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sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Renúncia- Parte 1- Francisco Cândido Xavier

Nota do Blog: Apesar de estar integralmente apresentado. Esse livro ainda não está totalmente formatado nesse blog, para uma leitura mais prazerosa.
CARO AMIGO: Caso você tenha gostado do livro e tenha condições de comprá-lo, faça-o, pois os direitos autorais são doados.

Muita Paz

PARTE1   -  PARTE2  -  PARTE3

 

RENÚNCIA

FRANCISCO CÂNDIDO XAVIER

ROMANCE DITADO PELO ESPÍRITO EMMANUEL

VELHAS RECORDAÇÕES

Quem poderá deter as velhas recordações que iluminam os caminhos da

eternidade?

Lembramo-nos de Alcione, desde os dias de sua infância. Muitas vezes a

vi, com o Padre Damiano, num velho adro de Espanha, passeando ao pôr do

Sol.

Não raro, levantava o semblante infantil para o céu e perguntava,

atenciosa:

— Padre Damiano, quem terá feito as nuvens, que parecem flores grandes

e pesadas, que nunca chegam a cair no chão?

Deus minha filha — dizia o sacerdote.

Mas, como se no coração pequenino não devesse existir esquecimento

das coisas simples e humildes, voltava ela a interrogar:

E as pedras? — quem teria criado as pedras que seguram o chão?

— Foi Deus também.

Então, após meditar de olhos mergulhados no grande crepúsculo, a

pequenina exclamava:

— Ah! como Deus é bom! Ninguém ficou esquecido!

E era de ver-se a sua bondade singular, o interesse pelo dever cumprido,

dedicação à verdade e ao bem.

Cedo compreendi que a família afetuosa de Ávila se constituía de amizades

vigorosas, cujas origens se perdiam no tempo.

Os anos — minutos do relógio da eternidade —correram sempre

movimentados e cheios de amor. A criança de outros tempos tornara-se na

benfeitora cheia de sabedoria. Sua vida não representava um feixe de atos

comuns, mas um testemunho permanente de sacrifícios santificantes. Desde a

primeira juventude, Alcione transformara-se em centro de afeições, em fonte de

luz viva, onde se podiam vislumbrar as claridades augustas do Céu. Sua

conduta, na alegria e na dor, na facilidade e no obstáculo, era um ensinamento

generoso, em tõdas as circunstâncias.

Creio mesmo que ela nunca satisfez a um desejo próprio, mas nunca foi

encontrada em desatenção aos desígnios de Deus. Jamais a vi preocupada

com a felicidade pessoal; entretanto, interessava-se com ardor pela paz e pelo

bem de todos. Demonstrava cuidado singular em subtrair, aos olhos alheios,

seus gestos de perfeição espiritual, porém queria sempre revelar as idéias

nobres de quantos a rodeavam, a fim de os ver amados, otimistas, felizes.

Minhas experiências rolaram deva garinho para os arcanos do Tempo, a

morte do corpo arrastou-me a novos caminhos e, no entanto, jamais pude es

quecer a meiga figura de anjo, em trânsito pela Terra.

Mais tarde, pude beijar-lhe os pés e com preender-lhe a história divina. O

resultado dêsse conhecimento vibra neste esfôrço singelo, que não tem

pretensões a obra literária.

Este é um livro de sentimento, para quem aprecie a experiência humana

através do coração. Em particular, falará a todos os que se encontrem encarcerados,

sentenciados, esquecidos daquele amor que cobre a multidão dos

pecados, consoante os ensinamentos de Jesus. A maioria dos aprendizes do

Evangelho deixa-se tomar, em sentido absoluto, pelas idéias de resgate

escabroso, de olho por olho, ou, então, pela preocupação de recompensas na

Terra ou no Céu. Aqui, comentam-se reencarnações criminosas; ali, esperam4

se tão só prantos amargos; além, existem corações anelantes de remansado e

ocioso pousio. A esperança e a responsabilidade parecem tesouros

esquecidos. É razoável que se não possa negar o caráter incorruptível da

Justiça, porém, não se deverá esquecer o otimismo, a confiança, a dedicação e

tôdas as energias que o amor procura despertar no âmago das consciências.

Para as almas sinceras, que ainda solucem nos laços do desânimo e

desalento, a história de Alcione é um bálsamo reconfortador. Naturalmente que

ela própria, qual amorosa visão da Espiritualidade eterna, emergirá das

páginas luminosas da sua experiência, perguntando ao leitor que se sinta

oprimido e exausto:

— Por que reténs a noção dos castigos implacáveis, quando Nosso Pai nos

oferece o manancial inexaurível do seu amor? Por que atribuis tamanha

importância ao sofrimento? Levanta-te! Esqueceste Jesus? Já que o Mestre

padeceu por todos, sem culpa, onde estás que não sentes prazer em trabalhar,

de qualquer forma, por amor ao seu nome?

A psicologia de Alcione é bem mais complexa do que se possa imaginar ao

primeiro exame. Na grandeza da sua dedicação, vemos o amor renunciando à

glória da luz, a fim de se mergulhar no mundo da morte. Com seu gesto divino,

a Terra não é apenas um lugar de expiação destinado a exílio amarguroso,

mas, também, uma escola sublime, digna de ser visitada pelos gênios celestes.

Dentro dos horizontes do Planêta, ainda vigem a sombra, a morte, a lágrima...

Isso é incontestável. Mas, quem seguir nas estradas que Alcione trilhou,

converterá todo esse patrimônio em tesouros opinos para a vida imortal.

Aqui, pois, oferecemos-te, leitor amigo, tão velhas recordações.

Crê, no entanto, que, por velhas, não são menos preciosas. São heranças

sagradas do escrínio do coração, jóias de subido valor que espalharemos a

êsmo, recordando que, se muita gente presume haver alcançado os êxitos

retumbantes e a felicidade ilusória no campo vasto do mundo, em verdade

ainda não aprendeu nem mesmo a estabelecer a vitória da paz, na experiência

sagrada que se verifica entre as paredes de um lar.

Pedro Leopoldo, 11 de janeiro de 1942.

EMMANUEL

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PRIMEIRA PARTE

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1

Sacrifícios do amor

Capítulo 10, item 11

A paisagem era formada de sombras, numa região indefinível na linguagem

humana. Substâncias diferentes das que compõem o solo terrestre constituíam

a sua crosta sulcada de caminhos tortuosos entre arbustos mirrados, à

semelhança dos cactos próprios das zonas áridas. Os horizontes perdiam-se

ao longe, nas linhas escuras do quadro melancólico, como se aquela hora

assinalasse pesado crepúsculo.

Fazia frio, agravado pelas rajadas fortes do vento úmido, que soprava rijo,

deixando no espaço vaga expressão de doloroso lamento. O lugar dava a

impressão de triste país de exílio, destinado a criminosos condenados a penas

ingratas.

Entretanto, ouviam-se vozes que a ventania quase abafava, como de

prisioneiros cheios de expectação e de esperança.

Em singular e sombrio recôncavo, pequeno grupo de espíritos culposos

comentava largos projetos de atividades futuras. Suas túnicas exóticas e

grandes capuzes pareciam identificá-los como estranhos ministros de um culto

ignorado na Terra. Alguns se revelavam inquietos, taciturnos, outros deixavam

transparecer nos olhos enorme desalento.

— Agora — dizia um que evidenciava posição de relêvo — necessitamos

renovar ideais, imprimir novo impulso à nossa voliçâo enfraquecida. O passado

vai longe e faz-se imprescindível arregimentar tôdas as fôrças para as lutas

que vêm perto. A providência misericordiosa do Todo-Poderoso nos concede

ensanchas de novas experiências na Terra. Meditemos em nossas quedas

dolorosas no redemoinho das paixões do mundo e firmemo-nos nos santos

propósitos de triunfo. Quantos anos temos perdido em amarissimos

sofrimentos, no plano dos remôrsos devastadores?... Recordemos as angústias

da via expiatória e agradeçamos a Deus o ensejo de voltar às tarefas

purificadoras. Esqueçamos a vaidade que nos envileceu o coração; a ambição

e o egoísmo que nos torturam a alma ingrata, e preparemo-nos para as

experiências justas e necessárias.

A voz do locutor, porém, embargava-se afogada em lágrimas. A lembrança

dolorosa do passado empolgava o grupo de antigos sacerdotes desviados do

nobre caminho que o Senhor lhes havia traçado.

Iniciara-se a troca de impressões entre todos. Alguns expunham

dificuldades íntimas, outros comentavam a intenção de trabalhar

devotadamente, até à vitória.

— O que mais me impressiona — proclamava um companheiro — é o

fantasma do esquecimento que nos obscurece o espirito, lá na Terra. Antes da

experiência, arquitetamos mil projetos de esfôrço, dedicação, perseverança;

somos nababos de preciosas intenções, mas, chegado o momento de as executar,

revelamos as mesmas fraquezas ou incidimos nas mesmas faltas que

nos compeliram aos desfiladeiros do crime e das reparações acerbas.

— Mas, onde estaria o mérito — explicava o amigo a quem eram dirigidas

aquelas observações — se o Criador não nos felicitasse com êsse olvido

temporário? Quem poderia aguardar o êxito desejável, defrontando velhos

inimigos, sem o bálsamo dessa bênção celestial sôbre a chaga da lembrança?

Sem a paz do esquecimento transitório, talvez a Terra deixasse de ser escola

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abençoada para ser ninho abominável de ódios perpétuos.

— Entretanto — objetava o interlocutor — semelhante situação me

atemoriza. Sinto enorme angústia só em pensar que perderei novamente a

memória, que ficarei quase inconsciente de meu patrimônio espiritual, ao

palmilhar as estradas terrestres, qual enterrado vivo a quem fôsse subtraida a

faculdade de respirar.

— Mas, como aprenderias a humildade com as reminiscências ativas do

orgulho? Poderias, acaso, beijar um filho, sentindo nele a presença de um

inimigo figadal? Conseguirias, de pronto, a força precisa para santificar, pelos

elos conjugais, a mulher que manchaste noutros tempos, induzindo-a ao

meretrício e às aventuras infames? Não percebes, no olvido terreno uma das

mais poderosas manifestações da bondade divina para com as criaturas

criminosas e transviadas? Concordo em que a experiencia humana para quem

observou, mesmo de longe, como aconteceu a nós outros, as resplendências

da vida espiritual, significa, de fato, a reparação laboriosa no seio de um

sepulcro; mas nós, meu caro Menandro, estamos desde há muito mumificados

no crime. Nossa consciência necessita do toque das expiações salvadoras. A

morte mais terrível é a da queda, mas a Terra nos oferece a medicação justa,

proporcionando-nos a santa possibilidade de nos reerguermos. Renasceremos

em suas formas perecíveis e, em cada dia da experiência humana, morreremos

um pouco, até que tenhamos eliminado, com o auxílio da poeira do mundo, os

monstros infernais que habitam em nós mesmos...

O amigo pareceu meditar aquêles conceitos profundos e, dando a

entender que se convencera, interrogou com atenção, encaminhando a

palestra para outros rumos:

- Quando se verificará nossa localização definitiva nos fluidos terrestres,

com vistas à nova experiência?

— A qualquer momento. Como sabes, muitos dos nossos já partiram. Os

benfeitores de nosso destino, que advogaram a concessão de novas oportunidades

ao nosso esfôrço remissor, já nos enviaram a mensagem derradeira,

desejando-nos realizações felizes nos trabalhos futuros.

Nesse instante, sucedeu qualquer coisa que o grupo de almas sofredoras e

esperançosas não conseguiu perceber. Uma forma luminosa descia do plano

constelado, semelhante a uma estréia desprendida do imenso colar dos astros

da noite, que agora se caracterizava pela sombra mais envolvente e profunda.

Quase ao tocar no centro da paisagem escura, tomou a forma humana, embora

não se lhe pudesse determinar os traços fisionômicos, tal a sua auréola de

ofuscante esplendor. No entanto, como acontece no círculo das impressões

humanas condicionadas às necessidades de cada criatura, nenhum dos

circunstantes lhe registrou, de maneira absoluta, a presença generosa, senão

mediante uma íntima alegria, permeada de santas esperanças. Ninguém

poderia definir o sentimento de bom ânimo que se estabelecera, de modo

geral. Elevada perspectiva de vitória no porvir palpitava, agora, nas

conversações. Alguém declarou que naquele instante, por certo, estavam

descendo novas bênçãos de Deus sôbre o grupo antes receoso e abatido.

Menandro e Pólux, os dois amigos cuja palestra foi particularmente

registrada, salientaram a sublime alegria que lhes inundava o coração e o mais

santo entusiasmo perdurou, entre todos, até que a pequena assembléia se

dissolveu em meio de comovedoras despedidas e compromissos sagrados.

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Pólux, todavia, ainda ali ficou longos minutos a meditar na magnanimidade

do Altíssimo e na magnitude do porvir. Não percebia a presença da sublime

entidade envôlta em luz, que se conservava a seu lado, em atitude carinhosa,

mas profundas emoções se lhe apoderaram do espírito, conduzindo-o às

reminiscências do pretérito remoto. Naquele instante, sentia-se tocado por

sentimentos intraduzíveis. Por que razão havia caído tantas vêzes ao longo dos

caminhos humanos? Numerosas lutas sustentara, a fim de unir-se a Deus para

sempre, através do amor purificado e divino. Experiências laboriosas havia

empreendido no Evangelho de Jesus, para servi-lo em espírito e verdade, e

contudo, na luta consigo mesmo, as paixões subalternas sempre saíam

vencedoras, em sinistros triunfos. Em que constelação permaneceria Alcione, a

alma de sua alma, vida de sua vida? E recordava as renúncias e sacrifícios

dela, em prol da sua redenção, lembrando que, se a sua alma de santa estava

sempre repleta de abnegação, êle, por si, fôra quase invariàvelmente frágil e

vacilante, agravando os próprios fracassos. Principiara, de alguns séculos, a

tarefa de resgate e aperfeiçoamento sob as claridades do Evangelho de Jesus-

Cristo; procedera nobremente até certo ponto, mas, no instante de coroar a

obra para a vida eterna, caíra miseràvelmente, como criminoso comum.

Desesperara-se. Chafurdara-se no lodo cruel. A revolta, porém, agravara-lhe

as penas íntimas, compelindo-o a ceder ante o cêrco apertado de novas

tentações. Reme-morava, agora, a figura da alma bem amada, com lágrimas

de amarguroso enternecimento. Sua memória parecia mais lúcida. À sua retina

espiritual, desenhavam-se os séculos transcorridos. Alcione sempre pura e

devotada, êle sempre incorrigível e cruel. Nas últimas experiências havia

pedido o hábito de sacerdote do catolicismo romano, desejoso de entregar-se

ao ascetismo regenerador. Preferira tentar o esfôrço de abster-se das

comodidades santas de um lar, a fim de sofrer o insulamento e as necessidades

profundas do coração, buscando gravar no espírito, com o ferrete de

padecimentos íntimos, o amor acrisolado e fiel. Mas, nas recapitulações perigosas,

tal propósito falhara sempre. Conspurcara os santuários, traira os

deveres santos, esquecera os compromissos sagrados e saíra novamente do

mundo como criminoso revel. Pólux considerou os erros do passado execrável

e, premido pelas angústias da consciência, começou a chorar.

Onde estava Alcione que parecia estranha às suas desventuras? Muitos

anos haviam decorrido sôbre as suas peregrinações, como espírito desolado,

entre remorsos acerbos, e nunca obtivera a dita de lhe beijar as mãos

carinhosas e benfeitoras. De quando em quando, recebia-lhe as mensagens de

incitamento e confôrto sagrado; no entanto, não conseguia saciar a saudade

torturante, nem evitar o próprio desalento do espírito caído no resvaladouro das

amarguras crueis.

Em palestra com os amigos. Pólux encontrava sempre poderosos

argumentos para convencer os mais rebeldes ou consolar os mais tristes. Suas

vastas reservas de conhecimento conferiam-lhe recursos espirituais que os

demais não possuiam.

E contudo, naquela hora da sua eternidade, sentia-se profundamente só e

desventurado.

Sob o jugo de atrozes recordações, sentindo que o instante de retôrno ao

orbe terráqueo estava próximo, procurou o refúgio caricioso da oração e

murmurou baixinho, de olhos erguidos para o alto:

— Jesus, Mestre querido e generoso, concedei-me fôrças ao coração

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enfêrmo e perverso!... Dignai-vos cerrar os olhos para as minhas fraquezas e

vêde, Senhor, quanto sofro!... Fortalecei minha vontade vacilante e, se

possível, meu Salvador, dai-me a graça de ouvir Alcione, antes de partir!.

Mas, a essa evocação direta da bem-amada, o pranto lhe embargou a

prece comovedora e dolorosa. Em atitude humilde, baixou os olhos nevoados

de lágrimas e soluçou, discretamente, como se estivesse envergonhado da

própria dor.

Nesse instante, a entidade amorosa que o assistia pareceu orar

intensamente, despendendo notável esfõrço para se lhe tornar visível.

Gradualmente, extinguiram-Se os raios de luz que a envolviam em reflexos

divinos. A sombra da paisagem cercou-a inteiramente, e uma jovem de singular

beleza tocou o penitente nos ombros, num gesto de ternura encantadora.

— Pólux! — murmurou com indizível doçura. Êle ergueu a fronte e soltou

um grito de inefável surprêsa.

— Alcione!... Alcione!... — respondeu com júbilo incoercível, postando-se

de joelhos ao mesmo tempo que lhe osculava as mãos reconhecidamente.

— Há quanto tempo me vejo privado dos teus carinhos! Meus dias são

milênios de inenarráveis angústias. Vieste atender ao mísero que sou?. .. Ah!

sim, Deus sempre envia seus anjos aos desgraçados, como enviou Jesus aos

pecadores...

— Levanta-te para o testemunho de amor ao Altíssimo — disse ela com

angélica ternura —; não te julgues abandonado nos caminhos da regeneração.

O Senhor está conosco, como estou sempre contigo. Anima-te para novas

experiências! Jesus não desampara nossos propósitos elevados. Sofre e

trabalha, Pólux, e, um dia, nos reuniremos para sempre na radiosa eternidade.

Deus é a fonte da alegria imortal, e quando houvermos triunfado de tôda a

imperfeição, banhar-nos-emos nessa fonte de júbilos infinitos.

— Ai de mim! — replicou revelando amargurosa desesperança.

Não lamentes! — tornou a entidade generosa — não perseveres em lastimar,

quando o Todo Poderoso nos faculta o direito de renovar o esfôrço para as

divinas conquistas. Novas tarefas te aguardam no seio amigo da Terra

generosa. Solicitaste uma oportunidade nova de consagração a Deus, e a

Providência te concedeu êsse precioso ensejo.

Sim — esclareceu Pólux desfeito em lágrimas roguei a recapituLação

do esfôrço dos sacerdotes devotados ao labor divino. Uma vez mais, quero

tentar as provas da abnegação e do ascetismo, na exemplificação do amor ao

próximo. Mobilizarei tôdas as minhas energias para avançar alguns graus na

distância imensa que nos separa na escala evolutiva. Quero viver sem lar e

sem filhos carinhosos, quero conhecer a solidão que muitas vêzes já

experimentaste no mundo, nos estrênuos sacrifícios por mim. Minhas noites

hão de ser desertas e tristes, caminharei junto dos que caem e padecem sôbre

a Terra, no propósito de servir a Jesus, através da sua seara de amor e

perdão.

Alcione contemplou-o embevecidamente, olhos mareados de pranto, numa

doce emoção de júbilo e reconhecimento. As afirmativas e promessas do

amado penetravam-lhe o coração como brandas carícias. De há muito

trabalhava com fervor pela obtenção daquele minuto divino, em que Pólux conseguisse

compreender e sentir o Mestre no coração antes de interpretá-lo

intelectualmente, apenas.

— Jesus abençoará nossas esperanças — exclamou afetuosa. — Nós que

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saímos juntos do mesmo sôpro de vida, chegaremos juntos aos braços

amoráveis do Eterno.

Pólux soluçou convulsivamente.

Esperar-te-ei — disse ela — através dos caminhos do Infinito. Lutarei ao

teu lado nos dias mais ásperos, dar-te-ei as mãos sôbre os abismos

tenebrosos.

Perdoaste-me, como sempre? interrogou Pólux, voz entrecortada pela

emoção do encontro.

— Os que se amam fundem as almas no entendimento recíproco. Deus

perdoa, concedendo-nos a oportunidade da redenção, e nós nos compreendemos

uns aos outros.

E, evidenciando o desejo de restaurar as energias do amado, continuou:

— Quantas vêzes também caí nas estradas longas e ríspidas. Acaso tenho

um passado sem mácula?... Não és o único a padecer nos resgates justos e

penosos. Milhões de almas, neste mesmo instante, clamam as desventuras do

remorso e invocam as bênçãos do Altíssimo para o trabalho retificador. E não

será razão de infinita alegria a certeza da concessão divina para recomeçar?

Já recebeste a permissão do Senhor para o reinício da luta, avizinha-se o

instante bendito do retôrno à tarefa e pensaste, acaso, nas torturas imensas de

quantos, neste minuto, se sentem oprimidos e amargurados, na expectativa

ansiosa de alcançar a dádiva que já obtiveste?.

Pólux contemplou-a reconfortado, mas, objetou melancolicamente

— Ah! sinto que poderia atingir culminânciaS nas necessárias reparações;

entretanto, Alcione, precisava para isso da tua constante assistência. Sei que

preciso recorrer a provas difíceis de abnegação e de ascetismo, mas... se

pudesse, ao menos, ver-te na Terra... Serias, para a minha tarefa, a radiosa

estrêla d’Alva e, à noite, quando fluíssem do céu as bênçãos da paz, lembrarme-

ia de ti e encontraria nessa recordação o manancial da coragem e dos

estímulos santos!.

Ela pareceu meditar profundamente e redargüiu:

— Implorarei a Jesus me conceda a alegria de voltar à Terra a fim de

atender ao meu ideal, que se constitui, aos meus olhos, de sacrossantos

deveres.

— Tu! Voltares? — perguntou o precito, ébrio de esperança.

—Por que não? — explicou Alcione com meiguice. — O planêta terrestre não

será um local situado igualmente no Céu? Esqueceste o que a Terra nos tem

ensinado qual mãe carinhosa, na grandeza de suas experiências? Muitas

vêzes, nós, na qualidade de filhos dela, manchamos-lhe a face generosa com

delitos execráveis e, entretanto, foi em seu seio que o Mestre surgiu na

manjedoura singela e levantou a cruz divina, encaminhando-nos ao serviço da

remissão.

— Ah! se Deus permitisse ao mísero penitente que sou — disse Pólux

dominado por indisfarçável alegria — a ventura de ouvir-te no estreito circulo

terrestre, acredito que nada teria a temer na senda reparadora...

Alcione notou-lhe o surto de alegria transbordante e, ponderando-lhe as

observações, palavra por palavra, obtemperou:

- Antes da minha, precisarás ouvir a voz do Cristo, e se Ele com sua

infinita bondade permitir minha volta à Terra, jamais olvidemos que vamos lá

regressar, não para auferir gozos prematuros, mas para sofrer juntos no

caminho redentor, até podermos desferir o vôo supremo de felicidade e união,

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em demanda de esferas mais altas. Na obra de Deus, a paz sem trabalho é

ociosidade com usurpação. Não afastes os olhos do quadro de sacrifícios que

nos compete fazer a favor de nós mesmos!

— Sim, Alcione, tu és o meu anjo bom — murmurou êle entre lágrimas. —

Ensina-me a percorrer as estradas depuradoras. Não me desam pares. Dizeme

como devo proceder na Terra. Repete que te não afastarás do meu

caminho. Inspira-me o desejo santo de resgatar meus pesados débitos, até ao

fim...

Sentado, em atitude humilde, o mísero sofredor guardava a cabeça entre

as mãos, enxugando as lágrimas copiosas.

Alcione afagou-lhe os cabelos com ternura e falou docemente:

— Não temas a prova de purificação que te conduzirá ao júbilo na senda

eterna, O cálice do remédio deve ser estimado por sua virtude curativa, não

pelo travo do conteúdo, que apenas produz a penosa sensação de alguns

segundos. Sê reconhecido a Deus nos sacrifícios, Pólux! Não desejes, nem

esperes regalias na escola de edificação, onde o próprio Mestre encontrou a

bofetada e a cruz do martírio. Não escutes as falsas promessas nem atendas

aos caprichos perniciosos que nascem do coração. Obedece ao Pai e toma

Jesus por cireneu de tôdas as horas. A porta estreita, ainda e sempre, é o

maravilhoso símbolo para a divina iluminação. Foge das fantasias

envenenadas que trabalham contra as santificantes aspirações do espírito. Recorda

as angustiosas experiências que tantas vêzes empreendemos na Terra,

para a conquista de nossa perpétua união. Não temos sêde de enganosas satisfações.

