, segundo as possibilidades de tempo do

seu médium e sem perturbar outras atividades do próprio Emmanuel, junto

aos sofredores que freqüentemente o procuram, e junto ao esforço de

propaganda do Espiritismo cristão na Pátria do Cruzeiro.

Em 7 de setembro de 1938, afirmava ele em pequena mensagem

endereçada aos seus amigos encarnados:

- "Algum dia, se Deus mo permitir, falar-vos-ei do orgulhoso patrício

Públio Lentu10

ROMANCE DE EMMANUEL

lus, a fim de algo aprenderdes nas dolorosas experiências de uma alma

indiferente e ingrata.

"Esperemos o tempo e a permissão de Jesus."

Emmanuel não esqueceu a promessa. Com efeito, em 21 de outubro

do mesmo ano, voltava a recordar, noutro comunicado familiar:

- "Se a bondade de Jesus nos permitir, iniciaremos o nosso esforço,

dentro de alguns dias, esperando eu a possibilidade de grafarmos as

nossas lembranças do tempo em que se verificou a passagem do Divino

Mestre sobre a face da Terra.

"Não sei se conseguiremos realizar tão bem, quanto desejamos,

semelhante intento. De ante-mão, todavia, quero assinalar minha confiança

na Misericórdia do Nosso Pai de Infinita Bondade."

De fato, em 24 de outubro referido, recebia o médium Xavier a

primeira página deste livro e, no dia seguinte, Emmanuel voltava a dizer:

- "Iniciamos, com o amparo de Jesus, mais um despretensioso

trabalho. Permita Deus que possamos levá-lo a bom termo.

"Agora verificareis a extensão de minhas fraquezas no passado,

sentindo-me, porém, confortado em aparecer com toda a sinceridade do

meu coração, ante o plenário de vossas consciências. Orai comigo,

pedindo a Jesus para que eu possa completar esse esforço, de modo que

o plenário se dilate, além do vosso meio, a fim de que a minha confissão

seja um roteiro para todos."

Durante todo o esforço de psicografia, o Autor deste livro não

perdeu ensejo de ensinar a humildade e a fé a quantos o acompanham. Em

30 de dezembro de 1938, comentava, em nova mensagem afetuosa:

11

HÁ DOIS MIL ANOS...

- "Agradeço, meus filhos, o precioso concurso que me vindes

prestando. Tenho-me esforçado, quanto possível, para adaptar uma

história tão antiga ao sabor das expressões do mundo moderno, mas, em

relatando a verdade, somos levados a penetrar, antes de tudo, na essência

das coisas, dos fatos e dos ensinamentos.

"Para mim essas recordações têm sido muito suaves, mas também

muito amargas. Suaves pela rememoração das lembranças amigas, mas

profundamente dolorosas, considerando o meu coração empedernido, que

não soube aproveitar o minuto radioso que soara no relógio da minha vida

de Espírito, há dois mil anos.

"Permita Jesus que eu possa atingir os fins a que me propus,

apresentando, nesse trabalho, não uma lembrança interessante acerca de

minha pobre personalidade, mas, tão somente, urna experiência para os

que hoje trabalham na semeadura e na seara do Nosso Divino Mestre."

De outras vezes, Emmanuel ensinava aos seus companheiros

encarnados a necessidade de nossa ligação espiritual com Jesus, no

desempenho de todos os trabalhos. No dia 4 de janeiro de 1939, grafava

ele esta prece, ainda com respeito as memórias do passado remoto:

"Jesus, Cordeiro Misericordioso do Pai de todas as graças, são

passados dois mil anos e minha pobre alma ainda revive os seus dias

amargurados e tristes!...

"Que são dois milênios, Senhor, no relógio da Eternidade?

"Sinto que a tua misericórdia nos responde em suas ignotas

profundezas... Sim, o tempo é o grande tesouro do homem e vinte séculos,

como vinte existências diversas, podem ser vin12

ROMANCE DE EMMANUEL

te dias de provas, de experiências e de lutas redentoras.

"Só a tua bondade é infinita! Somente tua misericórdia pode

abranger todos os séculos e todos os seres, porque em Ti vive a gloriosa

síntese de toda a evolução terrestre, fermento divino de todas as culturas,

alma sublime de todos os pensamentos.

"Diante de meus pobres olhos, desenha-se a velha Roma dos meus

pesares e das minhas quedas dolorosas... Sinto-me ainda envolto na

miséria de minhas fraquezas e contemplo os monumentos das vaidades

humanas... Expressões políticas, variando nas suas características de

liberdade e de força, detentores da autoridade e do poder, senhores da

fortuna e da inteligência, grandezas efêmeras que perduram apenas por

um dia fugaz!... Tronos e púrpuras, mantos preciosos das honrarias

terrestres, togas da falha justiça humana, parlamentos e decretos

supostos irrevogáveis!... Em silêncio, Senhor, viste a confusão que se

estabelecera entre os homens inquietos e, com o mesmo desvelado amor,

salvaste sempre as criaturas no instante doloroso das ruínas supremas...

Deste a mão misericordiosa e imaculada aos povos mais humildes e mais

frágeis, confundiste a ciência mentirosa de todos os tempos, humilhaste

os que se consideravam grandes e poderosos!...

"Sob o teu olhar compassivo, a morte abriu suas portas de sombra e

as falsas glórias do mundo foram derruídas no torvelinho das ambições,

reduzindo-se todas as vaidades a um acervo de cinzas!...

"Ante minhalma surgem as reminiscências das construções

elegantes das colinas célebres; vejo o Tibre que passa, recolhendo os

detritos da grande Babilônia imperial, os aquedutos, os mármores

preciosos, as termas que pareciam

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HÁ DOIS MIL ANOS...

indestrutíveis... Vejo ainda as ruas movimentadas, onde uma plebe

miserável espera as graças dos grandes senhores, as esmolas de trigo, os

fragmentos de pano para resguardarem do frio a nudez da carne.

"Regurgitam os circos... Há uma aristocracia do patriciado

observando as provas elegantes do Campo de Marte e, em tudo, das vias

mais humildes até os palácios mais suntuosos, fala-se de César, o

Augusto!...

"Dentro dessas recordações, eu passo, Senhor, entre farraparias e

esplendores, com o meu orgulho miserável! Dos véus espessos de minhas

sombras, também eu não te podia ver, no Alto, onde guardas o teu sólio de

graças inesgotáveis...

"Enquanto o grande Império se desfazia em suas lutas inquietantes,

trazias o teu coração no silêncio e, como os outros, eu não percebia que

vigiavas!

"Permitiste que a Babel romana se levantasse muito alto, mas,

quando viste que se ameaçava a própria estabilidade da vida no planeta,

disseste: - "Basta! São vindos os tempos de operar-se na seara da

Verdade!" E os grandes monumentos, com as estátuas dos deuses

antigos, rolaram de seus pedestais maravilhosos! Um sopro de morte

varreu as regiões infestadas pelo vírus da ambição e do egoísmo

desenfreado, despovoando-se, então, a grande metrópole do pecado.

Ruíram os circos formidandos, caíram os palácios, enegreceram-se os

mármores luxuosos...

"Bastou uma palavra tua, Senhor, para que os grandes senhores

voltassem às margens do Tibre, como escravos misérrimos!...

Perambulamos, assim, dentro da nossa noite, até o dia em que nova luz

brotara em nossa consciência. Foi preciso que os séculos passassem,

14

ROMANCE DE EMMANUEL

para aprendermos as primeiras letras de tua ciência infinita, de perdão e

de amor!

"E aqui estamos, Jesus, para louvar-te a grandeza! Dá que

possamos recordar-te em cada passo, ouvir-te a voz em cada som

distraído do caminho, para fugirmos da sombra dolorosa!... Estende-nos

tuas mãos e fala-nos ainda do teu ....... Temos sede imensa daquela água

eterna da vida, que figuraste no ensinamento à Samaritana...

"Exército de operários do teu Evangelho, nós nos movemos sob as

tuas determinações suaves e sacrossantas! Ampara-nos, Senhor, e não

nos retires dos ombros a cruz luminosa e redentora, mas ajuda-nos a

sentir, nos trabalhos de cada dia, a luz eterna e imensa do teu Reino de

paz, de concórdia e de sabedoria, em nossa estrada de luta, de

solidariedade e de esperança!..."

Em 8 de fevereiro último, véspera do término da recepção deste

livro, agradecia Emmanuel o concurso de seus companheiros encarnados,

em comunicado familiar, do qual destacamos algumas frases:

- "Meus amigos, Deus vos auxilie e recompense. Nosso modesto

trabalho está a terminar. Poucas páginas lhe restam e eu vos agradeço de

coração.

"Reencontrando os Espíritos amigos das épocas mortas, sinto o

coração satisfeito e confortado ao verificar a dedicação de todos ao firme

pensamento de evolução, para a frente e para o alto, pois não é sem razão

de ser que hoje laboramos na mesma oficina de esforço e boa vontade.

"Jesus há-de recompensar a cota de esforço amigo e sincero que

me prestastes e que a sua infinita misericórdia vos abençoe é a minha

oração de sempre."

15

HÁ DOIS MIL ANOS...

Aqui ficam algumas das anotações íntimas de Emmanuel, fornecidas

na recepção deste livro. A humildade desse generoso Espírito vem

demonstrar que no plano invisível há, também, necessidade de esforço

próprio, de paciência e de fé para as realizações.

As notas familiares do Autor são um convite para que todos nós

saibamos orar, trabalhar e esperar em Jesus-Cristo, sem desfalecimentos

na luta que a bondade divina nos oferece para o nosso resgate, no

caminho da redenção.

Pedro Leopoldo, 2 de março de 1939.

A EDITORA

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PRIMEIRA PARTE

I

Dois amigos

Os últimos clarões da tarde haviam caído sobre o casario romano.

As águas do Tibre, ladeando o Aventino, deixavam retratados os

derradeiros reflexos do crepúsculo, enquanto nas ruas estreitas passavam

liteiras apressadas, sustidas por escravos musculosos e lépidos.

Nuvens pesadas amontoavam-se na atmosfera, anunciando

aguaceiros próximos, e as últimas janelas das residências particulares e

coletivas fechavam-se com estrépito, ao sopro dos primeiros ventos da

noite.

Entre as construções elegantes e sóbrias, que exibiam mármores

preciosos, no sopé da colina, um edifício havia que reclamava a atenção

do forasteiro pela singularidade das suas colunas severas e majestosas.

Uma vista de olhos ao seu exterior indicava a posição do proprietário,

dado o aspecto artístico e imponente.

Era, de fato, a residência do senador Públio Lentulus Cornelius,

homem ainda moço, que, à ma18

ROMANCE DE EMMANUEL

neira da época, exercia no Senado funções legislativas e judiciais, de

acordo com os direitos que lhe competiam, como descendente de antiga

família de senadores e cônsules da República.

O Império, fundado com Augusto, havia limitado os poderes

senatoriais, cujos detentores já não exerciam nenhuma influência direta

nos assuntos privativos do governo imperial, mas mantivera a

hereditariedade dos títulos e dignidades das famílias patrícias,

estabelecendo as mais nítidas linhas de separação das classes, na

hierarquia social.

Eram dezenove horas de um dia de maio de 31 da nossa era. Públio

Lentulus, em companhia do seu amigo Flamínio Severus, reclinado no

triclínio, terminava o jantar, enquanto Lívia, a esposa, expedia ordens

domésticas a uma jovem escrava etrusca.

O anfitrião era um homem relativamente jovem, aparentando menos

de trinta anos não obstante o seu perfil orgulhoso e austero, aliado à

túnica de ampla barra purpúrea, que impunha certo respeito a quantos se

lhe aproximavam, contrastando com o amigo que, revestindo a mesma

indumentária de senador, deixava entrever idade madura, iluminada de cãs

precoces, em penhor de bondade e experiência da vida.

Deixando a jovem senhora entregue aos cuidados domésticos,

ambos se dirigiram ao peristilo, por buscarem um pouco de oxigênio da

noite cálida, embora o aspecto ameaçador do firmamento prenunciasse

chuva iminente.

- A verdade, meu caro Públio - exclamava Flamínio, pensativo -, é

que te consomes a olhos vistos. Trata-se de uma situação que precisa

modificar-se sem perda de tempo. Já recorreste a todos os facultativos no

caso de tua filhinha?

- Infelizmente - retorquia o patrício com amargura - já lancei mão de

todos os recursos ao nosso alcance. Ainda nestes últimos dias, minha

pobre Lívia levou-a a distrair-se em nossa vivenda

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HÁ DOIS MIL ANOS...

de Tibur (1), procurando um dos melhores médicos da cidade, que afirmou

tratar-se de um caso sem remédio na ciência dos nossos dias. O

facultativo não chegou a positivar o diagnóstico, certamente em razão da

sua comiseração pela doentinha e pelo nosso paternal desespero; mas,

segundo nossas observações, acreditamos que o médico de Tibur

presume tratar-se de um caso de lepra.

- É uma presunção atrevida e absurda!

- Entretanto, se não podemos admitir qualquer dúvida com relação

aos nossos antepassados, sabes que Roma está cheia de escravos de

todas as regiões do mundo e são eles o instrumento de nossos trabalhos

de cada dia.

- É verdade... - concordou Flamínio, com amargura.

Um laivo de perspectivas sombrias transparecia na fronte dos dois

amigos, enquanto as primeiras gotas de chuva satisfaziam a sede das

roseiras floridas que enfeitavam as colunas graciosas e claras.

- E o pequeno Plínio? - perguntou Públio, como desejoso de

proporcionar novo rumo a conversação.

- Esse, como sabes, continua sadio, demonstrando ótimas

disposições Calpúrnia atrapalha-se, a cada momento, para satisfazer-lhe

os caprichos dos doze anos incompletos. Às vezes, é voluntarioso e

rebelde, contrariando as observações do velho Parmênides, só se

entregando aos exercícios da ginástica quando muito bem lhe apraz; no

entanto, tem grande predileção pelos cavalos. Imagina que, num momento

de irreflexão própria da idade, burlando toda a vigilância do irmão,

concorreu a uma tirada de bigas realizada nos treinos comuns de um

estabelecimento esportivo do Campo de Marte, obtendo um dos lugares de

maior destaque. Quando contemplo meus dois filhos, lembro-me sempre

da

__________

(1) Hoje Tivoli. (Nota da Editora.)

20

ROMANCE DE EMMANUEL

tua pequena Flávia Lentúlia, porque bem sabes dos meus propósitos para

o futuro, no sentido de estreitar os antigos laços que prendem as nossas

famílias.

Públio ouvia o amigo, calado, como se a inveja lhe espicaçasse o

coração carinhoso de pai.

- Todavia - revidou -, apesar de nossos projetos, os áugures não

favorecem nossas esperanças, porque a verdade é que minha pobre filha,

com todos os nossos cuidados, mais parece uma dessas infelizes

criaturinhas atiradas ao Velabro (1).

- Contudo, confiemos na magnanimidade dos deuses

- Dos deuses? - repetiu Públio, com mal disfarçado desalento. - A

propósito desse recurso imponderável, tenho excogitado mil teorias no

cérebro fervilhante. Há tempos, em visita a tua casa, tive ocasião de

conhecer mais intimamente o teu velho liberto grego. Parmênides falou-me

da sua mocidade e permanência na Índia, dando-me conta das crenças

hindus, com as suas coisas misteriosas da alma. Acreditas que cada um

de nós possa regressar, depois da morte, ao teatro da vida, em outros

corpos?

- De modo algum - replicou Flamínio, energicamente. - Parmênides,

não obstante o seu caráter precioso, leva muito longe as suas divagações

espirituais.

- Entretanto, meu amigo, começo a pensar que ele tem razão. Como

poderíamos explicar a diversidade da sorte neste mundo? Porque a

opulência dos nossos bairros aristocráticos e as misérias do Esquilino? A

fé no poder dos deuses não consegue elucidar esses problemas

torturantes. Vendo minha desventurada filhinha com a carne dilacerada e

apodrecida, sinto que o teu escravo está com a verdade. Que teria feito a

pequena Flávia, nos

__________

(1) Bairro da antiga Roma e que se localizava sobre um pântano.

21

HÁ DOIS MIL ANOS...

seus sete anos incompletos, para merecer tão horrendo castigo das

potestades celestiais? Que alegria poderiam encontrar as nossas

divindades nos soluços de uma criança e nas lágrimas dolorosas que nos

calcinam o coração? Não será mais compreensível e aceitável que

tenhamos vindo de longe com as nossas dividas para com os poderes do

Céu?

Flamínio Severus meneou a cabeça, como quem deseja afastar uma

dúvida, mas, retomando o seu aspecto habitual, obtemperou com firmeza:

- Fazes mal em alimentar semelhantes conjeturas no teu foro íntimo.

Nos meus quarenta e cinco anos de existência, não conheço crenças mais

preciosas do que as nossas, no culto venerável dos antepassados. É

preciso considerares que a diversidade das posições sociais é um

problema oriundo da nossa arregimentação política, a única que

estabeleceu uma divisão nítida entre os valores e os esforços de cada um;

quanto à questão dos sofrimentos, convém lembrar que os deuses podem

experimentar nossas virtudes morais, com as maiores ameaças à

enfibratura do nosso ânimo, sem que necessitemos adotar os absurdos

princípios dos egípcios e dos gregos, princípios, aliás, que já os reduziram

ao aniquilamento e ao cativeiro. Já ofereceste algum sacrifício no templo,

depois de tão angustiosas dúvidas?

- Tenho sacrificado aos deuses, segundo os nossos hábitos -

respondeu Públio, compungida mente - e ninguém mais que eu se orgulha

das gloriosas virtudes de nossas tradições familiares. Entretanto, minhas

observações não surgem tão somente a propósito da filhinha. Há muitos

dias, ando torturado com o espantoso enigma de um sonho.

- Um sonho? Como pode a fantasia abalar, desse modo, a fibra de

um patrício?

Públio Lentulus recebeu a pergunta mergulhado em profundas

cismas. Seus olhos parados pre22

ROMANCE DE EMMANUEL

sumiam devorar uma paisagem que o tempo distanciara no transcurso dos

anos.

A chuva, agora em bátegas pesadas, caía continuadamente, fazendo

os mais fortes transbordamentos do implúvio e represando-se na piscina

que enfeitava o pátio do peristilo.

Os dois amigos haviam-se recolhido a um largo banco de mármore,

reclinando-se nos estofos orientais que o forravam, prosseguindo na

palestra amistosa.

- Sonhos há - prosseguiu Públio - que se distinguem da fantasia, tal

a sua expressão de realidade irretorquível

Voltava eu de uma reunião no Senado, onde havíamos discutido um

problema de profunda delicadeza moral, quando me senti presa de

inexplicável abatimento.

Recolhi-me cedo e, quando parecia divisar junto de mim a imagem

de Têmis, que guardamos no altar doméstico, considerando as singulares

obrigações de quem exerce as funções da justiça, senti que uma força

extraordinária me selava as pálpebras cansadas e doloridas. No entanto,

via outros lugares, reconhecendo paisagens familiares ao meu espírito,

das quais me havia esquecido inteiramente.

Realidade ou sonho, não o sei dizer, mas vi-me revestido das

insígnias de cônsul, ao tempo da República. Parecia-me haver retrocedido

à época de Lúcio Sergius Catilina, pois o via a meu lado, bem como a

Cícero, que se me figuravam duas personificações, do mal e do bem.

Sentia-me ligado ao primeiro por laços fortes e indestrutíveis, como se

estivesse vivendo a época tenebrosa da sua conspiração contra o Senado,

e participando, com ele, da trama ignominiosa que visava à mais intima

organização da República. Prestigiava-lhe as intenções criminosas,

aderindo a todos os seus projetos com a minha autoridade administrativa,

assumindo a direção de reuniões secretas, onde decretei assas23

HÁ DOIS MIL ANOS...

sínios nefandos... Num relâmpago, revivi toda a tragédia, sentindo que

minhas mãos estavam nodoadas do sangue e das lágrimas dos inocentes.

Contemplei, atemorizado, como se estivesse regressando

involuntariamente a um pretérito obscuro e doloroso, a rede de infâmias

perpetradas com a revolução, em boa hora esmagada pela influência de

Cícero; e o detalhe mais terrível é que eu havia assumido um dos papéis

mais importantes e salientes na ignomínia... Todos os quadros hediondos

do tempo passaram, então, à frente dos meus olhos espantados...

Todavia, o que mais me humilhava nessas visões do passado

culposo, como se a minha personalidade atual se envergonhasse de

semelhantes reminiscências, é que me prevalecia da autoridade e do poder

para, aproveitando a situação, exercer as mais acerbas vinganças contra

inimigos pessoais, contra quem expedia ordens de prisão, sob as mais

terríveis acusações. E ao meu coração desalmado não bastava o

recolhimento dos inimigos aos calabouços infectos, com a conseqüente

separação dos afetos mais caros e mais doces, da família. Ordenei a

execução de muitos, na escuridão da noite, acrescendo a circunstância de

que a muitos adversários políticos mandei arrancar os olhos, na minha

presença, contemplando-lhes os tormentos com a frieza brutal das vinditas

cruéis!... Ai de mim que espalhava a desolação e a desventura em tantas

almas, porque, um dia, se lembraram de eliminar o verdugo cruel!

Depois de toda a série de escândalos que me afastaram do

Consulado, senti o término dos meus atos infames e misérrimos, diante de

carrascos inflexíveis que me condenaram ao terrível suplício do

estrangulamento, experimentando, então, todos os tormentos e angústias

da morte.

O mais interessante, porém, é que revi o inenarrável instante da

minha passagem pelas águas escuras do Aqueronte, quando me parecia

haver

24

ROMANCE DE EMMANUEL

descido aos lugares sombrios do Averno, onde não penetram as

claridades dos deuses. A grande multidão de vítimas acercou-se, então, de

minhalma angustiada e sofredora, reclamando justiça e reparação e

rebentando em clamores e soluços, que me pereciam no recôndito do

coração.

Por quanto tempo estive, assim, prisioneiro desse martírio

indefinível? Não sei dizê-lo. Apenas me recordo de haver lobrigado a figura

celeste de Lívia, que, no meio desse vórtice de pavores, estendia-me as

mãos fúlgidas e carinhosas.

Afigurava-se-me que minha esposa me era familiar de épocas

remotíssimas, porque não hesitei um instante em lhe tomar as mãos

suaves, que me conduziram a um tribunal, onde se alinhavam figuras

estranhas e venerandas. Cãs respeitáveis aureolavam o semblante sereno

desses juizes do Céu, emissários dos deuses para julgamento dos homens

da Terra. A atmosfera caracterizava-se por estranha leveza, cheia de luzes

cariciosas que iluminavam, perante todos os presentes, os meus

pensamentos mais secretos.

Lívia devia ser o meu anjo-tutelar nesse conselho de magistrados

intangíveis, porque sua destra pairava sobre minha cabeça, como a imporme

resignação e serenidade, a fim de ouvir as sentenças supremas.

Desnecessário será dizer-te do meu espanto e do meu receio, diante

desse tribunal que eu desconhecia, quando a figura daquele que me

pareceu a sua autoridade central me dirigiu a palavra, exclamando:

- Públio Lentulus, a justiça dos deuses, na sua misericórdia,

determina tua volta ao turbilhão das lutas do mundo, para que laves as

nódoas de tuas culpas nos prantos remissores. Viverás numa época de

maravilhosos fulgores espirituais, lutando com todas as situações e

dificuldades, não obstante o berço de ouro que te receberá ao renasceres,

a fim de que edifiques tua consciência denegrida, nas do25

HÁ DOIS MIL ANOS...

res que purificam e regeneram!... Feliz de ti se bem souberes aproveitar a

oportunidade bendita da reabilitação pela renúncia e pela humildade...

Determinou-se que sejas poderoso e rico, a fim de que, com o teu

desprendimento dos caminhos humanos, no instante preciso, possas ser

elemento valioso para os teus mentores espirituais. Terás a inteligência e a

saúde, a fortuna e a autoridade, como ensanchas à regeneração integral de

tua alma, porque chegará um momento em que serás compelido a

desprezar todas as riquezas e todos os valores sociais, se bem souberes

preparar o coração para a nova senda de amor e humildade, de tolerância

e perdão, que será rasgada, em breves anos, à face escura da Terra!... A

vida é um jogo de circunstâncias que todo espírito deve entrosar para o

bem, no mecanismo do seu destino. Aproveita, pois, essas possibilidades

que a misericórdia dos deuses coloca ao serviço da tua redenção. Não

desprezes o chamamento da verdade, quando soar a hora do testemunho e

das renúncias santificadoras... Lívia seguirá contigo pela via dolorosa do

aperfeiçoamento, e nela encontrarás o braço amigo e protetor para os dias

de provações ríspidas e acerbas. O essencial é a tua firmeza de ânimo no

caminho escabroso, purificando tua fé e tuas obras, na reparação do

passado delituoso e obscuro!...

A essa altura, a voz altiva do patrício ia-se tornando angustiada e

dolorosa. Amargas comoções íntimas represavam-se-lhe no coração,

atormentado por incoercível desalento.

Flamínio Severus ouvia-o com interesse e atenção, rebuscando o

meio mais fácil de lhe desvanecer impressões tão penosas. Sentia ímpetos

de desviar-lhe o curso dos pensamentos, arrancando-lhe o espírito

daquele mundo de emoções impróprias da sua formação intelectual,

apelando para sua educação e para o seu orgulho; mas, ao mesmo tempo,

não conseguia sopitar as próprias dúvidas íntimas, em face daquele

sonho, cuja nitidez e aspecto de

26

ROMANCE DE EMMANUEL

realidade o deixavam aturdido. Compreendia que era necessário primeiro

restabelecer sua própria fortaleza de ânimo, entendendo que a lógica da

brandura deveria ser o escudo de suas palavras, para esclarecimento do

amigo que ele mais considerava irmão.

Foi assim que, pousando a mão esguia e branca nos seus ombros,

perguntou com amável doçura:

- E depois, que mais viste?

Públio Lentulus, sentindo-se compreendido, recobrou energias

novas e continuou:

- Depois das exortações daquele juiz severo e venerando, não mais

lobriguei o vulto de Lívia a meu lado, mas outras criaturas graciosas,

envolvidas em peplos que me pareciam de neve translúcida, confortavamme

o coração com os seus sorrisos acolhedores e bondosos.

Atendendo-lhes ao apelo carinhoso, senti que meu Espírito

regressava à Terra.

Observei Roma, que já não era bem a cidade do meu tempo; um

sopro de beleza estava reconstituindo a sua parte antiga, porque notei a

existência de novos circos, teatros suntuosos, termas elegantes e palácios

encantadores, que meus olhos não haviam conhecido antes.

Tive ocasião de ver meu pai entre os seus papiros e pergaminhos,

estudando os processos do Senado, tal qual se verifica hoje conosco, e,

depois de implorar a bênção dos deuses, no altar doméstico de nossa

casa, experimentei uma sensação de angústia no recesso de minhalma.

Pareceu-me haver sofrido dolorosa comoção cerebral e fiquei

adormentado numa vertigem indefinível...

Não sei descrever literalmente o que se passou, mas despertei com

febre alta, como se aquela digressão do pensamento, pelos mundos de

Morfeu, me houvesse trazido ao corpo dolorosa sensação de cansaço.

27

HÁ DOIS MIL ANOS...

Ignoro o teu julgamento, em face desta confidência amargurada e penosa,

mas desejaria me explicasses algo a respeito.

- Explicar-te? - obtemperou Flamínio, tentando imprimir à voz uma

tonalidade de convicção enérgica. - Bem sabes do respeito que me

inspiram os áugures do templo, mas, afinal, o que te ocorreu não pode

passar, simplesmente, de um sonho, e tu não ignoras como devemos

temer a imaginação dentro de nossas perspectivas de homens práticos.

Por sonharem excessivamente, os atenienses ilustres transformaram-se

em escravos misérrimos, constituindo obrigação de nossa parte o

reconhecimento da bondade dos deuses que nos concederam o senso da

realidade, necessário às nossas conquistas e triunfos. Seria lícito

renunciasses ao amor de ti mesmo e à posição de tua família, tão somente

levado pela fantasia?

Públio deixou que o amigo discorresse abundantemente sobre o

assunto, recebendo-lhe as exortações e conselhos, mas, depois, tomandolhe

as mãos generosas, exclamou angustiado:

- Meu amigo, eu seria indigno da magnanimidade dos deuses se me

deixasse conduzir ao sabor dos acontecimentos. Um simples sonho não

me daria margem a tão dolorosas conjeturas, mas a verdade é que ainda te

não disse tudo.

Flamínio Severus franziu o sobrolho, rematando:

- Ainda não disseste tudo? Que significam estas afirmativas?

No seu íntimo generoso, angustiosa dúvida fora já implantada com a

descrição minuciosa daquele sonho impressionante e doloroso, e era com

grande esforço que o seu coração fraternal trabalhava por ocultar ao

amigo as penosas emoções que intimamente o atormentavam.

Públio, mudo, tomou-lhe do braço, conduzindo-o às galerias do

tablino localizado a um canto do peristilo, nas proximidades do altar

doméstico,

28

ROMANCE DE EMMANUEL

onde oficiavam os mais puros e mais santos afetos da família.

Os dois amigos penetraram o escritório e a sala do arquivo com

profundo sinal de respeitoso recolhimento.

A um canto, dispunham-se em ordem numerosos pergaminhos e

papiros, enquanto, nas galerias, avultavam retratos de cera, de

antepassados e avoengos da família.

Públio Lentulus tinha os olhos úmidos e a voz trêmula, como se

profundas emoções o dominassem naquelas circunstâncias.

Aproximando-se de uma imagem de cera, entre as muitas que ali se

enfileiravam, chamou a atenção de Flamínio, com uma simples palavra:

- Reconheces?

- Sim - respondeu o amigo, estremecendo -, reconheço esta efígie.

Trata-se de Públio Lentulus Sura, teu bisavó paterno, estrangulado há

quase um século, na revolução de Catilina.

- Faz precisamente noventa e quatro anos que o pai de meu avô foi

eliminado nessas tremendas circunstâncias - exclamou Públio, com

ênfase, como quem está de posse de toda a verdade. - Repara bem os

traços desta figura, para verificares a semelhança perfeita que existe entre

mim e esse longínquo antepassado. Não estaria aqui a chave do meu

sonho doloroso?

O nobre patrício observou a notável identidade de traços

fisionômicos daquela efígie morta com o semblante do amigo presente.

Suas vacilações atingiram o auge, em face daquelas demonstrações

alucinantes. Ia elucidar o assunto, encarecendo a questão da linhagem e

da hereditariedade, mas o interlocutor, como se adivinhasse os mínimos

detalhes de suas dúvidas, antecipou o julgamento, exclamando:

- Eu também participei de todas as hesitações que ferem o teu

raciocínio, lutando contra a razão, antes de aceitar a tese de nossas

conversa29

HÁ DOIS MIL ANOS...

ções desta noite. A semelhança pela imagem, ainda a mais extrema, é

natural e é possível; isto, porém, não me satisfaz plenamente. Expedi,

nestes últimos dias, um dos servos de nossa casa, a Taormina, em cujas

adjacências possuímos antiga habitação, onde se guardava o arquivo do

extinto, que fiz transportar para aqui.

E, num movimento de quem estava certo de todos os seus

conceitos, revirava nas mãos nervosas vários documentos, exclamando:

- Repara estes papiros! São notas de meu bisavô, acerca dos seus

projetos no Consulado. Encontrei neste acervo de pergaminhos diversas

minutas de sentenças de morte, as quais já havia observado nas minhas

digressões do sonho inexplicável... Confronta estas letras! Não se

parecem com as minhas? Que desejaríamos mais, além destas provas

caligráficas? Há muitos dias, vivo este obscuro dilema no íntimo do

coração... Serei eu Públio Lentulus Sura, reencarnado?

Flamínio Severus deixou pender a fronte, com indisfarçável

inquietação e indizível amargura.

Numerosas haviam sido as provas da lucidez e da lógica do amigo.

Tudo conspirava para que o seu castelo de explicações desmoronasse,

fragorosamente, diante dos fatos consumados, mas procuraria novas

forças, a fim de salvaguardar o patrimônio das crenças e tradições dos

seus maiores, tentando esclarecer o espírito do companheiro de tantos

anos.

- Meu amigo - murmurou, abraçando-o -, concordo contigo, em face

destes acontecimentos alucinantes. O fato é dos que empolgam o espírito

mais frio, mas não podemos arriscar nossas responsabilidades no rumo

incerto das primeiras impressões. Se ele nos parece a realidade, existem

as realidades imediatas e positivas, aguardando o nosso concurso ativo.

Considerando as tuas ponderações e acreditando mesmo na veracidade

do fenômeno, não acredito devamos mergulhar o raciocínio

30

ROMANCE DE EMMANUEL

nestes assuntos misteriosos e transcendentes. Sou avesso a essas

perquirições, certamente em virtude das minhas experiências da vida

prática. Concordando, de modo geral, com o teu ponto de vista,

recomendo-te não estendê-lo além do círculo de nossa intimidade

fraternal, mesmo porque, não obstante a propriedade de conceitos com

que me dás testemunho da tua lucidez, sinto-te cansado e abatido nesse

torvelinho de trabalhos do ambiente doméstico e social.

Fez uma pausa nas suas observações comovidas, como quem

raciocinasse procurando recurso eficaz para remediar a situação, e

sugeriu com doçura:

- Poderias descansar um pouco na Palestina, levando a família para

essa estação de repouso.

Existem ali regiões de clima adorável, que operariam, talvez, a cura

de tua filhinha, restabelecendo simultaneamente as. tuas forças orgânicas.

Quem sabe? Esquecerias o tumulto da cidade, regressando mais tarde ao

nosso meio, com energias novas. O atual Procurador da Judeia é nosso

amigo. Poderíamos harmonizar vários problemas do nosso interesse e de

nossas funções, porquanto não me seria difícil obter do Imperador

dispensa dos teus trabalhos no Senado, de modo a que continuasses

recebendo os subsídios do Estado, enquanto permanecesses na Judeia.

Que julgas a respeito? Poderias partir tranqüilo, pois eu tomaria a meu

cargo a direção de todos os teus negócios em Roma, zelando pelos teus

interesses e pelas tuas propriedades.

Públio deixou transparecer no olhar uma chama de esperança, e,

como quem estivesse examinando, intimamente, todas as razões

favoráveis ou contrárias à execução do projeto, ponderou:

- A idéia é providencial e generosa, mas a saúde de Lívia não me

autoriza a tomar uma resolução pronta e definitiva.

- Porquê?

31

HÁ DOIS MIL ANOS...

- Esperamos, para breve, o segundo rebento do nosso lar.

- E quando esperas esse advento?

- Dentro de seis meses.

- Interessa-te a viagem depois do inverno próximo?

- Sim.

- Pois bem: estarás, então, na Judeia, precisamente daqui a um ano.

Os dois amigos reconheceram que a palestra havia sido longa.

Cessara o aguaceiro. O firmamento esplendia de constelações

lavadas e límpidas.

Iniciara-se já o tráfego das carroças barulhentas, com os gritos

pouco amáveis dos condutores, porque na Roma imperial as horas do dia

eram reservadas, de modo absoluto, ao tráfego dos palanquins patrícios e

ao movimento dos pedestres.

Flamínio despediu-se comovidamente do amigo, retomando a liteira

suntuosa, com o auxilio dos seus escravos prestos e hercúleos.

Públio Lentulus, tão logo se viu só, encaminhou-se ao terraço, onde

corriam céleres as brisas da noite alta.

À claridade do luar opulento, contemplou o casario romano

espalhado pelas colinas sagradas da cidade gloriosa. Espraiou os olhos

na paisagem noturna, considerando os problemas profundos da vida e da

alma, deixando pender a fronte, entristecido. Incoercível tristeza dominavalhe

o ânimo voluntarioso e sensível, enquanto uma onda de amor-próprio e

de orgulho lhe sopitava as lágrimas íntimas do coração atormentado por

angustiosos pensamentos.

32

II

Um escravo

Desde os primeiros tempos do Império, a mulher romana havia-se

entregado à dissipação e ao luxo excessivo, em detrimento das obrigações

santificadoras do lar e da família.

A facilidade na aquisição de escravos empregados nos serviços

mais grosseiros, como nos mais elevados misteres de ordem doméstica,

inclusive os da própria educação e instrução, havia determinado grande

queda moral no equilíbrio das famílias patrícias, porquanto a disseminação

dos artigos de luxo, vindos do Oriente, aliada à ociosidade, amolecera as

fibras de energia e de trabalho das matronas romanas, encaminhando-as

para as frivolidades da indumenta, para as intrigas amorosas, a preludiar a

mais completa desorganização da família, no esquecimento de suas

tradições mais apreciáveis.

Contudo, algumas casas haviam resistido heroicamente a essa

invasão de forças perversoras e criminosas.

Mulheres havia, ao tempo, que se orgulhavam do padrão das antigas

virtudes familiares, de quantas as tinham antecedido no labor construtivo

das gerações de tantas almas sensíveis e nobres.

33

HÁ DOIS MIL ANOS...

As esposas de Públio e Flamínio eram desse número. Criaturas

inteligentes e valorosas, ambas fugiam da onda corruptora da época,

representando dois símbolos de bom-senso e simplicidade.

As últimas expressões do inverno já haviam desaparecido, no ano

de 32, entornando pela terra, primaveril e alegre, uma taça imensa de flores

e perfumes...

Num dia claro e ensolarado, vamos encontrar Lívia e Calpúrnia, na

residência da primeira, em amável palestra, enquanto dois rapazinhos

desenham, distraidamente, a um canto da sala.

As duas senhoras organizam aprestos de viagem, corrigindo

defeitos de algumas peças de lã e trocando impressões íntimas, à meia

voz, em tom amigo e discreto.

Em dado momento, os dois meninos alcançam um dos quartos

contíguos, enquanto Lívia chama a atenção da amiga, nestes termos:

- Teus pequenos não têm hoje os exercícios habituais?

- Não, minha boa Lívia - respondeu Calpúrnia, com delicadeza

fraternal, adivinhando-lhe as intenções -, não só Plínio, mas, também,

Agripa, consagraram o dia de hoje à doentinha. Adivinho as suas

vacilações e escrúpulos maternos, considerando a boa saúde dos nossos

filhinhos; mas, os teus receios são infundados...

- Sabem os deuses, todavia, como tenho vivido nestes últimos

tempos, desde que ouvi a opinião franca e sincera do médico de Tibur.

Bem sabes que para ele o caso de minha filha é mal doloroso e sem cura.

Desde então, toda a minha vida tem sido uma série de preocupações e

martírios. Tomei todas as providências para que a pequena fosse isolada

do círculo de nossas relações, atendendo aos imperativos da higiene e à

necessidade de circunscrever, com o nosso próprio esforço, a moléstia

terrível.

34

ROMANCE DE EMMANUEL

- Mas, quem te diz que o mal é incurável? Acaso semelhante opinião

provejo da palavra infalível dos deuses? Não sabes quanto é enganosa a

ciência dos homens?

Há tempos, ambos os meus fílhinhos adoeceram com febre insidiosa

e destruidora. Chamados os médicos, observei que eles se revezavam no

mister de salvar os dois enfermos, sem resultados apreciáveis. Depois,

refleti melhor na providência dos céus e, imediatamente, ofereci um

sacrifício no templo de Castor e Pólux, salvando-os de morte certa. Graças

a essa providência, hoje os vejo sorridentes e felizes.

Agora que não tens somente a pequena Flávia, mas também o

pequenino Marcus, aconselho-te fazeres o mesmo, recorrendo aos deuses

gêmeos.

- É verdade, minha boa Calpúrnia, assim farei antes de nossa partida

próxima.

- E por falar na viagem, como te sentes em face desta mudança

imprevista?

- Bem sabes que tudo farei pela tranqüilidade de Públio e pela nossa

paz doméstica. Há muito noto Públio abatido e doente, em razão de suas

lutas exaustivas ao serviço do Estado. Jovial e expansivo, de tempos a

esta parte tornou-se taciturno e irritadiço. Enerva-se com tudo e por tudo,

acreditando eu que a saúde precária de nossa filhinha contribua

decisivamente para a sua misantropia e mau humor.

Considerando essas razões disponho-me, com satisfação, a

acompanhá-lo à Palestina, pesando-me apenas no íntimo a circunstância

de ser obrigada, ainda que temporariamente, a afastar-me da tua

intimidade e dos teus conselhos.

- Folgo de assim te ouvir, porque a nós nos compete examinar a

situação daqueles que o nosso coração elegeu para companheiros de toda

a vida, tudo envidando por suavizar-lhes os aborrecimentos do mundo.

35

HÁ DOIS MIL ANOS...

Públio é um bom coração, generoso e idealista, mas, como patrício

descendente de família das mais ilustres da República, é vaidoso em

demasia. Homens dessa natureza requerem grande senso psicológico da

mulher, sendo justo e necessário que aparentes igualdade absoluta de

sentimentos, de modo a poderes conduzi-lo sempre pelo melhor caminho.

Flamínio deu-me a conhecer todas as circunstâncias da tua

permanência na Judeia, mas, alguns pormenores existem que eu ainda

desconheço. Ficarás, de fato, em Jerusalém?

- Sim. Públio deseja que nos fixemos na mesma residência do seu

tio Sálvio, em Jerusalém, até que possamos eleger o melhor clima do país,

de maneira a beneficiar a saúde de nossa filhinha.

- Está bem - exclamou Calpúrnia, assumindo ares da maior discrição

-, em face da tua inexperiência, sou obrigada a esclarecer o teu espírito,

considerando a possibilidade de quaisquer complicações futuras.

Lívia surpreendeu-se com a observação da amiga, mas, toda

ouvidos, revidou impressionada:

- Mas, que queres dizer?

- Sei que não tens um conhecimento mais acurado dos parentes de

teu marido, que há tanto tempo se conservam ausentes de Roma -

murmurou Calpúrnia, com as minudências características do espírito

feminino - e constituí um dever de amizade aclarar o teu espírito, a fim de

não te conduzires com demasiada confiança por onde passares.

O pretor Sálvio Lentulus, que há muitos anos foi destituído do

governo das províncias, e agora tem simples atribuições de funcionário

junto do atual Procurador da Judeia, não é bem um homem idêntico a teu

marido, que, se tem certos defeitos de família, é um espírito muito franco e

sincero. Eras muito jovem quando se verificaram acontecimentos

deploráveis em nosso ambiente social, com referência às criaturas com

quem agora vais conviver.

36

ROMANCE DE EMMANUEL

A esposa de Sálvio, que ainda deve ser uma mulher moça e bem cuidada, é

irmã de Cláudia, mulher de Pilatos, a quem teu marido vai recomendado,

em caminho da alta administração da província.

Em Jerusalém vais encontrar toda essa gente, de costumes bem

diferentes dos nossos, e precisas pensar que vais conviver com criaturas

dissimuladas e perigosas.

Não temos o direito de reprovar os atos de ninguém, a não ser em

presença daqueles que consideramos culpados ou passíveis de

recriminações, mas devo prevenir-te de que o Imperador foi compelido a

designar essa gente para serviços no exterior, considerando graves

assuntos de família, na intimidade da Corte.

Que os deuses me perdoem as observações da ausência, mas é que,

na tua condição de romana e mulher de senador ainda jovem, serás

homenageada pelos nossos conterrâneos distantes, homenagens que

receberás em sociedade como ramalhetes de rosas cheios de perfume,

mas também cheios de espinhos...

Lívia ouviu a amiga, entre espantada e pensativa, exclamando em

voz discreta, como quem quisesse desfazer uma dúvida:

- Mas, o pretor Sálvio não é homem idoso?

- Estás enganada. É pouco mais moço que Flamínio, mas os seus

apuros de cavalheiro fazem da sua personalidade um tipo de soberba

aparência.

- Como poderei levar a bom termo os meus deveres, no caso de me

cercarem as perfídias sociais, tão comuns em nosso tempo, sem agravar o

estado espiritual de meu esposo?

- Confiemos na providência dos deuses - murmurou Calpúrnia,

deixando transparecer a fé magnífica do seu coração maternal.

Mas, as duas não conseguiram prosseguir na conversação. Um

ruído mais forte denunciava a aproximação de Públio e Flamínio, que

atravessavam o vestíbulo, procurando-as.

37

HÁ DOIS MIL ANOS...

- Então? - exclamou Flamínio, bem humorado, assomando à porta,

com malicioso sorriso. - Entre a costura e a palestra, deve sofrer a

reputação de alguém nesta sala, porque já dizia meu pai que mulher

sozinha pensa sempre na família; mas, se está com outra, pensa logo

nos... outros.

Um riso sadio e geral coroou as suas palavras alegres, enquanto

Públio exclamava contente:

- Estejamos sossegados, minha Lívia, porque tudo está pronto e a

nosso inteiro contento. O Imperador prontificou-se a auxiliar-nos

generosamente com as suas ordens diretas, e, daqui a três dias, uma

galera nos esperará nas cercanias de Óstia, de modo a viajarmos

tranqüilamente.

Lívia sorriu satisfeita e confortada, enquanto do apartamento da

pequena Flávia assomavam duas cabeças risonhas, preparando-se

Flamínio para receber nos braços, de uma só vez, os dois filhinhos.

- Venham cá, ilustres marotos! Porque fugiram ontem das aulas?

Hoje recebi queixa do ginásio, nesse sentido, e estou muito contrariado

com esse procedimento...

Plínio e Agripa ouviram a reprimenda paterna. desapontados,

respondendo o mais velho, com humildade:

- Mas, papai, eu não sou culpado. Como o senhor sabe, o Plínio

fugiu dos exercícios, obrigando-me a sair para procurá-lo.

- Isso é uma vergonha para você, Agripa - exclamou Flamínio,

paternalmente -, sua idade não permite mais a participação nas

traquinadas de seu irmão.

Ia a cena nessa altura, quando Calpúrnia interveio apaziguando:

- Tudo está muito certo, mas teremos de resolver o assunto em casa,

porque a hora não comporta discussões entre pai e filhos.

Ambos os meninos foram beijar a mão materna, como se lhe

agradecessem a intervenção carinhosa, e, daí a minutos, despediam-se as

duas famí38

ROMANCE DE EMMANUEL

lias, com a promessa de Flamínio, no sentido de acompanhar os amigos

até Óstia, nas proximidades da foz do Tibre, no dia do embarque.

Decorridas aquelas setenta e duas horas de azáfama e preparativos,

vamos encontrar nossas personagens numa galera confortável e elegante,

nas águas de Óstia, onde ainda não existiam as construções do porto, ali

edificadas mais tarde por Cláudio.

Plínio e Agripa ajudavam a acomodar a pequena enferma no interior,

instigados pelos pais, que os preparavam desde cedo para as delicadezas

da vida social, enquanto Calpúrnia e Lívia instruíam uma serva, a respeito

da instalação do pequenino Marcus. Públio e Flamínio trocavam

impressões, a distância, ouvindo-se a recomendação do segundo, que

elucidava o amigo confidencialmente:

- Sabes que os súditos conquistados pelo Império muitas vezes nos

olham com inveja e despeito, tornando-se preciso nunca desmerecermos

da nossa posição de patrícios.

Algumas regiões da Palestina, segundo os meus próprios

conhecimentos, estão infestadas de malfeitores e é necessário estejas

precavido contra eles, principalmente na tua marcha em demanda de

Jerusalém. Leva contigo, tão logo aportes com a família, o maior número

de escravos para a tua garantia e dos teus, e, na hipótese de ataques, não

hesites em castigar com severidade e aspereza.

