Nota do Blog: Apesar de estar integralmente apresentado. Esse livro ainda não está totalmente formatado nesse blog, para uma leitura mais prazerosa.
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Muita Paz
RENÚNCIA
FRANCISCO CÂNDIDO XAVIER
ROMANCE DITADO PELO ESPÍRITO EMMANUEL
VELHAS RECORDAÇÕES
Quem poderá deter as velhas recordações que iluminam os caminhos da
eternidade?
Lembramo-nos de Alcione, desde os dias de sua infância. Muitas vezes a
vi, com o Padre Damiano, num velho adro de Espanha, passeando ao pôr do
Sol.
Não raro, levantava o semblante infantil para o céu e perguntava,
atenciosa:
— Padre Damiano, quem terá feito as nuvens, que parecem flores grandes
e pesadas, que nunca chegam a cair no chão?
Deus minha filha — dizia o sacerdote.
Mas, como se no coração pequenino não devesse existir esquecimento
das coisas simples e humildes, voltava ela a interrogar:
E as pedras? — quem teria criado as pedras que seguram o chão?
— Foi Deus também.
Então, após meditar de olhos mergulhados no grande crepúsculo, a
pequenina exclamava:
— Ah! como Deus é bom! Ninguém ficou esquecido!
E era de ver-se a sua bondade singular, o interesse pelo dever cumprido,
dedicação à verdade e ao bem.
Cedo compreendi que a família afetuosa de Ávila se constituía de amizades
vigorosas, cujas origens se perdiam no tempo.
Os anos — minutos do relógio da eternidade —correram sempre
movimentados e cheios de amor. A criança de outros tempos tornara-se na
benfeitora cheia de sabedoria. Sua vida não representava um feixe de atos
comuns, mas um testemunho permanente de sacrifícios santificantes. Desde a
primeira juventude, Alcione transformara-se em centro de afeições, em fonte de
luz viva, onde se podiam vislumbrar as claridades augustas do Céu. Sua
conduta, na alegria e na dor, na facilidade e no obstáculo, era um ensinamento
generoso, em tõdas as circunstâncias.
Creio mesmo que ela nunca satisfez a um desejo próprio, mas nunca foi
encontrada em desatenção aos desígnios de Deus. Jamais a vi preocupada
com a felicidade pessoal; entretanto, interessava-se com ardor pela paz e pelo
bem de todos. Demonstrava cuidado singular em subtrair, aos olhos alheios,
seus gestos de perfeição espiritual, porém queria sempre revelar as idéias
nobres de quantos a rodeavam, a fim de os ver amados, otimistas, felizes.
Minhas experiências rolaram deva garinho para os arcanos do Tempo, a
morte do corpo arrastou-me a novos caminhos e, no entanto, jamais pude es
quecer a meiga figura de anjo, em trânsito pela Terra.
Mais tarde, pude beijar-lhe os pés e com preender-lhe a história divina. O
resultado dêsse conhecimento vibra neste esfôrço singelo, que não tem
pretensões a obra literária.
Este é um livro de sentimento, para quem aprecie a experiência humana
através do coração. Em particular, falará a todos os que se encontrem encarcerados,
sentenciados, esquecidos daquele amor que cobre a multidão dos
pecados, consoante os ensinamentos de Jesus. A maioria dos aprendizes do
Evangelho deixa-se tomar, em sentido absoluto, pelas idéias de resgate
escabroso, de olho por olho, ou, então, pela preocupação de recompensas na
Terra ou no Céu. Aqui, comentam-se reencarnações criminosas; ali, esperam4
se tão só prantos amargos; além, existem corações anelantes de remansado e
ocioso pousio. A esperança e a responsabilidade parecem tesouros
esquecidos. É razoável que se não possa negar o caráter incorruptível da
Justiça, porém, não se deverá esquecer o otimismo, a confiança, a dedicação e
tôdas as energias que o amor procura despertar no âmago das consciências.
Para as almas sinceras, que ainda solucem nos laços do desânimo e
desalento, a história de Alcione é um bálsamo reconfortador. Naturalmente que
ela própria, qual amorosa visão da Espiritualidade eterna, emergirá das
páginas luminosas da sua experiência, perguntando ao leitor que se sinta
oprimido e exausto:
— Por que reténs a noção dos castigos implacáveis, quando Nosso Pai nos
oferece o manancial inexaurível do seu amor? Por que atribuis tamanha
importância ao sofrimento? Levanta-te! Esqueceste Jesus? Já que o Mestre
padeceu por todos, sem culpa, onde estás que não sentes prazer em trabalhar,
de qualquer forma, por amor ao seu nome?
A psicologia de Alcione é bem mais complexa do que se possa imaginar ao
primeiro exame. Na grandeza da sua dedicação, vemos o amor renunciando à
glória da luz, a fim de se mergulhar no mundo da morte. Com seu gesto divino,
a Terra não é apenas um lugar de expiação destinado a exílio amarguroso,
mas, também, uma escola sublime, digna de ser visitada pelos gênios celestes.
Dentro dos horizontes do Planêta, ainda vigem a sombra, a morte, a lágrima...
Isso é incontestável. Mas, quem seguir nas estradas que Alcione trilhou,
converterá todo esse patrimônio em tesouros opinos para a vida imortal.
Aqui, pois, oferecemos-te, leitor amigo, tão velhas recordações.
Crê, no entanto, que, por velhas, não são menos preciosas. São heranças
sagradas do escrínio do coração, jóias de subido valor que espalharemos a
êsmo, recordando que, se muita gente presume haver alcançado os êxitos
retumbantes e a felicidade ilusória no campo vasto do mundo, em verdade
ainda não aprendeu nem mesmo a estabelecer a vitória da paz, na experiência
sagrada que se verifica entre as paredes de um lar.
Pedro Leopoldo, 11 de janeiro de 1942.
EMMANUEL
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PRIMEIRA PARTE
6
1
Sacrifícios do amor
Capítulo 10, item 11
A paisagem era formada de sombras, numa região indefinível na linguagem
humana. Substâncias diferentes das que compõem o solo terrestre constituíam
a sua crosta sulcada de caminhos tortuosos entre arbustos mirrados, à
semelhança dos cactos próprios das zonas áridas. Os horizontes perdiam-se
ao longe, nas linhas escuras do quadro melancólico, como se aquela hora
assinalasse pesado crepúsculo.
Fazia frio, agravado pelas rajadas fortes do vento úmido, que soprava rijo,
deixando no espaço vaga expressão de doloroso lamento. O lugar dava a
impressão de triste país de exílio, destinado a criminosos condenados a penas
ingratas.
Entretanto, ouviam-se vozes que a ventania quase abafava, como de
prisioneiros cheios de expectação e de esperança.
Em singular e sombrio recôncavo, pequeno grupo de espíritos culposos
comentava largos projetos de atividades futuras. Suas túnicas exóticas e
grandes capuzes pareciam identificá-los como estranhos ministros de um culto
ignorado na Terra. Alguns se revelavam inquietos, taciturnos, outros deixavam
transparecer nos olhos enorme desalento.
— Agora — dizia um que evidenciava posição de relêvo — necessitamos
renovar ideais, imprimir novo impulso à nossa voliçâo enfraquecida. O passado
vai longe e faz-se imprescindível arregimentar tôdas as fôrças para as lutas
que vêm perto. A providência misericordiosa do Todo-Poderoso nos concede
ensanchas de novas experiências na Terra. Meditemos em nossas quedas
dolorosas no redemoinho das paixões do mundo e firmemo-nos nos santos
propósitos de triunfo. Quantos anos temos perdido em amarissimos
sofrimentos, no plano dos remôrsos devastadores?... Recordemos as angústias
da via expiatória e agradeçamos a Deus o ensejo de voltar às tarefas
purificadoras. Esqueçamos a vaidade que nos envileceu o coração; a ambição
e o egoísmo que nos torturam a alma ingrata, e preparemo-nos para as
experiências justas e necessárias.
A voz do locutor, porém, embargava-se afogada em lágrimas. A lembrança
dolorosa do passado empolgava o grupo de antigos sacerdotes desviados do
nobre caminho que o Senhor lhes havia traçado.
Iniciara-se a troca de impressões entre todos. Alguns expunham
dificuldades íntimas, outros comentavam a intenção de trabalhar
devotadamente, até à vitória.
— O que mais me impressiona — proclamava um companheiro — é o
fantasma do esquecimento que nos obscurece o espirito, lá na Terra. Antes da
experiência, arquitetamos mil projetos de esfôrço, dedicação, perseverança;
somos nababos de preciosas intenções, mas, chegado o momento de as executar,
revelamos as mesmas fraquezas ou incidimos nas mesmas faltas que
nos compeliram aos desfiladeiros do crime e das reparações acerbas.
— Mas, onde estaria o mérito — explicava o amigo a quem eram dirigidas
aquelas observações — se o Criador não nos felicitasse com êsse olvido
temporário? Quem poderia aguardar o êxito desejável, defrontando velhos
inimigos, sem o bálsamo dessa bênção celestial sôbre a chaga da lembrança?
Sem a paz do esquecimento transitório, talvez a Terra deixasse de ser escola
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abençoada para ser ninho abominável de ódios perpétuos.
— Entretanto — objetava o interlocutor — semelhante situação me
atemoriza. Sinto enorme angústia só em pensar que perderei novamente a
memória, que ficarei quase inconsciente de meu patrimônio espiritual, ao
palmilhar as estradas terrestres, qual enterrado vivo a quem fôsse subtraida a
faculdade de respirar.
— Mas, como aprenderias a humildade com as reminiscências ativas do
orgulho? Poderias, acaso, beijar um filho, sentindo nele a presença de um
inimigo figadal? Conseguirias, de pronto, a força precisa para santificar, pelos
elos conjugais, a mulher que manchaste noutros tempos, induzindo-a ao
meretrício e às aventuras infames? Não percebes, no olvido terreno uma das
mais poderosas manifestações da bondade divina para com as criaturas
criminosas e transviadas? Concordo em que a experiencia humana para quem
observou, mesmo de longe, como aconteceu a nós outros, as resplendências
da vida espiritual, significa, de fato, a reparação laboriosa no seio de um
sepulcro; mas nós, meu caro Menandro, estamos desde há muito mumificados
no crime. Nossa consciência necessita do toque das expiações salvadoras. A
morte mais terrível é a da queda, mas a Terra nos oferece a medicação justa,
proporcionando-nos a santa possibilidade de nos reerguermos. Renasceremos
em suas formas perecíveis e, em cada dia da experiência humana, morreremos
um pouco, até que tenhamos eliminado, com o auxílio da poeira do mundo, os
monstros infernais que habitam em nós mesmos...
O amigo pareceu meditar aquêles conceitos profundos e, dando a
entender que se convencera, interrogou com atenção, encaminhando a
palestra para outros rumos:
- Quando se verificará nossa localização definitiva nos fluidos terrestres,
com vistas à nova experiência?
— A qualquer momento. Como sabes, muitos dos nossos já partiram. Os
benfeitores de nosso destino, que advogaram a concessão de novas oportunidades
ao nosso esfôrço remissor, já nos enviaram a mensagem derradeira,
desejando-nos realizações felizes nos trabalhos futuros.
Nesse instante, sucedeu qualquer coisa que o grupo de almas sofredoras e
esperançosas não conseguiu perceber. Uma forma luminosa descia do plano
constelado, semelhante a uma estréia desprendida do imenso colar dos astros
da noite, que agora se caracterizava pela sombra mais envolvente e profunda.
Quase ao tocar no centro da paisagem escura, tomou a forma humana, embora
não se lhe pudesse determinar os traços fisionômicos, tal a sua auréola de
ofuscante esplendor. No entanto, como acontece no círculo das impressões
humanas condicionadas às necessidades de cada criatura, nenhum dos
circunstantes lhe registrou, de maneira absoluta, a presença generosa, senão
mediante uma íntima alegria, permeada de santas esperanças. Ninguém
poderia definir o sentimento de bom ânimo que se estabelecera, de modo
geral. Elevada perspectiva de vitória no porvir palpitava, agora, nas
conversações. Alguém declarou que naquele instante, por certo, estavam
descendo novas bênçãos de Deus sôbre o grupo antes receoso e abatido.
Menandro e Pólux, os dois amigos cuja palestra foi particularmente
registrada, salientaram a sublime alegria que lhes inundava o coração e o mais
santo entusiasmo perdurou, entre todos, até que a pequena assembléia se
dissolveu em meio de comovedoras despedidas e compromissos sagrados.
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Pólux, todavia, ainda ali ficou longos minutos a meditar na magnanimidade
do Altíssimo e na magnitude do porvir. Não percebia a presença da sublime
entidade envôlta em luz, que se conservava a seu lado, em atitude carinhosa,
mas profundas emoções se lhe apoderaram do espírito, conduzindo-o às
reminiscências do pretérito remoto. Naquele instante, sentia-se tocado por
sentimentos intraduzíveis. Por que razão havia caído tantas vêzes ao longo dos
caminhos humanos? Numerosas lutas sustentara, a fim de unir-se a Deus para
sempre, através do amor purificado e divino. Experiências laboriosas havia
empreendido no Evangelho de Jesus, para servi-lo em espírito e verdade, e
contudo, na luta consigo mesmo, as paixões subalternas sempre saíam
vencedoras, em sinistros triunfos. Em que constelação permaneceria Alcione, a
alma de sua alma, vida de sua vida? E recordava as renúncias e sacrifícios
dela, em prol da sua redenção, lembrando que, se a sua alma de santa estava
sempre repleta de abnegação, êle, por si, fôra quase invariàvelmente frágil e
vacilante, agravando os próprios fracassos. Principiara, de alguns séculos, a
tarefa de resgate e aperfeiçoamento sob as claridades do Evangelho de Jesus-
Cristo; procedera nobremente até certo ponto, mas, no instante de coroar a
obra para a vida eterna, caíra miseràvelmente, como criminoso comum.
Desesperara-se. Chafurdara-se no lodo cruel. A revolta, porém, agravara-lhe
as penas íntimas, compelindo-o a ceder ante o cêrco apertado de novas
tentações. Reme-morava, agora, a figura da alma bem amada, com lágrimas
de amarguroso enternecimento. Sua memória parecia mais lúcida. À sua retina
espiritual, desenhavam-se os séculos transcorridos. Alcione sempre pura e
devotada, êle sempre incorrigível e cruel. Nas últimas experiências havia
pedido o hábito de sacerdote do catolicismo romano, desejoso de entregar-se
ao ascetismo regenerador. Preferira tentar o esfôrço de abster-se das
comodidades santas de um lar, a fim de sofrer o insulamento e as necessidades
profundas do coração, buscando gravar no espírito, com o ferrete de
padecimentos íntimos, o amor acrisolado e fiel. Mas, nas recapitulações perigosas,
tal propósito falhara sempre. Conspurcara os santuários, traira os
deveres santos, esquecera os compromissos sagrados e saíra novamente do
mundo como criminoso revel. Pólux considerou os erros do passado execrável
e, premido pelas angústias da consciência, começou a chorar.
Onde estava Alcione que parecia estranha às suas desventuras? Muitos
anos haviam decorrido sôbre as suas peregrinações, como espírito desolado,
entre remorsos acerbos, e nunca obtivera a dita de lhe beijar as mãos
carinhosas e benfeitoras. De quando em quando, recebia-lhe as mensagens de
incitamento e confôrto sagrado; no entanto, não conseguia saciar a saudade
torturante, nem evitar o próprio desalento do espírito caído no resvaladouro das
amarguras crueis.
Em palestra com os amigos. Pólux encontrava sempre poderosos
argumentos para convencer os mais rebeldes ou consolar os mais tristes. Suas
vastas reservas de conhecimento conferiam-lhe recursos espirituais que os
demais não possuiam.
E contudo, naquela hora da sua eternidade, sentia-se profundamente só e
desventurado.
Sob o jugo de atrozes recordações, sentindo que o instante de retôrno ao
orbe terráqueo estava próximo, procurou o refúgio caricioso da oração e
murmurou baixinho, de olhos erguidos para o alto:
— Jesus, Mestre querido e generoso, concedei-me fôrças ao coração
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enfêrmo e perverso!... Dignai-vos cerrar os olhos para as minhas fraquezas e
vêde, Senhor, quanto sofro!... Fortalecei minha vontade vacilante e, se
possível, meu Salvador, dai-me a graça de ouvir Alcione, antes de partir!.
Mas, a essa evocação direta da bem-amada, o pranto lhe embargou a
prece comovedora e dolorosa. Em atitude humilde, baixou os olhos nevoados
de lágrimas e soluçou, discretamente, como se estivesse envergonhado da
própria dor.
Nesse instante, a entidade amorosa que o assistia pareceu orar
intensamente, despendendo notável esfõrço para se lhe tornar visível.
Gradualmente, extinguiram-Se os raios de luz que a envolviam em reflexos
divinos. A sombra da paisagem cercou-a inteiramente, e uma jovem de singular
beleza tocou o penitente nos ombros, num gesto de ternura encantadora.
— Pólux! — murmurou com indizível doçura. Êle ergueu a fronte e soltou
um grito de inefável surprêsa.
— Alcione!... Alcione!... — respondeu com júbilo incoercível, postando-se
de joelhos ao mesmo tempo que lhe osculava as mãos reconhecidamente.
— Há quanto tempo me vejo privado dos teus carinhos! Meus dias são
milênios de inenarráveis angústias. Vieste atender ao mísero que sou?. .. Ah!
sim, Deus sempre envia seus anjos aos desgraçados, como enviou Jesus aos
pecadores...
— Levanta-te para o testemunho de amor ao Altíssimo — disse ela com
angélica ternura —; não te julgues abandonado nos caminhos da regeneração.
O Senhor está conosco, como estou sempre contigo. Anima-te para novas
experiências! Jesus não desampara nossos propósitos elevados. Sofre e
trabalha, Pólux, e, um dia, nos reuniremos para sempre na radiosa eternidade.
Deus é a fonte da alegria imortal, e quando houvermos triunfado de tôda a
imperfeição, banhar-nos-emos nessa fonte de júbilos infinitos.
— Ai de mim! — replicou revelando amargurosa desesperança.
Não lamentes! — tornou a entidade generosa — não perseveres em lastimar,
quando o Todo Poderoso nos faculta o direito de renovar o esfôrço para as
divinas conquistas. Novas tarefas te aguardam no seio amigo da Terra
generosa. Solicitaste uma oportunidade nova de consagração a Deus, e a
Providência te concedeu êsse precioso ensejo.
Sim — esclareceu Pólux desfeito em lágrimas roguei a recapituLação
do esfôrço dos sacerdotes devotados ao labor divino. Uma vez mais, quero
tentar as provas da abnegação e do ascetismo, na exemplificação do amor ao
próximo. Mobilizarei tôdas as minhas energias para avançar alguns graus na
distância imensa que nos separa na escala evolutiva. Quero viver sem lar e
sem filhos carinhosos, quero conhecer a solidão que muitas vêzes já
experimentaste no mundo, nos estrênuos sacrifícios por mim. Minhas noites
hão de ser desertas e tristes, caminharei junto dos que caem e padecem sôbre
a Terra, no propósito de servir a Jesus, através da sua seara de amor e
perdão.
Alcione contemplou-o embevecidamente, olhos mareados de pranto, numa
doce emoção de júbilo e reconhecimento. As afirmativas e promessas do
amado penetravam-lhe o coração como brandas carícias. De há muito
trabalhava com fervor pela obtenção daquele minuto divino, em que Pólux conseguisse
compreender e sentir o Mestre no coração antes de interpretá-lo
intelectualmente, apenas.
— Jesus abençoará nossas esperanças — exclamou afetuosa. — Nós que
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saímos juntos do mesmo sôpro de vida, chegaremos juntos aos braços
amoráveis do Eterno.
Pólux soluçou convulsivamente.
Esperar-te-ei — disse ela — através dos caminhos do Infinito. Lutarei ao
teu lado nos dias mais ásperos, dar-te-ei as mãos sôbre os abismos
tenebrosos.
Perdoaste-me, como sempre? interrogou Pólux, voz entrecortada pela
emoção do encontro.
— Os que se amam fundem as almas no entendimento recíproco. Deus
perdoa, concedendo-nos a oportunidade da redenção, e nós nos compreendemos
uns aos outros.
E, evidenciando o desejo de restaurar as energias do amado, continuou:
— Quantas vêzes também caí nas estradas longas e ríspidas. Acaso tenho
um passado sem mácula?... Não és o único a padecer nos resgates justos e
penosos. Milhões de almas, neste mesmo instante, clamam as desventuras do
remorso e invocam as bênçãos do Altíssimo para o trabalho retificador. E não
será razão de infinita alegria a certeza da concessão divina para recomeçar?
Já recebeste a permissão do Senhor para o reinício da luta, avizinha-se o
instante bendito do retôrno à tarefa e pensaste, acaso, nas torturas imensas de
quantos, neste minuto, se sentem oprimidos e amargurados, na expectativa
ansiosa de alcançar a dádiva que já obtiveste?.
Pólux contemplou-a reconfortado, mas, objetou melancolicamente
— Ah! sinto que poderia atingir culminânciaS nas necessárias reparações;
entretanto, Alcione, precisava para isso da tua constante assistência. Sei que
preciso recorrer a provas difíceis de abnegação e de ascetismo, mas... se
pudesse, ao menos, ver-te na Terra... Serias, para a minha tarefa, a radiosa
estrêla d’Alva e, à noite, quando fluíssem do céu as bênçãos da paz, lembrarme-
ia de ti e encontraria nessa recordação o manancial da coragem e dos
estímulos santos!.
Ela pareceu meditar profundamente e redargüiu:
— Implorarei a Jesus me conceda a alegria de voltar à Terra a fim de
atender ao meu ideal, que se constitui, aos meus olhos, de sacrossantos
deveres.
— Tu! Voltares? — perguntou o precito, ébrio de esperança.
—Por que não? — explicou Alcione com meiguice. — O planêta terrestre não
será um local situado igualmente no Céu? Esqueceste o que a Terra nos tem
ensinado qual mãe carinhosa, na grandeza de suas experiências? Muitas
vêzes, nós, na qualidade de filhos dela, manchamos-lhe a face generosa com
delitos execráveis e, entretanto, foi em seu seio que o Mestre surgiu na
manjedoura singela e levantou a cruz divina, encaminhando-nos ao serviço da
remissão.
— Ah! se Deus permitisse ao mísero penitente que sou — disse Pólux
dominado por indisfarçável alegria — a ventura de ouvir-te no estreito circulo
terrestre, acredito que nada teria a temer na senda reparadora...
Alcione notou-lhe o surto de alegria transbordante e, ponderando-lhe as
observações, palavra por palavra, obtemperou:
- Antes da minha, precisarás ouvir a voz do Cristo, e se Ele com sua
infinita bondade permitir minha volta à Terra, jamais olvidemos que vamos lá
regressar, não para auferir gozos prematuros, mas para sofrer juntos no
caminho redentor, até podermos desferir o vôo supremo de felicidade e união,
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em demanda de esferas mais altas. Na obra de Deus, a paz sem trabalho é
ociosidade com usurpação. Não afastes os olhos do quadro de sacrifícios que
nos compete fazer a favor de nós mesmos!
— Sim, Alcione, tu és o meu anjo bom — murmurou êle entre lágrimas. —
Ensina-me a percorrer as estradas depuradoras. Não me desam pares. Dizeme
como devo proceder na Terra. Repete que te não afastarás do meu
caminho. Inspira-me o desejo santo de resgatar meus pesados débitos, até ao
fim...
Sentado, em atitude humilde, o mísero sofredor guardava a cabeça entre
as mãos, enxugando as lágrimas copiosas.
Alcione afagou-lhe os cabelos com ternura e falou docemente:
— Não temas a prova de purificação que te conduzirá ao júbilo na senda
eterna, O cálice do remédio deve ser estimado por sua virtude curativa, não
pelo travo do conteúdo, que apenas produz a penosa sensação de alguns
segundos. Sê reconhecido a Deus nos sacrifícios, Pólux! Não desejes, nem
esperes regalias na escola de edificação, onde o próprio Mestre encontrou a
bofetada e a cruz do martírio. Não escutes as falsas promessas nem atendas
aos caprichos perniciosos que nascem do coração. Obedece ao Pai e toma
Jesus por cireneu de tôdas as horas. A porta estreita, ainda e sempre, é o
maravilhoso símbolo para a divina iluminação. Foge das fantasias
envenenadas que trabalham contra as santificantes aspirações do espírito. Recorda
as angustiosas experiências que tantas vêzes empreendemos na Terra,
para a conquista de nossa perpétua união. Não temos sêde de enganosas satisfações.
Temos sêde de Deus, Pólux! O infinito amor que nos transfunde as
almas tem sua origem sagrada em sua misericórdia paternal. Quero-te
eternamente, como sei que a união comigo é a tua sublime aspiração:
entretanto, seria justo encerrar nosso júbilo num círculo egoístico, tão
somente? Amamo-nos para sempre, a eternidade nos santifica os destinos,
mas o Pai está acima de nós. Entreguemo-nos ao seu amor, no santo trabalho
de suas obras. Em suas mãos augustas, meu querido, palpita a luz que enche
os abismos. Haverá maior glória que praticar-lhe a divina vontade, que se
traduz em amor, dedicação e alegria? Nos caminhos novos a percorrer, lembra
o Pai Amado e atende-o em tôdas as circunstâncias. Não acalentes no coração
os germes da vaidade e do egoísmo. Sacrifica-te. Dá combate a ti mesmo. Os
triunfos exteriores são aparentes e podem ser mentirosos. A vitória espiritual
pertence à alma heróica que soube unir-se ao céu, através de tôdas as
tempestades do mundo, trabalhando por burilar-se a si própria.
Pólux chorava, compungidamente, mas rogou com expressão
comovedora:
— Compreendo-te as palavras sábias e afetuosas! Farei tudo por unir-me a
Deus e a ti, eternamente. Pede por mim a Jesus para que eu tenha reflexão e
bondade no mundo...
No entanto, como se experimentasse um choque inesperado, levou as
mãos ao peito, calou-se por momentos, para depois retomar a palavra, espantado
e hesitante:
— Alcione, querida, não sei se a emoção desta hora divina abalou minhas
energias mais profundas; contudo, sinto que algo me envolve a fronte, uma
fôrça incoercível parece ameaçar o cérebro vacilante: experimento penosas
sensações, como quando perdemos as fôrças devagarinho, antes de cair...
E, após outra pausa ligeira, voltava a exclamar, revelando amarga
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estranheza:
— Chamam por mim... ouço vozes que me chegam de longe... que vem a
ser isto?...
O rosto se lhe cobrira de intenso livor, de profunda palidez, e, deixando
perceber que escutava interpelações de um mundo diferente, interrogou entre
atemorizado e surpreendido:
— Como interpretar êstes apelos? É êste o triste momento? Ah! não, não
pode ser!...
Mas, nesse instante, a jovem sentou-se a seu lado; carinhosa, tomou-lhe a
fronte cansada no regaço generoso e, afagando-lhe os cabelos com extrema
ternura, esclareceu:
— Acalma-te. Chamam-te da Terra. Vais adormecer para despertar na
experiência nova, nos círculos da vida humana. Partirás de meus braços para o
seio da afetuosa mãezinha que Jesus te destinou.
Pólux experimentava estranhas sensações, caracterizadas por súbito
abatimento; mas, sentindo-se conchegado ao amoroso regaço de Alcione, tinha
a impressão de ser a mais venturosa das criaturas. Impressões dominadoras
de sono senhoreavam-no e, no entanto, lutava desesperadamente contra elas,
tentando dilatar a ventura daqueles momentos sublimes, obtemperando
carinhosamente:
— Não desejaria outra mãe, senão tu mesma. Reúnes, para mim, todos
os sagrados requisitos de mãe, de irmã, de companheira e noiva bem-amada...
Ela, que também demonstrava grande emoção nos olhos rasos d’água,
acrescentou com meiguice:
— Sim, somos dois corações numa só alma, sob os desígnios do Altíssimo!
Pólux, agora, evidenciava intraduzível angústia. Os olhos moviam-se
inquietos, obedecendo às ansiosas expectativas do seu mundo interior. O peito
arfava dolorosamente, como se o coração tentasse romper o tórax, causandolhe
indefinível angústia. Seu estado geral dava a impressão de um moribundo
na Terra, nas vascas da morte. Fixou os olhos inquietos na bem-amada, tal
qual criança necessitada de carinho, e falou com dificuldade:
— Alcione, não será êste padecimento igual ao da morte que conhecemos
no mundo?... (1)
— Sim, meu querido, tua angústia de agora éoutra crise periódica.
— Reconheço — disse êle completando o raciocínio — e estou certo de
que terei crises semelhantes na Terra, ou noutros planos, até que me liberte da
morte no pecado... Um dia encontrarei a ressurreição eterna, a harmonia sem
fim... Permanecerei a teu lado para sempre!...
A jovem aconchegou-o ao coração, com mais ternura.
— Alcione — murmurou dificilmente —, não sei se me perdoaste a ponto
de permitir ao meu espírito miserável a solicitação de uma dádiva celestial...
(1) Os fenômenos da reencarnação, como aqueles que assinalam o
desprendimento do espírito no mundo, abrangem as mais variadas
formas e se verificam de acôrdo com as necessidades de cada um. —
Nota de Emmanuel
Ela adivinhou-lhe os pensamentos mais secretos e, todavia, com a
delicadeza de quem não deseja parecer superior, retrucou carinhosamente:
— Dize, Pólux! Que não farei por tua felicidade?
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— Desejava... que me beijasses... ao menos uma só vez, antes de partir...
Lágrimas ardentes repontaram nos olhos da noiva espiritual, que,
estreitando-o ternamente de encontro ao coração, como se atendesse a tenra
criança, replicou cheia de brandura:
— Antes disso, elevemos a Jesus nosso beijo de amor e reconhecimento.
Roguemos ao seu coração magnânimo proteção e amparo ao nosso ideal
divino,
O interlocutor fixou no seu rosto angélico os grandes olhos atormentados e
murmurou:
— Acompanharei tuas preces...
Alcione ergueu o olhar lúcido ao céu conste-lado, que esplendia além das
sombras que envolviam aquela região de amargura, e orou fervorosamente:
— Mestre amado...
Depois da pausa natural, Pólux repetiu comovedoramente:
— Mestre amado...
A jovem sentiu que o pranto quase lhe embargava a voz, mas, seguida por
êle, continuou:
— Com veneração e carinho, nós, meu Jesus, desejamos oscular vossos
pés. Recebei no santuário de vossas glórias divinas a pobre lembrança dos
servos humildes e necessitados, Nossas almas estão cheias de gratidão à
vossa bondade, Permiti, meu Salvador, que Possamos honrar O vosso nome
trabalhando na seara de perdão, de verdade e de amor, com a vossa doutrina,
Abençoai nossas lutas salvadoras, dai-nos a fôrça para vos testemunhar eterna
fidelidade, amparai nossos espíritos até ao dia em que nos possamos unir em
vosso seio, na claridade sem fim da eternidade luminosa!...
Alcione interrompeu a oração, que se assemelhava a um cântico divino
fragmentado por doce estacato. Na paisagem desolada, fizera-se luz intensa,
que Pólux não conseguia perceber. Generosos emissários acercaram-se dos
dois filhos de Deus, que imploravam, de todo o coração, o amparo de Jesus.
A jovem, nesse momento, inclinou-se para o bem-amado e, na compostura
de mãe carinhosa e desvelada, beijou-o longamente nos lábios com infinita
ternura.
Pólux desejou proclamar seu precioso júbilo, dizer da suave emoção que
lhe banhava o espírito, suplicar a dilação daquela hora gloriosa do caminho
eterno, mas não conseguiu articular palavra. As lágrimas ardentes, porém, que
lhe rolavam dos olhos qual lúcido colar de pérolas divinas, diziam bem alto da
sua comoção indefinível. Olhar fixo em Alcione, qual agonizante na Terra que
desejasse guardar para sempre o quadro mais querido, cerrou as pálpebras
cansadas e rendeu-se ao grande sono.
Foi aí que os mensageiros do Cristo se aproximaram da comovida jovem,
que lhes entregou o bem-amado com profundo desvêlo, falando-lhes
brandamente:
— Irmãos, não esqueçais de que vos confio um tesouro!...
Em seguida, tomou sua roupagem de luz e afastou-se da paisagem
nevoenta, dando a impressão de uma estrêla solitária que regressava ao
paraíso.
Pouco depois, ei-la que aporta em portentosa esfera, inconfundível em
magnificência e grandeza. O espetáculo maravilhoso de suas perspectivas ex14
cedia a tudo que pudesse caracterizar a beleza no sentido humano. A sagrada
visão do conjunto permanecia muito além da famosa cidade dos santos,
idealizada pelos pensadores do Cristianismo. Três sóis rutilantes despejavam
no solo arminhoso oceanos de luz inirífica, em cambiâncias inéditas, como
lampadários celestes acesos para edênico festim de gênios imortais.
Primorosas construções, engalanadas de flores indescritiveis, tomavam a
forma de castelos talhados em filigrana dourada, com irradiações de efeitos
policromos. Sêres alados iam e vinham, obedecendo a objetivos santificados,
num trabalho de natureza superior, inacessível à compreensão dos terrícolas.
Alcione penetrou num templo de majestosas proporções, dominada por
pensamentos intraduzíveis. Muito acima da nave radiosa, elevava-se uma tôrre
translúcida, trabalhada em substância sólida e transparente, semelhante ao
cristal, de cujo interior jorravam melodias harmoniosas.
O santuário augusto era uma vasta colmeia de trabalho e oração.
Alcione passou por companheiros muito amados, atravessou
compartimentos repletos de luz nitente e, aproximando-se de Antênio — a
entidade angelical que, por sua excelsa posição hierárquica, ali cumpria as
ordenações de Jesus, falou com humildade:
— Anjo amigo, deliberei suplicar ao Senhor a permissão de voltar
temporariamente às tarefas terrenas.
— Como assim? — inquiriu Antênio admirado —. acaso todos nós
permanecemos aqui impossibilitados de auxiliar o planêta terreno? Não
estamos a serviço do Cristo, no afã espiritual de reerguer êsse orbe?
— Explico-me — disse a recém-chegada timidamente —: rogo a concessão
de um corpo carnal, caso Jesus me conceda essa dádiva.
O generoso mentor contemplou-a com amoroso respeito, compreendeu-lhe
as intenções mais íntimas, esboçou um sorriso de bondade e perguntou:
— Mas, teus trabalhos no sistema de Sírius? Não estás cooperando com os
benfeitores da Arte terreal? Acredito não vir longe a época de serem levados
ao mundo terreno os necessários elementos de inspiração, depois do resultado
de tantos esforços para a solução de certos problemas do ritmo e da harmonia.
— Se possível — acrescentou a jovem com emoção — desejaria
interromper essas pesquisas que me falam gratamente à alma, para retomá-las
no porvir.
— Mas, Alcione — obtemperou o orientador dando fôrça às palavras —,
porque um novo e arriscado compromisso? Compreendo as razões que interferem
na tua súplica; entretanto, pondero que podes trabalhar aqui mesmo, a
favor daqueles a quem amas, encorajando-os e assistindo-os da esfera em que
te encontras.
— Confesso-te, porém, bondoso Antênio, que profundas saudades me
lancinam rudemente o coração. Será condenável o desejo firme de alcançar a
felicidade através das renúncias do amor e nos propósitos de semear o bem?
Perdoa-me se a presente rogativa causa estranheza à tua alma carinhosa, que
tanto me tem amado no glorioso caminho para Deus. Releva-a, recordando que
o próprio Jesus teve saudade de Lázaro e, ainda agora, na majestade da sua
glória divina, experimenta cuidados pelos discípulos caídos, que padecem e
choram!...
A bondosa e sábia entidade ouviu-a comovida, em afetuoso silêncio.