Temos sêde de Deus, Pólux! O infinito amor que nos transfunde as

almas tem sua origem sagrada em sua misericórdia paternal. Quero-te

eternamente, como sei que a união comigo é a tua sublime aspiração:

entretanto, seria justo encerrar nosso júbilo num círculo egoístico, tão

somente? Amamo-nos para sempre, a eternidade nos santifica os destinos,

mas o Pai está acima de nós. Entreguemo-nos ao seu amor, no santo trabalho

de suas obras. Em suas mãos augustas, meu querido, palpita a luz que enche

os abismos. Haverá maior glória que praticar-lhe a divina vontade, que se

traduz em amor, dedicação e alegria? Nos caminhos novos a percorrer, lembra

o Pai Amado e atende-o em tôdas as circunstâncias. Não acalentes no coração

os germes da vaidade e do egoísmo. Sacrifica-te. Dá combate a ti mesmo. Os

triunfos exteriores são aparentes e podem ser mentirosos. A vitória espiritual

pertence à alma heróica que soube unir-se ao céu, através de tôdas as

tempestades do mundo, trabalhando por burilar-se a si própria.

Pólux chorava, compungidamente, mas rogou com expressão

comovedora:

— Compreendo-te as palavras sábias e afetuosas! Farei tudo por unir-me a

Deus e a ti, eternamente. Pede por mim a Jesus para que eu tenha reflexão e

bondade no mundo...

No entanto, como se experimentasse um choque inesperado, levou as

mãos ao peito, calou-se por momentos, para depois retomar a palavra, espantado

e hesitante:

— Alcione, querida, não sei se a emoção desta hora divina abalou minhas

energias mais profundas; contudo, sinto que algo me envolve a fronte, uma

fôrça incoercível parece ameaçar o cérebro vacilante: experimento penosas

sensações, como quando perdemos as fôrças devagarinho, antes de cair...

E, após outra pausa ligeira, voltava a exclamar, revelando amarga

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estranheza:

— Chamam por mim... ouço vozes que me chegam de longe... que vem a

ser isto?...

O rosto se lhe cobrira de intenso livor, de profunda palidez, e, deixando

perceber que escutava interpelações de um mundo diferente, interrogou entre

atemorizado e surpreendido:

— Como interpretar êstes apelos? É êste o triste momento? Ah! não, não

pode ser!...

Mas, nesse instante, a jovem sentou-se a seu lado; carinhosa, tomou-lhe a

fronte cansada no regaço generoso e, afagando-lhe os cabelos com extrema

ternura, esclareceu:

— Acalma-te. Chamam-te da Terra. Vais adormecer para despertar na

experiência nova, nos círculos da vida humana. Partirás de meus braços para o

seio da afetuosa mãezinha que Jesus te destinou.

Pólux experimentava estranhas sensações, caracterizadas por súbito

abatimento; mas, sentindo-se conchegado ao amoroso regaço de Alcione, tinha

a impressão de ser a mais venturosa das criaturas. Impressões dominadoras

de sono senhoreavam-no e, no entanto, lutava desesperadamente contra elas,

tentando dilatar a ventura daqueles momentos sublimes, obtemperando

carinhosamente:

— Não desejaria outra mãe, senão tu mesma. Reúnes, para mim, todos

os sagrados requisitos de mãe, de irmã, de companheira e noiva bem-amada...

Ela, que também demonstrava grande emoção nos olhos rasos d’água,

acrescentou com meiguice:

— Sim, somos dois corações numa só alma, sob os desígnios do Altíssimo!

Pólux, agora, evidenciava intraduzível angústia. Os olhos moviam-se

inquietos, obedecendo às ansiosas expectativas do seu mundo interior. O peito

arfava dolorosamente, como se o coração tentasse romper o tórax, causandolhe

indefinível angústia. Seu estado geral dava a impressão de um moribundo

na Terra, nas vascas da morte. Fixou os olhos inquietos na bem-amada, tal

qual criança necessitada de carinho, e falou com dificuldade:

— Alcione, não será êste padecimento igual ao da morte que conhecemos

no mundo?... (1)

— Sim, meu querido, tua angústia de agora éoutra crise periódica.

— Reconheço — disse êle completando o raciocínio — e estou certo de

que terei crises semelhantes na Terra, ou noutros planos, até que me liberte da

morte no pecado... Um dia encontrarei a ressurreição eterna, a harmonia sem

fim... Permanecerei a teu lado para sempre!...

A jovem aconchegou-o ao coração, com mais ternura.

— Alcione — murmurou dificilmente —, não sei se me perdoaste a ponto

de permitir ao meu espírito miserável a solicitação de uma dádiva celestial...

(1) Os fenômenos da reencarnação, como aqueles que assinalam o

desprendimento do espírito no mundo, abrangem as mais variadas

formas e se verificam de acôrdo com as necessidades de cada um. —

Nota de Emmanuel

Ela adivinhou-lhe os pensamentos mais secretos e, todavia, com a

delicadeza de quem não deseja parecer superior, retrucou carinhosamente:

— Dize, Pólux! Que não farei por tua felicidade?

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— Desejava... que me beijasses... ao menos uma só vez, antes de partir...

Lágrimas ardentes repontaram nos olhos da noiva espiritual, que,

estreitando-o ternamente de encontro ao coração, como se atendesse a tenra

criança, replicou cheia de brandura:

— Antes disso, elevemos a Jesus nosso beijo de amor e reconhecimento.

Roguemos ao seu coração magnânimo proteção e amparo ao nosso ideal

divino,

O interlocutor fixou no seu rosto angélico os grandes olhos atormentados e

murmurou:

— Acompanharei tuas preces...

Alcione ergueu o olhar lúcido ao céu conste-lado, que esplendia além das

sombras que envolviam aquela região de amargura, e orou fervorosamente:

— Mestre amado...

Depois da pausa natural, Pólux repetiu comovedoramente:

— Mestre amado...

A jovem sentiu que o pranto quase lhe embargava a voz, mas, seguida por

êle, continuou:

— Com veneração e carinho, nós, meu Jesus, desejamos oscular vossos

pés. Recebei no santuário de vossas glórias divinas a pobre lembrança dos

servos humildes e necessitados, Nossas almas estão cheias de gratidão à

vossa bondade, Permiti, meu Salvador, que Possamos honrar O vosso nome

trabalhando na seara de perdão, de verdade e de amor, com a vossa doutrina,

Abençoai nossas lutas salvadoras, dai-nos a fôrça para vos testemunhar eterna

fidelidade, amparai nossos espíritos até ao dia em que nos possamos unir em

vosso seio, na claridade sem fim da eternidade luminosa!...

Alcione interrompeu a oração, que se assemelhava a um cântico divino

fragmentado por doce estacato. Na paisagem desolada, fizera-se luz intensa,

que Pólux não conseguia perceber. Generosos emissários acercaram-se dos

dois filhos de Deus, que imploravam, de todo o coração, o amparo de Jesus.

A jovem, nesse momento, inclinou-se para o bem-amado e, na compostura

de mãe carinhosa e desvelada, beijou-o longamente nos lábios com infinita

ternura.

Pólux desejou proclamar seu precioso júbilo, dizer da suave emoção que

lhe banhava o espírito, suplicar a dilação daquela hora gloriosa do caminho

eterno, mas não conseguiu articular palavra. As lágrimas ardentes, porém, que

lhe rolavam dos olhos qual lúcido colar de pérolas divinas, diziam bem alto da

sua comoção indefinível. Olhar fixo em Alcione, qual agonizante na Terra que

desejasse guardar para sempre o quadro mais querido, cerrou as pálpebras

cansadas e rendeu-se ao grande sono.

Foi aí que os mensageiros do Cristo se aproximaram da comovida jovem,

que lhes entregou o bem-amado com profundo desvêlo, falando-lhes

brandamente:

— Irmãos, não esqueçais de que vos confio um tesouro!...

Em seguida, tomou sua roupagem de luz e afastou-se da paisagem

nevoenta, dando a impressão de uma estrêla solitária que regressava ao

paraíso.

Pouco depois, ei-la que aporta em portentosa esfera, inconfundível em

magnificência e grandeza. O espetáculo maravilhoso de suas perspectivas ex14

cedia a tudo que pudesse caracterizar a beleza no sentido humano. A sagrada

visão do conjunto permanecia muito além da famosa cidade dos santos,

idealizada pelos pensadores do Cristianismo. Três sóis rutilantes despejavam

no solo arminhoso oceanos de luz inirífica, em cambiâncias inéditas, como

lampadários celestes acesos para edênico festim de gênios imortais.

Primorosas construções, engalanadas de flores indescritiveis, tomavam a

forma de castelos talhados em filigrana dourada, com irradiações de efeitos

policromos. Sêres alados iam e vinham, obedecendo a objetivos santificados,

num trabalho de natureza superior, inacessível à compreensão dos terrícolas.

Alcione penetrou num templo de majestosas proporções, dominada por

pensamentos intraduzíveis. Muito acima da nave radiosa, elevava-se uma tôrre

translúcida, trabalhada em substância sólida e transparente, semelhante ao

cristal, de cujo interior jorravam melodias harmoniosas.

O santuário augusto era uma vasta colmeia de trabalho e oração.

Alcione passou por companheiros muito amados, atravessou

compartimentos repletos de luz nitente e, aproximando-se de Antênio — a

entidade angelical que, por sua excelsa posição hierárquica, ali cumpria as

ordenações de Jesus, falou com humildade:

— Anjo amigo, deliberei suplicar ao Senhor a permissão de voltar

temporariamente às tarefas terrenas.

— Como assim? — inquiriu Antênio admirado —. acaso todos nós

permanecemos aqui impossibilitados de auxiliar o planêta terreno? Não

estamos a serviço do Cristo, no afã espiritual de reerguer êsse orbe?

— Explico-me — disse a recém-chegada timidamente —: rogo a concessão

de um corpo carnal, caso Jesus me conceda essa dádiva.

O generoso mentor contemplou-a com amoroso respeito, compreendeu-lhe

as intenções mais íntimas, esboçou um sorriso de bondade e perguntou:

— Mas, teus trabalhos no sistema de Sírius? Não estás cooperando com os

benfeitores da Arte terreal? Acredito não vir longe a época de serem levados

ao mundo terreno os necessários elementos de inspiração, depois do resultado

de tantos esforços para a solução de certos problemas do ritmo e da harmonia.

— Se possível — acrescentou a jovem com emoção — desejaria

interromper essas pesquisas que me falam gratamente à alma, para retomá-las

no porvir.

— Mas, Alcione — obtemperou o orientador dando fôrça às palavras —,

porque um novo e arriscado compromisso? Compreendo as razões que interferem

na tua súplica; entretanto, pondero que podes trabalhar aqui mesmo, a

favor daqueles a quem amas, encorajando-os e assistindo-os da esfera em que

te encontras.

— Confesso-te, porém, bondoso Antênio, que profundas saudades me

lancinam rudemente o coração. Será condenável o desejo firme de alcançar a

felicidade através das renúncias do amor e nos propósitos de semear o bem?

Perdoa-me se a presente rogativa causa estranheza à tua alma carinhosa, que

tanto me tem amado no glorioso caminho para Deus. Releva-a, recordando que

o próprio Jesus teve saudade de Lázaro e, ainda agora, na majestade da sua

glória divina, experimenta cuidados pelos discípulos caídos, que padecem e

choram!...

A bondosa e sábia entidade ouviu-a comovida, em afetuoso silêncio.

— Além disso — prosseguiu mais animada —não desejo regressar à forma

estruturada em poeira, tão sômente para seguir o amado Pólux, a quem me

15

permitiste advertir e consolar. Quase todos os meus companheiros bemamados,

no esfôrço evolutivo de outras eras, estão atualmente no Planêta,

mas, em sua generalidade, envenenados por conseqüências sinistras de

oportunidades menosprezadas e perdidas. As vêzes, suas queixas dolorosas e

aflitivas me repercutem penosamente nalma, ouço-lhes as preces ansiosas e

nossos cooperadores nos fluidos pesados do orbe me enviam mensagens que

são verdadeiros brados de socorro, aos quais não pOSSO ficar insensível, por

mais que me procure confugir à perfeita confiança no Todo-Poderoso.

— Sim — atalhou Antênio, sensibilizado —, conheço os teus motivos

sacrossantos.

E, como quem desejava ministrar todos os esclarecimentos possíveis ao

seu alcance, continuou:

— Apesar de nossos bons desejos, querida Alcione, não creio que Pólux

obtenha desta vez o êxito imprescindível. Seu esfôrço de agora será uma

experiência proveitosa, mas, possivelmente, ainda não logrará a coroa da vida.

Embora a dedicação que me compele a falar-te em têrmos tão sinceros, devo

acrescentar que essa é a verdade clara aos nossos olhos. Entretanto, também

sei que outros velhos amigos teus caíram em tenebrosos desvios de

impiedade, traindo sagradas obrigações. Os que te foram pais, algumas vêzes,

perderam-se na embriaguez da autoridade e nas fantasias da fortuna; os que te

foram irmãos e familiares tombaram vencidos no despotismo e na desvairada

ambição. E o mais lamentável é que se complicaram mütuamente, alimentando

a fornalha do ódio com a lenha do egoísmo, carbonizando intenções generosas

e anulando estrênuos esforços de quantos os auxiliam com abnegação e

nobreza. Nenhum cedeu em caprichos, ninguém perdoou nem esqueceu o mal.

As ervas daninhas invadiram o campo de tuas esperanças divinas. Teus

compromissos com o Senhor sofrem pesadas ameaças. Justifico, dêsse modo,

as tuas razões, embora não possa aplaudir a extensão dos sacrifícios que pretendes

fazer.

A jovem demonstrou, no olhar, sincero reconhecimento por semelhantes

palavras de compreensão e exclamou:

— Anjo amigo, tenho tanto desejo de acariciar aquela que me foi mãe

desvelada em outros tempos!... Não será justo procurar assistir aos que,

noutras eras, me auxiliaram a penetrar as sendas da redenção?

— Ouve, porém, Alcione observou Antênio solenemente —, tuas rogativas

são louváveis e tuas aspirações são mais que justas; mas, assim como te

aconselhei advertir Pólux, devo também exortar-te por minha vez. Deves saber

o volume dos trabalhos e responsabilidades que solicitas do Mestre.

— Sim, replicou a jovem sem hesitação, estou disposta a procurar minhas

dracmas perdidas, se mo permitires em nome do Senhor.

—Já ponderaste nos obstáculos imensos? Lembra que o próprio Jesus,

penetrando na região terrena, foi compelido a se aniquilar em sacrifícios

pungentes. Recorda que as leis planetárias não afetam sômente os espíritos

em aprendizado ou reparação, mas, também, os missionários da mais elevada

estirpe. Experimentarás, igualmente, o olvido transitório e, embora não tanto

agravados em virtude das tuas conquistas, sentirás o mesmo desejo de

compreensão e a mesma sêde de afeto que palpitam nos outros mortais. Para

esclarecimento dêsses problemas, minha querida, o Mestre deixou à

comunidade dos discípulos profundos ensinamentos no Evangelho. O mundo,

representado por maus sacerdotes e falsos doutores, buscou tentar o próprio

16

Jesus. Já meditaste na tua aproximação de Pólux, investida num corpo de

carne? Sabemos que Pólux parte com deveres de suma importância, em

função de coletividade; e tu te sentes preparada para neutralizar a poderosa lei

da atração das almas? Não o digo no sentido de preocupações subalternas,

mas ponderando a grandeza dos teus sentimentos afetivos, em relação à

grandeza mais sublime das obrigações assumidas para com Deus. Terás

ânimo para lhe ouvir no mundo os rogos amorosos, mantendo-o no seu pôsto,

incólume e sobranceiro à solidão de si mesmo? Sem dúvida, a lei terrestre te

encherá de desejos e te induzirá a considerar a possibilidade de proporcionarlhe

filhos afetuosos, em obediência aos seus princípios naturais. Além disso,

teus afetos de outras épocas, como, por exemplo, os que te foram pais

amorosos, receberão a palma de lutas ásperas e agudas provações. A senda

de quase todos os teus amigos está semeada de espinhos, que êles próprios

plantaram no seu desapêgo à misericórdia do Todo-Poderoso. Sentes-te

bastante forte para assumir tão grave compromisso? Conheço numerosos

irmãos que, depois de pedirem missões arriscadas como esta, voltaram

onerados de mil problemas a resolver, retardando assim preciosas aquisições.

— Conheço a gravidade da minha decisão —esclareceu a jovem com

muita humildade — mas, sabendo-me fraca pelo muito que amo, espero que o

Senhor me fortaleça nos dias de sombra e aflição. Pela cruz que sua

magnanimidade aceitou em nosso benefício na Terra, rendo-me à sua augusta

vontade, mantendo, contudo, minha sincera rogativa!...

Antênio contemplou-a tomado de nobre admiração e sentenciou:

— Louvo os teus propósitos firmes e sei que tua poderosa confiança no Cristo

é penhor sagrado de vitória; mas, devo ainda lembrar-te que a situação terrena

dos que se propÕem ao serviço legítimo da virtude — ainda e sempre — é

inçada de sofrimentos atrozes. Não desconheces que, nessas missões

sublimes, a criatura disputa o direito de acompanhar o Mestre em seus passos

divinos, O discípulo da verdade e do amor, no mundo, é alguma coisa de Jesus

e de Deus, e a massa vulgar não lhe perdoa tal condição, sobrecarregando-o

de pesados amargores, porque seus sentimentos não são análogos àqueles

que a conduzem a incoerências e desatinos. Não poderá haver acôrdo entre a

virtude e o pecado. E como o pecado ainda domina o mundo, a tarefa

apostólica em seus trâmites será sempre um doloroso espetáculo de sacrifício

para as almas comuns. Todos os que seguiram Jesus foram obrigados a

identificar o destino com o sinal do martírio. Os que se não desprendem da

Terra, crucificados nas dores públicas, retiram-se ao desamparo, esmagados

pelos opróbrios humanos, caluniados, humilhados, encarcerados, feridos.

Raros triunfaram conservando a serenidade e o amor imaculado, até ao fim!...

Ponderaste semelhantes experiências em que tua alma peregrinará por algum

tempo, retalhada de angústias!...

Sim, querido amigo, refleti em tudo isso e estou resolvida ao

testemunho, por mais cruel que seja o meu roteiro.

— Venturosa serás se puderes aceitar o sofrimento na Terra, dentro dêsse

conceito — exclamou o mentor com grande tranqüilidade. — O homem comum,

nos seus interêsses mesquinhos, não considera a dor senão como resgate e

pagamento, desconhecendo o gôzo de padecer por cooperar sincera-mente na

edificação do Reino do Cristo.

— Jesus, que vê o meu coração, ensinar-me-áa transformar a tortura em

cântico de graças e me auxiliará a esquecer as cogitações menos dignas, de

17

que me possam cercar os espíritos vulgares, relativamente ao trabalho porfiado

e difícil da redenção e do engrandecimento da vida.

Antênio comoveu-se profundamente em face de tão valorosa resolução e

respondeu, afinal:

— Pois bem, já que te firmas em propósitos tão altos e guardas todos os

preceitos justos e imprescindíveis à situação, permito o teu regresso àTerra,

em nome do Senhor.

Alcione transbordava de júbilo santo. A suave emoção daquela hora abrialhe

portas resplandecentes de esperança e alegria inexcedíveis.

— Considerando — disse o amoroso instrutor — que partirás não mais

ocasionalmente e sim para uma transformação sacrificial, que exigirá muito

trabalho e renúncia, ficas desde já desligada de tuas obrigações nesta esfera, a

fim de te adaptares, vencendo as situações adversas das regiões inferiores que

nos separam do mundo, no que, pressinto-o, deverás gastar quase dez anos

terrestres.

Alcione, vertendo lágrimas de alegria e gratidão, aproximou-se, tomou a

destra de Antênio e murmurou:

— Deus te recompense!...

— Que a sua misericórdia te abençoe! — exclamou o instrutor acariciandolhe

os cabelos. —Seguir-te-ei daqui com as minhas preces e esperar-te-ei

confiante na vitória futura!.

A criatura amada de Pólux ainda se conservou no templo, até ao fim do dia.

Ao crepúsculo, quando se despediam no espaço os raios dos três sóis

diferentes, em deslumbramento de côres, Alcione reuniu-se a numeroso grupo

de amigos e orou com fervor, suplicando as bênçãos do Pai misericordioso.

O firmamento enchia-se de claridades policrômicas e deslumbrantes.

Satélites de prodigiosa beleza começavam a surgir na imensidade, envolvendo

a paisagem divina num oceano de luz.

A carinhosa benfeitora osculou a fronte dos companheiros de serviço divino

e partiu...

Daí a instantes, chegava ao templo pequena caravana de entidades

jubilosas. Era a reduzida expedição que operava nas esferas de Sírius. Um dos

seus componentes, depois de fitar a vastidão do céu, entrou no templo e

dirigiu-se a Antênio, interrogando:

— Quem é o viajor que vai seguindo na direção das Faixas Negras?

— É Alcione, que se propôs novo trabalho entre os espíritos encarnados na

Terra.

— Que dizes? — indagou tomado de espanto

— Alcione beberá novamente o cálice amargo de tamanha renúncia?

— São os sacrifícios do amor, meu filho! —respondeu o preposto do

Cristo, evidenciando compreensão e serenidade. — Só o amor poderia compeli-

la a permanecer ausente do nosso Amado Lar.

Então, saíram todos para o jardim resplendente que rodeava o santuário, e,

contemplando a figura luminosa que se afastava rumo às zonas obscuras,

enviaram à abnegada companheira, que partia para tão longa e perigosa

viagem, seus votos de confiança e amor, em preces sinceras.

18

2

Anseios da mocidade

No dia 7 de junho de 1662, Paris em pêso não comentava outro assunto

senão as esplêndidas festas populares do Carrousel, que Luís 14 havia

improvisado em frente às Tulherias. Dizia-se que o rei estava perdidamente

apaixonado por Louise de La Valliêre, e a festividade não obedecera a outro

motivo senão homenagear a favorita, não obstante a reserva com que ambos

se entregavam ao culto das relações afetivas.

As duas noites precedentes haviam assinalado ruidosas alegrias populares

e animadas reuniões elegantes nos salões mais ricos da Côrte. Grande massa

de forasteiros invadia os hotéis, principalmente as famílias abastadas

procedentes do Norte e das cidades vizinhas, atraidas pelo espetáculo inédito

do grande feito.

Dizia-se que o soberano mostrava-se agora mais acessível e generoso.

Paris estava farta de guerras externas e recordava-se, com temor, das

gigantescas lutas internas pelas atividades da Fronda. Terminara o período de

influência do Cardeal Mazarini e o espírito popular banhava-se nos boatos de

elevadas perspectivas e supremas esperanças. A cidade inteira aguardava,

ansiosamente, largos benefícios públicos e novas instituições.

Na tarde dêsse dia, compartilhando a alegria geral, dois jovens passeavam

de carro, nas imediações da Porta de São Dinis, entre os enormes movimentos

da antiga Ville, comentando as deliciosas emoções da véspera.

A viatura, muito leve, seguia harmoniosamente o trote de soberbo cavalo

normando, cujas rédeas eram manejadas com mestria por Cirilo Davenport,

tendo ao lado a jovem Susana Duchesne, sua prima, graciosamente trajada ao

sabor da época. O pequeno veículo tinha o interior ornado de soberbas

azáleas, colhidas pela jovem num jardim de Montmartre. O jovem par havia

empreendido a excursão desde o meio-dia. Susana visitara duas famílias

importantes, de suas relações, buscando rever antigas amizades. Entregara-se

às mais alegres expansões junto do primo, que, embora correspondesse

fraternalmente às suas manifestações afetivas, denotava agora preocupação

inabitual, enquanto a jovem tagarelava, obedecendo aos costumes e caprichos

de futilidade de todos os tempos:

— Não concordei com os adornos escolhidos para os salões de Madame

de Choisy. A festa perdeu muito com aquêles enfeites coloridos e esvoaçantes.

— Não reparei bem — respondeu Cirilo, mergulhado noutras reflexões.

— Fiquei cansadíssima de tanto ouvir confabulações atinentes à vida

alheia. Sou avêssa à maledicência, mas, como sempre acontece, não podemos

ficar indiferentes aos eventos do ambiente social. Por isso mesmo, estou

ansiosa de regressar à nossa paz de Blois.

E como o primo não respondesse, muito vivaz e palradora, continuou:

— Já sabes como se processou a aventura amorosa do rei?

— Não.