Públio recebeu a exortação, atenciosamente, e, daí a minutos,

movimentavam-se ambos no interior da nave, onde o viajante interpelava o

chefe dos serviços:

- Então, Áulus, tudo está pronto?

- Sim, Ilustríssimo. Apenas aguardamos as vossas ordens para a

partida. Quanto aos nossos trabalhos, podeis ficar tranqüilo, porque

escolhi a dedo os melhores cartagineses para o serviço de remos.

39

HÁ DOIS MIL ANOS...

Com efeito, começaram ali as últimas despedidas. As duas senhoras

abraçavam-se com lágrimas enternecidas e afetuosas, enquanto se

expressavam promessas de perene lembrança e votos aos deuses pela

tranqüilidade geral.

Derradeiros abraços comovidos e largava a galera suntuosa, onde a

bandeira da águia romana tremulava orgulhosa, ao sopro suave das

virações marinhas. Os ventos e os deuses eram favoráveis, porque, em

breve, ao esforço hercúleo dos escravos no ritmo dos remos poderosos,

os viajantes contemplavam de longe a fita esverdeada da costa italiana,

como se avançassem na massa liquida para as vastidões insondáveis do

Infinito.

Transcorria a viagem com o máximo de serenidade e calma.

Públio Lentulus, não obstante a beleza da paisagem na travessia do

Mediterrâneo e a novidade dos aspectos exteriores, considerada a

monotonia dos seus afazeres na vida romana, junto dos numerosos

processos do Estado, tinha o coração cheio de sombras. Debalde a esposa

procurara aproximar-se do seu espírito irritado, buscando tanger assuntos

delicados de família, com o fim de conhecer e suavizar-lhe os íntimos

dissabores. Experimentava ele a impressão de que caminhava para

emoções decisivas do desenrolar de sua existência. Conhecera parte da

Ásia, porque, na primeira mocidade, havia servido um ano na

administração de Esmirna, de modo a integrar-se, da melhor maneira, no

mecanismo dos trabalhos do Estado, mas não conhecia Jerusalém, onde o

esperavam como legado do Imperador, para a solução de vários problemas

administrativos de que fôra incumbido junto ao governo da Palestina.

Como encontraria o tio Sálvio, mais moço que seu pai? Há muitos

anos não o via pessoalmente; entretanto, era pouco mais velho do que ele

próprio. E aquela Fúlvia, leviana e caprichosa, que lhe desposara o tio no

torvelinho dos seus numerosos es40

ROMANCE DE EMMANUEL

cândalos sociais, tornando-se quase indesejável no seio da família?

Recordava mais íntimos pormenores do passado, abstendo-se, todavia, de

comunicar à mulher as mais penosas expectativas. Refletindo, igualmente,

na situação da esposa e dos dois filhinhos, encarava com ansiedade os

primeiros obstáculos à sua permanência na Judeia, na qualidade de

patrícios, mas também como estrangeiros, considerando que as amizades

que os aguardavam eram problemáticas.

Entre as suas cismas e as preces da esposa, estava a terminar a

travessia do Mediterrâneo, quando chamou a atenção do seu servo de

confiança, nestes termos:

- Comênio, dentro em pouco estaremos às portas de Jerusalém;

mas, antes que isso se verifique, temos de realizar pequena marcha,

depois do ponto de desembarque, reclamando-se muito cuidado de minha

parte, com relação ao transporte da família. Esperam-se alguns

representantes da administração da Judeia, mas certamente estaremos

acompanhados dos teus cuidados, pois vamos aportar a região para mim

desconhecida e estrangeira. Reúne todos os servos sob as tuas ordens, de

modo a garantirmos absoluta segurança pelo caminho.

- Senhor, contai com o nosso desvelo e dedicação - respondeu o

servidor, entre respeitoso e comovido.

No dia imediato Públio Lentulus e comitiva desembarcavam em

pequeno porto da Palestina, sem incidentes dignos de menção.

Esperavam-no, além do legado do Procurador, alguns lictores e

numerosos soldados pretorianos, comandados por Sulpício Tarquinius,

munido de todos os aprestos e elementos exigidos para uma viagem

tranqüila e confortável, pelas estradas de Jerusalém.

Após o necessário repouso, a caravana pôs-se a caminho,

parecendo antes expedição militar que

41

HÁ DOIS MIL ANOS...

transporte de simples família, através das estações periódicas de

descanso.

As armaduras dos cavalos, os capacetes romanos reluzindo ao Sol,

os trajes extravagantes, palanquins enfeitados, animais de tração e os

carros pesados da bagagem davam idéia de expedição triunfal, embora

azafamada e silenciosa.

Ia a caravana a bom termo, quando, nas proximidades de Jerusalém,

ocorre um imprevisto. Um corpo sibilante cortou o ar fino e claro, alojandose

no palanquim do senador, ouvindo-se ao mesmo tempo um grito

estridente e lamentoso. Minúscula pedra ferira levemente o rosto de Lívia,

determinando grande alarme na massa enorme de servos e cavaleiros.

Entre os carros e os animais que pararam assustados, numerosos

escravos rodeiam os senhores, buscando, com precipitação, inteirar-se do

fato. Sulpício Tarquinius, num golpe de vista, dá largas ao galope da

montada, buscando prender um jovem que se afastava, receoso, das

margens do caminho. E, culpado ou não, foi um rapaz dos seus dezoito

anos apresentado aos viajantes, para a punição necessária.

Públio Lentulus recordou a recomendação de Flamínio, momentos

antes da partida, e, sopitando os seus melhores sentimentos de tolerância

e generosidade, resolveu prestigiar a sua posição e autoridade aos olhos

de quantos houvessem de lhe seguir a permanência naquele país

estrangeiro.

Ordenou providências imediatas aos lictores que o acompanhavam,

e ali mesmo, ante as claridades mordentes do Sol a pino e sob o olhar

espantado de algumas dezenas de escravos e centuriões numerosos,

determinou que vergastassem sem comiseração o rapaz, pela sua

leviandade.

A cena era desagradável e dolorosa.

Todos os servos acompanhavam, compungidos, o estalar do chicote

no dorso seminu daquele homem ainda moço, que gemia, em soluços

dolorosos, sob o látego despótico e cruel. Ninguém ousou con42

ROMANCE DE EMMANUEL

trariar as ordens impiedosas, até que Lívia, não conseguindo contemplar

por mais tempo a rudeza do espetáculo, pediu ao esposo, em voz súplice:

- Basta, Públio, porque os direitos da nossa condição não traduzem

deveres de impiedade...

O senador considerou, então, a sua severidade excessiva e rigorosa,

ordenou a suspensão do castigo doloroso, mas, a uma pergunta de

Sulpício, quanto ao novo destino do infeliz, falou em tom rude e irritado:

- Para as galeras!...

Os presentes estremeceram, porque as galeras significavam a morte

ou a escravidão para sempre.

O desventurado amparava-se, exânime, nas mãos dos centuriões

que o rodeavam, porém, ao ouvir as três palavras da sentença

condenatória, deitou ao seu orgulhoso juiz um olhar de ódio supremo e de

supremo desprezo No âmago de sua alma coriscavam relâmpagos de

vingança e de cólera, mas a caravana pôs-se novamente a caminho, entre

o ruído dos carros pesados e o tilintar das armaduras, ao movimento dos

cavalos fogosos e irrequietos.

A chegada a Jerusalém ocorreu sem outros fatos dignos de nota.

A novidade dos aspectos e a diversidade das criaturas é que

impressionaram os viajantes no seu primeiro contacto com a cidade, cuja

fisionomia, com raras mudanças, no decurso de todos os séculos, foi

sempre a mesma, triste e desolada, preludiando as paisagens ressequidas

do deserto.

Pilatos e sua mulher encontravam-se nas solenidades de recepção

ao senador, que ia, como legado de Tibério, junto da administração da

província, encarnando o princípio da lei e da autoridade.

Sálvio Lentulus e a esposa, Fúlvia Prócula, receberam os parentes

com aparato e prodigalidade. Homenagens numerosas foram prestadas a

Públio Lentulus e sua mulher, salientando-se que Lívia, fosse em razão das

advertências de Calpúrnia, ou em vista de sua acuidade psicológica,

reconheceu

43

HÁ DOIS MIL ANOS...

logo que naquele ambiente não palpitavam os corações generosos e

sinceros dos seus amigos de Roma, experimentando, no íntimo, dolorosa

sensação de amargura e ansiedade. Verificara, com satisfação, que a sua

pequena Flávia havia melhorado, não obstante a viagem exaustiva, mas, ao

mesmo tempo, torturava-se percebendo que Fúlvia não possuía amplitude

de coração para acolhê-los sempre com carinho e bondade. Notara que, ao

lhe apresentar a filhinha enferma, a patrícia vaidosa fizera um movimento

instintivo de recuo, afastando sua pequena Aurélia, filha única do casal, do

contacto com a família, apresentando pretextos inaceitáveis. Bastou um

dia de permanência naquele lar estranho, para que a pobre senhora

compreendesse a extensão das angústias que a esperavam ali, calculando

os sacrifícios que a situação exigiria do seu coração sensível e carinhoso.

E não era somente o quadro familiar, nos seus detalhes

impressionantes, que lhe torturava a mente trabalhada de expectativas

pungentes. Deparando-se-lhe Pôncio Pilatos, no próprio momento de sua

chegada, sentira, no íntimo, que havia encontrado um rude e poderoso

inimigo.

Forças ignoradas do mundo intuitivo falavam ao seu coração de

mulher, como se vozes do plano invisível lhe preparassem o espírito para

as provas aspérrimas dos dias vindouros. Sim, porque a mulher, símbolo

do santuário do lar e da família, na sua espiritualidade, pode, muitas vezes,

numa simples reflexão, devassar mistérios insondáveis dos caracteres e

das almas, na tela espessa e sombria das reencarnações sucessivas e

dolorosas.

Públio Lentulus, ao contrário, não experimentou as mesmas

emoções da companheira. A diversidade do ambiente modificara-lhe um

tanto as disposições íntimas, sentindo-se moralmente confortado em face

da tarefa que lhe competia desempenhar no cenário novo de suas

atividades de homem de Estado.

44

ROMANCE DE EMMANUEL

No segundo dia de permanência na cidade, tão logo regressara da

primeira visita às instalações da Torre Antônia, onde se aquartelavam

contingentes das forças romanas, observando o movimento dos casuístas

e dos doutores, no Templo famoso de Jerusalém, foi procurado por um

homem humilde e relativamente moço, que apresentava como credencial,

tão somente, o coração aflito e carinhoso de pai.

Obedecendo mais aos imperativos de ordem política que ao

sentimento de generosidade do coração, o senador quebrou as etiquetas

do momento, recebendo-o no seu gabinete privado, disposto a ouvi-lo.

Um judeu, pouco mais velho que ele próprio, em atitude de

respeitosa humildade e expressando-se dificilmente, de modo a fazer-se

compreendido, falou-lhe nestes termos:

- Ilustríssimo senador, sou André, filho de Gioras, operário modesto

e paupérrimo, não obstante numerosos membros de minha família terem

atribuições importantes no Templo e no exercício da Lei. Ouso vir até vós,

reclamando o meu filho Saul, preso, há três dias, por vossa ordem e

remetido diretamente para o cativeiro Perpétuo das galeras... Peço-vos

clemência e caridade na reparação dessa sentença de terríveis efeitos para

a estabilidade da minha casa pobre... Saul é o meu primogênito e nele

deponho toda a minha esperança paternal... Reconhecendo-lhe a

inexperiência da vida, não venho inocentá-lo da culpa, mas apelar para a

vossa clemência e magnanimidade, em face da sua ignorância de rapaz,

jurando-vos, pela Lei, encaminhá-lo doravante pela estrada do dever

austeramente cumprido...

Públio recordou a necessidade de fazer sentir a autoridade da sua

posição, revidando com o orgulho característico das suas resoluções:

- Como ousa discutir minhas determinações, quando guardo a

consciência de haver praticado a

45

HÁ DOIS MIL ANOS...

justiça? Não posso modificar minhas deliberações, estranhando que um

judeu ponha em dúvida a ordem e a palavra de um senador do Império,

formulando reclamações desta natureza.

- Mas, senhor, eu sou pai...

- Se o és, porque fizeste de teu filho um vagabundo e um inútil?

- Não posso compreender os motivos que levaram meu pobre Saul a

comprometer-se dessa maneira, mas, juro-vos que ele é o braço-forte dos

meus trabalhos de cada dia.

- Não me cabe examinar as razões do teu sentimento, porque a

minha palavra esta dada irrevogavelmente.

André de Gioras mirou Públio Lentulus de alto a baixo, ferido na sua

emotividade de pai e no seu sentimento de homem, esfuziando de dor e de

cólera reprimida. Seus olhos úmidos traíam íntima angústia, em face

daquela recusa formal e inapelável, mas, desprezando todos os

convencionalismos humanos, falou com orgulhosa firmeza:

- Senador, eu desci da minha dignidade para implorar vossa

compaixão, mas aceito a vossa recusa ignominiosa!...

Acabais de comprar, com a dureza do coração, um inimigo eterno e

implacável!... Com os vossos poderes e prerrogativas, podeis eliminar-me

para sempre, seja reduzindo-me ao cativeiro ou condenando-me a perecer

de morte infame; mas eu prefiro afrontar a vossa soberbia orgulhosa!...

Plantastes, agora, uma árvore de espinhos, cujo fruto, um dia, amargará

sem remédio o vosso coração duro e insensível, porque a minha vingança

pode tardar, mas, como a vossa alma inflexível e fria, ela será também

indefectível e tenebrosa!...

O judeu não esperou a resposta do seu interlocutor, amargamente

emocionado com a veemência daquelas palavras, saindo do recinto a

passo firme e de rosto erguido, como se houvesse obtido os melhores

resultados da sua curta e decisiva entrevista.

46

ROMANCE DE EMMANUEL

Num misto de orgulho e ansiedade, Públio Lentulus experimentou,

naquele instante, as mais variadas gamas de sentimento a dominar-lhe o

coração Desejou determinar a prisão imediata daquele homem que lhe

atirara em rosto as mais duras verdades, experimentando,

simultaneamente, o desejo de chamá-lo a si, prometendo-lhe o regresso do

filho querido, a quem protegeria com o seu prestígio de homem de Estado;

mas a voz se lhe sumiu na garganta, naquele complexo de emoções que de

novo lhe roubara a paz e a serenidade. Dolorosa opressão paralisou-lhe as

cordas vocais, enquanto no coração angustiado repercutiam as palavras

candentes e amarguradas.

Uma série de reflexões penosas enfileirou-se no seu mundo íntimo,

assinalando os mais fortes conflitos de sentimentos. Também ele não era

pai e não procurava reter os filhinhos perto do coração? Aquele homem

possuía as mais fortes razões para considerá-lo um espírito injusto e

perverso.

Recordou o sonho inexplicável que, relatado a Flamínio, fôra a causa

indireta da sua vinda para a Judeia e considerou as lágrimas de

compunção que derramara, em contacto com o turbilhão de lembranças

perniciosas da sua existência passada, em face de tantos crimes e

desvios.

Retirou-se do gabinete com a solução mental da questão em foco,

ordenando que trouxessem o jovem Saul à sua presença, com a urgência

que o caso requeria, a fim de recambiá-lo à casa paterna, e modificando,

dessa forma, as penosas impressões que havia causado ao pobre André.

Suas ordens foram expedidas sem delongas; todavia, esperava-o

desagradável surpresa, com as informações dos funcionários a quem

competia a providência de semelhantes serviços.

O jovem Saul desaparecera do cárcere, fazendo crer numa fuga

desesperada e imprevista. Os informes foram transmitidos à autoridade

superior, sem que Públio Lentulus viesse a saber que os maus

47

HÁ DOIS MIL ANOS...

servidores do Estado negociavam, muitas vezes, os prisioneiros jovens

com os ambiciosos mercadores de escravos, que operavam nos centros

mais populosos da capital do mundo.

Informado de que o prisioneiro se evadira, o senador sentiu a

consciência aliviada das acusações que lhe pesavam no intimo. Afinal,

pensou, tratava-se de caso de somenos importância, porquanto o rapaz,

distante do cárcere, procuraria imediatamente a casa paterna; e,

consolidando sua tranqüilidade, expediu ordens aos dirigentes do serviço

de segurança, recomendando se abstivessem de qualquer perseguição ao

foragido, a quem se levaria, oportunamente, o indulto da lei.

O caminho de Saul, todavia, fôra bem outro.

Em quase todas as províncias romanas funcionavam terríveis

agrupamentos de malfeitores, que, vivendo à sombra da máquina do

Estado, haviam-se transformado em mercadores de consciências.

O moço judeu, na sua juventude promissora e sadia, fora vítima

dessas criaturas desalmadas. Vendido clandestinamente a poderosos

escravocratas de Roma, em companhia de muitos outros, foi embarcado

no antigo porto de Jope, com destino à Capital do Império.

Antecipando-nos na cronologia de nossas narrativas, vamos

encontrá-lo, daí a meses, num grande tablado, perto do Fórum, onde se

alinhavam, em penosa promiscuidade, homens, mulheres e crianças,

quase todos em míseras condições de nudez, tendo cada qual um pequeno

cartaz pendurado ao pescoço. Olhos chispando sentimentos de vingança,

lá se encontrava Saul, seminu, um barrete de lã branca a cobrir-lhe a

cabeça e com os pés descalços levemente untado de gesso.

Junto daquela massa de criaturas desventuradas, passeava um

homem de ar ignóbil e repulsivo, que exclamava em voz gritante para a

multidão de curiosos que o rodeava:

48

ROMANCE DE EMMANUEL

- Cidadãos, tende a bondade de apreciar... Como sabeis, não tenho

pressa em dispor da mercadoria, porque não devo a ninguém, mas aqui

estou para servir aos ilustres romanos!...

E, detendo-se no exame desse ou daquele infeliz, prosseguia na sua

arenga grosseira e insultuosa:

- Vede este mancebo!... É um exemplar soberbo de saúde,

frugalidade e docilidade. Obedece ao primeiro sinal. Atentai bem para o

aprumo da sua carne firme. Doença alguma terá força sobre o seu

organismo.

Examinai este homem! Sabe falar o grego corretamente e é bem feito

da cabeça aos pés!...

Nesses pruridos de negocista, continuou a propaganda individual,

em face da multidão de compradores que o assediava, até que tocou a vez

do jovem Saul, que deixava transparecer, no aspecto miserável, os seus

ímpetos de cólera e sentimentos tigrinos:

- Atentai bem neste mancebo! Acaba de chegar da Judeia, como o

mais belo exemplar de sobriedade e saúde, de obediência e de força. É

uma das mais ricas amostras deste meu lote de hoje. Reparai na sua

mocidade, ilustres romanos!... Dar-vo-lo-ei ao preço reduzido de cinco mil

sestércios!...

O jovem escravo contemplou o mercador com a alma esfervilhante

de ódio e alimentando, intimamente, as mais ferozes promessas de

vingança. Seu semblante judeu impressionou a multidão que estacionava

na praça, aquela manhã, porque um intenso movimento de curiosidade lhe

cercou a figura interessante e originalíssima.

Um homem destacou-se da multidão, procurando o mercador, a

quem se dirigiu à meia voz, nestes termos:

- Flacus, meu senhor necessita de um rapaz elegante e forte para as

bigas dos filhos. Esse

49

HÁ DOIS MIL ANOS...

jovem me interessa. Não o darias ao preço de quatro mil sestércios?

- Vá lá - murmurou o outro em tom de negócio -, meu interesse é

bem servir à ilustre clientela.

O comprador era Valério Brutus, capataz dos serviços comuns da

casa de Flamínio Severus, que o incumbira de adquirir um escravo novo e

de boa aparência, destinado ao serviço das bigas dos filhos, nos grandes

dias das festas romanas.

Foi assim que, imbuído de sentimentos ignóbeis e deploráveis, Saul,

o filho de André, foi introduzido, pelas forças do destino, junto de Plínio e

de Agripa, na residência da família Severus, no coração de Roma, ao preço

miserável de quatro mil sestércios.

50

III

Em casa de Pilatos

A secura da natureza, onde se ergue Jerusalém, proporciona à

célebre cidade uma beleza melancólica, tocada de pungente monotonia.

Ao tempo do Cristo, seu aspecto era quase igual ao que hoje se

observa. Apenas a colina de Mizpa, com as suas tradições suaves e lindas,

representava um recanto verde e alegre, onde repousavam os olhos do

forasteiro, longe da aridez e da ingratidão das paisagens.

Todavia, devemos registrar que, na época da permanência de Públio

Lentulus e de sua família, Jerusalém acusava novidades e esplendores da

vida nova. As construções herodianas pululavam nos seus arredores,

revelando novo senso estético por parte de Israel. A predileção pelos

monólitos talhados na rocha viva, característica do antigo povo israelita,

fora substituída pelas adaptações do gosto judeu às normas gregas,

renovando as paisagens interiores da famosa cidade. A jóia maravilhosa

era, porém, o Templo, todo novo na época de Jesus. Sua reconstrução fôra

determinada por Herodes, no ano de 21, notando-se que os pórticos

levaram oito anos a edificar-se, e considerando-se, ainda,

51

HÁ DOIS MIL ANOS...

que os planos da obra grandiosa, continuados vagarosamente no curso do

tempo, somente ficaram concluídos pouco antes de sua completa

destruição.

Nos pátios imensos, reunia-se diariamente a aristocracia do

pensamento israelita, localizando-se ali o fórum, a universidade, o tribunal

e o templo supremo de toda uma raça.

Os próprios processos civis, além das discussões engenhosas de

ordem teológica, ali recebiam as decisões derradeiras, resumindo-se no

templo imponente e grandioso todas as ambições e atividades de uma

pátria.

Os romanos, respeitando a filosofia religiosa dos povos estranhos,

não participavam das teses sutis e dos sofismas debatidos e examinados

todos os dias, mas a Torre Antônia, onde se aquartelavam as forças

armadas do Império, dominava o recinto. facilitando a fiscalização

constante de todos os movimentos dos sacerdotes e das massas

populares.

Públio Lentulus, após o incidente do prisioneiro, que continuava a

considerar como episódio sem importância, retomava certa serenidade

para o desempenho de suas obrigações consuetudinárias. Os aspectos

áridos de Jerusalém tinham, para seus olhos cansados, encanto novo, no

qual o pensamento repousava das numerosas e intensas fadigas de Roma.

Quanto a Lívia, esta guardava o coração voltado para os seus afetos

distantes, analisando a aridez dos espíritos ao alcance do seu convívio.

Como por milagre, a pequena Flávia havia melhorado, observando-se

notável transformação das feridas que lhe cobriam a epiderme. Mas, as

atitudes hostis de Fúlvia, que lhe não perdoava a simplicidade encantadora

e os dotes preciosos de inteligência, sem perder ensejo para jogar-lhe em

rosto pequeninas indiretas, por vezes irônicas e mordentes, deixavam-lhe

o espírito aturdido num turbilhão de expectativas alucinantes.

Semelhantes acontecimentos

52

ROMANCE DE EMMANUEL

eram desconhecidos do marido, a quem a pobre senhora se abstinha de

relatar os seus mais íntimos desgostos.

Esses fatos, porém, não eram os elementos que mais contribuíam

para acabrunhá-la naquele ambiente de penosas incertezas.

Fazia uma semana que se encontravam na cidade e notava-se que,

contrariando talvez seus hábitos, Pôncio Pilatos comparecia diariamente à

residência do pretor, a pretexto de predileção pela palestra com os

patrícios recém-chegados da Corte. Horas a fio eram empregadas nesse

mister, mas Lívia, com as secretas intuições da sua alma, compreendia os

pensamentos inconfessáveis do governador a seu respeito, recebendo de

espírito prevenido os seus amáveis madrigais e alusões menos diretas.

Nessas aproximações de sentimentos que prenunciam a preamar

das paixões, via-se também a contrariedade de Fúlvia, tocada de venenoso

ciúme em face da situação que a atitude de Pilatos ia criando. Por detrás

daqueles bastidores brilhantes do cenário da amizade artificial, com que

foram recebidos, Públio e Lívia deveriam compreender que existia um

mamei de paixões inferiores, que, certo, haveria de tisnar a tranqüilidade

de suas almas. Não entenderam, todavia, os detalhes da situação e

penetraram de espírito confiante e ingênuo no caminho escuro e doloroso

das provações que Jerusalém lhes reservava.

Reafirmando incessantes obséquios e multiplicando gentilezas,

Pilatos fez questão de oferecer um jantar, no qual toda a família se

reconfortasse e a fraternidade e a alegria fossem perfeitas

No dia aprazado, Sálvio e Públio, acompanhados pelos seus,

compareciam à residência senhorial do governador, onde Cláudia

igualmente os esperava com um sorriso bondoso e acolhedor.

Lívia estava pálida, no seu traje simples e despretensioso, sendo de

notar que, contra toda a ex53

HÁ DOIS MIL ANOS...

pectativa do esposo, fizera questão de levar a filhinha doente, no

pressuposto de que o seu cuidado materno representasse alguma coisa

contra as pretensões do conquistador que o seu coração de mulher

adivinhava, através das atitudes indiscretas e atrevidas do anfitrião

daquela noite.

O jantar servia-se em condições essencialíssimas, segundo os

hábitos mais rigorosos e elegantes da Corte.

Lívia estava aturdida com aquelas solenidades a se desdobrarem

nos mais altos requintes da etiqueta romana, costumes esses oriundos de

um meio do qual ela e Calpúrnia sempre se haviam afastado, na sua

simplicidade de coração. Numerosa falange d escravos se movimentava

em todas as direções, como verdadeiro exército de servidores, em face de

tão reduzido número de comensais.

Depois dos pratos preparados, chegam os vocadores recitando os

nomes dos convivas, enquanto os infertores trazem os pratos dispostos

com singular simetria. Os convidados recostam-se então no triclínio,

forrado de penugens cetinosas e pétalas de flores. As carnes são trazidas

em pratos de ouro e os pães em açafates de prata, multiplicando-se os

servos para todos os misteres, inclusive aqueles que deviam provar as

iguarias, a fim de se certificar do seu paladar, para que fossem servidas

com a máxima confiança. Os copeiros servem um falerno precioso e

antigo, misturado de aromas, em taças incrustadas de pedras preciosas,

enquanto outros servos os acompanham apresentando, em galhetas de

prata, a água tépida ou fria, ao sabor dos convidados. Junto dos leitos,

onde cada comensal deve recostar-se molemente, conservam-se escravos

jovens, trajados com apuro e ostentando na fronte gracioso turbante,

braços e pernas seminus, cada qual com a sua função definida. Alguns

agitam nas mãos longos ramos de mirto, afugentando as moscas,

enquanto outros, curvados aos pés dos convi54

ROMANCE DE EMMANUEL

vas, são obrigados a limpar discretamente os sinais da sua gula e

intemperança.

Quinze serviços diferentes sucederam-se através dos esforços dos

escravos dedicados e humildes, quando, após o repasto, brilham os salões

com centenas de tochas, ouvindo-se agradáveis sinfonias. Servos jovens e

bem postos executam danças apaixonadas e voluptuosas em homenagem

aos seus senhores, mimoseando-lhes os sentimentos inferiores com a sua

arte exótica e espontânea, e, somente não foi levado a efeito um número

de gladiadores, segundo o costume nos grandes banquetes da Corte,

porque Lívia, de olhos súplices, pedira que poupassem naquela festa o

doloroso espetáculo do sangue humano.

A noite era das mais cálidas de Jerusalém, motivo por que, findos o

jantar e as cerimônias complementares, a caravana de amigos,

acompanhada agora de Sulpício Tarquinius, se dirigia para o amplo e bem

posto terraço, onde jovens escravas faziam deliciosa música do Oriente.

- Não julgava encontrar em Jerusalém uma noite patrícia como esta -

exclamou Públio, sensibilizado, dirigindo-se ao governador com respeitosa

cortesia. - Devo à vossa bondade fidalga e generosa a satisfação de reviver

o ambiente e a vida inesquecíveis da Corte, onde os romanos distantes

guardam o coração e o pensamento.

- Senador, esta casa vos pertence - replicou Pilatos com intimidade. -

Ignoro se a minha sugestão ser-vos-á agradável, mas só teríamos razão

para agradecer aos deuses, se nos concedêsseis a honrosa alegria de vos

hospedar aqui, com os vossos dignos familiares. Acredito que a residência

do pretor Sálvio não vos oferece o necessário conforto, e, acrescendo a

circunstância do íntimo parentesco que liga minha mulher à esposa de

vosso tio, sinto-me à vontade para fazer este oferecimento, sem quebra de

nossos costumes, em sociedade.

55

HÁ DOIS MIL ANOS...

- Lá isso não, exclamou por sua vez o pretor, que acompanhara

atento a gentileza da oferta. - Eu e Fúlvia nos opomos à realização dessa

medida - e, acenando confiante para a consorte, terminava a sua

ponderação -, não é verdade, minha querida?

Fúlvia, porém, deixando transparecer uma ponta de contrariedade,

redargüiu, com surpresa de todos os presentes:

- De pleno acordo. Públio e Lívia são nossos hóspedes efetivos;

contudo, não podemos esquecer que o objetivo de sua viagem se prende à

saúde da filhinha, objeto de todas as nossas preocupações no momento,

sendo justo que os não privemos de qualquer recurso que se venha a

verificar, a favor da pequena enferma...

E dirigindo-se instintivamente para o banco de mármore, onde

descansava a doentinha, exclamou com escândalo geral:

- Aliás, esta menina representa uma séria preocupação para todos

nós. Sua epiderme dilacerada acusa sintomas invulgares, recordando.. -

Mas, não conseguiu terminar a exposição de seus receios

escrupulosos, porque Cláudia, alma nobre e digna, constituindo uma

antítese da irmã que o destino lhe havia dado, compreendendo a situação

penosa que os seus conceitos iam criando, adiantou-se-lhe redargüindo:

- Não vejo razões que justifiquem esses temores; suponho a

pequena Flávia muito melhor e mais forte. Quero crer, até, que bastará o

clima de Jerusalém para a sua cura completa.

E avançando para a doentinha, como quem desejasse desfazer a

dolorosa impressão daquelas observações indelicadas, tomou-a nos

braços, osculando-lhe o rosto infantil, coberto de tons violáceos de mal

disfarçadas feridas.

Lívia, que trazia o semblante afogueado pela humilhação das

palavras de Fúlvia, recebeu a gentileza como bálsamo precioso para as

suas inquieta56

ROMANCE DE EMMANUEL

ções maternas; quanto a Públio, este, amargamente surpreendido,

considerou a necessidade de reaver a sua serenidade e energia máscula,

dissimulando o desgosto que o episódio lhe causara, retomando a direção

da palestra, sobremaneira comovido:

- É verdade, amigos. A saúde da minha pobre Flávia representa o

objeto primordial da nossa longa viagem até aqui. Resolvidos os

problemas do Estado, que me trouxeram a Jerusalém, há alguns dias que

examino a possibilidade de me localizar em qualquer região do interior, de

modo que a filhinha possa recuperar o precioso equilíbrio orgânico,

aspirando um ar mais puro.

- Pois bem - replicou Pilatos, com segurança -, em assuntos de

clima, sou aqui um homem entendido. Há seis anos que me encontro

nestas paragens em função do cargo e tenho visitado quase todos os

recantos da província e das regiões vizinhas, tendo motivos para afiançar

que a Galileia está em primeiro plano. Sempre que posso repousar dos

labores intensos que aqui me prendem, busco imediatamente a nossa vila

dos arredores de Nazaré, para gozar a serenidade da paisagem e as brisas

deliciosas do seu lago imenso. Concordo em que a distância é muito

longa, mas a verdade é que, se permanecesse nas cercanias da cidade,

nas minhas estações de repouso, perderia o tempo, atendendo às

solicitações incessantes dos rabinos do templo, sempre a braços com

inumeráveis pendências. Ainda agora, Sulpício terá de partir, a fim de

superintender alguns trabalhos de reparação da nossa residência, pois

tencionamos seguir para ali dentro de pouco tempo, a refazer as energias

esgotadas na luta cotidiana.

Já que a minha hospedagem não vos será necessária em Jerusalém,

quem sabe teremos o prazer de hospedar-vos, mais tarde, na vila a que me

refiro?

- Nobre amigo - exclamou o senador, agradecido -, devo poupar-vos

tanto trabalho, mas,

57

HÁ DOIS MIL ANOS...

ficar-vos-ei imensamente grato se o vosso amigo Sulpício providenciar em

Nazaré a aquisição de uma casa confortável e simples, que me sirva,

reformando-a de conformidade com os nossos hábitos familiares, e onde

possamos residir despreocupadamente por alguns meses.

- Com o máximo prazer.

- Muito bem - atalhou Cláudia, com bondade, enquanto Fúlvia mal

dissimulava venenoso despeito -, ficarei incumbida de adaptar a nossa boa

Lívia à vida campestre, onde a gente se sente tão bem em contacto direto

com a Natureza.

- Desde que se não transformem em judias... - disse o senador, bem

humorado, enquanto todos sorriam alegremente.

Neste comenos, ouvido sobre os detalhes dos serviços que lhe

seriam confiados em dias próximos, Sulpício Tarquinius, homem da

confiança do governador, sentiu-se com a liberdade de intervir no assunto,

exclamando, com surpresa para quantos o ouviam:

- E por falar de Nazaré, já ouvistes falar do seu profeta?

- Sim - continuou -, Nazaré possui agora um profeta que vem

realizando grandes coisas.

- Que é isso, Sulpício? - perguntou Pilatos, ironicamente - pois não

sabes que dos judeus nascem profetas todos os dias? Acaso as lutas no

templo de Jerusalém se verificam por outra coisa? Todos os doutores da

Lei se consideram inspirados pelo Céu e cada qual é dono de uma nova

revelação.

- Mas, esse, senhor, é bem diferente.

- Estarás, acaso, convertido a uma nova fé?

- De modo algum, mesmo porque compreendo o fanatismo e a

obcecação dessas miseráveis criaturas; mas fiquei realmente intrigado

com a figura impressionante de um Galileu ainda moço, quando passava,

há alguns dias, por Cafarnaum.

Ao centro de uma praça, acomodada em bancos improvisados, feitos

de pedra e de areia, vi consi58

ROMANCE DE EMMANUEL

derável multidão que lhe ouvia a palavra, em êxtase de admiração e

comoção...

Eu também, como se fôra tocado de força misteriosa e invisível,

sentei-me para ouvi-lo.

De sua personalidade, extraordinária de beleza simples, vinha um

"não sei quê", dominando a turba que se aquietava, de leve, ouvindo-lhe as

promessas de um eterno reinado... Seus cabelos esvoaçavam às brisas da

tarde mansa, como se fossem fios de luz desconhecida nas claridades

serenas do crepúsculo; e de seus olhos compassivos parecia nascer uma

onda de piedade e comiseração infinitas. Descalço e pobre, notava-se-lhe a

limpeza da túnica, cuja brancura se casava à leveza dos seus traços

delicados. Sua palavra era como um cântico de esperança para todos os

sofredores do mundo, suspenso entre o céu e a terra, renovando os

pensamentos de quantos o escutavam... Falava de nossas grandezas e

conquistas como se fossem coisas bem miseráveis, fazia amargas

afirmativas acerca das obras monumentais de Herodes, em Sebasto,

asseverando que acima de César está um Deus Todo-Poderoso,

providência de todos os desesperados e de todos os aflitos... No seu

ensinamento de humildade e amor, considera todos os homens como

irmãos bem-amados, filhos desse Pai de misericórdia e justiça, que nós

não conhecemos...

A voz de Sulpício estava saturada do tom emocional característico

dos sentimentos filhos da verdade.

O auditório se contagiara da comoção de sua narrativa, escutandolhe

a palavra com o maior interesse.

Pilatos, todavia, sem perder o fio de suas vaidades de governador,

interrompeu-o, exclamando:

- Todos irmãos! Isso é um absurdo. A doutrina de um Deus único

não é novidade para nós outros, nesta terra de ignorantes; mas, não

podemos concordar com esse conceito de fraternidade

59

HÁ DOIS MIL ANOS...

irrestrita. E os escravos? E os vassalos do Império? Onde ficam as

prerrogativas do patriciado?

O que mais me admira, porém - exclamou com ênfase, dirigindo-se

particularmente ao narrador -, é que, sendo tu um homem prático e

decidido, te tenhas deixado levar pelas palavras loucas desse novo

profeta, misturando-te com a turba para ouvi-lo. Não sabes que a anuência

de um lictor pode significar enorme prestígio para as idéias desse

homem?

- Senhor - respondeu Sulpício, desapontado -, eu próprio não saberia

explicar a razão de minhas observações daquela tarde. Considerei,

igualmente, de pronto, que as doutrinas por ele pregadas são subversivas

e perigosas, por igualarem os servos aos senhores, mas observei,

também, as suas penosas condições de pobreza, consideradas por seus

discípulos e seguidores como um estado alegre e feliz. o que, de algum

modo, não constitui motivo de receio para as autoridades provinciais.

Além disso, essas pregações não prejudicam os camponeses,

porque são feitas geralmente nas horas de ócio e descanso, no intervalo

dos trabalhos de cada dia, notando-se igualmente que os seus

companheiros prediletos são os pescadores mais ignorantes e mais

humildes do lago.

- Mas, como te deixaste empolgar assim por esse homem? - retornou

Pilatos, com energia.

- Enganais-vos, quanto a isso - respondeu o lictor, mais senhor de si

- não me sinto impressionado, como supondes, tanto assim que, notandolhe

a originalidade simples e formosa, não lhe reconheço privilégios

sobrenaturais e acredito que a ciência do Império elucidará o fato que vou

narrar, respondendo à vossa argüição do momento.

Não sei se conheceis Copônio, velho centurião destacado na cidade

a que me referi, mas cumpre-me cientificar-vos do fato por mim observado.

Depois que a voz do profeta de Nazaré havia deixado uma doce quietude

na paisagem, o meu conhe60

ROMANCE DE EMMANUEL

cido apresentou-lhe o filhinho moribundo, implorando caridade para a

criança que agonizava. Vi-o elevar os olhos radiosos para o firmamento,

como se obsecrasse a bênção dos nossos deuses e, depois, notei que

suas mãos tocavam o menino, que, por sua vez, parecia haver

experimentado um fluxo de vida nova, levantando-se de súbito, a chorar e

buscando o carinho paterno, após descansar no profeta os olhinhos

enternecidos...

- Mas, até centuriões já se metem com os judeus nas suas

perlengas? Preciso comunicar-me com as autoridades de Tiberíades,

sobre esses fatos - exclamou o governador, visivelmente contrariado.

- O caso é curioso - disse Públio Lentulus, intrigado com a narrativa.

- A verdade, contudo, meu amigo - objetou Pilatos, dirigindo-se a ele

-, é que nestas paragens nascem religiões todos os dias. Este povo é

muito diverso do nosso, reconhecendo-se-lhe visível deficiência de

raciocínio e senso prático. Um governador, aqui, não pode deixar-se

empolgar pelas figuras e sim manter rígidos os princípios, no sentido de

salvaguardar a soberania inviolável do Estado. É por esse motivo que,

atendendo às sábias determinações da sede do governo, não me detenho

nos casos isolados, para tão somente ponderar as razões dos sacerdotes

do Sinédrio, que representam o órgão do poder legítimo, apto a harmonizar

conosco a solução de todos os problemas de ordem política e social.

Públio dava-se por satisfeito com o argumento, mas as senhoras

presentes, com exceção de Fúlvia, pareciam fundamente impressionadas

com a descrição de Sulpício, inclusive a pequenina Flávia, que lhe bebera

as palavras com o máximo de curiosidade infantil.

Um véu de preocupações obscurecera a facécia de todos os

presentes, mas o governador não se resignou com a atitude geral,

exclamando:

61

HÁ DOIS MIL ANOS...

- Ora esta! um lictor que, em vez de fazer a justiça a nosso bem, age

contra nós próprios, obscurecendo o nosso ambiente alegre, merece

severa punição por suas narrativas inoportunas!...

Um riso geral seguiu-lhe a palavra ruidosa e leve, enquanto

rematava:

- Desçamos ao jardim para ouvir nova música, desanuviando o

coração desses aborrecimentos imprevistos.

A idéia foi aceita com geral agrado.

A pequena Flávia foi instalada pela dona da casa em apartamento

confortável, e, em poucos minutos, os presentes se dividiam em três

grupos distintos, através das alamedas do jardim, aclarado de tochas

brilhantes, ao som de músicas caprichosas e lascivas.

Públio e Cláudia falavam da paisagem e da natureza; Pilatos

multiplicava gentilezas junto de Lívia, enquanto Sulpício se colocava ao

lado de Fúlvia, tendo o pretor Lentulus resolvido permanecer no arquivo,

examinando algumas obras de arte.

Distanciando-se propositadamente dos demais grupos, o

governador notava a palidez da companheira que, naquela noite, se lhe

figurava mais sedutora e mais bela.

O respeito que a sua formosura discreta lhe infundia nalma, parecia

aumentar, naquela hora, o ardor do coração apaixonado.

- Nobre Lívia - exclamou com emoção -, não posso guardar por mais

tempo os sentimentos que as vossas virtudes cheias de beleza me

inspiraram. Sei da natural repulsa de vossa alma digna, em face de minhas

palavras, mas lamento não me compreendais o coração tocado dessa

admiração que me avassala!...

- Também eu - revidou a pobre senhora, com dignidade e energia

espontâneas - lastimo haver inspirado ao vosso espírito semelhante

paixão. Vossas palavras me surpreendem amarga62

ROMANCE DE EMMANUEL

mente, não só porque partem de um patrício revestido das elevadas

responsabilidades de procurador do Estado, como por considerar a

amizade confiante e nobre que vos consagra o meu esposo.

- Mas, em assuntos do coração - atalhou ele, solícito - não podem

prevalecer as formalidades da convenção política, mesmo as mais

elevadas. Tenho dos meus deveres a mais alta compreensão e sei encarar

a solução de todos os problemas do meu cargo, mas não me recordo onde

vos teria visto antes!... a realidade é que, há uma semana, tenho o coração

dilacerado e oprimido... Encontrando-vos, parecia deparar-se-me esta

imagem adorada e inesquecida. Tudo fiz por evitar esta cena desagradável

e penosa, mas, confesso que uma força invencível me confunde o

coração!...

- Enganais-vos, senhor! Entre nós não pode existir outro laço, além

do inspirado pelo respeito à identidade de nossas condições sociais. Se

tendes em tão alta conta as vossas obrigações de ordem política, não

deveis olvidar que o homem público deve cultivar as virtudes da vida

privada, incentivando, em si mesmo, a veneração e a incorruptibilidade da

própria consciência.

- Mas, a vossa personalidade me faz esquecer todos esses

imperativos. Onde vos teria visto, afinal, para que me sentisse empolgado

desta maneira?

- Calai-vos, pelos deuses! - murmurou Lívia, assustada e

empalidecida. - Nunca vos vi, antes de nossa chegada a Jerusalém, e apelo

para o vosso cavalheirismo de homem, a fim de me poupardes estas

referências que me amarguram!... Tenho razões para crer na vossa ventura

conjugal, junto de uma mulher digna e pura, tal como a vejo, reputando

uma loucura as propostas que vossas palavras me deixam entrever...

Pilatos ia prosseguir na sua argumentação, quando a pobre senhora,

amargamente surpreendida, sentiu-se desfalecer. Debalde mobilizou ela

63

HÁ DOIS MIL ANOS...

as suas energias vitais, com o fim de evitar o delíquio.

Presa de singular abatimento, encostou-se a uma árvore do jardim,

onde se desenrolava a palestra que acabamos de ouvir. Receando as

conseqüências, o governador tomou-lhe a mão delicada e mimosa,

torturado pelos seus inconfessáveis pensamentos, mas, ao seu contacto

ligeiro, a natureza orgânica de Lívia parecia reagir com decisão e

inquebrantável firmeza.

Recobrando as forças, fez com a cabeça um leve sinal de

agradecimento, enquanto Públio e Cláudia se acercavam de ambos,

renovando-se a palestra geral, com a satisfação de todos.

Todavia, a cena provocada pelas extravasões de afeto do

governador não ficou circunscrita apenas aos dois atores que a viveram

intensamente.

Fúlvia e Sulpício acompanharam-na em seus mínimos detalhes,

através dos claros abertos na ramagem sombria.

- Ora esta! - exclamou o lictor para a companheira, observando as

minudências da palestra que acabamos de descrever. - Então, já perdeste

as boas graças do procurador da Judeia?

A essa pergunta, Fúlvia, que por sua vez não tirava os olhos da cena,

estremeceu convulsivamente, dando guarida aos mais largos sentimentos

de ciúme e despeito.

- Não respondes? - continuava Sulpício, gozando o espetáculo. -

Porque me recusas tantas vezes, se tenho para oferecer-te um sentimento

profundo de dedicação e lealdade?

A interpelada continuou em silêncio, no seu posto de observação,

rugindo de cólera íntima, quando viu que o governador guardava, entre as

suas, a mão exânime da companheira, pronunciando palavras que seus

ouvidos não escutavam, mas os seus sentimentos inferiores presumiam

adivinhar naquele colóquio inesperado.

64

ROMANCE DE EMMANUEL

Tão logo, porém, Cláudia e Públio figuraram no cenário, Fúlvia

voltou-se para o companheiro, murmurando com voz cava:

- Acederei a todos os teus desejos, se me auxiliares num

cometimento.

- Qual?

- O de levarmos ao senador, em tempo oportuno, o conhecimento da

infidelidade de sua mulher.

- Mas, como?

- Primeiramente, evitarás a instalação de Públio em Nazaré, para

levá-la mais distante, de modo a dificultar as relações entre Lívia e o

governador, por ocasião de sua ausência de Jerusalém, porque estou

adivinhando que ela desejará transferir-se para Nazaré, em breves dias. Em

seguida, procurarei interferir, pessoalmente, de maneira que sejas

designado para proteger o senador na sua estação de repouso e, investido

nesse cargo, encaminharás os acontecimentos para consecução de

nossos planos. Isso feito, saberei recompensar teus esforços e bons

serviços de sempre, com a minha dedicação absoluta.

O lictor ouviu a proposta, silenciando, indeciso. Mas a interlocutora,

como se estivesse ansiosa por selar a aliança sinistra, interrogou em voz

firme:

- Tudo combinado?

- De pleno acordo!... - respondeu Sulpício, já resoluto.

E as duas personificações do despeito e da lascívia reuniram-se à

caravana fraterna, com a máscara das alegrias aparentes, depois de

concluído o pacto tenebroso.

As últimas horas foram consagradas às despedidas, com a

afabilidade exterior do convencionalismo social.

Lívia absteve-se de relatar ao esposo a cena penosa do jardim,

considerando não somente a sua

65

HÁ DOIS MIL ANOS...

necessidade de repouso íntimo, como também a importância social das

personalidades em jogo, prometendo a si mesma evitar, a todo transe,

qualquer expressão menos digna no terreno do escândalo pelas palavras.

66

IV

Na Galileia

No dia imediato a esses acontecimentos, às primeiras horas da

manhã, Públio Lentulus foi procurado, na intimidade do seu gabinete

particular, por Fúlvia, que se lhe dirigiu, criminosamente, nestes termos:

- Senador, o ascendente de nossas ligações familiares obriga-me a

procurar-vos para tratar de um assunto desagradável e doloroso, mas, nas

minhas experiências de mulher, cumpre-me aconselhá-lo a resguardar sua

esposa da insídia dos próprios amigos, pois que, ainda ontem, tive

oportunidade de surpreendê-la em íntimo colóquio com o governador...