— Além disso — prosseguiu mais animada —não desejo regressar à forma
estruturada em poeira, tão sômente para seguir o amado Pólux, a quem me
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permitiste advertir e consolar. Quase todos os meus companheiros bemamados,
no esfôrço evolutivo de outras eras, estão atualmente no Planêta,
mas, em sua generalidade, envenenados por conseqüências sinistras de
oportunidades menosprezadas e perdidas. As vêzes, suas queixas dolorosas e
aflitivas me repercutem penosamente nalma, ouço-lhes as preces ansiosas e
nossos cooperadores nos fluidos pesados do orbe me enviam mensagens que
são verdadeiros brados de socorro, aos quais não pOSSO ficar insensível, por
mais que me procure confugir à perfeita confiança no Todo-Poderoso.
— Sim — atalhou Antênio, sensibilizado —, conheço os teus motivos
sacrossantos.
E, como quem desejava ministrar todos os esclarecimentos possíveis ao
seu alcance, continuou:
— Apesar de nossos bons desejos, querida Alcione, não creio que Pólux
obtenha desta vez o êxito imprescindível. Seu esfôrço de agora será uma
experiência proveitosa, mas, possivelmente, ainda não logrará a coroa da vida.
Embora a dedicação que me compele a falar-te em têrmos tão sinceros, devo
acrescentar que essa é a verdade clara aos nossos olhos. Entretanto, também
sei que outros velhos amigos teus caíram em tenebrosos desvios de
impiedade, traindo sagradas obrigações. Os que te foram pais, algumas vêzes,
perderam-se na embriaguez da autoridade e nas fantasias da fortuna; os que te
foram irmãos e familiares tombaram vencidos no despotismo e na desvairada
ambição. E o mais lamentável é que se complicaram mütuamente, alimentando
a fornalha do ódio com a lenha do egoísmo, carbonizando intenções generosas
e anulando estrênuos esforços de quantos os auxiliam com abnegação e
nobreza. Nenhum cedeu em caprichos, ninguém perdoou nem esqueceu o mal.
As ervas daninhas invadiram o campo de tuas esperanças divinas. Teus
compromissos com o Senhor sofrem pesadas ameaças. Justifico, dêsse modo,
as tuas razões, embora não possa aplaudir a extensão dos sacrifícios que pretendes
fazer.
A jovem demonstrou, no olhar, sincero reconhecimento por semelhantes
palavras de compreensão e exclamou:
— Anjo amigo, tenho tanto desejo de acariciar aquela que me foi mãe
desvelada em outros tempos!... Não será justo procurar assistir aos que,
noutras eras, me auxiliaram a penetrar as sendas da redenção?
— Ouve, porém, Alcione observou Antênio solenemente —, tuas rogativas
são louváveis e tuas aspirações são mais que justas; mas, assim como te
aconselhei advertir Pólux, devo também exortar-te por minha vez. Deves saber
o volume dos trabalhos e responsabilidades que solicitas do Mestre.
— Sim, replicou a jovem sem hesitação, estou disposta a procurar minhas
dracmas perdidas, se mo permitires em nome do Senhor.
—Já ponderaste nos obstáculos imensos? Lembra que o próprio Jesus,
penetrando na região terrena, foi compelido a se aniquilar em sacrifícios
pungentes. Recorda que as leis planetárias não afetam sômente os espíritos
em aprendizado ou reparação, mas, também, os missionários da mais elevada
estirpe. Experimentarás, igualmente, o olvido transitório e, embora não tanto
agravados em virtude das tuas conquistas, sentirás o mesmo desejo de
compreensão e a mesma sêde de afeto que palpitam nos outros mortais. Para
esclarecimento dêsses problemas, minha querida, o Mestre deixou à
comunidade dos discípulos profundos ensinamentos no Evangelho. O mundo,
representado por maus sacerdotes e falsos doutores, buscou tentar o próprio
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Jesus. Já meditaste na tua aproximação de Pólux, investida num corpo de
carne? Sabemos que Pólux parte com deveres de suma importância, em
função de coletividade; e tu te sentes preparada para neutralizar a poderosa lei
da atração das almas? Não o digo no sentido de preocupações subalternas,
mas ponderando a grandeza dos teus sentimentos afetivos, em relação à
grandeza mais sublime das obrigações assumidas para com Deus. Terás
ânimo para lhe ouvir no mundo os rogos amorosos, mantendo-o no seu pôsto,
incólume e sobranceiro à solidão de si mesmo? Sem dúvida, a lei terrestre te
encherá de desejos e te induzirá a considerar a possibilidade de proporcionarlhe
filhos afetuosos, em obediência aos seus princípios naturais. Além disso,
teus afetos de outras épocas, como, por exemplo, os que te foram pais
amorosos, receberão a palma de lutas ásperas e agudas provações. A senda
de quase todos os teus amigos está semeada de espinhos, que êles próprios
plantaram no seu desapêgo à misericórdia do Todo-Poderoso. Sentes-te
bastante forte para assumir tão grave compromisso? Conheço numerosos
irmãos que, depois de pedirem missões arriscadas como esta, voltaram
onerados de mil problemas a resolver, retardando assim preciosas aquisições.
— Conheço a gravidade da minha decisão —esclareceu a jovem com
muita humildade — mas, sabendo-me fraca pelo muito que amo, espero que o
Senhor me fortaleça nos dias de sombra e aflição. Pela cruz que sua
magnanimidade aceitou em nosso benefício na Terra, rendo-me à sua augusta
vontade, mantendo, contudo, minha sincera rogativa!...
Antênio contemplou-a tomado de nobre admiração e sentenciou:
— Louvo os teus propósitos firmes e sei que tua poderosa confiança no Cristo
é penhor sagrado de vitória; mas, devo ainda lembrar-te que a situação terrena
dos que se propÕem ao serviço legítimo da virtude — ainda e sempre — é
inçada de sofrimentos atrozes. Não desconheces que, nessas missões
sublimes, a criatura disputa o direito de acompanhar o Mestre em seus passos
divinos, O discípulo da verdade e do amor, no mundo, é alguma coisa de Jesus
e de Deus, e a massa vulgar não lhe perdoa tal condição, sobrecarregando-o
de pesados amargores, porque seus sentimentos não são análogos àqueles
que a conduzem a incoerências e desatinos. Não poderá haver acôrdo entre a
virtude e o pecado. E como o pecado ainda domina o mundo, a tarefa
apostólica em seus trâmites será sempre um doloroso espetáculo de sacrifício
para as almas comuns. Todos os que seguiram Jesus foram obrigados a
identificar o destino com o sinal do martírio. Os que se não desprendem da
Terra, crucificados nas dores públicas, retiram-se ao desamparo, esmagados
pelos opróbrios humanos, caluniados, humilhados, encarcerados, feridos.
Raros triunfaram conservando a serenidade e o amor imaculado, até ao fim!...
Ponderaste semelhantes experiências em que tua alma peregrinará por algum
tempo, retalhada de angústias!...
Sim, querido amigo, refleti em tudo isso e estou resolvida ao
testemunho, por mais cruel que seja o meu roteiro.
— Venturosa serás se puderes aceitar o sofrimento na Terra, dentro dêsse
conceito — exclamou o mentor com grande tranqüilidade. — O homem comum,
nos seus interêsses mesquinhos, não considera a dor senão como resgate e
pagamento, desconhecendo o gôzo de padecer por cooperar sincera-mente na
edificação do Reino do Cristo.
— Jesus, que vê o meu coração, ensinar-me-áa transformar a tortura em
cântico de graças e me auxiliará a esquecer as cogitações menos dignas, de
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que me possam cercar os espíritos vulgares, relativamente ao trabalho porfiado
e difícil da redenção e do engrandecimento da vida.
Antênio comoveu-se profundamente em face de tão valorosa resolução e
respondeu, afinal:
— Pois bem, já que te firmas em propósitos tão altos e guardas todos os
preceitos justos e imprescindíveis à situação, permito o teu regresso àTerra,
em nome do Senhor.
Alcione transbordava de júbilo santo. A suave emoção daquela hora abrialhe
portas resplandecentes de esperança e alegria inexcedíveis.
— Considerando — disse o amoroso instrutor — que partirás não mais
ocasionalmente e sim para uma transformação sacrificial, que exigirá muito
trabalho e renúncia, ficas desde já desligada de tuas obrigações nesta esfera, a
fim de te adaptares, vencendo as situações adversas das regiões inferiores que
nos separam do mundo, no que, pressinto-o, deverás gastar quase dez anos
terrestres.
Alcione, vertendo lágrimas de alegria e gratidão, aproximou-se, tomou a
destra de Antênio e murmurou:
— Deus te recompense!...
— Que a sua misericórdia te abençoe! — exclamou o instrutor acariciandolhe
os cabelos. —Seguir-te-ei daqui com as minhas preces e esperar-te-ei
confiante na vitória futura!.
A criatura amada de Pólux ainda se conservou no templo, até ao fim do dia.
Ao crepúsculo, quando se despediam no espaço os raios dos três sóis
diferentes, em deslumbramento de côres, Alcione reuniu-se a numeroso grupo
de amigos e orou com fervor, suplicando as bênçãos do Pai misericordioso.
O firmamento enchia-se de claridades policrômicas e deslumbrantes.
Satélites de prodigiosa beleza começavam a surgir na imensidade, envolvendo
a paisagem divina num oceano de luz.
A carinhosa benfeitora osculou a fronte dos companheiros de serviço divino
e partiu...
Daí a instantes, chegava ao templo pequena caravana de entidades
jubilosas. Era a reduzida expedição que operava nas esferas de Sírius. Um dos
seus componentes, depois de fitar a vastidão do céu, entrou no templo e
dirigiu-se a Antênio, interrogando:
— Quem é o viajor que vai seguindo na direção das Faixas Negras?
— É Alcione, que se propôs novo trabalho entre os espíritos encarnados na
Terra.
— Que dizes? — indagou tomado de espanto
— Alcione beberá novamente o cálice amargo de tamanha renúncia?
— São os sacrifícios do amor, meu filho! —respondeu o preposto do
Cristo, evidenciando compreensão e serenidade. — Só o amor poderia compeli-
la a permanecer ausente do nosso Amado Lar.
Então, saíram todos para o jardim resplendente que rodeava o santuário, e,
contemplando a figura luminosa que se afastava rumo às zonas obscuras,
enviaram à abnegada companheira, que partia para tão longa e perigosa
viagem, seus votos de confiança e amor, em preces sinceras.
18
2
Anseios da mocidade
No dia 7 de junho de 1662, Paris em pêso não comentava outro assunto
senão as esplêndidas festas populares do Carrousel, que Luís 14 havia
improvisado em frente às Tulherias. Dizia-se que o rei estava perdidamente
apaixonado por Louise de La Valliêre, e a festividade não obedecera a outro
motivo senão homenagear a favorita, não obstante a reserva com que ambos
se entregavam ao culto das relações afetivas.
As duas noites precedentes haviam assinalado ruidosas alegrias populares
e animadas reuniões elegantes nos salões mais ricos da Côrte. Grande massa
de forasteiros invadia os hotéis, principalmente as famílias abastadas
procedentes do Norte e das cidades vizinhas, atraidas pelo espetáculo inédito
do grande feito.
Dizia-se que o soberano mostrava-se agora mais acessível e generoso.
Paris estava farta de guerras externas e recordava-se, com temor, das
gigantescas lutas internas pelas atividades da Fronda. Terminara o período de
influência do Cardeal Mazarini e o espírito popular banhava-se nos boatos de
elevadas perspectivas e supremas esperanças. A cidade inteira aguardava,
ansiosamente, largos benefícios públicos e novas instituições.
Na tarde dêsse dia, compartilhando a alegria geral, dois jovens passeavam
de carro, nas imediações da Porta de São Dinis, entre os enormes movimentos
da antiga Ville, comentando as deliciosas emoções da véspera.
A viatura, muito leve, seguia harmoniosamente o trote de soberbo cavalo
normando, cujas rédeas eram manejadas com mestria por Cirilo Davenport,
tendo ao lado a jovem Susana Duchesne, sua prima, graciosamente trajada ao
sabor da época. O pequeno veículo tinha o interior ornado de soberbas
azáleas, colhidas pela jovem num jardim de Montmartre. O jovem par havia
empreendido a excursão desde o meio-dia. Susana visitara duas famílias
importantes, de suas relações, buscando rever antigas amizades. Entregara-se
às mais alegres expansões junto do primo, que, embora correspondesse
fraternalmente às suas manifestações afetivas, denotava agora preocupação
inabitual, enquanto a jovem tagarelava, obedecendo aos costumes e caprichos
de futilidade de todos os tempos:
— Não concordei com os adornos escolhidos para os salões de Madame
de Choisy. A festa perdeu muito com aquêles enfeites coloridos e esvoaçantes.
— Não reparei bem — respondeu Cirilo, mergulhado noutras reflexões.
— Fiquei cansadíssima de tanto ouvir confabulações atinentes à vida
alheia. Sou avêssa à maledicência, mas, como sempre acontece, não podemos
ficar indiferentes aos eventos do ambiente social. Por isso mesmo, estou
ansiosa de regressar à nossa paz de Blois.
E como o primo não respondesse, muito vivaz e palradora, continuou:
— Já sabes como se processou a aventura amorosa do rei?
— Não.
— Luís (1) não havia destacado a humilde descendente dos Le Blanc
entre as mulheres que freqüentam a Côrte, mas o fato é que começou a
dispensar muitas simpatias a Henriqueta (2). Iniciaram-se os idílios carinhosos,
mas a cunhada tratou de salvaguardar, quanto antes, a sua reputação de
honestidade e começou a encontrar-se com o rei em companhia de
Mademoiselle de La Valliêre, que era, então, do grupo de damas do seu
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séquito. Dêsse modo, afastava qualquer suspeita direta. Contra qualquer
impressão menos digna, poder-se-ia dizer que Luís lhe freqüentava o ambiente
doméstico, não com o propósito de avistá-la, mas para encontrar-se com a
pobre menina. Foi nesse jôgo que apareceu a mortificante situação que Henriqueta
não poderia esperar.
Depois de breve gargalhada irônica, Susana rematava o comentário
impiedoso:
Luís apaixonou-se desvairadamente e temos agora o escândalo, que
constitui o prato do dia para a voracidade das más línguas. Não conheces
todos êsses detalhes, porventura?
— Ah! — exclamou o jovem Davenport revelando propósito de modificar os
rumos da conversação — o que não ignoro é que o soberano é casado com a
rainhã.
— Ora! ora! — a pobre dona do cetro é apenas uma vítima da política
espanhola.
Observando, todavia, que o rapaz se calava, Susana timbrou outra tecla
das críticas sociais para chamar-lhe a atenção, dizendo:
— Reparaste a Henriqueta lá no baile? As suas convidadas estavam
escandalosamente vestidas...
O moço fêz um gesto de enfado e replicou:
— Quase não me detive no exame dos trajes.
(1) Luis XIV.
(2) Henriqueta Anna, de Inglaterra. — Nota de Emmanuel.
— Entretanto dançaste todos os números.
Renovando a apreciação acerada, prosseguiu:
— Henriqueta coloca em dificuldade a todos nós que temos alguma ligação
com as ilhas. O que posso afirmar é que seu temperamento seria outro, se
tivesse alguns princípios da educação irlandesa.
— Mas a pobre princesa muito sofreu na infância — atalhou Cirilo
advogando-lhe a causa.
— Essa circunstância, contudo, não deveria ser uma razão para conduzi-la
a tantas leviandades. Julgo que o sofrimento deve servir para temperar o
caráter de outro modo...
— Todavia — observou o rapaz —, ela é atualmente casada. A análise de
suas atitudes deve ser tarefa privativa do marido.
— Ora essa! E supões, acaso, que Monsieur Filipe (1) está aparelhado
para impor-lhe a educação espiritual de que precisa?
— Quem sabe?
Esta resposta, dada em tom de profundo desinterêsse, desautorizava
qualquer discussão nesse particular. Reconhecendo-o, Susana fêz longa pausa
e absteve-se de novos comentários.
A elegante viatura voltou do seu longo trajeto, dirigiu-se para a rua
Barillerie, na Ilha, onde estacionou por minutos à frente de uma casa comercial,
e depois tomou rumo da antiga rua de São Dinis, levada ao trote do magnífico
animal.
Decorrido algum tempo, a moça retomou a palavra, dando conta da sua
inquietação feminina:
— Não desejarias ir conosco, mais logo, ao Teatro de Petit-Bourbon?
20
— Não, não; hoje não me sinto disposto a aderir ao programa do sr.
Moliêre.
A carruagem aproximara-se da velha ponte de São Miguel, sôbre um braço
do Sena.
(1) Filipe de Orléans, irmão de Luis XIV. —Nota de Emmanuel.
O crepúsculo ia um tanto adiantado, mas estava embalsamado de
perfumes primaveris. Ventos suaves farfalhavam a copa florida de duas
grandes árvores próximas. Impressionado, talvez, com a sugestiva beleza da
tarde que se vestia no imenso anil do céu, o jovem Davenport fitou a
companheira com expressão diferente, e falou:
— Susana, tenho a alma de tal modo repleta de sensações ignoradas para
mim, que muito desejaria abrir o coração a quem me compreendesse. Não
quero, porém, comentar os assuntos da Côrte nem do Teatro. Necessito de
palestra espiritual, que traduza o que sinto, encontrando quem me entenda.
Que me interessa o desvio do rei ou a comédia que conquista a atenção dos
mais fúteis?
A companheira ruborizou-se. Apertou, disfarçadamente o seio, onde o
coração batia descompassado. Há quanto tempo esperava aquêle minuto
adorável, que lhe permitisse examinar com Cirilo a intensidade do seu afeto?
De muito cedo habituara-se a admirá-lo como a personagem dos seus sonhos
de mulher, e não era segrêdo, em família, o projeto de uma união pelos elos
conjugais. Ambos haviam nascido na Irlanda, mas sua mãe, que era francesa,
obrigara o genitor a transferir-se para o país de origem, havia muitos anos.
Susana, porém, nunca perdera o contato com a terra do seu berço. Não
obstante as dificuldades naturais da época, visitava, periodicamente, a terra
que a vira nascer.
Acabava de atingir os vinte anos, enquanto Cirilo orçava pelos vinte e
cinco. Não seria, então, o momento azado para realizar o sublime ideal? É
verdade que sempre aguardara, ansiosamente, do primo as primeiras
declarações de amor, a fim de entreter, com mais segura esperança, os seus
deliciosos projetos de ventura. Cirilo, todavia, jamais se manifestara a tal
respeito. Ela sabia, contudo, justificar-lhe as reservas expansivas, pelas singularidades
de temperamento que o caracterizavam. Embora jovial e sincero,
enérgico e impulsivo, era muito discreto nas questões da palavra. Raramente
prometia, porque, após o compromisso, materializava as declarações fôsse
como fôsse, pelo mal ou pelo bem.
Susana passou em revista tôdas as conjeturas e julgou-se dona de uma
situação favorável. Aliás, estava certa de que o primo, após desligar-se dos
serviços que o retinham na Sorbone, demandaria a Irlanda, onde a família o
aguardava cheia de esperança, para os enormes trabalhos da propriedade
rural, de que seus pais e irmãos se mantinham.
De olhos fulgurantes, a jovem respondeu entre satisfeita e comovida:
— Acaso poderias supor que te não compreendo? Fala, Cirilo!... Não
desejarias gozar um pouco desta amenidade vespertina? Paremos o carro.
Sentemo-nos ali perto da ponte, alguns minutos, vendo deslizar as águas
mansas...
O rapaz obedeceu sorridente e satisfeito. Abrigou a carruagem num pôsto
próximo e, dando o braço à companheira graciosa, dirigiu-se para os bancos de
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pedra que se localizavam nas extremidades da construção muito antiga. Tinha
os olhos escuros mergulhados numa onda de paixão dominadora.
— Susana — disse tomando-lhe a destra em atitude fraternal, como quem
busca um refúgio -, nunca experimentei no coração o que sinto agora. Minha
alma está cheia de sonhos e esperanças sublimes. Ah! o amor é o generoso
vinho da vida!...
A jovem fizera-se muito pálida. Deveria ser aquêle o minuto decisivo do seu
destino. Certamente, Cirilo lhe revelaria os propósitos mais íntimos, falaria do
sonho dourado de suas esperanças de moça. Casar-se-iam muito breve...
Buscariam a felicidade, abandonariam a França pela Irlanda, a fim de
cultivarem a ventura conjugal no âmbito de cariciosas tradições familiares.
Mergulhada em formosas visões, seus olhos brilhavam de intenso júbilo,
enquanto o jovem Davenport continuava:
— Edificar um ninho doméstico, ter filhos que nos acariciem e garantam a
ventura, não será o ideal mais nobre da vida?
Susana Duchesne apertou-lhe a mão com mais carinho, desejou, com
ânsia, enlaçar-lhe o busto no impulso de sua afeição desvairada, beijar-lhe repetidamente
a formosa cabeleira. Sentia-se estonteada de alegria e de
esperança, mas ainda não havia acordado de sua visão fantástica, quando êle
perguntou, fraternalmente, depois de uma pausa mais longa:
— No entanto, dar-se-á que ela me corresponda com igual paixão?
Ela? A pergunta vibrou estranhamente aos ouvidos da jovem, que se
esforçou por dominar as primeiras impressões de assombro. Outra mulher,
então, disputava com ela o mesmo sonho de amor? Monstruoso ciúme
corrompeu-lhe as emoções mais gratas. O coração fechara-se-lhe de súbito.
Não suportaria semelhante afronta. Lutaria pela posse de Cirilo, até ao crime
ou até à morte. Para isso, seguira-lhe os passos como sentinela fiel, desde a
infância, e, aos seus olhos, o titulo de espôsa deveria pertencer-lhe como
patrimônio inconteste. Verificando, contudo, que o primo observava com
estranheza a demora da resposta, cobrou alento em situação tão difícil e
replicou:
Ela? Ignoro a quem te referes, querido. Explica melhor para que te possa
compreender.
— Madalena Vilamil — esclareceu o rapaz, arroubadamente.
Ah! agora tinha na modulação daquelas duas palavras a chave da questão que
se lhe figurava aos olhos um profundo enigma. Identificara a grande e natural
inimiga. Não lhe perdoaria nunca. Subjugada por enorme desespêro íntimo,
recordava que fôra ela própria quem apresentara ao primo a jovem amiga, em
vésperas das famosas festividades parisienses. Notou que ambos haviam
demonstrado recíproco interêsse; que, desde então, palestravam
animadamente em tôdas as oportunidades e, contudo, jamais pudera imaginar
a possibilidade de uma aproximação afetiva de tamanhas conseqüências.
Sômente aí percebeu o interêsse de Cirilo pela companhia de Madalena, nos
bailados da véspera. Tinha a impressão de ainda a estar vendo com aquela
atraente fantasia espanhola, que chamara a atenção de pessoas eminentes da
Côrte. No quadro da imaginação superexcitada, não mais a considerava
associada fraternal de passeios e diversões, mas adversária perigosa que urgia
afastar do caminho... Conhecera-a numa visita que Madalena fizera, em
companhia do pai, velho fidalgo espanhol arruinado, ao formoso e tradicional
palácio da antiga Côrte francesa, em Blois. Simpatizara com os seus dotes de
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inteligência e com as maneiras simples que lhe assinalavam as atitudes; e seu
genitor, Jaques Duchesne Davenport, manifestara pela jovem espontânea
admiração e sincera amizade. Não sômente pelas afinidades naturais, mas
também no intuito de agradar o coração paterno, dedicado e carinhoso, Susana
afeiçoara-se a Madalena com singular interêsse. Ela e sua irmã Carolina, nas
constantes viagens a Paris, visitavam-na freqüentemente em sua residência de
Santo Honorato, e sentiam prazer na sua companhia alegre e inteligente.
Desde aquêle instante, porém, a moça Vilamil estava condenada à sua aversão
cruel. A amizade nobre convertia-se em ódio instantâneo e perigoso. É verdade
que Madalena não podia saber das cogitações do seu íntimo, mas Susana não
conseguia deter a onda de pensamentos ultrizes que, num instante, lhe
invadiam a mente, apossando-se impiedosamente do seu coração.
Não toleraria tal preferência do primo, mesmo porque lhe doía na alma
como insulto feroz.
— Recordas, acaso, daquela derradeira melodia aragonesa que
Mademoiselle Vilamil executou ao cravo com tanta graça? — perguntou o
jovem, alimentando as próprias reminiscências.
Excessivamente pálida, esforçando-se por disfarçar a intensa emoção que
a dominava, a moça fixou em Cirilo o olhar enérgico, orgulhoso e replicou:
— Mas isso é infantilidade da tua parte. Francamente, sempre considerei
refinado o teu senso artístico; Madalena, de maneira alguma, pode
corresponder às exigências do teu nome e da tua posição.
— Exigências do nome? — respondeu o rapaz mostrando-se agitado.
Julgas, então, que me case em obediência aos outros, em desacôrdo com as
minhas inclinações?
— Não é bem isso — retrucou a moça compreendendo a firmeza de
resolução que defrontava —; não quero dizer que ela desmereça inclinações
afetuosas; mas não concordo que seja a criatura indicada a tomar-te a mão de
espôso.
— Por quê? — perguntou o jovem, mal-humorado.
— Desejarias, porventura, que te aprovassem o casamento com uma
pobretona espanhola, nascida nos confins de Granada?
— E se alguém afirmasse que somos irlandeses dos confins de Belfast,
seríamos por isso menos respeitáveis?
Susana mordeu os lábios, revelando cólera profunda e respondeu:
— Cirilo, onde colocas o altar sagrado da família? Que há para te mostrares
tão desinteressado em face de nossas tradições familiares? Apresentei-te
Madalena, há poucos dias, mas não podia acreditar se engendrassem em teu
espírito laços tão perigosos e detestáveis. Adotei-a como amiga íntima, em
vista da profunda simpatia do papai, a quem nunca cessarei de agradar, em
obediência ao amor e gratidão que lhe consagro. Nossas afinidades, no
entanto, não vão além disso, porqüanto não lhe reconheço qualquer destaque
justo para o quadro de nossas relações. Como afirmei, trata-se de uma
predileção de papai e...
Mas não terminou, porque o rapaz, emitindo um olhar mais duro, cortou-lhe
a palavra nestes têrmos:
— Não acuses, Susana. Sempre atendi a meu tio, antes que a meus
próprios pais. Conheço-lhe o bom senso e não posso permitir...
Desta vez, no entanto, foi a jovem que, ponderando a inconveniência da
discussão acalorada, aproveitou-se da pausa espontânea, sentenciando
23
contrafeita:
— Ora, Cirilo, acalma-te. A irritação impede qualquer entendimento mútuo.
Fixou-o com disfarçada angústia. Agora que sentia tão profundamente
ameaçados os seus sonhos de felicidade, achava-o mais belo que nunca. Em
outras ocasiões, conservava a esperança, mas não experimentava tantos
zelos. Não era Cirilo o seu ideal? Que poderosa atração a retinha encarcerada
no seu sonho de ventura, sem energias para renunciar a favor da outra que lhe
ocupava o coração sincero? Sentiu que forte emoção lhe afetava as fibras mais
íntimas e com dificuldade afogava o pranto no peito opresso, receando chorar
diante do primo engolfado em graves pensamentos.
— Cirilo — disse com entono mais delicado na voz —, não te agastes
comigo. Quero auxiliar-te fraternalmente.
O rapaz comoveu-se com a mudança súbita e respondeu:
— Sim, conto com a tua boa vontade de sempre. Ajuda-me a refletir.
Necessito orientar e fortalecer meu espírito.
— Não posso dizer que esteja absolutamente certa nas minhas
apreciações — exclamou fundamente modificada em sua primeira atitude —,
mas precisarás refletir com mais calma, O pai de Madalena é um nobre
espanhol arruinado, que se incompatibilizou com os elementos mais influentes
da Côrte de França. Aqui está, em Paris, há muito tempo, em sérias
dificuldades financeiras, não obstante ter vindo no séquito da rainha.
— Já conheço D. Inácio Ortegas Vilamil —esclareceu o rapaz, solicito —;
estivemos juntos no Carrousel anteontem, à noite. Não duvido que se trate de
um homem pobre, mas é bastante simpático e portador de temperamento
expansivo, que me agradou muitíssimo.
— Mas é um fidalgo sem fortuna, cuja situação é francamente condenável,
pois perdeu-a nas dissipações da vaidade e do jôgo, segundo consta em
nossas rodas mais íntimas.
— Quanto a isso, precisamos ampliar nossa compreensão da vida —
obtemperou o rapaz convictamente. — Meu pai, como não ignoras, não fêz
excessos nem arriscou dinheiro em aventuras; entretanto, conta hoje com
reduzidíssimos recursos, devido a perseguições religiosas desencadeadas na
Irlanda.
Susana compreendeu que tôda argumentação naquele momento lhe
desfavorecia as pretensões e propósitos mais ardentes.
— D. Inácio — acrescentou com velada ironia — não poderia nem mesmo
cogitar da concessão de um dote à filha...
— Nunca me casarei visando a um dote, Susana!...
A moça escondia a muito custo o seu rancor, mas ponderou ainda:
— Pois trata-se de questão muito importante, e talvez venha a ser por isso
mesmo que Madalena recuse aceder aos teus caprichos juvenis...
— Como assim? — interrogou, impressionado pela maneira como foram
pronunciadas tais palavras.
— Talvez ignores — disse ela resoluta, como quem guarda os trunfos do
jôgo para o fim — que a tua eleita está prometida, por decisão dos pais, ao seu
primo Antero de Oviedo Vilamil, que cresceu a seu lado, como irmão.
Desta vez foi Cirilo a esboçar atitude de entranhado assombro. Sem poder
dominar-se, profundo rancor se apossou dêle. O ciúme que devastava a jovem
Duchesne apuava-ihe agora o coração.
— Será crível? — perguntou lívido.
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— Sim — disse a moça, gozando com a sua amargura íntima —, D. Inácio,
dizem, há quase dois anos vive à custa do rapaz, que não se entregou a tal
sacrifício sem um propósito deliberado. É sabido que a prima constitui o seu
sonho de amor, não obstante Madalena pareça insensível a êsse afeto, O fato
incontestável, todavia, é que a família Vilamil está totalmente empenhada
nesse débito de graves proporções.
Cirilo Davenport submergiu-se num mar de reflexões profundas. Não
cederia a qualquer obstáculo. Madalena lhe tocara o coração como nenhuma
outra mulher. Guardava nos ouvidos o som das suas últimas palavras. Aspirava
ainda o perfume da sua mão muito leve, entre as harmoniosas vibrações do
último bailado. Ouvia, enlevado, as músicas aragonesas que ela havia
dedilhado no cravo, ainda na véspera. Seus sentimentos mergulhavam na
mesma ansiedade experimentada ao ouvi-la falar da Espanha distante. Os
temas castelhanos jamais o haviam preocupado a qualquer tempo e, no entanto,
aquela afeição imensa despertava-lhe interêsses novos, abrasava-lhe a
alma, qual vulcão ardente. Estava convicto de que Madalena fôra igualmente
sensível ao seu amor. Apertara-lhe a mão, apaixonadamente, nos bailados.
Seus olhos fulgiam de sublime afeto. Onde estava êle, que não houvesse de
lutar com o rival até nos confins da Terra? Era indispensável afastar Antero de
Oviedo a qualquer preço. Sua presença tornava-se indesejável no caminho. De
olhos fixos no espaço, desvairado pela emoção que o dominava, o jovem
Davenport parecia não mais ver a prima ao lado, nem mesmo a beleza
silenciosa do crepúsculo, que se despedia com o fulgir das primeiras estrêlas.
— Não desistirei! — bradou em voz alta, como se dialogasse com uma
sombra importuna.
Ouvindo-lhe a exclamação estranha e inesperada, Susana experimentou
intenso choque. Aquela sentença, em voz estridente, assustou-a. Tomou-se de
justificado receio e exclamou:
— Vamos, Cirilo. É noite quase fechada e esperam-me para o espetáculo.
O moço Davenport, seguido da jovem que lhe acompanhava o profundo
silêncio, procurou o veículo, tomou as rédeas quase maquinalmente e deu o
sinal de partir. Susana atirou ao solo algumas azáleas murchas, em atitude de
enfado e, enquanto ambos se engolfavam em penoso mutismo, a viatura rodou
cêleremente na direção de uma casa residencial de nobre aspecto, em frente
da ponte do Câmbio, onde a prima se hospedava.
Em vão, a jovem Duchesne insistiu para que Cirilo fôsse ao teatro; debalde
rogou que a acompanhasse até ao interior doméstico. Ele recusou todos os
convites afetuosos e, imprimindo ao carro nova direção, seguiu a galope para o
seu hotel em São Germano.
De quando em quando o chicote estalava no dorso do belo animal que,
então, parecia sofrer a mesma inquietação do dono.
Depois de recolher o veículo a enorme galpão destinado às carruagens da
época e conduzir o cavalo à estrebaria próxima, Cirilo Davenport, sufocado por
angustiosos pensamentos, saiu à rua, ansioso por banhar a fronte atormentada
nos carinhosos ventos da noite. Atravessou ruas e praças engolfado em vastas
meditações, alheio ao grande movimento de pedestres e viaturas ao longo dos
caminhos. Não se deteve senão no mundo íntimo, inquieto por conchavar e
resolver os problemas torturantes.
Chegara à conclusão de que a existência se lhe transformaria em breve
tempo. Não podia suportar, sem graves danos, a continuidade das estroinices
25
da juventude, e o conhecimento de Mademoiselle Vilamil induzia-o a pensar
sêriamente no matrimônio. No entanto, como encontrar a equação justa?
Depois de certo período de estudos em Paris, prosseguia em serviço na
Sorbone, onde a sua remuneração era regular, sem contudo permitir quaisquer
perspectivas de futuro financeiro. Seu pai, Samuel Davenport, chamara-o mais
de uma vez, aguardando-lhe a presença na Irlanda do norte, onde possuía
valiosa propriedade rural, apesar dos golpes sofridos. Como resolver a
situação? Deveria casar e partir para as ilhas, ou visitar antes o lar paterno,
para consorciar-se depois? Na primeira hipótese, sua atitude poderia ocasionar
sérios atritos com a família; na segunda, o intruso Antero poderia sair vencedor
e anular-lhe os planos de felicidade. Recordou a simpática figura do tio, que
sempre lhe entendera e amparara o coração, nos momentos difíceis, e
considerou a possibilidade de ir a Blois, a fim de ouvi-lo. Concluiu consigo
mesmo que, tendo combinado com Madalena um encontro junto à igreja de
Nossa Senhora, na noite seguinte, faria a viagem logo após o novo
entendimento com a jovem, que lhe enchera o coração de sonhos miríficos.
Após atravessar imenso labirinto de reflexões, voltou ao hotel, muito depois
da meia noite, recolhendo-se ao quarto extremamente nervoso, só conseguindo
dormir alta madrugada.
No dia seguinte, atirou-se ao trabalho comum, de alma inquieta,
pensamento voltado para a noite, quando teria o júbilo de rever a bem-amada e
renovar as doces emoções do espírito.
Muito antes da hora marcada, Cirilo postava-se à frente da majestosa catedral,
andando de um lado para outro. A fim de evitar a curiosidade de transeuntes
audaciosos, penetrou no santuário, em cujo interior magnífico permaneceu por
instantes. Seus olhos eram indiferentes aos tesouros artísticos que o
cercavam. Os capitéis preciosos, os arabescos dourados, os baixo-relevos, as
estátuas maravilhosas, diluíam-se numa atmosfera de sonho. Os sacerdotes e
os nichos, as flores e os objetos do culto não lhe falavam ao coração. Quando
surgíam no alto os primeiros astros da noite, Davenport regressou ao adro,
passeando nervosamente ao lado dos belos degraus que davam acesso ao
interior do templo, e que o progresso de Paris fêz desaparecessem com a
elevação do solo.
Entre aflições singulares, observou, atento, uma carrruagem que parou nas
proximidades, dela saltando três galantes criaturas em demanda ao santuário.
Madalena Vilamil, com efeito, junto de Colete e Cecilia, duas amigas da
juventude, chegara com o pretexto de participar dos ofícios religiosos da noite,
mas, em breves minutos, favorecida pela conivência das companheiras,
insulou-se da romaria devocional, em companhia do jovem Davenport, ansiosos
ambos pela permuta de impressões afetivas.