— Luís (1) não havia destacado a humilde descendente dos Le Blanc

entre as mulheres que freqüentam a Côrte, mas o fato é que começou a

dispensar muitas simpatias a Henriqueta (2). Iniciaram-se os idílios carinhosos,

mas a cunhada tratou de salvaguardar, quanto antes, a sua reputação de

honestidade e começou a encontrar-se com o rei em companhia de

Mademoiselle de La Valliêre, que era, então, do grupo de damas do seu

19

séquito. Dêsse modo, afastava qualquer suspeita direta. Contra qualquer

impressão menos digna, poder-se-ia dizer que Luís lhe freqüentava o ambiente

doméstico, não com o propósito de avistá-la, mas para encontrar-se com a

pobre menina. Foi nesse jôgo que apareceu a mortificante situação que Henriqueta

não poderia esperar.

Depois de breve gargalhada irônica, Susana rematava o comentário

impiedoso:

Luís apaixonou-se desvairadamente e temos agora o escândalo, que

constitui o prato do dia para a voracidade das más línguas. Não conheces

todos êsses detalhes, porventura?

— Ah! — exclamou o jovem Davenport revelando propósito de modificar os

rumos da conversação — o que não ignoro é que o soberano é casado com a

rainhã.

— Ora! ora! — a pobre dona do cetro é apenas uma vítima da política

espanhola.

Observando, todavia, que o rapaz se calava, Susana timbrou outra tecla

das críticas sociais para chamar-lhe a atenção, dizendo:

— Reparaste a Henriqueta lá no baile? As suas convidadas estavam

escandalosamente vestidas...

O moço fêz um gesto de enfado e replicou:

— Quase não me detive no exame dos trajes.

(1) Luis XIV.

(2) Henriqueta Anna, de Inglaterra. — Nota de Emmanuel.

— Entretanto dançaste todos os números.

Renovando a apreciação acerada, prosseguiu:

— Henriqueta coloca em dificuldade a todos nós que temos alguma ligação

com as ilhas. O que posso afirmar é que seu temperamento seria outro, se

tivesse alguns princípios da educação irlandesa.

— Mas a pobre princesa muito sofreu na infância — atalhou Cirilo

advogando-lhe a causa.

— Essa circunstância, contudo, não deveria ser uma razão para conduzi-la

a tantas leviandades. Julgo que o sofrimento deve servir para temperar o

caráter de outro modo...

— Todavia — observou o rapaz —, ela é atualmente casada. A análise de

suas atitudes deve ser tarefa privativa do marido.

— Ora essa! E supões, acaso, que Monsieur Filipe (1) está aparelhado

para impor-lhe a educação espiritual de que precisa?

— Quem sabe?

Esta resposta, dada em tom de profundo desinterêsse, desautorizava

qualquer discussão nesse particular. Reconhecendo-o, Susana fêz longa pausa

e absteve-se de novos comentários.

A elegante viatura voltou do seu longo trajeto, dirigiu-se para a rua

Barillerie, na Ilha, onde estacionou por minutos à frente de uma casa comercial,

e depois tomou rumo da antiga rua de São Dinis, levada ao trote do magnífico

animal.

Decorrido algum tempo, a moça retomou a palavra, dando conta da sua

inquietação feminina:

— Não desejarias ir conosco, mais logo, ao Teatro de Petit-Bourbon?

20

— Não, não; hoje não me sinto disposto a aderir ao programa do sr.

Moliêre.

A carruagem aproximara-se da velha ponte de São Miguel, sôbre um braço

do Sena.

(1) Filipe de Orléans, irmão de Luis XIV. —Nota de Emmanuel.

O crepúsculo ia um tanto adiantado, mas estava embalsamado de

perfumes primaveris. Ventos suaves farfalhavam a copa florida de duas

grandes árvores próximas. Impressionado, talvez, com a sugestiva beleza da

tarde que se vestia no imenso anil do céu, o jovem Davenport fitou a

companheira com expressão diferente, e falou:

— Susana, tenho a alma de tal modo repleta de sensações ignoradas para

mim, que muito desejaria abrir o coração a quem me compreendesse. Não

quero, porém, comentar os assuntos da Côrte nem do Teatro. Necessito de

palestra espiritual, que traduza o que sinto, encontrando quem me entenda.

Que me interessa o desvio do rei ou a comédia que conquista a atenção dos

mais fúteis?

A companheira ruborizou-se. Apertou, disfarçadamente o seio, onde o

coração batia descompassado. Há quanto tempo esperava aquêle minuto

adorável, que lhe permitisse examinar com Cirilo a intensidade do seu afeto?

De muito cedo habituara-se a admirá-lo como a personagem dos seus sonhos

de mulher, e não era segrêdo, em família, o projeto de uma união pelos elos

conjugais. Ambos haviam nascido na Irlanda, mas sua mãe, que era francesa,

obrigara o genitor a transferir-se para o país de origem, havia muitos anos.

Susana, porém, nunca perdera o contato com a terra do seu berço. Não

obstante as dificuldades naturais da época, visitava, periodicamente, a terra

que a vira nascer.

Acabava de atingir os vinte anos, enquanto Cirilo orçava pelos vinte e

cinco. Não seria, então, o momento azado para realizar o sublime ideal? É

verdade que sempre aguardara, ansiosamente, do primo as primeiras

declarações de amor, a fim de entreter, com mais segura esperança, os seus

deliciosos projetos de ventura. Cirilo, todavia, jamais se manifestara a tal

respeito. Ela sabia, contudo, justificar-lhe as reservas expansivas, pelas singularidades

de temperamento que o caracterizavam. Embora jovial e sincero,

enérgico e impulsivo, era muito discreto nas questões da palavra. Raramente

prometia, porque, após o compromisso, materializava as declarações fôsse

como fôsse, pelo mal ou pelo bem.

Susana passou em revista tôdas as conjeturas e julgou-se dona de uma

situação favorável. Aliás, estava certa de que o primo, após desligar-se dos

serviços que o retinham na Sorbone, demandaria a Irlanda, onde a família o

aguardava cheia de esperança, para os enormes trabalhos da propriedade

rural, de que seus pais e irmãos se mantinham.

De olhos fulgurantes, a jovem respondeu entre satisfeita e comovida:

— Acaso poderias supor que te não compreendo? Fala, Cirilo!... Não

desejarias gozar um pouco desta amenidade vespertina? Paremos o carro.

Sentemo-nos ali perto da ponte, alguns minutos, vendo deslizar as águas

mansas...

O rapaz obedeceu sorridente e satisfeito. Abrigou a carruagem num pôsto

próximo e, dando o braço à companheira graciosa, dirigiu-se para os bancos de

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pedra que se localizavam nas extremidades da construção muito antiga. Tinha

os olhos escuros mergulhados numa onda de paixão dominadora.

— Susana — disse tomando-lhe a destra em atitude fraternal, como quem

busca um refúgio -, nunca experimentei no coração o que sinto agora. Minha

alma está cheia de sonhos e esperanças sublimes. Ah! o amor é o generoso

vinho da vida!...

A jovem fizera-se muito pálida. Deveria ser aquêle o minuto decisivo do seu

destino. Certamente, Cirilo lhe revelaria os propósitos mais íntimos, falaria do

sonho dourado de suas esperanças de moça. Casar-se-iam muito breve...

Buscariam a felicidade, abandonariam a França pela Irlanda, a fim de

cultivarem a ventura conjugal no âmbito de cariciosas tradições familiares.

Mergulhada em formosas visões, seus olhos brilhavam de intenso júbilo,

enquanto o jovem Davenport continuava:

— Edificar um ninho doméstico, ter filhos que nos acariciem e garantam a

ventura, não será o ideal mais nobre da vida?

Susana Duchesne apertou-lhe a mão com mais carinho, desejou, com

ânsia, enlaçar-lhe o busto no impulso de sua afeição desvairada, beijar-lhe repetidamente

a formosa cabeleira. Sentia-se estonteada de alegria e de

esperança, mas ainda não havia acordado de sua visão fantástica, quando êle

perguntou, fraternalmente, depois de uma pausa mais longa:

— No entanto, dar-se-á que ela me corresponda com igual paixão?

Ela? A pergunta vibrou estranhamente aos ouvidos da jovem, que se

esforçou por dominar as primeiras impressões de assombro. Outra mulher,

então, disputava com ela o mesmo sonho de amor? Monstruoso ciúme

corrompeu-lhe as emoções mais gratas. O coração fechara-se-lhe de súbito.

Não suportaria semelhante afronta. Lutaria pela posse de Cirilo, até ao crime

ou até à morte. Para isso, seguira-lhe os passos como sentinela fiel, desde a

infância, e, aos seus olhos, o titulo de espôsa deveria pertencer-lhe como

patrimônio inconteste. Verificando, contudo, que o primo observava com

estranheza a demora da resposta, cobrou alento em situação tão difícil e

replicou:

Ela? Ignoro a quem te referes, querido. Explica melhor para que te possa

compreender.

— Madalena Vilamil — esclareceu o rapaz, arroubadamente.

Ah! agora tinha na modulação daquelas duas palavras a chave da questão que

se lhe figurava aos olhos um profundo enigma. Identificara a grande e natural

inimiga. Não lhe perdoaria nunca. Subjugada por enorme desespêro íntimo,

recordava que fôra ela própria quem apresentara ao primo a jovem amiga, em

vésperas das famosas festividades parisienses. Notou que ambos haviam

demonstrado recíproco interêsse; que, desde então, palestravam

animadamente em tôdas as oportunidades e, contudo, jamais pudera imaginar

a possibilidade de uma aproximação afetiva de tamanhas conseqüências.

Sômente aí percebeu o interêsse de Cirilo pela companhia de Madalena, nos

bailados da véspera. Tinha a impressão de ainda a estar vendo com aquela

atraente fantasia espanhola, que chamara a atenção de pessoas eminentes da

Côrte. No quadro da imaginação superexcitada, não mais a considerava

associada fraternal de passeios e diversões, mas adversária perigosa que urgia

afastar do caminho... Conhecera-a numa visita que Madalena fizera, em

companhia do pai, velho fidalgo espanhol arruinado, ao formoso e tradicional

palácio da antiga Côrte francesa, em Blois. Simpatizara com os seus dotes de

22

inteligência e com as maneiras simples que lhe assinalavam as atitudes; e seu

genitor, Jaques Duchesne Davenport, manifestara pela jovem espontânea

admiração e sincera amizade. Não sômente pelas afinidades naturais, mas

também no intuito de agradar o coração paterno, dedicado e carinhoso, Susana

afeiçoara-se a Madalena com singular interêsse. Ela e sua irmã Carolina, nas

constantes viagens a Paris, visitavam-na freqüentemente em sua residência de

Santo Honorato, e sentiam prazer na sua companhia alegre e inteligente.

Desde aquêle instante, porém, a moça Vilamil estava condenada à sua aversão

cruel. A amizade nobre convertia-se em ódio instantâneo e perigoso. É verdade

que Madalena não podia saber das cogitações do seu íntimo, mas Susana não

conseguia deter a onda de pensamentos ultrizes que, num instante, lhe

invadiam a mente, apossando-se impiedosamente do seu coração.

Não toleraria tal preferência do primo, mesmo porque lhe doía na alma

como insulto feroz.

— Recordas, acaso, daquela derradeira melodia aragonesa que

Mademoiselle Vilamil executou ao cravo com tanta graça? — perguntou o

jovem, alimentando as próprias reminiscências.

Excessivamente pálida, esforçando-se por disfarçar a intensa emoção que

a dominava, a moça fixou em Cirilo o olhar enérgico, orgulhoso e replicou:

— Mas isso é infantilidade da tua parte. Francamente, sempre considerei

refinado o teu senso artístico; Madalena, de maneira alguma, pode

corresponder às exigências do teu nome e da tua posição.

— Exigências do nome? — respondeu o rapaz mostrando-se agitado.

Julgas, então, que me case em obediência aos outros, em desacôrdo com as

minhas inclinações?

— Não é bem isso — retrucou a moça compreendendo a firmeza de

resolução que defrontava —; não quero dizer que ela desmereça inclinações

afetuosas; mas não concordo que seja a criatura indicada a tomar-te a mão de

espôso.

— Por quê? — perguntou o jovem, mal-humorado.

— Desejarias, porventura, que te aprovassem o casamento com uma

pobretona espanhola, nascida nos confins de Granada?

— E se alguém afirmasse que somos irlandeses dos confins de Belfast,

seríamos por isso menos respeitáveis?

Susana mordeu os lábios, revelando cólera profunda e respondeu:

— Cirilo, onde colocas o altar sagrado da família? Que há para te mostrares

tão desinteressado em face de nossas tradições familiares? Apresentei-te

Madalena, há poucos dias, mas não podia acreditar se engendrassem em teu

espírito laços tão perigosos e detestáveis. Adotei-a como amiga íntima, em

vista da profunda simpatia do papai, a quem nunca cessarei de agradar, em

obediência ao amor e gratidão que lhe consagro. Nossas afinidades, no

entanto, não vão além disso, porqüanto não lhe reconheço qualquer destaque

justo para o quadro de nossas relações. Como afirmei, trata-se de uma

predileção de papai e...

Mas não terminou, porque o rapaz, emitindo um olhar mais duro, cortou-lhe

a palavra nestes têrmos:

— Não acuses, Susana. Sempre atendi a meu tio, antes que a meus

próprios pais. Conheço-lhe o bom senso e não posso permitir...

Desta vez, no entanto, foi a jovem que, ponderando a inconveniência da

discussão acalorada, aproveitou-se da pausa espontânea, sentenciando

23

contrafeita:

— Ora, Cirilo, acalma-te. A irritação impede qualquer entendimento mútuo.

Fixou-o com disfarçada angústia. Agora que sentia tão profundamente

ameaçados os seus sonhos de felicidade, achava-o mais belo que nunca. Em

outras ocasiões, conservava a esperança, mas não experimentava tantos

zelos. Não era Cirilo o seu ideal? Que poderosa atração a retinha encarcerada

no seu sonho de ventura, sem energias para renunciar a favor da outra que lhe

ocupava o coração sincero? Sentiu que forte emoção lhe afetava as fibras mais

íntimas e com dificuldade afogava o pranto no peito opresso, receando chorar

diante do primo engolfado em graves pensamentos.

— Cirilo — disse com entono mais delicado na voz —, não te agastes

comigo. Quero auxiliar-te fraternalmente.

O rapaz comoveu-se com a mudança súbita e respondeu:

— Sim, conto com a tua boa vontade de sempre. Ajuda-me a refletir.

Necessito orientar e fortalecer meu espírito.

— Não posso dizer que esteja absolutamente certa nas minhas

apreciações — exclamou fundamente modificada em sua primeira atitude —,

mas precisarás refletir com mais calma, O pai de Madalena é um nobre

espanhol arruinado, que se incompatibilizou com os elementos mais influentes

da Côrte de França. Aqui está, em Paris, há muito tempo, em sérias

dificuldades financeiras, não obstante ter vindo no séquito da rainha.

— Já conheço D. Inácio Ortegas Vilamil —esclareceu o rapaz, solicito —;

estivemos juntos no Carrousel anteontem, à noite. Não duvido que se trate de

um homem pobre, mas é bastante simpático e portador de temperamento

expansivo, que me agradou muitíssimo.

— Mas é um fidalgo sem fortuna, cuja situação é francamente condenável,

pois perdeu-a nas dissipações da vaidade e do jôgo, segundo consta em

nossas rodas mais íntimas.

— Quanto a isso, precisamos ampliar nossa compreensão da vida —

obtemperou o rapaz convictamente. — Meu pai, como não ignoras, não fêz

excessos nem arriscou dinheiro em aventuras; entretanto, conta hoje com

reduzidíssimos recursos, devido a perseguições religiosas desencadeadas na

Irlanda.

Susana compreendeu que tôda argumentação naquele momento lhe

desfavorecia as pretensões e propósitos mais ardentes.

— D. Inácio — acrescentou com velada ironia — não poderia nem mesmo

cogitar da concessão de um dote à filha...

— Nunca me casarei visando a um dote, Susana!...

A moça escondia a muito custo o seu rancor, mas ponderou ainda:

— Pois trata-se de questão muito importante, e talvez venha a ser por isso

mesmo que Madalena recuse aceder aos teus caprichos juvenis...

— Como assim? — interrogou, impressionado pela maneira como foram

pronunciadas tais palavras.

— Talvez ignores — disse ela resoluta, como quem guarda os trunfos do

jôgo para o fim — que a tua eleita está prometida, por decisão dos pais, ao seu

primo Antero de Oviedo Vilamil, que cresceu a seu lado, como irmão.

Desta vez foi Cirilo a esboçar atitude de entranhado assombro. Sem poder

dominar-se, profundo rancor se apossou dêle. O ciúme que devastava a jovem

Duchesne apuava-ihe agora o coração.

— Será crível? — perguntou lívido.

24

— Sim — disse a moça, gozando com a sua amargura íntima —, D. Inácio,

dizem, há quase dois anos vive à custa do rapaz, que não se entregou a tal

sacrifício sem um propósito deliberado. É sabido que a prima constitui o seu

sonho de amor, não obstante Madalena pareça insensível a êsse afeto, O fato

incontestável, todavia, é que a família Vilamil está totalmente empenhada

nesse débito de graves proporções.

Cirilo Davenport submergiu-se num mar de reflexões profundas. Não

cederia a qualquer obstáculo. Madalena lhe tocara o coração como nenhuma

outra mulher. Guardava nos ouvidos o som das suas últimas palavras. Aspirava

ainda o perfume da sua mão muito leve, entre as harmoniosas vibrações do

último bailado. Ouvia, enlevado, as músicas aragonesas que ela havia

dedilhado no cravo, ainda na véspera. Seus sentimentos mergulhavam na

mesma ansiedade experimentada ao ouvi-la falar da Espanha distante. Os

temas castelhanos jamais o haviam preocupado a qualquer tempo e, no entanto,

aquela afeição imensa despertava-lhe interêsses novos, abrasava-lhe a

alma, qual vulcão ardente. Estava convicto de que Madalena fôra igualmente

sensível ao seu amor. Apertara-lhe a mão, apaixonadamente, nos bailados.

Seus olhos fulgiam de sublime afeto. Onde estava êle, que não houvesse de

lutar com o rival até nos confins da Terra? Era indispensável afastar Antero de

Oviedo a qualquer preço. Sua presença tornava-se indesejável no caminho. De

olhos fixos no espaço, desvairado pela emoção que o dominava, o jovem

Davenport parecia não mais ver a prima ao lado, nem mesmo a beleza

silenciosa do crepúsculo, que se despedia com o fulgir das primeiras estrêlas.

— Não desistirei! — bradou em voz alta, como se dialogasse com uma

sombra importuna.

Ouvindo-lhe a exclamação estranha e inesperada, Susana experimentou

intenso choque. Aquela sentença, em voz estridente, assustou-a. Tomou-se de

justificado receio e exclamou:

— Vamos, Cirilo. É noite quase fechada e esperam-me para o espetáculo.

O moço Davenport, seguido da jovem que lhe acompanhava o profundo

silêncio, procurou o veículo, tomou as rédeas quase maquinalmente e deu o

sinal de partir. Susana atirou ao solo algumas azáleas murchas, em atitude de

enfado e, enquanto ambos se engolfavam em penoso mutismo, a viatura rodou

cêleremente na direção de uma casa residencial de nobre aspecto, em frente

da ponte do Câmbio, onde a prima se hospedava.

Em vão, a jovem Duchesne insistiu para que Cirilo fôsse ao teatro; debalde

rogou que a acompanhasse até ao interior doméstico. Ele recusou todos os

convites afetuosos e, imprimindo ao carro nova direção, seguiu a galope para o

seu hotel em São Germano.

De quando em quando o chicote estalava no dorso do belo animal que,

então, parecia sofrer a mesma inquietação do dono.

Depois de recolher o veículo a enorme galpão destinado às carruagens da

época e conduzir o cavalo à estrebaria próxima, Cirilo Davenport, sufocado por

angustiosos pensamentos, saiu à rua, ansioso por banhar a fronte atormentada

nos carinhosos ventos da noite. Atravessou ruas e praças engolfado em vastas

meditações, alheio ao grande movimento de pedestres e viaturas ao longo dos

caminhos. Não se deteve senão no mundo íntimo, inquieto por conchavar e

resolver os problemas torturantes.

Chegara à conclusão de que a existência se lhe transformaria em breve

tempo. Não podia suportar, sem graves danos, a continuidade das estroinices

25

da juventude, e o conhecimento de Mademoiselle Vilamil induzia-o a pensar

sêriamente no matrimônio. No entanto, como encontrar a equação justa?

Depois de certo período de estudos em Paris, prosseguia em serviço na

Sorbone, onde a sua remuneração era regular, sem contudo permitir quaisquer

perspectivas de futuro financeiro. Seu pai, Samuel Davenport, chamara-o mais

de uma vez, aguardando-lhe a presença na Irlanda do norte, onde possuía

valiosa propriedade rural, apesar dos golpes sofridos. Como resolver a

situação? Deveria casar e partir para as ilhas, ou visitar antes o lar paterno,

para consorciar-se depois? Na primeira hipótese, sua atitude poderia ocasionar

sérios atritos com a família; na segunda, o intruso Antero poderia sair vencedor

e anular-lhe os planos de felicidade. Recordou a simpática figura do tio, que

sempre lhe entendera e amparara o coração, nos momentos difíceis, e

considerou a possibilidade de ir a Blois, a fim de ouvi-lo. Concluiu consigo

mesmo que, tendo combinado com Madalena um encontro junto à igreja de

Nossa Senhora, na noite seguinte, faria a viagem logo após o novo

entendimento com a jovem, que lhe enchera o coração de sonhos miríficos.

Após atravessar imenso labirinto de reflexões, voltou ao hotel, muito depois

da meia noite, recolhendo-se ao quarto extremamente nervoso, só conseguindo

dormir alta madrugada.

No dia seguinte, atirou-se ao trabalho comum, de alma inquieta,

pensamento voltado para a noite, quando teria o júbilo de rever a bem-amada e

renovar as doces emoções do espírito.

Muito antes da hora marcada, Cirilo postava-se à frente da majestosa catedral,

andando de um lado para outro. A fim de evitar a curiosidade de transeuntes

audaciosos, penetrou no santuário, em cujo interior magnífico permaneceu por

instantes. Seus olhos eram indiferentes aos tesouros artísticos que o

cercavam. Os capitéis preciosos, os arabescos dourados, os baixo-relevos, as

estátuas maravilhosas, diluíam-se numa atmosfera de sonho. Os sacerdotes e

os nichos, as flores e os objetos do culto não lhe falavam ao coração. Quando

surgíam no alto os primeiros astros da noite, Davenport regressou ao adro,

passeando nervosamente ao lado dos belos degraus que davam acesso ao

interior do templo, e que o progresso de Paris fêz desaparecessem com a

elevação do solo.

Entre aflições singulares, observou, atento, uma carrruagem que parou nas

proximidades, dela saltando três galantes criaturas em demanda ao santuário.

Madalena Vilamil, com efeito, junto de Colete e Cecilia, duas amigas da

juventude, chegara com o pretexto de participar dos ofícios religiosos da noite,

mas, em breves minutos, favorecida pela conivência das companheiras,

insulou-se da romaria devocional, em companhia do jovem Davenport, ansiosos

ambos pela permuta de impressões afetivas.

Enquanto a viatura permanecia à espera, e ciente de que as amigas se

entregavam às práticas religiosas, Mademoiselle Vilamil tomava prazerosa o

braço que o rapaz lhe oferecia, afastando-se alguns passos ao longo da praça

extensa que se rodeava, então, de casas velhas.

Cirilo sentia-se o mais ditoso dos homens. Por surpreendente e misterioso

mecanismo que seu espírito não conseguia compreender, resumia, agora, na

jovem todos os sonhos centrais da existência. Falou-lhe, com desembaraço,

dos seus ideais mais íntimos, revelando-lhe profundas impressões de sua alma

ardente. Ele próprio estava surpreendido com o manancial de espontânea

confiança que lhe brotava do espírito pouco afeito a grandes expansões.

26

Madalena Vilamil, em identidade de circunstâncias, tocava-se de sublimes

emoções. Não era temperamento que confiasse sentimentos íntimos, ao

primeiro sinal de afeição. Sua mãe, descendente de nobres famílias no sul da

França, e seu pai, antigo fidalgo espanhol, haviam educado a filha única

habituando-a a rigoroso critério no capítulo da vida social. Pela primeira vez a

jovem atendia a um apêlo afetivo, em lugar público, consagrado, no seu modo

de entender, às exteriorizações das criaturas vulgares e sem títulos de maior

nobreza moral. O convite de Cirilo fôra um tanto chocante para a sua vaidade

feminina; entretanto, obedecendo a indefiníveis anseios do coração, acedera

em palestrar com o jovem num recanto da via pública, desejando um

entendimento recíproco, longe da multidão maliciosa. Além disso, sentia-se

receosa de recebê-lo na própria casa, dado o rigorismo da genitora, há muito

enferma, e às ruidosas expansões do pai, desligado de qualquer encargo nas

esferas políticas e por isso mesmo sempre pródigo de afirmativas chocantes

para os costumes franceses.