O interpelado estranhou aquela atitude insólita, grosseira, contrária

a todos os seus métodos de homem de bem.

Repeliu dignamente a investida, encarecendo a nobreza moral de

sua esposa, passando Fúlvia a relatar-lhe, com os mais exaltados floreios

de sua imaginação doentia, a cena da véspera, nas suas mínimas

minudências.

67

HÁ DOIS MIL ANOS...

O senador ficou pensativo, mas sentiu-se com a precisa coragem

moral para repelir a insinuação caluniosa.

- Pois bem - disse ela, terminando a denúncia -, muito longe levais a

vossa confiança e boa fé. Um homem nunca perde por ouvir os conselhos

da experiência feminina. A prova de que Lívia caminha na estrada larga da

prevaricação tê-la-eis muito breve, porquanto ela há-de preferir a partida

imediata para Nazaré, onde o governador buscará encontrá-la.

E, dizendo-o, retirou-se apressadamente, deixando o senador algo

desalentado e compungido, pensando nos corações mesquinhos que o

rodeavam, porque, no tribunal da consciência, não se sentia disposto a

aceitar idéia que viesse conspurcar a valorosa nobreza de sua mulher.

Imenso véu de sombras cobriu-lhe o espírito sensível e afetuoso.

Sentiu que, em Jerusalém, conspiravam contra ele todas as forças

tenebrosas do seu destino, experimentando vasto deserto no coração.

Ali, não encontraria a palavra prudente e generosa de um amigo

como Flamínio, com quem pudesse desabafar as suas profundas mágoas.

Absorto nessas meditações angustiosas, não viu que as pétalas das

horas rodopiavam incessantes, nos torvelinhos do tempo. Só muito depois

percebeu o vozerio de um dos serviçais de confiança, vindo a saber que

Sulpício Tarquinius lhe solicitava o obséquio de uma entrevista particular,

pedido a que atendeu com o máximo de atenção.

Admitido ao interior do gabinete, o lictor referiu-se, sem preâmbulos,

aos fins da visita, explicando com desembaraço:

- Senador, honrado com a vossa confiança no caso de vossa

transferência para uma estação de repouso, venho sugerir-vos o

arrendamento de rica propriedade pertencente a um nosso compatrício,

nos arredores de Cafarnaum, encantadora cidade da

68

ROMANCE DE EMMANUEL

Galileia, situada no caminho de Damasco. É verdade que já escolhestes

Nazaré, mas, ao longo da planície de Esdrelon, as casas confortáveis são

muito raras, acrescendo que seríeis obrigado a enormes dispêndios em

serviços de remodelação e benfeitorias. Em Cafarnaum, porém, o caso é

diferente. Tenho ali um amigo, Caio Gratus, decidido a arrendar por tempo

ir determinado a sua esplêndida vila, que é uma herdade provida de todo o

conforto, com pomares preciosos, num ambiente de absoluto sossego.

O senador ouvia o preposto de Pilatos como se o espírito lhe

pairasse noutra parte; mas, como se tivesse a atenção subitamente

despertada, exclamou, na atitude de quem argumenta consigo mesmo:

- De Jerusalém a Nazaré, temos setenta milhas... Onde fica

Cafarnaum?...

- Muito distante de Nazaré - obtemperou o lictor, com segunda

intenção.

- Está bem, Sulpício - respondeu Públio, com ares de quem tomou

uma resolução íntima -, estou muito agradecido pela tua gentileza, que não

esquecerei de recompensar em tempo oportuno. Aceito a tua sugestão que

reputo sensata, mesmo porque, de fato, não me pode interessar a

aquisição definitiva de qualquer imóvel na Galileia, atenta a necessidade

de regressar a Roma, dentro em breve. Ficas autorizado a concluir o

negócio, porquanto me louvo nas tuas informações, descansando,

confiadamente, no teu conhecimento do assunto.

Secreta satisfação transpareceu nos olhos de Sulpício, que se

despediu com fingido reconhecimento.

Públio Lentulus descansou novamente os cotovelos na mesa de

trabalho, submerso em profundas cismas.

Aquela sugestão de Sulpício chegava no instante psicológico de

suas angustiosas cogitações, porque, em face dessa nova providência,

conseguiria instalar a família longe de qualquer influência da

69

HÁ DOIS MIL ANOS...

casa do procurador da Judeia, salvando, assim, a sua reputação dos

salpicos ignominiosos da maledicência.

A denúncia de Fúlvia, todavia, desdobrava sucessivas preocupações

no seu íntimo. Fosse pelo inopinado da calúnia, ou pelo espírito de

perversidade com que a mesma fôra urdida, seu pensamento mergulhou

em ansiosas expectativas.

À noite daquele mesmo dia, após o jantar, vamos encontrá-lo a sós

com Lívia, no terraço da residência do pretor, que, por sua vez, se

ausentara de casa por algumas horas, em companhia dos seus familiares,

para atender a imperativos de certas pragmáticas.

Notando-lhe no rosto os sinais evidentes de profunda contrariedade,

rompeu a esposa com a encantadora intimidade do seu coração feminino:

- Querido, pesa-me ver-te assim, dobrado ao jugo de tamanhos

desgostos, quando esta longa viagem deveria restituir-nos a tranqüilidade

necessária ao desenvolvimento dos teus encargos... Ouso pedir que

apresses a nossa mudança de Jerusalém para um ambiente mais calmo,

onde nos sintamos mais a sós, fora deste círculo de criaturas cujos

hábitos não são os nossos, e cujos sentimentos desconhecemos. Quando

partiremos para Nazaré?...

- Para Nazaré? - repetiu o senador, com voz irritada e sombria, como

se o tocasse o espírito venenoso do ciúme, lembrando, involuntariamente,

as acusações infundadas de Fúlvia.

- Sim - prosseguiu Lívia, súplice e carinhosa -, pois não foram essas

as providências ontem aventadas?

- É verdade, querida! - exclamou Públio, já pesaroso, voltando a si

dos maus pensamentos que havia abrigado por um instante - mas resolvi

depois instalarmo-nos em Cafarnaum, contrariando as últimas decisões...

70

ROMANCE DE EMMANUEL

E tomando a mão da companheira, como se buscasse um bálsamo

para a alma ferida, sussurrou-lhe de manso:

- Lívia, és tudo que me resta neste mundo!... Nossos filhos são flores

da tua alma, que os deuses nos deram para minha alegria!... Perdoa-me,

querida... Há quanto tempo tenho vivido absorto e taciturno, esquecendo o

teu coração sensível e carinhoso! Parece-me estar despertando agora de

um sono muito doloroso e muito profundo, mas despertando com a alma

receosa e oprimida. Andam-me, no íntimo, amargurados vaticínios... Temo

perder-te, quando quisera encerrar-te no peito, guardando-te no coração

eternamente... Perdoa-me...

Enquanto ela o contemplava, surpresa, seus lábios sequiosos lhe

cobriam as mãos de beijos ardentes. E não foram apenas os ósculos

afetuosos que brotaram nesse transbordamento de carinhos. Uma lágrima

lhe gotejou dos olhos cansados, misturando-se às flores da sua afeição.

- Que é isso, Públio? Choras? - exclamou Lívia, enternecida e

angustiada.

- Sim! Sinto os gênios do mal cercando-me o coração e a mente. Meu

íntimo está povoado de visões sombrias, prenunciando o fim da nossa

felicidade; mas eu sou um homem e sou forte... Querida, não me negues a

tua mão para atravessarmos juntos o caminho da vida, porque, contigo,

vencerei o próprio impossível!...

Ela estremeceu em face dessas observações, que lhe não eram

familiares.

Num relance, retrocedeu à noite anterior, considerando o

atrevimento do governador, que dignamente repelira, experimentando, ao

lado da aflição pelo companheiro, soberana tranqüilidade de consciência

e, tomando ligeiramente as mãos do esposo, levou-o a um canto do

terraço, onde se postou à frente de uma harpa harmoniosa e antiga,

cantando

71

HÁ DOIS MIL ANOS...

baixinho, como se a sua voz, naquela noite, fosse o gorjeio de uma cotovia

apunhalada:

"Alma gêmea da minhalma,

Flor de luz da minha vida,

Sublime estrela caída

Das belezas da amplidão!...

Quando eu errava no mundo

Triste e só, no meu caminho,

Chegaste, devagarinho,

E encheste-me o coração.

Vinhas na bênção dos deuses,

Na divina claridade,

Tecer-me a felicidade,

Em sorrisos de esplendor!...

És meu tesouro infinito,

Juro-te eterna aliança,

Porque eu sou tua esperança,

Como és todo o meu amor!"

Tratava-se de uma composição dele, na mocidade, tão ao gosto da

juventude romana, dedicada a ela própria, e que o seu talento musical

guardava sempre, para circunstâncias especiais do seu sentimento.

Naquele instante, porém, sua voz tinha tonalidades diferentes, como

se houvera encerrado na garganta uma toutinegra divina, exilada dos

prados brilhantes do Paraíso.

Na última nota, tocada de tristeza e angústia indefiníveis, Públio

tomou-a brandamente de encontro ao peito, forte e resoluto, como se

quisesse reter para sempre, no coração, a sua jóia de inimaginável pureza.

Agora, era Lívia a chorar copiosamente nos braços do companheiro,

e este a beijá-la nos transportes de sua alma leal e, por vezes, impulsiva.

Depois daquele arroubo emotivo, Públio sentiu-se desanuviado e

satisfeito.

72

ROMANCE DE EMMANUEL

- Porque não regressarmos a Roma quanto antes? - perguntou Lívia,

como se o seu espírito estivesse clarificado por luzes proféticas, com

relação aos dias futuros. - Junto dos filhinhos retomaríamos nossas

obrigações habituais, cientes de que a luta e o sofrimento estão em todos

os lugares e de que toda alegria significa, neste mundo, uma bênção dos

deuses!..

O senador ponderou a proposta da companheira, estabelecendo a

análise de toda a situação no seu íntimo, obtemperando, por fim:

- Tua observação é justa e providencial, minha querida, mas, que

diriam os nossos amigos quando soubessem que, depois de tantos

sacrifícios com a viagem, havíamos resolvido a permanência de apenas

uma semana em região tão distante? E a nossa doentinha? Seu organismo

não tem reagido de modo eficaz, em contacto com o novo clima?

Estejamos confiantes e tranqüilos. Apressarei a partida para Cafarnaum e,

em breves dias, estaremos em novo ambiente, segundo os nossos

desejos.

Assim aconteceu, efetivamente.

Reagindo às vibrações perniciosas do meio, Públio Lentulus

providenciou a solução de todos os problemas atinentes à mudança,

fazendo ouvidos moucos às indiretas de Fúlvia, enquanto Lívia,

escudando-se na superioridade de sua alma, buscava insular-se dentro do

pequeno mundo de amor dos dois filhinhos, fugindo à presença do

governador, que não desistira dos seus assédios, e junto de quem a figura

nobre de Cláudia sabia despertar em todos a mais sincera simpatia.

Duas servas foram admitidas ao serviço do casal, na perspectiva de

sua transferência para Cafarnaum; não que fossem indispensáveis ao

desdobramento das atividades domésticas, em face dos servos

numerosos trazidos de Roma; contudo, o senador examinara a utilidade

dessa providência, considerando que ele e a família viriam a necessitar de

um contacto mais direto com os costumes e

73

HÁ DOIS MIL ANOS...

dialetos do povo, reconhecida a circunstância de que ambas conheciam a

Galileia.

Ana e Sêmele, recomendadas por amigos do pretor, foram recebidas

ao serviço de Lívia, que as acolheu com bondade e simpatia.

Trinta dias se passaram nos preparativos da projetada viagem.

Sulpício Tarquinius, estimulado pelas vantagens dos próprios

interesses materiais, não perdeu ensanchas de captar a plena confiança

do senador, organizando a propriedade com minúcias de atenção e

gentileza, provocando o contentamento e o elogio de todos.

Nas vésperas da partida, Públio Lentulus compareceu ao gabinete

de Pilatos, para o agradecimento das despedidas.

Depois de saudá-lo cordialmente, exclamou o governador, com

forçada jovialidade:

- É pena, caro amigo, que as circunstâncias o conduzam para

Cafarnaum, quando esperava ter a satisfação de retê-lo nas vizinhanças de

nossa casa, em Nazaré.

Mas, enquanto permanecer na Galileia, em vez de minhas habituais

visitas a Tiberíades, procurarei o norte para nos avistarmos.

Públio manifestou-lhe sua gratidão e reconhecimento e, quando se

preparava para sair, o procurador da Judeia continuou, em tom afetuoso e

conselheiral:

- Senador, não só como responsável pela situação dos patrícios na

província, como também na qualidade de amigo sincero, não posso deixálo

partir à mercê do acaso, tão somente na companhia de escravos e

servos de confiança. Acabo de designar Sulpício, homem que me merece

inteira confiança, para dirigir os serviços de segurança que vos são

devidos. Além dele, mais um lictor e alguns centuriões partirão para

Cafarnaum, onde permanecerão às suas ordens.

74

ROMANCE DE EMMANUEL

Públio agradeceu cortesmente, sentindo-se confortado com o

oferecimento, embora a pessoa do governador lhe causasse pouca

simpatia íntima.

Afinal, terminados os aprestos de viagem, a compacta caravana se

pôs em movimento, atravessando os territórios de Judá e as montanhas

verdes da Samaria, em demanda da sua estação de destino.

Alguns dias foram gastos através das estradas que contornam

muitas vezes as águas leves e límpidas do Jordão.

Prestes a chegar a Cafarnaum, à distância de meio quilômetro de

caminho, entre árvores frondosas, junto ao lago de Genesaré, uma

herdade imponente aguardava as nossas personagens para a sua estação

de repouso.

Sulpício Tarquinius desvelara-se nas mais íntimas minudências, no

que dizia com o bom gosto da época.

A propriedade estava situada em pequena elevação de terreno,

rodeada de árvores frutíferas dos climas frios, pois, há dois mil anos, a

Galileia, hoje transformada em poeirento deserto, era um paraíso de

verdura. Nas suas paisagens maravilhosas, desabrochavam flores de

todos os climas. Seu lago imenso, formado pelas águas cristalinas do rio

sagrado do Cristianismo, era talvez a mais piscosa bacia em todo o

mundo, descansando as suas vagas mansas e preguiçosas ao pé dos

arbustos ricos de seiva, cujas raízes se tocavam do perfume agreste dos

eloendros e das flores silvestres. Nuvens de aves cariciosas cobriam, em

bandos compactos, aquelas águas feitas de um prodigioso azul celeste,

hoje encarceradas entre rochedos adustos e ardentes.

Ao norte, as eminências nevosas do Hermon figuravam-se em linhas

alegres e brancas, divisando-se ao ocidente as alevantadas planícies da

Gaulanítida e da Pereia, envolvidas de sol, formando, juntas, um grande

socalco que se alonga de Cesareia de Filipe para o sul.

75

HÁ DOIS MIL ANOS...

Uma vegetação maravilhosa e única, operando a emanação

incessante do ar mais puro, temperava o calor da região, onde o lago se

localiza, muito abaixo do nível do Mediterrâneo.

Públio e sua mulher sentiram uma onda de vida nova, que seus

pulmões aspiravam a longos haustos.

Entretanto, o mesmo não acontecia à pequenina Flávia, cujo estado

geral piorava ao extremo, contra todas as previsões.

Agravaram-se as feridas que lhe cobriam o corpo magrinho e a

pobre criança não conseguia mais arredar pé do leito, onde se conservava

em profunda prostração.

Acentuava-se, desse modo, a angústia paterna que, embalde,

recorreu a todos os meios para melhorar as condições da doentinha.

Um mês havia transcorrido em Cafarnaum, onde, mais em contacto

com os dialetos do povo, já não lhes era desconhecida a fama das obras e

das pregações de Jesus.

Vezes inúmeras, pensou Públio em dirigir-se ao taumaturgo, a fim de

solicitar a sua intervenção a favor da filhinha, atendendo a um apelo

secreto do coração. Reconhecia no íntimo, porém, que semelhante atitude

representava humilhação para a sua posição política e social, aos olhos

dos plebeus e vassalos do Império, examinando as conseqüências que

poderiam advir de tal procedimento.

Não obstante essas ponderações, permitia que numerosos servos

de sua casa assistissem, aos sábados, às pregações do profeta de Nazaré,

inclusive Ana, que se tomara de respeitosa veneração por aquele a quem

os humildes chamavam Mestre.

Dele teciam os escravos as mais encantadoras histórias, nas quais o

senador nada via, além dos arrebatamentos instintivos da alma popular, se

bem não deixasse de o surpreender a opinião lisonjeira de um homem

como Sulpício.

76

ROMANCE DE EMMANUEL

Uma tarde, porém, os padecimentos da pequenina haviam atingido o

auge. Além das feridas que, de muitos anos, se haviam multiplicado no

corpinho gracioso, outras úlceras surgiram nas regiões da epiderme, antes

violáceas, transformando-lhe os órgãos delicados numa pústula viva.

Públio e Lívia, intimamente consternados, aguardavam um fim

próximo.

Nesse dia, após o jantar muito simples, Sulpício demorou-se até

mais tarde, a pretexto de confortar o senador com a sua presença.

É assim que vamos encontrá-los ambos no terraço espaçoso, onde

Públio lhe fala nestes termos:

- Meu amigo, que me diz desses rumores aqui propalados acerca do

profeta de Nazaré? Habituado a não dar ouvidos à palavra ignorante do

povo, gostaria de ouvir novamente as suas impressões sobre esse homem

extraordinário.

- Ah! sim - diz Sulpício, como quem se esforça por se lembrar de

alguma coisa -, intrigado com aquela cena que há tempos presenciei e que

tive ocasião de relatar na residência do governador, tenho procurado

seguir as atividades desse homem, na medida das minhas possibilidades

de tempo.

Alguns compatrícios nossos o têm na conta de visionário, opinião

que compartilho no que se refere às suas prédicas, cheias de parábolas

incompreensíveis, mas não no que respeita às suas obras, que nos tocam

o coração.

O povo de Cafarnaum anda maravilhado com os seus milagres e

posso assegurar-vos que, em torno dele, já se formou uma comunidade de

discípulos dedicados, que se dispõem a segui-lo por toda parte.

- Mas, afinal, que ensina ele às multidões? - perguntou Públio,

interessado.

- Prega alguns princípios que ferem as nossas mais antigas

tradições, como, por exemplo, a doutrina do amor aos próprios inimigos e

a fraternidade absoluta entre todos os homens. Exorta os

77

HÁ DOIS MIL ANOS

ouvintes a buscarem o reino de Deus e a sua justiça, mas não se trata de

Júpiter, o senhor de nossas divindades; ao contrário, fala de um Pai

misericordioso e compassivo, que nos segue do Olimpo e para quem estão

patentes as nossas idéias mais secretas. De outras vezes, o profeta de

Nazaré se expressa acerca desse reino do céu com apólogos interessantes

e incompreensíveis, nos quais há reis e príncipes criados pela sua

imaginação sonhadora, que nunca poderiam ter existido.

O pior, todavia - rematou Sulpício, emprestando grave entono às

palavras -, é que esse homem singular, com esses princípios de um novo

reino, avulta na mentalidade popular como um príncipe surgido para

reivindicar prerrogativas e direitos dos judeus, dos quais, talvez, queira

assumir a direção algum dia...

- Que providência adotam as autoridades da Galileia, no exame

dessas idéias revolucionárias? - indagou o senador, com maior interesse

- Aparecem já os primeiros indícios de reação, por parte dos

elementos mais ligados a Ântipas. Há alguns dias, quando passei por

Tiberíades, notei que se formavam algumas correntes de opinião, no

sentido de levar o assunto à consideração das altas autoridades.

- Bem se vê - exclamou o senador - que se trata de simples homem

do povo, a quem o fanatismo dos templos judaicos encheu de pruridos de

reivindicações injustificáveis. Suponho que a autoridade administrativa

nada tem a recear de semelhante pregador, mestre de uma humildade e

fraternidade incompatíveis com as conquistas contemporâneas. Por outro

lado, ao ouvir de tua boca a descrição dos seus feitos, sinto que esse

homem não pode ser criatura tão vulgar, como vimos supondo.

- Desejaríeis conhecê-lo mais de perto? - perguntou Sulpício,

atencioso.

78

ROMANCE DE EMMANUEL

- De modo algum - respondeu Públio, alardeando superioridade. - Tal

cometimento de minha parte viria quebrar a compostura dos deveres que

me competem como homem de Estado, desmoralizando-se minha

autoridade perante o povo. Aliás, considero que os sacerdotes e

pregadores da Palestina deveriam fazer estágios de trabalho e de estudo,

na sede do governo imperial, a fim de renovar-se esse espírito de

profetismo que aqui se observa em toda parte. Em contacto com o

progresso de Roma, haveriam de reformar suas concepções íntimas

acerca da vida, da sociedade, da religião e da política.

Enquanto os dois mantêm essa palestra sobre a personalidade e os

ensinos do mestre de Nazaré, penetremos no interior da casa.

No quarto da doentinha, vamos encontrar Lívia e Ana pensando as

feridas que cobriam a epiderme da pequenina enferma, agora

transformadas em uma só úlcera generalizada.

Ana, coração bondoso e meigo, pouco mais velha que sua senhora,

se havia transformado em companheira predileta, no círculo dos seus

afazeres domésticos. Naquele deserto de corações, era naquela serva,

inteligente e afetuosa, que a alma sensível de Lívia encontrara um oásis

para as confidências e lutas de cada dia.

- Ah! senhora - exclamava a serva, com sincero carinho a lhe

transparecer dos olhos e dos gestos -, guardo no coração profunda fé nos

milagres do Mestre, acreditando mesmo que, se levássemos esta criança

para receber a bênção de suas mãos, sarariam as chagas e ela ressurgiria

para o seu amor maternal... Quem sabe?

- Infelizmente - respondeu Lívia, com ponderação e tristeza - eu não

me atreveria a lembrar essa providência, consciente de que Públio haveria

de recusá-la, dada a nossa posição social; mas, francamente, desejaria ver

esse homem caridoso e extraordinário de que sempre me falas.

79

HÁ DOIS MIL ANOS...

- Ainda no último sábado, senhora - respondeu a serva, animada

pelas palavras de simpatia que acabava de ouvir -, o profeta de Nazaré

recebeu nos braços numerosas crianças.

Ao sair da barca de Simão, nós o esperávamos em massa, para lhe

beber os ensinos consoladores. Precipitamo-nos para ele, ansiosos todos

de receber ao mesmo tempo os sagrados eflúvios da sua presença

confortadora, mas, nesse dia, muitas mães compareceram à prédica,

conduzindo os filhinhos que se confundiam em algazarra ensurdecedora,

como um bando de passarinhos inconscientes. Simão e mais alguns

discípulos começaram a repreender severamente os meninos, a fim de que

não perdêssemos o encanto suave e doce das palavras do Mestre. Mas,

quando menos esperávamos, sentou-se Ele na pedra costumeira e

exclamou com indizível ternura: - "Deixai vir a mim os pequeninos, porque

o reino do céu lhes pertence." Houve, então, prodigioso silêncio entre os

ouvintes de Cafarnaum e os peregrinos que haviam chegado de Corazim e

de Magdala, enquanto aqueles petizes trêfegos acorriam ao seu regaço

amoroso, beijando-lhe a túnica com indefinível alegria.

Muitas crianças eram enfermas que as mães conduziam às

pregações do lago, para que se curassem de mazelas antigas, ou de

doenças consideradas incuráveis...

- O que me contas é de uma beleza edificante - exclamou Lívia,

profundamente emocionada -; entretanto, possuindo à mão todos os

recursos materiais, sinto que não poderei receber os altos benefícios do

teu Mestre.

- E é pena, senhora, porque muitas mulheres de posição o

acompanham na cidade. Não somos apenas os mais humildes que

comparecemos às suas predicações, mas numerosas senhoras de

destaque em Cafarnaum, esposas de funcionários de Herodes e de

publicanos, assistem às lições carinhosas do lago, confundindo-se com os

pobres e os escravos.

80

ROMANCE DE EMMANUEL

E o profeta não desdenha a ninguém. A todos convida para o reino

de Deus e sua justiça. Contrariamente a todos os enviados do céu, que

conhecemos, ele se esquiva dos favorecidos da sorte, para manter

relações com as criaturas mais infelizes, considerando a todos como

irmãos muito amados do seu coração...

Lívia escutava a palavra da serva com atenção e embevecimento. A

figura daquele homem, famoso e bom, exercia atração singular no seu

espírito.

E, enquanto seus grandes olhos expressavam o maior interesse

pelas narrações encantadoras e simples da serva leal, não reparavam

ambas que a doentinha as acompanhava com aguçada curiosidade,

característica das almas infantis, não obstante a febre alta que lhe

devorava o organismo.

Neste comenos, o senador, após as despedidas de Sulpício, busca o

apartamento da pequena enferma, satisfazendo à sua ansiedade paternal.

Diante dele, calam-se as duas mulheres, entregando-se tão somente

aos afazeres que as retinham junto ao leito da pequenina, agora gemendo

dolorosamente.

Públio Lentulus debruçou-se sobre o leito da filha, com os olhos

rasos de pranto.

Brincou com as suas mãozinhas mirradas e feridas, fazendo-lhe

festas, com o coração tocado de infinita amargura.

- Filhinha, que queres hoje para dormir melhor? - perguntou com a

voz estrangulada, arrancando lágrimas dos olhos de Lívia.

Comprar-te-ei muitos brinquedos e muitas novidades... Dize ao papai

o que desejas...

Copioso suor empastava as excrescências ulcerosas da doentinha,

que deixava transparecer angustiosa ansiedade. Notava-se-lhe grande

esforço, como se estivesse realizando o impossível para responder à

pergunta paterna.

81

HÁ DOIS MIL ANOS...

- Fala, filhinha - murmurava Públio, sufocado, observando-lhe o

desejo de expressar qualquer resposta.

Buscarei tudo que quiseres... Mandarei a Roma um portador,

especialmente para trazer todos os teus brinquedos...

Ao cabo de visível esforço, pôde a pequenina murmurar com voz

cansada e quase imperceptível:

- Papai... eu quero... o profeta... de Nazaré...

O senador baixou os olhos, humilhado e confundido em face do

imprevisto daquela resposta, enquanto Lívia e Ana, como se fossem

tocadas por força invisível e misteriosa, pelo inopinado da cena,

escondiam o rosto inundado de pranto.

82

V

O Messias de Nazaré

O dia seguinte amanheceu trazendo as mais sérias preocupações a

Públio e sua família.

Ainda cedo, vamos encontrá-lo em íntimo colóquio com a esposa,

que se lhe dirige em voz súplice e afetuosa:

- Considero, querido, que devias atenuar um pouco os rigores da

posição em que o destino nos colocou, procurando esse homem

generoso, para benefício de nossa filha. Todos se referem às suas ações,

empolgados por sua bondade edificadora, e eu acredito que o seu coração

se apiedará da nossa desditosa situação.

O senador ouviu-a apreensivo e incerto, exclamando afinal:

- Pois bem, Lívia; acederei aos teus desejos, mas só a angústia que

nos vai nalma me faz transigir, de maneira tão rude, com os meus

princípios.

Não procederei, todavia, conforme sugeres. Irei sozinho à cidade,

como se me encontrasse em hora de simples entretenimento, passando

pelo trecho do caminho que nos conduz às margens do lago, sem chegar

ao cúmulo de abordar pessoalmente o pro83

HÁ DOIS MIL ANOS...

feta, de modo a não descer da minha dignidade social e política, e, no caso

de sobrevir alguma circunstância favorável, far-lhe-ei sentir o prazer que

nos causaria a sua visita, com o fim de reanimar a nossa doentinha.

- Muito bem! - disse Lívia, entre confortada e agradecida - guardo

nalma a mais sincera e profunda fé. Vai sim, querido!... Ficarei rogando a

bênção dos céus para a nossa iniciativa. O profeta, que agora surge como

verdadeiro médico das almas, saberá que atrás da tua posição de senador

do Império, há corações que sofrem e choram!...

Públio notou que a esposa se exaltava nas suas considerações,

deixando-se conduzir pelo que julgava um excesso de fraqueza e

pieguismo; entretanto, nada lhe admoestou a respeito, em face das

amarguras do momento, suscetível de desvairar o cérebro mais forte.

Deixou que as horas movimentadas do dia se escoassem com as

claridades do poente e, quando o crepúsculo entornava as suas meiastintas

na paisagem maravilhosa, saiu, fingindo distração e alheamento,

como se desejasse conhecer de perto a antiga fonte da cidade, motivo de

atração para todos os forasteiros.

Após haver percorrido uns trezentos metros de caminho, encontrou

transeuntes e pescadores, que se recolhiam e o encaravam com mal

disfarçada curiosidade.

Uma hora passou sobre as suas amargas cogitações íntimas.

Um velário imenso de sombras invadia toda a região, cheia de

vitalidade e de perfumes.

Onde estaria o profeta de Nazaré naquele instante? Não seria uma

ilusão a história dos seus milagres e da sua encantadora magia sobre as

almas? Não seria um absurdo procurá-lo ao longo dos caminhos,

abstraindo-se dos imperativos da hierarquia social? Em todo caso, deveria

tratar-se

84

ROMANCE DE EMMANUEL

de homem simples e ignorante, dada a sua preferência por Cafarnaum e

pelos pescadores.

Dando curso às idéias que lhe fluíam da mente incendiada e abatida,

Públio Lentulus considerou dificílima a hipótese do seu encontro com o

mestre de Nazaré.

Como se entenderiam?

Não lhe interessara o conhecimento minucioso dos dialetos do povo

e, certamente, Jesus lhe falaria no aramaico comumente usado na bacia de

Tiberíades.

Profundas cismas entornavam-lhe do cérebro para o coração, como

as sombras do crepúsculo que precediam a noite.

O céu, porém, àquela hora, era de um azul maravilhoso, enquanto as

claridades opalinas do luar não haviam esperado o fechamento absoluto

do leque imenso da noite.

O senador sentiu o coração perdido num abismo de cogitações

infinitas, ouvindo-lhe o palpitar descompassado no peito opresso.

Dolorosa emoção lhe compungia agora as fibras mais íntimas do espírito.

Apoiara-se, insensivelmente, num banco de pedras enfeitado de silvas, e

deixara-se ali ficar, sondando o ilimitado do pensamento.

Nunca experimentara sensação idêntica, senão no sonho

memorável, relatado unicamente a Flamínio.

Recordava-se dos menores feitos da sua vida terrestre, afigurandose-

lhe haver abandonado, temporariamente, o cárcere do corpo material.

Sentia profundo êxtase, diante da Natureza e das suas maravilhas, sem

saber como expressar a admiração e reconhecimento aos poderes

celestes, tal a clausura em que sempre mantivera o coração insubmisso e

orgulhoso.

Das águas mansas do lago de Genesaré parecia-lhe emanarem

suavíssimos perfumes, casando-se deliciosamente ao aroma agreste da

folhagem.

85

HÁ DOIS MIL ANOS...

Foi nesse instante que, com o espírito como se estivesse sob o

império de estranho e suave magnetismo, ouviu passos brandos de

alguém que buscava aquele sítio.

Diante de seus olhos ansiosos, estacara personalidade

inconfundível e única. Tratava-se de um homem ainda moço, que deixava

transparecer nos olhos, profundamente misericordiosos, uma beleza

suave e indefinível. Longos e sedosos cabelos molduravam-lhe o

semblante compassivo, como se fossem fios castanhos, levemente

dourados por luz desconhecida. Sorriso divino, revelando ao mesmo

tempo bondade imensa e singular energia, irradiava da sua melancólica e

majestosa figura uma fascinação irresistível.

Públio Lentulus não teve dificuldade em identificar aquela criatura

impressionante, mas, no seu coração marulhavam ondas de sentimentos

que, até então, lhe eram ignorados. Nem a sua apresentação a Tíbério, nas

magnificências de Capri, lhe havia imprimido tal emotividade ao coração.

Lágrimas ardentes rolaram-lhe dos olhos, que raras vezes haviam chorado,

e força misteriosa e invencível fê-lo ajoelhar-se na relva lavada em luar.

Desejou falar, mas tinha o peito sufocado e opresso. Foi quando, então,

num gesto de doce e soberana bondade, o meigo Nazareno caminhou para

ele, qual visão concretizada de um dos deuses de suas antigas crenças, e,

pousando carinhosamente a destra em sua fronte, exclamou em linguagem

encantadora, que Públio entendeu perfeitamente, como se ouvisse o

idioma patrício, dando-lhe a inesquecível impressão de que a palavra era

de espírito para espírito, de coração para coração:

- Senador, porque me procuras? - e, espraiando o olhar profundo na

paisagem, como se desejasse que a sua voz fosse ouvida por todos os

homens do planeta, rematou com serena nobreza: - Fôra melhor que me

procurasses publicamente e na hora mais clara do dia, para que pudesses

adquirir,

86

ROMANCE DE EMMANUEL

de uma só vez e para toda a vida, a lição sublime da fé e da humildade...

Mas, eu não vim ao mundo para derrogar as leis supremas da Natureza e

venho ao encontro do teu coração desfalecido!...

Públio Lentulus nada pôde exprimir, além das suas lágrimas

copiosas, pensando amargamente na filhinha; mas o profeta, como se

prescindisse das suas palavras articuladas, continuou:

- Sim... não venho buscar o homem de Estado, superficial e

orgulhoso, que só os séculos de sofrimento podem encaminhar ao regaço

de meu Pai; venho atender às súplicas de um coração desditoso e

oprimido e, ainda assim, meu amigo, não é o teu sentimento que salva a

filhinha leprosa e desvalida pela ciência do mundo, porque tens ainda a

razão egoística e humana; é, sim, a fé e o amor de tua mulher, porque a fé

é divina... Basta um raio só de suas energias poderosas para que se

pulverizem todos os monumentos das vaidades da Terra...

Comovido e magnetizado, o senador considerou, intimamente, que

seu espírito pairava numa atmosfera de sonho, tais as comoções

desconhecidas e imprevistas que se lhe represavam no coração, querendo

crer que os seus sentidos reais se achavam travados num jogo

incompreensível de completa ilusão.

- Não, meu amigo, não estás sonhando... - exclamou meigo e

enérgico o Mestre, adivinhando-lhe os pensamentos. - Depois de longos

anos de desvio do bom caminho, pelo sendal dos erros clamorosos,

encontras, hoje, um ponto de referência para a regeneração de toda a tua

vida.

Está, porém, no teu querer o aproveitá-lo agora, ou daqui a alguns

milênios... Se o desdobramento da vida humana está subordinado às

circunstâncias, és obrigado a considerar que elas existem de toda a

natureza, cumprindo às criaturas a obrigação de exercitar o poder da

vontade e do

87

HÁ DOIS MIL ANOS...

sentimento, buscando aproximar seus destinos das correntes do bem e do

amor aos semelhantes.

Soa para teu espírito, neste momento, um minuto glorioso, se

conseguires utilizar tua liberdade para que seja ele, em teu coração,

doravante, um cântico de amor, de humildade e de fé, na hora

indeterminável da redenção, dentro da eternidade...

Mas, ninguém poderá agir contra a tua própria consciência, se

quiseres desprezar indefinidamente este minuto ditoso!

Pastor das almas humanas, desde a formação deste planeta, há

muitos milênios venho procurando reunir as ovelhas tresmalhadas,

tentando trazer-lhes ao coração as alegrias eternas do reinado de Deus e

de sua justiça!

Públio fitou aquele homem extraordinário, cujo desassombro

provocava admiração e espanto.

Humildade? que credenciais lhe apresentava o profeta para lhe falar

assim, a ele senador do Império, revestido de todos os poderes diante de

um vassalo?

Num minuto, lembrou a cidade dos césares, coberta de triunfos e

glórias, cujos monumentos e poderes acreditava, naquele momento,

fossem imortais.

- Todos os poderes do teu império são bem fracos e todas as suas

riquezas bem miseráveis.

As magnificências dos césares são ilusões efêmeras de um dia,

porque todos os sábios, como todos os guerreiros, são chamados no

momento oportuno aos tribunais da justiça de meu Pai que está no Céu.

Um dia, deixarão de existir as suas águias poderosas, sob um punhado de

cinzas misérrimas. Suas ciências se transformarão ao sopro dos esforços

de outros trabalhadores mais dignos do progresso, suas leis iníquas serão

tragadas no abismo tenebroso destes séculos de impiedade, porque só

uma lei existe e sobreviverá aos escombros da inquietação do homem - a

lei do amor, instituída por meu Pai, desde o princípio da criação...

88

ROMANCE DE EMMANUEL

Agora, volta ao lar, consciente das responsabilidades do teu

destino...

Se a fé instituiu na tua casa o que consideras a alegria com o

restabelecimento de tua filha, não te esqueças que isso representa um

agravo de deveres para o teu coração, diante de nosso Pai, Todo-

Poderoso!...

O senador quis falar, mas a voz tornara-se-lhe embargada de

comoção e de profundos sentimentos.

Desejou retirar-se, porém, nesse momento, notou que o profeta de

Nazaré se transfigurava, de olhos fitos no céu...

Aquele sítio deveria ser um santuário de suas meditações e de suas

preces, no coração perfumado da Natureza, porque Públio adivinhou que

ele orava intensamente, observando que lágrimas copiosas lhe lavavam o

rosto, banhado então por uma claridade branda, evidenciando a sua beleza

serena e indefinível melancolia..

Nesse instante, contudo, suave torpor paralisou as faculdades de

observação do patrício, que se aquietou estarrecido.

Deviam ser vinte e uma horas, quando o senador sentiu que

despertava.

Leve aragem acariciava-lhe os cabelos e a Lua entornava seus raios

argênteos no espelho carinhoso e imenso das águas.

Guardando na memória os mínimos pormenores daquele minuto

inesquecível, Públio sentiu-se humilhado e diminuído, em face da fraqueza

de que dera testemunho diante daquele homem extraordinário.

Uma torrente de idéias antagônicas represava-se-lhe no cérebro,

acerca de suas admoestações e daquelas palavras agora arquivadas para

sempre no âmago da sua consciência.

Também Roma não possuía os seus feiticeiros? Buscou rememorar

todos os dramas misteriosos da cidade distante, com as suas figuras

impressionantes e incompreensíveis.

89

HÁ DOIS MIL ANOS...

Não seria aquele homem uma cópia fiel dos magos e adivinhos que

preocupavam igualmente a sociedade romana?

Deveria ele, então, abandonar as suas mais caras tradições de pátria

e família para tornar-se um homem humilde e irmão de todas as criaturas?

Sorria consigo mesmo, na sua presumida superioridade, examinando a

inanidade daquelas exortações que considerava desprezíveis. Entretanto,

subiam-lhe do coração ao cérebro outros apelos comovedores. Não falara

o profeta da oportunidade única e maravilhosa? Não prometera, com

firmeza, a cura da filhinha à conta da fé ardente de Lívia?

Mergulhado nessas cogitações íntimas, abriu cautelosamente a

porta da residência, encaminhando-se ansioso ao quarto da enferma e, oh!

suave milagre! a filhinha repousava nos braços de Lívia, com absoluta

serenidade.

Sobre-humana e desconhecida força mitigara-lhe os padecimentos

atrozes, porque seus olhos deixavam entrever uma doce satisfação

infantil, iluminando-lhe o semblante risonho. Lívia contou-lhe, então, cheia

de júbilo maternal, que, em dado momento, a pequenina dissera

experimentar na fronte o contacto de mãos carinhosas, sentando-se em

seguida no leito, como se uma energia misteriosa lhe vitalizasse o

organismo de maneira imprevista. Alimentara-se, a febre desaparecera

contra todas as expectativas; ela já revelava atitudes de convalescente

palestrando com a mãezinha, com a graça espontânea da sua meninice.

Terminado o relato, a jovem senhora concluiu com entusiasmo:

- Desde que saíste, eu e Ana oramos com fervor junto da nossa

doentinha, implorando ao profeta que atendesse ao teu apelo, ouvindo os

nossos rogos e, agora, eis que a nossa filhinha se restabelece!... Poderá,

querido, haver felicidade maior do que esta?... Ah! Jesus deve ser um

emissário direto de Júpiter, enviado a este mundo

90

ROMANCE DE EMMANUEL

em gloriosa missão de amor e de alegria para todas as almas!...

Ana, porém, que escutava comovida, interveio num gesto

espontâneo e incoercível, oriundo da grata satisfação daquele momento.

- Não, minha senhora!... Jesus não vem da parte de Júpiter. Ele é o

Filho de Deus, seu Pai e nosso Pai que está nos céus, e cujo coração está

sempre cheio de bondade e misericórdia para todos os seres, conforme o

Mestre nos ensina. Louvemos, pois, o Todo-Poderoso, pela graça recebida,

agradecendo a Jesus com uma prece de humildade...

Públio Lentulus acompanhou a cena, em silêncio, intimamente

contrariado, com o verificar a intimidade estreita de sua mulher com uma

simples serva da casa. Observou, com profundo desagrado, não só a

espontaneidade da gratidão entusiástica de Lívia, como a intromissão de

Ana na conversa, o que considerava ousadia. Num relance, mobilizou

todas as reservas do seu orgulho para restabelecer a disciplina interna da

sua casa, e, retomando o aspecto altivo da sua expressão fisionômica,

dirigiu-se secamente à esposa.

- Lívia, torna-se preciso que te coíbas destes arrebatamentos! Afinal,

não vejo nada de extraordinário no que acaba de ocorrer. Nada tem faltado

à nossa doente, no tocante ao tratamento e cuidados necessários, e era

lógico que esperássemos uma reação salutar do organismo, em face da

nossa continuada assistência.

Quanto a ti, Ana - disse, voltando-se com arrogância para a serva

intimidada -, acredito já cumprida a missão que te fazia demorar neste

quarto, porquanto, considerando as melhoras da menina, não vejo

necessidade da tua permanência junto da patroa, que trouxe de Roma as

servas do seu serviço pessoal.

Ana fitou compungidamente a senhora, que mostrava no rosto os

sinais evidentes da sua amargura pelo imprevisto daquelas palavras

intempes91

HÁ DOIS MIL ANOS...

tivas, e, fazendo ligeira e respeitosa mesura, saiu do aposento onde havia

empregado as melhores energias da sua fraternal abnegação.

- Que é isso, Públio? - perguntou Lívia, fundamente comovida. -

Justamente agora, quando deveríamos mostrar à dedicada serva a alegria

do nosso reconhecimento, procedes com semelhante aspereza?

- Tuas infantilidades obrigam-me a fazê-lo. Que dirão da matrona que

se dá de alma aberta às suas escravas mais humildes? Como se haverá o

teu coração com estes excessos de confiança? Noto com desgosto que

entre nós existem, agora, profundas divergências. Porque essa demasiada

confiança no profeta de Nazaré, quando ele não é superior aos magos e

feiticeiros de Roma? E, além disso, onde colocas as tradições de nossas

divindades familiares, se não sabes guardar a fé em torno do altar

doméstico?

- Não concordo contigo, querido, nestas ponderações. Tenho plena

convicção de que a nossa Flávia foi curada por esse homem

extraordinário... No instante de sua melhora súbita, quando ela nos falava

das mãos sublimadas que a acariciavam, vi, com os meus olhos, que o

leito da doentinha estava saturado de luz diferente, como nunca havia

visto, até então...

- Luz diferente? Certo desvairas, depois de tantas fadigas; ou então

estás contagiada das alucinações deste povo de fanáticos, em cujo seio

tivemos a pouca sorte de cair...

- Não, meu amigo, não se trata de desvario. Não obstante as tuas

palavras, que reconheço partidas do coração que mais adoro e admiro na

Terra, tenho a certeza de que o Mestre de Nazaré acaba de curar nossa

filhinha; e, quanto a Ana, querido, acho injusta a tua atitude, aliás, em

desacordo com a tua proverbial generosidade com os servos de nossa

casa. Não podemos nem devemos esquecer que ela tem sido de uma

dedicação a toda prova,

92

ROMANCE DE EMMANUEL

junto de mim e de nossa filha, nestes lugares ermos. Outras podem ser as

suas crenças, mas presumo que a sua conduta honesta e santificante só

pode honrar o serviço de nossa casa.

O senador considerou a elevação dos conceitos da mulher,

sentindo-se arrependido do seu ato de impulsividade, e capitulou diante do

bom-senso daquelas palavras.

- Está bem, Lívia, aprecio-te a nobreza do coração e estimarei a

continuidade de Ana nos teus serviços privados; mas, não transijo no caso

da cura de nossa filhinha. Não admito que se atribua ao mago de Nazaré o

restabelecimento da mesma. Quanto ao mais, deverás lembrar, sempre,

que me apraz saber só a mim reservada a tua confiança e intimidade. A

servos ou desconhecidos não deve o patrício, e com especialidade a

matrona romana abrir as portas do coração.

- Sabes como acato as tuas ordens - disse-lhe a esposa, mais

confortada, dirigindo-lhe um olhar carinhoso e agradecido - e peço-te

perdoar-me se te ofendi a alma generosa e sensível!...

- Não, minha querida, se existe aqui um problema de perdão, sou eu

quem devo pedi-lo, mas não desconheces que esta região me atormenta e

apavora. Sinto-me confortado, reconhecendo a reação benéfica da

natureza orgânica da nossa filhinha, porque isto significa o nosso

regresso a Roma em tempo breve. Esperaremos, apenas, mais alguns dias,

e amanhã mesmo pedirei a Sulpício iniciar as providências para a nossa

volta.

Lívia concordou com as observações do marido, acariciando a

filhinha reanimada e refeita do abatimento profundo que a prostrara por

espaço de muitos dias. Intimamente, agradecia, satisfeita, a Jesus, pois

falava-lhe o coração que o acontecimento era uma bênção que o Pai dos

Céus lhe enviara ao espírito maternal, através das mãos caridosas e

santas do Mestre.

93

HÁ DOIS MIL ANOS...

Públio, contudo, obedecendo ao impulso de suas vaidades pessoais,

não desejava recordar a figura extraordinária que tivera ante os olhos

deslumbrados. Arquitetava castelos de teorias na sua imaginação

superexcitada, para afastar a interferência direta daquele homem no caso

da cura da filhinha, respondendo, assim, às objeções do seu próprio

espírito de observador e analista meticuloso.

Não podia esquecer que o profeta o envolvera em. forças ignoradas,

emudecendo-lhe a voz e fazendo-o ajoelhar-se, doendo-lhe ao orgulho

despótico essa circunstância, considerada como dolorosa humilhação.

Idéias martirizantes povoavam-lhe o cérebro exausto de tantas lutas

interiores e, depois de uma invocação aos gênios protetores da família, no

altar doméstico, buscou repousar das amargas fadigas íntimas.

Naquela noite, todavia, sua alma experimentava as mesmas

recordações da existência pregressa, nas asas embaladoras do sonho.

Viu-se vestido com as mesmas insígnias de Cônsul ao tempo de

Cícero, reviu as atrocidades praticadas por Públio Lentulus Sura, sua

expulsão do Consulado, as reuniões secretas de Lúcio Sergius Catilina, as

perversidades revolucionárias, sentindo-se de novo levado à presença

daquele mesmo tribunal de juizes austeros e venerandos, que no sonho

anterior lhe haviam notificado o seu renascimento na Terra, em época de

grandes claridades espirituais.