Enquanto a viatura permanecia à espera, e ciente de que as amigas se
entregavam às práticas religiosas, Mademoiselle Vilamil tomava prazerosa o
braço que o rapaz lhe oferecia, afastando-se alguns passos ao longo da praça
extensa que se rodeava, então, de casas velhas.
Cirilo sentia-se o mais ditoso dos homens. Por surpreendente e misterioso
mecanismo que seu espírito não conseguia compreender, resumia, agora, na
jovem todos os sonhos centrais da existência. Falou-lhe, com desembaraço,
dos seus ideais mais íntimos, revelando-lhe profundas impressões de sua alma
ardente. Ele próprio estava surpreendido com o manancial de espontânea
confiança que lhe brotava do espírito pouco afeito a grandes expansões.
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Madalena Vilamil, em identidade de circunstâncias, tocava-se de sublimes
emoções. Não era temperamento que confiasse sentimentos íntimos, ao
primeiro sinal de afeição. Sua mãe, descendente de nobres famílias no sul da
França, e seu pai, antigo fidalgo espanhol, haviam educado a filha única
habituando-a a rigoroso critério no capítulo da vida social. Pela primeira vez a
jovem atendia a um apêlo afetivo, em lugar público, consagrado, no seu modo
de entender, às exteriorizações das criaturas vulgares e sem títulos de maior
nobreza moral. O convite de Cirilo fôra um tanto chocante para a sua vaidade
feminina; entretanto, obedecendo a indefiníveis anseios do coração, acedera
em palestrar com o jovem num recanto da via pública, desejando um
entendimento recíproco, longe da multidão maliciosa. Além disso, sentia-se
receosa de recebê-lo na própria casa, dado o rigorismo da genitora, há muito
enferma, e às ruidosas expansões do pai, desligado de qualquer encargo nas
esferas políticas e por isso mesmo sempre pródigo de afirmativas chocantes
para os costumes franceses.
Mademoiselle Vilamil julgou imprescindível explicar ao jovem Davenport
suas dificuldades domésticas, antes que o rapaz pudesse agasalhar conjeturas
menos dignas a respeito dos pais, a quem amava de todo o coração. Sômente
por isso, e incapaz de resistir ao suave magnetismo que sôbre ela exercia o
moço irlandês, encontrava-se ali sob o céu estrelado às primeiras horas da
noite, trocando confidências.
Cirilo começou por comentar a beleza das melodias que ela arrancara do
cravo, tôdo sentimento e vibração, e Madalena relatava ao jovem, muito
admirado, os encantadores costumes da sua terra natal, assinalando as
palavras com as interessantes características de quem se não achava
absolutamente senhora da língua francesa.
Tudo, porém, que constituía alguma coisa de sua personalidade, era graça e
leveza aos olhos e aos ouvidos do moço Davenport, que se sentia transportado
a um plano de felicidade divina, em sua companhia.
A certa altura do amoroso colóquio, Cirilo exclamou, algo perturbado por
trazer à tona a súmula de suas cogitações mais intimas:
— Madalena, ocioso é dizer-te da minha infinita afeição. Saberás entender
o sentido de minhas palavras. Nunca me conformei com as atitudes
superficiais, nem posso aprovar os desvarios da juventude contemporânea.
Digo-o, a fim de que não vejas laivos de leviandade nas minhas palavras. Amote
muito e êstes poucos dias de convivência bastam para que reconheça tua
suserania no meu coração, onde ocupas lugar insubstituível. Mas, poderei
contar com o teu amor para sempre?
A essa pergunta direta, a jovem respondeu extremamente confundida:
— Sim!...
— Sempre idealizei uma criatura que me compreendesse inteiramente e,
agora que nos encontramos, tenho a esperança de poder edificar um castelo
de suprema ventura. Desde a noite em que nos vimos pela primeira vez, sonho
contigo e antevejo as alegrias de um lar povoado de flores e de filhinhos.
Ela, tôda ruborizada, elevava-se nas asas do amor, de emoção em
emoção, aos páramos do sonho. Aquelas palavras representavam a deliciosa
música que os seus ouvidos esperavam de há muito. O moço Davenport era o
cavalheiro do seu ideal. Sua voz cariciosa e dominadora penetrava-lhe o
íntimo, como perfumado sôpro de vida. Queria falar exprimindo seus
sentimentos mais nobres; a emoção, contudo, embargava-lhe a voz, enquanto
27
o coração desejava prolongar ao infinito aquêle instante divino.
Compreendendo-lhe o silêncio, o rapaz recordou as advertências de Susana,
fêz um gesto significativo e acentuou:
— No entanto, Madalena, tenho o coração repleto de presságios
tristes!... Dizem que o sofrimento é comum aos que se amam; trago o espírito
ansioso por esclarecimentos mais amplos.
— Como? — indagou a jovem no impulso instintivo de anular qualquer
dúvida.
Revelando funda preocupação, êle acrescentou como que medindo a
responsabilidade de cada palavra:
— Ninguém disputa comigo o tesouro do teu coração?
— Que dizes? — retrucou a moça com grande surpresa.
— Sinto que tua alma se dirige ao meu coração como fonte cristalina de
verdade — acrescentou Davenport acentuando as palavras —, acredito na tua
sinceridade e nem seria lícito duvidar dos teus sentimentos; mas, quem sabe,
Madalena, teus pais te destinam a outrem que te mereça pela fortuna que não
possuo, ou por títulos que também me faltam?
A essa altura, sua voz tornou-se enternecida e comovedora, qual a de uma
criança disposta a resignar-se com os obstáculos, não obstante seu violento
desejo.
A jovem, por sua vez, como se despertasse de um sonho, começou a
chorar convulsivamente. A imagem do primo torturava-lhe agora o pensamento,
como se recordasse um verdugo cruel. Lembrava as lutas domésticas, os
enormes débitos do genitor para com Antero de Oviedo, as combinações de
ambos para o futuro matrimônio, com sacrifício dos seus ideais, e não
conseguia dissimular a imensa dor que lhe avassalava o coração sensível, ante
a possibilidade de perder Cirilo, compelida pelas humanas convenções a
renunciar à sua união com o jovem em cujo espírito adivinhava a fonte de tõdas
as sublimes compreensões de que sua alma necessitava para ser feliz.
Entregava-se assim a copioso pranto, enquanto o moço irlandês,
comovidíssimo, tomava-lhe a cetínea mão, cobrindo-a de beijos.
— Não chores, Madalena! O amor confia sempre e acreditas, acaso, que
sou de todo inútil?
Recordando as palavras impiedosas de Susana, que aquelas lágrimas
confirmavam, assumiu atitudes decisivas e acrescentou:
— Ninguém poderá impor-te um casamento contra os teus desígnios. Se
me amas, saberei defender-te até os confins do mundo. Não pertencerás a
qualquer miserável truão, apenas por circunstâncias mesquinhas de mil francos
a mais, ou a menos. O dinheiro jamais entrará em nossos planos de
felicidade!...
A filha de D. Inácio enxugou as lágrimas depois de ouvir-lhe as
ponderações consoladoras e afetuosas, e atendendo-lhe aos apelos relatou minuciosamente
as dificuldades da família desde os tempos de Granada,
assinalados por grandes lutas. Nascera nessa famosa cidade espanhola, onde
o pai desempenhava cargos políticos de certa relevância. Tivera uma infância
risonha, mas, desde a fase dos primeiros estudos, vivera quase que
absolutamente reclusa num convento de Ávila, onde o genitor procurava
enriquecer-lhe os dotes intelectuais. Nos poucos dias do ano, quando feriava
no ambiente doméstico, seguia de perto os sofrimentos da genitora, que
recrudesciam de tempos a tempos, em vista das extravagâncias paternas.
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Quando abandonou definitivamente o educandário religioso, seus pais já se
encontravam em Madrid, para onde se mudaram com enorme dificuldade. No
vórtice de acerbos tormentos morais, sua mãe encontrara arrimo único em
Antero — sobrinho do marido, criado com tôda a dedicação e ternura
maternais. Seus pais haviam adotado o rapaz, de pequeno, como próprio filho.
Antero era um homem de psicologia difícil, em virtude dos sentimentos
condenáveis que sabia dissimular com habilidade, mas que, em sua ausência
nos estudos e nos desvios constantes de seu pai, apresentava dotes
apreciáveis aos olhos de sua mãe, de quem se fizera sustentáculo e
consolação. Permaneciam em Madrid, completamente arruinados, quando o
casamento da filha de Filipe 4º com Luís 14 deu ensejo a que o genitor e o
primo se colocassem ôtimamente, em funções de natureza política. Desde
1660, estavam em Paris cheios de esperança numa vida nova. D. Inácio, no
entanto, não conseguira permanecer no cargo senão por alguns meses, porque
se incompatibilizara com a Côrte, em vista da sua crítica franca aos atos de
Sua Majestade. Leal amigo da infanta espanhola, não conseguia suportar
calado as humilhações penosas infligidas à rainha, que se socorria da religião,
com santificada paciência, de modo a tolerar e esquecer os desvarios
amorosos do real espôso. Ciente dos seus firmes protestos, o soberano
demitira-o do cargo e Antero de Oviedo só foi conservado em suas obrigações
remuneradas por influência dos amigos de Maria Teresa, que lhe mantiveram
os proventos com alguma dificuldade. Havia quase dois anos, a família vivia a
expensas do rapaz, não obstante a tristeza que semelhante situação lhe
causava.
Seu pai, continuava Madalena de olhos molhados, era um generoso
coração, mas alimentava inveterada paixão pelo jôgo. Tal obsessão acarretara
o desbarate de todos os bens que possuíam e, após lamentáveis aventuras,
nada lhes ficara do passado feliz. A genitora resistira herôicamente aos reveses
da vida, mas sofria agora do coração, passando os dias na expectativa
angustiosa da existência que se extingue, e da morte que se aproxima.
Mademoiselle Vilamil fêz longa pausa a fim de enxugar as lágrimas
abundantes, enquanto Cirilo acariciava-lhe a mão, comovidamente.
Em seguida, evidenciando grande embaraço por ver-se constrangida a versar
tão delicado assunto, começou a falar com mais enleio dos propósitos paternos
de casá-la com o primo e contou que êste, por vêzes, já lhe havia falado de
amor, ao que se esquivava ela, sempre com enorme repugnância. Alimentava
o desejo ardente de lançar-lhe em rosto a negativa formal, com o desprêzo que
essa união lhe inspirava, mas, continha-se a custo, considerando o
reconhecimento da mãe enfêrma e a situação do pai, que devia ao pretendente
alguns milhares de francos.
Nesse ínterim, o jovem Davenport, mal disfarçando o ciúme que o
devorava, interpelou-a exclamando:
— Mas teu pai, a quem consagras tão grande veneração, teria coragem de
vender a felicidade da filha por um punhado de miseráveis escudos?
— Não creio — disse a moça convictamente, demonstrando a sinceridade
de sua confiança filial nos grandes olhos, onde esplendia a candura das suas
dezenove primaveras —; meu pai, apesar das estroinices, tem sido o meu
maior e melhor amigo.
Cirilo guardou-lhe a destra entre as mãos, com infinito carinho, ansioso por
confortá-la. Depois de alguns instantes em que o silêncio de ambos era mais
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eloqüente que as expressões verbais, a jovem Vilamil, como se fôsse
arrebatada a longínqua impressão do passado, perguntou inesperadamente:
— Cirilo, acreditas nos adivinhos?
— Ora essa! por que perguntas? — exclamou intrigado.
— É que, ainda em Granada — disse Madalena com muita simplicidade —
, numa de minhas rápidas visitas ao lar, estava à porta do Alhambra com
algumas colegas de estudo, quando fomos atraídas por um ancião que lia o
destino dos transeuntes interessados em sua estranha ciência. Atendendo à
brincadeira geral, aproximei-me e dei-lhe a mão. Ele pareceu meditar um
momento e falou: — “A menina é bem nascida, mas não ébem fadada.” E
depois de fixar-me nos olhos com expressão inesquecível, não mais sorriu e
continuou aconselhando-me: — “Prepara-te, minha filha, e une-te à fé em
Deus, porque teu cálice, no mundo, transbordará de amargura. Não vivemos
apenas esta vida. Temos existências várias e a tua existência atual é
promissora de tempos afanosos, para a redenção.” Suas palavras me
impressionaram a ponto de me fazerem chorar copiosamente. Senti enorme
abalo e foi preciso que as amigas me reconduzissem à casa, onde fui
compellda a acamar-me.
— E onde estava D. Inácio que não repeliu o estúpido? — indagou o jovem
Davenport bruscamente, cortando-lhe a palavra.
— Meu pai ficou furioso, e, depois de repreender-me severamente, tomou
as providências devidas, mandando que o feiticeiro fôsse levada ao Tribunal da
Inquisição, que lhe aplicou disciplinas por uma semana e o deteve encarcerado
mais de três meses. Mais tarde, o Geral dos Jesuítas cientificou ao papai que
se tratava de um peregrino demente, de origem egípcia, que penetrara no reino
através do Marrocos.
— E admitiste suas afirmativas? — interrogou Cirilo, evidenciando
ansiedade por apagar qualquer resquício de impressão dolorosa no espírito da
jovem.
— Apesar de muito impressionada — esclareceu Mademoiselle Vilamil —
não acreditei nos sombrios vaticínios, mas, não posso deixar de reconhecer
que, até hoje, Cirilo, minha vida tem sido tormentoso mar de preocupações
infinitas. Tenho a impressão de que atingirei os vinte anos com um pêso
sufocante de velhice prematura.
Depois de ligeira pausa, acrescentava:
— Não desejo fraquejar, deixar-me vencer pelos presságios de um
peregrino desconhecido. Sinto-me forte na fé em Deus e estou convicta de que
o poder celestial me auxiliará nas lutas humanas; entretanto, um detalhe
houve, na conversação do velhinho, que nunca poderei esquecer; é o que se
refere a outras vidas, O destino está cheio de circunstâncias misteriosas.
Nossa vida não terá começado no instante de nascermos no mundo. Devemos
ter existido em outra parte. Creio que temos amado e odiado, e o esfôrço em
que nos achamos se destina ao trabalho de redenção das nossas culpas. Não
me detenho em tais idéias tão só por haver ouvido as advertências do adivinho
errante, mas tenho tido sonhos significativos...
O companheiro, que lhe seguia as palavras com indisfarçável mal-estar,
apertou-lhe a mão e sentenciou:
— Que é isso, Madalena? Desvairas? Não te quero ver entregue a
filosofias abstrusas. Se encontrasse êsse feiticeiro infame, reforçaria as penas
que lhe foram impostas pelos inquisidores.
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Ansioso por libertá-la dos pensamentos amargurosos, Continuava:
— Casar-nos-emos e encontraremos a ventura sem fim. Ficaremos em
Paris ou onde quiseres. Lutarei por ti, tenho braços laboriosos e enérgicos.
Futuramente, rir-nos-emos dêsses temores infãntis, provocados por um
mendigo irresponsável. Os egípcios, como os orientais, foram sempre grandes
imbecis. Caso seja do teu agrado, fixaremos residência na Irlanda, junto dos
meus. Levar-te-ei, mais tarde, a Londres; excursionaremos até à Escócia e hás
de ver que, em tôda parte, o amor sincero será a chave de nossa ventura
imortal. As almas que se adoram movimentam-se nos caminhos
resplandecentes de luz.
A jovem, que o ouvia dominada pela emoção, pareceu olvidar as idéias
transcendentes e profundas, e respondeu enlevada:
— Sim, seremos felizes para sempre. Seguir-te-ei para onde fôres. Anseio
por conhecer terras novas, onde possamos sentir a felicidade unida a nós!...
— Terras novas? — perguntou Cirilo revelando-se iluminado por idéia
súbita — não será bom experimentarmos os largos horizontes da América?
— Ah! isso tem sido um longo sonho meu —disse a jovem de olhos
coruscantes. — Tenho sêde inexplicável do mundo novo que nos acena a distância.
Nossas grandes cidades, corrompidas, consternam e sufocam!
Granada, Ávila, Madrid e Paris não diferem o bastante umas das outras. Em
tôdas vejo os homens como loucos, disputando realizações que lhes agravam
os padecimentos espirituais. Tenho sonhado sempre com as enormes florestas
escuras, com os rios caudalosos, com as campinas verdes e sem fim..
— Edificaremos por lá o nosso ninho de amor — rematava o rapaz
apaixonadamente.
E falaram longamente da América, como duas crianças ansiosas,
permutando compromissos sagrados.
Ao têrmo da palestra, o moço Davenport. ciente de tôdas as preocupações
intimas da sua amada, prometeu visitar-lhe os pais na noite seguinte, na casa
de Santo Honorato. de maneira a criar o ambiente propício ao culto de suas
esperanças em flor.
Depois que Colete e Cecilia procuraram a companheira para a volta, Cirilo
fixou o olhar no vulto da carruagem até que se confundisse de todo com as
sombras espêssas. Largo tempo levou ainda a meditar, sentado junto aos
nichos externos, escassamente iluminados no bôjo silente da noite.
No dia imediato, ao entardecer, tomou o seu carro ligeiro, dirigindo-se à
residência dos Vilamil e fazendo o possível por apagar os receios que lhe
tumultuavam na alma inquieta. Como se comportaria na hipótese de lá
encontrar Antero de Oviedo? Teria fôrça bastante para tratá-lo fraternalmente?
Como o compreenderiam, por sua vez, os pais de Madalena? Engolfado em
vastas cismas íntimas, parou à porta da casa indicada. Tratava-se de antigo
edifício, dos que comumente eram alugados a famílias de tratamento, mas de
reduzidos recursos financeiros. Extenso gradil, no centro um grande portão
pintado de azul, cercava gracioso jardim onde as flores disputavam o beijo da
primavera; ao fundo, a residência de aspecto antiquado, com as características
exteriores da época de Luis XIII.
Cirilo bateu discretamente, sendo atendido com presteza por um lacaio que
lhe deu acesso ao interior, onde era aguardado com certa curiosidade.
D. Inácio trajava corretamente, como se fôra convocado a assistir a uma
cerimônia solene, enquanto a espôsa, muito pálida, acomodava-se em
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espaçosa poltrona de repouso, dando a impressão de que ali se conservava
não por impulso espontâneo, mas por inevitável obrigação da vida em família.
Ambos estavam envelhecidos e alquebrados prematuramente; êle, talvez por
extravagâncias de tôda sorte; ela, por certo devido aos constantes desgostos.
Junto aos dois, na sala que se caracterizava por linhas monótonas, Madalena
com a sua radiosa juventude parecia um raio de claridade afugentando as
impressões tristes.
D. Inácio acolheu o rapaz com ruidosas manifestações de simpatia.
— Não terá, nesta casa, as designações devidas aos moços de
tratamento, em Paris — disse satisfeito —; chamá-lo-emos Dom Cirilo, em
homenagem à nossa Espanha distante.
— Dêsse modo ficará mais íntimo — acrescentava D. Margarida Fourcroy
de Saint-Megrin e Vilamil com um sorriso. — Desejamos que êste lar seja
também seu.
Enquanto os jovens se alegravam, experimentando a certeza da
condescendência dos velhos generosos, D. Inácio acrescentava:
— E pode estar certo, D. Cirilo, de que sua estréia deve ser muito
brilhante, porque minha espôsa não acolhe a qualquer, na primeira visita.
Riso geral coroou essas afirmativas, ao mesmo tempo que a palestra
descambava para as recordações das pátrias distantes. O jovem Davenport
falou de suas lembranças da Irlanda e, depois de bordar inúmeros comentários
em tôrno das relações entre espanhóis e irlandeses, D. Inácio acentuou:
Nossas afinidades religiosas com a Irlanda sempre foram estimáveis e
confortadoras. Aliás, fui eu quem teve a honra de acender a primeira vela
enviada pelos devotos do santo arcebispo de Armagh, em Dublim, na fogueira
em que foram castigados, em Granada, alguns hereges do Longford, num de
nossos maiores autos-de-fé.
Cirilo franziu o cenho como quem se desagradava do assunto, e
acrescentou:
— A psicologia da gente irlandesa é muito difícil e complicada.
— Tal como a nossa, na Península — atalhou o velho fidalgo —; é
impossível esqueçamos nossas tradições para acompanhar o surto de loucuras
e novidades que terminará projetando os povos no abismo. Não podemos
confundir liberdade com licenciosidade e seria falta grave aplaudir essa onda
de tolerância criminosa que varre atualmente o mundo. Temos de ser exóticos
em qualquer parte da Terra. Será licito estabelecer a desordem e dizer que se
progride? Então, a Espanha toleraria o chamado Edito de Nantes? Nunca!
Julgo que a fogueira deve cercar os herejes e os apóstatas onde quer que
estejam. Pelo menos, isso constitui elevada instrução de nossos santos padres.
Se o traidor da pátria deve ser condenado, muito mais criminoso é o traidor da
fé.
O rapaz esboçou um gesto de leve desacôrdo, obtemperando
delicadamente:
— De acôrdo, no que se refere à política. A administração desordenada é
sintoma de desagregação e ruína. O mesmo, porém, não ocorre quanto a
crenças. Considero que, em matéria de manifestações religiosas, outras seriam
as circunstâncias se todos entendêssemos o valor do perdão.
— O senhor é muito moço — replicou D. Inácio, sereno —, só mais tarde
poderá compreender que o perdão dissolve a família.
O jovem fêz menção de espanto e respondeu instintivamente:
32
— Mas Jesus perdoou sempre, D. Inácio.
O velho fidalgo, entretanto, como quem se habituara a interpretar os textos
evangélicos, prodomo sua, esclareceu sem qualquer preocupação de espírito:
— Esse problema foi estudado por mim, junto ao Inquisidor-Mor de
Granada. Depois de algum tempo chegamos à conclusão de que se o Cristo
suportou os algozes, mandou também que o homem orasse e vigiasse,
incessantemente. E o senhor já observou alguém vigiando sem armas? Em
que lugar do mundo a sentinela pode abraçar o inimigo?
Cirilo não estava acostumado a discussões religiosas e, ouvindo tal
argumento, silenciou com profunda estranheza, ao passo que o interlocutor.
observando a desaprovação que lhe transparecia dos olhos, tratou de mudar
de assunto acrescentando:
— Não poderíamos nunca aplaudir uma Côrte desordenada e indiferente,
como a de França.
Neste ponto da conversação D Margarida, considerando que as expansões
do marido poderiam melindrar o rapaz, advertiu calmamente:
— Ora, Inácio, não generalizes. Suponho que, na tua idade, qualquer
pessoa deve examinar acontecimentos e fatos sem a paixão que sói envenenar
as melhores fontes do caminho. Por que acusar a Côrte, quando a culpa não
pode cair indistintamente? Todos os governos são ótimos, quando Somos
Jovens.
O velho fidalgo empertigou-se, cofiou os bigodes, fitou a espôsa
sobranceiramente, e sentenciou:
— A senhora acha, então, que falo por ouvir dizer? Há três anos, com a
mesma velhice de hoje, assisti à assinatura do nosso tratado com a França, na
Ilha dos Faisões, acompanhando D. Luis de Haro e não sentia qualquer
desalento. Aos meus olhos, as águas do Bidassoa estavam belas como nunca.
Mas não posso repetir semelhantes emoções nesta terra de polifrontes.
— Consideras, então, que os franceses devem pagar pelo teu abatimento
de agora? — perguntou a nobre senhora serenamente. — Há tanta gente sem
juízo em Paris, como em qualquer grande cidade espanhola. Além do mais,
cada região tem seus costumes próprios e, naturalmente, um francês não se
sentiria tão bem se fôsse compelido a viver sob o ritmo das tradições
espanholas.
— Ah! sim — replicou D. Inácio sem conseguir disfarçar a irritação —, para
os franceses todos os descalabros podem ficar bem; mas eu sou um homem
antigo e é preciso não esquecer que minha família descende de parentes
colaterais da rainha católica.
E depois de um gesto significativo, rematava orgulhoso:
— Minha filha e eu não fomos nascidos nas margens do Garona, tampouco
ao pé das águas sujas do Sena.
Nesse instante, contudo, antes que Cirilo pudesse interferir com alguma
observação afetuosa e conciliadora, ouviu-se o ruído de um carro que parecia
trazido por cavalos resfolegantes.
D. Margarida, como se já estivesse alheada do pequeno atrito doméstico,
fêz um sinal à filha, revelando maternal preocupação, e falou:
— Madalena, previne lá dentro. Antero deve estar regressando de
Versalhes.
Enquanto a jovem se dirigia para a sala da copa, o moço Davenport
prestou atenção, a fim de observar o recém-vindo, cujas passadas fortes se
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faziam ouvir quase junto à porta da entrada.
Ia, finalmente, conhecer o rival. A presença do sobrinho de D. Inácio, em
plena sala, não lhe deu oportunidade a mais vastas considerações Intimas.
Antero exibia dotes singulares de beleza física, nos seus trinta anos bem
formados. Alto, elegante, cabelos negros e ondulados, tez levemente amorenada,
peninsular, olhos argutos e indefiníveis, deixava transparecer nas
maneiras polidas um quê de intencional. Dir-se-ia que suas atitudes delicadas
não eram sinceras, mas oriundas do profundo artificialismo de quem não se
deixa conhecer tal qual é. Apresentado ao rapaz irlandês, cumprimentou-o
cordialmente, embora seus olhos parecessem interrogar a razão de sua
presença ali, e, depois de se encaminhar para o interior, enquanto a palestra
prosseguia suavemente, regressou à sala, onde prestou singular atenção aos
olhares significativos trocados entre a prima e o visitante inesperado,
compreendendo que o seu campo afetivo fôra invadido por influências
estranhas. Embora não manifestasse o mal-estar que, aos poucos, se lhe
apossava do espírito, de quando em vez dirigia o olhar indagador para a tia e
mãe adotiva, como a interrogar sôbre as pretensões desconhecidas do intruso.
A uma pergunta direta do velho fidalgo, quanto à marcha dos trabalhos que
lhe competiam, respondeu cortesmente:
— Tôdas as obrigações obedecem ao ritmo normal e o senhor pode crer
que, em breves dias, Versalhes reunirá tôda a Côrte e será o centro da vida
política da nação francesa.
— E o rei? — perguntou D. Inácio exprimindo certa inquietação nos olhos
— expediu a ordem de pagamento da minha disponibilidade?
— Por enquanto, não — esclareceu o interpelado. — Ainda hoje, porém,
pude avistar-me com Sua Majestade quando procurei o Sr. Colbert, trazendolhe
hoje a boa notícia de que o soberano pede o seu comparecimento em
palácio.
— Para quê? rosnou o nobre espanhol quase colérico — amanhã, farás o
favor de dizer ao rei dos franceses que, se me chama para me despojar de
algum bem, os seus ministros já me usurparam as dignidades; se pretende
conferir-me honras, agradeço-as; e se me oferece algum favor, não necessito
de suas esmolas.
Após uma pausa que ninguém ousava interromper, rematava com esta
afirmativa:
— E, se Sua Majestade manda buscar-me visando a fins mais ásperos,
podes afirmar-lhe que não será necessária minha presença em palácio, para
que me mande ao pelourinho. Bastará uma ordem...
Madalena, muito acanhada, observava Cirilo, que acompanhava o diálogo
do tio e do sobrinho com alguma estranheza.
Esperava-se que D. Margarida viesse à discussão com interferência
conciliatória, mas foi Antero que desfez o silêncio, ponderando com calma:
— No entanto, meu tio, é possível que as coisas sejam conciliadas em seu
favor. Como sabemos, o Sr. Fouquet já não permanece à testa dos negócios
públicos.
— E achas porventura que o soberano é melhor do que o ex-ministro? Um
remendado não poderá condenar um andrajoso. Fouquet não se retirou do
cargo pela sua prodigalidade nas despesas. A causa de tudo, no capítulo da
sua demissão, foi o escândalo dos ciúmes por Mademoiselle La Valliêre.
Antero ia exprimir um gesto de desacôrdo, mas o fidalgo continuou:
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— Não permito que me contradigas. Acaso, não estás farto de saber que
aqui, em França, são as mulheres que fazem os ministros?
D. Margarida, desejosa de imprimir novo rumo à conversação, a fim de
que o espôso não incidisse nos comentários apaixonados, aventurou:
— Suponho, Inácio, que deves ir. Ainda que não conseguisses um acôrdo
para o recebimento do que te é devido, essa visita dar-te-á ensejo a qualquer
combinação com a rainha.
— Eu? — bradou êle com energia — que me poderia dar a desventurada
infanta, necessitada de quase tudo em seu ambiente doméstico? Poderei
procurar a filha do meu soberano para chorar as desditas, mas nunca
alimentando o propósito de pedir qualquer coisa.
— Em todo o caso, seria útil alguma tentativa — exclamou Cirilo Davenport
timidamente, receoso de ser tomado como indesejável nas combinações
familiares.
D. Inácio Vilamil, porém, carregou mais expressivamente o semblante e
sentenciou:
— Mas eu sou um homem da velha têmpera.
O rapaz, compreendendo-lhe a resistência inquebrantável, baixou os olhos
e calou-se.
A palestra chegou ao fim, com as expressões conciliatórias de todos, ante
a intransigência do velho fidalgo. Nenhum argumento lhe modificou a atitude.
Nas despedidas, notando a ternura dos olhares e gestos da prima e do
jovem Cirilo, Antero sentiu que mortal ciúme lhe envenenava para sempre o
coração.
Duas semanas passaram, repetindo-se diária-mente a visita de Davenport,
as idéias intransigentes de D. Inácio e a perplexidade do sobrinho dos Vilamil,
que vinha de Versalhes a Paris, de três em três dias.
O par venturoso continuou tecendo, carinhosamente, os fios dourados de
seus sonhos de felicidade, enquanto Antero dissimulava hàbilmente o profundo
rancor que lhe dilacerava o espírito. Apesar da mágoa odiosa, tratava Cirilo
com maneiras cativantes. No íntimo, detestava o rival, que lhe triturava
devagarinho as esperanças; no entanto, buscava conquistar-lhe a confiança,
intencionalmente maquinando projetos sutis e terríveis de vingança, a seu
tempo. O próprio Cirilo estava surprêso. A amizade que Antero de Oviedo lhe
demonstrava era mais um obstáculo transposto. A certeza de que o
companheiro da infância de Madalena lhe compreendera os propósitos
sinceros, constituía fonte de tranqüilidade para o seu coração. Andava, por isso
mesmo, plenamente satisfeito. Respirava os ares de Paris a longos haustos. O
serviço diuturno fizera-se-lhe leve e doce, o novo estado de espírito
descortinava-lhe profundos horizontes no entendimento justo da vida.
Aguardava a noite, ansiosamente, e, quando em companhia da jovem amada,
renovavam, os dois, os votos afetuosos, os juramentos sublimes, as promessas
de eterno amor.
Surgiu a ocasião em que Madalena se preocupou com a atitude da família
Davenport e insistiu para que o rapaz comunicasse aos parentes de Belfast o
projeto de casamento. Cirilo prometeu escrever, mas alegou que, antes mesmo
da consulta aos pais, procuraria ouvir o tio Jaques, em Blois, que lhe
consagrava paternal afeição desde os primeiros dias da sua vida.
Mademoiselle Vilamil demonstrava cuidados justos e, contudo, no espírito de
resolução que lhe era característico, Cirilo considerava semelhante zêlo de
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somenos importância, pois, ao seu ver, casar-se-ia ainda que não obtivesse
para isso a aprovação da família. Todavia, dada a insistência da jovem nas
conversações confidenciais, Davenport dirigiu-se, certo dia, a Blois, com o fim
de aconselhar-se com o tio, antes de assumir o compromisso desejado.
Durante tôda a viagem, Cirilo entregou-se a singulares devaneios. Susana,
havia muitos dias, voltara de Paris para o ninho doméstico e o rapaz lembrava
o seu olhar inesquecível, quando se despediram. Sua expressão traduzia um
misto de frieza e dor, de ressentimento e crueldade. Por quê? Ignorava a
violência das suas intenções, procurava, em vão, atinar com a causa da sua
tristeza. Debalde procurava aproximá-la de Madalena, convidando-a a segui-lo
em alguma de suas habituais visitas ao bairro de Santo Honorato. A prima recusara
sempre, em têrmos ásperos que lhe feriam o coração. Além disso,
emagrecera, tornara-se irascível. Nunca mais se aproximou da sua eleita, nem
mesmo para as cortesias comuns. Em suas cogitações íntimas ponderou mais
seriamente aquele procedimento da prima. Certo, ela dera ouvidos, na infância,
a possíveis projetos familiares, de casar-se com êle.
Relacionou, em suas reminiscências, os pequeninos detalhes dos planos
paternos e compadeceu-se da companheira de infância. Contudo, em breves
instantes, buscou desvencilhar-se de semelhantes impressões. Afinal de
contas, refletia, as inclinações da prima não passariam, por certo, de anseios
transitórios da mocidade. Ela encontraria afetos novos. Era senhora de vultoso
dote, não lhe seria difícil encontrar um partido rico, que lhe pudesse satisfazer
os caprichos de moça. Se possível, falar-lhe-ia pessoalmente, assegurando-lhe
o penhor da sua amizade constante.
Buscando desfazer-se das preocupações que não coadunavam com os
seus propósitos do momento, Cirilo penetrou nas ruas da velha cidade, ansioso
agora por atirar-se nos braços do fiel amigo e confiar-lhe as mais íntimas
esperanças.
O professor Jaques Duchesne Davenport resiem antigo parque, que
adquirira para a localização da sua escola, de proporções vastas, destinada à
preparação de crianças de ambos os sexos, antes do acesso aos monastérios
do tempo, consagrados ao serviço educativo. Viúvo já de alguns anos, o
bondoso amigo da infância, com a cooperação de dois professores dedicados,
ali vivia entre os meninos de Blois como se estivesse esquecido das cogitações
mais fortes do mundo. Não era própriamente um velho, na expressão justa do
têrmo; entretanto, os fios grisalhos destacavam-se na cabeleira e as rugas
povoavam-lhe o rosto, embora estivesse tão sômente próximo dos sessenta
anos. Muito raramente dispensava a bengala, que lhe completava a feição de
patriarca junto dos petizes, e as crianças adoravam-no como a um pai. Não
obstante as profundas experiências da vida, que suas atitudes demonstravam,
seus olhos eram vivazes e amorosos, dando a impressão de que no peito
palpitava um coração de grande criança, afetuosa e compreendedora.
As famílias de Blois encontravam nêle um arrimo forte para solução de
todos os problemas relativos à infância. “Mestre” Jaques era um ponto de
referência de magna importância, entre tôdas as classes sociais, Os
brasonados amavam-no pelo seu nobre entendimento das coisas práticas, e os
desfavorecidos da fortuna encontravam no seu carinho fraternal a proteção
prestigiosa de um benfeitor. Os padres católicos estimavam-lhe as preciosas
qualidades de cooperação e os protestantes admiravam-lhe o respeito às
crenças e opiniões alheias. E no seu pequeno mundo de amigos leais e
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crianças amadas, Jaques Duchesne Davenport sentia-se confortado e quase
feliz.
Anoitecia, quando Círio bateu num largo portão cercado de trepadeiras e
madressilvas. As árvores vetustas e acolhedoras do grande jardim faziam da
paisagem um trecho de paraíso, pela sua paz ao sussurro do vento leve. A
casa, muito antiga, dava idéia de vasta mansão de repouso, no seio da tarde
amiga.
Susana veio atender, prestemente, e não pôde disfarçar a surprêsa com a
chegada do primo, sem aviso prévio. Entretanto, longe de perder sua feição
voluntariosa, cumprimentou-o quase friamente, conduzindo-o ao interior e
abstendo-se das expansões afetivas com que o recebia de outras vêzes.
O mesmo não aconteceu, porém, lá dentro, onde Jaques abraçou o
sobrinho, transbordante de alegria. O velho educador quase carregou Cirilo nos
braços, como se recebesse a mais adorada de suas crianças no caminho da
vida.
— Como te demoraste, meu filho! Há muitos dias te procuro, debalde, entre
todos os cavaleiros que passam por Blois.
Cirilo sensibilizava-se fundamente com tais expressões de carinho.
Em doce aconchego familiar, jantaram juntos.