Mademoiselle Vilamil julgou imprescindível explicar ao jovem Davenport

suas dificuldades domésticas, antes que o rapaz pudesse agasalhar conjeturas

menos dignas a respeito dos pais, a quem amava de todo o coração. Sômente

por isso, e incapaz de resistir ao suave magnetismo que sôbre ela exercia o

moço irlandês, encontrava-se ali sob o céu estrelado às primeiras horas da

noite, trocando confidências.

Cirilo começou por comentar a beleza das melodias que ela arrancara do

cravo, tôdo sentimento e vibração, e Madalena relatava ao jovem, muito

admirado, os encantadores costumes da sua terra natal, assinalando as

palavras com as interessantes características de quem se não achava

absolutamente senhora da língua francesa.

Tudo, porém, que constituía alguma coisa de sua personalidade, era graça e

leveza aos olhos e aos ouvidos do moço Davenport, que se sentia transportado

a um plano de felicidade divina, em sua companhia.

A certa altura do amoroso colóquio, Cirilo exclamou, algo perturbado por

trazer à tona a súmula de suas cogitações mais intimas:

— Madalena, ocioso é dizer-te da minha infinita afeição. Saberás entender

o sentido de minhas palavras. Nunca me conformei com as atitudes

superficiais, nem posso aprovar os desvarios da juventude contemporânea.

Digo-o, a fim de que não vejas laivos de leviandade nas minhas palavras. Amote

muito e êstes poucos dias de convivência bastam para que reconheça tua

suserania no meu coração, onde ocupas lugar insubstituível. Mas, poderei

contar com o teu amor para sempre?

A essa pergunta direta, a jovem respondeu extremamente confundida:

— Sim!...

— Sempre idealizei uma criatura que me compreendesse inteiramente e,

agora que nos encontramos, tenho a esperança de poder edificar um castelo

de suprema ventura. Desde a noite em que nos vimos pela primeira vez, sonho

contigo e antevejo as alegrias de um lar povoado de flores e de filhinhos.

Ela, tôda ruborizada, elevava-se nas asas do amor, de emoção em

emoção, aos páramos do sonho. Aquelas palavras representavam a deliciosa

música que os seus ouvidos esperavam de há muito. O moço Davenport era o

cavalheiro do seu ideal. Sua voz cariciosa e dominadora penetrava-lhe o

íntimo, como perfumado sôpro de vida. Queria falar exprimindo seus

sentimentos mais nobres; a emoção, contudo, embargava-lhe a voz, enquanto

27

o coração desejava prolongar ao infinito aquêle instante divino.

Compreendendo-lhe o silêncio, o rapaz recordou as advertências de Susana,

fêz um gesto significativo e acentuou:

— No entanto, Madalena, tenho o coração repleto de presságios

tristes!... Dizem que o sofrimento é comum aos que se amam; trago o espírito

ansioso por esclarecimentos mais amplos.

— Como? — indagou a jovem no impulso instintivo de anular qualquer

dúvida.

Revelando funda preocupação, êle acrescentou como que medindo a

responsabilidade de cada palavra:

— Ninguém disputa comigo o tesouro do teu coração?

— Que dizes? — retrucou a moça com grande surpresa.

— Sinto que tua alma se dirige ao meu coração como fonte cristalina de

verdade — acrescentou Davenport acentuando as palavras —, acredito na tua

sinceridade e nem seria lícito duvidar dos teus sentimentos; mas, quem sabe,

Madalena, teus pais te destinam a outrem que te mereça pela fortuna que não

possuo, ou por títulos que também me faltam?

A essa altura, sua voz tornou-se enternecida e comovedora, qual a de uma

criança disposta a resignar-se com os obstáculos, não obstante seu violento

desejo.

A jovem, por sua vez, como se despertasse de um sonho, começou a

chorar convulsivamente. A imagem do primo torturava-lhe agora o pensamento,

como se recordasse um verdugo cruel. Lembrava as lutas domésticas, os

enormes débitos do genitor para com Antero de Oviedo, as combinações de

ambos para o futuro matrimônio, com sacrifício dos seus ideais, e não

conseguia dissimular a imensa dor que lhe avassalava o coração sensível, ante

a possibilidade de perder Cirilo, compelida pelas humanas convenções a

renunciar à sua união com o jovem em cujo espírito adivinhava a fonte de tõdas

as sublimes compreensões de que sua alma necessitava para ser feliz.

Entregava-se assim a copioso pranto, enquanto o moço irlandês,

comovidíssimo, tomava-lhe a cetínea mão, cobrindo-a de beijos.

— Não chores, Madalena! O amor confia sempre e acreditas, acaso, que

sou de todo inútil?

Recordando as palavras impiedosas de Susana, que aquelas lágrimas

confirmavam, assumiu atitudes decisivas e acrescentou:

— Ninguém poderá impor-te um casamento contra os teus desígnios. Se

me amas, saberei defender-te até os confins do mundo. Não pertencerás a

qualquer miserável truão, apenas por circunstâncias mesquinhas de mil francos

a mais, ou a menos. O dinheiro jamais entrará em nossos planos de

felicidade!...

A filha de D. Inácio enxugou as lágrimas depois de ouvir-lhe as

ponderações consoladoras e afetuosas, e atendendo-lhe aos apelos relatou minuciosamente

as dificuldades da família desde os tempos de Granada,

assinalados por grandes lutas. Nascera nessa famosa cidade espanhola, onde

o pai desempenhava cargos políticos de certa relevância. Tivera uma infância

risonha, mas, desde a fase dos primeiros estudos, vivera quase que

absolutamente reclusa num convento de Ávila, onde o genitor procurava

enriquecer-lhe os dotes intelectuais. Nos poucos dias do ano, quando feriava

no ambiente doméstico, seguia de perto os sofrimentos da genitora, que

recrudesciam de tempos a tempos, em vista das extravagâncias paternas.

28

Quando abandonou definitivamente o educandário religioso, seus pais já se

encontravam em Madrid, para onde se mudaram com enorme dificuldade. No

vórtice de acerbos tormentos morais, sua mãe encontrara arrimo único em

Antero — sobrinho do marido, criado com tôda a dedicação e ternura

maternais. Seus pais haviam adotado o rapaz, de pequeno, como próprio filho.

Antero era um homem de psicologia difícil, em virtude dos sentimentos

condenáveis que sabia dissimular com habilidade, mas que, em sua ausência

nos estudos e nos desvios constantes de seu pai, apresentava dotes

apreciáveis aos olhos de sua mãe, de quem se fizera sustentáculo e

consolação. Permaneciam em Madrid, completamente arruinados, quando o

casamento da filha de Filipe 4º com Luís 14 deu ensejo a que o genitor e o

primo se colocassem ôtimamente, em funções de natureza política. Desde

1660, estavam em Paris cheios de esperança numa vida nova. D. Inácio, no

entanto, não conseguira permanecer no cargo senão por alguns meses, porque

se incompatibilizara com a Côrte, em vista da sua crítica franca aos atos de

Sua Majestade. Leal amigo da infanta espanhola, não conseguia suportar

calado as humilhações penosas infligidas à rainha, que se socorria da religião,

com santificada paciência, de modo a tolerar e esquecer os desvarios

amorosos do real espôso. Ciente dos seus firmes protestos, o soberano

demitira-o do cargo e Antero de Oviedo só foi conservado em suas obrigações

remuneradas por influência dos amigos de Maria Teresa, que lhe mantiveram

os proventos com alguma dificuldade. Havia quase dois anos, a família vivia a

expensas do rapaz, não obstante a tristeza que semelhante situação lhe

causava.

Seu pai, continuava Madalena de olhos molhados, era um generoso

coração, mas alimentava inveterada paixão pelo jôgo. Tal obsessão acarretara

o desbarate de todos os bens que possuíam e, após lamentáveis aventuras,

nada lhes ficara do passado feliz. A genitora resistira herôicamente aos reveses

da vida, mas sofria agora do coração, passando os dias na expectativa

angustiosa da existência que se extingue, e da morte que se aproxima.

Mademoiselle Vilamil fêz longa pausa a fim de enxugar as lágrimas

abundantes, enquanto Cirilo acariciava-lhe a mão, comovidamente.

Em seguida, evidenciando grande embaraço por ver-se constrangida a versar

tão delicado assunto, começou a falar com mais enleio dos propósitos paternos

de casá-la com o primo e contou que êste, por vêzes, já lhe havia falado de

amor, ao que se esquivava ela, sempre com enorme repugnância. Alimentava

o desejo ardente de lançar-lhe em rosto a negativa formal, com o desprêzo que

essa união lhe inspirava, mas, continha-se a custo, considerando o

reconhecimento da mãe enfêrma e a situação do pai, que devia ao pretendente

alguns milhares de francos.

Nesse ínterim, o jovem Davenport, mal disfarçando o ciúme que o

devorava, interpelou-a exclamando:

— Mas teu pai, a quem consagras tão grande veneração, teria coragem de

vender a felicidade da filha por um punhado de miseráveis escudos?

— Não creio — disse a moça convictamente, demonstrando a sinceridade

de sua confiança filial nos grandes olhos, onde esplendia a candura das suas

dezenove primaveras —; meu pai, apesar das estroinices, tem sido o meu

maior e melhor amigo.

Cirilo guardou-lhe a destra entre as mãos, com infinito carinho, ansioso por

confortá-la. Depois de alguns instantes em que o silêncio de ambos era mais

29

eloqüente que as expressões verbais, a jovem Vilamil, como se fôsse

arrebatada a longínqua impressão do passado, perguntou inesperadamente:

— Cirilo, acreditas nos adivinhos?

— Ora essa! por que perguntas? — exclamou intrigado.

— É que, ainda em Granada — disse Madalena com muita simplicidade —

, numa de minhas rápidas visitas ao lar, estava à porta do Alhambra com

algumas colegas de estudo, quando fomos atraídas por um ancião que lia o

destino dos transeuntes interessados em sua estranha ciência. Atendendo à

brincadeira geral, aproximei-me e dei-lhe a mão. Ele pareceu meditar um

momento e falou: — “A menina é bem nascida, mas não ébem fadada.” E

depois de fixar-me nos olhos com expressão inesquecível, não mais sorriu e

continuou aconselhando-me: — “Prepara-te, minha filha, e une-te à fé em

Deus, porque teu cálice, no mundo, transbordará de amargura. Não vivemos

apenas esta vida. Temos existências várias e a tua existência atual é

promissora de tempos afanosos, para a redenção.” Suas palavras me

impressionaram a ponto de me fazerem chorar copiosamente. Senti enorme

abalo e foi preciso que as amigas me reconduzissem à casa, onde fui

compellda a acamar-me.

— E onde estava D. Inácio que não repeliu o estúpido? — indagou o jovem

Davenport bruscamente, cortando-lhe a palavra.

— Meu pai ficou furioso, e, depois de repreender-me severamente, tomou

as providências devidas, mandando que o feiticeiro fôsse levada ao Tribunal da

Inquisição, que lhe aplicou disciplinas por uma semana e o deteve encarcerado

mais de três meses. Mais tarde, o Geral dos Jesuítas cientificou ao papai que

se tratava de um peregrino demente, de origem egípcia, que penetrara no reino

através do Marrocos.

— E admitiste suas afirmativas? — interrogou Cirilo, evidenciando

ansiedade por apagar qualquer resquício de impressão dolorosa no espírito da

jovem.

— Apesar de muito impressionada — esclareceu Mademoiselle Vilamil —

não acreditei nos sombrios vaticínios, mas, não posso deixar de reconhecer

que, até hoje, Cirilo, minha vida tem sido tormentoso mar de preocupações

infinitas. Tenho a impressão de que atingirei os vinte anos com um pêso

sufocante de velhice prematura.

Depois de ligeira pausa, acrescentava:

— Não desejo fraquejar, deixar-me vencer pelos presságios de um

peregrino desconhecido. Sinto-me forte na fé em Deus e estou convicta de que

o poder celestial me auxiliará nas lutas humanas; entretanto, um detalhe

houve, na conversação do velhinho, que nunca poderei esquecer; é o que se

refere a outras vidas, O destino está cheio de circunstâncias misteriosas.

Nossa vida não terá começado no instante de nascermos no mundo. Devemos

ter existido em outra parte. Creio que temos amado e odiado, e o esfôrço em

que nos achamos se destina ao trabalho de redenção das nossas culpas. Não

me detenho em tais idéias tão só por haver ouvido as advertências do adivinho

errante, mas tenho tido sonhos significativos...

O companheiro, que lhe seguia as palavras com indisfarçável mal-estar,

apertou-lhe a mão e sentenciou:

— Que é isso, Madalena? Desvairas? Não te quero ver entregue a

filosofias abstrusas. Se encontrasse êsse feiticeiro infame, reforçaria as penas

que lhe foram impostas pelos inquisidores.

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Ansioso por libertá-la dos pensamentos amargurosos, Continuava:

— Casar-nos-emos e encontraremos a ventura sem fim. Ficaremos em

Paris ou onde quiseres. Lutarei por ti, tenho braços laboriosos e enérgicos.

Futuramente, rir-nos-emos dêsses temores infãntis, provocados por um

mendigo irresponsável. Os egípcios, como os orientais, foram sempre grandes

imbecis. Caso seja do teu agrado, fixaremos residência na Irlanda, junto dos

meus. Levar-te-ei, mais tarde, a Londres; excursionaremos até à Escócia e hás

de ver que, em tôda parte, o amor sincero será a chave de nossa ventura

imortal. As almas que se adoram movimentam-se nos caminhos

resplandecentes de luz.

A jovem, que o ouvia dominada pela emoção, pareceu olvidar as idéias

transcendentes e profundas, e respondeu enlevada:

— Sim, seremos felizes para sempre. Seguir-te-ei para onde fôres. Anseio

por conhecer terras novas, onde possamos sentir a felicidade unida a nós!...

— Terras novas? — perguntou Cirilo revelando-se iluminado por idéia

súbita — não será bom experimentarmos os largos horizontes da América?

— Ah! isso tem sido um longo sonho meu —disse a jovem de olhos

coruscantes. — Tenho sêde inexplicável do mundo novo que nos acena a distância.

Nossas grandes cidades, corrompidas, consternam e sufocam!

Granada, Ávila, Madrid e Paris não diferem o bastante umas das outras. Em

tôdas vejo os homens como loucos, disputando realizações que lhes agravam

os padecimentos espirituais. Tenho sonhado sempre com as enormes florestas

escuras, com os rios caudalosos, com as campinas verdes e sem fim..

— Edificaremos por lá o nosso ninho de amor — rematava o rapaz

apaixonadamente.

E falaram longamente da América, como duas crianças ansiosas,

permutando compromissos sagrados.

Ao têrmo da palestra, o moço Davenport. ciente de tôdas as preocupações

intimas da sua amada, prometeu visitar-lhe os pais na noite seguinte, na casa

de Santo Honorato. de maneira a criar o ambiente propício ao culto de suas

esperanças em flor.

Depois que Colete e Cecilia procuraram a companheira para a volta, Cirilo

fixou o olhar no vulto da carruagem até que se confundisse de todo com as

sombras espêssas. Largo tempo levou ainda a meditar, sentado junto aos

nichos externos, escassamente iluminados no bôjo silente da noite.

No dia imediato, ao entardecer, tomou o seu carro ligeiro, dirigindo-se à

residência dos Vilamil e fazendo o possível por apagar os receios que lhe

tumultuavam na alma inquieta. Como se comportaria na hipótese de lá

encontrar Antero de Oviedo? Teria fôrça bastante para tratá-lo fraternalmente?

Como o compreenderiam, por sua vez, os pais de Madalena? Engolfado em

vastas cismas íntimas, parou à porta da casa indicada. Tratava-se de antigo

edifício, dos que comumente eram alugados a famílias de tratamento, mas de

reduzidos recursos financeiros. Extenso gradil, no centro um grande portão

pintado de azul, cercava gracioso jardim onde as flores disputavam o beijo da

primavera; ao fundo, a residência de aspecto antiquado, com as características

exteriores da época de Luis XIII.

Cirilo bateu discretamente, sendo atendido com presteza por um lacaio que

lhe deu acesso ao interior, onde era aguardado com certa curiosidade.

D. Inácio trajava corretamente, como se fôra convocado a assistir a uma

cerimônia solene, enquanto a espôsa, muito pálida, acomodava-se em

31

espaçosa poltrona de repouso, dando a impressão de que ali se conservava

não por impulso espontâneo, mas por inevitável obrigação da vida em família.

Ambos estavam envelhecidos e alquebrados prematuramente; êle, talvez por

extravagâncias de tôda sorte; ela, por certo devido aos constantes desgostos.

Junto aos dois, na sala que se caracterizava por linhas monótonas, Madalena

com a sua radiosa juventude parecia um raio de claridade afugentando as

impressões tristes.

D. Inácio acolheu o rapaz com ruidosas manifestações de simpatia.

— Não terá, nesta casa, as designações devidas aos moços de

tratamento, em Paris — disse satisfeito —; chamá-lo-emos Dom Cirilo, em

homenagem à nossa Espanha distante.

— Dêsse modo ficará mais íntimo — acrescentava D. Margarida Fourcroy

de Saint-Megrin e Vilamil com um sorriso. — Desejamos que êste lar seja

também seu.

Enquanto os jovens se alegravam, experimentando a certeza da

condescendência dos velhos generosos, D. Inácio acrescentava:

— E pode estar certo, D. Cirilo, de que sua estréia deve ser muito

brilhante, porque minha espôsa não acolhe a qualquer, na primeira visita.

Riso geral coroou essas afirmativas, ao mesmo tempo que a palestra

descambava para as recordações das pátrias distantes. O jovem Davenport

falou de suas lembranças da Irlanda e, depois de bordar inúmeros comentários

em tôrno das relações entre espanhóis e irlandeses, D. Inácio acentuou:

Nossas afinidades religiosas com a Irlanda sempre foram estimáveis e

confortadoras. Aliás, fui eu quem teve a honra de acender a primeira vela

enviada pelos devotos do santo arcebispo de Armagh, em Dublim, na fogueira

em que foram castigados, em Granada, alguns hereges do Longford, num de

nossos maiores autos-de-fé.

Cirilo franziu o cenho como quem se desagradava do assunto, e

acrescentou:

— A psicologia da gente irlandesa é muito difícil e complicada.

— Tal como a nossa, na Península — atalhou o velho fidalgo —; é

impossível esqueçamos nossas tradições para acompanhar o surto de loucuras

e novidades que terminará projetando os povos no abismo. Não podemos

confundir liberdade com licenciosidade e seria falta grave aplaudir essa onda

de tolerância criminosa que varre atualmente o mundo. Temos de ser exóticos

em qualquer parte da Terra. Será licito estabelecer a desordem e dizer que se

progride? Então, a Espanha toleraria o chamado Edito de Nantes? Nunca!

Julgo que a fogueira deve cercar os herejes e os apóstatas onde quer que

estejam. Pelo menos, isso constitui elevada instrução de nossos santos padres.

Se o traidor da pátria deve ser condenado, muito mais criminoso é o traidor da

fé.

O rapaz esboçou um gesto de leve desacôrdo, obtemperando

delicadamente:

— De acôrdo, no que se refere à política. A administração desordenada é

sintoma de desagregação e ruína. O mesmo, porém, não ocorre quanto a

crenças. Considero que, em matéria de manifestações religiosas, outras seriam

as circunstâncias se todos entendêssemos o valor do perdão.

— O senhor é muito moço — replicou D. Inácio, sereno —, só mais tarde

poderá compreender que o perdão dissolve a família.

O jovem fêz menção de espanto e respondeu instintivamente:

32

— Mas Jesus perdoou sempre, D. Inácio.

O velho fidalgo, entretanto, como quem se habituara a interpretar os textos

evangélicos, prodomo sua, esclareceu sem qualquer preocupação de espírito:

— Esse problema foi estudado por mim, junto ao Inquisidor-Mor de

Granada. Depois de algum tempo chegamos à conclusão de que se o Cristo

suportou os algozes, mandou também que o homem orasse e vigiasse,

incessantemente. E o senhor já observou alguém vigiando sem armas? Em

que lugar do mundo a sentinela pode abraçar o inimigo?

Cirilo não estava acostumado a discussões religiosas e, ouvindo tal

argumento, silenciou com profunda estranheza, ao passo que o interlocutor.

observando a desaprovação que lhe transparecia dos olhos, tratou de mudar

de assunto acrescentando:

— Não poderíamos nunca aplaudir uma Côrte desordenada e indiferente,

como a de França.

Neste ponto da conversação D Margarida, considerando que as expansões

do marido poderiam melindrar o rapaz, advertiu calmamente:

— Ora, Inácio, não generalizes. Suponho que, na tua idade, qualquer

pessoa deve examinar acontecimentos e fatos sem a paixão que sói envenenar

as melhores fontes do caminho. Por que acusar a Côrte, quando a culpa não

pode cair indistintamente? Todos os governos são ótimos, quando Somos

Jovens.

O velho fidalgo empertigou-se, cofiou os bigodes, fitou a espôsa

sobranceiramente, e sentenciou:

— A senhora acha, então, que falo por ouvir dizer? Há três anos, com a

mesma velhice de hoje, assisti à assinatura do nosso tratado com a França, na

Ilha dos Faisões, acompanhando D. Luis de Haro e não sentia qualquer

desalento. Aos meus olhos, as águas do Bidassoa estavam belas como nunca.

Mas não posso repetir semelhantes emoções nesta terra de polifrontes.

— Consideras, então, que os franceses devem pagar pelo teu abatimento

de agora? — perguntou a nobre senhora serenamente. — Há tanta gente sem

juízo em Paris, como em qualquer grande cidade espanhola. Além do mais,

cada região tem seus costumes próprios e, naturalmente, um francês não se

sentiria tão bem se fôsse compelido a viver sob o ritmo das tradições

espanholas.

— Ah! sim — replicou D. Inácio sem conseguir disfarçar a irritação —, para

os franceses todos os descalabros podem ficar bem; mas eu sou um homem

antigo e é preciso não esquecer que minha família descende de parentes

colaterais da rainha católica.

E depois de um gesto significativo, rematava orgulhoso:

— Minha filha e eu não fomos nascidos nas margens do Garona, tampouco

ao pé das águas sujas do Sena.

Nesse instante, contudo, antes que Cirilo pudesse interferir com alguma

observação afetuosa e conciliadora, ouviu-se o ruído de um carro que parecia

trazido por cavalos resfolegantes.

D. Margarida, como se já estivesse alheada do pequeno atrito doméstico,

fêz um sinal à filha, revelando maternal preocupação, e falou:

— Madalena, previne lá dentro. Antero deve estar regressando de

Versalhes.

Enquanto a jovem se dirigia para a sala da copa, o moço Davenport

prestou atenção, a fim de observar o recém-vindo, cujas passadas fortes se

33

faziam ouvir quase junto à porta da entrada.

Ia, finalmente, conhecer o rival. A presença do sobrinho de D. Inácio, em

plena sala, não lhe deu oportunidade a mais vastas considerações Intimas.

Antero exibia dotes singulares de beleza física, nos seus trinta anos bem

formados. Alto, elegante, cabelos negros e ondulados, tez levemente amorenada,

peninsular, olhos argutos e indefiníveis, deixava transparecer nas

maneiras polidas um quê de intencional. Dir-se-ia que suas atitudes delicadas

não eram sinceras, mas oriundas do profundo artificialismo de quem não se

deixa conhecer tal qual é. Apresentado ao rapaz irlandês, cumprimentou-o

cordialmente, embora seus olhos parecessem interrogar a razão de sua

presença ali, e, depois de se encaminhar para o interior, enquanto a palestra

prosseguia suavemente, regressou à sala, onde prestou singular atenção aos

olhares significativos trocados entre a prima e o visitante inesperado,

compreendendo que o seu campo afetivo fôra invadido por influências

estranhas. Embora não manifestasse o mal-estar que, aos poucos, se lhe

apossava do espírito, de quando em vez dirigia o olhar indagador para a tia e

mãe adotiva, como a interrogar sôbre as pretensões desconhecidas do intruso.

A uma pergunta direta do velho fidalgo, quanto à marcha dos trabalhos que

lhe competiam, respondeu cortesmente:

— Tôdas as obrigações obedecem ao ritmo normal e o senhor pode crer

que, em breves dias, Versalhes reunirá tôda a Côrte e será o centro da vida

política da nação francesa.

— E o rei? — perguntou D. Inácio exprimindo certa inquietação nos olhos

— expediu a ordem de pagamento da minha disponibilidade?

— Por enquanto, não — esclareceu o interpelado. — Ainda hoje, porém,

pude avistar-me com Sua Majestade quando procurei o Sr. Colbert, trazendolhe

hoje a boa notícia de que o soberano pede o seu comparecimento em

palácio.