Diante daqueles magistrados veneráveis, ostentando togas alvas de

neve, experimentou amarga sensação de angústia, batendo-lhe

descompassadamente o coração.

O mesmo juiz respeitável levantou-se, no ambiente sublimado de

luzes espirituais, exclamando:

- Públio Lentulus, porque desprezaste o minuto glorioso, com o qual

poderias ter comprado

94

ROMANCE DE EMMANUEL

a hora interminável e radiosa da tua redenção na eternidade?

Estiveste, esta noite, entre dois caminhos - o do servo de Jesus e o

do servo do mundo. No primeiro, o jugo seria suave e o fardo leve; mas,

escolheste o segundo, no qual não existe amor bastante para lavar toda a

iniquidade... Prepara-te, pois, para trilhá-lo com destemor, porque

preferiste o caminho mais escabroso, em que faltam as flores da

humildade, para atenuar o rigor dos espinhos venenosos!...

Sofrerás muito, porque nessa estrada o jugo é inflexível e o fardo

pesadíssimo; mas agiste com liberdade de consciência, no jogo amplo das

circunstâncias de tua vida... Conduzido a uma oportunidade maravilhosa,

perseveraste no propósito de percorrer a via amarga e dolorosa das

provações mais ríspidas e mais agudas.

Não te condenamos, para tão somente lamentar o endurecimento do

teu espírito em face da verdade e da luz! Retempera todas as fibras do teu

"eu", pois enorme há-de ser, doravante, a tua luta!...

Ouvia, atento, aquelas exortações comovedoras, mas, nesse

instante, despertou para a" sensações da vida material, experimentando

singular abatimento psíquico, a par de tristeza indefinível.

Ainda cedo, sua atenção foi reclamada por Lívia, que lhe

apresentava a pequena Flávia, convalescente e feliz. A epiderme como que

se alisara, submetida a processo terapêutico desconhecido e maravilhoso,

desaparecendo os tons violáceos que, anteriormente, precediam as rosas

de chaga viva.

O senador recuperou alguma coisa da sua serenidade íntima, com o

verificar as melhoras positivas da filhinha, que apertou amorosamente de

encontro ao coração, exclamando mais tranqüilo:

- Lívia, é bem verdade que ontem, à noite, estive com o chamado

mestre de Nazaré, mas, com a lógica da minha educação e dos meus

conheci95

HÁ DOIS MIL ANOS...

mentos, não posso admitir seja ele o autor do restabelecimento de nossa

filha.

E, de seguida, passou a relatar de modo superficial os

acontecimentos que já conhecemos, sem referir. todavia, os pormenores

que mais o impressionaram.

Lívia ouviu atenciosamente a narrativa, mas, notando-lhe as íntimas

disposições para com o profeta, que ela considerava criatura superior e

venerável, não quis externar seu pensamento em torno do assunto,

receosa de um atrito de opiniões, inoportuno e injustificável. No seu

coração, agradecia àquele Jesus carinhoso e compassivo, que lhe

atendera às angustiosas súplicas maternais e, no imo dalma, acariciava a

esperança de beijar-lhe a fímbria da túnica, com humildade, em

testemunho do seu sincero reconhecimento, antes de regressar a Roma.

Quatro dias decorridos, a enferma apresentava sinais evidentes de

seguro restabelecimento físico, dando motivo ao mais amplo júbilo de

todos os corações.

Em radiosa manhã, vamos encontrar a jovem Lívia acalentando o

filhinho, prestes a completar um ano, e instruindo a criada de nome

Sêmele, de origem judia, designada para velar pela criancinha, tal o

interesse que demonstrara pelo pequenino Marcus, desde o instante de

sua admissão ao serviço. Em dado momento, exclama a serva, apontando

para o largo caminho empedrado:

- Senhora, lá vêm dois cavaleiros desconhecidos, a todo galope.

Ouvindo-lhe a observação, Lívia pôde vê-los, igualmente, ao longo

da estrada ampla, e logo se foi para o interior, a fim de prevenir o marido.

Efetivamente, daí a minutos estacavam à porta dois cavalos suados

e ofegantes. Um homem trajado à romana, em companhia de um guia

judeu, apeava rápido e bem disposto.

96

ROMANCE DE EMMANUEL

Tratava-se de Quirilius, liberto de confiança de Flamínio Severus,

que vinha, em nome do patrão, trazer a Públio e família algumas noticias e

numerosas lembranças.

Essa surpresa amável encheu o dia de gratas recordações e sadios

prazeres, motivando horas das mais inefáveis alegrias. O nobre patrício

não esquecera os amigos distantes, e, entre as notícias confortadoras e

considerável remessa de dinheiro, vieram doces lembranças de Calpúrnia,

endereçadas a Lívia e aos dois fílhinhos.

Naquele dia, Públio Lentulus ocupou-se tão somente de encher

numerosos rolos de pergaminho, para mandar ao companheiro de luta

notícias minuciosas de todas as ocorrências. Entre elas estava a boa-nova

do restabelecimento da filhinha, atribuído ao clima adorável da Galileia.

Mas, como possuía naquele valoroso descendente dos Severus uma alma

de irmão dedicado e fiel, a cujo coração jamais deixara de confiar as mais

recônditas emoções do seu espírito, escreveu-lhe longa carta, em

suplemento. com vistas ao Senado Romano, sobre a personalidade de

Jesus-Cristo, encarando-a serenamente, sob o estrito ponto de vista

humano sem nenhum arrebatamento sentimental. E, por fim, Públio e Lívia

anunciavam alegremente, aos seus amigos distantes, que retornariam a

Roma possivelmente dentro de um mês, dado o perfeito restabelecimento

da pequena Flávia.

Terminado o longo expediente, já era tarde; mas, nesse mesmo dia,

ao cair da noite, quando os dois esposos se entretinham no triclínio a reler

as doces palavras dos queridos ausentes, tecendo as esperanças risonhas

do breve regresso, eis que Sulpício se faz anunciar em companhia de um

mensageiro de Pilatos.

Atendendo-os no gabinete particular, o senador recebe a visita do

emissário, que se lhe dirige, respeitosamente, nestes termos:

97

HÁ DOIS MIL ANOS...

- Ilustríssimo, o senhor governador da Judeia participa-vos haver

chegado à sua residência dos arredores de Nazaré, onde espera o grato

prazer de vossas ordens e notícias.

- Agradecido! - replicou Públio, bem humorado, acrescentando: -

Ainda bem que o senhor procurador não está distante, ensejando-me

pouca demora em Jerusalém, no meu regresso a Roma em breves dias!...

Algumas expressões protocolares foram trocadas, mas Públio

Lentulus não reparou nas atitudes de Sulpício, que lhe deitava olhares

significativos.

98

VI

O rapto

Ao tempo do Cristo, a Galileia era um vasto celeiro que abastecia

quase toda a Palestina.

Nessa época, o formoso lago de Genesaré não apresentava nível tão

baixo, como na atualidade. Todo o terreno circunvizinho era de regadio,

em vista das fontes numerosas, dos canais e do serviço das noras que

elevavam as águas, dando origem a uma vegetação luxuriante que

enfeitava de frutos e enchia de perfumes aquelas paisagens paradisíacas.

O trigo, a cevada, as abóboras, as lentilhas, os figos e as uvas eram

elementos de semeadura e colheita em todo o ano, dando à vida satisfação

e abundância. Nas eminências da terra, misturando-se aos extensos

vinhedos e olivais, elevavam-se palmeiras e tamareiras preciosas, cujos

frutos eram os mais ricos da Palestina.

Em Cafarnaum, além dessas riquezas, prosperava a indústria da

pesca, dada a abundância do peixe no então chamado "Mar da Galileia", o

que resumia uma vida simples e tranqüila. Dentre todos os outros povos

dos centros galileus, o de Cafar99

HÁ DOIS MIL ANOS...

naum se distinguia por sua beleza espiritual, despretensiosa e singela.

Consciencioso e crente, aceitava a Lei de Moisés, mas estava muito longe

das manifestações hipócritas do farisaísmo de Jerusalém. Foi em virtude

dessa simplicidade natural e dessa fé espontânea e sincera que a

paisagem de Cafarnaum serviu de palco às primeiras lições inesquecíveis

e imortais do Cristianismo, em sua primitiva pureza. Ali encontrou Jesus o

carinho de corações devotados e valorosos, e foi ali que o mundo

espiritual encontrou os melhores elementos para a formação da escola

inolvidável, onde o Divino Mestre exemplificaria os seus ensinos.

Em todas as cidades da região havia sinagogas, para que as lições

da Lei fossem ministradas aos sábados, dia que todos os indivíduos

deveriam dedicar exclusivamente ao descanso do corpo e às atividades do

espírito. Nessas pequenas sinagogas, franqueava-se a palavra a quantos

desejassem utilizá-la, mas Jesus preferia o templo suave da Natureza para

a difusão dos seus ensinos.

Todas as classes humildes acorriam às suas prédicas ao ar livre,

cuja extraordinária beleza seduzia os corações mais empedernidos.

Antiga convenção, entre os senhores, determinava o repouso dos

servos no dia consagrado aos estudos da Lei, e os próprios romanos

procuravam cultivar aquelas tradições regionais, buscando a simpatia do

povo conquistado.

Nessa época, grande era a afluência dos escravos às pregações

consoladoras do Messias de Nazaré.

Uma semana havia decorrido após o recebimento das notícias de

Roma e, nesse sábado, às primeiras horas da tarde, vamos encontrar Lívia

e Ana em conversação íntima e carinhosa.

- Sim - dizia a jovem patrícia à serva, que se encontrava em trajes de

sair -, se te for possível, hoje, agradecerás de viva voz ao profeta, em meu

nome, já que me sinto tão feliz, graças à sua

100

ROMANCE DE EMMANUEL

infinita bondade. E dize-lhe que, se eu puder, nas vésperas de partir para

Roma procurarei conhecê-lo, a fim de lhe beijar as mãos generosas, em

testemunho do meu reconhecimento!...

- Não esquecerei vossas ordens e espero que possais ir até à casa

de Simão para visitá-lo, antes de vos retirardes destes lugares... Ainda hoje

- prosseguiu em tom confidencial - devo encontrar na cidade o velho tio

Simeão, que veio de Samaria especialmente para receber a sua bênção e

os seus ensinos. Não sei se a senhora sabe que entre os samaritanos e os

galileus há rixas muito antigas; mas o Mestre, muitas vezes, nas suas

lições de amor e fraternidade, tem louvado os primeiros pela sua caridade

leal e sincera. Numerosos milagres já foram efetuados por ele, na Samaria,

e meu tio é um desses beneficiados que hoje virá receber a bênção de

suas mãos consoladoras!...

Uma doce e comovente fé ungia a alma daquela mulher do povo,

intensificando em Lívia o desejo de conhecer aquele homem extraordinário

que sabia iluminar, com as suas graças, os corações mais ignorantes e

mais singelos.

- Ana, espera um pouco disse, sensibilizada, dirigindo-se aos seus

aposentos. E voltando com a fisionomia radiante, satisfeita por começar ali

mesmo a sua fraternização cristã, deu à empregada algumas moedas,

exclamando com a maior alegria:

- Leva este dinheiro ao tio Simeão, em meu nome... Ele veio de longe

para ver o Messias e tem necessidade de recursos!

Ana recebeu a importância, que era de alguns denários, agradeceu,

radiante, aquela dádiva considerada como verdadeira fortuna e, daí a

minutos, com Sêmele e outras companheiras dirigiu-se pela estrada de

Cafarnaum, em demanda do lago, onde aguardariam o cair da tarde,

quando a barca de Simão Barjona trouxesse o Messias para as pregações

costumeiras.

101

HÁ DOIS MIL ANOS...

Na cidade, seu primeiro cuidado foi correr a uma choupana pobre e

antiga, onde o velho Simeão a estreitou carinhosamente nos braços,

chorando de alegria. Grande júbilo alvoroçou em seguida aqueles

corações desprotegidos da sorte, em face da generosa oferta de Lívia, a

qual significava para eles um pequeno tesouro.

Deixando as companheiras no local do costume, em virtude daquela

circunstância, Ana não pôde reparar que, logo após a sua ausência,

Sêmele se retirou apressadamente em demanda de uma casa oculta entre

oliveiras numerosas, ao fim de uma viela quase completamente

abandonada.

Algumas pancadas na porta e uma senhora de boa aparência veio

atendê-la, solícita.

- Chegou o nosso amigo? - perguntou a empregada, fingindo

despreocupação.

- Sim, o senhor André aqui está desde ontem. à sua espera. Faça o

favor de esperar um pouco.

Daí a minutos, uma personagem de nosso conhecimento vinha ter

com Sêmele, num dos ângulos da sala, abraçando-a com efusão, corno se

fosse pessoa de sua profunda estima.

Era André de Gioras, que vinha a Cafarnaum para o golpe de

represália, favorecido por uma aliada que a sua sede de vindita conseguira

colocar, em Jerusalém, na casa de Públio Lentulus, através de uma

sagacidade cruel -

Depois de longa palestra em voz muito baixa, ouçamos a serva do

senador, que lhe fala nestes termos:

- Não há dúvida... Já consegui captar toda a confiança dos patrões e

a simpatia do pequeno. Pode, pois, ficar tranqüilo, porque o momento é

oportuno, visto que o senador pretende voltar para Roma em breves dias!

- Infame! - exclamou André, cheio de cólera - já pensa, então, no

regresso? Muito bem!... Aquele maldito romano conseguiu escravizar para

sempre o meu pobre filho, desatendendo às minhas

102

ROMANCE DE EMMANUEL

súplicas paternas, mas há-de pagar muito caro a sua ousadia de

conquistador, porque seu filho há-de ser um servo da minha casa! Um dia,

hei-de mostrar-lhe a minha desforra, provando-lhe que também sou um

homem!.

Estas palavras ele as disse entre dentes, em voz soturna, de olhos

parados e brilhantes, como que se apostrofasse seres invisíveis.

- Então, tudo pronto? perguntou a Sêmele, denunciando uma

resolução definitiva.

- Perfeitamente - respondeu a serva, com a maior serenidade.

- Pois bem; de hoje a três dias irei até lá, a cavalo, nas primeiras

horas da madrugada.

E entregando-lhe um frasco minúsculo, que ela ocultou

cuidadosamente nas próprias vestes, continuou em voz abafada:

- Bastam vinte gotas para que a criança adormeça e não desperte

senão ao fim de doze horas... Quando for noite alta, aplique-lhe a

beberagem num pouco de água levemente misturada de vinho fraco e

espere o meu sinal. Estarei nas proximidades da casa, que desde ontem

fiquei conhecendo, a aguardar a preciosa carga. Abrigará você a criança

adormecida, de tal maneira que o volume não denuncie o conteúdo, visto a

alguma distância, e, como em assuntos dessa natureza há-de contar com a

possibilidade do testemunho de olhos estranhos, irei trajado à romana,

esperando que você consiga vestir uma das túnicas da patroa, de modo a

evitarmos que a culpa deste rapto venha a recair sobre alguém da nossa

raça, caso surja alguma testemunha inoportuna e imprevista... Dado o sinal

de minha presença na estrada que margina o pomar, virá você ter comigo,

entregando-me o precioso fardo.

E, de olhos perdidos na visão antecipada da sua vingança, André de

Gioras exclamou, cerrando os punhos:

103

HÁ DOIS MIL ANOS...

- Se os malditos romanos nos escravizam os filhos, sem piedade,

podemos também escravizar os seus desgraçados descendentes!... Os

homens nasceram com iguais direitos neste mundo...

Ouvindo-lhe as palavras, atenciosamente, objetou Sêmele, algo

amedrontada:

- Mas, e eu? Não acompanharei o pequenino Marcus na mesma

noite?

- Seria grande imprudência. Você deverá ficar em Cafarnaum todo o

tempo necessário, até que se percam todas as pistas do futuro senador,

que não passará, aliás, de futuro escravo. Sua fuga seria indício seguro,

agora ou mais tarde, e nós precisamos obstruir esse caminho certo.

Como sabe, tenho parentes afortunados na Judeia, e não é demais

esperar que um golpe da sorte me conceda o lugar preeminente a que

aspiro, no templo de Jerusalém. Não podemos, portanto, manter

complicações com a justiça, podendo você ficar tranqüila, pois, mais tarde,

o seu esforço de hoje será largamente recompensado.

A serva suspirou resignada, acedendo a todas as sugestões daquele

espírito vingativo.

Daí a horas, ao cair da noite, voltavam à herdade os servos de

Públio, em palestra animada e alegre, comentando os pequeninos

incidentes e preocupações do dia.

Sêmele não parecia preocupada, mesmo porque, havia muito, vinha

sendo instruída pacientemente por André, de modo a colaborar

decididamente naquele plano de vingança. Numerosos laços ligavam-na à

família de Gioras, e, cooperando naquela trama sinistra em favor da

desforra, mais não fazia, segundo supunha, que resgatar numerosas

dívidas de ordem material.

Afinal, pensava ela consigo, liquidando o caso do pequenino,

regressaria a Jerusalém quando muito bem lhe aprouvesse, consciente de

haver cumprido um dever, obedecendo as tremendas exigências de André.

104

ROMANCE DE EMMANUEL

No dia seguinte, calculou todas as possibilidades de êxito do

cometimento, e, na data aprazada, tomou todas as providências precisas.

A obtenção de uma túnica do uso particular de Lívia não lhe era

difícil. A senhora as possuía em grande número e quase que diariamente

Ana se incumbia de preparar as que se encontravam fora de seus

apartamentos privados, para o necessário serviço de higiene; e foi assim

que, burlando a dedicação e vigilância da colega, conseguiu Sêmele uma

túnica elegante e discreta, da senhora, de modo a observar, integralmente,

as advertências daquele de quem se fizera cúmplice.

Em casa, nunca o senador e sua mulher haviam vivido momentos de

tanta paz e tantas esperanças, desde que chegaram à Palestina. A cura da

filha era a doce felicidade de cada instante, ensejando os mais carinhosos

planos de ventura para os dias do porvir.

Lívia já organizava todos os seus apetrechos de viagem,

considerando que em poucos dias estariam no antigo porto de Jope, de

regresso à metrópole querida.

Uma serenidade, que parecia imperturbável, descansava agora sobre

o casal, fazendo-lhe os corações tranqüilos e ditosos.

Públio havia esquecido totalmente as advertências do sonho, que

considerava tão somente resultado da sua palestra impressionante com o

profeta de Nazaré, e o coração se lhe desanuviara, ponderando o valor dos

poderes humanos, dentro da vaidade orgulhosa que lhe abafava todas as

preocupações de ordem espiritual. Um pensamento único lhe dominava o

coração - voltar a Roma, dentro de poucos dias.

Nessa noite, porém, iam desmoronar-se todas as suas esperanças e

modificar-se, para sempre, as linhas do seu destino na Terra.

Quem conhecesse a trama urdida na sombra pelo espírito vingativo

de André, depois da meia105

HÁ DOIS MIL ANOS...

-noite poderia ouvir um longo silvo que se repetiu por três vezes, no

soturno silêncio do arvoredo.

Um homem trajado à romana apeara de fogoso corcel, a alguns

metros da casa, no largo caminho que separava a vegetação do campo das

árvores frutíferas. Em seguida, uma porta abriu-se furtivamente e uma

mulher trajada à moda patrícia veio ter com o cavaleiro que a esperava

ansioso, depondo-lhe nas mãos, com o máximo cuidado, um embrulho

volumoso.

- Sêmele - exclamou ele baixinho -, esta hora é decisiva em nossos

destinos!

A serva de Lentulus nada pôde responder, sentindo o peito opresso.

Nesse instante, os atores de cena não observaram a aproximação de

um homem que estacara, à distância de alguns passos, na espessura das

ramagens sombrias.

- Agora - tornou a dizer o cavaleiro, antes de partir em desabalada

carreira não se esqueça que o silêncio é ouro e que, se algum dia você

for ingrata, pode pagar com a vida a descoberta do nosso segredo!...

Dito isso, André de Gioras partiu precipitadamente, a largo trote,

pelos caminhos ensombrados, levando consigo o volume para ele tão

precioso.

A serva ainda o acompanhou com a vista por alguns instantes, entre

assustada e compungida, recolhendo-se a passos cambaleantes.

Ambos não sabiam que os olhos de um caluniador são piores que os

braços de um ladrão e que esses olhos os espreitavam na solidão da noite.

Era Sulpício que, por coincidência, se recolhia tarde naquela noite,

surpreendendo a cena palidamente iluminada pelos raios da Lua.

Observando, de longe, que um homem e uma mulher, trajados à

romana, se encontravam na estrada em hora tão imprópria, amorteceu os

passos de felino, entre as árvores, com o fim de identificá-los mais de

perto.

106

ROMANCE DE EMMANUEL

A cena fôra, todavia, muito rápida, chegando-lhe tão somente aos

ouvidos as últimas palavras "nosso segredo", proferidas por André, na sua

promessa odiosa e ameaçadora.

Em seguida, observou que a mulher, com a retirada do cavaleiro,

regressava ao interior a passos vacilantes, como que presa de incoercível

abatimento. Estugou então os passos para surpreendê-la, reparando-lhe o

vulto a poucos metros de distância. Mas, não se atreveu a aproximar-se,

apenas identificando as características da vestimenta, à luz fraca da noite.

Aquela túnica era-lhe conhecida. Aquela mulher, a seu ver, era Lívia, a

única que podia trajar de tal modo, naquelas cercanias.

Num instante, suas idéias rápidas de homem experimentado nas

piores ações do mundo, associaram fatos, personalidades e coisas.

Lembrou, em seus íntimos pormenores, a cena que tivera ocasião de

presenciar no jardim de Pilatos, crendo que a esposa de Públio se fizera

amada pelo governador, cujo coração ela avassalara em poucos minutos,

em virtude da sua peregrina beleza; recordou, por último, a estada do

procurador da Judeia, em Nazaré, e concluiu, monologando:

- Um governador, na sua alta posição, não deixará, por isso, de ser

um homem, e um homem é muito capaz de cobrir toda a noite, em boa

montaria, uma distância como a que vai de Cafarnaum a Nazaré, para se

encontrar com a mulher amada... Ora esta!... temos agora de prosseguir,

observando um casal de apaixonados... O único acontecimento

estranhável é a facilidade com que essa mulher, aparentemente tão

austera, se deixou dominar dessa maneira! Mas, como tenho os meus

interesses com Fúlvia, vamos examinar o melhor modo de cientificar esse

pobre homem que, senador, tão jovem e tão rico, é um marido tão

desventurado!...

E depois de assim monologar cautelosamente, Sulpício recolheu-se

intimamente satisfeito, por se ver dono da situação, já antegozando o

instante em

107

HÁ DOIS MIL ANOS...

que faria Públio conhecedor do seu segredo, a fim de exigir mais tarde, em

Jerusalém, o preço ignominioso da sua perversidade, segundo as

promessas de Fúlvia.

O dia imediato constituiu dolorosa surpresa para o senador e sua

mulher, aturdidos com o inopinado acontecimento.

Ninguém conhecia as circunstâncias em que se verificara o rapto da

criança, no silêncio da noite.

Como louco, Públio Lentulus tomou todas as providências

possíveis, junto às autoridades de Cafarnaum, sem lograr resultado

favorável. Numerosos servos de sua confiança foram expedidos a fim de

bater os arredores, improficuamente, e, enquanto o marido se multiplicava

em ordens e providências, Lívia recolhia-se ao leito, tomada de indefinível

angústia.

Sêmele, que fingia a mais profunda consternação, auxiliava os

desvelos de Ana, junto da senhora, sucumbida de dor.

Naquela mesma tarde, Públio ordenou a Comênio, então com as

honras de capataz de todos os trabalhos da herdade, a reunião geral dos

servos da casa, a fim de que aprendessem no castigo severo, infligido aos

escravos incumbidos do serviço noturno de vigilância, e, durante todas as

horas do crepúsculo, trabalhou o açoite na carne de três homens robustos,

que debalde imploravam clemência e misericórdia, protestando a sua

inocência. Somente diante daquelas criaturas injustamente castigadas,

considerou Sêmele a extensão do seu procedimento, mas, intimamente

apavorada com as conseqüências que poderiam advir do delito, cobrou

ânimo para ocultar, ainda mais, a culpa e o terrível segredo.

Prosseguiam as ações punitivas, até que Lívia, atormentada por

aqueles gritos lancinantes e comovedores, se levantou com extrema

dificuldade e, chamando o esposo a um canto da varanda, de onde ele

108

ROMANCE DE EMMANUEL

assistia impassível ao horrível sacrifício daquelas míseras criaturas, faloulhe

súplice:

- Públio, basta de castigo para esses homens fracos e infelizes!...

Não seria um excesso de rigor da nossa parte para com os nossos servos

a causa de tão dolorosa punição dos deuses para conosco? Esses

escravos não são também filhos de criaturas que muitos os amaram neste

mundo? Na minha angústia materna, considero que ainda possuímos

direitos e recursos para manter junto de nós os filhinhos idolatrados; mas,

como será torturante o martírio da mãe de um desventurado, e que o vê

arrebatado de seus braços carinhosos para ser vendido por ignóbeis

mercadores de consciências humanas!...

- Lívia, o sofrimento sugeriu-te singulares desvarios do coração -

exclamou o senador, com serena energia.

Como poderias pensar numa igualdade absurda de direitos, entre a

cidadã romana e a serva miserável? Não vês que entre ti e a mãe de um

cativo existem consideráveis diferenças de sentimento?

- Penso que te enganas - revidou a esposa, com intraduzível

amargura -, porque os próprios animais possuem os mais elevados

instintos, em se tratando de maternidade...

E ainda assim, querido, mesmo que eu não tivesse nenhuma razão,

manda o raciocínio que examinemos a nossa posição de pais, para

considerarmos que ninguém, mais que nós próprios, é passível de culpa

pelo acontecido, visto que os filhos são um depósito sagrado dos deuses,

que no-los confiam ao coração, impondo-nos como dever de cada minuto

a multiplicação do carinho e vigilância necessários; se sofro

amargamente, é por considerar o amor sublime que nos une aos filhos,

sem poder atinar com a causa deste crime misterioso, sem poder imputar

aos nossos servos a culpa desse tenebroso acontecimento...

109

HÁ DOIS MIL ANOS...

A voz de Lívia, porém, extinguia-se rapidamente. Um delíquio foi o

resultado de suas palavras veementes, ao findar daquele dia de tantas e

tão amarguradas emoções. Amparada pelas mãos carinhosas e desveladas

de Ana, a pobre senhora recolheu-se ao leito com febre alta. Quanto a

Públio, este, porque sentia que as verdades amargas da mulher lhe doíam

fundo no coração, mandou cessar imediatamente o castigo, com alívio

geral, recolhendo-se ao gabinete para meditar a situação.

Naquela mesma noite, recebeu a visita de Sulpício, que lhe veio

trazer o infrutífero resultado de suas indagações, na pista do pequeno

Marcus.

Ao despedir-se, exclamou o lictor, com grande surpresa de Públio,

que lhe observara o tom enigmático das palavras:

- Senador, eu não posso decifrar esse doloroso enigma do

desaparecimento do vosso filhinho, mas talvez possa orientar-vos

nalguma pista segura, com as minhas observações pessoais, relativas ao

assunto.

- Mas, se tens semelhantes elementos, abre-te sem receios -

exclamou Públio, com o máximo interesse.

- Meus elementos de observação não são pontos de aclaramento

positivo, e, como existem alguns remédios que em vez de curarem uma

ferida produzem outras úlceras incuráveis, acho melhor adiar para amanhã

à noite as minhas impressões individuais sobre os fatos.

Gozando com a atitude de estupefação do interlocutor

profundamente impressionado com as suas insinuações criminosas,

Sulpício rematou as despedidas, acrescentando intencionalmente:

- Amanhã aqui estarei a estas mesmas horas e, se hoje não vos

satisfaço ao desejo, aqui permanecendo até mais tarde, é que me esperam

alguns afazeres no meu gabinete de trabalho, em vista de alguns pedidos

de informações das nossas autoridades administrativas.

110

ROMANCE DE EMMANUEL

Dominado pelas expressões daquele enigma, Públio Lentulus

apresentou-lhe as despedidas da noite, tendo forças para murmurar:

- Então, até amanhã. Esperarei o cumprimento da tua promessa, de

modo a aliviarem-se-me os receios do coração.

Ficando a sós, o senador submergiu-se no mar profundo de suas

inquietações e receios.

Justamente quando contava regressar a Roma, eis que surge o

inesperado, com piores características que a própria moléstia da filha,

tantos anos suportada com serenidade e resignação, porque, agora, era o

rapto inexplicável de uma criança, envolvendo sérias questões da

moralidade de sua casa, e a própria honra da família.

No íntimo, sentia-se como um homem sem inimigos na Palestina,

porquanto, com exceção do jovem Saul, filho de André, que, a seu ver,

deveria estar tranqüilo no lar paterno, nunca humilhara os brios de

nenhum israelita, visto que a todos dispensava o máximo de sua pessoal

atenção.

Onde a causa daquele crime misterioso?

Em suas reminiscências aflorou a palavra segura de Flamínio

Severus, quando lhe aconselhou muita prudência e valor individual, na

Palestina, em razão de certos malfeitores que infestavam a região; mas,

por outro lado, recordava o sonho simbólico e, com os olhos da

imaginação, parecia lobrigar o vulto venerando daquele juiz austero e

incorrupto, que lhe profetizara existência fértil de amarguras, dado o seu

desprezo e indiferença pelas verdades salvadoras de Jesus de Nazaré.

Trabalhado pela dor de angustiados pensamentos, debruçou-se à

mesa de trabalho e deixou que o orgulho ferido chorasse copiosamente,

considerando a sua impotência para conjurar as forças ocultas e

impiedosas que conspiravam contra a sua ventura, nos caminhos

ensombrados do seu doloroso destino.

111

HÁ DOIS MIL ANOS...

Alta noite, procurou desabafar o coração, junto à carinhosa

solicitude da esposa, trocando ambos as suas lamentações e as suas

lágrimas.

- Públio - exclamava ela, com a ternura característica do seu coração

-, procuremos reanimar nossas energias em favor de nós mesmos... Nem

tudo está perdido!... Com os direitos que nos competem, podemos

determinar todas as providências precisas, em busca do nosso anjinho.

Adiaremos o regresso a Roma, indefinidamente, se tanto for necessário, e

o resto os deuses farão por nós, reconhecendo nossa angústia e

abnegação.

O que não é justo é que nos entreguemos, irremediavelmente, ao

nosso desespero, inutilizando as derradeiras forças para a luta.

A pobre senhora mobilizava os últimos recursos de suas energias

maternas no proferir aquelas palavras de esperança e consolação. Sabia

Deus, porém, das suas inenarráveis torturas íntimas, naqueles momentos

angustiosos, e apenas o seu sentimento acrisolado, de renúncia e de

amor, transformaria em forças as fragilidades da mulher, para poder

confortar o coração angustiado do esposo, em tão penosas conjunturas.

- Sim, minha querida, farei tudo que estiver ao meu alcance para

esperar a providência dos deuses - disse o senador, mais ou menos

reanimado em face do valor de que lhe dava ela testemunho.

O dia seguinte decorreu nas mesmas expectativas angustiosas, com

os mesmos movimentos incertos de buscas infrutíferas.

À noite, segundo prometera, lá estava Sulpício Tarquinius esperando

o seu momento decisivo.

Após o jantar, a que Lívia não pôde comparecer, em virtude do seu

profundo abatimento físico, Públio recebeu o lictor com toda a intimidade,

ali mesmo no triclínio, em cujos leitos macios ambos se estiraram para a

palestra costumeira.

- Então, ainda ontem - exclamou o senador, dirigindo-se ao suposto

amigo -, despertaste o meu

112

ROMANCE DE EMMANUEL

paternal interesse, falando-me de tuas observações pessoais, que somente

hoje me poderias transmitir...

- Ah! sim - redargüiu o lictor, com fingida surpresa -, é bem verdade

que desejaria solicitar vossa atenção para as ocorrências misteriosas

destes últimos dias. Tendes algum inimigo, aqui na Palestina, interessado

na continuidade de vossa permanência em regiões pouco adaptáveis aos

hábitos de um patrício romano?

- De modo algum - revidou o senador, eminentemente surpreendido.

- Suponho encontrar-me num ambiente de amizades sinceras, em se

tratando das nossas autoridades administrativas, e acredito que ninguém

haja interessado na minha ausência de Roma. Ficaria muito satisfeito se

esclarecesses melhor as tuas observações.

- É que na Judeia, há alguns anos, houve um caso idêntico ao vosso.

Conta-se que um dos antecessores do governador atual se deixou

apaixonar perdidamente pela esposa de um patrício romano, que teve a

pouca sorte de se fixar em Jerusalém e, conquistados seus objetivos, tudo

fez por obstar o regresso de suas vítimas à sede do Império. E quando

notou que de nada valiam os empecilhos de sua autoridade, cometeu o

crime de seqüestrar um filhinho do casal, fazendo acompanhar o feito de

outras atrocidades, que ficaram impunes, dado o seu prestígio político

perante o Senado.

Públio ouviu essas observações com o pensamento em brasa.

Em razão da sua intensidade emotiva, o sangue afluiu-lhe ao

cérebro, parecendo represar-se em largas correntes junto ao dique das

têmporas. Uma palidez de cera cobriu, em seguida, o seu rosto, numa

facies cadavérica, sem poder definir a emoção que lhe assaltava o íntimo,

em face de tais insinuações contra a sua dignidade pessoal e contra as

honrosas tradições da família.

113

HÁ DOIS MIL ANOS...

Num instante, reviveu todas as acusações de Fúlvia e, julgando os

seus semelhantes pelo estalão dos próprios sentimentos, não podia

admitir no espírito de Sulpício uma ferocidade de tal quilate.

Enquanto mergulhava o pensamento em cismas atrozes, sem

responder ao lictor, que o observava gozando o efeito de suas tenebrosas

revelações, prosseguiu o caluniador, com fingida humildade:

- Bem reconheço o alcance de minhas palavras, para as quais, aliás,

suplico a benevolência de vossa discrição, mas eu não abriria o coração

neste sentido, senão tocado pelo profundo interesse que a vossa amizade

conseguiu inspirar à minhalma dedicada e sincera. Francamente, não

desejava constituir-me delator de quem quer que seja, perante o vosso

espírito justo e generoso; todavia, passarei a narrar-vos o que vi com os

próprios olhos, de modo a orientar com mais segurança o esforço de

vossas pesquisas em busca do menino.

E Sulpício Tarquinius, com a falsa modéstia de suas palavras

venenosas, desfiou um rosário longo de calúnias, entremeando os

argumentos de consecutivos goles de vinho, o que exaltava ainda mais a

fonte prodigiosa das suas fantasias.

Contou ao seu interlocutor, que o ouvia atônito. pela coincidência de

suas observações com as denúncias de Fúlvia, os mais íntimos

pormenores da cena do jardim em casa de Pilatos, e, em seguida, narrou o

que observara na noite do rapto, salientando a coincidência da estada do

governador em Nazaré.

O senador ouvia-lhe a narrativa, ocultando, a muito custo, o seu

espanto doloroso. A prevaricação da esposa, segundo aquela denúncia

espontânea, era um fato indubitável. Entretanto, ele queria acreditar o

contrário. Durante todo o tempo da vida conjugal, Lívia manifestara o mais

pronunciado retraimento dos ambientes sociais, vivendo tão somente para

ele e para os filhinhos idolatrados. Era na sua palavra criteriosa e sincera

que o seu

114

ROMANCE DE EMMANUEL

espírito ia buscar as necessárias inspirações para o êxito nas lutas da

vida; mas aquela denúncia lhe atordoava o coração e anulava todos os

fatores da antiga confiança. Além disso, penosas coincidências vinham

ferir o seu raciocínio, despertando-lhe amarguradas suspeitas no íntimo

dalma.

Não fôra ela que intercedera a favor dos escravos, no momento do

castigo, súplice, como se a culpa do acontecido também lhe pesasse no

coração?

Ainda na véspera, sugerira a continuidade da permanência de ambos

na Palestina, demonstrando um valor pouco vulgar. Não seria isso um

gesto de suposta consolação para o marido ultrajado, obedecendo a

intuitos inconfessáveis?

Um turbilhão de idéias antagônicas entrechocava-se no mar de suas

meditações dolorosas.

Por outro lado, considerou, num relance, a sua posição de homem

de Estado, as responsabilidades austeras que lhe competiam no

organismo social.

O cargo proeminente, as severas obrigações a que se consagrara no

mecanismo das relações de cada dia, o orgulho do nome e as tradições de

família, amalgamaram a energia precisa para o domínio das emoções do

momento, e, escondendo o homem sentimental que era por natureza, para

tão somente revelar o homem público, teve forças para exclamar:

- Sulpício, agradeço o teu interesse, desde que as tuas palavras

sejam reflexo da tua generosidade sincera, mas devo considerar, perante o

conceito que acabas de expender sobre minha mulher, que não aceito

nenhum argumento que lhe fira a dignidade e austera nobreza, predicados

esses que ninguém, mais que eu, deve conhecer.

A entrevista no jardim de Pilatos, a que te referes, foi por mim

autorizada, e as tuas observações na noite do rapto não estão bem

definidas, dado o caráter positivo que se requer das nossas investigações.

115

HÁ DOIS MIL ANOS...

Assim, pois, agradeço-te a dedicação em meu favor, mas a tua

opinião abre entre nós, doravante, uma linha divisória que a minha

confiança não mais ousará transpor.

Ficas, assim, dispensado do serviço que te retinha junto de minha

família, mesmo porque a perspectiva da minha volta a Roma se

desvaneceu com o desaparecimento do pequeno. Não poderemos

regressar à sede do Império, enquanto não lograrmos o seu

reaparecimento ou a certeza dolorosa da sua morte.

Deste modo, eu seria imprudente exigindo a continuidade dos teus

préstimos em Cafarnaum, sacrificando decisões de teus superiores

hierárquicos, razão por que serás demitido de minha casa sem escândalos

que prejudiquem a tua carreira profissional.

Aguardarei o ensejo de me comunicar com o governador, a teu

respeito, quando então serás desligado oficialmente do meu serviço, sem

nenhum prejuízo para o teu nome.

Vês, assim, que, como homem de Estado, agradeço o teu interesse e

sei apreciar a tua dedicação, mas, como amigo, não me é mais possível

depositar em ti o mesmo grau de confiança.

O lictor, que não esperava semelhante resposta, ficou lívido no seu

indisfarçável desapontamento, mas atreveu-se ainda a revidar,

fingidamente:

- Senhor senador, chegará o instante em que havereis de valorizar o

meu zelo não só como servidor de vossa casa, mas também como amigo

desvelado e sincero. E já que não tendes outra recompensa melhor que o

desprezo injusto para corresponder ao meu impulso de amizade, é com

prazer que me sinto desligado das obrigações que me prendiam junto de

vossa autoridade.

Em seguida, Sulpício pronunciou algumas palavras de despedida, a

que Públio respondeu secamente, atormentado pelos mais profundos

desgostos.

116

ROMANCE DE EMMANUEL

No silêncio do seu gabinete, examinou o quanto de energia as

circunstâncias haviam exigido do seu coração em tão penosas

conjunturas. Bem reconhecia que adotara para com o lictor a atitude mais

conveniente e consentânea com a situação, mas, no íntimo, guardava

angustiosa incerteza, acerca da conduta de Lívia. Tudo conspirava contra

ela, tendendo a apresentá-la, ao seu coração de marido pundonoroso,

como a personificação da falsa inocência.

Naquele tempo, ainda não se vulgarizara no mundo o "orai e vigiai"

dos ensinamentos eternamente doces do Cristo, e o senador, entregandose

quase que totalmente ao império das amargas emoções que o

acabrunhavam, debruçou-se sobre numerosos rolos de pergaminho,

entrando a chorar convulsivamente.

117

VII

As pregações do Tiberíades

Alguns dias haviam decorrido sobre os fatos que acabamos de

narrar.

Em Cafarnaum, não somente o cenário, mas também os atores,

guardavam a mesma fisionomia.

Compelido pela atitude irrevogável e enérgica do senador, Sulpício

Tarquinius regressara a Jerusalém, obedecendo às ordens de Pilatos que,

por sua vez, recebera a notificação de Públio Lentulus, referente à

dispensa do lictor.

Não devemos esquecer que Públio permanecia na Palestina com

poderes amplos, na qualidade de emissário de César e do Senado, e a

quem todas as autoridades da província, inclusive o governador, eram

obrigados a acatar com especial atenção e máximo respeito.

O procurador da Judeia não se esquecera, portanto, de substituir

Sulpício, do melhor modo possível, buscando conhecer, com interesse, os

motivos do seu afastamento, assunto que o senador solucionou com o

mais largo espírito de superioridade, do ponto de vista político. Pilatos

coadjuvou, com a melhor boa vontade, o serviço de pesquisa, quanto

118

ROMANCE DE EMMANUEL

ao paradeiro do pequeno Marcus, movimentando funcionários de sua

inteira confiança, e vindo pessoalmente a Cafarnaum, a fim de conhecer na

sua intimidade as diligências efetuadas.

O senador recebeu-lhe a visita com as mais altas mostras de

consideração e aceitou-lhe a cooperação, sinceramente confortado, em

vista de os acontecimentos desmentirem, perante o seu foro íntimo, as

caluniosas acusações de que era vítima a esposa.

Sua vida doméstica, porém, sofrera as mais profundas alterações.

Não sabia mais viver aquelas horas de colóquio feliz com a esposa, da

qual o separava um véu de dúvidas amargas e infinitas.

Várias vezes tentou, improficuamente, readquirir a antiga confiança

e a sua espontaneidade afetiva.

Rugas de pesar vincaram-lhe então o semblante, ordinariamente

altivo e orgulhoso, esfumando-lhe os traços fisionômicos num nevoeiro de

preocupações angustiosas.

Todos os seus íntimos, inclusive a esposa, atribuíam ao

desaparecimento do filhinho tão singular metamorfose.

Nas horas habituais das refeições, notava-se-lhe o esforço para

desanuviar a fisionomia.

Dirigia-se, então, à mulher ou respondia às suas perguntas

carinhosas com monossílabos apressados, acentuando as palavras com

laconismo incompreensível.

Sofrendo amargamente com aquela situação, Lívia apresentava-se

cada vez mais abatida, tentando em vão decifrar o motivo de tantas

provações e infortúnios.

Muitas vezes procurou sondar o espírito de Públio, de modo a levarlhe

um pouco de carinho e consolação, mas ele evitava as expansões

afetuosas, com pretextos decisivos. Quase que lhe aparecia tão somente

no triclínio e, feita a refeição costumeira, retirava-se, abruptamente, para o

grande

119

HÁ DOIS MIL ANOS...

salão do arquivo, onde passava todas as suas horas de inquietadoras

meditações.

De Marcus, nenhuma notícia havia, que lhe proporcionasse a mais

ligeira sombra de esperança.

Por uma formosa manhã da Galileia, vamos encontrar Lívia em

palestra íntima com a serva dedicada e amiga fiel, a quem replica nestes

termos, depois de carinhosamente inquirida, acerca do seu estado de

saúde:

- Sinto-me bem mal, minha boa Ana!... À noite, o coração bate-me

descompassadamente e, hora a hora, vejo crescer-me no íntimo dolorosa

impressão de amargura. Não poderia bem definir meu estado, ainda que o

quisesse... O desaparecimento do pequeno enche-me a alma de lúgubres

presságios, multiplicando o peso das minhas aflições maternas quando

não posso vislumbrar, nem de leve, a causa de tamanhos padecimentos...

E agora é, sobretudo, o estado de Públio o que mais me acabrunha.

Ele foi sempre um homem puro, leal e generoso; mas, de algum tempo a

esta parte, noto-lhe singulares diferenças no temperamento, agravando-selhe

os sintomas doentios com maior intensidade, após o incompreensível

desaparecimento do nosso filhinho.

A mim se me figura que ele vem sofrendo os mais fortes distúrbios

sentimentais, com sérios prejuízos para a saúde...

- Bem vejo, senhora, quanto sofreis! - aventou a serva carinhosa.

Sei que sou uma criatura humilde e sem nenhum valor, mas pedirei a Deus

que vos proteja incessantemente, restabelecendo a paz do vosso coração.

- Criatura humilde e sem valor? - diz a pobre senhora, buscando

demonstrar-lhe o grau de sua estima sincera. - Não digas isso, mesmo

porque não sou dessas almas que aferem o valor de cada um pelas

posições que desfruta ou pelas honras que recebe.

120

ROMANCE DE EMMANUEL

Filha única de pais que me legaram considerável fortuna, cidadã

romana, com as prerrogativas de mulher de um senador, vês quanto sofro

nos trabalhos amargos deste mundo.

Os títulos que o berço me outorgou não conseguiram eliminar as

provações que o destino também me trouxe, com a mocidade e a fortuna

fácil.

Reconhece, pois, que, sendo eu patrícia e tu uma serva, não

possuímos um coração diverso, mas sim o melhor sentimento de

fraternidade, que nos abre a porta de uma compreensão carinhosa, a valer

por asilo suave nos dias tristes da vida.

De mim para comigo, sempre supus, contrariamente à educação

recebida, que todas as criaturas são irmãs, filhas de uma origem comum,

sem conseguir atinar com as linhas divisórias entre aqueles que possuem

muitos haveres e muitos títulos e os que nada possuem neste mundo além

do coração, onde costumo localizar os valores de cada um, nesta vida.

- Senhora - exclamou a serva, tocada da mais grata surpresa -,

vossas palavras me comovem, não somente por partirem dos vossos

lábios, dos quais me habituei a ouvir-vos sempre com carinho e

veneração, mas também porque o profeta de Nazaré nos tem dito a mesma

coisa em suas prédicas.

- Jesus?!... - perguntou Lívia, de olhos brilhantes, como se aquela

referência lhe lembrasse uma fonte de consolação, da qual se houvesse

momentaneamente esquecido.

- Sim, minha senhora, e por falar nele, porque não buscardes um

pouco de conforto nas suas divinas palavras? Juro-vos que as suas

expressões, sábias e amorosas, vos consolariam no meio de todos os

pesares, proporcionando-vos sensações de vida nova!... Se quisésseis, eu

poderia conduzir-vos à casa de Simeão, discretamente, a fim de

receberdes o benefício de suas lições carinhosas. Receberíeis, assim, a

alegria da sua bênção, sem vos

121

HÁ DOIS MIL ANOS...

expordes às críticas alheias, nutrindo o vosso coração dos seus

luminosos ensinamentos.

Lívia pensou intensamente naquele alvitre, que se lhe figurava

providência salvadora, respondendo, por fim:

- Os sofrimentos da vida muitas vezes me têm dilacerado o coração,

renovando os meus raciocínios acerca dos princípios que me foram

ensinados desde o berço, e é por isso que, acolhendo a tua idéia, acho de

meu dever procurar a Jesus publicamente, como o fazem outras mulheres

destes lugares

Era minha intenção procurá-lo antes do nosso regresso a Roma,

para lhe manifestar meu reconhecimento pela cura de Flávia, fato que me

deixou profundamente impressionada, mas que não nos foi possível

comentar, em razão da atitude hostil de meu marido; agora, novamente

desamparada, no estuar das minhas dores, recorrerei ao profeta para obter

um lenitivo ao coração opresso e torturado.

Mulher de um homem que, por força da sua carreira política, ocupa

agora o mais alto cargo desta província, irei a Jesus como criatura

deserdada da sorte, em busca de amparo e consolação.

- Senhora, e vosso esposo? - perguntou Ana, antevendo as

conseqüências daquela atitude.