Depois de trocadas as primeiras impressões e quando a noite amortalhara
a paisagem, de manso, o estimado educador, notando que Susana e Carolina
se afastavam deliberadamente, chamou o sobrinho ao gabinete particular e
exclamou batendo-lhe carinhosamente no ombro:
— Vamos Cirilo, acendamos o velho candelabro. Teus olhos indicam que
tens alguma coisa importante a dizer-me.
O rapaz acompanhou-o enternecidamente e respondeu hesitante:
— É verdade, meu tio...
Sentados em poltronas confortáveis, junto de ampla janela que lhes
descortinava o céu pontilhado de estrêlas, foi Jaques quem iniciou a palestra
dizendo ao rapaz das novas impressões que nutria a seu respeito.
Atendendo a uma interrogação direta, o moço esclareceu:
— Sim, encontrei uma jovem que resume as minhas esperanças.
— Conheço-a? — interrogou, afetuoso.
- É Madalena Vilamil.
— Ah! muito bem! Ainda nisso as nossas afinidades se manifestam e as
tuas inclinações me alegram a alma. Conheci-a quando de sua visita ao antigo
palácio de Luís 12º, e isso bastou para que a estimasse infinitamente. Como
tudo isso é interessante, meu filho! Não mais me esqueci dessa jovem, tanto
que, quando Carolina e Susana vão a Paris, recomendo-lhes que não
regressem sem notícias dela.
— Essa circunstância constitui enorme alegria para mim — disse o rapaz
assaz comovido.
— Não podias fazer melhor escolha — concluiu Jaques, convicto. —
Quando pretendem casar-se? Não seria lógico adiar tão feliz evento. Além
disso, quando amamos, é natural que o coração seja atendido.
Amparado por semelhante compreensão, Ciruo Davenport não conseguiria
definir o júbilo que lhe inundou a alma.
— Seu parecer, meu tio, nobilita os meus propósitos; entretanto, estou
francamente indeciso, quanto à data dos esponsais, visto não ter ainda
comunicado a meus pais os meus desígnios.
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— E pretendes ir a Belfast, com êsse fim?
— Se fôsse possível...
Jaques meditou alguns instantes e, como pessoa habilitada a aconselhar
com perfeito conhecimento de causa, voltou a dizer:
— Não vás à Irlanda antes do casamento.
- Por quê? indagou Cirilo um tanto surprêso.
— Não estou fazendo apologia da desobediência ou da anarquia familiar,
mas recordo o meu casamento e não posso deixar-te ao desamparo. Em nossa
ilha costuma-se colocar o interêsse acima das inclinações naturais. Quando
conheci Felícia — a santa companheira que me aguarda no céu nossos
parentes moveram-me guerra permanente e foi-me indispensável um ato de
fôrça para desposá-la. Se fôres a Belfast, começarão a malsinar tua escolha e
cada amigo envenenará teu espírito com superstições descabidas. Serás
flechado de tantos apelos estranhos, entre missas e promessas, que talvez
fiques por lá, carregando para sempre um sonho morto. Samuel permanece
distante de nossa compreensão da vida. Tua mãe é sensível e amorosa, mas
está presa aos excessos devocionais. Teus irmãos são afetuosos, mas são
espíritos muito irrequietos. Talvez a isso devam a difícil situação em que se
encontram.
— Como proceder, então?
— Escreverei a teu pai dizendo que, de há muito, me incumbiste de pleitear
a devida permissão, mas, devido a trabalhos imperiosos, protelei o assunto,
obrigando-o a assumir comigo o compromisso de anuir a teus desejos e
explicando que a futura nora é minha filha de coração. Samuel, naturalmente,
ficará preocupado, a princípio, mas cederá satisfeito, estou certo. Quanto à
adesão de tua mãe, sabemos, por antecipação, que estará de acôrdo conosco,
em todos os sentidos.
Cirilo estava tão contente que não sabia como agradecer.
— E não te detenhas em conjeturas inúteis — continuou o bondoso
educador. — Madalena é digna de teus carinhos e ambos serão meus filhos,
com a obrigação de povoar de netos a minha estrada, para que não me falte
um raio de luz na noite da decrepitude, que todos os homens devem esperar.
No gabinete que se atulhava de cadernos e livros esparsos, havia uma
atmosfera de felicidade indefinível. Ondas de perfume do jardim próximo
penetravam pela janela aberta, como se a natureza incensasse o entendimento
afetuoso de duas almas afinadas no mesmo idealismo.
Observando que o sobrinho prosseguia calado, Jaques interrogou:
— Sentes alguma dificuldade para executar meus conselhos?
— Reconheço, meu tio, que os meus ordenados mensais são exíguos —
explicou o jovem algo tímido.
— Não digas isso. Os melhores tempos da minha vida conjugal foram
justamente quando Felícia e eu lutávamos contra todos os obstáculos para
assegurar nossa felicidade. Minha família, na Irlanda, contrariava os nossos
sonhos, enquanto os parentes de Blois hostilizavam as minhas pretensões.
Casamo-nos sem apoio de ninguém. Meu salário, como professor, era irrisório,
mas as barreiras, aparentemente intransponíveis, pareciam valorizar nossa
união. Com as lutas intensas de cada dia, as horas de convivência doméstica
tornavam-se mais preciosas. No entanto, meu filho, quando Felicia me
compeliu a vir para êste país, onde nos esperava a valiosa herança deixada
por sua mãe, o júbilo perfeito pareceu fugir do alcance de nossas mãos. A vida
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de Blois tornou-se muito diferente da de Belfast. Na Irlanda possuíamos um
ninho; na França encontramos uma casa. No ninho, vivíamos de amor e paz;
na casa, a existência obedeceu às imposições dos cuidados numerosos pelas
muitas convenções sociais. Não quero dizer com isso que as casas sejam
organizações dispensáveis, e sim que devem ser ninhos simples e
acolhedores, onde cada membro da família experimente a tranqüilidade devida.
Minha pobre Fellcia, porém, não soube resistir ao pêso do bem-estar e fomos,
finalmente, menos felizes, desde que as posses de Blois nos compeliram a
numerosos esforços de manutenção e defesa. Minhas filhas, habituadas de
início à simplicidade, cresceram entre exigências de tôda sorte. Susana é um
coração inquieto, insatisfeito, resistindo sempre aos meus paternais conselhos
e Carolina, contra as minhas tendências, vai casar-se por simples questão de
dinheiro com o Sr. de Nemours. Mas, que fazer? Minha inolvidável
companheira acreditou mais na sociedade humana que nas leis simples da
vida, e a sua ansiedade segregou as pequenas do nosso antigo ideal.
Jaques Davenport pareceu meditar um minuto, deixando perceber que
voltava, em espírito, aos tempos da sua mocidade distante. Depois de prolongado
silêncio, como que despertando de profunda divagação, interrogou:
— Compreendeste?
— Sim, meu tio, e agradeço a preciosidade dos seus ensinamentos; no
entanto, há considerar que Madalena descende de fidalgos, enquanto que eu
sou muito pobre.
— Pobre? — tornou o educador, sorridente e otimista — convém manter
acima da classificação comum, de pobres e ricos, a tábua de valores reais, que
define os homens como trabalhadores ou ociosos. Há indigentes no seio de
tesouros inapreciáveis e pessoas há de reduzidos recursos financeiros, singularmente
ricas de esperanças e de ideal. Por isso, meu filho, o perigo está
em que o homem seja ocioso. Quem trabalha deve esperar sempre o melhor;
mas quem perde o tempo, alcançará a miséria.
Os ensinamentos do bondoso velho caiam na alma do rapaz como um
bálsamo.
Atentando no efeito benéfico dos seus conceitos, Jaques continuou:
— O trabalhador possui o tesouro da paz de cada dia, o ocioso encontra
em cada noite o padecimento da insatisfação; um vive na claridade da
esperança, outro na tormenta da ambição. Uma casa sem lacaios é um refúgio
de repouso espiritual, nestes tempos de devassidão. Muitas vêzes, o homem
que dispõe de muitos servos paga-lhes por supostos serviços, mas o que
recebe, em verdade, é calúnia e ingratidão.
Cirilo, radiante ao ouvir tão sábios conceitos, exclamou:
- Suas palavras, meu tio, confortam-me profundamente. Sendo assim...
— Declaremos guerra às reticências — atalhou êle bondosamente —; já
que não és ocioso, podes casar quando bem quiseres.
E como se fizesse uma conta mental, após pequena pausa, acentuou:
— Os esponsais de Carolina estão marcados para novembro próximo.
Debalde tentei induzi-la a fixá-los para o Natal. Dêsse modo, Cirilo, designaremos
tuas núpcias para o futuro 25 de dezembro.
— Tão perto? — perguntou o moço assaz admirado. — Isso é quase
impossível, pois nem mesmo solicitei aos pais de Madalena o necessário
consentimento.
— Estou convencido de que hão de ceder para felicidade da filha.
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— Mas, as providências indispensáveis?
— Serão atendidas — murmurou o tio com significativo contentamento. —
Guardo-te dois mil escudos, a título de cooperação afetuosa no teu sonho de
amor.
O jovem Davenport estava repleto de júbilo, mas, depois de pensar alguns
momentos, advertiu:
— Meu tio, tanta generosidade é demais. Contento-me com o seu apoio
moral, porque, relativamente ao auxílio material, minhas primas seriam
capazes de opor alguma objeção.
— Não dês guarida a tais desconfianças. Deus me livre de contender com a
família por questões de dinheiro. Quando Felícia morreu, renunciei espontâneamente
a todos os direitos que me competiam, em favor das filhas, que
dividiram entre si a legitima materna. Apenas desejei ficar com a minha
liberdade e com a minha escola. A contribuição, portanto, é de meu próprio
pecúlio e não temos nenhuma satisfação que dar a Susana ou Carolina.
O jovem não cabia em si de contente... A oferta preciosa vinha solucionar o
melindroso problema econômico que o perturbava. Não queria casar-se sem
uma base de recursos a cultivar. Supinamente reconhecido, tomou a destra do
tio, apertou-a com carinho e exclamou:
— Não sei como traduzir minha gratidão.
—Ora essa! nem eu desejo que te perturbes por manifestar reconhecimento.
Acreditas, acaso, que o dinheiro seja definitiva propriedade nossa? Todo o
cabedal financeiro é de Deus, que o distribui consoante as necessidades de
cada um, por intermédio dos próprios homens.
A palestra afetuosa entrou pela noite a dentro, até que um velho relógio
bateu as onze horas. Jaques lembrou que necessitava da sua beberagem
habitual para o estômago, e o sobrinho se despediu agradecido e venturoso.
— Meu tio, dormirei hoje um dos sonos mais tranqüilos de minha vida.
— E devê-lo-ás só a Deus — exclamou o generoso amigo, afastando-se ao
toque-toque da bengala, como a dispensar o rapaz de novos agradecimentos.
Enquanto Cirilo se recolhia, ditoso, ao quarto de dormir, Jaques foi
abordado por Susana em copioso pranto, quando buscava o remédio da noite
no velho armário da copa.
— Ouvi tudo, meu pai! — exclamou debulhada em lágrimas, evidenciando
fundo rancor.
— Mas, de que se trata? Que ouviste?
— Suas combinações com Cirilo.
— E por que não fôste participar da nossa conversação no gabinete? —
indagou o genitor muito admirado. — Tratávamos, porventura, de assuntos
secretos que justificassem a curiosidade de alguém atrás das portas?
A moça não respondeu, limitando-se a soluçar convulsivamente.
— Mas, que significa tudo isso, minha filha? — obtemperou o bondoso
velho abraçando-a.
— Meu pai, amo Cirilo e não me conformo com a sua decisão.
Jaques Davenport inclinou-se para a jovem profundamente preocupado.
Agora chegava a compreender suas amarguras secretas, suas inquietações
aparentemente injustificáveis, dos últimos dias. Sentou-se pausadamente,
contendo a custo a própria aflição e fê-la aquietar-se a seu lado, murmurando
depois:
— Filhinha, tem calma e fortaleza, porque êste é um desejo que teu
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velho pai não pode satisfazer.
E o amoroso Jaques, com o seu espírito eminentemente conciliador, fêz-lhe
ver a necessidade de retificar as inclinações afetuosas, falando longamente da
delicadeza da situação, salientando a escolha do sobrinho e os méritos
inegáveis de Madalena Vilamil.
Desenganada em seus dissabores cruéis, Susana reprimia com dificuldade
as expressões de ironia e ciúme que lhe explodiam no coração. Diante do
amoroso pai, a cujo espírito se sentia ligada por irresistível magnetismo, não
fazia mais que chorar comovedoramente, ansiosa por desabafar o misto de
cólera e angústia que lhe empolgava a alma caprichosa.
O genitor carinhoso, reconhecendo que a filha lhe ponderava as palavras
em silêncio, prosseguiu nos conselhos:
— Não desesperes. O coração tem mil caminhos para a felicidade, quando
procuramos aceitar a vontade de Deus. E por tudo que temos de sagrado, não
demonstres rancor à escolhida de teu primo. Precisas compreender que a
resolução de Cirilo é respeitável, e que Madalena é também minha filha pelos
laços divinos do espírito. Naturalmente que em seu noivado estarão nesta
casa, quando se verificarem as solenidades do próximo consórcio de tua irmã,
e eu espero, Susana, que a educação recebida no lar te confira comedimento
às atitudes. Há ocasiões em que precisamos esmagar os sentimentos
cultivados com excessivo carinho, na precipitação das expectativas injustas.
A jovem desejava apresentar furiosas objeções, desacatar o pai muito
amigo, pela primeira vez; continha-se, todavia, com esfôrço imenso, mordendo
os lábios em fúria e dando a impressão de que soluçava de dor infinita, sem
qualquer outro sentimento menos digno. Sinceramente condoído daquelas lágrimas,
Jaques considerou:
— Avalio tua mágoa e, contudo, seria falta grave aplaudir-te. Procura
afagar outros sonhos, renova os pensamentos. Acredito que tuas inclinações
não podem obedecer senão a caprichos procedentes da infância.
— Meu pai, não mais poderei ser feliz — disse no auge da desesperação.
— Só os criminosos podem assim falar —acrescentou o genitor sempre
melífluo.
— Não tenho fôrças para assistir às núpcias de Cirilo — continuava
Susana, enxugando as lágrimas.
O velho professor contemplou-a compungidamente e redargüiu depois de
um minuto de meditação:
— Fortalece tua vontade enfraquecida. Após o casamento de Carolina
poderás espairecer na Irlanda por alguns meses. Retemperarás as energias na
paisagem da tua infância e acredito que a providência ser-te-á imensamente
benéfica ao coração. A época será imprópria para a viagem, mas eu permito
que satisfaças semelhante desejo. Encontraremos embarcação e companhia
adequada. Por hoje, minha filha, recolhe-te à paz da noite e não chores mais.
Tua desesperação não é justa e deves rogar a Deus te conceda a cura da
enfermidade espiritual que te atormenta a alma inquieta.
Susana quis revidar asperamente, declarar que semelhantes afirmativas a
humilhavam em excesso, mas dissimulou a cólera, calou-se e obedeceu em
silêncio.
Quando a viu retirar-se, o pai carinhoso levou a destra ao peito, tentando
aliviar o sofrimento íntimo, em face da angustiosa revelação da filha; e
demandou a alcova silenciosa, sem conseguir explicar o triste pressentimento
41
que lhe travava o coração.
No dia seguinte Cirilo regressou a Paris, transbordando esperanças. Se o tio
bem lhe orientara o espírito quanto ao que lhe competia fazer, êle melhor
executou seus conselhos. Depois de dividir com Madalena o júbilo que o
empolgava, dirigiu cerimoniosa carta a D. Inácio Vilamil e espôsa, expondo as
suas pretensões.
A nova produziu grande sensação na vivenda de Santo Honorato. Os pais
de Madalena não esperavam semelhante surprêsa. Cuidadosamente, sondaram
o espírito da filha, verificando-lhe a aquiescência e a resolução, no
cometimento que condizia com a sua felicidade futura. Entretanto, havia
alguma coisa a considerar e que representava amargo aborrecimento para os
velhos fidalgos. Era o implícito compromisso familiar com Antero de Oviedo. D.
Margarida e D. Inácio sentiam, sincera-mente, o fato de serem compelidos a
apresentar ao sobrinho uma negativa inesperada e demolidora de todos os
seus sonhos de rapaz. Ambos o consideravam qual outro filho adotivo. No
entanto, não seria possível contrariar as inclinações de Madalena, que nunca
lhes causara o menor pesar. Altamente preocupados, os bondosos velhos
esperaram a primeira oportunidade para conversarem a sós com o sobrinho, o
que se verificou dois dias após o recebimento da carta de Cirilo. Madalena
ausentara-se e essa circunstância dava ensejo a entendimentos desejáveis e
justos.
D. Inácio, nessa noite, tratou o rapaz com maior compreensão, não
sabendo como abordar o assunto. D. Margarida, muito carinhosa, observando
que o marido titubeava e vacilava, fixou os olhos serenos no sobrinho e falou:
— Meu filho, hoje temos uma notícia a dar-te:
— Madalena foi pedida em casamento por D. Cirilo Davenport.
Antcro fez-se pálido e respondeu rudemente:
— Coisa estranhável, na verdade, porque espero minha prima desde a
infância.
— No entanto — continuou D. Margarida com voz pausada — Madalena
está de acôrdo e não podemos nem devemos contrariá-la.
Antero levantou-se, passeou nervosamente pela sala e observou exaltado:
— É uma ingratidão! Onde está meu tio que não lhe faz sentir a sua
autoridade, capaz de varrer do seu caminho êsse irlandês audacioso, sem
títulos e sem dinheiro?
Nominalmente citado, D. Inácio respondeu:
— Madalena nunca me deu o mais leve aborrecimento e a autoridade
apenas se exerce com aquêles que a desrespeitam.
— Esse casamento, porém, é um absurdo —exclamou Antero fora de si.
— Quem poderá decifrar os mistérios do coração, meu filho? — atalhou D.
Margarida afetuosamente.
E a discussão acendeu-se. A custo o rapaz sentou-se ao lado da velha tia,
atendendo-lhe aos apelos carinhosos. Mas tanto manifestou seus pensamentos
de inconformação e de ironia, que D. Inácio foi dominado por violenta irritação.
Ouvindo certas palavras mais ásperas do tio, o rapaz retrucou com acrimônia:
— Não posso conferir tamanho direito às suas opiniões. Afinal de contas, o
senhor tem débitos bem pesados para comigo, antes de considerar qualquer
privilégio ao irlandês miserável que me anula as esperanças.
D. Inácio Vilamil esboçou um gesto de justa indignação e revidou:
— Sei que te devo dinheiro, mas não desconheces que nos deves os
42
cuidados da educação. Supões, acaso, que te criaste em nossa casa a poder
de brisas e votos brilhantes? Se reclamas aquilo que te devo em escudos,
como te poderia pagar com as coisas privativas do coração de minha filha?
O rapaz recebeu a reprimenda ríspida, mal se contendo para não agredir
o velho tutor, que lhe falava e gesticulava grandemente irritado.
A boa senhora, todavia, interveio amorosa, e como o sobrinho chorasse de
raiva, tomou-lhe as mãos com muito carinho e procurou consolá-lo:
— Não te encolerizes, Antero! És nosso filho pelo coração, antes de tudo!
Considera, pois, que Madalena é tua irmã. Poderias estimá-la, tão só-mente a
título de espôsa? Recorda que não podemos dispensar tua afetuosa
companhia... Quem nos há confortado o coração, em tempos tão duros de provação
e de esperanças desfeitas? Não guardes rancor, modifica os
sentimentos a respeito de tua irmã. Há de surgir, por certo, em teu caminho,
um matrimônio feliz. És moço, ativo, trabalhador. Não te faltará uma noiva
carinhosa, que encha o teu caminho de luzes novas. Tudo será uma questão
de tempo e boa vontade...
O rapaz, apesar da paixão doentia que lhe enchia o cérebro de odiosas
preocupações, amava singularmente a velha tia — a única alma que lhe havia
proporcionado na orfandade carinhos e afagos maternais. Ouvindo-a,
desabafou. Não podia saber se chorava de amargura ou de despeito, mas,
fôsse como fôsse, aquêle pranto convulsivo aliviava-lhe o coração.
D. Inácio lançou ao sobrinho um olhar de ironia e, depois de um gesto de
enfado, abandonou a sala, enquanto D. Margarida continuava, olhos também
marejados de pranto:
— Desanuvia o espírito, meu filho! Insisto para que continues junto de nós.
Pediremos a
D. Cirilo resida nesta casa, após o consórcio e, quando te resolvas a organizar
tua casa, permanecerás, igualmente, em nossa companhia, até que me feches
os olhos para sempre. Se Deus me der vida, Antero, consagrarei minha velhice
aos teus filhinhos, que serão meus netos pelo coração. Acostuma-te, pois, a
encarar Madalena de outro modo.
Não odeies D. Cirilo, a quem seus sonhos de moça elegeram noivo amado,
neste mundo. Não será melhor que se unam e vivam junto de mim, como
irmãos carinhosos e dedicados? Além do mais, é indispensável consideres, em
tudo, a execução dos desígnios santos de Deus. Naturalmente que a tua
felicidade não será esquecida pelo Céu. Rogarei ao Altíssimo te conceda uma
espôsa devotada e afetuosa, a fim de que, mais tarde, possa eu acariciar os
teus filhinhos, em cada dia.
Ante aquelas manifestações carinhosas, Antero pareceu lavar o coração,
expulsando para longe do espírito as mágoas mais fortes; contudo, no recesso
do ser guardava rancor indefinível e profundo, que lhe arruinaria a existência.
Sentia-se sem fôrças para alijar a figura da prima do quadro das idealizações
mais íntimas. Conformar-se-ia com o inevitável, mas não renunciaria aos seus
desejos.
D. Margarida repetia os conceitos carinhosos, que lhe caíam nalma como
anestésicos suaves, mas, a medida que enxugava os olhos, êle recolhia, no
âmago do espírito, propósitos de vingança, como venenos sutis. Depois de
largos minutos de meditação, tinha os olhos fixos, como alucinado por idéia
terrível. Permaneceria, sim, junto da velha tia, cuja afeição o preparara na vida
com infinita ternura; mas, sentia-se inclinado a disputar Madalena até ao fim de
43
seus dias. Recordava, rancorosamente, as observações frias e ásperas do tio,
e refletiu que D. Inácio lhe pagaria as objeções, a seu ver, audaciosas e
ingratas. Não lhe cobraria os débitos contraídos com êle próprio, mas o velho
fidalgo tinha outros credores, cujos títulos êle endossara, confiada-mente.
Buscaria, dêsse modo, retirar as garantias dadas, logo que julgasse a medida
oportuna. Quanto ao atrevido Davenport, êsse teria de experimentar, cedo ou
tarde, o pêso de sua vindita cruel, O tortuoso caminho do mundo estava cheio
de surprêsas. Conservar-se-ia ao lado da prima, qual sentinela, nela, sem
repouso. O afeto que lhe votava, a seu ver, não admitia condenáveis
substituições. Continuaria amando-a por tôda a vida. Não podia pensar noutra
mulher que lhe tomasse o lugar no coração. Quem adivinharia o futuro?
Madalena poderia não casar e, se o fizesse, era possível que sobreviesse o
desencanto conjugal, ou que enviuvasse algum dia. Se tal acontecesse,
estaria, pois, a seu lado, a fim de lhe atender ao primeiro sinal.
Após o incidente doméstico, dissimulou com habilidade o odioso rancor que
lhe anuviava o espírito, pareceu resignado com a marcha dos acontecimentos.
Cirilo e Madalena estavam longe de pensar nas maquinações sombrias do
primo, que lhes presenciava o romance de amor, entre sorrisos indefiníveis e
complacentes.
E as semanas corriam formosas e calmas, enfeitadas de projetos deliciosos
para o porvir.
Susana, por sua vez, em virtude da influência paterna, ocultou o ódio
mortal que lhe intoxicava o coração e, nas festividades com que foi solenizado
o casamento de Carolina, na pacata cidade de Blois, procurou reaproximar-se
de Madalena, com hipocrisia surpreendente. No baile, exibira preciosa fantasia,
tranqüilizando o velho Jaques pelo ruidoso prazer e acolhimento carinhoso que
dispensava aos noivos, vindos de Paris.
Tudo, afinal, parecia concorrer para a felicidade dos jovens, que não
cabiam em si de contentamento e esperança.
Longa carta dos pais de Cirilo dava conta de seu assentimento ao
matrimônio, em vista das afetuosas observações de Jaques. Endereçavam ao
filho e à futura nora votos de felicidade e paz e lamentavam a impossibilidade
de uma excursão àFrança, para abraçá-los pelo auspicioso acontecimento.
Madalena sentiu-se mais tranqüila após essa carta, desvanecendo os
derradeiros resquícios de inquietação.
O jovem Davenport, plenamente identificado com os futuros sogros, sem
maior experiência do mundo, concordou, satisfeito, com a solicitação para
morarem todos juntos. D. Inácio Vilamil foi o primeiro a tanger o assunto,
alegando a moléstia da espôsa e o seu demasiado apêgo à filha. A jovem
sempre constituíra o amparo de sua casa e o confôrto de seus dias. Filha
única, Madalena resumia para os genitores amorosos o ponto central de seus
interêsses afetivos. D. Margarida andava sempre enfêrma, e quanto a êle, de
há muito não se sentia menos abatido. A ausência da filha sepultaria o
ambiente doméstico em tristeza irreparável. Consentindo em casá-la, não
desejavam pensar no seu afastamento, e sim na aquisição de mais um filho,
que seria o genro, a dilatar-lhes o patrimônio de santas esperanças. Não
sômente os aspectos espirituais foram lembrados. Semelhante decisão
pouparia aos cônjuges a laboriosa montagem de uma casa com todos os
requisitos da vida comum.
D. Inácio ponderou as mínimas conveniências de fundo econômico,
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imprimindo às palavras a fôrça poderosa de suas convicções íntimas. Cirilo
ouviu-lhe os pareceres com atenção, acedendo, comovido, aos seus pedidos e,
compreendendo as dificuldades de ordem material, procurou aplanar todos os
obstáculos defrontados pela família da noiva.
E foi assim que, numa atmosfera de profunda simplicidade e simpatia,
realizaram-se as núpcias de Madalena com o rapaz irlandês, no modesto
templo consagrado à memória de Santa Genoveva, em Paris. (1)
Carolina e o espôso, que passaram a residir em remoto vilarejo do norte,
não se abalançaram a viajar com o frio intenso, e Susana, depois de
(1) Não nos referimos à Abadia de Santa Genoveva, que se localizava,
antigamente, ao sul de Paris. Nota de Emmanuel.
ligeiras providências na capital francesa, partira, dias antes, para a Irlanda, em
companhia de uma família amiga, de Alençon; mas o generoso Jaques tomara
um carro em Blois, a fim de assistir à cerimônia modesta, trazendo carinhosas
lembranças do seu velho parque para os noivos queridos.
Com exceção de três amigas dedicadas da jovem, inclusive Colete e
Cecília, a solenidade foi apenas acompanhada pelo tio de Blois, pelos pais da
noiva e por Antero de Oviedo, que dissimulava dificilmente o ódio que lhe
corroía a alma ardente.
Cirilo e Madalena, porém, naquele instante, ignoravam que houvesse
perversidade na Terra e não queriam saber de homenagens mundanas. Unidos
no seu imenso amor, perante o altar dedicado à padroeira de Paris, foi com
sublime enlêvo que receberam a bênção do sacerdote, em nome de Deus.
Contemplaram-se reciprocamente, em seus votos de imperecível aliança, como
se estivessem atravessando, naquela hora, as portas brilhantes do Paraíso, e,
entre os amplexos afetuosos que os cercaram em doce vibração de carinho, o
jovem par, fremente de alegria, acreditou haver encontrado o ninho da
felicidade perpétua.
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3
A caminho da América
A chegada de Susana à herdade dos Davenport, nos primeiros dias de
dezembro, em Belfast, assinalou acontecimentos de importância no ambiente
doméstico.
Samuel e Constância, sua espôsa, receberam a sobrinha com satisfação
inexcedível.
A moça, no entanto, não conseguiu disfarçar a surpresa que lhe causavam
as modificações ali havidas. A propriedade ia em franca decadência. Os
apartamentos da casa haviam perdido a formosa ornamentação de outros
tempos. Samuel dava a impressão de profundo desalento, enquanto a espôsa,
de olhos encovados, parecia refugiar-se na paciência, ao torvelinho de
amarguras que lhe feriam o coração. Guilherme, Patrício, Jaques, Carlos,
Dorotéia e Helena, os seis irmãos menores de Cirilo, estavam pálidos e mal
nutridos.
Susana percebeu que os golpes do infortúnio continuavam vibrando
naquele lar amoroso, que vinha arrastando as perseguições religiosas durante
muitos anos. Procurou, contudo, dissimular a decepção e passou o primeiro dia
de permanência na graciosa vivenda próxima de Belfast, em doce relembrança
de episódios familiares, cumulando a bondosa Constância de cariciosas
consolações.
Mas, após o jantar muito simples, procurou isolar-se com os tios na
varanda ampla que dava para um trato de terra empobrecida, buscando sondar-
lhes os pensamentos relativamente à penosa situação que atravessavam.
— Infelizmente — declarava Samuel evidenciando enorme desânimo —
nada mais temos a esperar do torrão que nos viu nascer. As crueldades
iniciadas aqui pelos mensageiros de Cromwell foram completadas pela
criminosa ambição de Lawrence Morrison, que nos arrebatou as derradeiras
migalhas, apenas por uma questão de inflexibilidade religiosa.
— É horrível — disse a moça, impressionada —, mas sinto aqui um
esquecimento lastimável. Acredito que Cirilo não está informado dêste quadro
de tamanhas necessidades.
— Ah! sim — disse Constância resignada —, nosso filho tem seus ideais,
Susana, e não nos parece justo arrancá-lo de suas esperanças e atividades em
Paris, apenas por egoísmo do lar.
— Aqui, porém, não se trata de egoísmo — revidou a jovem. —
Francamente, não esperava encontrá-los em pobreza tão crua. E dizer-se que
Cirilo casará ignorando tudo isso!
— Não seria razoável incomodá-lo, minha filha — atalhou Samuel
conformado. — A carta de Jaques notificava-nos o acontecimento com
profunda certeza de sua felicidade. Constituiria falta grave, de nossa parte,
desviá-lo do destino venturoso junto da jovem escolhida.
A moça esboçou um gesto de ciúme que passou despercebido, e voltou a
insistir:
— Considero, entretanto, que, para tôdas as coisas há tempo adequado.
Cirilo precisa conhecer esta angustiosa situação.
Constância, muito carinhosa, lembrou comovidamente:
— Ora, Susana, creio não devermos perturbar nosso filho senão em
circunstâncias extremas. Quem sabe terás algum meio de nos socorrer, sem
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que tenhamos de mandar a Paris qualquer notícia torturante? Muito
poderíamos obter de tuas valiosas relações na Inglaterra.
Muito sensibilizada com o apêlo comovente, a jovem acrescentou com
afetuoso interêsse:
— Sem dúvida que não voltarei a Blois sem haver atendido às vossas
necessidades. Tenho recados de Henriqueta para Londres e espero que as
coisas seriam conciliadas a nosso favor. Não me conformo com essas crianças
quase ao desamparo, no quadro de infortúnio que estou a ver.
E, num gesto expressivo para Constância, perguntou com o seu orgulho
ferido:
— Onde está o cravo que tanto a distraía nas noites de inverno? Que é
feito das tapeçarias, da baixela de prata?
A bondosa senhora explicou num sorriso humilde:
— Foram vendidos ao Sr. Gottfried, quando Patrício e Dorotéia estiveram
atacados pela febre.
— O Sítio do Linho foi alugado? — interrogou a moça com decisão.
— Lawrence Morrison moveu uma ação contra nós e fomos despojados
dêsse terreno — explicou Samuel contristado.
— E os rebanhos?
— Não temos mais recursos em pastagens. Conservamos apenas alguns
bois de serviço e algumas cabras.
— Isso é insuportável — exclamou a jovem assaz irritada.
Em seguida a uma pausa mais longa, em que os três se sentiam em face
de sério problema, Susana inquiriu com firmeza:
— Que sugerem para que eu possa começar o trabalho de reivindicação de
tantas injustiças?
Samuel Davenport parou os olhos no horizonte embaciado do crepúsculo,
meditou longamente e respondeu:
— Minha filha, não desejaria acabar minha existência aqui, onde a
lembrança da mocidade venturosa me agrava os terríveis desgostos. Nossa
ilha está dilacerada pelas perseguições e nossa fé religiosa é irredutível. Não
me sinto capaz de bajular os protestantes impiedosos e, por êste motivo, devo
contar com as humilhações de tôda sorte, enquanto viver. Não suporto os
ímpios inglêses e morrerei no seio de nossa amada Igreja. Neste caso, venho
sonhando ultimamente com uma vida nova, na grande colônia da América,
para onde se transferiram muitos dos nossos amigos espoliados.
E, como experimentando outro ânimo, imaginando a soberba visão do novo
mundo, continuou:
— Lá se encontram os Taylor, os Dalton, os Harrison, os Richmond. Todos
prosperam vertiginosamente e acreditam em Deus como entendem. Erguem
capelas nos montes, criam rebanhos fortes, à margem de rios fartos e de
pastagens sempre verdes. Dizem, Suzana, que, por lá, o céu é muito azul e
que as flores povoam as estradas, quase a todo tempo, favorecidas pela
bênção constante de um sol ardente e amigo. Arquimedes Taylor, que voltou a
Belfast o mês passado, a fim de procurar alguns documentos importantes,
visitou nossa granja e muito me animou a partir com a família. Informou-nos de
que na América protestantes e católicos se unem, fraternalmente, na faina dos
trabalhos comuns, em atitude muito diversa da adotada por velhos
companheiros irlandeses que se bandearam para a política dos senhores
poderosos e aos deixaram em abandono. Com exceção do velho Gordon, que
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pretende transferir-se também para a colônia, no ano próximo, ninguém mais
nos procura. Por ocasião da grave moléstia das crianças, eu e Constância
lutamos com a enfermidade completamente desamparados. Estamos cansados
de sofrer injustiças. O padre Bernardo, que nos confortava nas fadigas diárias,
foi banido há duas semanas. Por tudo isso, venho afagando a idéia de buscar
outras terras.
A moça anotava, em silêncio, as alegações do tio, procurando tirar as suas
conclusões a respeito das providências sugeridas. À medida que Samuel
Davenport expunha seus planos e sofrimentos, ela considerava o assunto,
calculando por antecipação as conseqüências.
A seu ver, a partida para a colônia era idéia aproveitável. Buscaria envolver
Cirilo no projeto. Não seria interessante vingar-se de Madalena Vilamil,
obrigando o marido a partir para regiões tão distantes? Se pudesse, compeliria
o primo a partir só, sem a companheira. Detestava a filha de D. Inácio, que lhe
arrebatara o sonho da juventude. Ainda, porém, que não conseguisse o
principal objetivo com a ausência só do primo, de qualquer modo gozaria
vendo-os partir como exilados da Europa, deixando-a livre da visão de sua
felicidade.
Obcecada pela recordação de Cirilo, de quem não conseguia esquecer-se,
ponderou com atenção no socorro indispensável aos tios de Belfast, concluindo
mentalmente que seria fácil ir a Londres e obter as providências políticas para
que se lhes fizesse justiça na própria terra que os vira nascer; mas, segundo
suas convicções íntimas, não encontraria oportunidade mais adequada para
vingar-se. Madalena conheceria o pêso da sua fôrça cruel. Dominada por
semelhantes sentimentos, a jovem de Blois sentenciou:
— Seus planos, meu tio, são louváveis e lastimo sinceramente não poder
acompanhá-los à colônia distante. As terras novas sempre me empolgaram a
imaginação por sua riqueza e grandiosidade, de acôrdo com as notícias
trazidas pelos corajosos conquistadores.
Após um momento, em que Constância e o espôso lhe seguiam
atentamente os mínimos gestos, continuou:
— Quais as providências iniciais para realizar nossos propósitos?