— Para quê? rosnou o nobre espanhol quase colérico — amanhã, farás o

favor de dizer ao rei dos franceses que, se me chama para me despojar de

algum bem, os seus ministros já me usurparam as dignidades; se pretende

conferir-me honras, agradeço-as; e se me oferece algum favor, não necessito

de suas esmolas.

Após uma pausa que ninguém ousava interromper, rematava com esta

afirmativa:

— E, se Sua Majestade manda buscar-me visando a fins mais ásperos,

podes afirmar-lhe que não será necessária minha presença em palácio, para

que me mande ao pelourinho. Bastará uma ordem...

Madalena, muito acanhada, observava Cirilo, que acompanhava o diálogo

do tio e do sobrinho com alguma estranheza.

Esperava-se que D. Margarida viesse à discussão com interferência

conciliatória, mas foi Antero que desfez o silêncio, ponderando com calma:

— No entanto, meu tio, é possível que as coisas sejam conciliadas em seu

favor. Como sabemos, o Sr. Fouquet já não permanece à testa dos negócios

públicos.

— E achas porventura que o soberano é melhor do que o ex-ministro? Um

remendado não poderá condenar um andrajoso. Fouquet não se retirou do

cargo pela sua prodigalidade nas despesas. A causa de tudo, no capítulo da

sua demissão, foi o escândalo dos ciúmes por Mademoiselle La Valliêre.

Antero ia exprimir um gesto de desacôrdo, mas o fidalgo continuou:

34

— Não permito que me contradigas. Acaso, não estás farto de saber que

aqui, em França, são as mulheres que fazem os ministros?

D. Margarida, desejosa de imprimir novo rumo à conversação, a fim de

que o espôso não incidisse nos comentários apaixonados, aventurou:

— Suponho, Inácio, que deves ir. Ainda que não conseguisses um acôrdo

para o recebimento do que te é devido, essa visita dar-te-á ensejo a qualquer

combinação com a rainha.

— Eu? — bradou êle com energia — que me poderia dar a desventurada

infanta, necessitada de quase tudo em seu ambiente doméstico? Poderei

procurar a filha do meu soberano para chorar as desditas, mas nunca

alimentando o propósito de pedir qualquer coisa.

— Em todo o caso, seria útil alguma tentativa — exclamou Cirilo Davenport

timidamente, receoso de ser tomado como indesejável nas combinações

familiares.

D. Inácio Vilamil, porém, carregou mais expressivamente o semblante e

sentenciou:

— Mas eu sou um homem da velha têmpera.

O rapaz, compreendendo-lhe a resistência inquebrantável, baixou os olhos

e calou-se.

A palestra chegou ao fim, com as expressões conciliatórias de todos, ante

a intransigência do velho fidalgo. Nenhum argumento lhe modificou a atitude.

Nas despedidas, notando a ternura dos olhares e gestos da prima e do

jovem Cirilo, Antero sentiu que mortal ciúme lhe envenenava para sempre o

coração.

Duas semanas passaram, repetindo-se diária-mente a visita de Davenport,

as idéias intransigentes de D. Inácio e a perplexidade do sobrinho dos Vilamil,

que vinha de Versalhes a Paris, de três em três dias.

O par venturoso continuou tecendo, carinhosamente, os fios dourados de

seus sonhos de felicidade, enquanto Antero dissimulava hàbilmente o profundo

rancor que lhe dilacerava o espírito. Apesar da mágoa odiosa, tratava Cirilo

com maneiras cativantes. No íntimo, detestava o rival, que lhe triturava

devagarinho as esperanças; no entanto, buscava conquistar-lhe a confiança,

intencionalmente maquinando projetos sutis e terríveis de vingança, a seu

tempo. O próprio Cirilo estava surprêso. A amizade que Antero de Oviedo lhe

demonstrava era mais um obstáculo transposto. A certeza de que o

companheiro da infância de Madalena lhe compreendera os propósitos

sinceros, constituía fonte de tranqüilidade para o seu coração. Andava, por isso

mesmo, plenamente satisfeito. Respirava os ares de Paris a longos haustos. O

serviço diuturno fizera-se-lhe leve e doce, o novo estado de espírito

descortinava-lhe profundos horizontes no entendimento justo da vida.

Aguardava a noite, ansiosamente, e, quando em companhia da jovem amada,

renovavam, os dois, os votos afetuosos, os juramentos sublimes, as promessas

de eterno amor.

Surgiu a ocasião em que Madalena se preocupou com a atitude da família

Davenport e insistiu para que o rapaz comunicasse aos parentes de Belfast o

projeto de casamento. Cirilo prometeu escrever, mas alegou que, antes mesmo

da consulta aos pais, procuraria ouvir o tio Jaques, em Blois, que lhe

consagrava paternal afeição desde os primeiros dias da sua vida.

Mademoiselle Vilamil demonstrava cuidados justos e, contudo, no espírito de

resolução que lhe era característico, Cirilo considerava semelhante zêlo de

35

somenos importância, pois, ao seu ver, casar-se-ia ainda que não obtivesse

para isso a aprovação da família. Todavia, dada a insistência da jovem nas

conversações confidenciais, Davenport dirigiu-se, certo dia, a Blois, com o fim

de aconselhar-se com o tio, antes de assumir o compromisso desejado.

Durante tôda a viagem, Cirilo entregou-se a singulares devaneios. Susana,

havia muitos dias, voltara de Paris para o ninho doméstico e o rapaz lembrava

o seu olhar inesquecível, quando se despediram. Sua expressão traduzia um

misto de frieza e dor, de ressentimento e crueldade. Por quê? Ignorava a

violência das suas intenções, procurava, em vão, atinar com a causa da sua

tristeza. Debalde procurava aproximá-la de Madalena, convidando-a a segui-lo

em alguma de suas habituais visitas ao bairro de Santo Honorato. A prima recusara

sempre, em têrmos ásperos que lhe feriam o coração. Além disso,

emagrecera, tornara-se irascível. Nunca mais se aproximou da sua eleita, nem

mesmo para as cortesias comuns. Em suas cogitações íntimas ponderou mais

seriamente aquele procedimento da prima. Certo, ela dera ouvidos, na infância,

a possíveis projetos familiares, de casar-se com êle.

Relacionou, em suas reminiscências, os pequeninos detalhes dos planos

paternos e compadeceu-se da companheira de infância. Contudo, em breves

instantes, buscou desvencilhar-se de semelhantes impressões. Afinal de

contas, refletia, as inclinações da prima não passariam, por certo, de anseios

transitórios da mocidade. Ela encontraria afetos novos. Era senhora de vultoso

dote, não lhe seria difícil encontrar um partido rico, que lhe pudesse satisfazer

os caprichos de moça. Se possível, falar-lhe-ia pessoalmente, assegurando-lhe

o penhor da sua amizade constante.

Buscando desfazer-se das preocupações que não coadunavam com os

seus propósitos do momento, Cirilo penetrou nas ruas da velha cidade, ansioso

agora por atirar-se nos braços do fiel amigo e confiar-lhe as mais íntimas

esperanças.

O professor Jaques Duchesne Davenport resiem antigo parque, que

adquirira para a localização da sua escola, de proporções vastas, destinada à

preparação de crianças de ambos os sexos, antes do acesso aos monastérios

do tempo, consagrados ao serviço educativo. Viúvo já de alguns anos, o

bondoso amigo da infância, com a cooperação de dois professores dedicados,

ali vivia entre os meninos de Blois como se estivesse esquecido das cogitações

mais fortes do mundo. Não era própriamente um velho, na expressão justa do

têrmo; entretanto, os fios grisalhos destacavam-se na cabeleira e as rugas

povoavam-lhe o rosto, embora estivesse tão sômente próximo dos sessenta

anos. Muito raramente dispensava a bengala, que lhe completava a feição de

patriarca junto dos petizes, e as crianças adoravam-no como a um pai. Não

obstante as profundas experiências da vida, que suas atitudes demonstravam,

seus olhos eram vivazes e amorosos, dando a impressão de que no peito

palpitava um coração de grande criança, afetuosa e compreendedora.

As famílias de Blois encontravam nêle um arrimo forte para solução de

todos os problemas relativos à infância. “Mestre” Jaques era um ponto de

referência de magna importância, entre tôdas as classes sociais, Os

brasonados amavam-no pelo seu nobre entendimento das coisas práticas, e os

desfavorecidos da fortuna encontravam no seu carinho fraternal a proteção

prestigiosa de um benfeitor. Os padres católicos estimavam-lhe as preciosas

qualidades de cooperação e os protestantes admiravam-lhe o respeito às

crenças e opiniões alheias. E no seu pequeno mundo de amigos leais e

36

crianças amadas, Jaques Duchesne Davenport sentia-se confortado e quase

feliz.

Anoitecia, quando Círio bateu num largo portão cercado de trepadeiras e

madressilvas. As árvores vetustas e acolhedoras do grande jardim faziam da

paisagem um trecho de paraíso, pela sua paz ao sussurro do vento leve. A

casa, muito antiga, dava idéia de vasta mansão de repouso, no seio da tarde

amiga.

Susana veio atender, prestemente, e não pôde disfarçar a surprêsa com a

chegada do primo, sem aviso prévio. Entretanto, longe de perder sua feição

voluntariosa, cumprimentou-o quase friamente, conduzindo-o ao interior e

abstendo-se das expansões afetivas com que o recebia de outras vêzes.

O mesmo não aconteceu, porém, lá dentro, onde Jaques abraçou o

sobrinho, transbordante de alegria. O velho educador quase carregou Cirilo nos

braços, como se recebesse a mais adorada de suas crianças no caminho da

vida.

— Como te demoraste, meu filho! Há muitos dias te procuro, debalde, entre

todos os cavaleiros que passam por Blois.

Cirilo sensibilizava-se fundamente com tais expressões de carinho.

Em doce aconchego familiar, jantaram juntos.

Depois de trocadas as primeiras impressões e quando a noite amortalhara

a paisagem, de manso, o estimado educador, notando que Susana e Carolina

se afastavam deliberadamente, chamou o sobrinho ao gabinete particular e

exclamou batendo-lhe carinhosamente no ombro:

— Vamos Cirilo, acendamos o velho candelabro. Teus olhos indicam que

tens alguma coisa importante a dizer-me.

O rapaz acompanhou-o enternecidamente e respondeu hesitante:

— É verdade, meu tio...

Sentados em poltronas confortáveis, junto de ampla janela que lhes

descortinava o céu pontilhado de estrêlas, foi Jaques quem iniciou a palestra

dizendo ao rapaz das novas impressões que nutria a seu respeito.

Atendendo a uma interrogação direta, o moço esclareceu:

— Sim, encontrei uma jovem que resume as minhas esperanças.

— Conheço-a? — interrogou, afetuoso.

- É Madalena Vilamil.

— Ah! muito bem! Ainda nisso as nossas afinidades se manifestam e as

tuas inclinações me alegram a alma. Conheci-a quando de sua visita ao antigo

palácio de Luís 12º, e isso bastou para que a estimasse infinitamente. Como

tudo isso é interessante, meu filho! Não mais me esqueci dessa jovem, tanto

que, quando Carolina e Susana vão a Paris, recomendo-lhes que não

regressem sem notícias dela.

— Essa circunstância constitui enorme alegria para mim — disse o rapaz

assaz comovido.

— Não podias fazer melhor escolha — concluiu Jaques, convicto. —

Quando pretendem casar-se? Não seria lógico adiar tão feliz evento. Além

disso, quando amamos, é natural que o coração seja atendido.

Amparado por semelhante compreensão, Ciruo Davenport não conseguiria

definir o júbilo que lhe inundou a alma.

— Seu parecer, meu tio, nobilita os meus propósitos; entretanto, estou

francamente indeciso, quanto à data dos esponsais, visto não ter ainda

comunicado a meus pais os meus desígnios.

37

— E pretendes ir a Belfast, com êsse fim?

— Se fôsse possível...

Jaques meditou alguns instantes e, como pessoa habilitada a aconselhar

com perfeito conhecimento de causa, voltou a dizer:

— Não vás à Irlanda antes do casamento.

- Por quê? indagou Cirilo um tanto surprêso.

— Não estou fazendo apologia da desobediência ou da anarquia familiar,

mas recordo o meu casamento e não posso deixar-te ao desamparo. Em nossa

ilha costuma-se colocar o interêsse acima das inclinações naturais. Quando

conheci Felícia — a santa companheira que me aguarda no céu nossos

parentes moveram-me guerra permanente e foi-me indispensável um ato de

fôrça para desposá-la. Se fôres a Belfast, começarão a malsinar tua escolha e

cada amigo envenenará teu espírito com superstições descabidas. Serás

flechado de tantos apelos estranhos, entre missas e promessas, que talvez

fiques por lá, carregando para sempre um sonho morto. Samuel permanece

distante de nossa compreensão da vida. Tua mãe é sensível e amorosa, mas

está presa aos excessos devocionais. Teus irmãos são afetuosos, mas são

espíritos muito irrequietos. Talvez a isso devam a difícil situação em que se

encontram.

— Como proceder, então?

— Escreverei a teu pai dizendo que, de há muito, me incumbiste de pleitear

a devida permissão, mas, devido a trabalhos imperiosos, protelei o assunto,

obrigando-o a assumir comigo o compromisso de anuir a teus desejos e

explicando que a futura nora é minha filha de coração. Samuel, naturalmente,

ficará preocupado, a princípio, mas cederá satisfeito, estou certo. Quanto à

adesão de tua mãe, sabemos, por antecipação, que estará de acôrdo conosco,

em todos os sentidos.

Cirilo estava tão contente que não sabia como agradecer.

— E não te detenhas em conjeturas inúteis — continuou o bondoso

educador. — Madalena é digna de teus carinhos e ambos serão meus filhos,

com a obrigação de povoar de netos a minha estrada, para que não me falte

um raio de luz na noite da decrepitude, que todos os homens devem esperar.

No gabinete que se atulhava de cadernos e livros esparsos, havia uma

atmosfera de felicidade indefinível. Ondas de perfume do jardim próximo

penetravam pela janela aberta, como se a natureza incensasse o entendimento

afetuoso de duas almas afinadas no mesmo idealismo.

Observando que o sobrinho prosseguia calado, Jaques interrogou:

— Sentes alguma dificuldade para executar meus conselhos?

— Reconheço, meu tio, que os meus ordenados mensais são exíguos —

explicou o jovem algo tímido.

— Não digas isso. Os melhores tempos da minha vida conjugal foram

justamente quando Felícia e eu lutávamos contra todos os obstáculos para

assegurar nossa felicidade. Minha família, na Irlanda, contrariava os nossos

sonhos, enquanto os parentes de Blois hostilizavam as minhas pretensões.

Casamo-nos sem apoio de ninguém. Meu salário, como professor, era irrisório,

mas as barreiras, aparentemente intransponíveis, pareciam valorizar nossa

união. Com as lutas intensas de cada dia, as horas de convivência doméstica

tornavam-se mais preciosas. No entanto, meu filho, quando Felicia me

compeliu a vir para êste país, onde nos esperava a valiosa herança deixada

por sua mãe, o júbilo perfeito pareceu fugir do alcance de nossas mãos. A vida

38

de Blois tornou-se muito diferente da de Belfast. Na Irlanda possuíamos um

ninho; na França encontramos uma casa. No ninho, vivíamos de amor e paz;

na casa, a existência obedeceu às imposições dos cuidados numerosos pelas

muitas convenções sociais. Não quero dizer com isso que as casas sejam

organizações dispensáveis, e sim que devem ser ninhos simples e

acolhedores, onde cada membro da família experimente a tranqüilidade devida.

Minha pobre Fellcia, porém, não soube resistir ao pêso do bem-estar e fomos,

finalmente, menos felizes, desde que as posses de Blois nos compeliram a

numerosos esforços de manutenção e defesa. Minhas filhas, habituadas de

início à simplicidade, cresceram entre exigências de tôda sorte. Susana é um

coração inquieto, insatisfeito, resistindo sempre aos meus paternais conselhos

e Carolina, contra as minhas tendências, vai casar-se por simples questão de

dinheiro com o Sr. de Nemours. Mas, que fazer? Minha inolvidável

companheira acreditou mais na sociedade humana que nas leis simples da

vida, e a sua ansiedade segregou as pequenas do nosso antigo ideal.

Jaques Davenport pareceu meditar um minuto, deixando perceber que

voltava, em espírito, aos tempos da sua mocidade distante. Depois de prolongado

silêncio, como que despertando de profunda divagação, interrogou:

— Compreendeste?

— Sim, meu tio, e agradeço a preciosidade dos seus ensinamentos; no

entanto, há considerar que Madalena descende de fidalgos, enquanto que eu

sou muito pobre.

— Pobre? — tornou o educador, sorridente e otimista — convém manter

acima da classificação comum, de pobres e ricos, a tábua de valores reais, que

define os homens como trabalhadores ou ociosos. Há indigentes no seio de

tesouros inapreciáveis e pessoas há de reduzidos recursos financeiros, singularmente

ricas de esperanças e de ideal. Por isso, meu filho, o perigo está

em que o homem seja ocioso. Quem trabalha deve esperar sempre o melhor;

mas quem perde o tempo, alcançará a miséria.

Os ensinamentos do bondoso velho caiam na alma do rapaz como um

bálsamo.

Atentando no efeito benéfico dos seus conceitos, Jaques continuou:

— O trabalhador possui o tesouro da paz de cada dia, o ocioso encontra

em cada noite o padecimento da insatisfação; um vive na claridade da

esperança, outro na tormenta da ambição. Uma casa sem lacaios é um refúgio

de repouso espiritual, nestes tempos de devassidão. Muitas vêzes, o homem

que dispõe de muitos servos paga-lhes por supostos serviços, mas o que

recebe, em verdade, é calúnia e ingratidão.

Cirilo, radiante ao ouvir tão sábios conceitos, exclamou:

- Suas palavras, meu tio, confortam-me profundamente. Sendo assim...

— Declaremos guerra às reticências — atalhou êle bondosamente —; já

que não és ocioso, podes casar quando bem quiseres.

E como se fizesse uma conta mental, após pequena pausa, acentuou:

— Os esponsais de Carolina estão marcados para novembro próximo.

Debalde tentei induzi-la a fixá-los para o Natal. Dêsse modo, Cirilo, designaremos

tuas núpcias para o futuro 25 de dezembro.

— Tão perto? — perguntou o moço assaz admirado. — Isso é quase

impossível, pois nem mesmo solicitei aos pais de Madalena o necessário

consentimento.

— Estou convencido de que hão de ceder para felicidade da filha.

39

— Mas, as providências indispensáveis?

— Serão atendidas — murmurou o tio com significativo contentamento. —

Guardo-te dois mil escudos, a título de cooperação afetuosa no teu sonho de

amor.

O jovem Davenport estava repleto de júbilo, mas, depois de pensar alguns

momentos, advertiu:

— Meu tio, tanta generosidade é demais. Contento-me com o seu apoio

moral, porque, relativamente ao auxílio material, minhas primas seriam

capazes de opor alguma objeção.

— Não dês guarida a tais desconfianças. Deus me livre de contender com a

família por questões de dinheiro. Quando Felícia morreu, renunciei espontâneamente

a todos os direitos que me competiam, em favor das filhas, que

dividiram entre si a legitima materna. Apenas desejei ficar com a minha

liberdade e com a minha escola. A contribuição, portanto, é de meu próprio

pecúlio e não temos nenhuma satisfação que dar a Susana ou Carolina.

O jovem não cabia em si de contente... A oferta preciosa vinha solucionar o

melindroso problema econômico que o perturbava. Não queria casar-se sem

uma base de recursos a cultivar. Supinamente reconhecido, tomou a destra do

tio, apertou-a com carinho e exclamou:

— Não sei como traduzir minha gratidão.

—Ora essa! nem eu desejo que te perturbes por manifestar reconhecimento.

Acreditas, acaso, que o dinheiro seja definitiva propriedade nossa? Todo o

cabedal financeiro é de Deus, que o distribui consoante as necessidades de

cada um, por intermédio dos próprios homens.

A palestra afetuosa entrou pela noite a dentro, até que um velho relógio

bateu as onze horas. Jaques lembrou que necessitava da sua beberagem

habitual para o estômago, e o sobrinho se despediu agradecido e venturoso.

— Meu tio, dormirei hoje um dos sonos mais tranqüilos de minha vida.

— E devê-lo-ás só a Deus — exclamou o generoso amigo, afastando-se ao

toque-toque da bengala, como a dispensar o rapaz de novos agradecimentos.

Enquanto Cirilo se recolhia, ditoso, ao quarto de dormir, Jaques foi

abordado por Susana em copioso pranto, quando buscava o remédio da noite

no velho armário da copa.

— Ouvi tudo, meu pai! — exclamou debulhada em lágrimas, evidenciando

fundo rancor.

— Mas, de que se trata? Que ouviste?

— Suas combinações com Cirilo.

— E por que não fôste participar da nossa conversação no gabinete? —

indagou o genitor muito admirado. — Tratávamos, porventura, de assuntos

secretos que justificassem a curiosidade de alguém atrás das portas?

A moça não respondeu, limitando-se a soluçar convulsivamente.

— Mas, que significa tudo isso, minha filha? — obtemperou o bondoso

velho abraçando-a.

— Meu pai, amo Cirilo e não me conformo com a sua decisão.

Jaques Davenport inclinou-se para a jovem profundamente preocupado.

Agora chegava a compreender suas amarguras secretas, suas inquietações

aparentemente injustificáveis, dos últimos dias. Sentou-se pausadamente,

contendo a custo a própria aflição e fê-la aquietar-se a seu lado, murmurando

depois:

— Filhinha, tem calma e fortaleza, porque êste é um desejo que teu

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velho pai não pode satisfazer.

E o amoroso Jaques, com o seu espírito eminentemente conciliador, fêz-lhe

ver a necessidade de retificar as inclinações afetuosas, falando longamente da

delicadeza da situação, salientando a escolha do sobrinho e os méritos

inegáveis de Madalena Vilamil.

Desenganada em seus dissabores cruéis, Susana reprimia com dificuldade

as expressões de ironia e ciúme que lhe explodiam no coração. Diante do

amoroso pai, a cujo espírito se sentia ligada por irresistível magnetismo, não

fazia mais que chorar comovedoramente, ansiosa por desabafar o misto de

cólera e angústia que lhe empolgava a alma caprichosa.

O genitor carinhoso, reconhecendo que a filha lhe ponderava as palavras

em silêncio, prosseguiu nos conselhos:

— Não desesperes. O coração tem mil caminhos para a felicidade, quando

procuramos aceitar a vontade de Deus. E por tudo que temos de sagrado, não

demonstres rancor à escolhida de teu primo. Precisas compreender que a

resolução de Cirilo é respeitável, e que Madalena é também minha filha pelos

laços divinos do espírito. Naturalmente que em seu noivado estarão nesta

casa, quando se verificarem as solenidades do próximo consórcio de tua irmã,

e eu espero, Susana, que a educação recebida no lar te confira comedimento

às atitudes. Há ocasiões em que precisamos esmagar os sentimentos

cultivados com excessivo carinho, na precipitação das expectativas injustas.

A jovem desejava apresentar furiosas objeções, desacatar o pai muito

amigo, pela primeira vez; continha-se, todavia, com esfôrço imenso, mordendo

os lábios em fúria e dando a impressão de que soluçava de dor infinita, sem

qualquer outro sentimento menos digno. Sinceramente condoído daquelas lágrimas,

Jaques considerou:

— Avalio tua mágoa e, contudo, seria falta grave aplaudir-te. Procura

afagar outros sonhos, renova os pensamentos. Acredito que tuas inclinações

não podem obedecer senão a caprichos procedentes da infância.

— Meu pai, não mais poderei ser feliz — disse no auge da desesperação.

— Só os criminosos podem assim falar —acrescentou o genitor sempre

melífluo.

— Não tenho fôrças para assistir às núpcias de Cirilo — continuava

Susana, enxugando as lágrimas.

O velho professor contemplou-a compungidamente e redargüiu depois de

um minuto de meditação:

— Fortalece tua vontade enfraquecida. Após o casamento de Carolina

poderás espairecer na Irlanda por alguns meses. Retemperarás as energias na

paisagem da tua infância e acredito que a providência ser-te-á imensamente

benéfica ao coração. A época será imprópria para a viagem, mas eu permito

que satisfaças semelhante desejo. Encontraremos embarcação e companhia

adequada. Por hoje, minha filha, recolhe-te à paz da noite e não chores mais.

Tua desesperação não é justa e deves rogar a Deus te conceda a cura da

enfermidade espiritual que te atormenta a alma inquieta.

Susana quis revidar asperamente, declarar que semelhantes afirmativas a

humilhavam em excesso, mas dissimulou a cólera, calou-se e obedeceu em

silêncio.