- Procurarei cientificá-lo da minha resolução; mas, se Públio

esquivar-se, ainda uma vez, à minha presença para um entendimento mais

íntimo, irei mesmo sem ouvi-lo, com respeito ao assunto. Vestirei os trajes

humildes desta região de criaturas simples, irei a Cafarnaum, hospedandome

com os teus parentes, nas horas necessárias, e, no momento das

práticas, quero ouvir a palavra do Messias, de coração contrito e alma

compadecida pelos infortúnios dos meus semelhantes...

Sinto-me profundamente insulada nestes últimos dias e tenho

necessidade de conforto espiritual para o meu coração combalido nas

provas ásperas.

122

ROMANCE DE EMMANUEL

- Senhora, Deus abençoe os vossos bons propósitos. Em

Cafarnaum, os meus parentes são muito pobres e muito humildes, mas

vossa figura está ali no santuário da gratidão de todos, bastando uma

palavra vossa para que se ponham à vossa disposição, como escravos.

- Para mim não existe fortuna que se iguale a essa, da paz e do

sentimento.

Não procurarei o profeta para solicitar-lhe atenções especiais,

porque basta a sua caridade, no caso de minha filha, hoje sadia e forte,

graças à sua piedade de justo, mas tão somente para buscar conforto ao

meu coração dilacerado.

Pressinto que, em lhe ouvindo as exortações carinhosas e amigas,

alcançarei energias novas para enfrentar as provações mais amargas e

rudes.

Sei que ele me conhecerá nos trajes pobres da Galileia; todavia, na

sua intuição divinatória, compreenderá que, dentro do peito da romana,

pulsa um coração amargurado e infeliz.

As duas combinaram, então, ir juntas à cidade, na tarde do primeiro

sábado.

Embalde, procurou Lívia uma oportunidade para solicitar a

ambicionada permissão do marido, a favor da sua pretensão. Inúmeras

vezes buscou, improficuamente, sondar o espírito de Públio, cuja frieza lhe

afugentava a coragem para a necessária consulta.

Ela, porém, havia resolvido procurar o Mestre, de qualquer maneira.

Abandonada numa região em que somente o marido podia compreendê-la

integralmente, dentro da sua esfera de educação, e rudemente provada nas

fibras mais sensíveis da sua alma feminina, de esposa e mãe, a pobre

senhora assim deliberou com pleno assentimento da sua consciência

honesta e pura.

Talhou uma roupa nova, de conformidade com os usos galileus, de

maneira a não se fazer notada na multidão comum nas prédicas do lago, e,

cientificando a Comênio da necessidade que tinha de

123

HÁ DOIS MIL ANOS...

sair naquele dia, a fim de que o marido fosse avisado à hora do jantar,

dirigiu-se, na data previamente determinada, pelos caminhos que já

conhecemos, em companhia da serva de confiança.

Na residência humilde de pescadores, onde se abrigavam os

familiares de Ana, Lívia sentiu-se envolvida em radiosas vibrações de

serenidade amiga e doce. Era como se o seu coração desalentado

encontrasse uma claridade nova naquele ambiente de pobreza, de

humildade e ternura.

A figura patriarcal do velho Simeão, da Samaria, porém, destacavase

a seus olhos entre todos os que a receberam com as mais elevadas

demonstrações de carinhosa bondade. Do seu olhar profundo e das cãs

veneráveis emanavam as doces irradiações da maravilhosa simplicidade

do antigo povo hebreu, e a sua palavra, ungida de fé, sabia tocar os

corações nas cordas mais sensíveis, quando narrava as ações prodigiosas

do Messias de Nazaré.

Lívia, acolhida por todos com simpatia franca, parecia devassar um

mundo novo, até então desconhecido, na sua existência. Confortava-lhe,

sobremaneira, a expressão de sinceridade e candura, daquela vida simples

e humilde, sem atavios nem artifícios sociais, mas também sem

preconceitos nem fingimentos perniciosos.

À tardinha, confundida com os pobres e os doentes que iam receber

as bênçãos do Senhor, vamos encontrá-la de coração aliviado e sereno,

esperando o momento ditoso de ouvir do Mestre uma palavra de amor e

consolação.

O crepúsculo de um dia claro e quente emprestava um reflexo de luz

dourada a todas as coisas e a todos os contornos suaves da paisagem.

Encrespavam-se as águas mansas de Tiberíades ao sopro carinhoso dos

favônios da tarde, que se impregnavam do perfume das flores e das

árvores. Brisas frescas eliminavam o calor ambiente, espalhando

sensações agradáveis de vida livre, no seio robusto e farto da Natureza.

124

ROMANCE DE EMMANUEL

Afinal, todos os olhares se dirigiam para um ponto escuro que se

desenhava no espelho cristalino das águas, muito ao longe, no horizonte.

Era a barca de Simão, que trazia o Mestre para as dissertações

costumeiras.

Um sorriso de ansiedade e de esperança clareou, então, todos aqueles

semblantes que o aguardavam, no desconforto de seus sofrimentos.

Lívia reparou aquela turba que, por sua vez, também lhe notara a

estranha presença. Operários humildes, pescadores rudes, mães

numerosas em cujos rostos macerados se podiam ler as histórias amargas

dos mais incríveis padecimentos, criaturas da plebe anônima e sofredora,

mulheres adúlteras, publicanos gozadores da vida, enfermos

desesperados e crianças numerosas, que traziam consigo os estigmas do

mais doloroso desamparo.

Conservava-se Lívia ao lado do velho Simeão, cuja expressão

fisionômica de firmeza e doçura inspirava o mais profundo respeito aos

que se lhe aproximavam; e quantos lhe notavam o delicado perfil romano,

enfiada na simplicidade do traje galileu, presumiam na sua figura alguma

jovem de Samaria da Judeia, que tivesse vindo igualmente de longe,

atraída pela fama do Messias.

A barca de Simão acostara brandamente à margem, ensejando a que

o Mestre se dirigisse ao local costumeiro de suas lições divinas. Sua

fisionomia parecia transfigurada em resplendente beleza. Os cabelos,

como de costume, caíam-lhe aos ombros, à moda dos nazarenos,

esvoaçando levemente aos ósculos cariciosos dos ventos brandos da

tarde.

A esposa do senador não pôde mais despregar os olhos

deslumbrados, daquela figura simples e maravilhosa.

Começara o Mestre um sermão de beleza inconfundível e suas

palavras pareciam tocar os espíritos mais empedernidos, figurando-se que

os ensinamentos ressoavam nas devesas de toda a Galileia,

125

HÁ DOIS MIL ANOS...

ecoando pelo mundo inteiro, previamente modelados para caminhar no

mundo com a própria eternidade.

"Bem-aventurados os humildes de espírito, porque a eles pertencerá

o reino de meu Pai que está nos céus!...

"Bem-aventurados os pacíficos, porque possuirão a Terra!...

"Bem-aventurados os sedentos de justiça, porque serão saciados!...

"Bem-aventurados os que sofrem e choram, porque serão

consolados nas alegrias eternas do reino de Deus!..."

E a sua palavra enérgica e branda disse da misericórdia do Pai

Celestial; dos bens terrestres e celestes; do valor das inquietações e

angústias humanas, acrescentando que viera ao mundo não para os mais

ricos e mais felizes, mas para consolar os mais pobres e deserdados da

sorte.

A assembléia heterogênea escutava-o embevecida nos seus

transportes de esperança e gozo espiritual.

Uma luz serena e caridosa parecia vir do Hebron, clarificando a

paisagem em tonalidade de opalas e safiras eterizadas.

A hora ia adiantada e alguns apóstolos do Senhor resolveram trazer

alguns pães aos mais necessitados de alimento. Dois grandes cestos de

merenda frugal foram trazidos, mas os ouvintes eram em demasia

numerosos. Jesus, porém, abençoou-lhes o conteúdo e, como num suave

milagre, a escassa provisão foi partida em pequenos pedaços, que foram

religiosamente distribuídos por centenas de pessoas.

Lívia recebeu igualmente a sua parte e, ao ingeri-la, sentiu um sabor

diferente, como se houvera sorvido um remédio apto a lhe curar todos os

males da alma e do corpo, porque uma certa tranqüilidade lhe anestesiou o

coração flagelado e desiludido. Comovida até às lágrimas, viu que o

Mestre atendia, caridosamente, a numerosas mulheres, en126

ROMANCE DE EMMANUEL

tre as quais muitas, segundo o conhecimento do povo de Cafarnaum, eram

de vida dissoluta e criminosa.

O velho Simeão quis também aproximar-se do Senhor, naquela hora

memorável da sua passagem pelo planeta. Lívia acompanhou-o

automaticamente, e, em poucos minutos, achavam-se ambos diante do

Mestre, que os acolheu com o seu generoso e profundo sorriso.

- Senhor - exclamou, respeitosamente, o ancião de Samaria -, que

deverei fazer para entrar, um dia, no vosso reino?

- Em verdade te digo - replicou-lhe Jesus, carinhosamente - que

muitos virão do Ocidente e do Oriente, procurando as portas do Céu, mas

somente encontrarão o reino de Deus e de sua justiça aqueles que amarem

profundamente, acima de todas as coisas da Terra, ao nosso Pai que está

nos Céus, amando o próximo como a si mesmos.

E espraiando o olhar compassivo e misericordioso por sobre a

assembléia vasta, continuou com doçura:

- Muitos, também, dos que foram aqui chamados, serão escolhidos

para o grande sacrifício que se aproxima!... Esses me encontrarão no reino

celestial, porque as suas renúncias hão-de ser o sal da Terra e o sol de um

novo dia!...

- Senhor - aventurou o ancião, com os olhos rasos de lágrimas -,

tudo faria eu por ser um dos vossos escolhidos!...

Mas Jesus, fitando fixamente o patriarca de Samaria, murmurou com

infinita ternura:

- Simeão, vai em paz e não tenhas pressa, porque, em verdade,

aceitarei o teu sacrifício no momento oportuno...

E estendendo o raio de luz dos seus olhos até à figura de Lívia, que

lhe devorava as palavras com a sede ardente da sua atenção, exclamou

com as claridades proféticas de suas exortações:

127

HÁ DOIS MIL ANOS...

- Quanto a ti, regozija-te em Nosso Pai, porque as minhas palavras e

ensinamentos te tocaram para sempre o coração. Vai e não descreias,

porque tempo virá em que saberei aceitar as tuas abnegações

santificantes!

Essas palavras foram ditas numa tal atitude, que a esposa do

senador não teve dificuldade em lhes apreender o sentido profundo, para

um futuro distante.

Aos poucos, dispersou-se a grande assembléia dos pobres, dos

enfermos e dos aflitos.

Era noite quando Lívia e Ana regressaram à casa solarenga,

confortadas pelas graças recebidas das mãos caridosas do Messias.

Profunda sensação de alívio e conforto inundava-lhe a alma.

Penetrando, porém, nos seus aposentos, Lívia encontrou de frente a

figura enérgica do marido, que deixava, transparecer na fisionomia

carregada os mais intensos sinais de irritação, como acontecia nos

momentos de seu mais ríspido mau humor. Ela notou-lhe a exacerbação de

ânimo, mas, ao contrário de outras vezes, parecia inteiramente preparada

para vencer as mais tremendas lutas do coração, porque, com serenidade

imperturbável, o encarou face a face, enfrentando-lhe o olhar suspeitoso.

Afigurava-se-lhe que a flor de eterna paz espiritual lhe desabrochara no

íntimo, ao suave calor das palavras do Cristo, porquanto lhe parecia haver

atingido o terreno, até então desconhecido, de serenidade estranha e

superior.

Depois de fitá-la de alto a baixo com o seu olhar duro e inquiridor,

exclamou Públio, mal sopitando a cólera incompreensível:

- Então, que é isso? Que poderosas razões levariam a senhora a

ausentar-se de casa em horas tão impróprias para as mães de família?

- Públio - respondeu com humildade, estranhando aquele tratamento

cerimonioso -, por mais que buscasse comunicar-te minha resolução de

sair

128

ROMANCE DE EMMANUEL

na tarde de hoje, fugiste sempre de minha presença, esquivando-te à

minha consulta e eu necessitava procurar o Messias de Nazaré, de modo a

acalmar meu coração desventurado

- E precisavas de disfarce para encontrar o profeta do povo? -

atalhou o senador, com ironia.

É a primeira vez que noto uma patrícia usando tais artifícios para

consolar o coração. Vai a tanto, assim, o seu menosprezo pelas nossas

mais sagradas tradições familiares?

- Supus não me ficasse bem fazer-me notada na multidão das

pessoas pobres e infelizes que procuram a Jesus nas margens do lago, e,

identificando-me com os sofredores, não presumi desacatar nossos

costumes familiares, mas, sim, acreditei agir em favor do nosso nome,

considerando a circunstância de ocupares, no momento, nesta província, a

mais alta expressão política do Império.

- A menos que esteja disfarçando algum outro sentimento, como

dissimula a posição social com a indumentária, muito errou procurando o

Messias nesses trajes, porque, afinal, estou investido de poderes para

requisitar a presença de qualquer pessoa da região em minha casa!

- Mas Jesus - revidou Lívia, corajosamente - deve estar para nós

muito acima dos poderes humanos, que sabemos tão precários, por vezes.

Acho que a cura da nossa filhinha, diante da qual todos os nossos

recursos foram impotentes, é o bastante para fazê-lo credor da nossa

gratidão imperecível.

- Ignorava que a sua organização mental fosse tão frágil em face dos

sucessos do Mestre de Nazaré, aqui em Cafarnaum - continuou o senador,

asperamente.

A cura de nossa filha? Como assegurar uma coisa que a sua

argumentação pessoal não pode provar com dados positivos? E ainda que

esse homem, revestido de forças divinas para o espírito simples e

ignorante dos pescadores galileus, tivesse

129

HÁ DOIS MIL ANOS...

operado essa cura com a sua intervenção sobrenatural, vindo a este

mundo da parte dos deuses, poderíamos chamar-lhe impiedoso e cruel,

sarando uma menina enferma de tantos anos e permitindo que os gênios

do mal e da perversidade nos arrebatassem o filhinho sadio e carinhoso,

em cuja fronte colocava a minha ternura de pai todo um futuro brilhante e

promissor!

- Cala-te, Públio! - revidou ela, tomada de uma força superior que lhe

conservava toda a serenidade do coração. - Recorda-te que os deuses

podem humilhar-nos, com dureza, a vaidade e o orgulho absurdos... Se

Jesus de Nazaré nos curou a filhinha bem-amada, que apertávamos nos

braços frágeis contra os poderes imensos da morte, podia permitir que

fôssemos tocados no mais sagrado sentimento de nossa alma, com o

incompreensível desaparecimento do nosso Marcus, para que nos

sentíssemos inclinados à piedade e à comiseração pelos nossos

semelhantes!...

- A senhora se compromete com essa demasiada tolerância, que vai

ao absurdo da fraternização com os escravos - disse Públio, com rispidez

e austera severidade.

Tal atitude de sua parte me fez pensar, seriamente, que a sua

personalidade mudou no decurso deste ano, porque as suas idéias, longe

do nível social da sede do Império, baixaram ao terreno dos sentimentos

mais relaxados, em face da compostura que se exige da mulher de um

senador, ou da matrona romana.

Lívia ouvira, angustiadamente, as palavras injustificáveis do marido.

Nunca o vira tão irritado, em todo o transcurso da vida conjugal; mas,

verificara, em si própria, uma renovação singular, como se o pão rústico,

abençoado pelo Mestre, lhe transfigurasse as mais recônditas fibras da

consciência. Seus olhos se enchiam de lágrimas, não por um orgulho

ferido ou pela ingratidão que aquelas admoestações injustas revelavam,

mas com profunda com130

ROMANCE DE EMMANUEL

paixão do esposo, que não a compreendia, e adivinhando a dolorosa

tempestade que lhe fustigava o coração generoso, porém arbitrário, no

plano de suas resoluções. Serena e silenciosa, não se justificou perante as

severas reprimendas.

Foi quando, então, compreendendo que aquele atrito não deveria

prosseguir, dirigiu-se o senador para a porta de saída do apartamento,

abrindo-a com estrépito, a exclamar:

- Jamais fiz uma viagem tão penosa e tão infeliz! Gênios malditos

parecem presidir ás minhas atividades na Palestina, porque, se curei uma

filha, perdi um filhinho no desconhecido e começo a perder a mulher no

abismo das irreflexões e da incoerência; e acabarei, também, perdendo-me

para sempre.

Dizendo-o, bateu a porta com toda a força dos seus movimentos

instintivos, encaminhando-se ao gabinete, enquanto a esposa, de coração

genuflexo, dirigia o pensamento para aquele Jesus carinhoso e terno, que

viera ao mundo para salvar todos os pecadores. Lágrimas dolorosas

fluíam-lhe dos olhos, fixos ainda na paisagem do lago de Genesaré, aonde

parecia haver regressado em espírito, novamente. Lá estava o Mestre, em

atitudes doces de prece, cravando nas estrelas do céu os olhos

fulgurantes.

Figurou-se-lhe que Jesus também lhe notara a presença naquela

hora sombria da noite, porque desviara o olhar fúlgido do firmamento

constelado e estendia-lhe os braços compassivos e misericordiosos,

exclamando com infinita doçura:

- Filha, deixa que chorem os teus olhos as imperfeições da alma que

o Nosso Pai destinou para gêmea da tua!... Não esperes deste mundo mais

que lágrimas e padecimentos, porque é na dor que os corações se

lucificam para o céu... Um momento chegará em que te sentirás no acume

das aflições, mas não duvides da minha misericórdia, porque no momento

oportuno, quando todos te desprezarem, eu te chamarei ao meu reino de

divinas

131

HÁ DOIS MIL ANOS...

esperanças, onde poderás aguardar teu esposo, no curso incessante dos

séculos!...

Pareceu-lhe que o Mestre continuaria a embalar-lhe o coração com

suaves e carinhosas promessas de bem-aventurança, mas um ruído

qualquer a separara daquela visão de luz e de felicidade indefiníveis.

Quebrara-se o quadro da sua preocupação espiritual, como se feito

de tenuíssimas filigranas.

Todavia, a esposa do senador compreendeu que não fôra vítima de

uma perturbação alucinatória, e guardou, com amor, no âmago do coração,

as doces palavras do Messias. E, enquanto despia os trajes galileus, a fim

de retomar o curso de suas obrigações domésticas, de alma límpida e

consolada, parecia, ainda, lobrigar o vulto sereno e amado do Senhor, nas

eminências verdejantes das margens do Tiberíades, através da neblina

suave, que lhe embaciava os olhos úmidos de pranto.

132

VIII

No grande dia do Calvário

Desde a sua altercação com a esposa, fechara-se Públio Lentulus na

mais penosa taciturnidade.

Dolorosas suspeitas lhe vergastavam o coração impulsivo, acerca

do procedimento daquela que o destino algemara ao seu espírito, para

sempre, no instituto da vida conjugal. Não pudera compreender o disfarce

de que Lívia se utilizara para o encontro com o profeta de Nazaré, pois seu

temperamento orgulhoso rebelava-se contra aquela atitude da mulher,

considerando a sua posição social um penhor da veneração e do respeito

de todos e dando guarida, assim, às mais penosas desconfianças,

intoxicado pelas calúnias de Fúlvia e Sulpício.

Algum tempo decorrera e, enquanto ele se enclausurava no seu

mutismo e na sua melancolia, Lívia abroquelava-se na fé, nas palavras

carinhosas e persuasivas do Nazareno. Nunca mais voltara ela a

Cafarnaum, com o fim de ouvir as consoladoras prédicas do Messias; mas,

por intermédio de Ana, que lá comparecia pontualmente, procurou auxiliar,

sempre que possível, os pobres que busca133

HÁ DOIS MIL ANOS...

vam a palavra de Jesus, na medida dos seus recursos materiais. Profunda

tristeza lhe invadia o coração sensível e generoso, ao observar as atitudes

incompreensíveis do companheiro; mas, a verdade é que já não colocava

suas esperanças em qualquer realização do orbe terrestre, volvendo as

mais ardentes aspirações para aquele reino de Deus, maravilhoso e

sublime, onde tudo devia transpirar amor, ventura e paz, no seio farto de

soberanas consolações celestes.

Aproximava-se a Páscoa no ano 33. Numerosos amigos de Públio

haviam aconselhado a sua volta temporária a Jerusalém, a fim de

intensificar os serviços da procura do filhinho, no curso das festividades

que concentravam, na época, as maiores multidões da Palestina,

estabelecendo possibilidades mais amplas ao reencontro do

desaparecido. Peregrinos incontáveis, de todas as regiões da província,

dirigiam-se para Jerusalém, a participar dos grandes festejos, oferecendo,

simultaneamente, os tributos de sua fé, no suntuoso templo. A nobreza

indígena também se fazia notar ali, em tais circunstâncias, através de seus

elementos mais representativos. Todos os partidos políticos se

arregimentavam para os serviços extraordinários das solenidades que

reuniam as maiores massas do judaísmo, encaminhando-se para lá os

homens mais importantes do tempo. As autoridades romanas, por sua vez,

concentravam-se, igualmente, em Jerusalém, na mesma ocasião, reunindose

na cidade quase todos os centuriões e legionários, destacados a

serviço do Império, nas paragens mais remotas da província.

Públio Lentulus não desdenhou o alvitre e, antes que a cidade se

enchesse de romeiros e exploradores, já ali se encontrava com a família,

fornecendo instruções aos servos de confiança, conhecedores do

pequenino Marcus, de maneira a estabelecer um cordão de investigadores

atentos e permanentes, enquanto perdurassem os festejos.

134

ROMANCE DE EMMANUEL

Em Jerusalém, o convencionalismo social não se modificara,

notando-se apenas a circunstância de Públio haver dispensado a

residência do tio Sálvio, adquirindo uma vila confortável e graciosa em

plena rua movimentada, de onde pudesse observar, igualmente, as

manifestações populares.

As vésperas da Páscoa chegaram com a volumosa preamar de

peregrinos de todas as classes e de todas as localidades provinciais.

Interessante observar-se, naqueles blocos heterogêneos de povo, os

hábitos mais dispares entre si.

Caravanas sem conto, revelando os mais esquisitos costumes,

atravessavam as portas da cidade, patrulhadas por numerosos soldados

pretorianos

E enquanto o senador fazia comparações de ordem econômica,

social e política, observando as massas de povo que afluíam às ruas

movimentadas, vamos encontrar Lívia em palestra íntima com a serva de

sua amizade e confiança.

- Sabeis, senhora, que também o Messias chegou ontem à cidade? -

exclamava Ana, com um raio de alegria nos grandes olhos.

- Verdade? - perguntou Lívia, surpresa.

- Sim, desde ontem chegou Jesus a Jerusalém, saudado por grandes

manifestações populares.

A ressurreição de Lázaro, em Betânia, confirmou suas divinas

virtudes de Filho de Deus, entre os homens mais descrentes desta cidade,

e acabo de saber que sua chegada foi objeto de imensas alegrias da parte

do povo. Todas as janelas se enfeitaram de flores para a sua passagem

triunfal, as crianças espalharam palmas verdes e perfumadas no caminho,

em homenagem a ele e aos seus discípulos!... Muita gente acompanhou o

Mestre desde as margens do lago de Genesaré, seguindo-o até aqui,

através de todas as localidades.

Quem me trouxe a notícia foi um conhecido pessoal, portador do tio

Simeão, que também veio a Jerusalém, nessa grande caminhada, apesar

da sua idade avançada...

135

HÁ DOIS MIL ANOS...

- Ana, essa notícia é muito confortadora -disse-lhe a senhora, com

bondade - e se eu pudesse iria ouvir a palavra do Mestre, onde quer que

fosse; mas, bem sabes as dificuldades para a consecução deste intento.

Entretanto, ficas livre de tuas obrigações e trabalhos, durante a

permanência de Jesus em Jerusalém, de modo a bem aproveitares as

festas da Páscoa, ouvindo, ao mesmo tempo, as prédicas do Messias, que

tanto bem nos fazem ao coração.

E, entregando à criada o indispensável auxílio pecuniário, observava

que Ana partia satisfeita em demanda das cercanias do Monte das

Oliveiras, onde estacionavam massas compactas de peregrinos, entre os

quais se notava a presença do velho Simeão, de Samaria, romeiro

desassombrado que não trepidara, apesar da idade avançada, em aderir ao

movimento das peregrinações pelos mais escabrosos e longos caminhos.

Em casa de Lentulus não havia tanto interesse pelas grandes

festividades do judaísmo.

Um único motivo justificava a presença do senador em Jerusalém,

naqueles dias turbulentos: o da busca incessante do filho, que parecia

perdido para sempre.

Diariamente ouvia os servos de confiança, após as diligências

empreendidas e, de instante a instante, sentia-se mais acabrunhado por

acerbas desilusões, considerando a luta inútil naquelas pesquisas

exaustivas e infrutíferas.

Na vivenda clara e ajardinada, as horas passavam vagarosas e

tristes. Embalde se movimentavam as ruas, patrulhadas por soldados e

cheias de criaturas de todos os matizes sociais. O vozerio das ruidosas

manifestações populares transpunha aquelas portas quase silenciosas,

como ecos apagados de rumores longínquos.

A penosa situação conjugal, em que se colocara, separava o

senador da mulher, como se estivessem

136

ROMANCE DE EMMANUEL

irremediavelmente distantes um do outro e destruídos os laços sagrados

do coração.

Foi a esse retiro de calma aparente que Ana voltou, certa manhã,

passados alguns dias, a fim de cientificar a senhora da inesperada prisão

do Messias.

Com a simplicidade espontânea e sincera da alma popular, que ela

encarnava, a serva humilde historiou, com os mais íntimos pormenores, a

cena provocada pela ingratidão de um dos discípulos, em virtude do

despeito e da ambição dos sacerdotes e fariseus do templo da grande

cidade israelita.

Amargamente compungida em face do acontecimento, Lívia

considerou que, se fosse noutro tempo, recorreria imediatamente à

proteção política do marido, de modo a evitar ao profeta de Nazaré os

ataques das ambições desmesuradas. Agora, porém, reconhecia não lhe

ser possível socorrer-se do prestigio do companheiro, em tais

circunstâncias. Mesmo assim, procurou aproximar-se dele, por todos os

modos, embora improficuamente. De uma sala contígua ao seu gabinete,

notou que Públio atendia a numerosas pessoas que o procuravam

particularmente, em atitude discreta; e o interessante é que, segundo as

suas observações, todos expunham ao senador o mesmo assunto, isto é, a

prisão inesperada de Jesus Nazareno - acontecimento que desviara todas

as atenções das festividades da Páscoa, tal o interesse despertado pelos

feitos do Mestre, em todos os espíritos. Alguns solicitavam a sua

intervenção no processo do acusado; outros, da parte dos fariseus ligados

aos sacerdotes do Sinédrio, encareciam aos seus olhos o perigo das

pregações de Jesus, apresentado por muitos como revolucionário

inconsciente, contra os poderes políticos do Império.

Debalde esperou Lívia que o marido lhe concedesse dois minutos de

atenção, no compartimento próximo do seu gabinete privado.

137

HÁ DOIS MIL ANOS...

Sua ansiedade tocava o apogeu, quando lobrigou a figura de

Sulpício Tarquinius, que vinha da parte de Pilatos solicitar ao senador o

obséquio da sua presença, imediatamente, no palácio do governo

provincial, a fim de resolver um caso de consciência.

Públio Lentulus não se fez rogado.

Ponderando os deveres de homem de Estado, concluiu que deveria

esquecer quaisquer prevenções da sua vida particular e privada,

marchando ao encontro das obrigações que devia ao Império.

Lívia perdeu, então, toda a esperança de implorar-lhe auxílio para o

Mestre, naquele dia. Sem saber porque, intensa amargura invadia-lhe o

mundo íntimo. E foi com a alma envolta em sombras que elevou ao Pai

Celestial as suas preces fervorosas e sinceras, por aquele que seu

coração considerava lúcido emissário dos céus, suplicando, a todas as

forças do bem, livrassem o Filho de Deus da perseguição e da perfídia dos

homens.

Ao chegar à corte provincial romana, naquele dia inesquecível de

Jerusalém, Públio Lentulus foi tomado de extraordinária surpresa.

Ondas compactas de povo se adensavam na praça extensa, em

gritaria ensurdecedora.

Pilatos recebeu-o com deferência e solicitude, conduzindo-o a um

gabinete amplo, onde se reunia pequeno número de patrícios, escolhidos a

dedo em Jerusalém. O pretor Sálvio, funcionários de destaque, militares

graduados e alguns poucos romanos civis, de nomeada, que passavam

eventualmente pela cidade, ali se aglomeravam, convocados pelo

governador, que se dirigiu a Públio Lentulus, nestes termos:

- Senador, não sei se tivestes ensejo de conhecer, na Galileia, um

homem extraordinário que o povo se habituou a chamar Jesus Nazareno.

Esse homem foi agora preso, em virtude da condenação dos membros do

Sinédrio, e a massa popular que o havia recebido, nesta cidade, com

palmas e flores, pede agora, nesta praça, o seu imediato julgamento

138

ROMANCE DE EMMANUEL

por parte das autoridades provinciais, em confirmação da sentença

proferida pelos sacerdotes de Jerusalém.

Eu, francamente, não lhe vejo culpa alguma, senão a de ardente

visionário de coisas que não posso ou não sei compreender,

surpreendendo-me amargamente o seu penoso estado de pobreza.

Neste comenos, penetraram na sala as duas irmãs, Cláudia e Fúlvia,

que tomaram assento nesse conselho íntimo de patrícios.

- Ainda esta noite - continuou Pilatos, apontando para a esposa -,

parece que os augúrios dos deuses se manifestaram para a minha

orientação, pois Cláudia sonhou que uma voz lhe recomendava que eu não

deveria arriscar minha responsabilidade no julgamento desse homem

justo.

Resolvi, portanto, agir em consciência, aqui reunindo todos os

patrícios e romanos notáveis de Jerusalém, para examinarmos o assunto,

de modo que o meu ato não prejudique os interesses do Império, nem

colida com o meu ideal de justiça.

Que dizeis, pois, dos meus escrúpulos, na qualidade de

representante direto do Senado e do Imperador, entre nós, neste

momento?

- Vossa atitude - obtemperou o senador, compenetrado de suas

responsabilidades -- revela o máximo critério nas questões

administrativas.

E, recordando, no íntimo, os bens que havia recebido do profeta com

a cura da filhinha, embora as dúvidas levantadas por seu orgulho e

vaidade, continuou:

- Conheci de perto o profeta de Nazaré, em Cafarnaum, onde

ninguém o tinha na conta de conspirador ou revolucionário. Suas ações,

ali, eram as de um homem superior, caridoso e justo, e jamais tive

conhecimento de que sua palavra se erguesse contra qualquer instituto

social ou político, do Império. Certamente, alguém o toma aqui como

pretendendo a autoridade política da Judeia, cevando-se no seu nome as

ambições e o despeito dos

139

HÁ DOIS MIL ANOS...

sacerdotes do templo. Mas, já que guardais no coração os melhores

escrúpulos, porque não enviais o prisioneiro ao julgamento de Ântipas, a

quem, com mais propriedade, deve interessar a solução de semelhante

assunto? Representando, nestes dias, o governo da Galileia aqui em

Jerusalém, acho que ninguém, melhor que Herodes, pode resolver em sã

consciência um caso como este, considerando-se a circunstância de que

julgará um compatrício seu, já que não vos supondes de posse de todos

os elementos para proferir sentença definitiva nesse processo insólito.

A idéia foi unanimemente aceita, sendo o acusado conduzido à

presença de Herodes Ântipas, por alguns centuriões, obedecendo-se,

rigorosamente, as determinações de Pilatos nesse sentido.

Todavia, no palácio do Tetrarca da Galileia, foi Jesus de Nazaré

recebido com profundo sarcasmo.

Apelidado pela gente simples como "Rei dos Judeus" e

simbolizando a esperança de certas reivindicações políticas para

numerosos de seus seguidores, entre os quais se incluía o famoso

discípulo de Kerioth, o mestre de Nazaré foi tratado pelo príncipe de

Tiberíades como vulgar conspirador, humilhado e vencido.

Ântipas, porém, para fazer sentir ao Procurador da Judeia a conta de

ridículo em que tomava os seus escrúpulos, mandou que se tratasse o

prisioneiro com o máximo de ironia.

Vestiu-lhe uma túnica alva, igual à indumentária dos príncipes do

tempo, colocando-lhe nos braços uma cana imunda à guisa de cetro, e

coroou-lhe a fronte abatida com uma auréola de venenosos espinhos,

devolvendo-o à sanção de Pilatos, no turbilhão de gritarias da populaça

exacerbada.

Muitos soldados romanos cercavam o acusado, protegendo-o das

investidas da massa furiosa e inconsciente.

Jesus, trajando, por irrisão, a túnica da realeza, coroado de espinhos

e empunhando uma cana

140

ROMANCE DE EMMANUEL

como símbolo do seu reinado no mundo, deixava transparecer, nos olhos

profundos, indefinível melancolia.

Cientificado de que o prisioneiro era devolvido por Ântipas ao seu

julgamento, o governador dirigiu-se novamente aos seus conterrâneos,

exclamando:

- Meus amigos, não obstante nossos esforços, Herodes apela

também para nós outros, a fim de se confirmar a peça condenatória do

profeta Nazareno, recambiando-o com a sua situação penosamente

agravada perante o povo, porquanto, como suprema autoridade em

Tiberíades, tratou o prisioneiro com revoltante sarcasmo, dando-nos a

entender o desprezo com que supõe deva ele ser encarado pela nossa

justiça e administração.

Tão amarga situação contrista-me bastante, porque o coração me diz

que esse homem é um justo; mas, que fazermos em semelhante

conjuntura?

Da câmara isolada, onde se reunia o apressado e reduzido conselho

de patrícios, podiam observar-se os ecos rumorosos da turba amotinada,

em espantosa gritaria.

Um ajudante de ordens do governador, de nome Polibius, homem

sensato e honesto, penetrou no recinto, pálido e quase trêmulo, dirigindose

a Pilatos:

- Senhor Governador, a multidão enfurecida ameaça invadir a casa,

se não confirmardes a sentença condenatória de Jesus Nazareno, dentro

do menor prazo possível...

- Mas, isso é um absurdo - retrucou Pilatos, emocionado. - E, afinal,

que diz o profeta, em tais circunstâncias? Sofre tudo sem uma palavra de

recriminação e sem um apelo oficial aos tribunais de justiça?

- Senhor - replicou Polibius, igualmente impressionado -, o

prisioneiro é extraordinário na serenidade e na resignação. Deixa-se

conduzir pelos

141

HÁ DOIS MIL ANOS...

algozes com a docilidade de um cordeiro e nada reclama, nem mesmo o

supremo abandono em que o deixaram quase todos os diletos discípulos

da sua doutrina!

Comovido com os seus padecimentos, fui falar-lhe pessoalmente e,

inquirindo-o sobre os seus martírios, afirmou que poderia invocar as

legiões de seus anjos e pulverizar toda a Jerusalém dentro de um minuto,

mas que isso não estava nos desígnios divinos e, sim, a sua humilhação

infamante, para que se cumprissem as determinações das Escrituras. Fizlhe

ver, então, que poderia recorrer à vossa magnanimidade, a fim de se

ordenar um processo dentro de nossos dispositivos judiciários, de

maneira a comprovar sua inocência e, todavia, recusou semelhante

recurso, alegando que prescinde de toda proteção política dos homens,

para confiar tão somente numa justiça que diz ser a de seu Pai que está

nos céus!

- Homem extraordinário!... - revidou Pilatos, enquanto os presentes o

acompanhavam estupefatos.

Polibius - continuou ele -, que poderíamos fazer para evitar-lhe a

morte nefanda, nas mãos criminosas da massa inconsciente?

- Senhor, em vista da necessidade de resolução rápida, sugiro a

pena dos açoites na praça pública, por ver se assim conseguimos amainar

as iras populares, evitando ao prisioneiro a morte ignominiosa nas mãos

de celerados sem consciência...

- Mas, os açoites?! - diz Públio Lentulus, admirado, antevendo as

torturas do horrível suplício.

- Sim, meu amigo - redargüiu o governador, dirigindo-lhe a palavra

com atenção respeitosa -, a idéia de Polibius é bem lembrada. Para

evitarmos ao acusado a morte ignominiosa, temos de lançar mão deste

recurso. Vivendo na Judeia há quase sete anos, conheço este povo e sei

de suas temíveis atitudes, quando as suas paixões se desencadeiam.

142

ROMANCE DE EMMANUEL

O suplício foi, então, ordenado, no pressuposto de evitar maiores

males.

Diante de todos, foi Jesus açoitado, de maneira impiedosa, aos

berros estridentes da multidão amotinada.

Nesse instante doloroso, Públio e alguns romanos se ausentaram

por momentos da câmara privada onde se reuniam, a fim de observarem

os movimentos instintivos da massa fanática e ignorante. Não parecia que

os peregrinos de Jerusalém haviam acorrido à cidade para as

comemorações alegres da Páscoa, mas, tão somente, para procederem à

condenação do humilde Messias de Nazaré. De quando em quando, faziase

mister o concurso decidido de centuriões desassombrados, que

dispersavam certos grupos mais exaltados, a golpes de chanfalho.

O senador fez questão de aproximar-se do supliciado, na suas

provações dolorosas e extremas.

Aquele rosto enérgico e meigo, em que os seus olhos haviam

divisado uma auréola de luz suave e misericordiosa, nas margens do

Tiberíades, estava agora banhado de suor sangrento a manar-lhe da fronte

dilacerada pelos espinhos perfurantes, misturando-se de lágrimas

dolorosas; seus delicados traços fisionômicos pareciam invadidos de

palidez angustiada e indescritível; os cabelos caíam-lhe na mesma

disposição encantadora sobre os ombros seminus e, todavia, estavam

agora desalinhados pela imposição da coroa ignominiosa; o corpo

vacilava, trêmulo, a cada vergastada mais forte, mas o olhar profundo

saturava-se da mesma beleza inexprimível e misteriosa, revelando

amargurada e indefinível melancolia.

Por um momento, seus olhos encontraram os do senador, que

baixou a fronte, tocado pela imorredoura impressão daquela sobrehumana

majestade.

Públio Lentulus voltou intimamente compungido ao interior do

palácio, onde, daí a poucos

143

HÁ DOIS MIL ANOS...

minutos, retornava Polibius, cientificando o governador de que a pena do

açoite não havia saciado, infelizmente, as iras da população enfurecida,

que reclamava a crucificação do condenado.

Penosamente surpreendido, exclamou o senador, dirigindo-se a

Pilatos, com intimidade:

- Não tendes, porventura, algum prisioneiro com processo

consumado, que possa substituir o profeta em tão horrorosas penas? As

massas possuem alma caprichosa e versátil e é bem possível que a de

hoje se satisfaça com a crucificação de algum criminoso, em lugar desse

homem, que pode ser um mago ou visionário, mas é um coração caridoso

e justo.

O governador da Judeia concentrou-se por momentos, recorrendo à

memória, com o fim de encontrar a desejada solução.

Lembrou-se então de Barrabás, personalidade temível, que se

encontrava no cárcere aguardando a última pena, conhecido e odiado de

todos pelo seu comprovado espírito de perversidade, respondendo afinal:

- Muito bem!... Temos aqui um celerado, no cárcere, para alívio de

todos, e que poderia, com efeito, substituir o profeta na morte infamante!...

E mandando fazer o possível silêncio, de uma das eminências do

edifício, ordenou que o povo escolhesse entre o bandido e Jesus.

Mas, com grande surpresa de todos os presentes, a multidão

bradava com sinistro alarido, numa torrente de impropérios:

- Jesus!... Jesus!... Absolvemos Barrabás!... Condenamos a Jesus!...

Crucificai-o!... Crucificai-o!...

Todos os romanos se aproximaram das janelas, observando a

inconsciência da massa criminosa, no ímpeto de seus instintos

desencadeados.

- Que fazer diante de tal quadro? - perguntou Pilatos, emocionado,

ao senador que o ouvia atentamente.

144

ROMANCE DE EMMANUEL

- Meu amigo - respondeu Públio, com energia -, se a decisão

dependesse tão somente de mim, fundamentá-la-ia em nossos códigos

judiciários, cuja evolução não comporta mais uma condenação tão

sumária como esta, e mandava dispersar a multidão inconsciente à pata de

cavalo; mas, considero que as minhas atribuições transitórias, junto ao

vosso governo, não me outorgam direito a tais desmandos e, além disso,

tendes aqui uma experiência de sete anos consecutivos.

De minha parte, suponho que tudo foi feito para que as decisões não

fossem precipitadas.

Antes de tudo, o prisioneiro foi enviado ao julgamento de Ântipas,

que complicou a situação, diante da populaça irresponsável, dentro das

suas infelizes noções da tarefa de um governo, deixando-vos a

responsabilidade da última palavra sobre o assunto; em seguida,

determinastes o suplício do açoite para satisfazer ao povo amotinado, e,

agora, acabais de indicar outro criminoso para a crucificação, em lugar do

acusado. Tudo inutilmente.

Como homem, estou contra este povo inconsciente e infeliz e tudo

faria por salvar o inocente; mas, como romano, acho que uma província,

como esta, não passa de uma unidade econômica do Império, não nos

competindo, a nós outros, o direito de interferência nos seus grandes

problemas morais e presumindo, desse modo, que a responsabilidade

desta morte nefanda deve caber agora, exclusivamente, a essa turba

ignorante e desesperada, e aos sacerdotes ambiciosos e egoístas que a

dirigem.

Pilatos enterrou a fronte nas mãos, como a refletir maduramente

naquelas ponderações; mas, antes que pudesse externar sua opinião, eis

que Polibius aparece aflito, exclamando em atitude discreta:

- Senhor governador, é preciso apressar vossa decisão. Espíritos

maldizentes começam a duvidar da vossa fidelidade aos poderes de César,

compelidos pela intriga dos sacerdotes do templo,

145

HÁ DOIS MIL ANOS...

colocando a vossa dignidade em terreno equívoco para todos... Além

disso, a populaça tenta invadir a casa, tornando-se necessário assumirdes

atitude decisiva, sem perda de um minuto.

Pilatos ficou rubro de cólera, diante de semelhantes injunções,

exclamando irritado, como se estivesse sob o jugo do mais singular dos

determinismos:

- Está bem! Lavarei as mãos deste ignominioso delito! O povo de

Jerusalém será satisfeito...

E, procedendo a esse ato que o celebrizaria para sempre, dirigiu

algumas palavras ao condenado, mandando, em seguida, recolhê-lo a uma

cela, onde pudesse permanecer alguns minutos, sem as grosseiras

investidas da turba impetuosa, antes que a multidão o conduzisse ao

Gólgota, que, na linguagem usual, deverá ser traduzido por Lugar da

Caveira.

Um sol abrasador tornara sufocante e insuportável a atmosfera.

Saciada, afinal, a fúria da multidão nos seus desvairamentos

infelizes, numerosos soldados seguiram o prisioneiro, que demandava o

monte da crucificação, a passos vacilantes sob o madeiro da ignomínia,

que a justiça da época destinava aos bandidos e aos ladrões.

Até o momento de sua saída sob a cruz, ninguém se interessara por

ele, junto à autoridade ([o governador da Judeia.

Depreendia daí o senador que, quantos seguiam o Mestre de Nazaré

nas margens do lago, em Cafarnaum, o haviam abandonado inteiramente.

De uma das janelas do palácio, considerou, penalizado, o desprezo

infligido àquele homem que, um dia, o dominara com a força magnética da

sua personalidade incompreensível, observando a ondulação da turba

enfurecida, ao sair o inesquecível cortejo.

Ao lado do Mestre não se via mais a carinhosa assistência dos

discípulos e seus numerosos segui146

ROMANCE DE EMMANUEL

dores. Apenas algumas mulheres - entre as quais se destacava o vulto

impressionante e agoniado de sua mãe - o amparavam afetuosamente, no

doloroso e derradeiro transe.

Aos poucos, a praça extensa aquietou-se ao calor sufocante da tarde

que se avizinhava.

A distância, ouvia-se ainda a vozearia da plebe, aliada ao relinchar

dos cavalos e ao tinir das armaduras.

Impressionados com o espetáculo que, aliás, não era incomum na

Palestina, reuniram-se os romanos em uma das salas amplas do palácio

governamental, em animada palestra, comentando os instintos e paixões

ferozes da plebe enfurecida.

Daí a minutos, Cláudia mandava servir doces, vinhos e frutas, e,

enquanto a conversação timbrava os problemas da província e as intrigas

da corte de Tibério, mal imaginava aquele punhado de criaturas que, na

cruz grosseira e humilde do Gólgota, ia acender-se uma gloriosa luz para

todos os séculos terrestres.

147

IX

A calúnia vitoriosa

Se Jesus de Nazaré havia sido abandonado por seus discípulos e

seguidores mais diretos, o mesmo não se verificara quanto ao grande

número de criaturas humildes que o acompanhavam com devoção

purificada e sincera.

É verdade que essas almas, raras, não revelaram francamente as

suas simpatias perante a turba desvairada, temendo-lhe as sanhas

destruidoras, mas, muitos espíritos piedosos, como Ana e Simeão,

contemplaram de perto os martírios do Senhor sob o açoite infamante,

cheios de lágrimas angustiosas e esperando que, a cada momento, se

pudesse manifestar a justiça de Deus contra a perversidade dos homens, a

favor do Messias.

Contudo, esvaeceram-se-lhes as derradeiras esperanças, quando,

sob o peso da cruz, o supliciado caminhou a passos cambaleantes, para o

monte da última injúria, depois de confirmada a ignóbil sentença.

Foi assim que Ana e seu tio, reconhecendo inevitável o martírio da

crucificação, deliberaram

148

ROMANCE DE EMMANUEL

seguir para a residência de Públio, para suplicar o patrocínio de Lívia,

junto ao governador.

Enquanto o cortejo sinistro e impressionante se punha em marcha

nos seus movimentos vagarosos, ambos se desviaram da massa,

encaminhando-se por uma viela ensolarada, em busca do almejado

socorro.

Penetrando na residência, enquanto Simeão a esperava,

pacientemente, numa calçada próxima, dirige-se Ana à esposa do senador,

que a recebeu surpresa e angustiada.

- Senhora - diz, mal ocultando as lágrimas -, o profeta de Nazaré já

está a caminho da morte ignominiosa na cruz, entre os ladrões!...

Uma emoção mais forte embargara-lhe a voz, sufocada de pranto.

- Como? - respondeu Lívia, penosamente surpreendida - se a prisão

data de tão poucas horas?

- Mas é a verdade... - revidou a serva, compungida. - E em nome

daqueles mesmos sofredores que vistes consolados pela sua palavra

carinhosa e amiga, Junto às águas do Tiberíades, eu e meu tio Simeão

vimos implorar o vosso auxílio pessoal perante o governador, a fim de

fazermos um esforço derradeiro pelo Messias!...

- Mas, uma condenação como essa, sem estudo, sem exame, é lá

possível? Vive, então, aqui este povo sem outra lei que não a da barbaria?

- exclamou a senhora, visivelmente revoltada com a inopinada notícia.

Como se desejasse arrancá-la a qualquer divagação incompatível

com o momento, a serva insistiu com decisão e amargura:

- Entretanto, senhora, não podemos perder um minuto.

- Antes de tudo, porém, eu precisava consultar meu marido sobre o

assunto... - monologou a esposa do senador, recordando-se,

repentinamente, dos seus deveres conjugais.