— Bastaria que alguém se interessasse por nós, na Côrte — acentuou o tio
com imensa esperança a rebrilhar nos olhos. — Lord Arlington é hoje uma
autoridade incontestável na política nova e, com a sua influência, poderá
facultar-nos um título de propriedade agrícola na colônia. Isso conseguindo,
venderíamos o que nos resta e escolheríamos a chamada região de
Connecticut, onde pretende fixar-se o nosso generoso Gordon, no próximo ano.
— Pois irei a Londres para êsse fim — exclamou a jovem resolutamente. —
Não existe também um auxílio financeiro aos que partem? O govêrno da
França costuma amparar as famílias que se dirigem para as regiões
inexploradas.
— Na Inglaterra, os prestigiados por pessoas influentes também
conseguem, às vêzes, idêntico auxílio.
— Insistirei com as autoridades competentes para que recebamos o
benefício. Se Lord Arlington não dispuser de elementos com que me possa
atender, recorrerei à própria Coroa.
Os tios carinhosos entreolharam-se com viva satisfação, como quem
recebia o socorro longamente esperado.
— Resta saber — prosseguia a sobrinha, resoluta — como e quando se
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dará a partida de Abraão Gordon com os seus.
Visivelmente confortado, Samuel Davenport explicou:
—Creio que a viagem se fará na segunda quinzena de julho do ano próximo, e
o Capitão Clinton fornecerá passagem nos seus barcos a preços módicos;
entretanto, em suas experiências do mar, êle exige que cada família apresente
três homens válidos para cooperar nos trabalhos da travessia. Acredito, pois,
que encontraremos certas dificuldades tão só para atender a essa exigência,
porque não me Sinto muito bem de saúde, e o Guilherme agora é que vai
completar os dezoito anos.
— E Cirilo? — interrogou Susana, admirada — naturalmente não será
possível isentá-lo do cumprimento dêsse dever.
Constância careteou como quem não desejava perturbar o filho, mas
Samuel obtemperou:
— Pensei mesmo em convidá-lo a partir conosco, mas o casamento talvez
lhe haja impôsto outros projetos definitivos para o futuro.
Susana refletiu um instante, ocultou os verdadeiros sentimentos que nutria
sôbre a rival e murmurou:
— Madalena Vilamil é boa moça e compreenderá as nossas necessidades
prementes. Sem dúvida, acompanhará o marido, e dado que o não possa
fazer, nem por isso o impedirá de cumprir o dever filial. Tenho absoluta certeza
de que conseguirei os títulos de posse, em Londres, e, enquanto iniciamos as
providências, poderão escrever a Cirilo expondo-lhe a situação com franqueza,
dizendo-lhe convir aqui esteja em abril, para inteirar-se do assunto e prepararse
convenientemente para a viagem, em julho. Até à primavera, terá gozado
bastante a sua lua de mel e não é muito se lhe peça o comparecimento em
Belfast daqui a três ou quatro meses.
Depois de ligeira pausa, acentuava:
— E é justo não esqueçamos de escrever igualmente para Blois.
Em seu profundo potencial psicológico, estava certa de que Cirilo não
deixaria de aconselhar-se com o tio e concluía:
— Conhecemos o ascendente de papai sobre a índole caprichosa do primo
e faz-se necessário que ambos conheçam o caráter urgente das decisões a
tomar.
Constância, jubilosa, admirava o poder de resolução da sobrinha, e falou
satisfeita:
— Deus nos ouça, porque já comentamos o assunto como se tudo
estivesse providenciado com inteira segurança.
— A senhora não duvide — esclareceu a jovem —, não descansaremos até
que tôdas as coisas se resolvam. Estas crianças — e designou com um gesto o
interior da casa, onde os meninos brincavam em alvorôço — hão de crescer
numa vida nova. É impossível que dobremos a cerviz ante o cêrco da miséria.
Em muitos casos a resignação deixa de ser virtude para tornar-se inimigo cruel.
Em seguida, quando o véu da noite se fechara de todo, transferiram a
conversação para a sala espaçosa do fogão de inverno, onde Samuel, muito
depois de se haverem recolhido a sobrinha e a espôsa, ainda permaneceu
largo tempo a meditar, como se conversasse com as achas ardentes daquela
amada lenha do Ulster, que encerrava para o seu espírito um escrínio sagrado
de inesquecíveis tradições.
Somente após o Ano-Bom Susana se dirigiu para Dublin, onde tomou uma
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embarcação que saía do Canal de São Jorge com destino aos portos da
Mancha. Partia em busca das concessões de Londres, interessada e
esperançosa, depois de haver orientado os tios com relação às missivas
endereçadas a Paris e Blois.
E, assim, em fevereiro de 1663 as cartas de Belfast mudavam as
perspectivas entre os cônjuges venturosos.
Cirilo leu, emocionado, a carta paterna que lhe falava dos enormes prejuízos e
infortúnios experimentados e da resolução de partir para a América, em
procura de valores novos, suplicando o seu amparo filial em tão graves
circunstâncias. Insistia para que o acompanhasse na viagem, ainda que não
pudesse transferir-se definitivamente com a jovem espôsa para o Novo Mundo.
Calculava que bastariam alguns meses de cooperação e poderia voltar a
reassumir as obrigações que o retinham na capital da França. Samuel sugeria,
carinhosamente, que a espôsa o acompanhasse na longa viagem, empreendida
para tranqüilidade de todos. Quanto aos encargos de ordem
material, esperava compensá-lo, doando-lhe parte do produto da venda do
resto de sua propriedade rural na Irlanda do Norte.
Madalena, por sua vez, mostrava-se fundamente sensibilizada. Constância
enviou-lhe carinhosa carta na qual lhe rogava assistência e auxilio moral para a
transferência desejada, destacando o obséquio que a nora lhes prestaria
favorecendo a partida de Cirilo, de maneira a lhes atenuar o rigor dos inúmeros
trabalhos. Enviava-lhe, com afagos maternais, delicada fôlha de trêvo como
lembrança da missa a que assistira em intenção da sua ventura conjugal, na
véspera das núpcias; relatava — mãe afetuosa — as enxaquecas do marido,
as necessidades dos filhinhos. Procurava, enfim, convencer a nora de que
deveria partir também com êles e fazia-lhe sentir que sua casa era igualmente
da nora, a qualquer tempo.
A jovem espôsa de Cirilo chorou, emocionada, ao receber as confidências
da sogra. Se fôsse possível, teria partido para Belfast naquele mesmo dia, a
fim de confortá-la, mas não podia considerar sequer a possibilidade de uma
visita ao Ulster nos meses próximos, porque D. Margarida piorara muito do seu
velho mal cardíaco. Prostrada, palidíssima, não arredava pé da cama,
reclamando assistência carinhosa e constante... Por vêzes, as dispnéias
sobrevinham noites seguidas, agravando-lhe os padecimentos atrozes.
Que fazer em face de tão angustiosos obstáculos?
Ao crepúsculo dêsse dia de notícias singulares, em que as emoções
agradáveis se haviam misturado largamente com a dor, Cirilo e Madalena
encaminharam-se ao templo de Nossa Senhora (Notre-Dame), ansiosos por
uma inspiração que lhes aliviasse a alma inquieta.
Madalena desejava sinceramente ir a Belfast. atendendo aos apelos
afetuosos da sogra, mas a precária saúde de sua mãe a impedia de formular
qualquer projeto a respeito.
— Afinal de contas — dizia a Cirilo sob o manto estrelado do céu, que
sempre lhe enchia de encantamento o espírito sonhador — não devemos sofrer
tanto, antecedendo fatos que se desdobrarão segundo a vontade do Pai
Celestial. Sômente partirás em março e, até lá, quem sabe?
Ele, porém, não lhe acatava os argumentos afetuosos, com o habitual bom
humor. Sem poder explicar o que lhe ocorria no íntimo, permanecia taciturno,
alheio às suas costumeiras características de resolução.
— Não posso compreender, Madalena, por que essa viagem forçada a
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Belfast me ensombra o espírito, enchendo-me de preocupações.
— Viagem forçada? Não digas — redargüia a espôsa com bondade. —
Para nossos pais todos os trabalhos constituem motivos de satisfação espontânea.
Não tens feito o possível pela tranqüilidade do papai e pela saúde da
mamãe? É indispensável não esquecer que temos igualmente dois velhos
amorosos à espera de nosso auxílio na Irlanda do Norte.
Visivelmente nervoso, o rapaz obtemperou:
— Sim, mas os meus trabalhos em Paris? E se não me puderes
acompanhar a Belfast? E se
D. Margarida piorar a ponto de ser forçado a assumir compromissos com os
meus, partindo sozinho para êsse longo itinerário até à América?
—Quantas interrogações prematuras! — opugnou ela esforçando-se por
manter um sorriso menos pessimista — se nos acontecesse o pior não deveríamos,
ainda assim, inclinar o coração à vontade de Deus? Se nos
separarmos por alguns dias, não será por motivos frivolos, mas por atender a
necessidades imperiosas de nossos amoráveis “velhinhos”.
Procurando desfazer as penosas impressões do espôso, a filha de D.
Inácio continuou:
— Relativamente aos teus trabalhos comuns, acredito não seja difícil obter
uma licença sem remuneração; e se mamãe piorar, impedindo minha partida,
estaremos juntos nas preces sinceras ao Céu para que tôdas as dificuldades
cessem logo. Além disso, não devemos contar com a assistência do tio
Jaques? De Blois a Paris não é longa a distância. Precisamos coragem, Cirilo,
pois Jesus não nos deu a felicidade sômente para a satisfação pessoal e sim
para que aprendamos a estendê-la a outros sêres. Nossos pais estão
cansados e doentes, é justo lhes ofereçamos nossa disposição para o trabalho
e o socorro de nossa mocidade sadia.
O moço ponderou aquelas palavras deixando perceber que havia
encontrado a desejada solução e enlaçou-a com mais ternura.
Embebidos na cariciosa contemplação da noite amiga, falaram ainda longo
tempo de suas esperanças e projetos de futuro, regressando ao ninho
doméstico, cada qual fazendo o possível por se mostrar mais otimista, visando
o confôrto recíproco, mas, quando foi atender a genitora doente, Madalena
contemplou o crucifixo de madeira que
D. Margarida conservava no quarto, pendente do leito e, fixando o olhar na
imagem de Jesus, pediu-lhe com fervor lhe desse paz ao coração atormentado
por infindos receios. Depois de verificar que a matrona repousava em profundo
sono, ajoelhou-se, beijou aquêle símbolo de sua fé e limpou uma lágrima,
cuidadosamente, para que o espôso não lhe surpreendesse os amargos
presságios.
As semanas voavam ao ritmo das renovadas preocupações.
Após uma consulta ao tio Jaques, que fôra igualmente informado da precária
situação de Samuel em Belfast, Cirilo Davenport decidiu-se àviagem, a fim de
auxiliar os pais no que fôsse possível. Preparou seu desligamento temporário
dos serviços, tomou as providências necessárias, mas D. Margarida piorava
devagarinho, impossibilitando, de qualquer modo, a ausência da filha.
A vista disso, o rapaz foi obrigado a partir sozinho para a Irlanda, em fins de
março.
Informado de que Susana permanecia no torrão natal, Madalena dirigiu-lhe
carinhosa carta, junto da que escrevera, com muito afeto, à bondosa sogra,
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explicando a impossibilidade de visitá-la e solicitando-lhe que, como prima
devotada, a representasse na família, orientando Cirilo em suas necessárias
decisões de auxílio aos pais.
Dêsse modo, o filho de Samuel partiu deixando a espôsa no circulo
habitual, constituído por D. Inácio, sempre nervoso, D. Margarida, gravemente
enfêrma, e Antero, que rodava de Paris a Versalhes e vice-versa, como quem
perseverava nos mesmos propósitos, esperando as oportunidades.
A chegada de Cirilo foi um acontecimento de larga repercussão no lar
paterno.
Susana, dias antes, havia regressado da capital inglêsa com todos os
documentos legais, concernentes à emigração de Samuel e família para a
colônia longínqua. Depois de uma visita pessoal a Carlos 2º, em que fizera
questão de alardear o valor de suas relações prestigiosas na Côrte de França,
tôdas as portas se lhe abriram com facilidade surpreendente. Além de
conseguir as dotações necessárias, inclusive sementes e outras utilidades,
solicitou também um auxílio financeiro para o velho Gordon, que lhe recebeu a
gentileza profundamente sensibilizado. Ao júbilo das concessões obtidas,
acrescentava-se, agora, a alegria da vinda do rapaz, reforçando as esperanças
dos perseguidos irlandeses.
Constância não sabia como exprimir seu contentamento maternal. Reuniu
todos os recursos humildes da despensa doméstica e ofereceu um jantar muito
simples, nesse dia em que, acima de tudo, falava o sincero carinho do coração.
A noite, reuniu a família em preces a Deus, agradecendo à Providência os
favores da sua misericórdia e, após as orações comuns, expressou um voto de
reconhecimento a São Patrício, pela feliz chegada do filho, o que, feito em voz
alta na espontaneidade do seu afeto, arrancou muitas lágrimas ao rapaz, que
permanecia igualmente de joelhos, em obediência à tradição familiar.
Conforme acontecera à prima, Cirilo impressionara-se fortemente com os
quadros de infortúnio resignado e de velada pobreza que viera encontrar na
paisagem querida de sua infância, e fazia o possível por não repetir as
expressões de espanto, quando procurava êsse ou aquêle local, em busca de
velhas impressões da sua meninice. Não conseguiria explicar a emotividade
que lhe envolvia a alma inteira. A humildade com que Samuel patenteava a
necessidade da sua proteção, os olhares amorosos da mãe, a doce delicadeza
dos manos, penetravam-lhe o espírito com indefinível intensidade. Lêra à
Constância a terna missiva de Madalena e reparara, emocionadíssimo, como a
genitora enxugava as lágrimas copiosas com as dobras do avental muito
branco. Guardava a impressão de haver ingressado num sonho bom, em que,
no maravilhoso tapête das lembranças suaves, voltava a ser menino.
Quanto à Susana, recebera as letras delicadas de Madalena, lendo-as a
sós, depois de cerrar cuidadosamente a porta do quarto e reprimindo intensa
cólera. Frase alguma daquela mensagem fraternal conseguira modificar suas
disposições. Não constituía atrevimento da rival endereçar-lhe semelhante
apêlo? Num ímpeto de ciúme e despeito, fêz menção de estraçalhar o
documento carinhoso, mas, como se fôra advertido pelas idéias criminosas que
lhe passavam, por vêzes, na imaginação sobreexcitada, exclamou consigo
mesma: — “Não será melhor conservar esta carta para algum dia da vida?
Quem poderá saber o futuro?“ E modificando a primitiva atitude, guardou a
missiva com cuidado, na bolsa reservada aos objetos mais íntimos.
Abraão Gordon, à noite, viera participar das alegrias familiares, abraçando
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jubiloso o recém-chegado de Paris, a quem amava como próprio filho, desde o
dia em que Samuel e Constância o haviam chamado para levá-lo à pia
batismal.
Às ocultas, o pai de Cirilo, acanhado por ter de incomodar diretamente o
rapaz, solicitara ao antigo companheiro de lutas endereçasse ao filho o apêlo
final, para os acompanhar no longo cruzeiro transoceânico.
Gordon aproveitou o encanto do momento, cheio de intimidades cariciosas
e, quando terminaram as preces de louvor a Deus, dispôs o grupo familiar em
tôrno da larga mesa dos Davenport, que recordava os antepassados
numerosos, devotados a tradições domésticas. Aplaudido com calor por
Susana, que entrava na conversação com apartes sagazes e inteligentes, o
notável ancião depois de exaltar as grandiosidades do Novo Mundo, que
conhecia pessoalmente, em virtude duma visita aos parentes exilados na
Virgínia, notificou ao rapaz a necessidade do seu apoio ao grande
cometimento.
— Contamos contigo, Cirilo — afirmava o velho irlandês bondosamente —
e nem poderia ser de outro modo. Samuel e Constância esperam o teu amparo
imprescindível. Somos velhos e o capitão Clínton necessita de moços para a
travessia, que não é tão fácil como parece à primeira vista. Já enviei instruções
a Oxford para que Carlos e João estejam em Belfast, no mês de junho. Não
podemos dispensar o esfôrço dos filhos, na execução da emprêsa.
— Entretanto — murmurou Cirilo um tanto esquivo, dado o seu problema
de natureza sentimental, refletindo na espôsa e nas suas fadigas domésticas
—, ignoro se poderei partir na época prevista.
— Não há mais tempo para hesitações —obtemperou o velho Gordon,
depois de bater com o cachimbo na mesa, num gesto muito seu —; a questão
não é de possibilidade, é de imperiosa necessidade. Entre pais e filhos não há
consultas, há compromissos. O capitão Clínton exige a contribuição dos mais
fortes e não será razoável dispensar teus esforços.
O rapaz corou em face da observação direta que lhe era dirigida, e
ocultando súas recônditas preocupações sentimentais, receando ser tido
àconta de covarde, considerou:
— Não me furto ao que constitui para mim um grato dever, más, como
sabem, meus serviços intelectuais, em Paris, são bastante expressivos e não
sei se me permitirão uma ausência prolongada.
— Meu filho — exclamou Abraão, convicto —, não guardes ilusão sôbre
pretensas realizações intelectuais dos nossos tempos. Isso é um miserável
engano, Cirilo. Os espíritos vulgares alardeiam conquistas mentirosas,
enquanto escondem a consciência vestida de andrajos. Semelhantes fantasias
vão conduzindo os homens mais sábios à confusão e à ruína total. As lutas
religiosas, que nos expulsam do berço, não serão resultantes da desordem do
pensamento? Por que motivo os protestantes, e mesmo os católicos
eminentes, se empenham em lutas de morte? Será porque trabalharam com as
mãos, ou porque se desviaram do caminho de Deus pelo abuso de raciocínios?
As mãos não se equilibram sem o impulso orientador das idéias, como. as
idéias não se materializam sem o concurso das mãos; no entanto, suponho que
os homens vão esquecendo o dom do serviço pelos excessos do pensamento
em desvario.
Todos acompanhavam com atenção os argumentos profundos, enquanto o
rapaz fixava os olhos brilhantes no rosto simpático do bondoso velhinho.
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Estava tocado nas fibras mais sensíveis e contemplava o antigo mentor, em
respeitoso silêncio, ansioso por não perder um só de seus elevados conceitos.
— Em diversas regiões do sul — continuava Gordon, percebendo o
poderoso efeito de suas palavras — existem católicos que assassinam os hereges,
bàrbaramente; e aqui no Ulster os partidários da chamada Reforma nos
invadem as terras e desonram os lares. Enviados prepotentes da política de
Londres nos insultam e assaltam nossas propriedades laboriosas e honestas.
Se tôda essa gente trabalhasse mais e discutisse menos, não acabaria
estabelecendo a certeza de que todos somos filhos do mesmo Deus? As
legítimas renovações, Cirilo, não se destinam apenas à operosidade e aos
feitos da inteligência, mas também ao esfôrço de arrotear com amor a terra
dadivosa. Que tem sido a existência da Europa senão uma guerra incessante?
Todos os povos progridem para dominar os mais fracos, prosperam, a fim de
ganhar a fôrça e exercer a opressão. Tudo isso significa que o homem não
necessita ser mais arguto para explorar o próximo, e sim que compreenda e
ame a vida. E ninguém, meu filho, entenderá o próprio caminho sem trabalho
intenso por concretizar um ideal de virtude, na marcha para Deus.
Susana reparava o velho amigo de sua infância, manifestando a
transbordante satisfação que suas alegações lhe causavam, e o marido de
Madalena, seduzido pelos argumentos, sentia a renovação de antigo idealismo.
Aquelas palavras vibravam estranhamente em sua alma, tinha a impressão de
que lhe ressurgira no imo alguma coisa ofuscada e quase perdida, que era o
imenso amor à gleba, a dedicação ao solo a que se acostumara a querer todo
o bem, pelas lições vigorosas recebidas na infância. Por disposições
maravilhosas do pensamento, sentia-se transportado à meninice distante,
atravessava descalço as pastagens orvalhadas em busca dos bois que mugiam
longe. Revia as grandes árvores tratadas amorosamente e desejava tosquiar,
de novo, os carneiros gordos e mansos, O ambiente social de Paris eclipsaralhe
o gôsto pelas manhãs chuvosas, com o ruído da charrua sulcando a terra
macia. Sübitamente, experimentava a ansiedade de tornar a beber a luz das
paisagens campestres, na companhia dos cavalos árdegos e resistentes. A
inclinação do homem consagrado ao esfôrço da terra triunfava de tôdas as
preocupações de ordem puramente intelectual. Agora, lembrava que a França
estava repleta de silogismos inúteis. Padres e filósofos disputavam
estêrilmente, redundando as suas cogitações numa comédia ridícula, em que
cada qual permanecia mais vaidoso, ao lado das aflições dos mais fracos, no
seio do povo prejudicado e iludido. A guerra constituía, invariàvelmente, o
produto sutil dêsses excessos dos condutores da multidão. Eram raros os
propósitos sérios, os impulsos enobrecedores, isentos de vaidade ou egoísmo.
Cirilo estava magnetizado pela grandeza dos conceitos emitidos: Abraão
Gordon tinha razão. Era necessário voltar à terra e escolher a flor da paz em
seu seio acolhedor.
— Compreendo agora — exclamou, deixando entrever que descobrira a
equação indispensável. — Não posso perceber como andava tão esquecido...
— Vendo-o passar a mão pela fronte, os presentes entreolharam-se
satisfeitos. A rendição de Cirilo, com respeito ao assunto, causava-lhes enorme
prazer.
— Ainda bem — continuava Gordon encorajado — estávamos certos de
que não falharias na inclinação justa.
— As suas opiniões são incontestáveis.
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— E já chegou a refletir nesse Novo Mundo que os navegadores nos
trouxeram?
— Sem dúvida — exclamou o filho de Samuel, assaz impressionado —
terá uma finalidade muito mais importante que a de simples colônia, que lhe
possamos atribuir.
Abraão Gordon sorriu e continuou:
— Eu, que lhe conheço a grandeza insondável, posso afirmar que a
América é uma região destinada por Deus aos flagelados e desiludidos da
Europa. Suas florestas assemelham-se a um oceano de verdura. Seus rios
fartos chamam as criaturas para trabalhos promissores de paz e esperança,
seus horizontes iluminados prometem a coroa da liberdade e da vida. Estou
convencido de que o novo continente representa uma dádiva de Deus aos
homens trabalhadores e corajosos. Deve ser a realização da promessa aos
corações de boa vontade. Acredito que, lá, os nossos descendentes hão de
amar os valores legítimos da vida e farão cessar a cadeia de ruína e
destruição, que ameaça sempre a prosperidade européia, nas guerras
famulentas. Aos que se encontram cansados de tolerar a criminosa influência
do demônio insaciável, que domina os nossos príncipes, a Providência enseja
a possibilidade de um lar entre as flores de uma natureza diferente e livre, cuja
paz é garantida pelos abismos das águas.
Cirilo, ouvindo as palavras ardentes do velho amigo, sentia-se
transformado. Começava a admitir que, por certo, sua felicidade residia do
outro lado do grande mar. Num minuto, chegava a esquecer os livros, os
pergaminhos, as controvérsias infindáveis dos filósofos do tempo, os princípios
expostos pelos teólogos da universidade. Imaginava o futuro lar, onde
Madalena e êle cuidariam da ventura de filhinhos amados, no país maravilhoso
cuja grandeza parecia contemplar, através das descríções vivas do ancião de
Belfast. Recordou que seus ideais eram idênticos aos da espôsa, relativamente
à América distante. Madalena também tinha sêde daqueles horizontes largos,
daquela terra fecunda e perfumada. Sentindo que podia falar igualmente em
seu nome naquela assembléia familiar, assumiu o compromisso de transferir-se
definitivamente para o Novo Mundo.
Depois de afirmar sua decisão, que despertou enorme e geral
contentamento, a paléstra se desdobrou em tôrno das realizações futuras.
Susana e Constância emprestavam à conversação a mais vibrante alegria,
terminando as combinações iniciais da viagem com expressivas
demonstrações de júbilos sinceros.
Diàriamente, agora, repetiam-se as reuniões afetuosas na casa
acolhedora, delineando-se todos os projetos em lide.
Para que Cirilo partisse justamente tranqüilo, ficou assentado que ainda
voltaria a Paris, não obstante as dificuldades das viagens de então, a fim de
consultar a espôsa, quanto à possibilidade de sua partida. Na hipótese de ela
continuar impedida pela moléstia da genitora, êle acompanharia os pais até à
América, cuidaria das instalações iniciais e voltaria à França para buscar a
companheira. Estava certo de que a espôsa lhe aprovaria as decisões e
compartilharia das suas esperanças. Ela também amava, de longe, aquelas
florestas desconhecidas, onde haveriam de fundar a casa venturosa e farta
para a sua prole.
No curso de uma quinzena, tôdas as deliberações estavam assentadas.
Abraão Gordon fêz a Samuel espontâneo empréstimo de dinheiro, para que o
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filho pudesse deixar à espôsa alguns recursos, uma vez verificada a
impossibilidade de sua partida. Dentro de algumas semanas, Constância e o
marido venderiam a parte restante da propriedade e resgatariam o
compromisso.
Dêsse modo, nadando em esperança de maravilhoso porvir, Cirilo
regressou à França com a promessa de tornar a Belfast no fim de junho.
Seu regresso ao lar foi acolhido entre carinhosos contentamentos da espôsa, e,
contudo, os planos traçados na Irlanda causaram a Madalena certa estranheza,
sem que ela mesma pudesse explicar o motivo das dolorosas angústias que
lhe assaltavam o Coração.
O marido tratou de organizàr numerosas providências, à pressa,
destacando-se a do seu desligamento da universidade, em caráter definitivo,
com as veladas preocupações da espôsa. Deliberou ir a Blois, sem que a
companheira pudesse participar da excursão, dado o estado grave da sogra.
Estava ansioso por abraçar o velho Jaques. O tio amigo o acolheu com a
satisfação habitual, ouviu com interêsse o relatório verbal da visita ao Ulster e
concordava, em tese, com as alegações de Abraão Gordon, sôbre a mudança
para regiões tão distantes. O rapaz inteirava-o, entusiasmado, das menores
decisões tomadas, ao mesmo passo que o professor de Blois o considerava
um tanto mudado. Cirilo referia-se com muito calor a terras vastas, a fazendas
prósperas, comentando, por antecipação, o valor dos rebanhos e das lavouras
que manteriam o equilíbrio econômico das organizações rurais e das ricas
plantações de fumo, que garantiriam o dinheiro do exterior, na dilatação do
patrimônio futuro. Em tôda a sua conversação, não havia uma referência aos
religiosos inteligentes, como se verificava de outras vêzes. Não mais
comentava os autores romanos e gregos ou a, sabedoria dêsse ou daquele
documento antigo, enriquecendo a palestra de observações elevadas e úteis.
Jaques escutava-o admirado, disfarçando a custo a impressão de estranheza.
Concordava com a ida do sobrinho para o novo continente, mesmo porque
Cirilo estava muito moço e à sua frente desdobrava-se radioso porvir; mas não
podia aplaudir-lhe a atitude centralizando todos os interêsses em problemas de
absoluta feição material.
Depois de ouvi-lo por algum tempo em silêncio, o austero professor, como
quem não pode omitir as coisas essenciais, perguntou:
— Como ficam teus trabalhos na Sorbone?
— Desliguei-me definitivamente da universidade.
— E Madalena?
— Dentro de um ano voltarei a buscá-la, após instalar nossa nova casa. A
saúde precária de D. Margarida, presentemente, não nos permite partir juntos.
Em vista da resposta formal, o velho educador compreendeu, hábil
psicólogo, que era inutil tentar demover o rapaz das decisões tomadas; todavia,
como advertênCia velada, limitou-se a dizer:
— Nunca me separei de Felícia senão quando o poder de Deus nos fêz
curvar diante da morte.
Cirilo, porém, dominado pela visão dos interêsses imediatos, não pôde
perceber a sutileza do aviso e passou a fundamentar os motivos de sua
resolução, recordando os apontamentos de Abraão Gordon relativamente ao
panorama das lutas estéreis da Europa, acusando os gabinetes políticos como
focos de chacina e destruição. Jaques escutou-O novamente mergulhado em
silêncio, dominado por singular impressão. Por fim, insistido por seus pareceres
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mais claros, Cirilo manifestou-se desejoso de que o tio os acompanhasse a
breve tempo, de maneira a se reunirem todos na América, para a continuação
feliz dos empreendimentos sadios e realistas.
O bondoso professor fixou o olhar no velho parque que se vestia com a
roupagem deliciosa da primavera, escutou o rumor das crianças que brincavam
sob as grandes árvores e respondeu:
— Não conheço o futuro, meu filho, mas, por enquanto, não me seria
possível examinar semelhante hipótese. Quem sabe pensarei nisso amanhã?
Ao presente, sinto que não devo abandonar meus velhos livros e meus alunos
novos.
— Contudo — insistiu o rapaz — estou certo de que o senhor se reunirá a nós,
mais tarde ou mais cedo. Não é possível continue suportando o ambiente
europeu, envenenado de lutas odiosas e seculares. Daqui a um ano, ao
regressar para levar Madalena, é bem possível o encontre modificado.
Enquanto fazia uma pausa, o tio esclareceu:
— Concordo contigo, mesmo porque ignoro se residirei em Blois até ao fim
dos meus dias.
— Mas por que não assume conosco o compromisso de partir? Não posso
esquecer as observações do fosso velho amigo de Belfast, com relação às
lutas desta nossa Europa, em cujo seio tudo é ilusão precedendo ruínas.
— Não posso desaprovar a argumentação de Gordon, mas por agora
ficarei, como alguém que deseja permanecer numa casa incendiada, nutrindo a
intenção de salvar alguma coisa.
O sobrinho, que se referira insistentemente às dificuldades do Velho
Mundo, experimentou certo choque ao ouvir aquela afirmativa e, contudo, não
respondeu, preferindo calar, de modo a não alterar os fundamentos do seu
compromisso.
Entretanto, apesar da manifesta divergência entre ambos, despediramse
de olhos molhados, como pai e filho obrigados a suportar as amaritudes de
uma longa separação.
As contrariedades penosas do educador de Blois eram Iguais às de Madalena,
que as experimentava com muito maior intensidade, no ambiente doméstico.
Em casa, tudo se resumia a movimento célere de providências precipitadas. D.
Inácio encorajava o genro, estimulando-lhe o espírito empreendedor e
chegando mesmo a declarar que, não fôra a grave moléstia da velha
companheira, partiriam todos para o Novo Mundo, em busca das experiências
mais elevadas. Discutia às vêzes, acaloradamente por demonstrar que a
humanidade devia o beneficio aos corajosos navegadores espanhóis, e
comentava com inveja a Possibilidade conferida aos católicos irlandeses.
Antero, igualmente, mantinha uma atitude de alegre aprovação aos projetos de
Cirilo, e expunha seus desejos de procurar, mais tarde, diversos versos
parentes castelhanos localizados no sul do continente novo.
A única pessoa a compreender as angustiosas preocupações de
Madalena era justamente a enférma, que trocava significativos olhares com a
filha, acusando-se intimamente como empecilho de sua partida em companhia
do marido.
A jovem companheira de Cirilo, contudo, buscava não trair sua amargura,
nos menores gestos, e beijava a genitora com mais carinho, ansiosa por fazerlhe
sentir a satisfação com que ficada a seu lado, no desempenho de sublime
dever.
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Decorrido um mês, chegou a véspera da viagem para a Irlanda, consoante
as obrigações assumidas.
Nesse dia, Cirilo e a espôsa entreolhavam-se como duas crianças
extremamente afetuosas, despertadas de um sonho encantador para
realidades dolorosas.
À noite, não obstante a dispnéia de D. Margarida, ambos saíram para a
contemplação da Natureza, ansiosos por alguns minutos de plena solidão, que
lhes facultasse permutar as impressões mais íntimas.
O céu de Paris fulgurava como nunca, pintalgado de estrêlas e cada jardim
exalava os perfumes doces da primavera.
Os jovens esposos recordaram que havia decorrido justamente um ano do
seu primeiro encontro. Falaram no Carrousel de junho de 1662. entre
cariciosas evocações. Certamente, a maioria dos amigos não mais se
recordava dos folguedos populares, mas os pequeninos encantos da festividade
representavam para êles poderosos motivos de reminiscências
gratíssimas. Um ano passara com a rapidez de uma semana breve. A certa
altura da palestra, amorosa e confidencial, Cirilo tomou com mais vivacidade as
mãos da espôsa e considerou:
— Querida, não sei o que tenho — minha coragem parece diminuir à
medida que se aproxima o instante da separação.
— Não te deixes abater por emoções contrárias aos teus compromissos,
Cirilo — murmurou ela esforçando-se por manter atitude de extrema fortaleza
moral, de modo a encorajá-lo, sem lhe demonstrar a própria dor —; mais um
ano, apenas, estaremos juntos, acima de tôdas as contingências materiais. Até
lá, mamãe terá melhorado e partiremos todos. Em primeiro lugar, seguirá
nossa família de Belfast e, depois, nós, os de Paris.
— Reconheço tudo isso e não me faltam esperanças, disse o rapaz;
entretanto, mortificantes pensamentos me dilaceram o coração.
Ela, que lhe falava de alma opressa, não conseguiu esconder por mais
tempo a emoção e deixou cair uma lágrima, embora fizesse o possível por
ocultá-la.
— Choras, Madalena? — perguntou o rapaz penosamente surpreendido.
— Sofres também, assim?
— Não, Cirilo, minha lágrima é de esperança, pois que a saudade significa
a própria esperança chorando de ansiedade e alegria.
O filho de Samuel compreendeu que necessitava controlar as próprias
fôrças, a fim de levantar o ânimo da companheira abatida por graves provações
domésticas e, enlaçando-a com muito carinho, procurou consolá-la:
— Não chores, Madalena... Breve regressarei a buscar-te e seremos
venturosos para sempre. Edificarei nossa casa nalguma encosta cheia de
verdura, de onde possamos. tôdas as noites, contemplar o céu. Abraão Gordon
me esclareceu os detalhes da paisagem do nosso futuro “habitat” e creio saber
de antemão o local em que teceremos o nosso ninho. Havemos de admirar a
beleza e a imensidade dos horizontes. Um grande rio banha nossas terras.
Logo que conclua a casa, rodeá-la-ei de jardins. Quando lá chegares, tudo há
de ser primavera, vida e alegria. E mais tarde, querida, criaremos nossos
filhinhos sob a umbela de um firmamento luminoso e livre.
A filha de D. Inácio enxugou as lágrimas com sincera conformação, e falou
comovida:
— Cirilo, não desejo que partas sem me ouvires...
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Essas palavras eram ditas com inflexão de voz indefinível e, no entanto,
como que se perdiam em tímidas reticências.
— Dize, Madalena! De que se trata?
— É que, nestes últimos dias, venho sentindo comoções estranhas e
mamãe acredita que se prendam ao nosso primeiro sonho...
Ele abraçou-a sensibilizado.
— Como sou feliz! — murmurou, transbordante de júbilo.
— Não ficarei tão sozinha — concluiu com resignado sorriso.
E assim permaneceram longas horas, na contemplação da noite,
permutando promessas de infinito amor e mútua compreensão. Cirilo arquitetava
mil castelos para o porvir, enquanto a espôsa escutava-o enlevada, olhos
luzindo de esperança, acompanhando-lhe o idealismo ardente. Discutiram os
detalhes da futura residência na América; falaram dos filhinhos que Deus lhes
mandaria ao lar e que seriam educados distante dos centros do despotismo e
da ambição. Em dados momentos, a voz da jovem embargava-se de lágrimas,
mas fazia o possível por demonstrar paciência e energia, em tão amargosas
circunstâncias. Ante a nova perspectiva, o rapaz prometia esforçar-se para voltar
antes de um ano. Assim, afagando mútuas esperanças, passaram a última
noite, ansiosos por dilatá-la ao infinito.