Quando a viu retirar-se, o pai carinhoso levou a destra ao peito, tentando

aliviar o sofrimento íntimo, em face da angustiosa revelação da filha; e

demandou a alcova silenciosa, sem conseguir explicar o triste pressentimento

41

que lhe travava o coração.

No dia seguinte Cirilo regressou a Paris, transbordando esperanças. Se o tio

bem lhe orientara o espírito quanto ao que lhe competia fazer, êle melhor

executou seus conselhos. Depois de dividir com Madalena o júbilo que o

empolgava, dirigiu cerimoniosa carta a D. Inácio Vilamil e espôsa, expondo as

suas pretensões.

A nova produziu grande sensação na vivenda de Santo Honorato. Os pais

de Madalena não esperavam semelhante surprêsa. Cuidadosamente, sondaram

o espírito da filha, verificando-lhe a aquiescência e a resolução, no

cometimento que condizia com a sua felicidade futura. Entretanto, havia

alguma coisa a considerar e que representava amargo aborrecimento para os

velhos fidalgos. Era o implícito compromisso familiar com Antero de Oviedo. D.

Margarida e D. Inácio sentiam, sincera-mente, o fato de serem compelidos a

apresentar ao sobrinho uma negativa inesperada e demolidora de todos os

seus sonhos de rapaz. Ambos o consideravam qual outro filho adotivo. No

entanto, não seria possível contrariar as inclinações de Madalena, que nunca

lhes causara o menor pesar. Altamente preocupados, os bondosos velhos

esperaram a primeira oportunidade para conversarem a sós com o sobrinho, o

que se verificou dois dias após o recebimento da carta de Cirilo. Madalena

ausentara-se e essa circunstância dava ensejo a entendimentos desejáveis e

justos.

D. Inácio, nessa noite, tratou o rapaz com maior compreensão, não

sabendo como abordar o assunto. D. Margarida, muito carinhosa, observando

que o marido titubeava e vacilava, fixou os olhos serenos no sobrinho e falou:

— Meu filho, hoje temos uma notícia a dar-te:

— Madalena foi pedida em casamento por D. Cirilo Davenport.

Antcro fez-se pálido e respondeu rudemente:

— Coisa estranhável, na verdade, porque espero minha prima desde a

infância.

— No entanto — continuou D. Margarida com voz pausada — Madalena

está de acôrdo e não podemos nem devemos contrariá-la.

Antero levantou-se, passeou nervosamente pela sala e observou exaltado:

— É uma ingratidão! Onde está meu tio que não lhe faz sentir a sua

autoridade, capaz de varrer do seu caminho êsse irlandês audacioso, sem

títulos e sem dinheiro?

Nominalmente citado, D. Inácio respondeu:

— Madalena nunca me deu o mais leve aborrecimento e a autoridade

apenas se exerce com aquêles que a desrespeitam.

— Esse casamento, porém, é um absurdo —exclamou Antero fora de si.

— Quem poderá decifrar os mistérios do coração, meu filho? — atalhou D.

Margarida afetuosamente.

E a discussão acendeu-se. A custo o rapaz sentou-se ao lado da velha tia,

atendendo-lhe aos apelos carinhosos. Mas tanto manifestou seus pensamentos

de inconformação e de ironia, que D. Inácio foi dominado por violenta irritação.

Ouvindo certas palavras mais ásperas do tio, o rapaz retrucou com acrimônia:

— Não posso conferir tamanho direito às suas opiniões. Afinal de contas, o

senhor tem débitos bem pesados para comigo, antes de considerar qualquer

privilégio ao irlandês miserável que me anula as esperanças.

D. Inácio Vilamil esboçou um gesto de justa indignação e revidou:

— Sei que te devo dinheiro, mas não desconheces que nos deves os

42

cuidados da educação. Supões, acaso, que te criaste em nossa casa a poder

de brisas e votos brilhantes? Se reclamas aquilo que te devo em escudos,

como te poderia pagar com as coisas privativas do coração de minha filha?

O rapaz recebeu a reprimenda ríspida, mal se contendo para não agredir

o velho tutor, que lhe falava e gesticulava grandemente irritado.

A boa senhora, todavia, interveio amorosa, e como o sobrinho chorasse de

raiva, tomou-lhe as mãos com muito carinho e procurou consolá-lo:

— Não te encolerizes, Antero! És nosso filho pelo coração, antes de tudo!

Considera, pois, que Madalena é tua irmã. Poderias estimá-la, tão só-mente a

título de espôsa? Recorda que não podemos dispensar tua afetuosa

companhia... Quem nos há confortado o coração, em tempos tão duros de provação

e de esperanças desfeitas? Não guardes rancor, modifica os

sentimentos a respeito de tua irmã. Há de surgir, por certo, em teu caminho,

um matrimônio feliz. És moço, ativo, trabalhador. Não te faltará uma noiva

carinhosa, que encha o teu caminho de luzes novas. Tudo será uma questão

de tempo e boa vontade...

O rapaz, apesar da paixão doentia que lhe enchia o cérebro de odiosas

preocupações, amava singularmente a velha tia — a única alma que lhe havia

proporcionado na orfandade carinhos e afagos maternais. Ouvindo-a,

desabafou. Não podia saber se chorava de amargura ou de despeito, mas,

fôsse como fôsse, aquêle pranto convulsivo aliviava-lhe o coração.

D. Inácio lançou ao sobrinho um olhar de ironia e, depois de um gesto de

enfado, abandonou a sala, enquanto D. Margarida continuava, olhos também

marejados de pranto:

— Desanuvia o espírito, meu filho! Insisto para que continues junto de nós.

Pediremos a

D. Cirilo resida nesta casa, após o consórcio e, quando te resolvas a organizar

tua casa, permanecerás, igualmente, em nossa companhia, até que me feches

os olhos para sempre. Se Deus me der vida, Antero, consagrarei minha velhice

aos teus filhinhos, que serão meus netos pelo coração. Acostuma-te, pois, a

encarar Madalena de outro modo.

Não odeies D. Cirilo, a quem seus sonhos de moça elegeram noivo amado,

neste mundo. Não será melhor que se unam e vivam junto de mim, como

irmãos carinhosos e dedicados? Além do mais, é indispensável consideres, em

tudo, a execução dos desígnios santos de Deus. Naturalmente que a tua

felicidade não será esquecida pelo Céu. Rogarei ao Altíssimo te conceda uma

espôsa devotada e afetuosa, a fim de que, mais tarde, possa eu acariciar os

teus filhinhos, em cada dia.

Ante aquelas manifestações carinhosas, Antero pareceu lavar o coração,

expulsando para longe do espírito as mágoas mais fortes; contudo, no recesso

do ser guardava rancor indefinível e profundo, que lhe arruinaria a existência.

Sentia-se sem fôrças para alijar a figura da prima do quadro das idealizações

mais íntimas. Conformar-se-ia com o inevitável, mas não renunciaria aos seus

desejos.

D. Margarida repetia os conceitos carinhosos, que lhe caíam nalma como

anestésicos suaves, mas, a medida que enxugava os olhos, êle recolhia, no

âmago do espírito, propósitos de vingança, como venenos sutis. Depois de

largos minutos de meditação, tinha os olhos fixos, como alucinado por idéia

terrível. Permaneceria, sim, junto da velha tia, cuja afeição o preparara na vida

com infinita ternura; mas, sentia-se inclinado a disputar Madalena até ao fim de

43

seus dias. Recordava, rancorosamente, as observações frias e ásperas do tio,

e refletiu que D. Inácio lhe pagaria as objeções, a seu ver, audaciosas e

ingratas. Não lhe cobraria os débitos contraídos com êle próprio, mas o velho

fidalgo tinha outros credores, cujos títulos êle endossara, confiada-mente.

Buscaria, dêsse modo, retirar as garantias dadas, logo que julgasse a medida

oportuna. Quanto ao atrevido Davenport, êsse teria de experimentar, cedo ou

tarde, o pêso de sua vindita cruel, O tortuoso caminho do mundo estava cheio

de surprêsas. Conservar-se-ia ao lado da prima, qual sentinela, nela, sem

repouso. O afeto que lhe votava, a seu ver, não admitia condenáveis

substituições. Continuaria amando-a por tôda a vida. Não podia pensar noutra

mulher que lhe tomasse o lugar no coração. Quem adivinharia o futuro?

Madalena poderia não casar e, se o fizesse, era possível que sobreviesse o

desencanto conjugal, ou que enviuvasse algum dia. Se tal acontecesse,

estaria, pois, a seu lado, a fim de lhe atender ao primeiro sinal.

Após o incidente doméstico, dissimulou com habilidade o odioso rancor que

lhe anuviava o espírito, pareceu resignado com a marcha dos acontecimentos.

Cirilo e Madalena estavam longe de pensar nas maquinações sombrias do

primo, que lhes presenciava o romance de amor, entre sorrisos indefiníveis e

complacentes.

E as semanas corriam formosas e calmas, enfeitadas de projetos deliciosos

para o porvir.

Susana, por sua vez, em virtude da influência paterna, ocultou o ódio

mortal que lhe intoxicava o coração e, nas festividades com que foi solenizado

o casamento de Carolina, na pacata cidade de Blois, procurou reaproximar-se

de Madalena, com hipocrisia surpreendente. No baile, exibira preciosa fantasia,

tranqüilizando o velho Jaques pelo ruidoso prazer e acolhimento carinhoso que

dispensava aos noivos, vindos de Paris.

Tudo, afinal, parecia concorrer para a felicidade dos jovens, que não

cabiam em si de contentamento e esperança.

Longa carta dos pais de Cirilo dava conta de seu assentimento ao

matrimônio, em vista das afetuosas observações de Jaques. Endereçavam ao

filho e à futura nora votos de felicidade e paz e lamentavam a impossibilidade

de uma excursão àFrança, para abraçá-los pelo auspicioso acontecimento.

Madalena sentiu-se mais tranqüila após essa carta, desvanecendo os

derradeiros resquícios de inquietação.

O jovem Davenport, plenamente identificado com os futuros sogros, sem

maior experiência do mundo, concordou, satisfeito, com a solicitação para

morarem todos juntos. D. Inácio Vilamil foi o primeiro a tanger o assunto,

alegando a moléstia da espôsa e o seu demasiado apêgo à filha. A jovem

sempre constituíra o amparo de sua casa e o confôrto de seus dias. Filha

única, Madalena resumia para os genitores amorosos o ponto central de seus

interêsses afetivos. D. Margarida andava sempre enfêrma, e quanto a êle, de

há muito não se sentia menos abatido. A ausência da filha sepultaria o

ambiente doméstico em tristeza irreparável. Consentindo em casá-la, não

desejavam pensar no seu afastamento, e sim na aquisição de mais um filho,

que seria o genro, a dilatar-lhes o patrimônio de santas esperanças. Não

sômente os aspectos espirituais foram lembrados. Semelhante decisão

pouparia aos cônjuges a laboriosa montagem de uma casa com todos os

requisitos da vida comum.

D. Inácio ponderou as mínimas conveniências de fundo econômico,

44

imprimindo às palavras a fôrça poderosa de suas convicções íntimas. Cirilo

ouviu-lhe os pareceres com atenção, acedendo, comovido, aos seus pedidos e,

compreendendo as dificuldades de ordem material, procurou aplanar todos os

obstáculos defrontados pela família da noiva.

E foi assim que, numa atmosfera de profunda simplicidade e simpatia,

realizaram-se as núpcias de Madalena com o rapaz irlandês, no modesto

templo consagrado à memória de Santa Genoveva, em Paris. (1)

Carolina e o espôso, que passaram a residir em remoto vilarejo do norte,

não se abalançaram a viajar com o frio intenso, e Susana, depois de

(1) Não nos referimos à Abadia de Santa Genoveva, que se localizava,

antigamente, ao sul de Paris. Nota de Emmanuel.

ligeiras providências na capital francesa, partira, dias antes, para a Irlanda, em

companhia de uma família amiga, de Alençon; mas o generoso Jaques tomara

um carro em Blois, a fim de assistir à cerimônia modesta, trazendo carinhosas

lembranças do seu velho parque para os noivos queridos.

Com exceção de três amigas dedicadas da jovem, inclusive Colete e

Cecília, a solenidade foi apenas acompanhada pelo tio de Blois, pelos pais da

noiva e por Antero de Oviedo, que dissimulava dificilmente o ódio que lhe

corroía a alma ardente.

Cirilo e Madalena, porém, naquele instante, ignoravam que houvesse

perversidade na Terra e não queriam saber de homenagens mundanas. Unidos

no seu imenso amor, perante o altar dedicado à padroeira de Paris, foi com

sublime enlêvo que receberam a bênção do sacerdote, em nome de Deus.

Contemplaram-se reciprocamente, em seus votos de imperecível aliança, como

se estivessem atravessando, naquela hora, as portas brilhantes do Paraíso, e,

entre os amplexos afetuosos que os cercaram em doce vibração de carinho, o

jovem par, fremente de alegria, acreditou haver encontrado o ninho da

felicidade perpétua.

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3

A caminho da América

A chegada de Susana à herdade dos Davenport, nos primeiros dias de

dezembro, em Belfast, assinalou acontecimentos de importância no ambiente

doméstico.

Samuel e Constância, sua espôsa, receberam a sobrinha com satisfação

inexcedível.

A moça, no entanto, não conseguiu disfarçar a surpresa que lhe causavam

as modificações ali havidas. A propriedade ia em franca decadência. Os

apartamentos da casa haviam perdido a formosa ornamentação de outros

tempos. Samuel dava a impressão de profundo desalento, enquanto a espôsa,

de olhos encovados, parecia refugiar-se na paciência, ao torvelinho de

amarguras que lhe feriam o coração. Guilherme, Patrício, Jaques, Carlos,

Dorotéia e Helena, os seis irmãos menores de Cirilo, estavam pálidos e mal

nutridos.

Susana percebeu que os golpes do infortúnio continuavam vibrando

naquele lar amoroso, que vinha arrastando as perseguições religiosas durante

muitos anos. Procurou, contudo, dissimular a decepção e passou o primeiro dia

de permanência na graciosa vivenda próxima de Belfast, em doce relembrança

de episódios familiares, cumulando a bondosa Constância de cariciosas

consolações.

Mas, após o jantar muito simples, procurou isolar-se com os tios na

varanda ampla que dava para um trato de terra empobrecida, buscando sondar-

lhes os pensamentos relativamente à penosa situação que atravessavam.

— Infelizmente — declarava Samuel evidenciando enorme desânimo —

nada mais temos a esperar do torrão que nos viu nascer. As crueldades

iniciadas aqui pelos mensageiros de Cromwell foram completadas pela

criminosa ambição de Lawrence Morrison, que nos arrebatou as derradeiras

migalhas, apenas por uma questão de inflexibilidade religiosa.

— É horrível — disse a moça, impressionada —, mas sinto aqui um

esquecimento lastimável. Acredito que Cirilo não está informado dêste quadro

de tamanhas necessidades.

— Ah! sim — disse Constância resignada —, nosso filho tem seus ideais,

Susana, e não nos parece justo arrancá-lo de suas esperanças e atividades em

Paris, apenas por egoísmo do lar.

— Aqui, porém, não se trata de egoísmo — revidou a jovem. —

Francamente, não esperava encontrá-los em pobreza tão crua. E dizer-se que

Cirilo casará ignorando tudo isso!

— Não seria razoável incomodá-lo, minha filha — atalhou Samuel

conformado. — A carta de Jaques notificava-nos o acontecimento com

profunda certeza de sua felicidade. Constituiria falta grave, de nossa parte,

desviá-lo do destino venturoso junto da jovem escolhida.

A moça esboçou um gesto de ciúme que passou despercebido, e voltou a

insistir:

— Considero, entretanto, que, para tôdas as coisas há tempo adequado.

Cirilo precisa conhecer esta angustiosa situação.

Constância, muito carinhosa, lembrou comovidamente:

— Ora, Susana, creio não devermos perturbar nosso filho senão em

circunstâncias extremas. Quem sabe terás algum meio de nos socorrer, sem

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que tenhamos de mandar a Paris qualquer notícia torturante? Muito

poderíamos obter de tuas valiosas relações na Inglaterra.

Muito sensibilizada com o apêlo comovente, a jovem acrescentou com

afetuoso interêsse:

— Sem dúvida que não voltarei a Blois sem haver atendido às vossas

necessidades. Tenho recados de Henriqueta para Londres e espero que as

coisas seriam conciliadas a nosso favor. Não me conformo com essas crianças

quase ao desamparo, no quadro de infortúnio que estou a ver.

E, num gesto expressivo para Constância, perguntou com o seu orgulho

ferido:

— Onde está o cravo que tanto a distraía nas noites de inverno? Que é

feito das tapeçarias, da baixela de prata?

A bondosa senhora explicou num sorriso humilde:

— Foram vendidos ao Sr. Gottfried, quando Patrício e Dorotéia estiveram

atacados pela febre.

— O Sítio do Linho foi alugado? — interrogou a moça com decisão.

— Lawrence Morrison moveu uma ação contra nós e fomos despojados

dêsse terreno — explicou Samuel contristado.

— E os rebanhos?

— Não temos mais recursos em pastagens. Conservamos apenas alguns

bois de serviço e algumas cabras.

— Isso é insuportável — exclamou a jovem assaz irritada.

Em seguida a uma pausa mais longa, em que os três se sentiam em face

de sério problema, Susana inquiriu com firmeza:

— Que sugerem para que eu possa começar o trabalho de reivindicação de

tantas injustiças?

Samuel Davenport parou os olhos no horizonte embaciado do crepúsculo,

meditou longamente e respondeu:

— Minha filha, não desejaria acabar minha existência aqui, onde a

lembrança da mocidade venturosa me agrava os terríveis desgostos. Nossa

ilha está dilacerada pelas perseguições e nossa fé religiosa é irredutível. Não

me sinto capaz de bajular os protestantes impiedosos e, por êste motivo, devo

contar com as humilhações de tôda sorte, enquanto viver. Não suporto os

ímpios inglêses e morrerei no seio de nossa amada Igreja. Neste caso, venho

sonhando ultimamente com uma vida nova, na grande colônia da América,

para onde se transferiram muitos dos nossos amigos espoliados.

E, como experimentando outro ânimo, imaginando a soberba visão do novo

mundo, continuou:

— Lá se encontram os Taylor, os Dalton, os Harrison, os Richmond. Todos

prosperam vertiginosamente e acreditam em Deus como entendem. Erguem

capelas nos montes, criam rebanhos fortes, à margem de rios fartos e de

pastagens sempre verdes. Dizem, Suzana, que, por lá, o céu é muito azul e

que as flores povoam as estradas, quase a todo tempo, favorecidas pela

bênção constante de um sol ardente e amigo. Arquimedes Taylor, que voltou a

Belfast o mês passado, a fim de procurar alguns documentos importantes,

visitou nossa granja e muito me animou a partir com a família. Informou-nos de

que na América protestantes e católicos se unem, fraternalmente, na faina dos

trabalhos comuns, em atitude muito diversa da adotada por velhos

companheiros irlandeses que se bandearam para a política dos senhores

poderosos e aos deixaram em abandono. Com exceção do velho Gordon, que

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pretende transferir-se também para a colônia, no ano próximo, ninguém mais

nos procura. Por ocasião da grave moléstia das crianças, eu e Constância

lutamos com a enfermidade completamente desamparados. Estamos cansados

de sofrer injustiças. O padre Bernardo, que nos confortava nas fadigas diárias,

foi banido há duas semanas. Por tudo isso, venho afagando a idéia de buscar

outras terras.

A moça anotava, em silêncio, as alegações do tio, procurando tirar as suas

conclusões a respeito das providências sugeridas. À medida que Samuel

Davenport expunha seus planos e sofrimentos, ela considerava o assunto,

calculando por antecipação as conseqüências.

A seu ver, a partida para a colônia era idéia aproveitável. Buscaria envolver

Cirilo no projeto. Não seria interessante vingar-se de Madalena Vilamil,

obrigando o marido a partir para regiões tão distantes? Se pudesse, compeliria

o primo a partir só, sem a companheira. Detestava a filha de D. Inácio, que lhe

arrebatara o sonho da juventude. Ainda, porém, que não conseguisse o

principal objetivo com a ausência só do primo, de qualquer modo gozaria

vendo-os partir como exilados da Europa, deixando-a livre da visão de sua

felicidade.

Obcecada pela recordação de Cirilo, de quem não conseguia esquecer-se,

ponderou com atenção no socorro indispensável aos tios de Belfast, concluindo

mentalmente que seria fácil ir a Londres e obter as providências políticas para

que se lhes fizesse justiça na própria terra que os vira nascer; mas, segundo

suas convicções íntimas, não encontraria oportunidade mais adequada para

vingar-se. Madalena conheceria o pêso da sua fôrça cruel. Dominada por

semelhantes sentimentos, a jovem de Blois sentenciou:

— Seus planos, meu tio, são louváveis e lastimo sinceramente não poder

acompanhá-los à colônia distante. As terras novas sempre me empolgaram a

imaginação por sua riqueza e grandiosidade, de acôrdo com as notícias

trazidas pelos corajosos conquistadores.

Após um momento, em que Constância e o espôso lhe seguiam

atentamente os mínimos gestos, continuou:

— Quais as providências iniciais para realizar nossos propósitos?

— Bastaria que alguém se interessasse por nós, na Côrte — acentuou o tio

com imensa esperança a rebrilhar nos olhos. — Lord Arlington é hoje uma

autoridade incontestável na política nova e, com a sua influência, poderá

facultar-nos um título de propriedade agrícola na colônia. Isso conseguindo,

venderíamos o que nos resta e escolheríamos a chamada região de

Connecticut, onde pretende fixar-se o nosso generoso Gordon, no próximo ano.

— Pois irei a Londres para êsse fim — exclamou a jovem resolutamente. —

Não existe também um auxílio financeiro aos que partem? O govêrno da

França costuma amparar as famílias que se dirigem para as regiões

inexploradas.

— Na Inglaterra, os prestigiados por pessoas influentes também

conseguem, às vêzes, idêntico auxílio.

— Insistirei com as autoridades competentes para que recebamos o

benefício. Se Lord Arlington não dispuser de elementos com que me possa

atender, recorrerei à própria Coroa.

Os tios carinhosos entreolharam-se com viva satisfação, como quem

recebia o socorro longamente esperado.

— Resta saber — prosseguia a sobrinha, resoluta — como e quando se

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dará a partida de Abraão Gordon com os seus.

Visivelmente confortado, Samuel Davenport explicou:

—Creio que a viagem se fará na segunda quinzena de julho do ano próximo, e

o Capitão Clinton fornecerá passagem nos seus barcos a preços módicos;

entretanto, em suas experiências do mar, êle exige que cada família apresente

três homens válidos para cooperar nos trabalhos da travessia. Acredito, pois,

que encontraremos certas dificuldades tão só para atender a essa exigência,

porque não me Sinto muito bem de saúde, e o Guilherme agora é que vai

completar os dezoito anos.

— E Cirilo? — interrogou Susana, admirada — naturalmente não será

possível isentá-lo do cumprimento dêsse dever.

Constância careteou como quem não desejava perturbar o filho, mas

Samuel obtemperou:

— Pensei mesmo em convidá-lo a partir conosco, mas o casamento talvez

lhe haja impôsto outros projetos definitivos para o futuro.

Susana refletiu um instante, ocultou os verdadeiros sentimentos que nutria

sôbre a rival e murmurou:

— Madalena Vilamil é boa moça e compreenderá as nossas necessidades

prementes. Sem dúvida, acompanhará o marido, e dado que o não possa

fazer, nem por isso o impedirá de cumprir o dever filial. Tenho absoluta certeza

de que conseguirei os títulos de posse, em Londres, e, enquanto iniciamos as

providências, poderão escrever a Cirilo expondo-lhe a situação com franqueza,

dizendo-lhe convir aqui esteja em abril, para inteirar-se do assunto e prepararse

convenientemente para a viagem, em julho. Até à primavera, terá gozado

bastante a sua lua de mel e não é muito se lhe peça o comparecimento em

Belfast daqui a três ou quatro meses.

Depois de ligeira pausa, acentuava:

— E é justo não esqueçamos de escrever igualmente para Blois.

Em seu profundo potencial psicológico, estava certa de que Cirilo não

deixaria de aconselhar-se com o tio e concluía:

— Conhecemos o ascendente de papai sobre a índole caprichosa do primo

e faz-se necessário que ambos conheçam o caráter urgente das decisões a

tomar.

Constância, jubilosa, admirava o poder de resolução da sobrinha, e falou

satisfeita:

— Deus nos ouça, porque já comentamos o assunto como se tudo

estivesse providenciado com inteira segurança.