149

HÁ DOIS MIL ANOS...

Onde estaria Públio naquele instante? Desde a manhã, não

regressara a casa, após o chamado insistente de Pilatos. Teria colaborado

na condenação do Messias? Num relance, a pobre senhora examinou toda

a situação nos seus mínimos detalhes, recordando, igualmente, os bens

infinitos que o seu coração havia recebido das mãos caridosas e

complacentes do Mestre Nazareno, e, como se estivesse iluminada por

uma força superior que lhe fazia esquecer todas as questões transitórias

da Terra, exclamou com heróica resolução:

- Está bem, Ana, irei em tua companhia pedir a proteção de Pilatos

para o profeta.

Esperar-me-ás um momento, enquanto vou retomar aqueles trajes

galileus que me serviram naquela tarde de Cafarnaum, dirigindo-me, deste

modo, ao governador, sem provocar a atenção da turbamulta desenfreada.

Em poucos minutos, sem refletir nas conseqüências da sua

desesperada atitude, Lívia estava na rua, novamente enfiada nos trajes

simples da gente pobre da Galileia, trocando amarguradas impressões

com o ancião de Samaria e sua sobrinha, acerca dos dolorosos

acontecimentos.

Aproximando-se da sede do governo provincial, seu coração

palpitou com mais força, obrigando-a a mais demorados pensamentos.

Não seria uma temeridade da sua parte procurar o governador, sem

prévio conhecimento do marido? Mas, tudo não fizera ela, em vão, para

aproximar-se do esposo arredio e irritado, de maneira a reerguer sua

antiga confiança? E Pilatos? Na sua imaginação, guardava ainda os

pormenores das amargas comoções daquela noite em que lhe fôra ele

mais franco, quanto aos sentimentos inconfessáveis que a sua figura de

mulher lhe havia inspirado

Lívia hesitou ao penetrar num dos ângulos da grande praça, agora

adormecida por um sol causticante, de brasas vivas.

150

ROMANCE DE EMMANUEL

Seu raciocínio contrariava a atitude que assumira aos apelos da

serva, que representava, aos seus olhos, a súplica angustiada de inúmeros

espíritos desvalidos; seu coração, porém, sancionava plenamente aquele

derradeiro esforço em favor do emissário celeste que lhe havia curado as

chagas da filhinha, enchendo de tranqüilidade inalterável o seu coração

atormentado de esposa e mãe, tantas vezes incompreendido. Além disso,

nesse conflito interior da razão e do sentimento, este último lhe fazia

lembrar que Jesus, nas margens do lago, lhe falara de amargurados

sacrifícios pela sua grande causa, e não seria aquela a hora sagrada da

gratidão de sua fé ardente e do seu testemunho de reconhecimento?

Aliviada pela íntima satisfação do cumprimento do seu carinhoso dever,

avançou então, desassombradamente, deixando os dois companheiros à

sua espera, num dos largos recantos da praça, enquanto procurava ganhar

as adjacências do edifício, com ligeiro desembaraço.

Batia-lhe o coração descompassadamente.

Como encontrar o governador da Judeia àquela hora? Um sol

ardente concentrava, em tudo, calor intolerável e sufocante.

O cortejo, em demanda do Gólgota, partira havia quase uma hora e o

palácio parecia agora mergulhado numa atmosfera de silêncio e de sono,

após as penosas confusões daquele dia.

Apenas alguns centuriões montavam guarda ao edifício e, quando

Lívia alcançou menor distância das portas principais de acesso ao interior,

eis que se lhe depara a figura de Sulpício, a quem se dirigiu com o máximo

de confiança e de inocência, pedindo-lhe o obséquio de solicitar uma

audiência privada e imediata ao governador, em seu nome. a fim de falarlhe

quanto à dolorosa situação de Jesus de Nazaré.

O lictor mirou-a de alto a baixo com o olhar de lascívia e cupidez que

lhe eram características e, crendo piamente nas relações ilícitas daquela

151

HÁ DOIS MIL ANOS... 151

mulher com o Procurador da Judeia, em virtude de suas observações

pessoais, por coincidências que se lhe figuravam a realidade perfeita

daquela suposta prevaricação, presumiu, naquele ato insólito, não o

motivo apresentado, que lhe pareceu ótimo pretexto para afastar quaisquer

desconfianças, mas o objetivo de se encontrar com o homem de suas

preferências.

Criatura ignóbil, de que se utilizava o governador para instrumento

de suas paixões malignas, entendeu que semelhante entrevista deveria ser

levada a efeito na maior intimidade, e, sabendo que Públio Lentulus ainda

lá se encontrava em animada palestra com os companheiros, conduziu

Lívia a um gabinete perfumado, onde se alinhavam preciosos vasos de

aromas do Oriente, saturados de fluidos sutis e entontecedores, e onde

Pilatos recebia, por vezes, a visita furtiva das mulheres de conduta

equívoca, convidadas a participar dos seus licenciosos prazeres.

Ignorando, por completo, o mecanismo de circunstâncias que a

conduziam a uma penosíssima situação, Lívia acompanhou o lictor ao

gabinete aludido, onde, embora estranhando a suntuosidade extravagante

do ambiente, se demorou alguns minutos, a sós, aguardando

ansiosamente o instante de implorar, de viva voz, ao procurador da Judeia

a sua prestigiosa interferência a favor do generoso Messias de Nazaré.

Nem ela, nem Sulpício, todavia, chegaram a perceber que uns olhos

perscrutadores os acompanharam com profundo interesse, desde o

exterior do edifício ao gabinete privado a que nos referimos.

Era Fúlvia, que, conhecendo semelhante apartamento do palácio,

surpreendera a esposa do senador, sob o disfarce daquela túnica humilde,

da vida rural, enchendo-se-lhe o coração de pavorosos ciúmes, ao verificar

aquela visita inesperada.

Enquanto Sulpício Tarquinius fazia um sinal familiar ao governador,

a que este atendeu de pron152

ROMANCE DE EMMANUEL

to, indo imediatamente ao seu encontro num vasto corredor, onde

murmuraram ambos algumas palavras em tom discreto, cientificando-se

Pilatos da almejada entrevista em particular, aquela maliciosa criatura

demandava alcovas do seu íntimo conhecimento, de maneira a certificarse,

positivamente, através dos reposteiros, da presença de Lívia na câmara

privada do governador, destinada às suas expansões licenciosas.

Certificada, em absoluto, do acontecimento, a caluniadora

antegozou o instante em que tomaria Públio pelas mãos, a fim de conduzilo

à visão direta do suposto adultério de sua mulher e, quando regressava

ao vasto salão, deixando transparecer levemente a satisfação sinistra da

sua alma, ainda ouviu Pilatos exclamar com delicadeza para os seus

convidados:

- Meus amigos, espero me concedam alguns minutos para atender a

uma entrevista privada e urgente, que eu não esperava neste momento.

Acredito que, consumada a condenação do Messias de Nazaré, batem já a

estas portas os que não tiveram coragem para defendê-lo publicamente,

no momento oportuno!. . Vamos ver!

E retirando-se com o assentimento unânime dos presentes, o

governador atingia o gabinete reservado, onde, eminentemente

surpreendido, encontrou o vulto nobre de Lívia, mais bela e mais sedutora

naqueles trajes despretensiosos e simples, e que lhe falou nestes termos:

- Senhor governador, embora sem o consentimento prévio de meu

marido, resolvi chegar até aqui, em virtude da urgência do assunto, a

suplicar o vosso amparo político para a absolvição do profeta de Nazaré.

Homem humilde e bom, caridoso e justo, que mal teria praticado para

morrer assim, de morte aviltante, entre dois ladrões? É por isso que,

conhecendo-o pessoalmente e tendo-o na conta de um inspirado do céu,

ouso invocar as vossas

153

HÁ DOIS MIL ANOS...

elevadas qualidades de homem público, em favor do acusado!...

Sua voz era trêmula, indicando as emoções que lhe iam nalma.

- Senhora - respondeu Pilatos, fazendo o possível para sensibilizar e

seduzir-lhe o coração com a fingida ternura de suas palavras -, tudo fiz

para evitar a Jesus a morte no madeiro infamante, vencendo todos os

meus escrúpulos de homem de governo, mas, infelizmente, tudo está

consumado. Nossa legislação foi vencida pelas iras da multidão

delinqüente, nas explosões injustificadas do seu ódio incompreensível.

- Então, não é licito esperarmos nenhuma providência mais a

beneficio desse homem caridoso e justo, condenado como vulgar

malfeitor? Será ele, então, crucificado pelo crime de praticar a caridade e

plantar a fé no coração dos seus semelhantes, que ainda não sabem

adquiri-la por si próprios?

- Infelizmente, assim é... - replicou Pilatos, contrafeito. - Tudo

fizemos a fim de evitar os desatinos da plebe amotinada, mas os meus

escrúpulos não conseguiram vencer, sendo obrigado a confirmar a pena

de Jesus, a contragosto.

Por um momento, entregou-se Lívia às suas meditações dolorosas,

como se estivesse inquirindo, a si mesma, qualquer providência nova a

adotar sem perda de um minuto.

Quanto ao governador, depois de imprimir uma pausa às suas

palavras, deixou que os instintos do homem surgissem, plenamente,

naquelas circunstâncias.

Aquele dia havia sido de lutas penosas e intensas. Singular

abatimento físico lhe dominava os centros mais poderosos da força

orgânica, mas, diante dos seus olhos habituados à conquista e, muitas

vezes, aos recursos da própria crueldade, estava aquela mulher, que lhe

resistira... Poderosa algema parecia imantá-lo à sua personalidade simples

e carinhosa, e ele, mais que nunca, desejou

154

ROMANCE DE EMMANUEL

possuí-la, tornando-a, como as outras, um instrumento de suas

transitórias paixões. O ambiente, sobretudo, conturbava-lhe as fontes mais

puras do raciocínio. Aquele gabinete era destinado, exclusivamente, às

suas extravagâncias noturnas, e fluidos entontecedores pairavam em

todos os seus escaninhos, embotando os mais nobres pensamentos.

Via a mulher ambicionada, perdida por alguns segundos em

graciosas cismas, diante da sua presença dominadora.

Aquela graça simples, saturada de generosidade quase infantil e

aliada aos olhos límpidos e profundos de madona do lar, obscureceu-lhe o

cavalheirismo que, por vezes, aflorava no modo brusco das suas injustiças

e crueldades de homem da vida particular e da vida pública.

Avançando como tomado por força incoercível, exclamou

inopinadamente, fazendo-lhe sentir o perigo da posição em que se

colocara:

- Nobre Lívia - começou ele, na inquietação de seus impuros

pensamentos -, nunca mais olvidei aquela noite, cheia de músicas e de

estrelas, em que vos revelei pela primeira vez a ardência do meu coração

apaixonado... Esquecei, por um momento, esses judeus incompreensíveis

e ouvi, ainda uma vez, a palavra sincera dos profundos sentimentos que

me inspirastes com as vossas virtudes e peregrina beleza!.

- Senhor!... - teve forças para exclamar a pobre senhora, procurando

aliviar-se da afronta.

Mas, o governador, com a ousadia dos homens impetuosos, não

teve outro gesto senão o de obedecer aos seus caprichos impulsivos,

tomando-lhe as mãos, atrevidamente.

Lívia, todavia, movimentando todas as suas energias, alcançou

recursos para se desvencilhar dos seus braços longos e fortes,

redargüindo, intrépida:

- Para trás, senhor! Acaso será esse o tratamento de um homem de

Estado para com uma

155

HÁ DOIS MIL ANOS...

cidadã romana e esposa de um senador ilustre do Império? E, ainda que

me faltassem todos esses títulos, que me deveriam dignificar aos vossos

olhos cúpidos e desumanos, suponho que não deveríeis faltar, neste

momento, com o comezinho dever de cavalheirismo respeitoso, que

qualquer homem é obrigado a dispensar a uma mulher!

O governador estacou ante aquele gesto heróico e imprevisto, tão

habituado estava ele aos mais avançados processos de sedução.

A resistência daquela mulher espicaçava os desejos de vencer-lhe o

orgulho nobre e a virtude incorruptível.

Tinha ímpetos de se atirar àquela criatura delicada e frágil, no

turbilhão de lascívia e voluptuosidade que lhe obumbravam o raciocínio;

no entanto, força incoercível parecia impor-se aos seus caprichos

perigosos de apaixonado, inutilizando-lhe as forças necessárias à

execução de semelhante cometimento.

Neste comenos, a esposa do senador, lançando-lhe um olhar

doloroso onde se podia ler toda a. extensão do seu sofrimento e do seu

desprezo em face do ultraje recebido, retirou-se profundamente

emocionada, com o cérebro fervilhante dos mais desencontrados

pensamentos.

Antes, porém, que a vejamos sair do gabinete, somos obrigados a

retroceder alguns minutos, quando Fúlvia solicitou ao sobrinho de seu

marido o obséquio de uma palavra em particular, pondo-o ao corrente de

tudo o que se passava.

O senador experimentou um choque terrível no coração,

pressentindo que a prevaricação da mulher estava prestes a confirmar-se

diante dos seus próprios olhos, e, contudo, hesitou ainda acreditar em

semelhante vilania.

- Lívia, aqui? - perguntou soturnamente à esposa do tio, dando a

entender, pela inflexão da voz, que tudo não passava de criminosa calúnia.

156

ROMANCE DE EMMANUEL

- Sim - exclamou Fúlvia, ansiosa por fornecer-lhe a prova tangível de

suas asserções -, ela está em colóquio com o governador, no seu

compartimento privado, sem ajuizar da situação e das circunstâncias em

que se verifica tal encontro, porque, afinal, Cláudia ainda está nesta casa

e, perante a lei, minha irmã é a esposa legitima de Pilatos, mal habituado

com os costumes dissolutos da Corte, de onde foi enviado para cá em

virtude de sérios incidentes desta mesma natureza!

Públio Lentulus arregalou os olhos, na sua ingenuidade, dando

guarida aos mais horríveis sentimentos, intoxicando-se com o veneno da

mais acerba desconfiança, em vista de todas as circunstâncias operarem

contra sua mulher, embora jogasse ele no assunto com os mais vastos

cabedais da sua tolerância e liberalidade.

Sua atitude de expectativa revelava ainda o máximo de

incredulidade, com respeito às acusações que ouvira, mas, observando a

caluniadora o seu angustiado silêncio, acudiu ansiosa, exclamando:

- Senador, acompanhai-me através destas salas e vos entregarei a

chave do enigma, porquanto verificareis a leviandade de vossa esposa,

com os vossos próprios olhos.

- Desvairais? - perguntou ele, com serenidade terrível. - Um chefe de

família da nossa estirpe social, a menos que uma confiança mais forte lhe

outorgue esse direito, não deve conhecer as intimidades domésticas de

uma casa que não seja a sua própria.

Percebendo que o golpe falhara, voltou Fúlvia a exclamar com a

mesma firmeza:

- Está bem, já que não desejais fugir aos vossos princípios,

aproximemo-nos de uma dessas janelas. Daqui mesmo, podereis observar

a veracidade de minhas palavras, com a retirada de Lívia dos apartamentos

privados deste palácio.

E quase a tomar o interlocutor pelas mãos, tal o abatimento moral

que se apossara dele, a

157

HÁ DOIS MIL ANOS...

mulher do pretor aproximou-se do parapeito de uma janela próxima,

seguida pelo senador, que a acompanhava, cambaleante.

Não foram necessários outros argumentos que melhor o

convencessem.

Chegados ao local preferido de Fúlvia, como posto de observação,

em poucos segundos viram abrir-se a porta do gabinete indicado, ao

mesmo tempo que Lívia se retirava, nos seus disfarces galileus, deixando

transparecer na fisionomia os sinais evidentes da sua emoção, como se

quisesse fugir de situação que a acabrunhava penosamente.

Públio Lentulus sentiu a alma dilacerada para sempre. Considerou,

num relance, que havia perdido todos os patrimônios de nobreza social e

política, de envolta com as aspirações mais sagradas do seu coração.

Diante da atitude de sua mulher, considerada por ele como indelével

ignominia que lhe infamava o nome para sempre, supôs-se o mais

desventurado dos homens. Todos os seus sonhos estavam agora mortos,

e perdidas, terrivelmente, todas as esperanças. Para o homem, a mulher

escolhida representa a base sagrada de todas as realizações da sua

personalidade nos embates da vida, e ele experimentou que essa base lhe

fugia desequilibrando-lhe o cérebro e o coração.

Contudo, nesse turbilhão de fantasmas da sua imaginação

superexcitada, que escarneciam de suas mentirosas venturas, lobrigou o

vulto suave e doce dos filhinhos, que o fitavam silenciosos e comovidos.

Um deles vagava no desconhecido, mas a filha esperava-lhe o carinho

paternal e deveria ser, doravante, a razão da sua vida e a força de todas as

suas esperanças.

- Que dizeis, agora - exclamou Fúlvia, triunfante, arrancando-o do

seu doloroso silêncio.

- Vencestes! - respondeu secamente, com a voz embargada de

emoção.

E, dando à expressão fisionômica o máximo de energia, voltou ao

salão extenso, a passos pesados e

158

ROMANCE DE EMMANUEL

soturnos, despedindo-se heroicamente dos amigos, a pretexto de leve

enxaqueca.

- Senador, esperai um momento. O governador ainda não voltou dos

seus aposentos particulares - exclamou um dos patrícios presentes.

- Muito agradecido! - disse Públio, gravemente. Mas os prezados

amigos hão-de desculpar a insistência, apresentando minhas despedidas e

agradecimentos ao nosso generoso anfitrião.

E, sem mais delongas, mandou preparar a liteira que o conduziria de

regresso ao lar, pelas mãos fortes dos escravos, de modo a proporcionar

algum repouso ao coração supliciado por emoções dolorosas e

inesquecíveis.

Enquanto o senador se retira profundamente contrariado,

acompanhemos Lívia, de volta à praça, a fim de notificar aos dois amigos o

resultado improfícuo da sua tentativa.

Profundas amarguras lhe pungiam o coração.

Jamais pensara, na sua generosidade simples e confiante, que o

procurador da Judeia pudesse receber-lhe a súplica com tamanha

demonstração de indiferença e impiedade pela sua situação de mulher.

Procurou refazer-se daquelas emoções, em se aproximando de Ana

e do tio, porquanto lhe competia ocultar aquele desgosto no mais íntimo

do coração.

Junto de ambos os companheiros humildes, da mesma crença,

deixou expandir a sua angústia, exclamando pesarosa:

- Ana, infelizmente tudo está perdido! A sentença foi consumada e

não há mais nenhum recurso!... O profeta carinhoso de Nazaré nunca mais

voltará a Cafarnaum para nos levar as suas consolações brandas e

amigas!... A cruz de hoje será o prêmio, deste mundo, à sua bondade sem

limites!...

Todos os três tinham os olhos orvalhados de lágrimas.

159

HÁ DOIS MIL ANOS...

- Faça-se, então, a vontade do Pai que está nos céus - exclamou a

serva, prorrompendo em soluços.

- Filhas - disse, porém, o ancião de Samaria, com o olhar profundo e

límpido, fito no céu, onde fulguravam as irradiações do sol ardente -, o

Messias nunca nos ocultou a verdade dos seus sacrifícios, dos martírios

que o aguardavam nestes sítios, a fim de nos ensinar que o seu reino não

está neste mundo! Nas sombras da minha velhice, estou apto a reconhecer

a grande realidade das suas palavras, porque honras e vanglórias,

mocidade e fortuna, bem como as alegrias passageiras do plano terrestre,

de nada valem, pois tudo aqui vem a ser ilusão que desaparece nos

abismos da dor e do tempo... A única realidade tangível é a de nossa alma

a caminho desse reino maravilhoso, cuja beleza e cuja luz nos foram

trazidas por suas lições inesquecíveis e carinhosas...

- Mas - obtemperou Ana, entre lágrimas -nunca mais veremos a

Jesus de Nazaré, confortando-nos o coração!...

- Que dizes, filha - exclamou Simeão, com firmeza. - Não sabes,

então, que o Mestre afiançou que a sua presença consoladora é sempre

inalterável entre os que se reúnem e se reunirão, neste mundo, em seu

nome? Regressando, agora, a Samaria, erguerei uma cruz à porta da nossa

choupana e reunirei, ali, a comunidade dos crentes que desejarem

continuar as amorosas tradições do Messias.

E, depois de uma pausa em que parecia despertar sob o peso de

pungentes preocupações, acentuou:

- Mas, não temos tempo a perder... Sigamos para o Gólgota... Vamos

receber, ainda uma vez, as bênçãos de Jesus!

- Muito grato me seria acompanhá-los - retrucou Lívia,

impressionada -; entretanto, urge volte a casa, onde me esperam os

cuidados com a

160

ROMANCE DE EMMANUEL

filha. Sei que hão-de relevar minha ausência, porque a verdade é que

estou, em pensamento, junto à cruz do Mestre, meditando nos seus

martírios e inomináveis padecimentos... Meu coração acompanhará essa

agonia indescritível, e que o Pai dos céus nos conceda a força precisa

para suportarmos corajosamente o angustioso transe!...

- Ide, senhora, que os vossos deveres de esposa e mãe são também

mais que sagrados - exclamou Simeão, carinhosamente.

E enquanto o velho e a sobrinha se dirigiam para o Calvário,

escalando as vias públicas que demandavam a colina, Lívia regressava ao

lar, apressadamente, buscando os caminhos mais curtos, através das

vicias estreitas, de modo a voltar, quanto antes, não só pela circunstância

inesperada de sair à rua em trajes diferentes, compelida pelos imperativos

do momento, mas também porque inexplicável angústia lhe azorragava o

coração, fazendo-lhe experimentar uma necessidade mais forte de preces

e meditações.

Chegando ao lar, seu primeiro cuidado foi retomar a túnica habitual,

buscando um recanto mais silencioso dos seus apartamentos, para orar

com fervor ao Pai de infinita misericórdia.

Daí a minutos, ouviu os ruídos indicativos da volta do esposo, que,

notou, se recolhia ao gabinete particular, fechando a porta com estrépito.

Lembrou-se, então, que de sua casa era possível avistar ao longe os

movimentos do Gólgota, procurando um ângulo de janela, de onde

conseguisse contemplar os penosos sacrifícios do Mestre de Nazaré.

Bastou buscasse fazê-lo, para que enxergasse nas eminências do monte o

grande ajuntamento de povo, enquanto levantavam as três cruzes

famosas, daquele dia inesquecível.

A colina era estéril, sem beleza, e através da distância podiam seus

olhos lobrigar os caminhos poeirentos e a paisagem desolada e árida, sob

um sol causticante.

161

HÁ DOIS MIL ANOS...

Lívia orava com toda a intensidade emotiva do seu espírito,

dominada por angustiosos pensamentos.

À sua visão espiritual, surgiram ainda os quadros suaves e

encantadores do "mar" da Galileia, conhecendo que à memória lhe revinha

aquele crepúsculo inolvidável, quando, entre criaturas humildes e

sofredoras, aguardava o doce momento de ouvir a confortadora palavra do

Messias, pela primeira vez. Via ainda a tosca barca de Simão, encostandose

às flores mimosas das margens, enquanto a renda branca das espumas

lambia os seixos claros da praia... Jesus ali estava, junto da multidão dos

desesperados e desiludidos, com seus grandes olhos ternos e profundos...

Todavia, aquela cruz que se levantava, no monte da Caveira, trazialhe

o coração em amargosas cismas.

Depois de orar e meditar longamente, examinou de longe os três

madeiros, presumindo escutar o vozeio da multidão criminosa, que se

acotovelava junto à cruz do Mestre, em terríveis impropérios.

De repente, sentiu-se tocada por uma onda de consolações

indefiníveis. Figurava-se-lhe que o ar sufocante de Jerusalém se havia

povoado de vibrações melodiosas e intraduzíveis. Extasiada, observou, na

retina espiritual, que a grande cruz do Calvário estava cercada de luzes

numerosas.

Ao calor invulgar daquele dia, nuvens escuras se haviam

concentrado na atmosfera, prenunciando tempestade. Em poucos minutos,

toda a abóbada celeste permanecia represada de sombras espessas. No

entanto, naquele momento, Lívia notara que se havia rasgado um longo

caminho entre o Céu e a Terra, por onde desciam ao Gólgota legiões de

seres graciosos e alados. Concentrando-se, aos milhares, ao redor do

madeiro, pareciam transformar a cruz do Mestre em fonte de claridades

perenes e radiosas.

Atraída por aquele imenso foco de luz resplandecente, sentiu que

sua alma desligada do corpo

162

ROMANCE DE EMMANUEL

carnal se transportava ao cume do Calvário, a fim de prestar a Jesus o

último preito do seu devotamento. Sim! via, agora, o Messias de Nazaré

rodeado dos seus lúcidos mensageiros e das legiões poderosas de seus

anjos. Jamais supusera vê-lo tão divinizado e tão belo, de olhos voltados

para o firmamento, como em visão de gloriosas beatitudes.

Ela o contemplou, por sua vez, tocada de sua maravilhosa luz, alheia

a todos os rumores que a rodeavam, implorando-lhe fortaleza, resignação,

esperança e misericórdia.

Em dado instante, seu espírito sentiu-se banhado de consolação

indefinível. Como se estivesse empolgada pela maior emoção de sua vida.

notou que o Mestre desviara levemente o olhar, pousando-o nela, numa

onda de amor intraduzível e de luminosa ternura. Aqueles olhos serenos e

misericordiosos, nos tormentos extremos da agonia, pareciam dizer-lhe: -

"Filha, aguarda as claridades eternas do meu reino, porque, na Terra, é

assim que todos nós deveremos morrer!..."

Desejava responder às exortações suaves do Messias, mas seu

coração estava sufocado numa onda de radiosa espiritualidade. Todavia,

no íntimo, afirmou, como se estivesse falando para si mesma: - "Sim, é

desse modo que deveremos morrer!... Jesus, concedei-me alento,

resignação e esperança para cumprir os vossos ensinamentos, para

alcançar um dia o vosso reino de amor e de justiça!..."

Lágrimas copiosas banhavam-lhe o rosto, naquela visão beatífica e

maravilhosa.

Nesse momento, porém, a porta abriu-se com estrépito e a voz

soturna e desesperada do marido vibrou no ar abafado, despertando-a

bruscamente, arrancando-a de suas visões consoladoras.

- Lívia! - bradou ele, como se estivesse tocado por comoções

decisivas e desesperadas.

163

HÁ DOIS MIL ANOS...

Públio Lentulus, regressando ao lar, encaminhou-se imediatamente

ao gabinete, onde se deixou ficar por muito tempo, engolfado em atrozes

pensamentos. Depois de sentir o cérebro trabalhado pelas mais

antagônicas resoluções, lembrou-se de que deveria suplicar a piedade dos

deuses para os seus penosos transes. Dirigiu-se ao altar doméstico onde

repousavam os símbolos inanimados de suas divindades familiares, mas,

enquanto Lívia alcançara o precioso conforto, aceitando no coração os

ensinos de Jesus com o perdão, a humildade e a prática do bem, debalde o

senador procurou esclarecimento e consolo, elevando as suas orações

aos pés da estátua de Júpiter, impassível e orgulhoso. Debalde suplicou a

inspiração de suas divindades domésticas, porque esses deuses eram a

tradição corporificada do imperialismo da sua raça, tradição que se

constituía de vaidade e de orgulho, de egoísmo e de ambição.

Foi assim que, intoxicado pelo ciúme, procurou a esposa, sem mais

delongas, a fim de cuspir-lhe em rosto todo o desprezo da sua amargurada

desesperação.

Ao chamá-la, bruscamente, observou que seus olhos semicerrados

estavam cheios de lágrimas, como a contemplar alguma visão espiritual

inacessível à sua observação. Jamais Lívia lhe parecera tão espiritualizada

e tão bela, como naquele instante; mas o demônio da calúnia lhe fez sentir,

imediatamente, que aquele pranto nada representava senão sinal de

remorso e compunção ante a falta cometida, ciente, como deveria achar-se

a esposa, da sua presença no palácio governamental, depreendendo-se daí

que ela deveria esperar a possibilidade da sua severa punição.

Arrancada ao seu êxtase pela voz vibrante do marido, a pobre

senhora observou que a sua visão se desvanecera inteiramente, e que o

céu de Jerusalém fôra invadido por intensa escuridão, ouvindo-se os

ribombos formidáveis de trovões longí164

ROMANCE DE EMMANUEL

quos, enquanto relâmpagos terríveis riscavam a atmosfera em todas as

direções.

- Lívia - exclamou o senador, com voz forte e pausada, dando a

entender o esforço que despendia para dominar o complexo de suas

emoções -, as lágrimas de arrependimento são inúteis neste momento

doloroso dos nossos destinos, porque todos os laços de afetividade

comum, que nos uniam, estão agora rotos para sempre...

- Mas, que é isso? - pôde ela dizer, revelando o pavor que tais

palavras lhe produziam.

- Nem mais uma palavra - revidou o senador, pálido de cólera, dentro

de uma serenidade feroz e implacável -, observei, com os próprios olhos, o

seu nefando delito e agora conheço a finalidade dos seus disfarces

humildes de galileia... Ouvir-me-á a senhora até ao fim, eximindo-se de

qualquer justificativa, porque uma traição como a sua só poderá encontrar

justo castigo no silêncio profundo da morte.

Mas, não quero matá-la. Minha formação moral não se compadece

com o crime. Não porque haja piedade em minha alma, à vista do possível

arrependimento do seu coração, no tempo oportuno, mas porque tenho

ainda uma filha sobre cuja fronte recairia o meu gesto de crueldade contra

a sua felonia, que basta para nos tornar infelizes por toda a vida...

Homem honesto e pronto a desafrontar-me de qualquer ultraje, tenho

muito amor ao meu nome e ás tradições de minha família, de modo a me

não tornar um pai desnaturado e criminoso.

Poderia abandoná-la para sempre, na consideração do seu ato de

extrema deslealdade, porém os servos desta casa se alimentam

igualmente à minha mesa, e, sem reconhecer os outros títulos que me

ligavam à senhora, na intimidade doméstica, vejo ainda na sua pessoa a

mãe de meus filhos desventurados. É por isso que, doravante, desprezo,

em face das provas palpáveis da sua desonestidade,

165

HÁ DOIS MIL ANOS...

neste dia nefasto do meu destino, todas as expressões morais da sua

personalidade indigna, para conservar nesta casa, tão somente, a sua

expressão de maternidade, que me habituei a respeitar nos irracionais

mais humildes.

Os olhos súplices da caluniada deixavam entrever os indizíveis

martírios que lhe dilaceravam o coração carinhoso e sensibilíssimo.

Ajoelhara-se aos pés do esposo, com humildade, enquanto lágrimas

dolorosas lhe rolavam das faces pálidas.

Lembrava-se Lívia, então, de Jesus nos seus intraduzíveis

padecimentos. Sim... ela recordava as suas palavras e estava pronta para o

sacrifício. No meio de suas dores, parecia sentir ainda o gosto daquele pão

de vida, abençoado por suas divinas mãos, e figurava-se lavada de todas

as mundanas preocupações. A idéia do reino dos céus, onde todos os

aflitos são consolados, anestesiava-lhe o coração dolorido, nas suas

primeiras reflexões a respeito da calúnia de que era vítima o seu espírito

fustigado pelas provas aspérrimas.

Não obstante essa atitude de serena humildade, o senador

continuou no auge da angústia moral:

- Dei-lhe tudo que possuía de mais puro e mais sagrado neste

mundo, na esperança de que correspondesse aos meus ideais mais

sublimes; entretanto, relegando todos os deveres que lhe competiam, não

vacilou em derramar sobre nós um punhado de lama... Preferiu, ao

convívio do meu coração, os costumes dissolutos desta época de

criaturas irresponsáveis, no capítulo da família, resvalando para o

desfiladeiro que conduz a mulher aos abismos do crime e da impiedade.

Mas ouça bem minhas palavras que assinalam os mais terríveis

desgostos do meu coração!

Nunca mais se afastará dos labores domésticos, das obrigações

diárias de minha casa. Mais um ato, com que provoque as derradeiras

reservas

166

ROMANCE DE EMMANUEL

da minha tolerância, não deverá esperar outra providência que não seja a

morte.

Não me solicite as mãos honestas para um ato de tal natureza. Se as

tradições familiares desapareceram no âmago do seu espírito, continuam

elas cada vez mais vivas em minhalma, que as deseja cultivar

incessantemente no santuário de minhas recordações mais queridas. Viva

com o seu pensamento na ignomínia, mas abstenha-se de zombar

publicamente dos meus sentimentos mais sagrados, mesmo porque, a

paciência e a liberdade também têm os seus limites.

Saberei ressurgir desta queda em que as suas leviandades me

atiraram!...

De ora em diante, a senhora será nesta casa apenas uma serva,

considerando a função maternal que hoje a exime da morte; mas, não

intervenha na solução de qualquer problema educativo de minha filha.

Saberei conduzi-la sem o seu concurso e buscarei o filhinho perdido talvez

pela sua inconsciência criminosa, até o fim de meus dias. Concentrarei

nos filhos a parcela imensa de amor que lhe reservara, dentro da

generosidade da minha confiança, porquanto, doravante, não me deve

procurar com a intimidade da esposa, que não soube ser, pela sua

injustificável deslealdade, mas com o respeito que uma escrava deve aos

seus senhores!...

Enquanto se verificava uma ligeira pausa na palavra acrimoniosa e

amargurada do senador, Lívia dirigiu-lhe um olhar de angustia suprema.

Desejava falar-lhe como dantes, entregando-lhe o coração sensível e

carinhoso; todavia, conhecendo-lhe o temperamento impulsivo, adivinhou

a inutilidade de qualquer tentativa para justificar-se.

Passadas as primeiras reflexões e ouvindo, amargurada de dor,

aquela terrível insinuação acerca do desaparecimento do filhinho, deixou

vagar no coração vacilações injustificáveis e numerosas. Ante aquelas

calúnias que a faziam tão desditosa, chegava a pensar se as boas ações

não seriam vistas

167

HÁ DOIS MIL ANOS...

por aquele Pai de infinita bondade, que ela acreditava velar, dos céus, por

todos sofredores, de conformidade com as promessas sublimes do

Messias Nazareno. Não guardara ela uma conduta nobre e exemplar, como

mãe dedicada e esposa carinhosa? Todo o seu coração não estava posto

em tributos de esperança e de fé naquele reino de soberana justiça, que se

localizava fora da vida material? Além disso, sua ida precipitada a Pilatos,

sem a audiência prévia do marido, fôra tão somente com o elevado

propósito de salvar a Jesus de Nazaré da morte infamante. Onde o socorro

sobrenatural que não chegava para esclarecer a penosa situação dela e

mostrar tal injustiça?

Lágrimas angustiosas enevoavam-lhe os olhos cansados e abatidos.

Mas antes que o marido recomeçasse as acusações, viu-se de novo

defronte da cruz, em pensamento.

Uma brisa suave parecia amenizar as úlceras que o libelo do esposo

lhe abrira no coração. Uma voz, que lhe falava aos refolhos mais íntimos

da consciência, lembrou-lhe ao espírito sensível que o Mestre de Nazaré

também era inocente e expirara, naquele dia, na cruz, sob os insultos de

algozes impiedosos. E ele era justo, bom e compassivo. Daqueles a quem

mais havia amado, recebera a traição e o abandono na hora extrema do

testemunho e, de quantos havia servido com a sua caridade e o seu amor,

tinha recebido os espinhos envenenados da mais acerba ingratidão. Ante a

visão dos seus martírios infinitos, Lívia consolidou a sua fé e rogou ao Pai

Celestial lhe concedesse a intrepidez necessária para vencer as provações

aspérrimas da vida.

Suas meditações angustiosas haviam durado um momento. Um

minuto apenas, após o qual, continuou Públio Lentulus com voz

desesperada:

- Aguardarei mais dois dias, nas pesquisas de meu filhinho

desventurado! Decorridas estas poucas

168

ROMANCE DE EMMANUEL

horas, voltarei a Cafarnaum para afrontar a passagem do tempo. . Ficarei

neste cenário maldito, enquanto for necessário e, quanto à senhora,

recolha-se doravante em sua própria indignidade, porque, com o mesmo

ímpeto generoso com que lhe poupo a existência neste momento, não

vacilarei em lhe infligir a derradeira punição no momento oportuno!...

E, abrindo a porta de saída, que estremecera aos ribombos do

trovão, exclamou com terrível acento:

- Lívia, este momento doloroso assinala a perpétua separação dos

nossos destinos. Não ouse transpor a fronteira que nos isola um do outro,

para sempre, no mesmo lar e dentro da mesma vida, porque um gesto

desses pode significar a sua inapelável sentença de morte.

Atrás dele, fechara-se a porta com estrépito, abafado pelos rumores

da tempestade.

Jerusalém estava sob um verdadeiro ciclone de destruição, que ia

deixar, após sua passagem, sinal de ruína, desolação e morte.

Ficando só, Lívia chorou amargamente.

Enquanto a atmosfera se lavava com a chuva torrencial que descia a

cântaros no fragor das trovoadas, também a sua alma se despia das

ilusões amargas e purificadoras.

Sim... estava só e profundamente desventurada.

Doravante, não poderia contar com o amparo do marido, nem com o

afeto suave da filhinha, mas um anjo de serenidade velava à sua cabeceira,

com a doçura das sentinelas que nunca se afastam do seu posto de amor,

de redenção e de piedade. E foi esse Espírito luminoso que, fazendo

gotejar o bálsamo de esperança no cálice do seu coração angustiado, deulhe

a sentir que ainda possuía muito: - o tesouro da fé, que a unia a Jesus,

ao Messias da renúncia e da salvação, a esperá-la em seu reino de luz e de

misericórdia.

169

X

O Apóstolo da Samaria

No dia seguinte, Públio Lentulus incentivou as pesquisas do

filhinho, entre quantos peregrinavam nas festas da Páscoa, em Jerusalém,

instituindo o prêmio de um Grande Sestércio (1), ou sejam dois mil e

quinhentos asses, para quem apresentasse aos seus servos a criança

desaparecida.

Não devemos esquecer que a criada Sêmele, bem como suas

companheiras de serviço foram submetidas ao mais rigoroso inquérito,

por ocasião do castigo aos servos imprevidentes, encarregados da

vigilância noturna em casa do senador.

Públio não admitia castigos físicos às mulheres, mas, no caso

misterioso do desaparecimento do filhinho, submeteu as criadas a um

interrogatório francamente impiedoso.

Inútil declarar que Sêmele protestara a mais absoluta inocência,

nada deixando transparecer que pudesse comprometer sua conduta.

Entretanto, as três servas que mais diretamente cuidavam do

pequeno, entre as quais estava

__________

(1) Mil sestércios.

170

ROMANCE DE EMMANUEL

ela incluída, foram obrigadas a colaborar com os escravos na procura de

Marcus, pelas praças e ruas de Jerusalém, embora tivessem suas horas

diárias consagradas ao descanso. Essas horas, aproveitava-as Sêmele

para visitar ou rever relações amigas, passando a maior parte do tempo no

sítio onde André cultivava as suas oliveiras e vinhedos frondosos, a pouca

distância da estrada para os centros principais.

Nesse dia, vamos encontrá-la ai em animada palestra com o raptor e

sua mulher, enquanto a criança dormitava ao canto de um compartimento.

- Com quê então, o senador instituiu o prêmio de um Grande

Sestércio a quem lhe devolva a criancinha? - pergunta André de Gioras,

admirado.

- É verdade - exclamou Sêmele, pensativa. E, na realidade, trata-se

de grande soma em dinheiro romano, que facilmente ninguém ganhará

neste mundo.

- Se não fosse o meu justo e ardente desejo de vingança - replicou o

raptor com o seu malicioso sorriso -, era o caso de irmos abocanhar essa

respeitável quantia. Mas, deixa estar que não precisamos de semelhante

dinheiro. Nada necessitamos desses malditos patrícios!

Sêmele escutava-o indiferente e quase completamente alheia à

conversa; entretanto, o interlocutor não perdia de vista as características

fisionômicas de sua cúmplice, como se tentasse descobrir no seu modo

simples e humilde algum pensamento reservado.

Foi assim que, no intuito de lhe sondar a atitude psicológica, disse

em tom aparentemente calmo e despreocupado, como a inquirir dos seus

propósitos mais secretos:

- Sêmele, quais são as últimas noticias de Benjamim?

- Ora, Benjamim - respondeu ela, aludindo ao noivo - ainda não se

resolveu a marcar o casa171

HÁ DOIS MIL ANOS...

mento, em definitivo, atento às nossas inúmeras dificuldades.

Como não ignora, todo o meu desejo no trabalho se resume na

consecução do nosso ideal de adquirir aquela casinha de Betânia, já sua

conhecida, e tão logo venhamos a conseguir nosso intento estaremos

unidos para sempre.

- Ainda bem - disse André, com a atitude psicológica de quem

encontrara a chave de um enigma -, com tempo haverão de conseguir todo

o necessário à ventura de ambos. Da minha parte, pode ficar descansada,

porque tudo farei por auxiliá-la paternalmente.

- Muito grata! - exclamou a moça, reconhecida. - Agora há-de permitir

que volte ao trabalho, porque as horas parecem adiantadas.

- Ainda não - falou André resolutamente -, espere um momento.

Quero dar-lhe a provar do nosso vinho velho, aberto hoje somente para

comemorar a circunstância feliz de nos acharmos com vida, depois do

medonho temporal de ontem!

E, correndo ao interior, penetrou na adega, onde tomou de uma bilha

de vinho espumante e claro, deitando-o, com fartura, numa taça antiga. Em

seguida, foi a um quarto contíguo, de onde trouxe um tubo pequenino,

deixando cair na taça algumas gotas do conteúdo, monologando baixinho:

- Ah! Sêmele, bem poderias viver, se não surgisse esse prêmio

maldito, que te condena à morte!... Benjamim... o casamento é uma

situação de amargurosa pobreza. - Uma soma de mil sestércios constitui

tentação a que não poderia resistir o espírito mais bem intencionado e

mais puro... Enquanto foram as aperturas e outros castigos, estava certo,

mas agora é o dinheiro e o dinheiro costuma condenar as criaturas

humanas à morte!...

E, misturando o tóxico violento no vinho que espumava, continuou

resmungando:

172

ROMANCE DE EMMANUEL

- Daqui a seis horas minha pobre amiga estará penetrando o reino

das sombras... Que fazer? Nada me resta senão desejar-lhe boa viagem! E

nunca mais alguém saberá, neste mundo, que em minha casa existe um

escravo com o sangue nobre dos aristocratas do Império Romano!...

Em dois minutos a desventurada serva do senador ingeria satisfeita

o conteúdo da taça, agradecendo a sinistra gentileza com palavras

comovidas.

Da porta de sua vivenda empedrada, observou André os passos

derradeiros da sua cúmplice, nas derradeiras curvas do caminho.

Ninguém mais pleitearia o Grande Sestércio oferecido pela

desesperação de Lentulus, porque, precisamente à noitinha, quase às

dezenove horas, Sêmele experimentou uma sensação de súbito mal-estar,

recolhendo-se ao leito imediatamente.

Suores abundantes e frios lavaram-lhe as faces já descoradas, onde

se notava o palor característico da morte.

Ana, que já havia regressado, compungida, aos afazeres

domésticos, foi chamada à pressa, a fim de ministrar-lhe os socorros

precisos, encontrando-a, porém, no auge da aflição que assinala os

moribundos prestes a se desvencilharem do cárcere da matéria.

- Ana... - exclamou a agonizante, com voz sumida -, eu morro... mas

tenho a... consciência... pesada... intranqüila...

- Sêmele, que é isso? - replicou a outra, fundamente comovida.

Confiemos em Deus, nosso Pai Celestial, e confiemos em Jesus, que ainda

ontem nos contemplava da cruz dos seus sofrimentos, com um olhar de

infinita piedade!

- Sinto... que é... tarde... - murmurou a agonizante, nas ânsias da

morte -, eu... apenas... queria... um perdão...

Todavia, a voz entrecortada e rouca não pôde continuar. Um soluço

mais forte abafara as últi173

HÁ DOIS MIL ANOS...

mas palavras, enquanto o rosto se cobria de tons violáceos, como se o

coração houvesse parado instantaneamente, estringido por incontrastável

força.

Ana compreendeu que era o fim e suplicou a Jesus recebesse em

seu reino misericordioso a alma da companheira, perdoando-lhe as faltas

graves que, por certo, haviam dado motivo às palavras angustiosas dos

últimos momentos.

Chamado um médico ao exame cadavérico, verificou, no empirismo

da sua ciência, que Sêmele expirara por deficiência do sistema cardíaco e,

longe de se descobrir a verdadeira causa daquele fato inesperado, o

segredo de André de Gioras se envolvia nas sombras espessas do túmulo.

Ana e Lívia tiveram ensejo de trocar impressões sobre o doloroso

acontecimento, mas ambas, embora a funda impressão que lhes causavam

as derradeiras palavras da morta, encaravam a sua passagem para a outra

vida, na conta dessas fatalidades irremediáveis.

Públio Lentulus, em seguida a esse fato, apressou o regresso à

vivenda de Cafarnaum, que adquirira ao antigo dono, em caráter definitivo,

prevendo a possibilidade de longa permanência em tais lugares. O

regresso foi triste, jornada trabalhosa e sem esperanças.

Os servos numerosos não chegaram a perceber a profunda

divergência agora existente entre ele e a esposa, e foi assim que,

verdadeiramente separados pelo coração, continuaram no lar a mesma

tradição de respeito perante os subordinados.

Depois de alguns dias de sua segunda instalação na cidade

próspera e alegre onde Jesus tantas vezes fizera soar doces e divinas

palavras, o senador preparou copioso expediente para o amigo FIamínio,

bem como para outros elementos do Senado, enviando Comênio a Roma,

como portador de sua inteira confiança.

Odiando a Palestina, que tantas e tão amargas provações lhe

reservara, mas preso a ela pelo desa174

ROMANCE DE EMMANUEL

parecimento misterioso do pequenino Marcus, o senador solicitava a

Flamínio a sua intervenção particular para que seu tio Sálvio regressasse à

sede dos seus serviços na Capital do Império, tentando livrar-se da

presença de Fúlvia naqueles lugares, porquanto lhe dizia o coração, na

intimidade do pensamento, que aquela mulher tinha uma influência nefasta

no seu destino e no de sua família. Ao mesmo tempo, saturado de terrível

aversão pela personalidade de Pôncio Pilatos, punha o amigo distante a

par de numerosos escândalos administrativos que ele, após o incidente da

Páscoa, resolvera corrigir com o máximo de severidade. Prometia, então, a

Flamínio Severus, conhecer mais de perto as necessidades da província, a

fim de que as autoridades romanas ficassem cientes de graves

ocorrências na administração, de modo que, em tempo oportuno, fosse o

governador removido para outro setor do Império, e prometendo

relacionar, sem demora, todas as injustiças da atuação de Pilatos na vida

pública, em vista das reclamações reiteradas e consecutivas que lhe

chegavam aos ouvidos, de todos os recantos da província.

Nessas cartas particulares pedia ainda, ao amigo, as providências

precisas, a fim de que lhe fosse enviado um professor para a filhinha,

abatendo-se, contudo, de referir-se aos dolorosos dramas da vida privada,

com exceção do caso do filhinho, por ele citado nesses documentos como

causa única da sua demora indefinita, em tais lugares.