No dia seguinte, de manhã, a família Vilamil, exceto D. Margarida, estava
congregada em pequeno conselho. Antero, com a sua expressão artificial,
justificava a preocupação de Cirilo quanto à construção do lar, no seio agreste
da natureza, pois também êle, Segundo afirmava, a qualquer situação
destacada em Paris preferiria o recanto simples e calmo de Versalhes; e
enquanto D. Inácio fazia ao genro as suas alegres e derradeiras recomendações,
Madalena contemplava angustiadamente o espôso, desejando
repetir-lhe as observações do amor infinito. Tinha sêde de redizer-lhe no ouvido
os mil pequeninos cuidados do coração; mas a presença de Antero e do genitor
lhe tolhia as carinhosas expansões, O velho fidalgo encarava o seu estado de
espírito com vereditos ruidosos, que a filha era obrigada a receber com
humildade e complacência, esforçando-se por ocultar a amargura indefinível
que lhe cortava o coração.
Nesse momento, Cirilo fêz a D. Inâcio a entrega de dez mil francos para
que fôssem atendidas as despesas de ordem imediata, em sua ausência,
prometendo trazer quantia mais vultosa, no seu regresso. O sogro agradeceu e
guardou a dádiva com carinho, sem que ninguém notasse a expressão
diferente que se fizera no olhar de Antero de Oviedo.
Em seguida, o viajante buscou um pretexto para falar a sós com o primo
da espôsa e, com tôda a sua ingenuidade e boa fé, recomendou-lhe com
interêsse:
— Antero, pode crer que parto absolutamente confiado no seu espírito de
iniciativa e generosidade. Espero que sua dedicação vele por Madalena e por
nossos velhos amados, com a mesma disposição sincera de auxílio que me há
dispensado desde que nos abraçamos pela primeira vez.
Omoço espanhol detestava-o bastante para não gozar com os seus
sofrimentos, mas esboçou uma atitude exterior de fraternidade, concordando:
— Podes partir tranqüilamente, Compreendo as contingêncías imperiosas que
te obrigam a tamanho sacrifício. Para mim, Madalena é qual irmã a quem
Consagro minha melhor estima; quanto aos tios, são êles, de fato, os pais que
encontrei na vida.
59
Depois de outras considerações afetivas, Cirilo apertou-lhe a mão confiante
e agradeceu o compromisso, de olhos úmidos. Recomendações finais,
derradeiros abraços e, sob o olhar despeitado de Antero, o filho de Samuel
beijou a espõsa pela última vez. Madalena enxugou as lágrimas que não pôde
conter e Cirilo, de alma torturada, aboletou-se no pequeno carro de um amigo,
que deveria conduzi-lo até ao pôrto de Brest.
O casal Vilamil-Davenport tinha o espírito angustiado por perspectivas
atrozes. Madalena, porém, elevava orações ardentes ao Céu, suplicando à
Mãe de Jesus lhe balsamizasse o cérebro torturado por martirizantes
presságios.
Na Irlanda, desde a chegada de Cirilo, tudo constituiu um torvelinho de
providências e decisões de últimos dias. Naturalmente, a maioria dos retirantes
mantinham-se em expectação amargurosa, considerando o momento de
abandonar a paisagem que os vira nascer; mas cada qual trabalhava por demonstrar
contentamento e coragem, com esfôrço heróico. Susana, que
aguardava a partida dos parentes para voltar à França, cooperou nos mínimos
problemas, proporcionando-lhes solução justa.
A nau do capitão Clinton era de construção reforçada e largas proporções,
mas não podia conter tudo que Constância desejava levar como recordação do
Ulster; entretanto, a boa senhora organizou pequenos pacotes com sementes
de árvores e flores ao seu alcance, no intuito de cultivar as lembranças
irlandesas nas terras fecundas da América. No dia do embarque, Susana
chegou a afirmar, de cara alegre, que o navio de Clinton assemelhava-se à
Arca de Noé, em miniatura.
Na praia, a jovem de Blois contemplou a embarcação até que
desaparecessem, ao longe, as velas enfunadas. Recolhida em sua imaginação
doentia, Susana pensava consigo mesma: — “Estou satisfeita, a vitória me
pertence.”
Enquanto a embarcação atravessava o Canal do Norte, tudo foi um
desdobrar de adeuses e entretenimentos caridosos. Aqui e acolá, sinais da
costa acenando ao ânimo patriótico dos viajores; mas, quando o navio se
afastou no segundo dia, a situação tornou-se muito diversa. Chegada a noite,
com o vento favorável, a embarcação achava-se em pleno mar, O dia havia
mergulhado num manto de indefinível tristeza. O próprio Abraão, segurando
calmamente o cachimbo fixava, olhos nevoados de lágrimas, o rumo da costa
que ficava a distância. Em todos os espiritos a saudade eclipsando a esperança.
Quando a escuridão noturna se fêz de todo sôbre a imensidade móvel
das águas, o ancião de Belfast acendeu um archote e abriu o Novo Testamento.
— Esta noite — disse êle com voz grave e pausada ‘— leremos o Livro
ajoelhados.
Os presentes O acompanharam com Singular interesse, genuflexos•
O velho Gordon, abrindo as páginas amareladas sôbre mesinha tôsca,
onde se espalhava a luz bruxuleante, leu em voz alta todo o Capítulo 27 dos
Atos, que relaciona as notícias da viagem de Paulo de Tarso para Roma. Isso
feito, voltou às páginas, deteve-se no Versículo 15 e repetiu em solene atitude:
— “E sendo o navio arrebatado e não podendo navegar contra o vento, dando
de mão a tudo, nos deixamos ir à tôa.” Depois da pequena repetição, o
velhinho bondoso Olhou para o alto e exclamou:
— Senhor! o navio de nossos bens foi arrebatado às nossas mãos, na terra
60
em que nascemos. Nossa existência na Irlanda sofria inütilmente o golpe dos
ventos contrários ao VOSSO amor e sabedoria. É por isso, ó Divino Salvador,
que aqui nos encontramos nesta casca de noz, esperando que se Cumpram os
vossos insondáveis desígnios!
O capitão Clínton, antigo corsário habituado a espoliar para não ser
espoliado e a matar para não morrer, ao ritmo das leis rudes que imperavam no
oceano, cercado por homens numerosos, armados de mosquetes, sabres e
punhais, murmurou compungidamente:
— Louvado seja Nosso Senhor Jesus-Cristo!...
Terminaram as orações e a luz foi apagada, a fim de evitar qualquer
desperdício. Foi então que Cirilo, mais altamente tocado no coração, abraçou a
velha genitora no seio das sombras, como a única pessoa indicada a lhe
compreender a alma ferida. Constância percebeu a angústia do rapaz e faloulhe
com brandura:
— Deus sabe, meu filho, que é por seu amor que enfrentamos os abismos
oceânicos.
Cirilo, contudo, não conseguia suportar por mais tempo as ondas de dor
que se lhe represavam no peito. Afastando-se para um recanto escuro, onde
sopravam as brisas favoráveis da noite, contemplou o céu estrelado e chorou
amargamente...
61
4
A varíola
Regressando à França, Susana demorou-se em Paris duas semanas,
preenchidas com pequenas excursões e passeios ociosos.
Podia notar-se-lhe, agora, certa mudanca de atitudes, tanto que se
aproximou da casa de Madalena, a pretexto de lhe ser útil, de alguma sorte,
nos dias aziagos da enfermidade de sua mãe.
A espôsa de Cirilo, enfrentando herõicamente as dificuldades da situação,
recebeu a visita com afeto e reconhecimento. A filha de Jaques lhe satisfez às
mínimas perguntas sôbre o embarque, o navio, as disposições do
companheiro. Susana tinha uma resposta pronta a cada pergunta, em sua
afabilidade artificiosa. A nota mais interessante, contudo, é que Antero de
Oviedo, incumbido de trabalhar algum tempo em Paris, na transferência de
importantes documentos para Versalhes, aproximou-se da moça de Blois, de
maneira surpreendente. A própria prima notou com simpatia semelhante
atração, encorajando-lhes os sentimentos afetivos, pois Madalena sempre se
preocupara com a sorte do rapaz, que crescera a seu lado, como irmão. A noite
saíam, por vêzes, a sós, freqüentando o teatro ou excursionando ao luar, sôbre
as àguas do Sena.
A filha de D. Inácio enganava-se, porém. Antero de Oviedo deleitava-se
na sua companhia, porque Susana parecia possuir a chave que lhe abria o
coração onusto de paixões secretas e violentas. Ela começou a conquistar-lhe
o espírito, revelando suas inclinações pelo filho de Samuel Davenport,
discretamente, sondando-lhe os pensamentos. Retribuindo essas provas de
confiança, o rapaz iniciou igualmente as suas palestras confidenciais,
compreendendo que defrontava a primeira inimiga do venturoso casal. Na
quinta noite de conversação solitária, entendiam-se francamente. Ambos
estavam satisfeitos com o ensejo de um desabafo. Suas observações
convergiam, invariàvelmente, para os caprichos do destino. Antero teimava em
afirmar que não conseguiria esquecer a prima, enquanto a jovem irlandesa
confessava abertamente que não renunciaria aos seus propósitos e continuaria
aguardando o ensejo de provar a Cirilo a intensidade do seu amor. Aquilo que
a família Vilamil apreciava como afeição, entre os dois, era um desvairamento
sem limites, oriundo do ódiõ que ambos alimentavam.
Afinal, Susana regressou a Blois, deixando na casa de Santo Honorato
alegres e confortadoras impressões sôbre o futuro do sobrinho de D. Inácio. Ao
despedir-se, Madalena abraçou-a confiante e lhe pediu rogasse a Deus pela
paz e saúde de Cirilo na América. Enviou ainda, por seu intermédio, breve
mensagem a Jaques Davenport, lembrando-lhe que teria imenso consôlo e
justo prazer com a sua visita a D. Margarida, a quem parecia restar poucas
semanas de vida, concluíndo com votos afetuosos e protestos de nímia
dedicação e desvelado carinho.
Dois meses decorridos sôbre a partida de Cirilo e a vida na casa dos
Vilamil seguia monótona e repassada de expectativas amargurosas. Antero
sentia-se quase feliz, achando-se como dantes, na qualidade de único rapaz a
conviver com Madalena, sob o mesmo teto, entre as vibrações fraternais do
ambiente doméstico. Horas a fio, mirava-lhe o semblante que a dor
espiritualizava, seguia-lhe o movimento das mãos, como se atendesse a
determinação de poderoso ímã. Experimentava imensos desvelos pela prima e,
62
no entanto, não se furtava ao ciúme violento, à paixão rude que o torturava de
rijo, desde o dia em que ela se lhe escapara dos braços esperançosos.
Alimentava o secreto desejo de que Cirilo se perdesse para sempre nos
caminhos desconhecidos das terras inexploradas, a fim de conquistá-la
devagarinho, entre amarguras, tormentos, dificuldades. Confiava em que o rival
não tornaria à Europa e que a prima, fatigada na luta, se lhe rendesse aos
caprichos, aceitando-lhe o amparo, mais tarde ou mais cedo, nas reviravoltas
do destino.
Atendendo a tais desígníos, depois de procurado certo dia por um dos
credores mais exigentes de D. Inácio, recordou a soma que o marido de
Madalena confiara ao fidalgo e recomendou-lhe consultasse o devedor em sua
própria casa, quanto às possibilidades do pagamento. Ouvindo-lhe o parecer, o
inflexível Sr. de Aurincourt dirigiu-se ao bairro de Santo Honorato, onde o
antigo fidalgo lhe recebeu a visita, em companhia da filha.
Sem mais preâmbulos, o credor atacou diretamente o assunto, em
presença da jovem senhora, acrescentando com alguma aspereza:
— Como o senhor não ignora, seu título vencido há muitos meses tem-me
esgotado a paciência.
O tio de Antero corou, não sômente em virtude da cobrança, como pelo
modo por que era tratado naquela sala, diante da filha, que êle desejava
manter alheia às suas dificuldades e que acompanhava o desdobramento do
assunto, vexada e compungida.
—Compreendo a exigência, Sr. Aurincourt — retrucou o velho espanhol,
perdendo o bom humor natural —, no entanto, continuo em disponibilidade,
aguardando apenas uma determinação de Sua Majestade para me serem
pagos os devidos vencimentos.
— Sinto muito — tornou o credor —, mas nada combinei com o soberano e
sim convosco. Não lhe podia emprestar dinheiro confiando em pessoas alheias.
Confiei meus recursos à sua honra de fidalgo e não posso aceitar êstes seus
argumentos. Além do mais, espero as suas oportunidades há quanto tempo?
A última frase, pronunciada em tom sarcástico, pairou no ar enquanto D.
Inácio, confuso, buscava em vão um novo motivo para justificar-se. Muito
pálida, reconhecendo a perturbação do genitor, Madalena interrogou com
serenidade e nobreza:
— Qual é a importância do titulo?
— Oito mil francos — respondeu o visitante.
E a jovem senhora, com a expressão confortada de quem se achava em
condições de atender à dignidade ferida, acentuou:
— Será razoável, meu pai, que o senhor resgate o título hoje mesmo.
— Entretanto... — resmungou D. Inácio indeciso, refletindo se devia aceitar
o oferecimento da filha.
— Cirilo e eu — continuou Madalena solícita — teremos prazer em que o
senhor se utilize dos nossos recursos.
D. Inácio, que sempre encontrava um dito chistoso no seu proverbial bom
humor, para enfrentar as situações mais difíceis, não sabia como dissimular a
inquietação do sentimento paternal, mas, ante as palavras resolutas da filha e
observando o cúpido olhar do credor, demandou o interior doméstico,
extremamente desapontado, e trouxe a quantia, recebendo o título, de mãos
trêmulas, depois de lançar à filha um olhar de sincero reconhecimento.
Ao fim de quatro meses após a partida de Cirilo, a situação doméstica era
63
das mais penosas. Cresciam as obrigações forçadas, dos aluguéis do velho
prédio, as despesas com o lacaio e duas servas, os dispêndios com o
tratamento da enfêrma, as inadiáveis aquisições de gêneros e utilidades
domésticas. Não obstante o auxílio de Antero, o quadro íntimo era formado de
amargas apreensões. A saúde de D. Margarida ia de mal a pior, impondo à
filha profundos desgostos e dolorosas vigílias.
Certa vez em que mãe e filha comentavam as aperturas do lar, D.
Margarida lembrou duas velhas amigas da infância, em ótima situação financeira.
Eram as senhoras Josefina Fourcroy de Falguiêre e Alexandrina de
Saint-Medard, que lhe haviam sido companheiras de meninice, nos dias
formosos do pretérito, em Toulouse. Quem sabe estariam dispostas a auxiliálas
com o empréstimo de algumas centenas de francos? Essa idéia acendeu
muitas esperanças no cérebro cansado da enfêrma. Certo, ouvir-lhe-iam o
apêlo, ajudando-a naquelas angustiosas circunstâncias, com a desejável
discrição. Madalena ouviu as sugestões da genitora, que lhe pediu as
procurasse em particular, consultando-as em seu nome, para que fôssem
atendidas as necessidades mais urgentes. A espôsa de Cirilo, no intimo,
revoltava-se contra os propósitos maternais; todavia, como proceder ante a
insistência da enfêrma querida, de cuja ternura sempre havia recebido os mais
doces carinhos?
D. Margarida não desejava importunar o sobrinho em coisas mínimas e
supunha que o expediente seria bem sucedido. Madalena não podia
desatender aos seus desejos afetuosos.
Um dia, pela manhã, demandou a rua das Nonnains-d’Hyéres e parou diante
da Abadia dos Celestinos, em cuja vizinhança se levantava a residência
aristocrática de Madame Falguiêre, que a recebeu depois de largo movimento
de criados, arrogantes em face dos seus trajes modestos. Expôs, humilhada e
receosa, o motivo da visita e, no entanto, as maneiras tímidas e sinceras não
comoveram a dona da casa, que respondeu altivamente:
— Lamento muito não poder servi-la, pois há de reconhecer que sua mãe é
apenas minha conhecida de tempos remotos e não existe entre nós credenciais
de intimidade que justifiquem qualquer apêlo a meu marido, em seu favor.
— Ah! sim! compreendo... — murmurou Madalena, afogando as lágrimas
no peito.
— Diga a Margarida — prosseguiu a velha dama com rigorosa austeridade
— que se resigne com a situação. Quanto a mim, é preciso que ela saiba que,
se fui bafejada por um casamento feliz, tenho a vida repleta de grandes
dissabores. Se os pobres padecem com as necessidades, os abastados sofrem
muito mais com as obrigações.
E depois de um olhar impiedoso e severo para com a visitante humilhada,
acentuou:
— Além disso, você está moça e não será difícil arranjar trabalho. Que
quer, minha filha? São as contingências da sorte. Há muitas casas nobres a
procura de governantas.
A moça ruborizou-se. Não saberia dizer se a emoção lhe provinha da
dignidade ofendida, se da extrema vergonha que lhe cobriu o coração. Quis
lançar-lhe em rosto a repugnância que sua descaridosa atitude lhe causava,
mas, limitou-se a responder:
— De qualquer modo, senhora, minha mãe e eu lhe ficamos reconhecidas.
Deus permita que nunca venha a experimentar nossa angústia.
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A senhora Falguiêre esboçou um sorriso intraduzível e Madalena saiu, tomada
de repulsa, quase em desesperação. Em plena rua enxugou as lágrimas e
refletiu se deveria procurar a Senhora de Saint-Medard, à vista do insucesso da
primeira tentativa. Experimentou sincero desejo de furtar-se a nova
humilhação, mas recordou as lágrimas da mãezinha doente, quando
rememorava os antigos tempos de alegria com as inolvidáveis companheiras
da infância, em Toulouse. D. Margarida estava tão confiada na sua afeição
sincera, que a espôsa de Cirilo considerou praticar uma falta se deixasse de ir
até ao fim. Mergulhada em profundas cismas, concluiu que tudo deveria fazer
por amor à genitora. Possivelmente, a outra amiga seria mais condescendente
e razoável. Nessa esperança, procurou outra casa elegante nas proximidades
do mesmo local. Anunciada por lacaios solícitos, foi recebida numa ante-sala
luxuosa, por velha senhora que, pelos modos, parecia mais rígida e protocolar
que a primeira. Só então a filha de D. Inácio pressentiu que a experiência, ali,
talvez lhe fôsse mais dolorosa. -
No seu natural acanhamento, expôs o motivo da visita, mas a Senhora de
Saint-Medard, fixando-a com estranheza, falou com ar escarninho:
— Ah! recordo-me sim, você é Madalena, pois não?
— Para servi-la, minha senhora.
— Você já leu, porventura, uns versos do Sr. La Fontaine (1) sôbre a
cigarra e a formiga?
Madalena estranhou a pergunta, mas, na ingenuidade de quem repousa
com boa fé, guardando
no coração sinceridade cristalina, retrucou sem a
menor preocupação -
— Sim, mas que deseja dizer com isso?
— Pois diga a D. Margarida — continuou a
Senhora de Saint-Medard com profunda ironia —que ela e D. Inácio muito
cantaram em Granada
e que é justo dançarem agora em Paris. -
(1) As Fábulas de La Fontaine, em seu conjunto, surgiram entre 1668 e
1693, mas, como trabalhos isolados, algumas já eram conhecidas em
Paris no ano de 1663, que assinalou justamente a entrada do poeta para a
Academia. — Nota de Emmanuel.
Madalena ficou lívida. Na primeira porta, encontrara fria altivez; na
segunda, escárnio cruel. Contemplou a interlocutora com o pranto a lhe saltar
dos olhos e exclamou:
— Passe bem, senhora.
Desceu a escada, à pressa, com as idéias em torvelinho. Atravessou o
jardim e viu-se em plena rua, sem se deter na observação de coisa alguma. As
lágrimas molhavam-lhe o rosto, ao passo que, em seu coração, furiosa
tempestade de revolta abafava-lhe os sentimentos. Onde guardara as fôrças
morais para não revidar o insulto execrável? Percorria ruas e praças, a pé,
automàticamente, engolfada na repulsa que lhe dominava o espírito. Na
imaginação exacerbada via a velha genitora quase agonizante, a confiar nas
afeições falazes, e o pai decrépito, sem energias para defender o lar da ironia
dos ingratos. Se as suas lágrimas eram de amargura, originavam-se muito
mais na humilhação dos melindres filiais.
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Ao dobrar uma esquina, porém, num recanto solitário, deparou-se-lhe um nicho
da tradicional devoção popular, que lhe chamou a atenção. Inexplicavelmente,
sentiu súbita necessidade de orar, de maneira a afugentar os pensamentos de
revolta e amargor. Encaminhou-se ao oratório da fé pública e viu a imagem de
Jesus Crucificado, simples, sem adornos, apenas encimada por minúsculo teto
de madeira, que resguardava a obra de arte das intempéries. Contemplou,
enlevada como nunca, a relíquia do povo e orou, através do véu de lágrimas,
pelas chagas sangrentas e pela coroa de espinhos que pendia da fronte
dilacerada. Como simples criatura anônima, ajoelhou-se no pó da via pública,
invocando a proteção do “Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo”.
Nesse momento em que se humilhava, qual jamais fizera em ato de contrição
religiosa, a filha de D. Inácio experimentou uma sensação de consôlo que
jamais conhecera, em tempo algum. Dir-se-ia que sua alma sofredora
assinalava a presença de um anjo, invisível aos olhos mortais, a passar-lhe as
mãos pela fronte com suavidade cariciosa. Doces emoções da maternidade
elevaram-se-lhe do coração ao cérebro. A consciência parecia dilatada a uma
esfera de compreensão divina. Ao bafejo da energia desconhecida, chegava a
conclusões rápidas e profundas. A dor não mais a humilhava, antes lhe
engrandecia o coração. Sentia algo semelhante a uma voz falando-lhe no imo
da alma, em vibrações de suave mistério. Teve a impressão indefinivel de que
alguém lhe tomava o braço com afagos brandos, convidando-a a erguer-se.
Nunca soubera pensar em Cristo como naquela hora inesquecível. Em poucos
momentos, os olhos estavam enxutos. O profundo e carinhoso nome de mãe
ressoava-lhe no peito como incompreensível e sublime esperança. Quem era o
homem da Terra, e quem era Jesus? Essa pergunta que se lhe apoderara da
mente, como se fôra sugerida por alguém, de plano mais alto, proporcionavalhe
infinita consolação à alma ferida. As angústias do dia se desvaneceram
como incidente fugaz. Os algozes do Cristo deviam ter sido muito mais cruéis
que as senhoras de Falguière e Saint-Medard, que não passavam, aliás, a
ajuizar por sua conduta, de duas mulheres ignorantes e orgulhosas, a
abusarem das possibilidades do mundo. E que era a sua mágoa comparada à
do Mestre que se imolara pelos pecadores? Sofria muito naquela hora, em
retribuição aos carinhos e dedicações materiais; mas Jesus aceitara o madeiro
por amor aos bons e aos maus, aos justos e aos injustos. Beijou então,
comovidamente, a pequena cruz e encaminhou-se para casa, sentindo-se
amparada por uma fôrça invisível que jamais conseguiria definir.
Abraçando a mãezinha doente, sentiu que era indispensável mentir para
confortar; esconder a verdade dura, de modo a não abrir chagas mais cruéis.
Sentindo-se forte e bem disposta ao influxo das fôrças desconhecidas que a
amparavam, beijou a enfêrma com muito carinho, enquanto esta a interrogava
com um sorriso de confiança:
— Chegaste a obter pelo menos mil francos, minha filha?
— Infelizmente, minha mãe, as nossas amigas não estavam em casa.
— Oh!... exclamou a doente sem disfarçar a tristeza súbita.
E começou a lembrar outros nomes, desejosa de encontrar um recurso
pronto para a situação. Mas a filha percebendo que seu espírito, cheio de boa
fé, voltaria a renovar as solicitações afetuosas, procurou confortá-la dizendo:
— O essencial, mamãe, é que a senhora fique tranqüila, sem
preocupações. De outro modo, não alcançará as melhoras desejadas. Jesus
não nos esquecerá. Além disso, o tio Jaques não tardará a chegar. Amigo de
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nossa confiança, sentir-nos-emos mais à vontade para tratar dêsse empréstimo.
— Ah! sim, será mais prático... Esperaremos — disse D. Margarida,
resignada.
E Madalena tinha razão, porque Jaques Davenport daí a três dias batia-lhe
à porta em visita afetuosa. A sobrinha sentiu imensa alegria apertando-lhe as
mãos benfazejas. Depois de palestra cordial com D. Inácio Vilamil, o bondoso
amigo entrou a ver a querida enfêrma, considerando muito grave a situação,
pelo seu penoso abatimento.
Psicólogo profundo, o educador de Blois leu no semblante de Madalena a
expressão do velado martírio doméstico.
D. Margarida, altamente confortada com a visita, contava, em detalhes,
seus padecimentos diuturnos. Dormia pouquissimo em vista das aflições
ininterruptas; alimentava-se com extrema dificuldade, por ter o estômago ferido,
intoxicado pela multiplicidade das drogas em uso; as pernas muito inchadas
impediam-lhe os movimentos livres, forçando a filha a exaustivos esforços.
Jaques reanimou-a, sinceramente comovido, comentando a situação de outros
doentes em situação mais precária, afirmava ter visto casos idênticos. com
sintomas mais graves e que, no entanto, não passavam de fenômenos
orgânicos passageiros, em certas fases de desequilíbrio físico. A doente sorria,
quase satisfeita, a demonstrar novo ânimo no semblante abatido, mas, na
intimidade, quando se retirou do aposento, Jaques chamou a sobrinha de
parte, mudou de semblante e falou penalizado:
— Minha filha, Deus te conceda fôrças para a luta, porque tua mãe está
vivendo os derradeiros dias.
— Compreendo... — murmurou ela enxugando uma lágrima.
— Apega-te à fé, Madalena. Em tais instantes, o socorro humano, por mais
eficiente que o consideremos, é sempre precário. Devemos estar certos,
porém, de que Deus tem um bálsamo para tôdas as angústias do coração.
A sobrinha não conseguiu responder, sentindo que a emoção lhe
constringia a garganta, mas, penetrando as necessidades mais sutis, e, longe
de ferir o coração da filha, com expressões menos generosas, o carinhoso
amigo acrescentou:
— Madalena, Cirilo me recomendou, no último encontro em Blois, te
trouxesse mil e quinhentos francos que representam velha dívida minha para
com êle. Guarda-os. Neste transe, não faltará ensejo de os empregar utilmente.
E na hipótese de necessitares mais alguma coisa, não te esqueças, filha, que
me encontro a teu lado para tôdas as providências que se façam precisas.
A filha de D. Inácio recebeu os mil e quinhentos francos da lembrança
generosa, imensamente comovida. Consoladora satisfação inundou-lhe a alma,
porqüanto era possível atender agora aos pequenos caprichos da enfêrma, a
quem encheu de mimos, entre doces ternuras do coração.
Jaques esperou no dia seguinte o Dr. Dupont, com quem se manteve em
demorada conferência. Aquelas manchas violáceas, que a doente apresentava
à flor da pele, não o enganavam. O médico reafirmou-lhe a convicção,
declarando, discretamente, que D. Margarida não podia viver mais de uma
semana. À vista do prognóstico, o educador de Blois adiou o regresso, na
intenção de ser útil aos Vilamil, em alguma coisa.
Com efeito, a matrona piorava dia a dia, dando a todos impressão dolorosa
de lenta agonia. Não permitia que a filha se afastasse, um minuto sequer.
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Falava-lhe, comovedoramente, do futuro e pedia-lhe que embarcasse para a
América, a reunir-se ao espôso, tão logo lhe fechassem a cova. Nada obstante,
rogava-lhe igualmente por Antero, por quem sempre experimentara desvelos
maternais. A situação de D. Inácio era também objeto de suas conversações
“in extremis”. A pobre senhora não sabia como alvitrar soluções a Madalena,
que a ouvia, olhos marejados de pranto. O velho fidalgo acompanhava os
sofrimentos físicos da espôsa, com o coração angustiado, enquanto o sobrinho,
que lhe consagrava imensa afeição, desdobrava-se em atenções e sacrifícios
para que fossem satisfeitos os seus menores desejos. Jaques Davenport ali
estava cabisbaixo e silencioso, aguardando o fim daqueles padecimentos, que
parecia muito próximo.
Na derradeira noite, D. Margarida confessava-se aliviada e mais lúcida. Tal
circunstância alegrava a todos, enchendo os parentes de sinceras esperanças.
Os homens e as servas recolheram-se mais cedo; Madalena, porém,
conservando no espírito sombrios presságios, manteve-se vigilante ao lado da
genitora, que parecia mais calma e repousada.
Sentindo-se só com a filha, D. Margarida mirou as unhas roxeadas, levou a
mão ao peito como a examinar o próprio coração e falou compassadamente:
— Madalena, esta melhora é a primeira visita da morte. Não nos devemos
iludir.
— Ora, mamãe — turturinou a espôsa de Cirilo depois de um beijo afetuoso
—, não fales assim. O médico retirou-se hoje muito satisfeito e papai ficou tão
contente!...
A enfêrma ouviu-a atenta, patenteando grande comoção nos olhos rasos de
lágrimas.
— O Dr. Dupont poderá ter falado com otimismo a Inácio, mas também
ouço uma voz que me fala aqui dentro do coração. Minhas horas estão
contadas. Dou graças a Deus por levar-me dêste mundo sem ódio a ninguém.
Levo comigo tão só-mente as mágoas justas de mãe, por deixar-te na Terra, à
mercê de lutas bem ásperas, mas rogarei a Jesus para que te reúnas a Cirilo
em breves dias. Penso, também, em Antero que criei como filho querido.
Quanto a Inácio, espero em Deus nos possamos reunir brevemente, na
eternidade!...
Sua voz tinha entonações lúgubres, e Madalena soluçava baixinho,
angustiada, incapaz de responder.
— Não chores, filha. Curvemo-nos resignados aos sagrados desígnios de
Deus. Certamente, o futuro ainda te reservará muitos dissabores. Vais ser mãe,
também, e compreenderás a montanha de sacrifícios que importa escalar por
amor aos filhos; no afã das lutas e sofrimentos, não te esqueças da confiança
sincera no Todo-Poderoso. Tôda mulher, e mormente tôdas as mães, precisam
compreender o valor da renúncia, da caridade, do perdão. O caminho do
mundo está cheio de malfeitores. Aqui ou ali, a ingratidão insulta e o egoísmo
calunia. Sômente a fé pode proporcionar o escudo indispensável à alma
ansiosa e ferida. Nunca percas a fé, minha filha, ainda que os padecimentos
sejam os mais duros. Recorda a Mãe de Jesus em seus martírios e resiste às
tentações.
Depois de longa pausa para tomar fôlego, continuou com visível emoção:
— Deus é testemunha de que eu muito desejava recuperar a saúde para
esperar o fruto do teu amor, envolvendo-o nos meus carinhos de avó, mas o
Senhor, certamente, tem outros desígnios.
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Ouvindo a terna observação, Madalena murmurou entre lágrimas:
— O céu nos restituirá a alegria, minha mãe. Ficarás junto de mim por todo
o sempre.
— Ainda esta noite — prosseguiu D. Margarida com ternura — sonhei que
minha mãe vinha buscar-me. Apareceu como nos meus tempos de criança, a
brincar descuidada às margens do Garona. Ela chegou, muito meiga, tomoume
nos braços e perguntou, depois de um beijo, por que me havia demorado
tanto, longe dos seus carinhos. Ah! deve haver uma estância além desta, onde
nos encontremos com os mortos bem-amados. A vida é mais bela e infinita do
que supomos. Deus, que nos uniu nas estradas do mundo, não poderá
separar-nos para sempre...
A voz tornava-se melancólica, arquejante. A evocação do sonho pareceu
transportá-la a divagações diferentes. Nos olhos muito brilhantes pairavam
reflexos de luz extraterrena. A filha acompanhava-lhe a mutação fisionômica,
com um misto de ternura e dor indescritíveis. Recordava-lhe os sacrifícios
domésticos e o heroismo maternal, que o mundo não conhecera. Lembrava
suas cartas afáveis e consoladoras, ao tempo do internato. Ela, que conhecia
as leviandades do pai e as dificuldades em que viviam, sempre notava que a
genitora nunca tivera uma palavra de blasfêmia ou falsa virtude, em tôda a sua
vida.
Madalena — continuou D. Margarida, com a mesma emotividade —, se
Deus te mandar uma pequenina, dá-lhe o nome de Alcione, em memória de
minha mãe. Não sei por que mistério a sinto aqui ao nosso lado, esperando-me
talvez no limiar do sepulcro. Desde ontem, sinto-me impressionada por deixarte
sem recursos monetários que te garantam a tranqüilidade, até te reunires
definitivamente a teu marido. À noite passada, muito refleti sôbre isso, porque
nem mesmo as minhas velhas jóias puderam escapar no sorvedouro de nossas
economias domésticas. Mas, agora, minha filha, ouço no intimo a voz de minha
mãe, que me sugere deixar-te nosso velho crucifixo de madeira, confidente de
nossas lágrimas.
Apontou para o pequenino oratório e acentuou:
— Guarda-o bem contigo, porque não haverá maior tesouro que o do
coração unido ao Cristo.
Madalena chorava discretamente. D. Margarida, porém, continuou falando,
mas, agora, parecia responder a interpelações de uma sombra. Debalde, a filha
tentou desviar-lhe a atenção para outro assunto. Seus olhos, imensamente
lúcidos, davam a impressão de contemplar outros horizontes, muito além das
quatro paredes do quarto lúgubre. Madalena alarmou-se, mas procurou
manter-se calma, sem chamar os que repousavam de longa vigília. Todavia, de
manhã despertou as criadas e chamou D. Inácio para comunicar o
agravamento da situação. D. Margarida, após a última conversação, caíra em
coma. Raiara a manhã em dolorosas perspectivas. Enquanto Antero segurava
as mãos da agonizante, D. Inácio buscou um sacerdote que lhe ministrou os
últimos sacramentos. O professor de Blois assistiu ao traspasse, em silêncio,
procurando confortar a cada qual.
À tarde, sem mais palavra, D. Margarida entregara a alma a Deus,
perfeitamente tranqüila. A espôsa de Cirilo não saberia definir a própria dor,
mas, amparada na fé, amortalhou o cadáver entre flores e orações tão doridas
quão fervorosas.
No dia seguinte, Jaques acompanhou o funeral e, após as cerimônias
69
lutuosas, insistiu com Madalena para que o acompanhasse a Blois, de modo a
descansar alguns dias. A jovem, entretanto, reconhecendo o extremo
abatimento do pai, recusou o oferecimento carinhoso, apresentando delicadas
escusas. D. Inácio, de fato, mostrava-se profundamente acabrunhado. Não
seria razoável deixá-lo em Paris, em tal estado. O tio de Cirilo estendeu o
convite aos demais. Partiriam todos em sua companhia e, depois de algum
repouso em seu velho parque, voltariam à capital, retomando as preocupações
e os misteres. Intimamente, Madalena desejou aceitar a proposta generosa,
mas D. Inácio se opôs. Alegava que seria muito mais difícil consolar-se da
perda que acabava de sofrer se partisse com a obrigação de regressar mais
dia, menos dia. A seu ver, deveria enfrentar as impressões amargas, combatêlas
até ao fim, mesmo porque, depois da volta de Cirilo, pretendia tornar a
Granada, a fim de aguardar a morte, já que a viuvez nunca lhe permitiria
completa felicidade na colônia distante. Nem os pareceres de Antero, nem as
propostas afetuosas da filha, conseguiram modificar-lhe as intenções.
Foi assim que Jaques Davenport regressou ao lar, daí a dois dias, com a
promessa de Antero, de conduzir a prima a Blois, tão logo chegassem a um
acôrdo com D. Inácio. O velho educador, na intimidade, foi mais explícito com o
rapaz. Insistia nos seus propósitos, porque desejava que Madalena tivesse a
criança em casa dêle. Antero demonstrou acatar-lhe o desejo, nada obstante o
ciúme feroz que lhe rola o coração, e assumiu o compromisso de acompanhála
dai a dois meses.
Sentindo-se profundamente só, após o falecimento da mãe, Madalena
Vilamil repartia a existência entre os deveres domésticos e as orações, na casa
enlutada e silenciosa.