— A senhora não duvide — esclareceu a jovem —, não descansaremos até

que tôdas as coisas se resolvam. Estas crianças — e designou com um gesto o

interior da casa, onde os meninos brincavam em alvorôço — hão de crescer

numa vida nova. É impossível que dobremos a cerviz ante o cêrco da miséria.

Em muitos casos a resignação deixa de ser virtude para tornar-se inimigo cruel.

Em seguida, quando o véu da noite se fechara de todo, transferiram a

conversação para a sala espaçosa do fogão de inverno, onde Samuel, muito

depois de se haverem recolhido a sobrinha e a espôsa, ainda permaneceu

largo tempo a meditar, como se conversasse com as achas ardentes daquela

amada lenha do Ulster, que encerrava para o seu espírito um escrínio sagrado

de inesquecíveis tradições.

Somente após o Ano-Bom Susana se dirigiu para Dublin, onde tomou uma

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embarcação que saía do Canal de São Jorge com destino aos portos da

Mancha. Partia em busca das concessões de Londres, interessada e

esperançosa, depois de haver orientado os tios com relação às missivas

endereçadas a Paris e Blois.

E, assim, em fevereiro de 1663 as cartas de Belfast mudavam as

perspectivas entre os cônjuges venturosos.

Cirilo leu, emocionado, a carta paterna que lhe falava dos enormes prejuízos e

infortúnios experimentados e da resolução de partir para a América, em

procura de valores novos, suplicando o seu amparo filial em tão graves

circunstâncias. Insistia para que o acompanhasse na viagem, ainda que não

pudesse transferir-se definitivamente com a jovem espôsa para o Novo Mundo.

Calculava que bastariam alguns meses de cooperação e poderia voltar a

reassumir as obrigações que o retinham na capital da França. Samuel sugeria,

carinhosamente, que a espôsa o acompanhasse na longa viagem, empreendida

para tranqüilidade de todos. Quanto aos encargos de ordem

material, esperava compensá-lo, doando-lhe parte do produto da venda do

resto de sua propriedade rural na Irlanda do Norte.

Madalena, por sua vez, mostrava-se fundamente sensibilizada. Constância

enviou-lhe carinhosa carta na qual lhe rogava assistência e auxilio moral para a

transferência desejada, destacando o obséquio que a nora lhes prestaria

favorecendo a partida de Cirilo, de maneira a lhes atenuar o rigor dos inúmeros

trabalhos. Enviava-lhe, com afagos maternais, delicada fôlha de trêvo como

lembrança da missa a que assistira em intenção da sua ventura conjugal, na

véspera das núpcias; relatava — mãe afetuosa — as enxaquecas do marido,

as necessidades dos filhinhos. Procurava, enfim, convencer a nora de que

deveria partir também com êles e fazia-lhe sentir que sua casa era igualmente

da nora, a qualquer tempo.

A jovem espôsa de Cirilo chorou, emocionada, ao receber as confidências

da sogra. Se fôsse possível, teria partido para Belfast naquele mesmo dia, a

fim de confortá-la, mas não podia considerar sequer a possibilidade de uma

visita ao Ulster nos meses próximos, porque D. Margarida piorara muito do seu

velho mal cardíaco. Prostrada, palidíssima, não arredava pé da cama,

reclamando assistência carinhosa e constante... Por vêzes, as dispnéias

sobrevinham noites seguidas, agravando-lhe os padecimentos atrozes.

Que fazer em face de tão angustiosos obstáculos?

Ao crepúsculo dêsse dia de notícias singulares, em que as emoções

agradáveis se haviam misturado largamente com a dor, Cirilo e Madalena

encaminharam-se ao templo de Nossa Senhora (Notre-Dame), ansiosos por

uma inspiração que lhes aliviasse a alma inquieta.

Madalena desejava sinceramente ir a Belfast. atendendo aos apelos

afetuosos da sogra, mas a precária saúde de sua mãe a impedia de formular

qualquer projeto a respeito.

— Afinal de contas — dizia a Cirilo sob o manto estrelado do céu, que

sempre lhe enchia de encantamento o espírito sonhador — não devemos sofrer

tanto, antecedendo fatos que se desdobrarão segundo a vontade do Pai

Celestial. Sômente partirás em março e, até lá, quem sabe?

Ele, porém, não lhe acatava os argumentos afetuosos, com o habitual bom

humor. Sem poder explicar o que lhe ocorria no íntimo, permanecia taciturno,

alheio às suas costumeiras características de resolução.

— Não posso compreender, Madalena, por que essa viagem forçada a

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Belfast me ensombra o espírito, enchendo-me de preocupações.

— Viagem forçada? Não digas — redargüia a espôsa com bondade. —

Para nossos pais todos os trabalhos constituem motivos de satisfação espontânea.

Não tens feito o possível pela tranqüilidade do papai e pela saúde da

mamãe? É indispensável não esquecer que temos igualmente dois velhos

amorosos à espera de nosso auxílio na Irlanda do Norte.

Visivelmente nervoso, o rapaz obtemperou:

— Sim, mas os meus trabalhos em Paris? E se não me puderes

acompanhar a Belfast? E se

D. Margarida piorar a ponto de ser forçado a assumir compromissos com os

meus, partindo sozinho para êsse longo itinerário até à América?

—Quantas interrogações prematuras! — opugnou ela esforçando-se por

manter um sorriso menos pessimista — se nos acontecesse o pior não deveríamos,

ainda assim, inclinar o coração à vontade de Deus? Se nos

separarmos por alguns dias, não será por motivos frivolos, mas por atender a

necessidades imperiosas de nossos amoráveis “velhinhos”.

Procurando desfazer as penosas impressões do espôso, a filha de D.

Inácio continuou:

— Relativamente aos teus trabalhos comuns, acredito não seja difícil obter

uma licença sem remuneração; e se mamãe piorar, impedindo minha partida,

estaremos juntos nas preces sinceras ao Céu para que tôdas as dificuldades

cessem logo. Além disso, não devemos contar com a assistência do tio

Jaques? De Blois a Paris não é longa a distância. Precisamos coragem, Cirilo,

pois Jesus não nos deu a felicidade sômente para a satisfação pessoal e sim

para que aprendamos a estendê-la a outros sêres. Nossos pais estão

cansados e doentes, é justo lhes ofereçamos nossa disposição para o trabalho

e o socorro de nossa mocidade sadia.

O moço ponderou aquelas palavras deixando perceber que havia

encontrado a desejada solução e enlaçou-a com mais ternura.

Embebidos na cariciosa contemplação da noite amiga, falaram ainda longo

tempo de suas esperanças e projetos de futuro, regressando ao ninho

doméstico, cada qual fazendo o possível por se mostrar mais otimista, visando

o confôrto recíproco, mas, quando foi atender a genitora doente, Madalena

contemplou o crucifixo de madeira que

D. Margarida conservava no quarto, pendente do leito e, fixando o olhar na

imagem de Jesus, pediu-lhe com fervor lhe desse paz ao coração atormentado

por infindos receios. Depois de verificar que a matrona repousava em profundo

sono, ajoelhou-se, beijou aquêle símbolo de sua fé e limpou uma lágrima,

cuidadosamente, para que o espôso não lhe surpreendesse os amargos

presságios.

As semanas voavam ao ritmo das renovadas preocupações.

Após uma consulta ao tio Jaques, que fôra igualmente informado da precária

situação de Samuel em Belfast, Cirilo Davenport decidiu-se àviagem, a fim de

auxiliar os pais no que fôsse possível. Preparou seu desligamento temporário

dos serviços, tomou as providências necessárias, mas D. Margarida piorava

devagarinho, impossibilitando, de qualquer modo, a ausência da filha.

A vista disso, o rapaz foi obrigado a partir sozinho para a Irlanda, em fins de

março.

Informado de que Susana permanecia no torrão natal, Madalena dirigiu-lhe

carinhosa carta, junto da que escrevera, com muito afeto, à bondosa sogra,

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explicando a impossibilidade de visitá-la e solicitando-lhe que, como prima

devotada, a representasse na família, orientando Cirilo em suas necessárias

decisões de auxílio aos pais.

Dêsse modo, o filho de Samuel partiu deixando a espôsa no circulo

habitual, constituído por D. Inácio, sempre nervoso, D. Margarida, gravemente

enfêrma, e Antero, que rodava de Paris a Versalhes e vice-versa, como quem

perseverava nos mesmos propósitos, esperando as oportunidades.

A chegada de Cirilo foi um acontecimento de larga repercussão no lar

paterno.

Susana, dias antes, havia regressado da capital inglêsa com todos os

documentos legais, concernentes à emigração de Samuel e família para a

colônia longínqua. Depois de uma visita pessoal a Carlos 2º, em que fizera

questão de alardear o valor de suas relações prestigiosas na Côrte de França,

tôdas as portas se lhe abriram com facilidade surpreendente. Além de

conseguir as dotações necessárias, inclusive sementes e outras utilidades,

solicitou também um auxílio financeiro para o velho Gordon, que lhe recebeu a

gentileza profundamente sensibilizado. Ao júbilo das concessões obtidas,

acrescentava-se, agora, a alegria da vinda do rapaz, reforçando as esperanças

dos perseguidos irlandeses.

Constância não sabia como exprimir seu contentamento maternal. Reuniu

todos os recursos humildes da despensa doméstica e ofereceu um jantar muito

simples, nesse dia em que, acima de tudo, falava o sincero carinho do coração.

A noite, reuniu a família em preces a Deus, agradecendo à Providência os

favores da sua misericórdia e, após as orações comuns, expressou um voto de

reconhecimento a São Patrício, pela feliz chegada do filho, o que, feito em voz

alta na espontaneidade do seu afeto, arrancou muitas lágrimas ao rapaz, que

permanecia igualmente de joelhos, em obediência à tradição familiar.

Conforme acontecera à prima, Cirilo impressionara-se fortemente com os

quadros de infortúnio resignado e de velada pobreza que viera encontrar na

paisagem querida de sua infância, e fazia o possível por não repetir as

expressões de espanto, quando procurava êsse ou aquêle local, em busca de

velhas impressões da sua meninice. Não conseguiria explicar a emotividade

que lhe envolvia a alma inteira. A humildade com que Samuel patenteava a

necessidade da sua proteção, os olhares amorosos da mãe, a doce delicadeza

dos manos, penetravam-lhe o espírito com indefinível intensidade. Lêra à

Constância a terna missiva de Madalena e reparara, emocionadíssimo, como a

genitora enxugava as lágrimas copiosas com as dobras do avental muito

branco. Guardava a impressão de haver ingressado num sonho bom, em que,

no maravilhoso tapête das lembranças suaves, voltava a ser menino.

Quanto à Susana, recebera as letras delicadas de Madalena, lendo-as a

sós, depois de cerrar cuidadosamente a porta do quarto e reprimindo intensa

cólera. Frase alguma daquela mensagem fraternal conseguira modificar suas

disposições. Não constituía atrevimento da rival endereçar-lhe semelhante

apêlo? Num ímpeto de ciúme e despeito, fêz menção de estraçalhar o

documento carinhoso, mas, como se fôra advertido pelas idéias criminosas que

lhe passavam, por vêzes, na imaginação sobreexcitada, exclamou consigo

mesma: — “Não será melhor conservar esta carta para algum dia da vida?

Quem poderá saber o futuro?“ E modificando a primitiva atitude, guardou a

missiva com cuidado, na bolsa reservada aos objetos mais íntimos.

Abraão Gordon, à noite, viera participar das alegrias familiares, abraçando

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jubiloso o recém-chegado de Paris, a quem amava como próprio filho, desde o

dia em que Samuel e Constância o haviam chamado para levá-lo à pia

batismal.

Às ocultas, o pai de Cirilo, acanhado por ter de incomodar diretamente o

rapaz, solicitara ao antigo companheiro de lutas endereçasse ao filho o apêlo

final, para os acompanhar no longo cruzeiro transoceânico.

Gordon aproveitou o encanto do momento, cheio de intimidades cariciosas

e, quando terminaram as preces de louvor a Deus, dispôs o grupo familiar em

tôrno da larga mesa dos Davenport, que recordava os antepassados

numerosos, devotados a tradições domésticas. Aplaudido com calor por

Susana, que entrava na conversação com apartes sagazes e inteligentes, o

notável ancião depois de exaltar as grandiosidades do Novo Mundo, que

conhecia pessoalmente, em virtude duma visita aos parentes exilados na

Virgínia, notificou ao rapaz a necessidade do seu apoio ao grande

cometimento.

— Contamos contigo, Cirilo — afirmava o velho irlandês bondosamente —

e nem poderia ser de outro modo. Samuel e Constância esperam o teu amparo

imprescindível. Somos velhos e o capitão Clínton necessita de moços para a

travessia, que não é tão fácil como parece à primeira vista. Já enviei instruções

a Oxford para que Carlos e João estejam em Belfast, no mês de junho. Não

podemos dispensar o esfôrço dos filhos, na execução da emprêsa.

— Entretanto — murmurou Cirilo um tanto esquivo, dado o seu problema

de natureza sentimental, refletindo na espôsa e nas suas fadigas domésticas

—, ignoro se poderei partir na época prevista.

— Não há mais tempo para hesitações —obtemperou o velho Gordon,

depois de bater com o cachimbo na mesa, num gesto muito seu —; a questão

não é de possibilidade, é de imperiosa necessidade. Entre pais e filhos não há

consultas, há compromissos. O capitão Clínton exige a contribuição dos mais

fortes e não será razoável dispensar teus esforços.

O rapaz corou em face da observação direta que lhe era dirigida, e

ocultando súas recônditas preocupações sentimentais, receando ser tido

àconta de covarde, considerou:

— Não me furto ao que constitui para mim um grato dever, más, como

sabem, meus serviços intelectuais, em Paris, são bastante expressivos e não

sei se me permitirão uma ausência prolongada.

— Meu filho — exclamou Abraão, convicto —, não guardes ilusão sôbre

pretensas realizações intelectuais dos nossos tempos. Isso é um miserável

engano, Cirilo. Os espíritos vulgares alardeiam conquistas mentirosas,

enquanto escondem a consciência vestida de andrajos. Semelhantes fantasias

vão conduzindo os homens mais sábios à confusão e à ruína total. As lutas

religiosas, que nos expulsam do berço, não serão resultantes da desordem do

pensamento? Por que motivo os protestantes, e mesmo os católicos

eminentes, se empenham em lutas de morte? Será porque trabalharam com as

mãos, ou porque se desviaram do caminho de Deus pelo abuso de raciocínios?

As mãos não se equilibram sem o impulso orientador das idéias, como. as

idéias não se materializam sem o concurso das mãos; no entanto, suponho que

os homens vão esquecendo o dom do serviço pelos excessos do pensamento

em desvario.

Todos acompanhavam com atenção os argumentos profundos, enquanto o

rapaz fixava os olhos brilhantes no rosto simpático do bondoso velhinho.

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Estava tocado nas fibras mais sensíveis e contemplava o antigo mentor, em

respeitoso silêncio, ansioso por não perder um só de seus elevados conceitos.

— Em diversas regiões do sul — continuava Gordon, percebendo o

poderoso efeito de suas palavras — existem católicos que assassinam os hereges,

bàrbaramente; e aqui no Ulster os partidários da chamada Reforma nos

invadem as terras e desonram os lares. Enviados prepotentes da política de

Londres nos insultam e assaltam nossas propriedades laboriosas e honestas.

Se tôda essa gente trabalhasse mais e discutisse menos, não acabaria

estabelecendo a certeza de que todos somos filhos do mesmo Deus? As

legítimas renovações, Cirilo, não se destinam apenas à operosidade e aos

feitos da inteligência, mas também ao esfôrço de arrotear com amor a terra

dadivosa. Que tem sido a existência da Europa senão uma guerra incessante?

Todos os povos progridem para dominar os mais fracos, prosperam, a fim de

ganhar a fôrça e exercer a opressão. Tudo isso significa que o homem não

necessita ser mais arguto para explorar o próximo, e sim que compreenda e

ame a vida. E ninguém, meu filho, entenderá o próprio caminho sem trabalho

intenso por concretizar um ideal de virtude, na marcha para Deus.

Susana reparava o velho amigo de sua infância, manifestando a

transbordante satisfação que suas alegações lhe causavam, e o marido de

Madalena, seduzido pelos argumentos, sentia a renovação de antigo idealismo.

Aquelas palavras vibravam estranhamente em sua alma, tinha a impressão de

que lhe ressurgira no imo alguma coisa ofuscada e quase perdida, que era o

imenso amor à gleba, a dedicação ao solo a que se acostumara a querer todo

o bem, pelas lições vigorosas recebidas na infância. Por disposições

maravilhosas do pensamento, sentia-se transportado à meninice distante,

atravessava descalço as pastagens orvalhadas em busca dos bois que mugiam

longe. Revia as grandes árvores tratadas amorosamente e desejava tosquiar,

de novo, os carneiros gordos e mansos, O ambiente social de Paris eclipsaralhe

o gôsto pelas manhãs chuvosas, com o ruído da charrua sulcando a terra

macia. Sübitamente, experimentava a ansiedade de tornar a beber a luz das

paisagens campestres, na companhia dos cavalos árdegos e resistentes. A

inclinação do homem consagrado ao esfôrço da terra triunfava de tôdas as

preocupações de ordem puramente intelectual. Agora, lembrava que a França

estava repleta de silogismos inúteis. Padres e filósofos disputavam

estêrilmente, redundando as suas cogitações numa comédia ridícula, em que

cada qual permanecia mais vaidoso, ao lado das aflições dos mais fracos, no

seio do povo prejudicado e iludido. A guerra constituía, invariàvelmente, o

produto sutil dêsses excessos dos condutores da multidão. Eram raros os

propósitos sérios, os impulsos enobrecedores, isentos de vaidade ou egoísmo.

Cirilo estava magnetizado pela grandeza dos conceitos emitidos: Abraão

Gordon tinha razão. Era necessário voltar à terra e escolher a flor da paz em

seu seio acolhedor.

— Compreendo agora — exclamou, deixando entrever que descobrira a

equação indispensável. — Não posso perceber como andava tão esquecido...

— Vendo-o passar a mão pela fronte, os presentes entreolharam-se

satisfeitos. A rendição de Cirilo, com respeito ao assunto, causava-lhes enorme

prazer.

— Ainda bem — continuava Gordon encorajado — estávamos certos de

que não falharias na inclinação justa.

— As suas opiniões são incontestáveis.

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— E já chegou a refletir nesse Novo Mundo que os navegadores nos

trouxeram?

— Sem dúvida — exclamou o filho de Samuel, assaz impressionado —

terá uma finalidade muito mais importante que a de simples colônia, que lhe

possamos atribuir.

Abraão Gordon sorriu e continuou:

— Eu, que lhe conheço a grandeza insondável, posso afirmar que a

América é uma região destinada por Deus aos flagelados e desiludidos da

Europa. Suas florestas assemelham-se a um oceano de verdura. Seus rios

fartos chamam as criaturas para trabalhos promissores de paz e esperança,

seus horizontes iluminados prometem a coroa da liberdade e da vida. Estou

convencido de que o novo continente representa uma dádiva de Deus aos

homens trabalhadores e corajosos. Deve ser a realização da promessa aos

corações de boa vontade. Acredito que, lá, os nossos descendentes hão de

amar os valores legítimos da vida e farão cessar a cadeia de ruína e

destruição, que ameaça sempre a prosperidade européia, nas guerras

famulentas. Aos que se encontram cansados de tolerar a criminosa influência

do demônio insaciável, que domina os nossos príncipes, a Providência enseja

a possibilidade de um lar entre as flores de uma natureza diferente e livre, cuja

paz é garantida pelos abismos das águas.

Cirilo, ouvindo as palavras ardentes do velho amigo, sentia-se

transformado. Começava a admitir que, por certo, sua felicidade residia do

outro lado do grande mar. Num minuto, chegava a esquecer os livros, os

pergaminhos, as controvérsias infindáveis dos filósofos do tempo, os princípios

expostos pelos teólogos da universidade. Imaginava o futuro lar, onde

Madalena e êle cuidariam da ventura de filhinhos amados, no país maravilhoso

cuja grandeza parecia contemplar, através das descríções vivas do ancião de

Belfast. Recordou que seus ideais eram idênticos aos da espôsa, relativamente

à América distante. Madalena também tinha sêde daqueles horizontes largos,

daquela terra fecunda e perfumada. Sentindo que podia falar igualmente em

seu nome naquela assembléia familiar, assumiu o compromisso de transferir-se

definitivamente para o Novo Mundo.

Depois de afirmar sua decisão, que despertou enorme e geral

contentamento, a paléstra se desdobrou em tôrno das realizações futuras.

Susana e Constância emprestavam à conversação a mais vibrante alegria,

terminando as combinações iniciais da viagem com expressivas

demonstrações de júbilos sinceros.

Diàriamente, agora, repetiam-se as reuniões afetuosas na casa

acolhedora, delineando-se todos os projetos em lide.

Para que Cirilo partisse justamente tranqüilo, ficou assentado que ainda

voltaria a Paris, não obstante as dificuldades das viagens de então, a fim de

consultar a espôsa, quanto à possibilidade de sua partida. Na hipótese de ela

continuar impedida pela moléstia da genitora, êle acompanharia os pais até à

América, cuidaria das instalações iniciais e voltaria à França para buscar a

companheira. Estava certo de que a espôsa lhe aprovaria as decisões e

compartilharia das suas esperanças. Ela também amava, de longe, aquelas

florestas desconhecidas, onde haveriam de fundar a casa venturosa e farta

para a sua prole.

No curso de uma quinzena, tôdas as deliberações estavam assentadas.

Abraão Gordon fêz a Samuel espontâneo empréstimo de dinheiro, para que o

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filho pudesse deixar à espôsa alguns recursos, uma vez verificada a

impossibilidade de sua partida. Dentro de algumas semanas, Constância e o

marido venderiam a parte restante da propriedade e resgatariam o

compromisso.

Dêsse modo, nadando em esperança de maravilhoso porvir, Cirilo

regressou à França com a promessa de tornar a Belfast no fim de junho.

Seu regresso ao lar foi acolhido entre carinhosos contentamentos da espôsa, e,

contudo, os planos traçados na Irlanda causaram a Madalena certa estranheza,

sem que ela mesma pudesse explicar o motivo das dolorosas angústias que

lhe assaltavam o Coração.

O marido tratou de organizàr numerosas providências, à pressa,

destacando-se a do seu desligamento da universidade, em caráter definitivo,

com as veladas preocupações da espôsa. Deliberou ir a Blois, sem que a

companheira pudesse participar da excursão, dado o estado grave da sogra.

Estava ansioso por abraçar o velho Jaques. O tio amigo o acolheu com a

satisfação habitual, ouviu com interêsse o relatório verbal da visita ao Ulster e

concordava, em tese, com as alegações de Abraão Gordon, sôbre a mudança

para regiões tão distantes. O rapaz inteirava-o, entusiasmado, das menores

decisões tomadas, ao mesmo passo que o professor de Blois o considerava

um tanto mudado. Cirilo referia-se com muito calor a terras vastas, a fazendas

prósperas, comentando, por antecipação, o valor dos rebanhos e das lavouras

que manteriam o equilíbrio econômico das organizações rurais e das ricas

plantações de fumo, que garantiriam o dinheiro do exterior, na dilatação do

patrimônio futuro. Em tôda a sua conversação, não havia uma referência aos

religiosos inteligentes, como se verificava de outras vêzes. Não mais

comentava os autores romanos e gregos ou a, sabedoria dêsse ou daquele

documento antigo, enriquecendo a palestra de observações elevadas e úteis.

Jaques escutava-o admirado, disfarçando a custo a impressão de estranheza.

Concordava com a ida do sobrinho para o novo continente, mesmo porque

Cirilo estava muito moço e à sua frente desdobrava-se radioso porvir; mas não

podia aplaudir-lhe a atitude centralizando todos os interêsses em problemas de

absoluta feição material.

Depois de ouvi-lo por algum tempo em silêncio, o austero professor, como

quem não pode omitir as coisas essenciais, perguntou:

— Como ficam teus trabalhos na Sorbone?

— Desliguei-me definitivamente da universidade.

— E Madalena?

— Dentro de um ano voltarei a buscá-la, após instalar nossa nova casa. A

saúde precária de D. Margarida, presentemente, não nos permite partir juntos.

Em vista da resposta formal, o velho educador compreendeu, hábil

psicólogo, que era inutil tentar demover o rapaz das decisões tomadas; todavia,

como advertênCia velada, limitou-se a dizer:

— Nunca me separei de Felícia senão quando o poder de Deus nos fêz

curvar diante da morte.

Cirilo, porém, dominado pela visão dos interêsses imediatos, não pôde

perceber a sutileza do aviso e passou a fundamentar os motivos de sua

resolução, recordando os apontamentos de Abraão Gordon relativamente ao

panorama das lutas estéreis da Europa, acusando os gabinetes políticos como

focos de chacina e destruição. Jaques escutou-O novamente mergulhado em

silêncio, dominado por singular impressão. Por fim, insistido por seus pareceres

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mais claros, Cirilo manifestou-se desejoso de que o tio os acompanhasse a

breve tempo, de maneira a se reunirem todos na América, para a continuação

feliz dos empreendimentos sadios e realistas.