Comênio partiu de Jope, com o máximo de precaução, obedecendo

rigorosamente às suas ordens e atingindo Roma daí a algum tempo, onde

faria chegar aquelas notícias às mãos dos seus legítimos destinatários.

Em Cafarnaum, a vida corria triste e silenciosa.

Públio apegara-se ao seu arquivo volumoso, aos seus processos,

aos seus estudos e às suas

175

HÁ DOIS MIL ANOS...

meditações, preparando os planos educativos da filha ou organizando

projetos concernentes às suas atividades futuras, fazendo o possível para

reerguer-se do abatimento moral em que mergulhara com os dolorosos

sucessos de Jerusalém.

Quanto a Lívia, esta, conhecendo a inflexibilidade do caráter

orgulhoso do marido, e sabendo que todas as circunstâncias aparentavam

a sua culpa, encontrara na alma dedicada da serva uma confidente

extremosa no afeto, vivendo quase permanentemente mergulhada em

orações sucessivas e fervorosas. Os sofrimentos experimentados

patentearam-se-lhe no rosto, revelando profundos vestígios nos sulcos da

face descorada. Os olhos, todavia, demonstrando a têmpera e o vigor da

fé, clareavam-lhe as expressões fisionômicas de brilho singular, apesar do

seu visível abatimento.

Em Cafarnaum, os seguidores do Mestre de Nazaré organizaram

imediatamente uma grande comunidade de crentes do Messias, tornandose

muitos em apóstolos abnegados de sua doutrina de renúncia, de

sacrifício e de redenção. Alguns pregavam, como Ele, na praça pública,

enquanto outros curavam os enfermos em seu nome. Criaturas rústicas

haviam sido tomadas, estranhamente, do mais alto sopro de inteligência e

inspiração celeste, porque ensinavam com a maior clareza as tradições de

Jesus, organizando-se com a palavra desses apóstolos os pródromos do

Evangelho escrito, que ficaria mais tarde no mundo como a mensagem do

Salvador da Terra a todas as raças, povos e nações do planeta, qual

luminoso roteiro das almas para o Céu.

Todos quantos se convertiam à idéia nova, confessavam na praça

pública os erros da sua vida, em sinal da humildade que lhes era exigida,

portas a dentro da comunidade cristã. E para que o meigo profeta de

Nazaré jamais fosse esquecido em seus martírios redentores no Calvário,

o povo

176

ROMANCE DE EMMANUEL

simples e humilde, de então, organizou o culto da cruz, crendo fosse essa

a melhor homenagem à memória de Jesus Nazareno.

Lívia e Ana, no seu profundo amor ao Messias, não escaparam a

essa adesão natural às tradições populares. A cruz era objeto de toda a

sua veneração e absoluto respeito, não obstante representar. naquele

tempo, o instrumento de punição para todos os criminosos e celerados.

Ana continuou a freqüentar as margens do lago, onde alguns

apóstolos do Senhor prosseguiam cultivando as suas lições divinas, junto

dos sofredores deserdados da sorte. E era comum verem-se esses antigos

companheiros e ouvintes do Messias, como pegureiros humildes,

atravessando estradas agrestes, no mais absoluto desconforto, a fim de

levarem a todos os homens as palavras consoladoras da Boa Nova. Tipos

impressionantes de homens simples e abnegados percorriam os mais

longos e escabrosos caminhos, de vestes rotas e calçando alpercatas

grosseiras, pregando, porém, com perfeição e sentimento, as verdades de

Jesus, como se as suas frontes humildes estivessem tocadas da graça

divina. Para muitos deles, o mundo não passava da Judeia ou da Síria;

mas a realidade é que as suas palavras desassombradas e serenas iam

permanecer no mundo para todos os séculos.

Mais de um mês decorrera sobre a Páscoa de 33, quando o senador,

por uma tarde formosa e quente da Galileia, se aproximou da esposa para

lhe dizer dos seus novos propósitos:

- Lívia - começou ele, reservado -, tenho a comunicar-lhe que

pretendo viajar algum tempo, afastando-me desta casa talvez por dois

meses, em cumprimento dos meus deveres de emissário do Imperador, em

condições especiais nesta província.

Como esta viagem se verificará através de pontos numerosos,

porquanto tenciono estacionar um pouco em todas as cidades do

itinerário, até Jerusalém, não me é possível levá-la em minha

177

HÁ DOIS MIL ANOS...

companhia, deixando-a, neste caso, como guardiã de minha filha.

Como sabe, nada mais existe entre nós que lhe outorgue o direito de

conhecer minhas preocupações mais íntimas; todavia, renovo minhas

palavras do dia fatal do nosso rompimento afetivo. Conservada nesta casa,

apenas pela sua tarefa maternal, confio-lhe durante minha ausência a

guarda de Flávia, até que chegue de Roma o velho professor que pedi a

Flamínio.

Desejo firmemente acredite na confiança que deponho no seu

propósito de regeneração, como mãe de família, e que procure

restabelecer sua idoneidade que, outrora, não lhe negaria em tais

circunstâncias, e espero, assim, se abstenha de qualquer ato indigno, que

venha a perder minha pobre filha para sempre.

- Públio!... - pode ainda exclamar a esposa do senador, aflitamente,

tentando aproveitar aquele rápido minuto de serenidade do marido, a fim

de se defender das calúnias que lhe eram assacadas pelas mais

complicadas circunstâncias; mas, afastando-se repentinamente, fechado

na sua severidade orgulhosa, o senador não lhe deu tempo de continuar,

integrando-a, cada vez mais, no conhecimento da sua amargurada

situação dentro do lar.

Passada uma semana, partia ele para a sua viagem aventurosa.

Animavam-no, acima de tudo, o desejo de aliviar o coração de tantos

pesares, a tentativa da procura do filhinho desaparecido e o objetivo de

catalogar os erros e injustiças da administração de Pilatos, de modo a

alijá-lo dos poderes públicos na Palestina, em tempo oportuno.

Na sua resolução, todavia, pairava um erro grave, cujas

conseqüências dolorosas não conseguira ou não pudera prever no seu

íntimo atribulado. A circunstância de deixar esposa e filha expostas aos

perigos de uma região, onde eram

178

ROMANCE DE EMMANUEL

consideradas como intrusas, devia ser examinada mais detidamente pela

sua visão de homem prático Além disso, ele não podia contar, nessa

ausência, com a dedicação vigilante de Comênio, em viagem com destino

a Roma, onde o conduziam as determinações do patrão e leal amigo.

Todas essas preocupações andavam no espírito de Lívia, dotada,

como mulher, de sentimento mais apurado e mais justo, no plano das

conjeturas e previsões.

Foi assim, de alma aflita, que viu partir o marido, embora houvesse

ele recomendado a numerosos servos o máximo de vigilância nos

trabalhos da casa, junto aos seus familiares.

Festividades solenes foram determinadas por Herodes, em

Tiberíades, previamente avisado pelo senador, a respeito de sua visita

pessoal àquela cidade, que representava a primeira etapa da sua longa

excursão. Todas as localidades de maior destaque constavam como

pontos de parada da caravana, recebendo Públio, em todas elas, as mais

expressivas homenagens das administrações e contingentes de escolta e

servos inúmeros, que lhe auxiliavam os serviços, naquela demorada

excursão através das unidades políticas de menor importância, na

Palestina.

Devemos consignar, porém, que Sulpício Tarquinius se encontrava

justamente em missão junto de Ântipas, quando da festiva chegada de

Públio Lentulus à grande cidade da Galileia. Procurou, todavia, não se

fazer notado pelo senador, regressando no mesmo dia a Jerusalém, onde

vamos encontrá-lo em conferência íntima com o governador, nestes

termos:

- Sabeis que o senador Lentulus - dizia Sulpício, com o prazer de

quem dá uma notícia desejada e interessante - dispôs-se a efetuar longa

viagem por toda a província?

- Quê? - fez Pilatos grandemente surpreendido.

179

HÁ DOIS MIL ANOS...

- Pois é verdade. Deixei-o em Tiberíades, de onde se dirigirá para

Sebaste em breves dias, crendo mesmo, segundo o programa da viagem,

que pude conhecer graças ao concurso de um amigo, que não voltará a

Cafarnaum nestes quarenta dias.

- Que intuito terá o senador com viagem tão incômoda e sem

atrativo? Alguma determinação secreta da sede do Império? - inquiriu

Pilatos, receoso de alguma punição aos seus atos injustos na

administração política da província.

Mas, após alguns segundos de meditação, como se o homem

privado sobrepujasse as cogitações do homem público, perguntou ao

lictor, com interesse:

- E a esposa? Não o acompanhou? Teria o senador a coragem de

deixá-la só, entregue às surpresas deste pais, onde se aninham tantos

malfeitores?

- Reconhecendo que teríeis interesse em tais informes - tornou

Sulpício, com fingida dedicação e satisfeita malícia -, busquei inteirar-me

do assunto com um amigo que segue o viajante, como elemento de sua

guarda pessoal, vindo a saber que a senhora Lívia ficou em Cafarnaum, na

companhia da filha, e ali aguardará o regresso do esposo.

- Sulpício - exclamou Pilatos, pensativo -, suponho não ignoras

minha simpatia pela adorável criatura a que nos referimos...

- Bem o sei, mesmo porque, fui eu próprio, como deveis estar

lembrado, que a introduzi no vosso gabinete particular, não há muito

tempo.

- É verdade!

- Porque não aproveitais este ensejo para uma visita pessoal a

Cafarnaum? - perguntou o lictor, com segundas intenções, mas sem ferir

diretamente o melindroso assunto.

- Por Júpiter! - redargüiu Pilatos, satisfeito. - Tenho um convite de

Cusa e outros funcionários graduados de Ântipas, naquela cidade, que me

autoriza a pensar nisso. Mas, a que vem a tua sugestão neste sentido?

180

ROMANCE DE EMMANUEL

- Senhor - exclamou Sulpício Tarquinius, com hipócrita modéstia -,

antes de tudo, trata-se da vossa alegria pessoal com a realização desse

projeto e, depois, tenho igualmente grande simpatia por uma jovem serva

da casa, de nome Ana. cuja beleza admirável e simples é das mais

sedutoras que hei visto nas mulheres nascidas em Samaria.

- Que é isso? Nunca te observei apaixonado. Acho que já passaste a

época dos arrebatamentos da mocidade. Em todo caso, isso quer dizer que

não me encontro sozinho na satisfação que me traz a idéia dessa viagem

imprevista - replicou Pilatos, com visível bom humor.

E, como se naquele mesmo instante houvesse elaborado todos os

detalhes do seu plano, exclamou para o lictor, que o ouvia entre satisfeito

e envaidecido:

- Sulpício, ficarás aqui em Jerusalém apenas o tempo preciso ao teu

descanso ligeiro e imediato, regressando, depois de amanhã, para a

Galileia, onde irás diretamente a Cafarnaum avisar Cusa dos meus

propósitos de visitar a cidade e, feito isso, irás até à residência do senador

Lentulus, onde avisarás sua esposa da minha decisão, em tom discreto,

cientificando-a do dia previsto para a minha partida e chegada até lá.

Espero que, com a atitude inconsiderada do marido, deixando-a tão só em

tais regiões, venha ela pessoalmente a Cafarnaum encontrar-se comigo, de

modo a distrair-se da companhia dos galileus grosseiros e ignorantes, e

recordar por algumas horas os seus dias felizes da Corte, junto de minha

conversação e de minha amizade.

- Muito bem - redargüiu o lictor, não cabendo em si de contente. -

Vossas ordens serão rigorosamente cumpridas.

Sulpício Tarquinius saiu alegre e confortado nos seus sentimentos

inferiores, antegozando o instante em que se aproximaria novamente da

jovem samaritana, que despertara a cobiça dos seus sentidos materiais,

cobiça que não tivera tempo de

181

HÁ DOIS MIL ANOS...

manifestar quando da sua permanência no serviço pessoal de Públio

Lentulus.

Cumprindo as determinações recebidas, vamos encontrá-lo daí a

quatro dias em Cafarnaum, onde os avisos do governador foram recebidos

com grande contentamento por parte das autoridades políticas.

O mesmo, porém, não aconteceu na residência de Públio, onde sua

presença foi recebida com reservas pelos empregados e escravos da casa.

Ao seu chamado, apresentou-se-lhe Maximus, substituto de Comênio na

chefia dos serviços usuais, mas que estava longe de possuir a sua energia

e experiência.

Atendido, solicitamente, pelo antigo servo, que era seu conhecido

pessoal, solicitou-lhe o lictor a presença de Ana, de quem dizia ele precisar

de uma entrevista pessoal para a solução de determinado assunto.

O velho criado de Lentulus não hesitou em chamá-la à presença de

Sulpício, que a envolveu de olhares cúpidos e ardentes.

A criada perguntou-lhe, entre intrigada e respeitosa, a razão da visita

inesperada, ao que Tarquinius esclareceu tratar-se da necessidade de se

avistar, por um momento, com Lívia, em particular, tentando ao mesmo

tempo colocar a pobre moça ao corrente de suas pretensões

inconfessáveis, dirigindo-lhe as propostas mais indignas e insolentes.

Após alguns minutos, em que se fazia ouvir nas suas expressões

insultuosas, em voz abafada, que Ana escutava extremamente pálida, com

o máximo de cuidado e paciência para evitar qualquer nota escandalosa a

seu respeito, respondeu a digna serva com voz austera e valorosa:

- Senhor lictor, chamarei minha senhora para atender-vos, dentro de

poucos instantes. Quanto a mim, devo afirmar-vos que estais enganado,

porquanto não sou a pessoa que supondes.

182

ROMANCE DE EMMANUEL

E, encaminhando-se resolutamente para o Interior, cientificou a

senhora do persistente propósito de Sulpício em lhe falar pessoalmente,

surpreendendo-se Lívia não só com o acontecimento inesperado, senão

também com a expressão fisionômica da serva, presa da mais extrema

palidez, depois do choque sofrido. Ana tratou de não a inteirar de pronto,

do sucedido, enquanto murmurava:

- Senhora, o lictor Sulpício parece apressado. Presumo que não

tendes tempo a perder.

Todavia, sem se deixar empolgar pelas circunstâncias, Lívia buscou

atender ao mensageiro com o máximo de sua habitual atenção.

Ante a sua presença, inclinou-se o lictor com profunda reverência,

dirigindo-se-lhe respeitoso, no cumprimento dos deveres que o traziam:

- Senhora, venho da parte do Senhor Procurador da Judeia, que tem

a honra de vos comunicar a sua vinda a Cafarnaum nos primeiros dias da

próxima semana...

Os olhos de Lívia brilharam de justificada indignação, enquanto

inúmeras conjeturas lhe assaltaram o espírito; movimentando, porém, as

suas energias, teve a precisa coragem para responder à altura das

circunstâncias:

- Senhor lictor, agradeço a gentileza de vossas palavras; todavia,

cumpre-me esclarecer que meu marido se encontra em viagem, neste

momento, e a nossa casa a ninguém recebe na sua ausência.

E, com leve sinal, fez-lhe sentir que era tempo de se retirar, o que

Sulpício compreendeu, intimamente encolerizado. Despediu-se com

reverências respeitosas.

Surpreendido com aquela atitude, porquanto ao espírito do lictor a

prevaricação de Lívia representava um fato inconteste, retirou-se

sumamente desapontado, mas não sem conjeturar os acontecimentos na

sua depravada malícia.

183

HÁ DOIS MIL ANOS...

Foi assim que, encontrando-se com um dos soldados de guarda à

residência, seu conhecido e amigo pessoal, observou-lhe com fingido

interesse:

- Otávio, antes de uma semana talvez aqui esteja de volta e desejaria

encontrar de novo, nesta casa, a jóia rara de minha felicidade e de minhas

esperanças...

- Que jóia é essa? - perguntou, curioso, o interpelado.

- Ana...

- Está bem. Fácil é o trabalho que me pedes.

- Mas, ouve-me bem - exclamou o lictor, pressentindo, já, que a

presa tudo faria por fugir-lhe das mãos. - Ana costuma ausentar-se

freqüentemente e, caso isso se verifique, espero que a tua amizade não me

falte com os informes necessários, no instante oportuno...

- Pode contar com a minha dedicação.

Acabando de ouvir o pormenor mais importante desse diálogo,

voltemos ao interior, onde Lívia, de alma opressa, confia à serva amiga e

devotada as conjeturas dolorosas que lhe pesavam no coração. Depois de

externar-lhe os seus justificados temores, plenamente admitidos por Ana

que, por sua vez, a colocou ao corrente das insolências de Sulpício, a

pobre senhora desfiou à sua confidente, simples e generosa, o rosário

infindo de suas amarguras, relatando-lhe todos os sofrimentos que lhe

dilaceravam a alma carinhosa e sensibilíssima, desde o primeiro dia em

que a calúnia encontrara guarida no espírito orgulhoso do companheiro.

As lágrimas da serva, ante a singular narrativa, eram bem o reflexo da sua

alta compreensão das angústias da senhora, perdida naqueles rincões

quase selvagens, considerando-se a sua educação e a nobreza de sua

origem.

Ao finalizar o penoso relato de suas desditas, a nobre Lívia acentuou

com indisfarçável amargura:

184

ROMANCE DE EMMANUEL

- Na verdade, tudo tenho feito por evitar os escândalos injustificáveis

e incompreensíveis. Agora, porém, sinto que a situação se agrava cada vez

mais, à vista da insistência dos meus algozes e da displicência de meu

marido em face dos acontecimentos, perdendo-se o meu espírito em

conjeturas amargas e dolorosas.

Se mando chamá-lo por um mensageiro, pondo-o ao corrente do que

se passa, a fim de que nos proteja com as suas providências imediatas,

talvez não compreenda a marcha dos fatos na sua intimidade, encarando

os meus receios como sintoma de culpas anteriores, ou tomando os meus

escrúpulos como desejo de regeneração por faltas que não cometi, em

virtude de suas enérgicas reprimendas e penosas ameaças; se não o aviso

dessas ocorrências graves, do mesmo modo se produziria o escândalo,

com a vinda do governador a Cafarnaum, aproveitando o ensejo da sua

ausência.

Tomo, unicamente, a Jesus por meu juiz nesta causa dolorosa, em

que as únicas testemunhas devem ser o meu coração e a minha

consciência!...

O que mais me preocupa, agora, minha boa Ana, não é tão somente

a obrigação de velar por mim, que já experimentei o fel amaríssimo da

desilusão e da calúnia impiedosa. É, justamente, por minha pobre filha,

porque tenho a impressão de que aqui na Palestina os malfeitores estão

nos lugares onde deveriam permanecer os homens de sentimentos puros

e incorruptíveis...

Como não ignoras, meu desventurado filhinho já se foi, arrebatado

nesse turbilhão de perigos, talvez assassinado por mãos indiferentes e

criminosas... Fala-me o coração maternal que o meu desgraçado Marcus

ainda vive, mas onde e como? Debalde temos procurado sabê-lo, em todos

os recantos, sem o mais leve sinal da sua presença ou passagem... Agora,

manda a consciência que resguarde a filhinha contra as ciladas

tenebrosas!...

185

HÁ DOIS MIL ANOS...

- Senhora - exclamou a serva, com fulgor estranho no olhar, como se

houvera encontrado uma solução repentina e apreciável para o assunto -,

o que dissestes revela o máximo bom-senso e prudência... Também eu

participo dos vossos temores e suponho que deveremos fazer tudo por

salvar a menina e a vós mesma das garras desses lobos assassinos...

Porque não nos refugiarmos nalgum local de nossa inteira confiança, até

que os malditos abandonem estas paragens?!

- Mas considero que seria inútil procurarmos abrigo em Cafarnaum,

em tais circunstâncias.

- Iríamos a outra parte.

- Aonde? - indagou Lívia, com ansiedade.

- Tenho um projeto - disse Ana esperançosa. - Caso assentísseis na

sua plena realização, sairíamos ambas daqui, com a pequenina,

refugiando-nos na própria Samaria da Judeia, em casa de Simeão, cuja

idade respeitável nos resguardaria de qualquer perigo.

- Mas, a Samaria - replicou Lívia, algo desalentada - fica muito

distante...

- A realidade, contudo, minha senhora, é que necessitamos de um

sítio dessa natureza. Concordo em que a viagem não será tão curta, mas

partiríamos com urgência, alugando animais descansados, tão logo

repousássemos um pouco, na passagem por Naim. Com um dia ou dois de

marcha, atingiríamos o vale de Siquém, onde se ergue a velha propriedade

de meu tio. Maximus seria cientificado da vossa deliberação, sem outro

pretexto que não seja o da necessidade de vossas decisões no momento

e, na hipótese do regresso imediato do senador, estaria o vosso esposo

integrado no conhecimento direto da situação, procurando inteirar-se, por

si mesmo, quanto à vossa honestidade.

- De fato, essa idéia é o recurso mais viável que nos resta - exclamou

Lívia mais ou menos confortada. - Além do mais, confio no Mestre, que não

nos abandonará em provas tão rudes.

186

ROMANCE DE EMMANUEL

Hoje mesmo, faremos nossos aprestos de viagem e irás à cidade

providenciar, não só quanto aos animais que nos devam conduzir até

Naim, como também quanto à partida de um dos teus familiares conosco,

de modo a seguirmos com a maior simplicidade, sem provocar a atenção

dos curiosos, mas igualmente bem acompanhadas contra os dissabores

de qualquer eventualidade.

Não te preocupes com despesas, porque estou provida dos

necessários recursos financeiros.

Assim foi feito.

Na véspera da partida, Lívia chamou o servo que então

desempenhava as funções de mordomo da casa, esclarecendo-o nestes

termos:

- Maximus, motivos imperiosos me lavam amanhã a Samaria da

Judeia, onde me demorarei alguns dias, junto de minha filha. Levarei Ana

em minha companhia e espero do teu esforço a mesma dedicação de

sempre aos teus senhores.

O interpelado fez uma reverência, como quem se surpreendesse

com semelhante atitude da patroa, pouco afeita aos ambientes exteriores

do lar, mas entendendo que não lhe assistia o direito de analisar as suas

decisões, aventou, respeitoso:

- Senhora, espero designeis os servos que deverão acompanharvos.

- Não, Maximus. Não quero as solenidades do costume nas

excursões dessa natureza. Irei com pessoas amigas, de Cafarnaum, e

pretendo viajar com muita simplicidade. Interessa-me avisar-te dos meus

propósitos, tão somente pela necessidade de redobrar os serviços de

vigilância na minha ausência, e considerando a possibilidade do regresso

inopinado do teu amo, a quem cientificarás da minha resolução, nos

termos em que me estou exprimindo.

E, enquanto o criado se inclinava respeitoso, Lívia regressava aos

aposentos, solucionando todos os problemas relativos à sua tranqüilidade.

No dia imediato, antes da aurora, saia de Cafarnaum uma caravana

humilde. Compunham-na

187

HÁ DOIS MIL ANOS...

Lívia, a filhinha, Ana e um dos seus velhos e respeitáveis familiares, que se

dirigiam pela estrada que contornava o grande lago, quase em caprichoso

semicírculo, acompanhando o curso das águas do Jordão a descerem

sussurrantes e tranqüilas para o Mar Morto.

Numa breve parada em Naim, trocaram-se os animais, seguindo os

viajantes o mesmo roteiro em direção do vale de Siquém, onde, à tardinha,

apearam à frente da casa empedrada de Simeão, que recebeu os

hóspedes, chorando de alegria.

O ancião de Samaria parecia tocado de um, a graça divina, tal o

movimento notável que desenvolvera em toda a região, não obstante a sua

idade avançada, espalhando os consoladores ensinamentos do profeta de

Nazaré.

Entre oliveiras umbrosas e frondejantes, erguera uma grande cruz,

pesada e tosca, colocando nas suas proximidades ampla mesa rústica, em

torno da qual se assentavam os crentes, em pobres bancos improvisados,

para lhe ouvirem a palavra amiga e confortadora.

Cinco dias venturosos decorreram ali para as duas mulheres, que se

encontravam à vontade naquele ambiente simples.

De tarde, sob as carícias da Natureza livre e sadia, no seio verde da

paisagem harmoniosa, reunia-se a assembléia humilde dos samaritanos,

inclinados a aceitar os pensamentos de amor e de misericórdia sublime do

Messias Nazareno.

Simeão, que ali vivia sem a companheira que Deus já havia levado e

sem os filhos que, por sua vez, já haviam constituído família, em aldeias

distantes, assumia a direção de todos, como patriarca venerável na sua

calma senectude, relatando os fatos da vida de Jesus como se a

inspiração divina o bafejasse em tais instantes, tal a profunda beleza

filosófica dos comentários e das preces improvisadas com a amorosa

sinceridade do seu coração.

188

ROMANCE DE EMMANUEL

Quase todos os presentes, naquela mesma poesia simples da Natureza,

como se estivessem ainda bebendo as palavras do Mestre junto do

Gerizim, choravam de comoção e deslumbramento espiritual, tocados pela

sua palavra profunda e carinhosa, magnetizados pela formosura das suas

evocações saturadas de ensinamentos raros, de caridade e meiguice.

Nessa época, os cristãos não possuíam os evangelhos escritos, que

somente um pouco depois apareciam no mundo grafados pelos Apóstolos,

razão pela qual todos os pregadores da Boa Nova colecionavam as

máximas e as lições do Mestre, de próprio punho ou com a cooperação

dos escribas do tempo, catalogando-se, desse modo, os ensinamentos de

Jesus para o estudo necessário nas assembléias públicas das sinagogas.

Simeão, que não possuía uma sinagoga. seguia, porém, o mesmo

método.

Com a paciência que o caracterizava, escreveu tudo que sabia do

Mestre de Nazaré, para recordá-lo nas suas reuniões humildes e

despretensiosas, prontificando-se do melhor grado a registrar todas as

lições novas do acervo de lembranças dos seus companheiros, ou

daqueles apóstolos anônimos do Cristianismo nascente, que, de

passagem por sua velha aldeia, cruzavam a Palestina em todas as

direções.

Fazia seis dias que as hóspedes se retemperavam naquele ambiente

caricioso, quando o respeitável ancião, naquela tarde, em suas

costumeiras evocações do Messias, se afigurava tocado de influências

espirituais das mais excelsas.

As derradeiras meias-tintas do crepúsculo entornavam na paisagem

um tom de esmeraldas e topázios, eterizados sob um céu azul indefinível.

No seio da assembléia heterogênea, notava-se a presença de

criaturas sofredoras, de todos os matizes, que ao espírito de Lívia

lembravam a tarde

189

HÁ DOIS MIL ANOS...

memorável de Cafarnaum, quando ouvira o Senhor pela primeira vez.

Homens esfarrapados e mulheres maltrapilhas acotovelavam-se com

crianças esquálidas, fitando, ansiosamente, o ancião que explicava,

comovido, com a sua palavra simples e sincera:

- Irmãos, era de ver-se a suave resignação do Senhor, no derradeiro

instante!...

Olhar fixo no céu, como se já estivesse gozando a contemplação das

beatitudes celestes, no reino de nosso Pai, vi que o Mestre perdoava

caridosamente todas as injúrias! Apenas um dos seus discípulos mais

queridos se conservava ao pé da cruz, amparando a sua mãe no

angustioso transe!... Dos seus habituais seguidores, poucos estavam

presentes na hora dolorosa, certamente porque nós, os que tanto o

amávamos, não podíamos externar nossos sentimentos diante da turba

enfurecida, sem graves perigos para a nossa segurança pessoal. Não

obstante, desejaríamos, todos, experimentar os mesmos padecimentos!...

De vez em quando, um que outro mais atrevido de seus verdugos se

aproximava do corpo chagado no martírio, dilacerando-lhe o peito com a

ponta das lanças impiedosas!...

Uma vez por outra, o generoso ancião limpava o suor da fronte, para

continuar com os olhos úmidos:

- Notei, em dado instante, que Jesus desviara os olhos calmos e

lúcidos do firmamento, contemplando a multidão amotinada em criminosa

fúria!... Alguns soldados ébrios açoitaram-no, mais uma vez, sem que do

seu peito opresso, na angústia da agonia, escapasse um único gemido!...

Seus olhos suaves e misericordiosos se espraiaram, então, do monte do

sacrifício para o casario da cidade maldita! Quando o vi olhando

ansiosamente, com a ternura carinhosa de um pai, para quantos o

insultavam nos suplícios extremos da morte, chorei de vergonha pelas

nossas impiedades e fraquezas...

190

ROMANCE DE EMMANUEL

A massa movimentava-se, então, em altercações numerosas... Gritos

ensurdecedores e impropérios revoltantes o cercavam na cruz, onde se lhe

notava o copioso suor do instante supremo!.. Mas o Messias, como se

visualizasse profundamente os segredos dos destinos humanos, lendo no

livro do futuro, fitou de novo as Alturas, exclamando com infinita bondade:

"Perdoa-lhes, meu Pai, porque não sabem o que fazem!"

O velho Simeão tinha a voz embargada de lágrimas, ao evocar

aquelas lembranças, enquanto a assembléia se comovia profundamente

com a narrativa.

Outros irmãos da comunidade tomaram a palavra, descansando o

ancião dos seus esforços.

Um deles, porém, contrariamente aos temas versados naquele dia,

exclamou, com surpresa para todos os circunstantes:

- Meus irmãos, antes de nos retirarmos, lembremos que o Messias

repetia sempre aos seus discípulos a necessidade da vigilância e da

oração, porque os lobos rondam, neste mundo, o rebanho das ovelhas!...

Simeão ouviu a advertência e pôs-se em atitude de profunda

meditação, de olhos fitos na grande cruz que se elevava a poucos metros

do seu banco humilde.

Ao cabo de alguns minutos de espontânea concentração, tinha os

olhos transbordando de lágrimas, fixos no madeiro tosco, como se no seu

topo vagasse alguma visão desconhecida de quantos o observavam...

Depois, encerrando as preleções da tarde, falou comovido:

- Filhos, não é sem justo motivo que o nosso irmão se refere hoje ao

ensino da vigilância e da prece! Alguma coisa, que não sei definir, fala-me

ao coração que o instante do nosso testemunho está muito próximo... Vejo

com a minha vista espiritual que a nossa cruz está hoje iluminada, anun191

HÁ DOIS MIL ANOS...

ciando, talvez, o glorioso minuto dos nossos sacrifícios... Meus pobres

olhos se enchem de pranto, porque, entre as claridades do madeiro, ouço

uma voz suave que me penetra os ouvidos numa entonação branda e

amiga, exclamando: "Simeão, ensina ao teu rebanho a lição da renúncia e

da humildade, com o exemplo da tua dedicação e do teu próprio sacrifício!

Ora e vigia, porque não está longe o instante ditoso de tua entrada no

Reino, mas preserva as ovelhas do teu aprisco das arremetidas tenebrosas

dos lobos famulentos da impiedade, soltos na Terra, ao longo de todos os

caminhos, consciente, porém, de que, se a cada um se dará segundo as

próprias obras, os maus terão, igualmente, seu dia de lição e castigo, de

conformidade com os próprios erros!..."

O velho samaritano tinha o rosto lavado em lágrimas, mas doce

serenidade irradiava do seu olhar carinhoso e compassivo, demonstrandolhe

as energias inquebrantáveis e valorosas.

Foi então que, alçando as mãos emagrecidas e longas ao

firmamento, onde brilhavam já as primeiras estrelas, dirigiu-se a Jesus, em

prece ardente:

- Senhor, perdoai nossas fraquezas e vacilações nas lutas da vida

humana, onde os nossos sentimentos são bem precários e miseráveis!...

Abençoai nosso esforço de cada dia e relevai as nossas faltas, se algum

de nós, que aqui nos reunimos, vem à vossa presença com o coração

saturado de pensamentos que não sejam os do bem e do amor que nos

ensinastes!... E, se chegada é a hora dos sacrifícios, auxiliai-nos com a

vossa misericórdia infinita, a fim de que não vacilemos em nossa fé, nos

dolorosos momentos do testemunho!...

A oração comovedora assinalou o fim da reunião, dispersando-se os

assistentes, que regressavam, impressionados, às suas choupanas

humildes e pobres.

192

ROMANCE DE EMMANUEL

O ancião, todavia, conseguiu repousar muito pouco naquela noite,

tomado de preocupação por Lívia e pela sobrinha, que o haviam

cientificado das graves ocorrências que as levaram a solicitar a sua

proteção. Figurava-se-lhe que apelos carinhosos do mundo invisível lhe

enchiam o espírito de ansiedade indefinível e de singulares impressões,

que lhe não era possível alijar do raciocínio para os necessários minutos

de repouso.

Contudo, enquanto ocorriam esses fatos no vale de Siquém,

voltemos a Cafarnaum, onde. na mesma tarde, chegara o governador com

grande aparato.

No burburinho das festanças numerosas, organizadas pelos

prepostos de Herodes Ântipas, o primeiro pensamento do viajante ilustre

não nos pode ser olvidado.

Sulpício, porém, após palestrar longamente com o seu amigo Otávio,

nas proximidades da residência do senador, onde foi posto ao corrente de

todos os fatos, voltou a informá-lo de que ambas as presas cobiçadas

haviam fugido como aves viajoras, para os bosques da Samaria.

O governador surpreendeu-se com a resistência daquela mulher, tão

acostumado estava ele às conquistas fáceis, admirando-lhe, intimamente,

o nobre heroísmo e pensando que, afinal, constituía atitude injustificável

da sua parte tal obstinação no assédio, mesmo porque, não lhe faltariam

mulheres tentadoras e formosas, desejosas de captarem a sua estima, no

caminho da sua alta posição social na Palestina.

Ao mesmo tempo que dava curso a esses pensamentos, o espírito

perverso do lictor, antegozando a trabalhosa conquista da sua vítima,

murmurava-lhe ao ouvido:

- Senhor governador, se consentirdes, irei a Samaria da Judeia

informar-me do assunto. Daqui ao vale de Siquém deve mediar pouco mais

de trinta milhas, o que vem a ser um salto para os nossos cavalos. Levaria

comigo seis soldados, bastando

193

HÁ DOIS MIL ANOS...

esses homens para manter a ordem em qualquer lugar destas paragens.

- Sulpício, por mim, não vejo mais necessidade de semelhantes

providências exclamou Pilatos, resignado.

- Mas, agora - explicou o lictor, com interesse -, se não é por vós,

deve ser por mim, porque me sinto escravizado a uma mulher que devo

possuir de qualquer maneira.

Sou eu agora quem vos pede, humildemente, a concessão dessas

providências - acentuou ele, desesperado, no auge dos seus pensamentos

impuros.

- Está bem - murmurou Pilatos, com displicência, como quem faz um

favor a servo de confiança -, concedo-te o que me pedes. Acho que o amor

de um romano deve superar qualquer afeição dos escravos deste país.

Podes partir, levando contigo os elementos da tua amizade, sem te

esqueceres, porém. de que devemos regressar a Nazaré, de hoje a três

dias. Não te bastarão dois dias para esse cometimento?

- Mas - continuou o lictor, maliciosamente -, e se houver alguma

resistência?

- Para isso levas os teus homens, autorizando-te eu a tomar as

iniciativas necessárias aos teus propósitos. Em qualquer missão, jamais te

esqueças prestar aos patrícios os favores da nossa consideração, mas,

aos que o não sejam, faze a justiça do nosso domínio e da nossa força

implacáveis.

Na mesma noite, Sulpício Tarquinius escolheu os homens de mais

confiança, e, pela madrugada, sete cavaleiros audaciosos puseram-se a

caminho, trocando os ginetes fogosos. nas paradas mais importantes, em

demanda de Samaria.

O lictor encaminhava-se para a sua aventura, como quem segue para

o desconhecido, com o propósito firme de atingir os fins sem cogitar dos

meios. Turbilhonavam-lhe no cérebro pensamentos

194

ROMANCE DE EMMANUEL

condenáveis, afogando o coração inquieto e louco numa onda de anseios

criminosos e indefiníveis.

Voltando, todavia, nossa atenção para a casa humilde do vale,

vamos encontrar Simeão em grandes atividades, naquela manhã

inolvidável de sua vida.

Após o almoço frugal, organizadas todas as suas anotações e

pergaminhos, depois de mais de uma hora de meditação e preces

fervorosas, e quando o Sol já declinava, reuniu as hóspedas, falando-lhes

gravemente:

- Filhas, a visão de meus pobres olhos, em nossas preces de ontem,

representa uma séria advertência para o meu coração. Ainda esta noite e

hoje, durante o dia, tenho ouvido apelos suaves que me chamam e, sem

explicar a justa razão deles, tenho o íntimo saturado de branda serenidade,

na suposição de que não deve tardar muito a minha ida para o Reino...

Algo, porém, me fala ao espírito que ainda não soou a hora da vossa

partida e, considerando o ensinamento do nosso Mestre de bondade e

misericórdia, sobre os lobos e as ovelhas, devo resguardar-vos de

qualquer perigo. É por isso que vos peço acompanhar-me.

Assim dizendo, o respeitável ancião pôs-se de pé e, caminhando

para o seu casebre, deslocou blocos de pedra duma abertura na parede

empedrada, exclamando imperativamente, na sua serena simplicidade:

- Entremos.

- Mas, meu tio - obtemperou Ana, com certa estranheza -, serão

necessárias tais providências?

- Filha, nunca discutas o conselho daqueles que envelheceram no

trabalho e no sofrimento. O dia de hoje é decisivo e Jesus não me poderia

enganar o coração.

- Oh! mas será possível, então, que o Mestre nos vá privar de vossa

presença carinhosa e consoladora? - exclamou a pobre rapariga banhada

em

195

HÁ DOIS MIL ANOS...

pranto, enquanto Lívia os acompanhava sensibilizada, trazendo pela mão a

filha estremecida.

- Sim, para nós - revidou Simeão, com serena coragem, mirando o

azul do céu -, deve existir uma só vontade, que é a de Deus. Cumpram-se,

pois, nos escravos os desígnios do Senhor.

Neste comenos, penetraram os quatro numa galeria que, à distância

de poucos metros, ia dar num modesto refúgio talhado em pedras rústicas,

afirmando o ancião em tom solene:

- Ha mais de vinte anos não abro este subterrâneo a pessoa

alguma... Recordações sagradas de minha esposa fizeram-me encerrá-lo

para sempre, como túmulo de minhas ilusões mais queridas; mas, hoje de

manhã, o reabri resolutamente, retirei os tropeços do caminho, coloquei

aqui os apetrechos necessários ao descanso de um dia, pensando na

vossa segurança até à noite. Este abrigo está oculto nas rochas que, junto

das oliveiras, fazem o ornamento do nosso recanto de orações e, não

obstante parecer abafado, o ambiente recebe o ar puro e fresco do vale,

como a nossa própria casa.

Ficai aqui tranqüilas. Alguma coisa me diz ao coração que estamos

atravessando horas decisivas. Trouxe o alimento preciso para as três,

durante as horas da tarde, e caso eu não volte até à noitinha, já sabem

como devem mover a porta empedrada que dá para meu quarto. Daqui,

ouvem-se os rumores das cercanias, o que vos possibilitará a

compreensão de qualquer perigo.

- E mais ninguém conhece este refúgio? -perguntou Ana, ansiosa.

- Ninguém, a não ser Deus e os meus filhos ausentes.

Lívia, profundamente comovida, ergueu então a voz do seu sincero

agradecimento:

- Simeão - disse ela -, eu, que conheço a têmpera do inimigo,

justifico os vossos temores. Jamais esquecerei vosso gesto paternal,

salvando-me do verdugo impiedoso e implacável.

196

ROMANCE DE EMMANUEL

- Senhora, não agradeçais a mim, que nada valho. Agradeçamos a

Jesus os seus desígnios preciosos, no momento amargo das nossas

provas...

Arrancando uma pequena cruz de madeira tosca das dobras da

túnica humilde, entregou-a à esposa do senador, exclamando com voz

serena:

- Só Deus conhece o minuto que se aproxima, e esta hora pode

assinalar os derradeiros momentos do nosso convívio na Terra. Se assim

for, guardai esta cruz como recordação de um servo humilde... Ela traduz a

gratidão do meu espírito sincero...

Como Lívia e Ana começassem a chorar com as suas palavras

comovedoras, continuou o ancião com voz pausada:

- Não choreis, se este minuto constitui o instante supremo! Se Jesus

nos chama ao seu trabalho, uns antes dos outros, lembremo-nos de que,

um dia, nos reuniremos todos nas luzes cariciosas do seu reino de amor e

misericórdia, onde todos os aflitos hão-de ser consolados..

E, como se o seu espírito estivesse na plena contemplação de outras

esferas, cujas claridades o enchessem de intuições divinatórias,

prosseguiu, dirigindo-se à Lívia, comovidamente:

- Estejamos confiantes na Providência Divina! Caso o meu

testemunho esteja previsto para breves horas, confio-vos a minha pobre

Ana, como vos entregaria a minha recordação mais querida!... Depois que

abracei as lições do Messias, todos os filhos do meu sangue me

desampararam, sem me compreenderem os propósitos mais santos do

coração... Ana, porém, apesar da sua juventude, entendeu, comigo, o doce

Crucificado de Jerusalém!...

- Quanto a ti, Ana - disse pousando a destra na fronte da sobrinha -,

ama a tua patroa como se fosses a mais humilde das suas escravas!

Nesse instante, porém, um ruído mais forte penetrou no recinto,

como se um barulho incom197

HÁ DOIS MIL ANOS...

preensível proviesse das rochas, parecendo mais um tropel de numerosos

cavalos que se iam aproximando.

O ancião fez um gesto de despedida, enquanto Lívia e Ana se

ajoelharam diante da sua figura austera e carinhosa; ambas, entre

lágrimas, tomaram-lhe as mãos encarquilhadas, que cobriam de beijos

afetuosos.

Num relance, Simeão transpôs a pequena galeria, reajustando as

pedras na parede com o máximo cuidado.

Em poucos minutos, abria as portas da casa humilde e generosa a

Sulpício Tarquinius e seus companheiros, compreendendo, afinal, que as

advertências de Jesus, no silêncio de suas orações fervorosas, não

haviam falhado.

O lictor dirigiu-lhe a palavra sem qualquer cerimônia, fazendo o

possível por eliminar a impressão que lhe causava a majestosa aparência

do ancião, com os seus olhos altivos e serenos e as longas barbas

encanecidas.

- Meu velho - exclamou desabridamente -, por intermédio de teus

conhecidos já sei que te chamas Simeão, e igualmente que hospedas aqui

uma nobre senhora de Cafarnaum, com a sua serva de confiança. Venho

da parte das mais altas autoridades para falar particularmente com essas

senhoras, na maior intimidade possível..

Enganais-vos, lictor - murmurou Simeão, com humildade. - De fato, a

esposa do senador Lentulus passou por estas paragens; todavia, apenas

pela circunstância de se fazer acompanhar por uma de minhas sobrinhasnetas,

deu-me a honra de repousar nesta casa algumas horas.

- Mas deves saber onde se encontram neste momento.

- Não posso dizê-lo.

- Ignoras, porventura?

- Sempre entendi - replicou o ancião corajosamente - que devo

ignorar todas as coisas que

198

ROMANCE DE EMMANUEL

venham a ser conhecidas para o mal de meus semelhantes.

- Isso é outra coisa - redargüiu Sulpício, encolerizado, como um

mentiroso de quem se descobrissem os pensamentos mais secretos. -

Quer dizer, então, que me ocultas o paradeiro dessas mulheres, por

simples caprichos da tua velhice caduca?

- Não é isso. Conhecendo que no mundo somos todos irmãos, sintome

no dever de amparar os mais fracos contra a perversidade dos mais

fortes.

- Mas, eu não as procuro para fazer mal algum e chamo-te a atenção

para estas insinuações insultuosas, que merecem a punição da justiça.

- Lictor - revidou Simeão, com grande serenidade -, se podeis

enganar os homens, não enganais a Deus com os vossos sentimentos

inconfessáveis e impuros. Sei dos propósitos que vos trazem a estes sítios

e lamento a vossa impulsividade criminosa...Vossa consciência está

obscurecida por pensamentos delituosos e impuros, mas todo momento é

um ensejo de redenção, que Deus nos concede na Sua infinita bondade...

Voltai atrás da insídia que vos trouxe e ide noutros caminhos, porque

assim como o homem deve salvar-se pelo bem que pratica, pode também

morrer pelo fogo devastador das paixões que o arrastam aos crimes mais

hediondos...

- Velho infame... - exclamou Sulpício Tarquinius, rubro de cólera,

enquanto os soldados observavam, admirados, a serena coragem do

valoroso ancião da Samaria -, bem me disseram teus vizinhos, ao me

informarem a teu respeito, que és o maior feiticeiro destas paragens!...

Adivinho maldito, como ousas afrontar deste modo os mandatários

do Império, quando te posso pulverizar com uma simples palavra? Com

que direito escarneces do poder?

199

HÁ DOIS MIL ANOS...

- Com o direito das verdades de Deus, que nos mandam amar o

próximo como a nós mesmos... Se sois prepostos de um Império que outra

lei não possui além da violência impiedosa na execução de todos os

crimes, sinto que estou subordinado a um poder mais soberano do que o

vosso, cheio de misericórdia e bondade! Esse poder e esse Império são de

Deus, cuja justiça misericordiosa está acima dos homens e das nações!...

Compreendendo-lhe a coragem e a energia moral inquebrantáveis, o

lictor, embora fremente de ódio, revidou em tom fingido:

- Está bem, mas eu não vim aqui para conhecer as tuas bruxarias e o

teu fanatismo religioso. De uma vez por todas: queres ou não prestar-me

as informações precisas, acerca das tuas hóspedas?

- Não posso - replicou Simeão corajosamente -, minha palavra é uma

só.

- Então, prendei-o! - disse, dirigindo-se aos seus auxiliares, pálido de

cólera ao se ver derrotado naquele duelo de palavras.

O velho cristão da Samaria foi submetido aos primeiros vexames,

por parte dos soldados, entregando-se, porém, sem a mínima resistência.

Aos primeiros golpes de espada, exclamou Sulpício

sarcasticamente:

- Então, onde se encontram as forças do teu Deus, que te não

defende? Seu Império é assim tão precário? Porque não te socorrem os

poderes celestiais, eliminando-nos com a morte, em teu beneficio?

Uma gargalhada geral seguiu-se a essas palavras, partida dos

soldados que acompanhavam, gostosamente, os ímpetos criminosos do

seu chefe.

Simeão, todavia, tinha as energias preparadas para o testemunho da

sua fé ardente e sincera. De mãos amarradas, pôde ainda revidar, com a

serenidade habitual:

- Lictor, ainda que eu fosse um homem poderoso como o teu César,

nunca ergueria a voz para ordenar a morte de quem quer que fosse, à

200

ROMANCE DE EMMANUEL

face da Terra. Sou dos que negam o próprio direito da chamada legítima

defesa, porque está escrito na Lei que "Não Matarás", sem nenhuma

cláusula que autorize o homem a eliminar o seu irmão, nessa ou naquela

circunstância... Toda a nossa defesa, neste mundo, está em Deus, porque

só ele é o Criador de toda a vida e somente ele pode pôr e dispor de

nossos destinos.

Sulpício experimentou o apogeu do seu ódio em face daquela

coragem indomável e esclarecida e, avançando para um dos prepostos,

exclamou enraivecido:

- Mércio, toma à tua conta este velho imbecil e feiticeiro. Guarda-o

com atenção e não te descuides. Caso tente fugir, mete-lhe o chanfalho!

O venerável ancião, consciente de que atravessava as suas horas

supremas, encarou o agressor com heróica humildade.