Entretanto, não havia decorrido um mês sôbre o triste desenlace, quando a
residência de Santo Honorato passou a partilhar das angústias imensas que
começavam a pesar sôbre a população parisiense.
Reboara na cidade a noticia alarmante. Alastrava-se um surto variólico de
enormes proporções. Tôda a cidade esfervilhava em reboliço. Segredava-se à
surdina que a moléstia irrompera entre os imundos prisioneiros da Bastilha,
conquanto alguém afiançasse que o boato fôra lançado adrede pelas
personalidades eminentes, de modo a desviar a atenção pública de alguns
fidalgos recém-chegados da Espanha, atacados do mal, e que haviam procurado
socorro em Paris, sem qualquer preocupação pela saúde do povo.
A terrível moléstia, trazida à Europa pelos sarracenos no século 6º, era,
então, o terror das cidades populosas. A capital francesa já conhecia as suas
características execráveis e, por isso mesmo, suas colméias humanas
permaneciam desoladas e inquietas. Enquanto a moléstia circunscrevia-se às
moradas confortáveis dos mais abastados, houve meios de ocultar os quadros
mais tristes. Em poucos dias, no entanto, a população experimentava os
penosos efeitos da epidemia fulminante.
Ninguém mais se preocupava com os jogos da péla, da malha ou da
argola. Véu espêsso de sinistras apreensões cobriu a coletividade, de um dia
para outro. Os casos positivos e dolorosos não mais ficavam ocultos pelo
insulamento nos palacetes de luxo das ruas aristocráticas. As habitações
burguesas da Cité e da Ville povoavam-se de cenas angustiosas. A
Universidade tomava medidas extremas, em face dos imprevistos. Os doentes
numerosos surgiam da rua São Dinis, da Plâterie, da Tixanderie. Criaturas
míseras tombavam, sem recursos, junto do antigo local da Cruz Faubin.
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Arrabaldes como Santa Genoveva, Santo Honorato e Montmartre, começaram
a exibir quadros dolorosos. No bairro de São Dinis, ao longo da região
tradicional da cêrca de São Ladres, davam-se óbitos numerosos. As aldeias
que se erguiam nos arredores não eram menos devastadas; Issy, Montrouge,
Vincennes, participavam em larga escala dos padecimentos em curso.
Improvisavam-se cemitérios nas grandes planícies, embora a autoridade eclesiástica
ordenasse a abertura de um local isolado, no velho cemitério dos
Inocentes, para os mortos cujas famílias pudessem custear as despesas do
sepultamento.
Ninguém mais se atrevia aos passeios de barca no Sena, cujas águas
inspiravam temor.
Em Courtille e Vanvres, organizavam-se socorros apressados, mas eram
raras, as pessoas dispostas aos serviços de assistência.
O êxodo foi iniciado com penosas características.
A Côrte de Luiz 14, desde os princípios da epidemia, recolhera-se ao
confôrto de Versalhes, rodeada de sentinelas alertas. As correntes de
retirantes, porém, marchavam com enorme dificuldade nas estradas de Ëvreux,
de Compiêgne, de Auxerre, de Blois, assomadas de contagioso pavor.
É que o surto epidêmico não se constituía de simples sintomas
passageiros, com características benignas. Tratava-se da varíola negra,
hemorrágica, com um coeficiente de mortalidade apavorante. Quem escapasse
da morte, não fugiria àhorrível deformação do rosto.
Numerosas casas religiosas abriram, caridosamente, suas portas aos
enfermos. Havia postos de socorro junto aos templos de Nossa Senhora, de
São Jaques do Passo, de São Germano dos Prados. Abrigos generosos foram
instalados pelas “Filhas de Deus”, na rua Montorgueil. As autoridades concentravam
a maior parte dos trabalhos de providência. O Preboste desenvolvia
medidas enérgicas, com a colaboração da Universidade, mas, dado o terror
que se instalara no ânimo popular, agravavam-se o descuido e a indiferença
pelos doentes, o que fazia aumentar o obituário para vinte e trinta per cento,
em vez de dez, como de outras vêzes, em epidemias anteriores. Ninguém,
todavia, desejava arriscar a pele ou a vida. Eram bexigas negras e, por detrás
das pústulas repelentes, estava a deformação ou a morte. Não se encontravam
médicos, nem outros serventuários de enfermagem. Apenas alguns sacerdotes
abnegados visitavam os lares cheios de pranto e luto, levando o confôrto de
suas experiências ou as palavras carinhosas da extrema-unção.
Cada casa atingida era marcada com um grande sinal vermelho, na porta
de entrada, por ordem dos superintendentes do serviço.
O povo fazia oferendas espetaculosas nos altares dos templos. A igreja de
Santa Oportuna estava repleta de devotos, dia e noite, a reclamarem milagres.
A plebe parecia alucinada, Os homens de idéias liberais eram acusados de
provocadores da peste, então havida como castigo do Céu, e a multidão pedia
que êles fôssem queimados no forno do Mercado dos Porcos. Sucediam-se
procissões e exorcismos. Numerosas famílias dispunham dos bens a qualquer
preço e dirigiam-se para os portos do Atlântico, a caminho da América do
Norte.
Nas ruas, tôdas as cenas de funerais eram pungentes e dolorosas. De
quando em quando surgiam mulheres loucas, em penosa algazarra, obrigando
os gendarmes a medidas mais violentas.
Entretanto, o mais monstruoso, em tudo isso, é que alguns agonizantes
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estavam sendo sepultados antes do derradeiro sôpro de vida. Quase tôdas as
atividades da ordem pública, nessas lamentáveis circunstâncias, estavam
afetas a homens indignos, que assalariavam o esforço de truões sem
escrúpulos. Não eram poucas as casas nobres depredadas em seus tesouros.
Valia-se, então, do terror para extorquir e abusar. Muitos crimes, nessas
condições, foram perpetrados na sombra, com plena segurança de
impunidade.
Nos cemitérios improvisados nas planícies e nas aldeias próximas, não era
difícil ver um que outro moribundo atirado à vala comum, entre gemidos.
O soberano dera ordens para que fôssem contratados homens honestos
para os serviços, mas os operários mais honrados não haviam acorrido, permanecendo
na tarefa gigantesca de salvação da própria família. Trabalhadores
boçais e embriagados tinham permissão de invadir as residências marcadas
com o sinal fatídico, a fim de remover cadáveres ou doentes graves para os
núcleos da rua do Forno.
Essa vaga imensa de provações coletivas abrangeu a residência de Santo
Honorato num véu de tristezas e preocupações infinitas. Madalena, mal se
refizera do golpe sofrido com a perda de sua mãe, mantinha-se em atitude
quase indiferente, incapaz de ponderar a gravidade do perigo que os
ameaçava; mas D. Inácio e Antero estavam aflitíssimos.
Como acontecera ao grosso da população, os Vilamil só vieram a conhecer
a terrível realidade quando já sitiados por numerosos casos na vizinhança.
Depois de muito confabular, tio e sobrinho resolveram a mudança para os
subúrbios de Versalhes, sem perda de tempo. Era inútil procurar a zona de
arrabaldes parisienses. A moléstia espalhara-se por todos os recantos. Apenas
Versalhes poderia oferecer alguma segurança, pelo grande número de guardas
que obrigavam os retirantes a tomar o rumo de Evreux, para não infestar a
zona destinada às figuras mais importantes da Côrte. Antero poderia obter
concessões, em vista de suas ligações com os funcionários de relêvo. Não
havia como hesitar nas medidas urgentes.
O sobrinho de D. Inácio saiu à tentativa, mas tamanhos eram os
obstáculos, que só conseguiu o que pretendia após esfalfantes trabalhos de
cinco longos dias. Conseguida a casinha môdesta que os poria a salvo, o rapaz
voltou a Paris para conduzir os familiares, mas, a primeira surpresa dolorosa
esperava-o qual espectro de amarguras inevitáveis.
Na véspera, uma das antigas servas de D. Margarida, de nome Fabiana,
caíra de cama, com febre alta e todos os sintomas graves da epidemia.
D. Inácio sentiu imenso alívio com o regresso do sobrinho, a fim de
assentarem as medidas salvadoras, indispensáveis.
Em vão Madalena rogou que encarassem a situação sem pavor, insistindo
mesmo para que Fabiana fôsse guardada, discretamente, sob seus cuidados.
D. Inácio divergiu da filha, ao mesmo tempo que Antero retrucava:
— É impossível, Madalena. A situação e o momento não comportam
tergiversações e condescendências, a título de generosidade. Chamarei os
encarregados do serviço de saúde pública a fim de remover a rapariga para os
centros de socorro, mesmo porque só nos falta o carro para Versalhes.
Ela esboçou um gesto de mágoa e sentenciou:
— Mas êsses funcionários são homens insensíveis e cruéis -
— Que fazer, filha? — atalhou D. Inácio tentando convencê-la de vez. —
Antero tem razão e, além de tudo, se êsses homens são, por vêzes, grosseiros
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e intratáveis, representam o contingente único de que dispomos e não seria
lícito desprezá-los.
— E se fôsse um de nós o necessitado? — interrogou sübitamente a jovem,
num ímpeto de salvar a antiga serva de sua mãe.
Os dois perceberam o alcance e significação da pergunta, entreolharam-se
admirados, mas D. Inácio, dando a entender que não podia aprovar qualquer
indecisão naquele momento, exclamou para o sobrinho, resolutamente:
— Não podemos divagar. Vai chamar os homens para a remoção da
enfêrma e, se possível, traze contigo a carruagem que nos leve -
O rapaz não vacilou. O velho fidalgo, agora só com a filha, fazia-lhe sentir a
gravidade do perigo e frisava a nobreza da sua intenção. Madalena concordou.
Era o genitor que falava e não seria justo menosprezar suas afirmativas e
determinações. Entretanto, não podia conter as lágrimas copiosas.
Antero não se demorou muito, O serviço de assistência mandaria os
homens naquela mesma tarde. A carruagem, essa é que não foi possível
encontrar. Depois de leve refeição, saiu novamente num esfôrço supremo.
Necessitava de um veículo que comportasse quatro a cinco pessoas. Todavia,
a condução desejada não foi obtida em parte alguma.
Quase à tardinha, voltou profundamente descoroçoado. O tio, que se
contaminara de lastimável pavor, procurou confortá-lo, mas alvitrou que se
retirassem a cavalo, no dia seguinte. D. Inácio, profundamente impressionado
com as cenas tristes da rua, suspirava por um meio de abandonar a cidade, de
qualquer modo. A princípio, refletiu mesmo na possibilidade de partirem a pé,
mas isso seria muito arriscar. Os caminhos estavam cheios de doentes sem lar,
de fisionomias deformadas, estendendo as mãos horrendas e sujas à caridade
dos fugitivos sãos.
Antero aceitou a nova sugestão. Arranjaria cavalos para o dia imediato. Mal
terminavam as combinações, chegaram os assalariados da assistência, a fim
de removerem Fabiana para a rua do Forno. A primeira medida foi lançar o
tremendo sinal vermelho na porta. D. Inácio sentiu-se mal com o atrevimento
dos rudes enfermeiros, mas, por outro lado, considerou que partiriam no dia
seguinte para Versalhes.
— Por que essa identificação na porta quando vamos afastar daqui a única
doente? — interrogou Antero sem disfarçar a contrariedade que o assaltara.
— Sim — foi-lhe respondido —, retiramos a enfêrma, mas não sabemos se
estamos afastando a enfermidade.
D. Inácio acolheu a resposta ao sobrinho, com irreprimível espanto, mas,
calou-se na suposição de que, em breves horas, estaria respirando outros ares.
Foi muito comovedora a despedida entre a es pôsa de Cirilo e a velha
serva, que a havia acalentado quando menina, O genitor e o primo impediram
Madalena de abraçá-la pela última vez, quando passava pela sala, carregada
por grosseiros condutores. A filha de D. Inácio, no entanto, confortou-a com
palavras amorosas, ditas em voz alta. Sensibilizada com aquela manifestação
de carinho, Fabiana fêz um esfôrço e falou com doloroso acento:
— Não chore, minha menina. Se eu sarar voltarei da rua do Forno para
seguir seus passos; e, se morrer, hei de encontrar minha senhora na eternidade.
A jovem Madalena mal podia conter o pranto, apesar das observações
quase ásperas do pai.
73
A noite caiu, pesada e angustiosa.
Logo depois de sair a serva, o velho fidalgo começou a queixar-se de
prostração geral com sensações dolorosas em todo o corpo. Daí a horas,
explodia a febre devoradora, do período de incubação da enfermidade.
Madalena e o primo rodearam-lhe o leito penosamente surpreendidos. Ante as
lágrimas da filha e as preocupações do rapaz,
D. Inácio ponderava com firmeza:
— Fiquem tranqüilos, filhos! Êstes sintomas não podem ser os da moléstia
execranda. Acredito que a modificação do nosso alimento habitual, imposta
pelas circunstâncias, tenha-me prejudicado o estômago. Esta febre é natural.
Mas os gemidos abafados, a transformação fisionômica devido à febre, não
podiam enganar.
A filha não conseguira dormir. O doente não conseguia acalmar a sêde
abrasadora. Em vão recorrera a calmantes e tisanas outras, próprias da época.
A manhã surgiu com alarmantes perspectivas.
Depois de ouvir a prima, Antero procurou o quarto do enfêrmo, notando-lhe o
profundo abatimento.
— Não te impressiones comigo — dizia D. Inácio num esfôrço heróico para
conseguir a retirada de Paris. — Creio que não poderei sair a cavalo, mas é
possível que encontremos algum carro, ainda hoje...
O sobrinho, comovido, procurou confortá-lo, prometendo acelerar as
providências.
Retirando-se, tratou de trocar idéias com a prima sôbre o que poderiam
fazer. Madalena não conseguia ocultar o pessimismo. Para ela não havia
dúvidas. Era positivamente a varíola em fase de incubação. E para que D.
Inácio não fôsse transportado aos grandes centros de socorro, onde a
promiscuidade parecia convocar a morte mais depressa, era imprescindível o
máximo cuidado, em vista da identificação da porta. Aquêle sinal vermelho era
inexorável. Preocupadíssimo, Antero voltou novamente a procurar condução
para Versalhes. Tinha a impressão de que a moléstia seria benigna, uma vez
tratada noutro ambiente, longe da pesada atmosfera de Paris. Todos os
esforços foram vãos. Ansioso por atenuar os rigores da situação doméstica,
procurou um médico que se devotasse ao tratamento do velho tio, mas debalde
buscou valer-se dos seus conhecimentos e relações. Os que não estavam
foragidos, estavam prostrados, sem esperança. Disposto a alcançar qualquer
recurso, demandou o templo Magloire, onde antigo sacerdote atendia aos
pobrezinhos.
O padre Bourget recebeu-lhe a solicitação com muito carinho. Já tivera
bexigas, noutros tempos, sentindo-se à vontade entre os doentes numerosos.
Antero respirou. Era a primeira pessoa que lhe falava com sincera
tranqüilidade. O abnegado irmão dos sofredores acompanhou-o à casa cheia
de inquietação, examinou detidamente o enfêrmo que lhe seguia os menores
movimentos com angustiosa desconfiança, e acabou dirigindo-lhe palavras
confortadoras, filhas do seu hábito de consolar a todos os aflitos. Em particular,
contudo, dirigiu-se à jovem senhora e ao rapaz, dizendo-lhes:
— Em casos como êste há que encarar os acontecimentos com o máximo
de resignação e fé em Deus. Não devo ocultar-lhes que o doente inspira sérios
cuidados. Além da varíola, perfeitamente caracterizada, há outros sintomas
graves.
Madalena quis inteirar-se de tudo, conhecer os pormenores, mas sentia-se
74
impossibilitada de falar como desejava.
— Aqui virei duas vêzes por semana — concluiu o bondoso sacerdote.
Antero e a prima queriam implorar que viesse mais vêzes, que ficasse em
sua companhia, mas, considerando que a cidade quase inteira estava ao
abandono, calaram-se comovidos, certos de que seria pedir muito.
A situação doméstica prosseguiu torturante. Quando menos se esperava,
surgiam os rudes auxiliares do serviço de saúde, compelindo Ântero a maior
vigilância, para que D. Inácio continuasse em casa, às ocultas. Madalena
desdobrava-se em sacrifícios silenciosos. Desvelada e carinhosa, quase não
arredava pé do leito do genitor, que piorava a olhos vistos, O velho fidalgo
passava longas noites em franco delírio. Tinha frases estranhas, desconexas,
induzindo a filha e o sobrinho a graves reflexões.
Ao fim de uma semana, caiu a outra serva dos Vilamil e, no dia seguinte, o
lacaio apresentou os mesmos sintomas. Ântero não vacilou e mandou remover
ambos.
Agora, como acontecia em grande número de casas nobres, êle e a prima
eram obrigados a executar os mínimos serviços caseiros.
Durante quatro dias, os problemas domésticos foram solucionados
satisfatoriamente, apesar dos sacrifícios que se impunham; no quinto dia
porém, Madalena experimentou os primeiros sintomas do mal devastador.
Aflitíssima, comunicou ao primo o seu penoso mal-estar, O rapaz inquietou-se
viva-mente. Dispôs o apartamento contíguo ao do enfêrmo, buscou tranqüilizála,
afiançando que, sôzinho, se incumbiria dos trabalhos da casa. Ela aceitou o
oferecimento, de olhos molhados. Havia dois dias que experimentava
impressões orgânicas muito angustiosas e desejava repousar; todavia,
abstivera-se de falar-lhe a respeito, obediente ao imperativo de suas tarefas
pesadíssimas. O rapaz, entretanto, não só por cavalheirismo como pelo muito
amor que lhe consagrava, consolou-a com as melhores mostras de carinho,
que ela levou àconta de fraternidade sem mácula.
— Antero — disse preocupada —, não ignoramos a gravidade do estado de
papai e não sei se chegarei ao mesmo estado...
— Não te acabrunhes — murmurou o rapaz solícito —, havemos de vencer
a batalha. Tenhamos esperança nos dias que hão de vir.
— Tenho orado com fervor e não perderei a fé em Deus — acentuou a
espôsa de Cirilo, convicta.
— A Providência Divina saberá a razão de nossas provas agudas, e somos
bastante pequeninos para discutir os designios do Pai Celestial. Duas coisas,
porém, te peço...
Nesse ínterim, a voz se lhe embargara em soluços.
— Dize, Madalena! que não faria por ti? —exclamou o primo ansiando por
confortá-la com tôda a ternura que lhe vibrava nalma.
— Não me deixes à mercê dos carregadores de doentes caso a febre me
transtorne os sentidos —disse comovidamente —, pois ignoro o que seria de
mim na confusão das casas de assistência pública; e o outro favor é que
mandes um emissário a Blois, chamando o tio Jaques, de minha parte.
— Nunca te levarão para a rua do Forno —disse o rapaz com firmeza. —
Ainda que eu também venha a adoecer, haveremos de encontrar um recurso.
Quanto ao portador para Blois, é possível que não encontremos um
mensageiro que vá e volte a. Paris, mas poderei enviar uma carta ao professor
Jaques, por algum fugitivo conhecido.
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Madalena enxugou as lágrimas num gesto triste e sentenciou:
— Deus recompensará teus sacrifícios fraternais. Quanto a despesas,
espero que Cirilo regresse da América, mais breve do que penso, e então...
O rapaz cortou-lhe a palavra, murmurando:
— Não fales em despesas. O dinheiro não deve entrar nos problemas
condizentes à nossa paz e saúde.
Naquele mesmo dia, Ântero de Oviedo encontrou alguém que abandonava
a cidade, rumo de Blois, e a carta a Jaques Davenport foi encaminhada com
boa remuneração e especial carinho.
Dai por diante o sobrinho de D. Inácio multiplicou as energias próprias para
atender as necessidades dos dois enfermos, que lhe recebiam as
demonstrações afetivas com profundo reconhecimento no olhar enternecido.
O padre Bourget, em suas visitas periódicas, meneava negativamente a
cabeça diante do velho fidalgo, cujo estado se agravava com prenúncios de
morte. Na segunda visita à Madalena, o generoso sacerdote chamou o rapaz,
ao despedir-se, e disse:
— Meu filho, todos os meus deveres nesta calamidade pública têm sido
amargos e dolorosos. Eis que devo, agora, cumprir mais um.
Antero fêz-se lívido. A solidão angustiava-lhe o espírito. A princípio, esperou
que Jaques ou Susana aparecessem dispostos a conduzir a enfêrma para
Blois, mas oito dias já haviam passado da expedição da carta. Atormentado,
procurou inutilmente as palavras com que pudesse alinhavar uma resposta ao
sacerdote, quando êste, notando-lhe a palidez, prosseguiu:
— Não te deixes abater pelo desânimo. Deus conhece os filhos que o
amam na tempestade de amarguras e é preciso amar o Todo-Poderoso, acatando-
lhe a vontade justa. Apesar de nossos esforços, meu filho, não creio que
teu velho tio possa viver mais de dois dias. Quanto à jovem, somente se
salvará porque Deus concede fôrças, que não compreendemos, aos corações
maternos; seu estado, porém, é melindroso e difícil. Tenho quase certeza de
que ela se curará da moléstia terrível, mas não sabemos quando poderá
levantar-se da cama.
Antero de Oviedo sentiu funda revolta naquele penoso instante da vida.
Embora reconhecido à boa vontade do sacerdote, experimentou um desejo
forte de enxotá-lo com violência. Não haveria outras novas senão aquelas de
angustiados vaticínios? Em outra ocasião, se estivesse diante de um médico,
dir-lhe-ia pesados impropérios; mas a verdade é que ali estava rodeado pela
varíola sinistra, sem amigos, sem ninguém. Mesmo assim, não disfarçou um
gesto de profundo rancor e falou revoltado:
— Está bem, padre Bourget. Fico ciente de que o senhor nada mais tem a
fazer aqui.
O velho ministro da Igreja contemplou o rapaz, compadecidamente, e saiu.
Quando se viu novamente só, o moço espanhol entrou em funda meditação e
chorou desesperado. Tinha dinheiro, dispunha de relações prestigiosas, no
entanto, via-se privado das coisas mínimas da vida. De um lado, o velho tio, a
quem considerava como pai, a franquear os umbrais da morte, sem o confôrto
de um médico à cabeceira; de outro lado, a prima muito amada, a eleita da sua
juventude, na febre intensa que a fazia delirar, delindo-lhe o coração. D.
Margarida, amiga maternal de sua infância risonha, partira para sempre. Os
servos da casa haviam saído, um a um, aos golpes da impiedosa enfermidade.
D. Inácio estava moribundo, conforme o afirmava o padre Bourget. E se
76
Madalena também partisse para as regiões ignoradas do sepulcro? A êsse
pensamento, um frio cortante lhe dominou o coração. Ela era sua derradeira
esperança. Por que suportar a permanência na França, senão por ela? A
Espanha tinha outros muitos encantos que o chamavam com insistência.
Entretanto, sentia quase prazer nos trabalhos pesados de Paris e Versalhes,
porque isso lhe dava a oportunidade de vê-la todos os dias. Não fôsse a
ternura da mãe adotiva e teria aniquilado Cirilo Davenport, antes que êle a
desposasse. Tolerara o ato de suas núpcias com o rapaz irlandês, mas nunca
renunciaria aos seus propósitos. Por último, perseverava em afrontar a
situação perigosa da capital francesa, tão somente por seu amor. No íntimo
reconhecia-se capaz de todos os sacrifícios por D. Inácio; entretanto, verificava
que ainda isso seria por causa de Madalena. A idéia de que ela pudesse
sucumbir no torvelinho das provações amargas, amedrontava-o tenazmente. O
coração, ferido pelos cuidados, começou a perturbar-lhe os raciocínios. Passou
a pensar fortemente na situação de Cirilo. Era possível que o rival nunca mais
regressasse da América distante. Se tal acontecesse, consagrar-se-ia ao único
tesouro da sua vida. Buscaria cativar a prima pelas maneiras generosas.
Acolheria o fruto do seu enlace ao outro com desvelos paternais. E, quem
sabe? Talvez Madalena lhe reconhecesse a dedicação e cedesse aos seus
rogos. Os maus pensamentos rondaram-lhe a mente. E se fugisse com ela
para a colônia do sul, seduzindo-a com a promessa de encontrarem o marido
na América do Norte? Não faltariam pretextos para isso, principalmente depois
que Dom Inácio Vilamil expirasse. O único empecilho a considerar, na
realização do execrando projeto, seria a presença de Jaques Davenport, mas
quem podia saber o que acontecia lá em Blois? Antero de Oviedo passou as
mãos pela fronte como se quisesse expulsar os planos criminosos que o
assediavam.
Diàriamente quase, atendia aos carregadores de variolosos, que vinham à
cata de informações, atraidos pelo sinal fatídico:
— Aqui não há mais enfermos — declarava invariàvelmente.
Certa ocasião, todavia, um deles interrogou:
— Por que, então, teima em permanecer numa casa tão triste?
— Tenho razões para proceder assim sentenciou sem se dar por achado.
As lutas prosseguiam acesas, mas, na segunda noite após as declarações
do padre Bourget, Antero tinha confirmados os dolorosos prognósticos. Corrido
o dia de longos sofrimentos, o velho tio caiu em funda prostração, agonizando
aos poucos. De quando em quando, Ântero corria ao quarto de Madalena e
voltava para junto do moribundo, que, ao romper dalva, entregou a alma ao
Criador. Absolutamente só, tomou as providências imediatas, aguardando o
clarear do dia para atender a outras que se tornavam imprescindíveis. Doloroso
pensamento acudiu-lhe ao cérebro cansado. Deixaria Madalena sôzinha, febril,
qUase inconsciente de si própria? E os enfermeiros abomináveis? Consolou-se
com a idéia de que sempre vinham àtarde, e que sairia a providenciar sepultura
mais ou menos condigna para D. Inácio, pela manhã, no Cemitério dos
Inocentes. Deixaria a porta bem fechada. Tomaria providências à pressa e,
antes do crepúsculo, tudo estaria liquidado para que continuasse enfrentando a
nova fase, da penosa situação.
Mergulhado nessas dolorosas cogitações, Ântero repousou alguns minutos.
A carta do sobrinho de D. Inácio chegou às mãos do destinatário, em Blois, três
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dias depois de escrita. O boníssimo educador alarmou-se, embora estivesse
igualmente de cama, atacado pela mesma enfermidade, pôsto que, de forma
assaz benigna. Impossibilitado de atender ao chamado, consultou Susana a
propósito e a jovem acedeu corajosamente:
— Logo que o senhor esteja melhor — disse resoluta — irei a Paris para
atender às ocorrências.
— Mas não tens qualquer receio? — perguntou o genitor bondosamente —
porque, nessa hipótese, poderei enviar algum amigo daqui, já provado pela
moléstia e indene de contágio.
— Não, meu pai — insistiu a jovem, afetando generosidade —, êstes casos
devem ser resolvidos pelos próprios parentes. Levarei Pierre comigo e é
quanto basta. Nossa vizinha conhece remédios preventivos de primeira ordem
e não devo temer.
Jaques Davenport endereçou à filha um olhar de agradecimento sincero.
Logo que se acentuaram as melhoras do pai, Susana tomou as
providências, chamou Pierre, empregado de sua inteira confiança e
encaminhou-se a Paris, conduzindo no pequeno veículo todos os reduzidos
objetos de socorro de que poderia precisar, tanto em remédios como em
armas.
À medida que avançava nos caminhos, mais se espantava com a
mendicância e a desolação de morte espalhadas por tôda parte. Não obstante
o esfôrço despendido, foi obrigada a pernoitar num dos postos de muda,
próximo da cidade, para chegar às portas parisienses apenas no dia seguinte
de manhã.
Em frente à casa dos Vilamil, em Santo Honorato, Susana entregou as
rédeas ao companheiro e encaminhou-se à porta assinalada, algo comovida.
Bateu inutilmente. Que teria acontecido? Forcejou debalde a porta, que parecia
hermeticamente fechada. Não se conformou com isso. Deu alguns passos
buscando o ângulo lateral da casa, que dava para o jardim. Preocupada,
empregou tôda a fôrça na janela mais próxima, até que esta cedeu, oferecendo
fácil passagem. Logo de entrada, pareceu-lhe tudo deserto e tomou-se de
assombro, embora a coragem de que dava testemunho. Conhecia o perigo que
enfrentava, mas não vacilou. Depois de alguns passos, entrou no quarto onde
o cadáver do velho fidalgo jazia deformado sôbre o leito. Não pôde evitar um
gesto de espanto. Tinha a impressão de haver ingressado num túmulo.
Conteve as emoções mais fortes e avançou para o quarto contíguo, ocupado
por Madalena. A situação da espôsa de Cirilo impressionou-a fundamente. A
filha de D. Inâcio repousava num sono cheio de abatimento singular. Não
obstante a fase eruptiva, quando se atenuam os dolorosos fenômenos do
período de incubação, Madalena Vilamil estava prostradíssima, sob a pressão
de altíssima febre. As môscas terríveis pousavam-lhe no rosto lacerado, sem
que ela reagisse, de leve. Susana inclinou-se para a rival, profundamente
impressionada. Onde estaria Ântero de Oviedo? Intuitivamente, chegou à
conclusão de que o rapaz estaria no Cemitério dos Inocentes, providenciando
sepultura digna para D. Inácio. A desolação da casa inquietava-lhe o espírito.
Sentia necessidade de alguém para repartir a aflição própria. Voltou à janela e
dirigiu-se à rua, desejosa de consultar a vizinhança.
— Pierre — disse ao servo, resoluta —, tenho necesidade de colhêr
informes nas casas próximas e recomendo-te muito cuidado na vigilância do
animal e também desta morada. Logo que chegue alguém, busca-me sem
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tardança.
Enquanto o serviçal fazia um sinal de obediência, Susana bateu os
arredores, mas tôdas as portas estavam silenciosas e impenetráveis. A epidemia
alastrara o terror, despovoara os lares e, além disso, os moradores de
Paris não conheciam a camaradagem fraternal da pacata Blois. A moça,
porém, não desanimava: esmurrava portas, chamava, insistia. Ao parar à porta
de uma casa mais distante, prosseguindo na diligência inútil, eis que surge
Pierre, ofegante, chamando-a:
— Apressai-vos porque um grupo de cinco homens, depois de observar o
sinal vermelho, arrombou a porta, penetrando na casa.
Susana retrocedeu aos saltos. Algumas carriolas fechadas permaneciam
na via pública. Num ápice compreendeu que os execráveis veículos coletavam
os mortos da manhã.
Grandemente revoltada pela desenvoltura com que agia a turma de
socorro, a prima de Cirilo penetrou afoitamente no interior.
Dois homens musculosos começavam a deslocar o cadáver de D. Inácio
Vilamil, enquanto três outros tentavam erguer Madalena, desalojando-a do
leito.
— Que é isto? — bradou enérgica e estridente.
Os invasores tremeram ouvindo-lhe a voz impulsiva. Imediatamente se
detiveram na lúgubre tarefa e acercaram-se da jovem, como se atendessem a
uma voz de comando. Num relance d’olhos, Susana percebeu que eram
operários rudes e avinhados.
— Senhora — exclamou um que parecia o chefe da turma —, por ordem do
Preboste, auxiliamos a remoção e sepultamento dos cadáveres...
— Mas estão enterrando pessoas vivas em Paris?
A essa pergunta formulada em tom enérgico, os míseros encarregados dos
serviços fúnebres entreolharam-se receosos.
— Mas aqui há dois mortos — respondeu o interpelado timidamente -
Susana nesse instante foi assaltada por um pensamento sinistro. E se
permitisse que a rival detestada seguisse como cadáver nas miseráveis
ambulâncias? Não seria um modo prático de se desvencilhar de tão odiada
inimiga? Madalena estava coberta de môscas, sem a mais leve reação. Seu
corpo, abrasado pela febre, parecia insensível. Não teria testemunhas do ato
trágico do seu negro atentado. Mas a idéia do crime lhe repugnou.
Lutou contra a tentação dos instintos inferiores e bradou em voz alta,
estentórica, como se quisesse afugentar o gênio perverso que pretendia
empolgá-la.
— Para trás, corvos malvados! Não vêdes, então, que esta mulher está
viva?
Essa exprobração foi gritada de maneira tão violenta que os infelizes
tremeram, humilhados.
— Cumpríamos ordens, senhora — aventurou o chefe titubeante —; já que
reagis contra nós...
— Rua! todos... — bradou Susana indignada — esta casa tem dono. Não
arredarão daqui uma palha. Se retirarem um objeto, mandarei encerrá-los na
Bastilha.
Quando ouviram falar no cárcere e diante daquela resistência imprevista,
ainda não encontrada em outros lares, onde as famílias pareciam ansiosas por
se libertarem dos cadáveres e dos doentes graves, a qualquer preço, os cinco
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trabalhadores regressaram à via pública, retomando com timidez a lúgubre
tarefa.
Uma vez só, a filha de Jaques entendeu que não devia ficar inativa. A idéia
de que poderia ter afastado Madalena do seu caminho, perseguia-a agora,
horrivelmente. Se a filha de D. Inácio tivesse morrido, estaria livre para
conquistar Cirilo, na América. Convenceria o pai de que deveriam partir para a
colônia distante e buscaria substituir a rival junto do primo, que não conseguiu
esquecer. Experimentando imenso receio das idéias que lhe surgiam no
cérebro com fortes apelos ao crime, refletiu que era preciso encontrar Antero
para assentar as providências que a situação exigia. Se o rapaz não tivesse
fugido de Paris, estaria, por certo, no Cemitério dos Inocentes. Era a única
explicação que lhe ocorria para justificar sua ausência naquele ambiente de dor
infinita. Urgia encontrá-lo. Poderia enviar Pierre ao seu encalço, mas o servo
não o conhecia. Deliberou procurá-lo pessoalmente.
Ordenando ao rude auxiliar se conservasse de guarda à porta dos Vilamil,
de arma em punho, Susana concluiu:
— Não te afastes daqui para coisa alguma.
E depois de dar os sinais de Antero como a única pessoa autorizada a
transpor aquela porta, tomou a viatura e fustigou o animal a galope, em direção
ao Cemitério dos Inocentes.
A prima de Cirilo não se enganava. Logo na portaria encontrou o sobrinho
de D. Inácio, que esperava a vez de ser atendido por gordo abade, chegado de
poucos instantes.
Antero acolheu a jovem com infinita alegria. Era alguém que chegava para
compartilhar de seus trabalhos e angústias. Susana contou-lhe o feito terrível
da manhã e, observando-lhe a inquietação justa, informou que a porta de
entrada estava agora sob a guarda de um servidor fiel. O rapaz relatava as
lutas e amarguras experimentadas, até que o eclesiástico, velhinho amável e
bonacheirão, de rosto marcado pela varíola impiedosa, o chamou para anotar
as devidas declarações.
Aproximara-se.
— Muito trabalho, reverendo? — perguntou a moça desejando amenizar a
triste situação.
— Ah! sim, minha filha — aqui estou a postos há três longos dias, sem
companheiros que me substituam. Ainda bem que já sofri a pérfida enfermidade
que nos tem castigado com tanto rigor.
E o abade Montreuil abriu um caderno de notas provisórias. Susana
contemplou curiosamente a nominata das últimas pessoas sepultadas. Entre os
mortos da véspera, leu um nome que constituía a seus olhos impressionante
coincidência:
“Madalena Villar, espanhola, procedente do arrabalde de Santo Honorato,
com vinte anos de idade.”
Susana não mais ouviu as declarações de Antero ao superintendente do
grande estabelecimento funerário, para só pensar nas idéias extravagantes que
lhe acudiam ao cérebro atormentado. Defendera a rival contra os carregadores
infames, mas também não queria perder a sua oportunidade em renovar a
grande tentativa de suas paixões inferiores. Reagira ao impulso criminoso de
incluir a espôsa de Cirilo entre os cadáveres destinados a vala comum e agora
estava Considerando que se o plano constituísse uma falta, esta não seria tão
grave aos seus olhos, O nome da morta, ali registrado fortuitamente, sugeria80
lhe um rol de projetos nefandos. A rival poderia passar, doravante, por morta,
se Antero de Oviedo aderisse aos seus propositos. Bastaria modificar o nome
Villar para Vilamil. Além disso, a seu ver, no quadro da sua paixão mesquinha,
a providência seria uma retificação do destino. Jamais poderia amar outro homem
a não ser Cirilo Davenport. O sobrinho de D. Inácio Vilamil, por sua vez,
segundo lhe confessara, jamais se uniria a outra mulher que não fôsse
Madalena. A idéia a estonteava. O veneno sutil da tentação empolgou-a por
completo. Esperou, ansiosa, que o rapaz terminasse o diálogo com o abade
Montreuil e, quando êle se dispunha a regressar, pediu-lhe um minuto de
atenção para assunto de grande importância para ambos, O moço atendeu,
curioso e solícito.
Afastando-se alguns passos, até à sombra de velho muro, Susana
começou discretamente:
- Nunca pensei tanto na sua situação, como agora: D. Margarida já não é
dêste mundo, seu tio acaba igualmente de partir e Madalena exige os seus
cuidados. Não considera, porventura, as lutas que o esperam? Desde que me
confiou seus padecimentos íntimos em troca da minha confiança fraternal,
reflito na insatisfação da sua alma generosa.
— Sim, tudo isso é verdade — confirmou êle num suspiro.
— Esta situação me impressiona e comove, porque suas aspirações
irrealizadas são gêmeas das minhas. Sofro, ainda mais, porque estou certa de
que Cirilo se casou com Madalena mais por um capricho. Meu primo não
poderá amá-la, nunca, e reconhecendo tudo isso vejo-o, por outro lado, incapaz
de eleger outra mulher.
A jovem de Blois ia percebendo o profundo efeito das suas palavras.
Mostrando-se sumamente reconhecido ao seu cuidado, o sobrinho de D. mácio
acrescentou:
— Estamos de perfeito acôrdo.
- Ela aproveitou a brecha e lançou a grande interrogação:
— Não será justo retificar tão avaro destino por nossas próprias mãos?
O rapaz que, há dois dias, vinha refletindo no melhor meio de subtrair
Madalena ao marido emigrado, embora a luta íntima por se desembaraçar de
semelhante sugestão, perguntou atônito:
— Retificar... mas como?
— Não será tão difícil — murmurou ofegante, a jovem.
E passou a expor o plano que lhe acudia ao cérebro apaixonado. Pagariam
ao abade Montreuil o trabalho de emendar a grafia do nome da enterrada da
véspera. Madalena Vilamil e não Villar, para todos os efeitos. Identificariam o
sepulcro com adornos preciosos, antes que eventuais interessados
pretendessem descobrir qualquer engano. Em casa, contudo, tratariam a
enfêrma com desvelado carinho e logo que melhorasse notificá-la-iam por
carta, que ela, Susana, se incumbiria de expedir em Blois, que Cirilo havia
perecido em naufrágio, antes de chegar às terras americanas. Naturalmente,
grande desgôsto lhe adviria, mas Antero buscaria distraí-la levando-a para a
Espanha, ou mesmo para a colônia sul-americana, onde já tinha parentes. Ela,
Susana, compeliria o velho pai a partir e procuraria renovar seus ideais
amorosos junto do homem amado, enquanto êle, Ântero, conquistaria a prima
acenando-lhe com risonho porvir.
O moço castelhano estava enlevado. Afinal de contas, não era isso mesmo
que tentara, em vão, descobrir? Procurara ardentemente uma fórmula sutil, que
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sômente agora lhe aparecia por inspiração de Susana, ali, junto dos sepulcros,
onde não havia olhos nem ouvidos humanos capazes de recolher o segrêdo
terrível. Olhar fixo, abstraído de quaisquer outras cogitações, êle
experimentava a renovação dos recalcados impulsos. A sugestão dava-lhe a
vitória. Sentiria prazer em comunicar a Madalena que o marido se abismara no
torvelinho das águas insondáveis. Levá-la-ia à Espanha e, de lá, se possível,
demandariam a América do Sul, cheia de lendas fantásticas. Daria largas ao
espírito aventureiro que lhe palpitava nas veias. A prima, em breve, se
escapasse à varíola, teria uma criancinha necessitada de proteção paternal.
Dar-lhe-ia essa proteção. E aos seus olhos afigurava-se incrível que Madalena
lhe repelisse a afeição em tão duras circunstâncias. A filha de Jaques acompanhava-
lhe a expressão fisionômica, visivelmente satisfeita.
Como a despertar de um sonho, o moço acentuou:
— Magnífica inspiração! Há dois dias buscava, em vão, um meio de
reconstituir minha tranqüilidade. Realizando êsse plano já não serei o mais
desgraçado dos homens.
— Ainda bem! — retrucou a jovem em tom de alegria.
— Mas... os detalhes? — volveu Ântero ansioso. — E o servo que te
acompanha e lá está à nossa porta?
— Não te incomodes — esclareceu resoluta.
— A titulo de preservar-lhe a saúde, mandarei que me espere no pôsto de
muda, próximo de Paris. Quanto ao resto, é muito fácil para nós ambos.
Amanhã mesmo aqui voltarei para providenciar um mausoléu adequado a D.
Inácio e filha. Logo que Madalena melhore, regressarei a Blois, onde
cientificarei a meu pai, do seu falecimento. Sabendo quanto êle a estima,
convirá que te mudes para algum bairro distante, ou para Versalhes, porque
naturalmente desejará visitar-lhe o túmulo e rever a casa onde ela se finou. Um
mês depois do meu regresso, escreverei de Blois comunicando-te, bem como à
tua prima, o naufrágio de Círio e a nossa resolução (minha e de papai) de
seguir para a América. Dêste modo, a meu ver, tudo ficará bem concluído.
Antero mal escondia a grande surprêsa. A jovem arrazoava tão clara e
naturalmente, que as providências mais se assemelhavam a velho projeto
apenas dependente de oportuna aplicação. De qualquer modo, entretanto, a
satisfação do moço espanhol era enorme e intraduzível. Depois do solene
juramento de sigilo perpétuo, dirigiram-se ao oratório do abade
superintendente, a quem Susana falou nestes têrmos:
— Reverendo Montreuil, desejamos um grande obséquio da sua parte.
— Dizei sem receio — respondeu o interpelado com benevolente sorriso.
Antero parecia hesitante, a jovem prosseguiu:
— Por nossa infelicidade, perdemos ao mesmo tempo um tio e uma prima e
desejaríamos que seus túmulos ficassem fronteiros.
— Isso não é difícil — retrucou o eclesiástico —, mas, como talvez não
ignorem, as autoridades religiosas ordenaram a abertura de certa zona do
cemitério aos que possam concorrer para as nossas obras pias com os óbolos
mais vultosos. Assim sendo, poderemos atender ao vosso desejo, mas, isso
custará mais cinqüenta francos.
—. Pagaremos de bom grado — declarou o sobrinho de D. Inácio, mais
animado.
— Agora, reverendo, ainda um outro favor —acrescentou a filha de
Jaques resolutamente —, precisamos ver o local em que foi sepultada
82
Madalena Vilamil, nossa prima, na data de ontem.
O abade tomou maquinalmente o caderno e perguntou:
— Madalena Vilar?
— Há evidente equívoco — interpôs a moça acompanhando a leitura —; o
nome de família é Vilamil. Rogo-lhe o obséquio de uma corrigenda.
O superintendente esboçou um sorriso e explicou:
— A retificação, porém, custa mais cinqüenta francos. Não vos admireis,
filhos, a caridade da Igreja assim exige.
— Do melhor grado — redargüiu Susana sem vacilação.
O abade Montreuil retificou o nome, mas Susana ainda não se dava por
satisfeita.
— Agora — disse ela com naturalidade — desejo uma certidão, ou cópia
dos registros.
O reverendo não teve dificuldade em atender ao novo pedido, depois de
exigir mais umas dezenas de francos.
A prima de Cirilo, não obstante a paisagem fúnebre do momento, não
dissimulava a satisfação que lhe ia nalma. Ao retirar-se, depôs nas mãos do
superintendente surprêso a quantia de cem escudos, assim dobrando as
exigências da sua tabela.
O sepulcro destinado ao fidalgo espanhol foi escolhido junto ao presumido
túmulo da filha. Consumara-se o passo decisivo para a dolorosa modificação
do destino de nossas personagens.
Com energia incrível, Susana cooperou em tôdas as providências necessárias
ao sepultamento de D. Inácio, valendo-se de Pierre nesse sentido. Em seguida,
mandou que o servo a esperasse no pôsto de muda, a poucos quilômetros de
Paris e auxiliou Antero até que Madalena convalescesse. Para o sobrinho dos
Vilamil, essa colaboração foi preciosa, permitindo-lhe reparar a fadiga imensa.
Desejosa de captar-lhe uma simpatia cada vez mais profunda, a jovem
irlandesa tudo fêz pelas melhoras da enfêrma, esforços êsses que Antero
acompanhava com um sorriso de sincero reconhecimento.
Ao fim de uma semana, Madalena estava em vias de franca
convalescença. A morte do genitor causara-lhe profunda consternação, mas a
esperança de reunir-se, em breve, ao espôso, renovava-lhe as energias.
Ante suas perguntas afetuosas, Susana explicava que o pai não pudera vir
a Paris, por ter sido igualmente empestado, mas haveria de o fazer, tão logo
lhe permitissem as fôrças restauradas.
— E Cirilo? — perguntou, logo que voltara a si do estado delirante — não
há em Blois notícias de sua chegada à América?
— Por enquanto, nada de positivo — esclarecia a outra.
Mas, ensaiando a trama do criminoso drama, acentuava:
— Amigos recentemente chegados do Ulster afirmaram-nos que duas
embarcações do capitão Clínton haviam naufragado no litoral da colônia
distante, mas, até agora, temos esperado, ansiosamente, informes detalhados
do sinistrô.
A pobre senhora considerou, muito pálida:
— Como isso me assusta! Espero em Deus nada haja acontecido de mal,
pois de há muitos meses venho entregando Cirilo à proteção da Virgem
Santíssima.
— Também eu — ajuntou a jovem — estou certa de que a Providência
Divina não nos esquecera.
83
Decorrida a semana que assinalara as melhoras promissoras de Madalena
Vilamil, entre conversações afetuosas no domínio das palavras, Susana
Duchesne Davenport regressou ao lar, levando ao pai a noticia das dolorosas
ocorrências.
O generoso Jaques teve um profundo abalo. Ao saber que os Vilamil
haviam desaparecido em circunstâncias tão trágicas, sentiu-se inconsolável.
Revia ainda, na imaginação, a resignação silenciosa de Madalena por ocasião
da morte de D. Margarida e lembrava, com espanto, o modo pelo qual insistira
para que ela o acompanhasse a Blois. Tinha a impressão de ouvir as negativas
reiteradas de D. Inácio e sua oposição irredutível ao convite afetuoso.
Concluía, então, que, certamente, interferiram nos fatos os ascendentes da
Vontade Divina, que lhe não eram dado conhecer ou investigar. Durante um
mês, não deixou um só dia de confugir-se em dolorosas recordações. E estava,
na verdade, exausto. Enfraquecido pela enfermidade cruel, a convalescença
parecia prolongar-se indefinidamente, pela sua invariável tristeza. À retina dos
olhos fatigados, desdobrava-se a fila dos alunos mortos. Muitas crianças de
Blois haviam sucumbido, nada obstante a relativa benignidade do mal, nos
ambientes campesinos. O bondoso educador pensava na reabertura das aulas,
grandemente apreensivo. Um dia a filha se aproximou do seu banco, entre as
árvores farfalhantes do parque, e dirigiu-lhe a palavra comovidamente:
— Papai, tudo tenho feito para que seus sofrimentos sejam atenuados e
suas lágrimas menos abundantes.
— Ah! minha filha, não te incomodes por mim — exclamou em tom de
suprema resignação -; as lágrimas que menos dilaceram a alma devem ser as
que nos caem dos olhos aliviando o coração.
— Hoje, porém, noto que o senhor está mais triste — acrescentou afetiva.
— A resposta do Sr. Ântero de Oviedo, descrevendo-me os derradeiros
sofrimentos de Madalena, muito me comoveu. A pobrezinha deveria ter
padecido muito, antes de entregar a alma a Deus. De qualquer modo, porém,
essa carta veio encerrar o capítulo das minhas preocupações, pois nutria
certas dúvidas relativamente à criança. Agora, fico sabendo que a primeira flor
do matrimônio de Cirilo não chegou a desabrochar. E enquanto êle enxugava
uma lágrima, Susana acrescentava:
— Meu pai, nunca experimentei tanta angústia em França, como agora. Em
cada canto tenho a impressão de contemplar fantasmas de amarguras a
perseguirem-nos sem tréguas. Não lhe parece razoável a idéia de nos
juntarmos aos nossos parentes lá na América? Aqui, em Blois, desapareceram
com a peste devastadora os alunos que mais o compreendiam. Carolina
parece não se lembrar mais de nós, e quanto aos laços que prendiam Cirilo a
Paris, restam apenas dois túmulos tristes no Cemitério dos Inocentes.
Jaques Davenport fitou a filha lacrimosa e exclamou:
— Tens razão.
Olhou o recinto enorme e silencioso, pareceu escutar atento o sussurro das
frondes balouçadas pelo vento e falou:
— Quando Cirilo partiu, outros eram meus planos, mas agora meu velho
parque também está morto. O frio mais doloroso é o da desilusão e da
saudade, minha filha...
Susana não insistiu. Compreendeu que aquelas palavras equivaliam a
compromisso firmado para o futuro. Dai a dois meses, pai e filha realizavam
84
uma romaria ao túmulo de Madalena. Providenciaram para que fôssem as
sepulturas assinaladas por lousas preciosas. Sôbre a de D. Inácio o professor
de Blois mandou colocar uma cruz; mas, identificando a campa onde supunha
descansar aquela a quem amara como filha, elegeu para ornamentá-la formosa
figura de anjo trazendo na destra um róseo coração atravessado por um
punhal, ignorando a extensão do grandioso símbolo. Também mandaram
gravar epitáfios de saudade e fé, em frases afetuosas. Jaques fêz ainda
questão de visitar a casa de Santo Honorato, onde se haviam desenrolado os
lutuosos acontecimentos. Encontrando-a fechada, indagou da vizinhança
relativamente aos criados, de vez que Antero de Oviedo, na missiva que lhe
enviara para Blois, datada de Versalhes, participava a decisão de regressar à
Espanha dentro de poucos dias. Fabiana havia falecido, mas a outra serva e o
lacaio haviam conseguido escapar à morte. O professor também procurou
visitá-los na residência de Santa Genoveva, onde trabalhavam, sendo que
ambos se diziam informados, por Antero, do falecimento da jovem senhora e
do velho patrão, cuja perda recordavam chorosos.
Em Paris, após o regresso de Susana para Blois, a situação continuou
muito mais triste e estranha para Madalena, incapaz de avaliar tôda a trama
dolorosa que lhe negrejava o destino.
Seu estado geral melhorou e, no entanto, segundo previra o padre Bourget,
os pés lhe ficaram inertes, quase paralíticos. Enquanto se mantinha imóvel, as
dores se atreguavam; mas, tentasse soerguer-se e andar, logo reapareciam as
sensações estranhas, forçando-a a sentar-se no leito, O primo, porém,
desfazia-se em atenções e desvelos. Tão logo voltou Susana à casa paterna,
êle providenciou a mudança para Versalhes, com assentimento da enfêrma, ela
mesma ansiosa por outro ambiente e crente de que isso lhe atenuaria o malestar
orgânico. O sobrinho de D. Inácio ainda notificou às relações mais íntimas
dos Vilamil — como, por exemplo, as famílias de Colete e Cecília — o passamento
do velho fidalgo e da filha, acrescentando informações sôbre a situação
dos respectivos túmulos no Cemitério dos Inocentes. Aos vizinhos fêz constar
os mesmos informes com mensagens verbais aos velhos servos, caso
escapassem dos martírios da rua do Forno.
Asseguradas tôdas as providências de conformidade com a sua argúcia
psicológica, tratou da mudança para Versalhes, efetuando-a alta noite e
valendo-se da confusão ainda reinante no bairro desorganizado pelas
conseqüências da epidemia devastadora. Ao raiar de um lindo dia, Antero
chegou com a convalescente à pequena cidade da Côrte, onde se instalou
numa casa confortável dos arredores.
A necessidade de uma serviçal de confiança era o que mais se impunha.
Um amigo indicou-lhe uma órfã castelhana, de nome Dolores, que havia
perdido a mãe, única pessoa de família que lhe restava na vida, entre os
mortos de Vincennes. A pobre criatura fôra apanhada semimorta, na estrada de
Evreux, quando tentava fugir dos tristes quadros parisienses. Estava quase
restabelecida e podia prestar ótimos serviços. O sobrinho de Dom Inácio
procurou-a e de fato encontrou nessa jovem de vinte anos, de tez amorenada
— pois descendia de pai outrora escravo —, uma companheira abnegada para
Madalena, que a recebeu de braços abertos, num verdadeiro transporte de
consolação e de alegria.
Sob o guante das provações que a sitiavam, a espôsa de Cirilo não
85
conseguia dissimular a estranheza que lhe causava a falta de notícias do professor
de Blois. Debalde escrevera-lhe duas longas cartas, mal podendo
imaginar que haviam de ser consumidas pelo primo, encarregado de as
expedir, e assim se mantinha de coração pressago.
Ao fim de algum tempo, nasceu-lhe a filhinha sob a assistência carinhosa
de Dolores, que se revelou irmã dedicada e fiel, nas mínimas circunstâncias, O
advento encheu a casa de brando confôrto e Madalena, guardando a recémnascida
nos braços, com infinito carinho, chamou-lhe Alcione pela primeira vez.
Longa missiva foi escrita a Jaques e entregue ao primo, mas êste, que a
reduziria a cinzas instantes depois, já se encontrava sumamente preocupado
com a demora da mensagem de Blois, anunciando o suposto desaparecimento
de Cirilo.
Sômente um mês depois do nascimento da menina, chegava a Versalhes
longa carta de Susana, participando, em nome de Jaques, o suposto
falecimento de Cirilo Davenport. A missiva desdobrava-se em considerações
dolorosas, ao mesmo tempo que procurava confortar a viúva na sua grande
dor. A jovem comunicava igualmente que havia resolvido mudar-se para a
Irlanda, onde o pai desejava juntar-se a alguns parentes e lá esperar o seu
têrmo de vida. Prometia escrever-lhe futuramente, dando informes mais
minuciosos da nova situação.
Antero, fingidamente comovido, leu a carta àpobre moça — que não
desejava outra coisa senão morrer, ali mesmo, na imensidade da sua desdita.
Quase paralítica, Madalena Vilamil era obrigada a chorar diante do primo e de
Dolores, que, em vão, procuravam consolá-la.
Sentia-se só e desamparada no mundo. Cirilo era a sua derradeira
esperança na Terra. Coração sufocado de angústia, rememorou a infância, a
primeira juventude cheia de cuidados por sua mãe e lembrou a figura do
mendigo de Granada, que lhe predissera dissabores e amarguras no porvir. Estava
doente, sem o arrimo afetuoso de ninguém, sentia-se a mais desditosa
das criaturas. Debalde a nova serva rodeou-a de gentilezas carinhosas.
À noite, Antero aproximou-se fundamente sensibilizado e falou-lhe com
brandura:
— Madalena, nem tudo está perdido.
— Nada mais me resta — murmurou entre lágrimas. — Tenho lutado
corajosamente contra a adversidade, mas agora...
O primo sentou-se ao seu lado e continuou:
— És moça e Deus não te negará saúde para reconquistares a felicidade
que parece destruída. Poderás contar comigo em tôdas as circunstâncias.
Também sou um homem e não me faltam energias para vencer nas lutas mais
ásperas.
A prima contemplou-o através do véu de pranto, para verificar a diferença
de expressão magnética daquelas palavras em confronto com as vivas
recordações do espôso. Cirilo também lhe falava assim, nas horas tristes, mas
seus gestos e mesmo a entonação da voz eram profundamente diversos. Num
instante, compreendeu até onde Antero desejava chegar, reconhecendo que
poderia estimá-lo como a um irmão; jamais, porém, poderia aceitar-lhe o velho
sonho conjugal, de outros tempos.
— Não duvido da sua amizade valiosa — esclareceu a suposta viúva com
delicadeza fraternal
—, mas a morte de Cirilo deixa-me aniquilada para sempre.
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— Mas tens uma filha a exigir teus desvelos — advertiu algo enciumado,
apelando para os seus sentimentos de mãe.
Madalena tomou Alcione ao colo, como a buscar o derradeiro motivo do seu
apêgo ao mundo, enquanto o rapaz continuava:
— Não te deixes abater por impressões transitórias. A luz volta do céu,
diàriamente, a alegria se renova sempre. A ventura tornará depois dos dias
amargosos de adaptação aos novos hábitos. Tenho pensado nas muitas dores
que nos provaram na França e também estou ansioso por mudar de vida. Dize
uma palavra e levar-te-ei aonde quiseres. Não desejarias ir à nossa Espanha
muito amada? Se te prouver, tornaremos a Granada, a fim de recordar nossa
infância feliz e descuidosa. Veremos de novo o céu da pátria e Alcione
crescerá à sombra do nosso afeto.
A tais palavras comovedoras, Madalena quis dizer que desejava ir para
Blois imediatamente, a fim de ajoelhar-se aos pés de Jaques, implorando-lhe
não a abandonasse com a criancinha. Suplicar-lhe-ia que a levasse consigo
para a Irlanda, depois de confiar-lhe suas grandes mágoas. Poderia, então,
esperar tranqüilamente a morte, confiando-lhe Alcione como sua própria filha.
No entanto, lembrou que o educador e Susana haviam sido muito reservados
na sua mensagem dolorosa. Ambos deviam conhecer a enormidade da sua angústia,
os apuros em que se via e, nada obstante, não Lhe haviam mandado
sequer um convite para acompanhá-los na Irlanda. Não seria justo perturbá-los.
Além disso, guardava nítidas as reminiscências da fase difícil, enfrentada por
ocasião da longa moléstia de sua mãe. Possivelmente, o tio de Cirilo havia de
acolher-lhe as súplicas com a sua bondade inata, mas, ponderou que Susana
talvez lhe respondesse como a senhora de Saint-Medard. Depois de muito
refletir, voltou a dizer:
— Compreendo que minha filha necessita da minha assistência constante
e que não devo desanimar, mas a verdade é que me sinto desorientada e
doente. Como encarar a possibilidade de mudanças se nem me posso
locomover?
— E para que servem os carros? — disse êle enternecido — poderemos
partir quando quiseres. Alcione terá minha afeição paternal, e quando te
restabeleceres hás de reconhecer que a ventura tem modalidades infinitas.
Madalena concentrou-se um instante e declarou:
— De nada valem as mudanças quando padecemos de males incuráveis;
mas, se fôsse possível, partiria para Connecticut, a fim de colhêr as derradeiras
notícias de Cirilo. A carta de Blois conta que o naufrágio ocorreu nas costas da
colônia. Quem sabe se foram salvos alguns náufragos? A família Davenport
compunha-se de várias pessoas. Minha sogra parecia uma criatura virtuosa e
santa. É bem possível que lá esteja e me receba com carinho. É verdade que
não me conhecem, mas tenho as cartas afetuosas que me escreveram de
Belfast, elas me identificariam.
Assim discorrendo, tinha os olhos brilhantes nessas evocações.
— Quem sabe os sobreviventes foram recolhidos por mãos piedosas? —
prosseguia mais animada — talvez ainda encontre o túmulo de Cirilo para
cobri-lo de flores.
Antero, que a ouvia atencioso, obtemperou:
— De pronto não podemos cogitar de viagem tão longa, mas poderemos
regressar à Espanha e lá tentá-la a qualquer tempo. Não faltam por lá
embarcações seguras e confortáveis.
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— Rogarei a Deus nos conceda essa graça.
— E eu não descansarei enquanto não tiveres essa alegria — concluiu o
rapaz, revelando extrema dedicação.
Mais algumas palavras fraternais e Madalena ficou só, novamente
entregue às suas penosas recordações. Apagado o candelabro, a sombra
como que lhe aumentava a angústia. Não obstante as afirmativas animadoras
do primo, fazia questão de examinar a extensão de sua mágoa inconsolável.
Ainda que atingisse a América, que encontrasse o túmulo do marido e
conhecesse todos os pormenores da catástrofe, não deixaria de padecer com a
sua viuvez e a orfandade da filha. Se chegasse a abraçar Constância, seria
para chorar, sem esperança de júbilos novos. Sentia-se doente, abatida,
desesperançosa. E se não mais conseguisse caminhar com agilidade? Não
seria um espectro acorrentado à cama, um fardo sacrificante para outrem? Em
vão, tentava coordenar planos. Por outro lado, não acreditava no absoluto
desinterêsse do primo. Cedo ou tarde, êle talvez lhe viesse falar de amor. Não
seria temeridade aumentar sua dívida de gratidão? Poderia receber-lhe os
favores, aceitar-lhe a dedicação, mas, se um dia êle resolvesse exigir o
impossível?
A filha de D. Inácio sentia-se morrer. Enquanto se debulhav~ em lágrimas
silenciosas, sinistra idéia se lhe embutiu no cérebro atormentado. Não era
preferível morrer? Acariciou a sugestão, alucinada. Viúva, reconhecia-se
desamparada e inútil. Sabia de mulheres que haviam procurado a morte por
motivos fúteis. A intenção sinistra avolumava-se-lhe no cérebro. Recordou o
vidro minúsculo, no qual o pai sempre guardara um tóxico fulminante.
Bastariam algumas gôtas num cálice d’água. Se não fôsse possível arrastar-se
alguns passos, pediria a Dolores que lho trouxesse como simples calmante
para conciliar o sono. Dessarte, não seria pesada a ninguém, não precisaria
temer a influência indefinível de Ântero, nem suplicar a piedade dos Davenport.
Prêsa da tentação que a empolgava sutilmente, ia chamar a serva em voz
alta a fim de consumar o sinistro desejo, quando Alcione chorou de mansinho
reclamando-lhe os cuidados.
Assustou-se como a despertar de um pesadelo. Fêz um movimento
instintivo com os braços para atender a criancinha, mas a destra que se movia
na sombra esbarrou no crucifixo que lhe fôra dado por sua mãe, na véspera de
morrer. A pequena cruz caiu-lhe sôbre o coração, como se valesse advertência
indireta e profunda. Pareceu compreender a magnitude do apêlo, pensou
sinceramente em Jesus tal como fizera um dia na via pública de Paris, e
dispôs-se a confortar a filhinha. Nesse gesto, porém, aguardava-a uma
surprêsa ainda mais singular. Alcione tinha os bracinhos em movimento, como
se a buscasse com ânsia, e tão logo se viu envolvida na sua ternura, agarrouse-
lhe ao pescoço comprimindo-o com as delicadas mãozinhas. A pobre mãe
teve a impressão de que a recem-nascida lhe pedia socorro e buscava um
doce refúgio no seu seio de mãe. Compreendeu a silenciosa mensagem de
Deus, no imo do coração. A emoção que lhe timbrava nas fibras mais íntimas,
fê-la dobrar-se em lágrimas e beijos sôbre a pequenina.
Assim foi que a filha de D. Inácio, singular-mente comovida, murmurou aos
ouvidos de Alcione:
— Não chores mais, filhinha! Jesus compadeceu-se da minha alma
atormentada... Ficarei contigo até ao fim!...
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5
Na infância de Alcione
Estabelecido o acôrdo de transferência para a Espanha, na expectativa de
possível viagem à América do Norte, Antero de Oviedo resolveu os negócios
pendentes, conseguindo apurar consideráveis recursos para encetar vida nova.
Madalena Vilamil, mantendo rigoroso luto, aguardava paciente o curso dos
acontecimentos. A dedicação de um médico da Côrte restituira-lhe, em parte, o
movimento dos pés, sem poder, contudo, caminhar muitos passos. Mesmo em
casa, era, não raro, obrigada a se arrimar em Dolores, sempre que teimava em
permanecer de pé por mais tempo. A dor constante dos tornozelos havia desaparecido
e isto já representava grande consôlo. Continuava usando as
fomentações receitadas, com enorme esperança de completa cura e encarava
a partida, resignadamente, como providência inevitável na sua condição de
viuvez. Interpelada por Antero, relativamente à cidade espanhola em que
preferia residir e tratar-se, até que pudessem visitar a América distante,
escolheu Ávila pelo doce atrativo que essa Cidade sempre exercera em seu
espírito. O sobrinho de D. Inácio concordou, satisfeito, alegando que a região
de Castela Velha lhe facultaria bom emprêgo de capitais; e, mais por temor de
conhecidos que por conveniência, deliberou que a jornada não se faria pelos
portos do Atlântico, mas pelo Mediterrâneo, obrigando-se os viajantes a
verdadeira excursão por terra, até ao sul da França.
A viagem na direção de Marselha foi difícil e penosa, não obstante Antero
de Oviedo fazer o possível por demorar-se com as três companheiras nas
cidades mais interessantes, a título de entretenimento e repouso.
Da janela dos carros, sempre trocados em cada pôsto de muda, Madalena
contemplava os campos de França, tomada de imensa saudade e dando a
impressão de que regressava ao berço natal como alguém que se sentisse
perseguido pela realidade cruel, depois de um sonho bom.
Depois de muitos dias de jornada, defrontaram o antigo pôrto, vizinho da
Catalunha. AI descansaram duas semanas, tomando em seguida um navio
confortável, para a época, que os conduziria a Valência. Uma vez acomodados,
com imensos sacrifícios para Madalena, que se amparava em Dolores
sustentando a filhinha ao colo, eis que Ântero reencontra velho amigo da
infância, abraçando-se ambos com ruidosa alegria.
Federigo Izaza e o sobrinho de D. Inácio, depois de muito conversarem
sôbre inúmeros problemas, como só acontecer a conhecidos que se não vêem
de há longos anos, passaram a tratar do regresso do fidalgo à Espanha. Ântero
confessou o intuito de mobilizar os capitais trazidos da França, na perspectiva
de bons negócios. Izaza, sem que êle percebesse, tem estranho brilho nos
olhos argutos e exclama: — Pois veja que feliz acaso nos aproxima! É que
tenho justamente em mãos o melhor negócio dos últimos tempos.
— Como assim? — interroga o rapaz, curioso.
— Conheces o mercado de escravos para as colônias estrangeiras?
Em face da atitude de estranheza do interlocutor, Federigo prosseguiu
animadamente:
- É a negociação mais rendosa nos tempos que correm. Como não ignoras,
o novo Continente necessita do braço escravo. Os emigrantes da Europa não
poderiam atacar, sozinhos, o desbravamento do solo. As epidemias, as
dificuldades, as florestas inóspitas, destruiriam os organismos delicados e, com
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alguns navios e poucos homens de confiança, é possível obter uma fonte de
lucros opimos, com esfôrço quase insignificante.
- Mas... como? — inquiriu o outro.
— Bastam algumas naus corajosas que visitem periodicamente a Costa
d’África.
- Apenas isso?
— Nada mais. A trôco de pequeninas bugigangas, conseguimos elevado
número de selvagens que, sem embargo do cativeiro, passam a gozar os
benefícios da civilização. De modo que — explicava Izaza na atitude egoísta do
homem que deseja mascarar propósitos execráveis — além de vingarmos
transações lucrativas, ainda espalhamos numerosos benefícios entre os negros
bárbaros, de costumes primitivos.
Depois de uma pausa, entrava em outros pormenores:
— Acredito que chegas à Espanha em momento azado aos teus
interêsses, porqüanto eu e meus irmãos necessitamos de um sócio capitalista
para incremento de grandes iniciativas. Dispondo apenas de um navio, temos
perdido ótimas oportunidades nos mercados mais rendosos. As colônias
inglêsas, francesas e portuguesas são grandes centros de consumo.
E o astuto amigo passava a minudenciar e encarecer a importância de
lucros tão fáceis, seduzindo o companheiro para o risco das largas aventuras.
As palestras renovavam-se durante tôda a viagem, e, quando
desembarcaram em Valência, Antero de Oviedo já estava convencido das
vantagens do tráfico negro, decidido a entrar na emprêsa com todos os
recursos disponíveis. Obrigado a conduzir o pequeno séquito até Ávila,
despediu-se do amigo com a promessa de se encontrarem no mês seguinte,
para tomar as providências definitivas.
A reduzida caravana descansou alguns dias antes de atravessar o Aragão,
em demanda das regiões de Castela antiga; mas, no fim da segunda semana
de permanência na Espanha, instalava-Se em modesta vivenda a três
quilômetros das portas da cidade onde Madalena recebera a melhor educação,
num estabelecimento religioso das Carmelitas.
A paisagem não era bela. As águas do Adaja vinham fertilizar a terra
empedrada, com minúscula corrente roubada ao leito do rio, e algumas árvores
frutíferas mitigavam a aridez do solo. Não fôra uma casa-grande, próxima, em
que o poderoso senhor D. Diego Estigarríbia movimentava grande patrimônio
rural, e o modesto sítio mais se assemelharia a lugar malsinado, em abandono.
Antero, porém, adquirira-o em definitivo, oferecendo-o à prima, que recebera a
dádiva com satisfação justa e sincera.
Ao fundo da paisagem repontavam as tôrres das velhas muralhas da
cidade famosa e os bronzes dos seus templos românticos enchiam o ambiente
com dobres impregnados de dolorosas evocações.
Nos primeiros dias, Madalena Vilamil não saberia explicar a sensação de
tristeza que intimamente a empolgava. Observava o casario a distância,
experimentando impressões indefiníveis. Aquelas muralhas antigas, com as
suas oitenta e seis torres originallssimas, falavam-lhe à alma sensível. Sentiase
encarcerada, prêsa de receios estranhos, num conjunto de sensações
amargas que a desolação da terra empobrecida mais acentuava.
Uma vez terminados os serviços da instalação, Ântero viajou para Madrid,
a cuidar dos novos interêsses. O rapaz, entretanto, fora das disciplinas a que o
submetiam os protocolos franceses de Versalhes e Paris, e sem a assistência
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afetiva de D. Margarida, que maternalmente se deevelara pela sua pureza de
hábitos e de caráter, entregou-se, logo no primeiro contato com a capital
espanhola, a perigosas dissipações, com lamentável ausência de escrúpulos.
Federigo Izaza, de posse da prêsa fácil, conduzia-o dia a dia ao total
esquecimento de suas obrigações. Assim, empregou a maior parte da fortuna
nas aventuras do tráfico negreiro, assinando compromissos de vulto com
agiotas e financistas astuciosos e inflexíveis. Como se desejasse desforrar os
dias lúgubres da epidemia parisiense, lançou-se a noitadas alegres, cheias de
prazeres e de vinhos caros. A princípio, recordava a prima e o ardor da paixão
que o levara a participar de um crime; mas, com o egoísmo próprio da criatura
humana, lembrava que Madalena continuava doente, incapaz de algo deliberar
em consciência. Tentar impor-se à prima enferma, figurava-se-lhe extrema
covardia. Era mais nobre aguardar ensejo adequado, e, até que o ensejo
chegasse, ei-lo entregue à volúpia de gozos fáceis e aventuras perigosas.
Havia um mês que se ausentara. A filha de D. Inácio, no entanto, apesar
da monotonia do seu pedaço de campo, procurava encarar as dificuldades com
o heroismo das almas crentes.
O primo não lhe havia deixado maiores recursos, mas, ainda assim, estava
satisfeita. No íntimo, chegava a estimar aquela ausência. Compreendia bem os
olhares que o rapaz lhe dirigira, em todo o percurso da longa viagem. Concluía
mesmo, considerando as suas silenciosas atitudes, que a moléstia era, para
ela, o maior escudo e o melhor antídoto contra aqueles propósitos inferiores.
Subjugada pelo mal-estar da extrema dependência em que se encontrava,
certo dia dirigiu-se a Dolores, encarecendo o valor de um trabalho mais intenso
na vivenda empobrecida. Poderiam enriquecer o pomar de novas plantas,
cultivar legumes para vender. A serva entusiasmou-se. Organizaram projetos
de numerosos serviços. O terreno não era fértil, mas possuía bastante água. O
trabalho e o adubo fariam o resto. A idéia conferiu a Madalena Vilamil novas