Sulpício e os companheiros invadiram-lhe a casa e o quintal,

expulsando-lhe uma velha serva, a palavrões e pedradas. No seu quarto

encontraram as anotações evangélicas e os pergaminhos amarelecidos,

além de pequenas lembranças que guardava em memória dos seus afetos

mais queridos.

Todos os objetos de suas recordações mais sagradas foram trazidos

à sua presença, onde foram quebrados sem piedade. Perante seus olhos,

serenos e bons, dilaceraram-se túnicas e papiros antigos, entre sarcasmos

e ironias revoltantes.

Terminada a devassa, o lictor, de mãos nas costas, examinando,

intimamente, a melhor maneira de arrancar-lhe a desejada confissão sobre

o paradeiro de suas vítimas, andou pelas adjacências mais de duas horas,

voltando à mesma sala, onde o interpelou novamente.

- Simeão - disse ele, com interesse -, satisfaze os meus desejos e te

concederei a liberdade.

201

HÁ DOIS MIL ANOS...

- Por esse preço, toda a liberdade me seria penosa. Deve preferir-se

a morte a transigir com o mal - respondeu o ancião com a mesma

coragem.

Sulpício Tarquinius rilhou os dentes de fúria, ao mesmo tempo que

gritava possesso:

- Miserável! saberei arrancar-te a confissão necessária.

Isso dizendo, encarou fixamente o enorme cruzeiro que se levantava

a poucos metros da porta e, como se houvesse escolhido o melhor

instrumento de martírio para arrancar-lhe a revelação desejada, dirigiu-se

aos soldados em voz soturna:

- Amarremo-lo à cruz, como o Mestre das suas feitiçarias.

Recordando-se dos grandes momentos do Calvário, o ancião

deixou-se levar sem nenhuma relutância, agradecendo, intimamente, a

Jesus pelo seu aviso providencial, a tempo de salvar das mãos do inimigo

aquelas que considerava como filhas muito amadas.

Num ápice os soldados o amarraram na base do pesado madeiro,

sem que a vítima demonstrasse um único gesto de resistência.

Avizinhava-se o crepúsculo, e Simeão recordou que, horas antes,

sofria o Senhor com mais intensidade. Em prece ardente, suplicou ao Pai

Celestial ânimo e resignação para o angustioso transe. Lembrou-se dos

filhos ausentes, rogando a Jesus que os acolhesse no manto de sua

infinita misericórdia. Foi nesse ínterim que, amarrado à base da cruz pelos

braços, pelo tronco e pelas pernas, viu que se aproximavam alguns dos

companheiros de suas preces habituais, para as reuniões do crepúsculo,

os quais foram logo detidos pelos soldados e pelo chefe implacável.

Inquiridos, quanto ao ancião que ali se encontrava, com o dorso

seminu para os tormentos do açoite, todos, sem exceção de um só,

alegaram não conhecê-lo.

202

ROMANCE DE EMMANUEL

Mais que os ataques dos impiedosos romanos, semelhante

ingratidão doeu-lhe fundo, no espírito generoso e sincero, como se

envenenado espinho lhe penetrasse o coração.

Todavia, recompôs imediatamente as suas energias espirituais e,

contemplando o Alto, murmurou baixinho, numa prece ansiosa e ardente:

- Também vós, Senhor, fostes abandonado!... Éreis o Cordeiro de

Deus, inocente e puro, e sofrestes as dores mais amargas,

experimentando o fel das traições mais penosas!... Não seja pois o vosso

servo, mísero e pecador, que renegue os martírios purificadores do

testemunho!...

A essa hora, já o recinto se encontrava repleto de pessoas que, de

conformidade com as determinações de Sulpício, deveriam permanecer

nos bancos grosseiros, dispostos em semicírculo, de modo a assistirem à

cena selvagem, a titulo de escarmento para quantos viessem a

desobedecer à justiça do Império.

O primeiro soldado, à ordem do chefe, iniciou o flagício. Todavia, da

terceira vez que as suas mãos brandiam as extremas tiras de couro, na

execranda tortura, sem que o ancião deixasse escapar o mais ligeiro

gemido, parou, subitamente, exclamando para Tarquinius em voz baixa e

em tom discreto:

- Senhor lictor, no alto do madeiro há uma luz que paralisa os meus

esforços.

Encolerizado, mandou Sulpício que um novo elemento o

substituísse, mas o mesmo se repetiu com os seus algozes chamados ao

trabalho sinistro.

Foi então que, desesperado de ódio incompreensível, tomou

Sulpício dos açoites, brandindo-os ele mesmo no corpo da vítima, que se

contorcia em sofrimentos angustiosos.

Simeão, banhado de suor e sangue, sentia o estalar dos ossos

envelhecidos, que se quebravam aos pedaços, cada vez que o açoite lhe

lambia as carnes enfraquecidas. Seus lábios murmuravam

203

HÁ DOIS MIL ANOS...

preces fervorosas, apelos a Jesus para que os tormentos não se

prolongassem ao infinito. Todos os presentes, não obstante o terror que

os levara à defecção para com o velho discípulo de Jesus, viam-lhe, com

lágrimas, os inomináveis padecimentos.

Em dado instante, a fronte pendeu, quase desfalecida, prenunciando

o fim de toda a resistência orgânica, em face do martírio.

Sulpício Tarquinius parou, então, por um minuto, a sua obra nefanda

e, aproximando-se do ancião, falou-lhe ao ouvido, com ansiedade:

- Confessas agora?

Mas o velho samaritano, temperado nas lutas terrestres, por mais de

setenta anos de sofrimento, exclamou, exausto, em voz sumida:

- O... cristão... deve... morrer... com Jesus... pelo... bem... e... pela...

verdade...

- Morre, então, miserável!... - gritou Sulpício, em voz estentórica; e,

tomando da espada, enterrou-lhe a lâmina no peito deprimido.

Viu-se o sangue jorrar em borbotões vermelhos e abundantes.

Nessa hora, cansado já do martírio, o ancião viu sem temor o ato

supremo que poria termo aos seus padecimentos. Experimentou a

sensação de um instrumento estranho que lhe abria o peito dolorido,

sufocado por mortal angústia.

Num relance, porém, lobrigou duas mãos de neve, translúcidas, que

pareciam alisar-lhe carinhosamente os cabelos embranquecidos.

Notou que o cenário se havia transformado, enquanto fechara

ligeiramente os olhos, no momento doloroso.

O céu não era o mesmo, nem mais à sua frente via traidores e

verdugos. O ambiente estava saturado de luz branda e reconfortante,

enquanto aos seus ouvidos chegavam os ecos suaves de uma cavatina do

céu, entoada, talvez, por artistas invisíveis. Ouvia cânticos esparsos,

exaltando as dores de

204

ROMANCE DE EMMANUEL

todos os desventurados, de todos os aflitos do mundo, divisando,

maravilhado, o sorriso acolhedor de entidades lúcidas e formosas.

Afigurava-se-lhe reconhecer a paisagem que o recebia. Supunha-se

transportado aos deliciosos recantos de Cafarnaum, nos instantes suaves

em que se preparava para receber a bênção do Messias, jurando haver

aportado, por processo misterioso, numa Galileia de flores mais ricas e de

firmamento mais belo. Havia aves de luz, como lírios alados do paraíso,

cantando nas árvores fartas e frondosas, que deviam ser as do éden

celestial.

Buscou senhorear-se das suas emoções nas claridades dessa Terra

Prometida, que, a seus olhos, deveria ser o país encantado do "Reino do

Senhor".

Por um momento, lembrou-se do orbe terrestre, das suas últimas

preocupações e das suas dores. Uma sensação de cansaço dominou-lhe,

então, o espírito abatido, mas uma voz que seus ouvidos reconheceriam,

entre milhares de outras vozes, falou-lhe brandamente ao coração:

- Simeão, chegado é o tempo do repouso!... Descansa agora das

mágoas e das dores, porque chegaste ao meu Reino, onde desfrutarás

eternamente da misericórdia infinita do Nosso Pai!...

Pareceu-lhe, afinal, que alguém o tomara de encontro ao peito, com

o máximo de cuidado e carinho.

Um bálsamo suave adormentou o seu espírito exausto e

amargurado. O velho servo de Jesus fechou, então, os olhos,

placidamente, acariciado por uma entidade angélica que pousou, de leve,

as mãos translúcidas sobre o seu coração desfalecido.

Voltando, porém, ao doloroso espetáculo, vamos encontrar, junto à

casa do ancião de Samaria, regular massa de povo que assistia, transida

de pavor, à cena tenebrosa.

Amarrado ao madeiro, o cadáver do velho Simeão golfava sangue

pela enorme ferida aberta no coração. A fronte pendida para sempre, como

se

205

HÁ DOIS MIL ANOS...

reclamasse o repouso da terra generosa, suas barbas veneráveis se

tingiam de rubro, aos salpicos de sangue das vergastadas, porque

Sulpício, embora sabendo que o golpe de espada era o detalhe final do

monstruoso drama, continuava a açoitar o cadáver colado à cruz infamante

do martírio.

Dir-se-ia que as forças desencadeadas da Treva se haviam

apoderado completamente do espírito do lictor, que, tomado de fúria

epiléptica, intraduzível, vergastava o cadáver sem piedade, numa torrente

de impropérios, para impressionar a massa popular que o observava

estarrecida de assombro.

- Vede - gritava ele furiosamente -, vede como devem morrer os

samaritanos velhacos e os feiticeiros assassinos!... Velho miserável!...

Leva para os infernos mais esta lembrança!...

E o açoite caía, impiedoso, sobre os despojos destroçados da

vitima, reduzidos agora a uma pasta sangrenta.

Nisso, porém, fosse pela pouca profundidade da base da cruz, que

se abalara nos movimentos reiterados e violentos do suplício, ou pela

punição das forças poderosas do mundo invisível, viu-se que o enorme

madeiro tombava ao solo na vertigem de um relâmpago.

Debalde tentou o lictor eximir-se à morte horrível, examinando a

situação por um milésimo de minuto, porque o tope da cruz lhe abateu a

cabeça de um só golpe, inutilizando-lhe o primeiro gesto de fuga. Atirado

ao chão com uma rapidez espantosa, Sulpício Tarquinius não teve tempo

de dar um gemido. Pela base do crânio, esmigalhado, escorria a massa

encefálica misturada de sangue.

Num átimo, todos acorreram ao corpo abatido do lobo, trucidado

depois do sacrifício da ovelha. Um dos soldados examinou-lhe,

detidamente, o peito, onde o coração ainda pulsava nas derradeiras

expressões de automatismo.

A boca do verdugo estava aberta, não mais para a gritaria

blasfematória, mas da garganta

206

ROMANCE DE EMMANUEL

avermelhada descia uma espumarada de saliva e sangue, figurando a baba

repelente e ignominiosa de um monstro. Seus olhos estavam

desmesuradamente abertos, como se fitassem, eternamente, nos

espasmos do terror, uma interminável falange de fantasmas tenebrosos...

Impressionados com o acidente imprevisto, no qual adivinhavam a

influência da misteriosa luz que haviam lobrigado no topo do cruzeiro, os

soldados ignoravam como providenciar naquela conjuntura, igualmente

confundidos na onda de espanto e surpresa geral dos primeiros

momentos.

Foi nesse instante que assomou à porta a figura nobre de Lívia,

pálida de amarga perplexidade.

Ela e Ana, no interior da cava onde se haviam refugiado,

pressentiram o perigo, permanecendo ambas em fervorosas preces,

implorando a piedade de Jesus naquelas horas angustiosas.

A seus ouvidos chegavam os rumores imprecisos das discussões e

do vozerio do povo em altercações ruidosas, nos minutos do incidente,

encarado, por quantos a ele assistiram, como castigo do céu.

Ambas, aflitas e ansiosas, considerando o adiantado da hora,

deliberaram sair, fossem quais fossem as conseqüências da sua

resolução.

Chegando à porta e observando o espetáculo horrendo do cadáver

de Simeão reduzido quase a uma pasta informe, sob a base da cruz, e

vendo o corpo de Sulpício estendido à distância de poucos passos, com a

base do crânio esfacelada, experimentaram, naturalmente, um pavor

indefinível.

O paroxismo das emoções, contudo, poucos minutos durou.

Enquanto a serva se desfazia em soluços, Lívia, com a energia que

lhe caracterizava o espírito e a fé que lhe clarificava o coração,

compreendeu de relance o que se havia passado e, entendendo que a

situação exigia a força de uma vontade poderosa para que o equilíbrio

geral se restabelecesse, excla207

HÁ DOIS MIL ANOS...

mou para a serva, entregando-lhe a filha resolutamente:

- Ana, peço-te o máximo de coragem neste angustioso transe,

mesmo porque, cumpre-nos lembrar que a bondade de Jesus nos

preparou para suportar, dignamente, mais esta prova aspérrima e

dolorosa! Guarda Flávia contigo, enquanto vou providenciar para que a

tranqüilidade se restabeleça!.

A passos rápidos, avançou para a turba que se ia aquietando à sua

passagem.

Aquela mulher, de beleza nobre e graciosa, deixava transparecer no

olhar uma chama de profunda indignação e amargura. Seu aspecto severo

denunciava a presença de um anjo vingador, surgido entre aquelas

criaturas ignorantes e humildes, no momento oportuno.

Aproximando-se da cruz, onde jaziam os dois cadáveres, cercados

pela confusão, implorou de Jesus a coragem e fortaleza necessárias para

dominar o nervosismo e a inquietação de todos os que a rodeavam. Sentiu

que força sobre-humana se apossara da sua alma no momento preciso.

Por um minuto, pensou no esposo, nas convenções sociais, no escândalo

rumoroso daqueles acontecimentos, mas o sacrifício e a morte gloriosa de

Simeão eram para ela o exemplo mais confortador e mais santo. Tudo

olvidou para se lembrar de que Jesus pairava acima de todas as coisas

transitórias da Terra, como o mais alto símbolo de verdade e de amor, para

a felicidade imorredoura de toda a vida.

Um dos soldados, tomado de veneração e conhecendo perto de

quem seus olhos se encontravam, acercou-se-lhe, exclamando com o

máximo respeito:

- Senhora, cumpre-me apresentar-vos nossos nomes, a fim de que

possais utilizar-nos para o que julgardes necessário.

- Soldados - exclamou resoluta -, não precisais declinar nomes.

Agradeço a vossa dedicação espontânea, que poderia ter sido, minutos

antes,

208

ROMANCE DE EMMANUEL

uma inconsciência criminosa; lamentando, apenas, que seis homens

aliados a esta multidão permitissem a consumação deste ato de infâmia e

suprema covardia, que a justiça divina acaba de punir perante os vossos

olhos!...

Todos se haviam calado, como por encanto, ao ouvirem essas

enérgicas palavras.

A massa popular tem dessas versatilidades misteriosas. Basta, às

vezes, um gesto para que se despenhe nos abismos do crime e da

desordem; uma palavra chicoteante para fazê-la regressar ao silêncio e ao

equilíbrio necessários.

Lívia compreendeu que a situação era sua, e, dirigindo-se aos

prepostos de Sulpício, falou corajosamente:

- Vamos, providenciemos o restabelecimento da calma, retirando

esses cadáveres.

- Senhora - aventou um deles respeitosamente -, sentimo-nos na

obrigação de enviar um mensageiro a Cafarnaum, de modo que o senhor

governador seja avisado destes acontecimentos.

Todavia, com a mesma expressão de serenidade, respondeu ela

firmemente:

- Soldado, eu não permito a retirada de nenhum de vós outros,

enquanto não derdes estes corpos à sepultura. Se o vosso governador

possui um coração de fera, sinto-me agora na obrigação de proteger a paz

das almas bem formadas. Não desejo que se repita nesta casa uma nova

cena de covardia e de infâmia. Se a autoridade, neste país, atingiu o

terreno das crueldades mais absurdas, eu prefiro assumi-la, resgatando

uma dívida do coração para com os despojos deste apóstolo venerando,

assassinado com a colaboração da vossa criminosa inconsciência.

- Não desejais consultar as autoridades de Sebaste, a respeito do

assunto? - tornou um deles, timidamente.

- De modo algum - respondeu ela, com audaciosa serenidade. -

Quando o cérebro de um go209

HÁ DOIS MIL ANOS...

verno está envenenado, o coração dos governados padecem da mesma

peçonha. Esperaríamos em vão qualquer providência a favor dos mais

humildes e dos mais infelizes, porque a Judeia está sob a tirania de um

homem cruel e tenebroso. Ao menos hoje, quero afrontar o poder da

perversidade, invocando cm meu auxílio a misericórdia infinita de Jesus.

Silenciaram os soldados romanos, em face da sua atitude serena e

imperturbável. E, obedecendo-lhe às ordens, colocaram os despojos

inertes de Simeão sobre a mesa enorme e rústica das preces costumeiras.

Foi então que os mesmos companheiros, que haviam negado o

velho mestre do Evangelho, se acercaram piedosamente do seu cadáver,

beijando-lhe as mãos mirradas, com enternecimento. arrependidos da sua

covardia e fraqueza, cobrindo-lhe de flores os despojos sangrentos.

Anoitecia, mas as tênues claridades do crepúsculo, na formosa

paisagem da Samaria, ainda não haviam abandonado, de todo, o horizonte.

Uma força indefinível parecia amparar o Espírito de Lívia, alvitrandolhe

todas as providências necessárias.

Em pouco, ao esforço hercúleo de numerosos samaritanos, foram

retiradas pesadas pedras do grupo de rochas que protegia a cova, onde se

haviam abrigado as três fugitivas, enquanto, às ordens de Lívia, os seis

soldados abriram uma sepultura rasa, longe daquele local, para o corpo de

Sulpício.

Brilhavam, já, as primeiras constelações do firmamento, quando

terminou a improvisação dos serviços dolorosos.

No instante de transportarem os despojos do ancião, que Lívia

envolveu, pessoalmente, em alvo sudário de linho, ela fez questão de orar

rogando ao Senhor recebesse, no seu Reino de Luz e Verdade, a alma

generosa do seu apóstolo valoroso.

210

ROMANCE DE EMMANUEL

Ajoelhou-se como uma figura angélica junto àquele banco humilde e

tosco, onde tantas vezes se sentara o servidor de Jesus, entre as suas

oliveiras frondosas e bem-amadas. Todos os presentes, inclusive os

próprios soldados que se sentiam empolgados de misterioso temor,

prostraram-se genuflexos, acompanhando-lhe a reverência, enquanto, à

claridade de algumas tochas, sopravam perfumadas as brisas leves das

noites formosas e estreladas da Samaria de há dois mil anos...

- Irmãos - começou ela, emocionada, assumindo pela primeira vez a

direção de uma assembléia de crentes -, elevemos a Jesus o coração e o

pensamento!...

Uma sensação mais forte parecia embargar-lhe a voz, inundando-lhe

os olhos de lágrimas doloridas...

Mas, como se forças invisíveis e poderosas a alentassem, continuou

serenamente:

- Jesus, meigo e divino Mestre, foi hoje o dia glorioso em que partiu

para o céu um valoroso apóstolo do teu Reino... Foi ele, aqui na Terra,

Senhor, a nossa proteção, o nosso amparo e a nossa esperança!... Na sua

fé, encontramos a precisa fortaleza, e foi em seu coração compassivo que

conseguimos haurir o consolo necessário!... Mas julgaste oportuno que

Simeão fosse descansar no teu regaço amoroso e compassivo! Como tu,

sofreu ele os tormentos da cruz, revelando a mesma confiança na

Providência Divina, nos dolorosos sacrifícios do seu amargo testemunho...

Recebe-o, Senhor, no teu Reino de Paz e de Misericórdia! Simeão tornouse

bem-aventurado por suas dores, por seu denodo moral, por suas

angustiosas aflições suportadas com o valor e a fé que nos ensinaste...

Ampara-o nas claridades do Paraíso do teu amor inesgotável, e que nós,

exilados na saudade e na amargura, aprendamos a lição luminosa do teu

valoroso apóstolo da Samaria!... Se algum dia nos julgares também dignos

do mesmo sacrifício, forta211

HÁ DOIS MIL ANOS...

lece-nos a energia, para que provemos ao mundo a excelência dos teus

ensinamentos, ajudando-nos a morrer com valor, pela tua paz e pela tua

verdade, como o teu missionário carinhoso a quem prestamos, nesta hora,

a homenagem do nosso amor e do nosso reconhecimento...

Nesse ínterim, houve na sua oração um interregno. Todavia,

continuou:

- Jesus, a ti que vieste a este mundo, mais para os desesperados da

salvação, levantando os mais doentes e os mais infelizes, endereçamos,

igualmente, nossa súplica pelo celerado que não hesitou em tripudiar

sobre tuas leis de fraternidade e amor, martirizando um inocente, e que foi

arrebatado pela morte para o julgamento da tua justiça. Queremos

esquecer a sua infâmia, como perdoaste aos teus algozes do alto da cruz

infamante do martírio... Ajuda-nos, Senhor, para que compreendamos e

pratiquemos os teus ensinos!...

Levantando-se, comovida, Lívia descobriu o cadáver do apóstolo e

beijou-lhe as mãos pela última vez, exclamando em lágrimas, carinhosa:

- Adeus, meu mestre, meu protetor e meu amigo... Que Jesus te

receba o espírito iluminado e justo no seu Reino de luzes imortais, e que a

minha pobre alma saiba aproveitar, neste mundo, a tua lição de fé e

valoroso heroísmo!...

Repousado numa urna improvisada, o corpo inerte de Simeão foi

conduzido ao seu último jazigo. Numerosas tochas haviam sido acesas

para o ofício amargo e doloroso.

E enquanto o cadáver do lictor Sulpício descia à terra úmida, sem

outro auxílio além da cooperação dos seus prepostos, o nobre ancião ia

repousar à frente do seu templo e do seu ninho, entre as virações

cariciosas do vale, à sombra fresca das oliveiras que lhe eram tão

queridas!...

Lívia dispensou, em seguida, os soldados do governador e,

guardada por homens valorosos e

212

ROMANCE DE EMMANUEL

dedicados, passou o resto da noite em companhia de Ana e da filhinha, em

profundas meditações e dolorosas cismas

Ao raiar da aurora, retiravam-se definitivamente do vale de Siquém,

acompanhadas por um vizinho de Simeão, encaminhando-se, de volta, a

Cafarnaum, e levando, no íntimo, numerosas lições para toda a vida.

Sabedoras de que não se fariam esperar as represálias das

autoridades administrativas, regressaram por estradas diferentes, que

constituíam atalhos preciosos, sem tocar em Naim para a troca de animais.

Com algumas horas sucessivas, em marcha forçada, atingiam o solar

tranqüilo, onde iam descansar dos golpes sofridos.

Lívia remunerou largamente o seu dedicado companheiro de viagem,

retirando-se para os seus aposentos, onde fixou, em base preciosa, a

pequena cruz de madeira que lhe dera o apóstolo, algumas horas antes do

cruento martírio.

Alguns dias se passaram sobre os infaustos acontecimentos.

Pôncio Pilatos, contudo, informado de todos os pormenores do

ocorrido, rugiu de ódio selvagem. Reconhecendo que defrontava

poderosos inimigos, quais Públio Lentulus e sua mulher, buscou acionar

por outro lado o mecanismo de sinistras represálias. Recolhendo-se

imediatamente ao seu palácio de Samaria, fez que todos os habitantes da

região pagassem muito caro a morte do lictor, humilhando-os através de

medidas aviltantes e vexatórias. Assassínios nefandos foram praticados

entre os elementos da população pacífica do vale, propagando-se por

Sebaste e outros núcleos mais adiantados a rede de crimes e crueldades

da sua mentalidade vingativa e tenebrosa.

Estacionemos, todavia, em Cafarnaum e aguardemos aí a chegada

de um homem.

Ao cabo de alguns dias, com efeito, regressava o senador de sua

viagem através da Palestina.

213

HÁ DOIS MIL ANOS...

Após o seu regresso, Lívia cientificou-o de quanto ocorrera na sua

ausência. Públio Lentulus ouvia-lhe o relato silenciosamente. À medida

que se lhe tornavam conhecidas as ocorrências, sentia-se intimamente

tomado de indignação e de revolta contra o administrador da Judeia, não

só pela sua incorreção política, mas também pela extrema antipatia

pessoal que a sua figura lhe inspirava, resolvendo, em face do acontecido,

não vacilar um segundo em processá-lo acerbamente, como quem julgava

dever perseguir o mais cruel dos inimigos.

O leitor poderá, talvez, supor que o orgulhoso romano teria o

coração sensibilizado e modificados os sentimentos a respeito da esposa,

de quem presumia possuir as mais flagrantes provas de deslealdade e

perjúrio, no santuário do lar e da família. Mas, Públio Lentulus era humano,

e, nessa condição precária e miserável, tinha de ser um fruto do seu

tempo, da sua educação e do seu meio.

Ao ouvir as últimas palavras de sua mulher, pronunciadas em tom

comovido, como o de alguém que pede apoio e reclama o direito de um

carinho, replicou austeramente:

- Lívia, eu me regozijo com a tua atitude e rogo aos deuses pela tua

edificação. Teus atos simbolizam para mim a realidade da tua regeneração,

depois da fragorosa queda vista com os meus olhos. Bem sabes que para

mim a esposa não mais deve existir; contudo, louvo a mãe de meus filhos,

sentindo-me confortado porque, se não acordaste a tempo de seres feliz,

despertaste ainda com a possibilidade de viver... Tua repulsa tardia por

esse homem cruel me autoriza a crer na tua maternal dedicação e isso

basta!...

Essas palavras, pronunciadas em tom de superioridade e secura,

demonstraram a Lívia que a separação afetiva de ambos deveria continuar

no ambiente doméstico, irremissivelmente.

Abalada nas comoções do seu martírio moral, retirou-se para o

quarto, onde se prostrou diante

214

ROMANCE DE EMMANUEL

da cruz de Simeão, com a alma desalentada e combalida. Ali, meditou

angustiosamente na sua penosa situação, mas, em dado instante, viu que

a lembrança humilde do apóstolo da Samaria irradiava uma luz caridosa e

resplandecente, ao mesmo tempo que uma voz suave e branda murmurava

aos seus ouvidos:

- Filha, não esperes da Terra a felicidade que o mundo não te pode

dar! Aí, todas as venturas são como neblinas fugidias, desfeitas ao calor

das paixões ou destroçadas ao sopro devastador das mais sinistras

desilusões!... Espera, porém, o Reino da misericórdia divina, porque nas

moradas do Senhor há bastante luz para que floresçam as mais

santificadas esperanças do teu coração maternal!... Não aguardes, pois, da

Terra, mais que a coroa de espinhos do sacrifício...

A esposa do senador não se surpreendeu com o fenômeno.

Conhecendo de oitiva a ressurreição do Senhor, tinha a convicção plena

de que se tratava da alma redimida de Simeão, que a seu ver voltava das

luzes do Reino de Deus para lhe confortar o coração.

Por semanas a fio, recebeu Públio Lentulus a visita de samaritanos

numerosos, que lhe vinham solicitar enérgicas providências contra os

desmandos de Pôncio Pilatos, então instalado no seu palácio de Samaria,

onde permanecia raramente, ordenando o assassínio ou a escravidão de

elementos numerosos, em sinal de vingança pela morte daquele que

considerava como o melhor áulico da sua casa.

Daí a algum tempo, regressava Comênio de sua viagem a Roma, com

um professor competente para a pequena Flávia. Além desse preceptor

notável, que lhe mandava a carinhosa solicitude de Flamínio Severus,

chegavam-lhe também novas noticias, que o senador considerava

confortadoras. Em virtude da sua solicitação, as altas autoridades do

Império determinaram a volta do pretor Sálvio

215

HÁ DOIS MIL ANOS...

Lentulus, com a família, para a sede do governo imperial, pedindo-lhe o

amigo, particularmente, a remessa de dados positivos quanto à

administração de Pilatos na Judeia, a fim de que o Senado pleiteasse a sua

remoção.

Em virtude dessas circunstâncias, daí a algum tempo voltava

Comênio a Roma levando a Flamínio um volumoso processo, relacionando

todas as crueldades praticadas por Pilatos, entre os samaritanos. Em vista

das distâncias, por muito tempo rolou o processo nos gabinetes

administrativos, até que no ano de 35 foi o Procurador da Judeia chamado

a Roma, onde foi destituído de todas as funções que exercia no governo

imperial, sendo banido para Viena, nas Gálias, onde se suicidou, daí a três

anos, ralado de remorsos, de privações e de amarguras.

Públio Lentulus permaneceu com as suas esperanças de pai, na

mesma vivenda da Galileia, dedicando-se quase que exclusivamente aos

seus estudos, aos seus processos administrativos e à educação da filha,

que manifestara, muito cedo, pendores literários ao lado de apreciáveis

dotes de inteligência.

Lívia conservou Ana junto de sua tutela e ambas continuaram

orando junto à cruz que lhes dera Simeão no instante extremo, rogando a

Jesus a necessária força para as penosas lutas da vida.

Debalde a família Lentulus esperava que o destino lhe trouxesse, de

novo, o sorriso encantador do pequenino Marcus e, enquanto o senador e

filhinha se preparavam para o mundo, junto de Lívia e Ana, que traziam as

suas esperanças postas no Céu, deixemos passar mais de dez anos sobre

a dolorosa serenidade da vila de Cafarnaum, mais de dez anos que

passaram lentos, silenciosos, tristes.

FIM DA PRIMEIRA PARTE

216

SEGUNDA PARTE

I

A morte de Flamínio

O ano de 46 corria calmo.

Em Cafarnaum, vamos encontrar, de novo, as nossas personagens

mergulhadas numa serenidade relativa.

As autoridades administrativas, em Roma, não eram as mesmas.

Entretanto, apoiado no prestígio do seu nome e nas consideráveis

influências políticas de Flamínio Severus, perante o Senado, Públio

Lentulus continuava comissionado na Palestina, onde gozava de todos os

direitos e regalos políticos, na administração provincial.

Debalde continuara ali o senador, a despeito de todo o seu imenso

desejo de voltar à sede do governo imperial, esperando o ensejo de reaver

o filho, que o tempo continuava a reter no domínio das sombras

misteriosas. Nos últimos anos, perdera por completo a esperança de

atingir o seu desiderato, mesmo porque, considerava, a esse tempo

Marcus Lentulus deveria estar no seu primeiro período de juventude,

tornando-se irreconhecível aos olhos paternos.

217

HÁ DOIS MIL ANOS...

Outras vezes, ponderava o orgulhoso patrício que o filho não mais

vivia; que, certamente, as forças perversas e criminosas que o haviam

arrebatado do lar teriam exterminado, igualmente, o gracioso menino sob a

foice da morte, temendo uma punição inexorável. Lá dentro, porém, no imo

dalma, latejava a intuição de que Marcus ainda vivia, razão por que, entre

as indecisões e alternativas, de todos os dias, resolvera, antes de tudo,

ouvir a voz do dever paternal. lançando mão de todos os recursos para

reencontrá-lo, permanecendo ali indefinidamente, contra os seus projetos

mais decididos e mais sinceros.

A esse tempo, vamos encontrá-lo com os traços fisionômicos

ligeiramente alterados, embora treze anos houvessem dobado sobre os

dolorosos acontecimentos de 33. Seus cabelos ainda guardavam

integralmente a cor natural e apenas algumas rugas, quase imperceptíveis,

tinham vindo acentuar a sua facies de profunda austeridade. Serena

tristeza lhe pairava no semblante, invariavelmente, levando-o a isolar-se

quase da vida comum, para mergulhar tão somente no oceano dos seus

papéis e dos seus estudos, com a única preocupação de maior vulto, que

era a educação da filha, buscando dotá-la das mais elevadas qualidades

intelectivas e sentimentais. Sua vida no lar continuava a mesma, embora o

coração muitas vezes lhe pedisse reatar o laço conjugal, atendendo

àqueles treze anos de separação íntima, com a mais absoluta renúncia de

Lívia a todas e quaisquer distrações que não fossem as da vida doméstica

e da sua crença. fervorosa e sincera. A sós com as suas meditações,

Públio Lentulus deixava divagar o pensamento pelas recordações mais

doces e mais distantes e, nessas horas de introspecção, ouvia a voz da

consciência que subia do coração ao cérebro, como um apelo à razão

inflexível, tentando destruir-lhe os preconceitos, mas o orgulho vencia

sempre, com a sua rigidez inquebrantável. Algo lhe dizia no íntimo

218

ROMANCE DE EMMANUEL

que sua mulher estava isenta de toda mácula, mas o espírito de vaidade

preconceituosa lhe fazia ver, imediatamente, a cena inesquecível da

esposa ao deixar o gabinete privado de Pilatos, em vestes de disfarce,

ouvindo ainda, sinistramente, as palavras escarninhas de Fúlvia Prócula,

nas suas calúnias estranhas e ominosas...

Lívia, porém, se insulara, envolta num véu de triste resignação,

como quem espera as providencias sobrenaturais, que nunca aparecem no

inquieto decurso de uma existência humana. O esposo a conservava junto

da filha, atendendo simplesmente à condição de mãe, não lhe permitindo,

porém, de modo algum, interferir nos seus planos e trabalhos educativos.

Para Lívia, aquele golpe rude fôra o maior sofrimento da sua vida. A

própria calúnia não lhe doera tanto; mas, o reconhecer-se como

dispensável junto da filha do seu coração, constituía a seus olhos a mais

dolorosa humilhação da sua existência. Era por esse motivo que mais se

abroquelava na fé, procurando enriquecer a alma sofredora, com as luzes

da crença fervorosa e sincera.

Longe de conservar as energias orgânicas, tal como acontecera ao

marido, seu rosto testemunhava as injúrias do tempo, com a sua pesada

bagagem de sofrimentos e amarguras. Na sua fronte, que as dores haviam

santificado, pendiam já alguns fios prateados, enquanto os olhos

profundos se tocavam de brilho misterioso, como se houvessem

intensificado o próprio fulgor, de tanto se fixarem no infinito dos céus.

Seus traços fisionômicos, embora atestassem velhice prematura,

revelavam ainda a antiga beleza, agora transformada em indefinível e

nobre expressão de martírio e de virtude. Um único pedido fizera ao

esposo, quando se viu isolada dos seus afetos mais queridos, no ambiente

doméstico, longe do próprio contacto espiritual com a filha, circunstância

que ainda mais lhe afligia o coração amargurado: - foi apenas que lhe

permi219

HÁ DOIS MIL ANOS...

tisse continuar nas suas práticas cristãs, em companhia de Ana, que tanto

se lhe afeiçoara, com aquele espírito de dedicação que lhe conhecemos, a

ponto de desprezar as oportunidades que se lhe ofereceram para constituir

família. O senador deu-lhe ampla permissão em tal sentido, chegando a

facultar-lhe recursos financeiros para atender aos numerosos operários da

doutrina que a procuravam, discretamente, amparando-se nas suas

possibilidades materiais para iniciativas renovadoras.

Falta-nos, agora, apresentar Flávia Lentúlia aos que a viram na

infância, doente e tímida.

No esplendor dos seus vinte e dois anos, ostentava o fruto da

educação que o pai lhe dera, com a forte expressão pessoal do seu caráter

e da sua formação espiritual.

A filha do senador era Lívia, na encantadora graça dos seus dotes

físicos, e era Públio Lentulus, pelo coração. Educada por professores

eminentes, que se sucederam no curso dos anos, sob a escolha dos

Severus, que jamais se descuidaram dos seus amigos distantes, sabia o

idioma pátrio a fundo, manejando o grego com a mesma facilidade e

mantendo-se em contacto com os autores mais célebres, em virtude do

seu constante convívio com a intelectualidade paterna.

A educação intelectual de uma jovem romana, nessa época, era sem

dúvida secundária e deficiente. Os espetáculos empolgantes dos

anfiteatros, bem como a ausência de uma ocupação séria, para as

mulheres do tempo, em face da incessante multiplicação e barateamento

dos escravos, prejudicaram sensivelmente a cultura da mulher romana, no

fastígio do Império, quando o espírito feminino rastejava no escândalo, na

depravação moral e na vida dissoluta.

O senador, porém, fazia questão de ser um homem antigo. Não

perdera de vista as virtudes heróicas e sublimadas das matronas

inesquecíveis, das suas tradições familiares, e foi por isso que,

220

ROMANCE DE EMMANUEL

fugindo à época, buscou aparelhar a filha para a vida social, com a cultura

mais aprimorada possível, embora lhe enchesse igualmente o coração de

orgulho e vaidade, com todos os preconceitos do tempo.

A jovem amava a mãe com extrema ternura, mas à vista das ordens

do pai, que a conservava invariavelmente junto dele, nos seus gabinetes

de estudo ou nas pequenas viagens costumeiras. não fazia mistério da sua

predileção pelo espírito paterno, de quem presumia haver herdado as

qualidades mais fulgurantes e mais nobres. sem conseguir entender a

doce humildade e a resignação heróica da mãe, tão digna e tão

desventurada.

O senador buscara desenvolver-lhe as tendências literárias,

possibilitando-lhe as melhores aquisições de ordem intelectual,

admirando-lhe a facilidade de expressão, principalmente na arte poética,

tão exaltada naquela época.

O tempo transcorria com relativa calma para todos os corações.

De vez em quando, falava-se na possibilidade de regressar a Roma,

plano esse cuja realização era sempre procrastinada, em vista da

esperança de reencontrar o desaparecido.

Num dia suave do mês de março, quando as árvores frondosas se

cobriam de flores, vamos encontrar na casa do senador um mensageiro

que chegava de Roma a toda pressa.

Tratava-se de um emissário de Flamínio Severus, que em longa carta

comunicava ao amigo o seu precário estado de saúde, acrescentando que

desejava abraçá-lo antes de morrer. Comovedores apelos constavam

desse documento privado, suscitando ao espírito de Públio as mais

acurada ponderações. Todavia, a leitura de uma carta assinada por

Calpúrnia, que viera em separado, era decisiva. Nesse desabafo, a

veneranda senhora o informou do estado de saúde do marido, que, a seu

ver, era precaríssimo, acentuando os penosos dissabores e angustiosas

preocupações que ambos ex221

HÁ DOIS MIL ANOS...

perimentavam acerca dos filhos, que, em plena mocidade, se entregavam

às maiores dissipações, seguindo a corrente de desvarios sociais da

época. Terminava a carta comovedora, pedindo ao amigo que voltasse,

que os assistisse naquele transe, de modo que a sua amizade e paternal

interesse representassem uma força moderadora junto de Plínio e de

Agripa, que, homens feitos, se deixavam levar no turbilhão dos prazeres

mais nefastos.

Públio Lentulus não hesitou um instante.

Mostrou à filha os documentos recebidos e, depois de examinarem,

juntos, os pormenores do seu conteúdo, comunicou a Lívia o seu

propósito de voltar a Roma na primeira oportunidade.

A nobre senhora lembrou-se, então, de quão diversa lhe seria a vida

na grande cidade dos césares, com as idéias que agora possuía, e pediu a

Jesus não lhe faltasse a coragem necessária para vencer em todos os

embates que houvesse de sustentar na sociedade romana, para conservar

íntegra a sua fé.

A volta a Roma não reclamou, desse modo, grande demora. O

mesmo emissário levou as instruções do senador para os seus amigos da

Capital do Império e, daí a pouco, uma galera os esperava em Cesareia,

reconduzindo a família Lentulus, de regresso, depois da permanência de

quinze anos na Palestina.

Desnecessário dizer dos pequeninos incidentes do retorno, tal a

vulgaridade das viagens antigas, com a sua monotonia, aliada às

vagarosas perspectivas e ao doloroso espetáculo do martírio dos

escravos.

Cumpre-nos, entretanto, acrescentar que, nas vésperas da chegada,

o senador chamou a filha e a mulher, dirigindo-lhes a palavra em tom

discreto:

- Antes de aportarmos, convém lhes explique a minha resolução a

respeito do nosso pobre Marcus.

Há muitos anos, guardo o maior silêncio em torno do assunto, para

com os meus afeiçoados de

222

ROMANCE DE EMMANUEL

Roma e não desejo ser considerado mau pai, em nosso ambiente social.

Somente uma circunstância, como a que nos impõe esta viagem, me

levaria a regressar, porquanto não se justifica que um pai abandone o filho

em tais paragens, ainda mesmo torturado pela incerteza da continuidade

de sua existência.

Assim, resolvi comunicar, a quantos mo perguntem, que o filho está

morto há mais de dez anos, como, de fato, deverá estar para nós outros,

visto a impossibilidade de o reconhecermos, na hipótese do seu

reaparecimento.

Se soubessem de nossas mágoas, não faltariam embusteiros que

desejassem ludibriar nossa boa fé, explorando o sentimentalismo familiar.

Ambas assentiram na decisão, que lhes parecia a mais acertada, e,

dai a minutos, o porto de Óstia estava à vista, agora lindamente aparelhado

pelo zelo do Imperador Cláudio, que ali mandara executar obras

interessantes e monumentais.

Nessa hora, não se observava o contentamento, natural em tais

circunstâncias.

A partida, quinze anos antes, havia sido um cântico de esperança

nas expectativas suaves do futuro, mas o regresso estava cheio do

silêncio amargo das mais penosas realidades.

Além do desencanto da vida conjugal, Públio e Lívia não viam ali,

entre os rostos amigos que os esperavam, as silhuetas de Flamínio e

Calpúrnia, que consideravam irmãos muito amados.

Contudo, dois rapazes simpáticos e fortes, de gestos

desembaraçados, nas suas togas irrepreensíveis, dirigiram-se a eles

imediatamente, em escaleres confortáveis, mal a embarcação havia

ancorado, rapazes esses que o senador e esposa reconheceram de pronto,

num afetuoso e comovido abraço.

Tratava-se de Plínio e seu irmão que, incumbidos pelos pais, vinham

receber os queridos ausentes.

223

HÁ DOIS MIL ANOS...

Apresentados a Flávia, ambos fizeram um movimento instintivo de

admiração, recordando o dia da partida, quando a haviam acomodado no

beliche, entre os seus gemidos e caretas de criança doente.

A jovem impressionara-se, também, com a figura de ambos, de quem

possuía apagadas reminiscências, entre as recordações remotas da sua

infância. Principalmente Plínio Severus, o mais moço, a havia

impressionado profundamente, com os seus vinte seis anos completos, do

mesmo porte elegante e distinto com que ela havia idealizado o herói da

sua imaginação feminina.

Notava-se, igualmente, num relance, que o rapaz não ficara

indiferente àquelas mesmas emoções, porque, trocadas as primeiras

impressões da viagem e examinada a situação da saúde de FIamínio

Severus, considerada pelos filhos como excessivamente grave, Plínio

ofereceu o braço à jovem, enquanto Agripa lhe observava num leve tom de

ciúme:

- Mas que é isso, Plínio? Flávia pode suscetibilizar-se com a tua

intimidade excessiva!...

- Ora, Agripa - respondeu ele, com um franco sorriso -, estás muito

prejudicado pelos formalismos da vida pública. Flávia não pode estranhar

os nossos costumes, na sua condição de patrícia pelo nascimento e, ao

demais, não nasci para as disciplinas do Estado, tão do teu gosto!...

A essas palavras, ditas com visível bom humor, acrescentou Públio

Lentulus, confortado pelo ambiente da sua predileção:

- Vamos, meus filhos!

E dando o braço à esposa, para desempenhar a comédia da sua

felicidade conjugal na vida comum da grande cidade, seguido de Plínio,

que amparava a jovem no seu braço forte e conquistador em assuntos do

coração, desembarcaram junto de Agripa, a fim de descansarem um

pouco, antes de seguirem diretamente para Roma, e, para o que, todas as

providências haviam sido tomadas pelos irmãos

224

ROMANCE DE EMMANUEL

Severus, com o máximo de carinho e espontânea dedicação.

Lívia não se esqueceu de Ana, providenciando para o seu conforto

junto aos demais servos da casa, em todo o percurso de caminho que os

separava da residência.

Em direção à cidade, pensou então o senador que, finalmente, ia

rever o amigo muito amado. Há longos anos acariciava a idéia de

confessar-lhe, de viva voz, todos os seus desgostos na vida conjugal,

expondo lhe com franqueza e sinceridade as suas preocupações, acerca

dos fatos que o separavam da esposa, na intimidade do lar. Tinha sede de

suas palavras afetuosas e de explicações consoladoras, porque sentia que

amava a mulher acima de tudo, apesar de todos os dissabores

experimentados. Não crendo sinceramente na sua queda, apenas seu

orgulho de homem o afastava de uma reconciliação que cada dia se

tornava mais imperiosa e necessária.

Em breve defrontavam a antiga residência, lindamente ornamentada

para recebê-los. Numerosos servos se movimentavam, enquanto os

recém-vindos faziam o reconhecimento dos lugares mais íntimos e mais

familiares.

Havia quinze anos que o palácio do Aventino aguardava os donos,

sob o carinho de escravos dedicados e dignos.

Logo se servia uma refeição frugal no triclínio enquanto os irmãos

Severus, que participavam desse ligeiro repasto, esperavam os seus

amigos, a fim de seguirem todos juntos para a residência de Flamínio,

onde o enfermo os aguardava ansiosamente.

Plínio, em dado instante, como quem traz à baila uma notícia

interessante e agradável, exclamou, dirigindo-se ao senador:

- Há bem tempo, ficamos conhecendo vosso tio Sálvio Lentulus e

sua família, que residem perto do Fórum.

225

HÁ DOIS MIL ANOS...

- Meu tio? - perguntou Públio, impressionado, como se as

lembranças de Fúlvia lhe trouxessem ao íntimo uma aluvião de fantasmas.

Mas, ao mesmo tempo, como se estivesse fazendo o possível por

adormentar as próprias mágoas, acentuou com suposta serenidade:

- Ah! é verdade! Faz mais de doze anos que ele regressou da

Palestina...

Foi neste comenos que Agripa interveio como a vingar-se da atitude

do irmão, quando ainda não havia desembarcado, exclamando

intencionalmente:

- E por sinal que Plínio parece inclinado a desposar-lhe a filha, de

nome Aurélia, com quem mantém as melhores relações afetivas, de muito

tempo.

Ao ouvir essas palavras, Flávia Lentulus fitou o interpelado, como se

entre o seu coração e o filho mais moço de Flamínio já houvesse os mais

fortes laços de compromissos sentimentais, dentro das leis misteriosas

das afinidades psíquicas.

Enquanto se passava esse duelo de emoções, Plínio fitou o irmão

quase com ódio, dando a entender a impulsividade do seu espírito e

respondendo com ênfase, como a defender-se de uma acusação

injustificável, perante a mulher das suas preferências:

- Ainda desta vez, Agripa, estás enganado. Minhas relações com

Aurélia não têm outro fundamento, além do da pura amizade reciproca,

mesmo porque considero muito remota qualquer possibilidade de

casamento, na fase atual da minha vida.

Agripa esboçou um sorriso brejeiro, enquanto o senador,

compreendendo a situação, acalmava os ânimos, exclamando com

bondade:

- Está bem, filhos; mas falaremos depois sobre meu tio. Sinto-me

ansioso por abraçar o querido enfermo e não temos tempo a perder.

226

ROMANCE DE EMMANUEL

Em breves minutos um grupo de liteiras encaminhava-se para a

nobre residência dos Severus, onde Flamínio aguardava o amigo,

ansiosamente.

Sua fisionomia não acusava mais aquela mobilidade antiga e a

empolgante expressão de energia que a caracterizava, mas, em

compensação, grande placidez se lhe irradiava dos olhos, sensibilizando a

quantos o visitavam nos seus derradeiros dias de lutas terrestres. A

expressão do semblante era a do lutador derribado e abatido, exausto de

combate

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