O bondoso professor fixou o olhar no velho parque que se vestia com a

roupagem deliciosa da primavera, escutou o rumor das crianças que brincavam

sob as grandes árvores e respondeu:

— Não conheço o futuro, meu filho, mas, por enquanto, não me seria

possível examinar semelhante hipótese. Quem sabe pensarei nisso amanhã?

Ao presente, sinto que não devo abandonar meus velhos livros e meus alunos

novos.

— Contudo — insistiu o rapaz — estou certo de que o senhor se reunirá a nós,

mais tarde ou mais cedo. Não é possível continue suportando o ambiente

europeu, envenenado de lutas odiosas e seculares. Daqui a um ano, ao

regressar para levar Madalena, é bem possível o encontre modificado.

Enquanto fazia uma pausa, o tio esclareceu:

— Concordo contigo, mesmo porque ignoro se residirei em Blois até ao fim

dos meus dias.

— Mas por que não assume conosco o compromisso de partir? Não posso

esquecer as observações do fosso velho amigo de Belfast, com relação às

lutas desta nossa Europa, em cujo seio tudo é ilusão precedendo ruínas.

— Não posso desaprovar a argumentação de Gordon, mas por agora

ficarei, como alguém que deseja permanecer numa casa incendiada, nutrindo a

intenção de salvar alguma coisa.

O sobrinho, que se referira insistentemente às dificuldades do Velho

Mundo, experimentou certo choque ao ouvir aquela afirmativa e, contudo, não

respondeu, preferindo calar, de modo a não alterar os fundamentos do seu

compromisso.

Entretanto, apesar da manifesta divergência entre ambos, despediramse

de olhos molhados, como pai e filho obrigados a suportar as amaritudes de

uma longa separação.

As contrariedades penosas do educador de Blois eram Iguais às de Madalena,

que as experimentava com muito maior intensidade, no ambiente doméstico.

Em casa, tudo se resumia a movimento célere de providências precipitadas. D.

Inácio encorajava o genro, estimulando-lhe o espírito empreendedor e

chegando mesmo a declarar que, não fôra a grave moléstia da velha

companheira, partiriam todos para o Novo Mundo, em busca das experiências

mais elevadas. Discutia às vêzes, acaloradamente por demonstrar que a

humanidade devia o beneficio aos corajosos navegadores espanhóis, e

comentava com inveja a Possibilidade conferida aos católicos irlandeses.

Antero, igualmente, mantinha uma atitude de alegre aprovação aos projetos de

Cirilo, e expunha seus desejos de procurar, mais tarde, diversos versos

parentes castelhanos localizados no sul do continente novo.

A única pessoa a compreender as angustiosas preocupações de

Madalena era justamente a enférma, que trocava significativos olhares com a

filha, acusando-se intimamente como empecilho de sua partida em companhia

do marido.

A jovem companheira de Cirilo, contudo, buscava não trair sua amargura,

nos menores gestos, e beijava a genitora com mais carinho, ansiosa por fazerlhe

sentir a satisfação com que ficada a seu lado, no desempenho de sublime

dever.

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Decorrido um mês, chegou a véspera da viagem para a Irlanda, consoante

as obrigações assumidas.

Nesse dia, Cirilo e a espôsa entreolhavam-se como duas crianças

extremamente afetuosas, despertadas de um sonho encantador para

realidades dolorosas.

À noite, não obstante a dispnéia de D. Margarida, ambos saíram para a

contemplação da Natureza, ansiosos por alguns minutos de plena solidão, que

lhes facultasse permutar as impressões mais íntimas.

O céu de Paris fulgurava como nunca, pintalgado de estrêlas e cada jardim

exalava os perfumes doces da primavera.

Os jovens esposos recordaram que havia decorrido justamente um ano do

seu primeiro encontro. Falaram no Carrousel de junho de 1662. entre

cariciosas evocações. Certamente, a maioria dos amigos não mais se

recordava dos folguedos populares, mas os pequeninos encantos da festividade

representavam para êles poderosos motivos de reminiscências

gratíssimas. Um ano passara com a rapidez de uma semana breve. A certa

altura da palestra, amorosa e confidencial, Cirilo tomou com mais vivacidade as

mãos da espôsa e considerou:

— Querida, não sei o que tenho — minha coragem parece diminuir à

medida que se aproxima o instante da separação.

— Não te deixes abater por emoções contrárias aos teus compromissos,

Cirilo — murmurou ela esforçando-se por manter atitude de extrema fortaleza

moral, de modo a encorajá-lo, sem lhe demonstrar a própria dor —; mais um

ano, apenas, estaremos juntos, acima de tôdas as contingências materiais. Até

lá, mamãe terá melhorado e partiremos todos. Em primeiro lugar, seguirá

nossa família de Belfast e, depois, nós, os de Paris.

— Reconheço tudo isso e não me faltam esperanças, disse o rapaz;

entretanto, mortificantes pensamentos me dilaceram o coração.

Ela, que lhe falava de alma opressa, não conseguiu esconder por mais

tempo a emoção e deixou cair uma lágrima, embora fizesse o possível por

ocultá-la.

— Choras, Madalena? — perguntou o rapaz penosamente surpreendido.

— Sofres também, assim?

— Não, Cirilo, minha lágrima é de esperança, pois que a saudade significa

a própria esperança chorando de ansiedade e alegria.

O filho de Samuel compreendeu que necessitava controlar as próprias

fôrças, a fim de levantar o ânimo da companheira abatida por graves provações

domésticas e, enlaçando-a com muito carinho, procurou consolá-la:

— Não chores, Madalena... Breve regressarei a buscar-te e seremos

venturosos para sempre. Edificarei nossa casa nalguma encosta cheia de

verdura, de onde possamos. tôdas as noites, contemplar o céu. Abraão Gordon

me esclareceu os detalhes da paisagem do nosso futuro “habitat” e creio saber

de antemão o local em que teceremos o nosso ninho. Havemos de admirar a

beleza e a imensidade dos horizontes. Um grande rio banha nossas terras.

Logo que conclua a casa, rodeá-la-ei de jardins. Quando lá chegares, tudo há

de ser primavera, vida e alegria. E mais tarde, querida, criaremos nossos

filhinhos sob a umbela de um firmamento luminoso e livre.

A filha de D. Inácio enxugou as lágrimas com sincera conformação, e falou

comovida:

— Cirilo, não desejo que partas sem me ouvires...

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Essas palavras eram ditas com inflexão de voz indefinível e, no entanto,

como que se perdiam em tímidas reticências.

— Dize, Madalena! De que se trata?

— É que, nestes últimos dias, venho sentindo comoções estranhas e

mamãe acredita que se prendam ao nosso primeiro sonho...

Ele abraçou-a sensibilizado.

— Como sou feliz! — murmurou, transbordante de júbilo.

— Não ficarei tão sozinha — concluiu com resignado sorriso.

E assim permaneceram longas horas, na contemplação da noite,

permutando promessas de infinito amor e mútua compreensão. Cirilo arquitetava

mil castelos para o porvir, enquanto a espôsa escutava-o enlevada, olhos

luzindo de esperança, acompanhando-lhe o idealismo ardente. Discutiram os

detalhes da futura residência na América; falaram dos filhinhos que Deus lhes

mandaria ao lar e que seriam educados distante dos centros do despotismo e

da ambição. Em dados momentos, a voz da jovem embargava-se de lágrimas,

mas fazia o possível por demonstrar paciência e energia, em tão amargosas

circunstâncias. Ante a nova perspectiva, o rapaz prometia esforçar-se para voltar

antes de um ano. Assim, afagando mútuas esperanças, passaram a última

noite, ansiosos por dilatá-la ao infinito.

No dia seguinte, de manhã, a família Vilamil, exceto D. Margarida, estava

congregada em pequeno conselho. Antero, com a sua expressão artificial,

justificava a preocupação de Cirilo quanto à construção do lar, no seio agreste

da natureza, pois também êle, Segundo afirmava, a qualquer situação

destacada em Paris preferiria o recanto simples e calmo de Versalhes; e

enquanto D. Inácio fazia ao genro as suas alegres e derradeiras recomendações,

Madalena contemplava angustiadamente o espôso, desejando

repetir-lhe as observações do amor infinito. Tinha sêde de redizer-lhe no ouvido

os mil pequeninos cuidados do coração; mas a presença de Antero e do genitor

lhe tolhia as carinhosas expansões, O velho fidalgo encarava o seu estado de

espírito com vereditos ruidosos, que a filha era obrigada a receber com

humildade e complacência, esforçando-se por ocultar a amargura indefinível

que lhe cortava o coração.

Nesse momento, Cirilo fêz a D. Inâcio a entrega de dez mil francos para

que fôssem atendidas as despesas de ordem imediata, em sua ausência,

prometendo trazer quantia mais vultosa, no seu regresso. O sogro agradeceu e

guardou a dádiva com carinho, sem que ninguém notasse a expressão

diferente que se fizera no olhar de Antero de Oviedo.

Em seguida, o viajante buscou um pretexto para falar a sós com o primo

da espôsa e, com tôda a sua ingenuidade e boa fé, recomendou-lhe com

interêsse:

— Antero, pode crer que parto absolutamente confiado no seu espírito de

iniciativa e generosidade. Espero que sua dedicação vele por Madalena e por

nossos velhos amados, com a mesma disposição sincera de auxílio que me há

dispensado desde que nos abraçamos pela primeira vez.

Omoço espanhol detestava-o bastante para não gozar com os seus

sofrimentos, mas esboçou uma atitude exterior de fraternidade, concordando:

— Podes partir tranqüilamente, Compreendo as contingêncías imperiosas que

te obrigam a tamanho sacrifício. Para mim, Madalena é qual irmã a quem

Consagro minha melhor estima; quanto aos tios, são êles, de fato, os pais que

encontrei na vida.

59

Depois de outras considerações afetivas, Cirilo apertou-lhe a mão confiante

e agradeceu o compromisso, de olhos úmidos. Recomendações finais,

derradeiros abraços e, sob o olhar despeitado de Antero, o filho de Samuel

beijou a espõsa pela última vez. Madalena enxugou as lágrimas que não pôde

conter e Cirilo, de alma torturada, aboletou-se no pequeno carro de um amigo,

que deveria conduzi-lo até ao pôrto de Brest.

O casal Vilamil-Davenport tinha o espírito angustiado por perspectivas

atrozes. Madalena, porém, elevava orações ardentes ao Céu, suplicando à

Mãe de Jesus lhe balsamizasse o cérebro torturado por martirizantes

presságios.

Na Irlanda, desde a chegada de Cirilo, tudo constituiu um torvelinho de

providências e decisões de últimos dias. Naturalmente, a maioria dos retirantes

mantinham-se em expectação amargurosa, considerando o momento de

abandonar a paisagem que os vira nascer; mas cada qual trabalhava por demonstrar

contentamento e coragem, com esfôrço heróico. Susana, que

aguardava a partida dos parentes para voltar à França, cooperou nos mínimos

problemas, proporcionando-lhes solução justa.

A nau do capitão Clinton era de construção reforçada e largas proporções,

mas não podia conter tudo que Constância desejava levar como recordação do

Ulster; entretanto, a boa senhora organizou pequenos pacotes com sementes

de árvores e flores ao seu alcance, no intuito de cultivar as lembranças

irlandesas nas terras fecundas da América. No dia do embarque, Susana

chegou a afirmar, de cara alegre, que o navio de Clinton assemelhava-se à

Arca de Noé, em miniatura.

Na praia, a jovem de Blois contemplou a embarcação até que

desaparecessem, ao longe, as velas enfunadas. Recolhida em sua imaginação

doentia, Susana pensava consigo mesma: — “Estou satisfeita, a vitória me

pertence.”

Enquanto a embarcação atravessava o Canal do Norte, tudo foi um

desdobrar de adeuses e entretenimentos caridosos. Aqui e acolá, sinais da

costa acenando ao ânimo patriótico dos viajores; mas, quando o navio se

afastou no segundo dia, a situação tornou-se muito diversa. Chegada a noite,

com o vento favorável, a embarcação achava-se em pleno mar, O dia havia

mergulhado num manto de indefinível tristeza. O próprio Abraão, segurando

calmamente o cachimbo fixava, olhos nevoados de lágrimas, o rumo da costa

que ficava a distância. Em todos os espiritos a saudade eclipsando a esperança.

Quando a escuridão noturna se fêz de todo sôbre a imensidade móvel

das águas, o ancião de Belfast acendeu um archote e abriu o Novo Testamento.

— Esta noite — disse êle com voz grave e pausada ‘— leremos o Livro

ajoelhados.

Os presentes O acompanharam com Singular interesse, genuflexos•

O velho Gordon, abrindo as páginas amareladas sôbre mesinha tôsca,

onde se espalhava a luz bruxuleante, leu em voz alta todo o Capítulo 27 dos

Atos, que relaciona as notícias da viagem de Paulo de Tarso para Roma. Isso

feito, voltou às páginas, deteve-se no Versículo 15 e repetiu em solene atitude:

— “E sendo o navio arrebatado e não podendo navegar contra o vento, dando

de mão a tudo, nos deixamos ir à tôa.” Depois da pequena repetição, o

velhinho bondoso Olhou para o alto e exclamou:

— Senhor! o navio de nossos bens foi arrebatado às nossas mãos, na terra

60

em que nascemos. Nossa existência na Irlanda sofria inütilmente o golpe dos

ventos contrários ao VOSSO amor e sabedoria. É por isso, ó Divino Salvador,

que aqui nos encontramos nesta casca de noz, esperando que se Cumpram os

vossos insondáveis desígnios!

O capitão Clínton, antigo corsário habituado a espoliar para não ser

espoliado e a matar para não morrer, ao ritmo das leis rudes que imperavam no

oceano, cercado por homens numerosos, armados de mosquetes, sabres e

punhais, murmurou compungidamente:

— Louvado seja Nosso Senhor Jesus-Cristo!...

Terminaram as orações e a luz foi apagada, a fim de evitar qualquer

desperdício. Foi então que Cirilo, mais altamente tocado no coração, abraçou a

velha genitora no seio das sombras, como a única pessoa indicada a lhe

compreender a alma ferida. Constância percebeu a angústia do rapaz e faloulhe

com brandura:

— Deus sabe, meu filho, que é por seu amor que enfrentamos os abismos

oceânicos.

Cirilo, contudo, não conseguia suportar por mais tempo as ondas de dor

que se lhe represavam no peito. Afastando-se para um recanto escuro, onde

sopravam as brisas favoráveis da noite, contemplou o céu estrelado e chorou

amargamente...

61

4

A varíola

Regressando à França, Susana demorou-se em Paris duas semanas,

preenchidas com pequenas excursões e passeios ociosos.

Podia notar-se-lhe, agora, certa mudanca de atitudes, tanto que se

aproximou da casa de Madalena, a pretexto de lhe ser útil, de alguma sorte,

nos dias aziagos da enfermidade de sua mãe.

A espôsa de Cirilo, enfrentando herõicamente as dificuldades da situação,

recebeu a visita com afeto e reconhecimento. A filha de Jaques lhe satisfez às

mínimas perguntas sôbre o embarque, o navio, as disposições do

companheiro. Susana tinha uma resposta pronta a cada pergunta, em sua

afabilidade artificiosa. A nota mais interessante, contudo, é que Antero de

Oviedo, incumbido de trabalhar algum tempo em Paris, na transferência de

importantes documentos para Versalhes, aproximou-se da moça de Blois, de

maneira surpreendente. A própria prima notou com simpatia semelhante

atração, encorajando-lhes os sentimentos afetivos, pois Madalena sempre se

preocupara com a sorte do rapaz, que crescera a seu lado, como irmão. A noite

saíam, por vêzes, a sós, freqüentando o teatro ou excursionando ao luar, sôbre

as àguas do Sena.

A filha de D. Inácio enganava-se, porém. Antero de Oviedo deleitava-se

na sua companhia, porque Susana parecia possuir a chave que lhe abria o

coração onusto de paixões secretas e violentas. Ela começou a conquistar-lhe

o espírito, revelando suas inclinações pelo filho de Samuel Davenport,

discretamente, sondando-lhe os pensamentos. Retribuindo essas provas de

confiança, o rapaz iniciou igualmente as suas palestras confidenciais,

compreendendo que defrontava a primeira inimiga do venturoso casal. Na

quinta noite de conversação solitária, entendiam-se francamente. Ambos

estavam satisfeitos com o ensejo de um desabafo. Suas observações

convergiam, invariàvelmente, para os caprichos do destino. Antero teimava em

afirmar que não conseguiria esquecer a prima, enquanto a jovem irlandesa

confessava abertamente que não renunciaria aos seus propósitos e continuaria

aguardando o ensejo de provar a Cirilo a intensidade do seu amor. Aquilo que

a família Vilamil apreciava como afeição, entre os dois, era um desvairamento

sem limites, oriundo do ódiõ que ambos alimentavam.

Afinal, Susana regressou a Blois, deixando na casa de Santo Honorato

alegres e confortadoras impressões sôbre o futuro do sobrinho de D. Inácio. Ao

despedir-se, Madalena abraçou-a confiante e lhe pediu rogasse a Deus pela

paz e saúde de Cirilo na América. Enviou ainda, por seu intermédio, breve

mensagem a Jaques Davenport, lembrando-lhe que teria imenso consôlo e

justo prazer com a sua visita a D. Margarida, a quem parecia restar poucas

semanas de vida, concluíndo com votos afetuosos e protestos de nímia

dedicação e desvelado carinho.

Dois meses decorridos sôbre a partida de Cirilo e a vida na casa dos

Vilamil seguia monótona e repassada de expectativas amargurosas. Antero

sentia-se quase feliz, achando-se como dantes, na qualidade de único rapaz a

conviver com Madalena, sob o mesmo teto, entre as vibrações fraternais do

ambiente doméstico. Horas a fio, mirava-lhe o semblante que a dor

espiritualizava, seguia-lhe o movimento das mãos, como se atendesse a

determinação de poderoso ímã. Experimentava imensos desvelos pela prima e,

62

no entanto, não se furtava ao ciúme violento, à paixão rude que o torturava de

rijo, desde o dia em que ela se lhe escapara dos braços esperançosos.

Alimentava o secreto desejo de que Cirilo se perdesse para sempre nos

caminhos desconhecidos das terras inexploradas, a fim de conquistá-la

devagarinho, entre amarguras, tormentos, dificuldades. Confiava em que o rival

não tornaria à Europa e que a prima, fatigada na luta, se lhe rendesse aos

caprichos, aceitando-lhe o amparo, mais tarde ou mais cedo, nas reviravoltas

do destino.

Atendendo a tais desígníos, depois de procurado certo dia por um dos

credores mais exigentes de D. Inácio, recordou a soma que o marido de

Madalena confiara ao fidalgo e recomendou-lhe consultasse o devedor em sua

própria casa, quanto às possibilidades do pagamento. Ouvindo-lhe o parecer, o

inflexível Sr. de Aurincourt dirigiu-se ao bairro de Santo Honorato, onde o

antigo fidalgo lhe recebeu a visita, em companhia da filha.

Sem mais preâmbulos, o credor atacou diretamente o assunto, em

presença da jovem senhora, acrescentando com alguma aspereza:

— Como o senhor não ignora, seu título vencido há muitos meses tem-me

esgotado a paciência.

O tio de Antero corou, não sômente em virtude da cobrança, como pelo

modo por que era tratado naquela sala, diante da filha, que êle desejava

manter alheia às suas dificuldades e que acompanhava o desdobramento do

assunto, vexada e compungida.

—Compreendo a exigência, Sr. Aurincourt — retrucou o velho espanhol,

perdendo o bom humor natural —, no entanto, continuo em disponibilidade,

aguardando apenas uma determinação de Sua Majestade para me serem

pagos os devidos vencimentos.

— Sinto muito — tornou o credor —, mas nada combinei com o soberano e

sim convosco. Não lhe podia emprestar dinheiro confiando em pessoas alheias.

Confiei meus recursos à sua honra de fidalgo e não posso aceitar êstes seus

argumentos. Além do mais, espero as suas oportunidades há quanto tempo?

A última frase, pronunciada em tom sarcástico, pairou no ar enquanto D.

Inácio, confuso, buscava em vão um novo motivo para justificar-se. Muito

pálida, reconhecendo a perturbação do genitor, Madalena interrogou com

serenidade e nobreza:

— Qual é a importância do titulo?

— Oito mil francos — respondeu o visitante.

E a jovem senhora, com a expressão confortada de quem se achava em

condições de atender à dignidade ferida, acentuou:

— Será razoável, meu pai, que o senhor resgate o título hoje mesmo.

— Entretanto... — resmungou D. Inácio indeciso, refletindo se devia aceitar

o oferecimento da filha.

— Cirilo e eu — continuou Madalena solícita — teremos prazer em que o

senhor se utilize dos nossos recursos.

D. Inácio, que sempre encontrava um dito chistoso no seu proverbial bom

humor, para enfrentar as situações mais difíceis, não sabia como dissimular a

inquietação do sentimento paternal, mas, ante as palavras resolutas da filha e

observando o cúpido olhar do credor, demandou o interior doméstico,

extremamente desapontado, e trouxe a quantia, recebendo o título, de mãos

trêmulas, depois de lançar à filha um olhar de sincero reconhecimento.

Ao fim de quatro meses após a partida de Cirilo, a situação doméstica era

63

das mais penosas. Cresciam as obrigações forçadas, dos aluguéis do velho

prédio, as despesas com o lacaio e duas servas, os dispêndios com o

tratamento da enfêrma, as inadiáveis aquisições de gêneros e utilidades

domésticas. Não obstante o auxílio de Antero, o quadro íntimo era formado de

amargas apreensões. A saúde de D. Margarida ia de mal a pior, impondo à

filha profundos desgostos e dolorosas vigílias.

Certa vez em que mãe e filha comentavam as aperturas do lar, D.

Margarida lembrou duas velhas amigas da infância, em ótima situação financeira.

Eram as senhoras Josefina Fourcroy de Falguiêre e Alexandrina de

Saint-Medard, que lhe haviam sido companheiras de meninice, nos dias

formosos do pretérito, em Toulouse. Quem sabe estariam dispostas a auxiliálas

com o empréstimo de algumas centenas de francos? Essa idéia acendeu

muitas esperanças no cérebro cansado da enfêrma. Certo, ouvir-lhe-iam o

apêlo, ajudando-a naquelas angustiosas circunstâncias, com a desejável

discrição. Madalena ouviu as sugestões da genitora, que lhe pediu as

procurasse em particular, consultando-as em seu nome, para que fôssem

atendidas as necessidades mais urgentes. A espôsa de Cirilo, no intimo,

revoltava-se contra os propósitos maternais; todavia, como proceder ante a

insistência da enfêrma querida, de cuja ternura sempre havia recebido os mais

doces carinhos?

D. Margarida não desejava importunar o sobrinho em coisas mínimas e

supunha que o expediente seria bem sucedido. Madalena não podia

desatender aos seus desejos afetuosos.

Um dia, pela manhã, demandou a rua das Nonnains-d’Hyéres e parou diante

da Abadia dos Celestinos, em cuja vizinhança se levantava a residência

aristocrática de Madame Falguiêre, que a recebeu depois de largo movimento

de criados, arrogantes em face dos seus trajes modestos. Expôs, humilhada e

receosa, o motivo da visita e, no entanto, as maneiras tímidas e sinceras não

comoveram a dona da casa, que respondeu altivamente:

— Lamento muito não poder servi-la, pois há de reconhecer que sua mãe é

apenas minha conhecida de tempos remotos e não existe entre nós credenciais

de intimidade que justifiquem qualquer apêlo a meu marido, em seu favor.

— Ah! sim! compreendo... — murmurou Madalena, afogando as lágrimas

no peito.

— Diga a Margarida — prosseguiu a velha dama com rigorosa austeridade

— que se resigne com a situação. Quanto a mim, é preciso que ela saiba que,

se fui bafejada por um casamento feliz, tenho a vida repleta de grandes

dissabores. Se os pobres padecem com as necessidades, os abastados sofrem

muito mais com as obrigações.

E depois de um olhar impiedoso e severo para com a visitante humilhada,

acentuou:

— Além disso, você está moça e não será difícil arranjar trabalho. Que

quer, minha filha? São as contingências da sorte. Há muitas casas nobres a

procura de governantas.

A moça ruborizou-se. Não saberia dizer se a emoção lhe provinha da

dignidade ofendida, se da extrema vergonha que lhe cobriu o coração. Quis

lançar-lhe em rosto a repugnância que sua descaridosa atitude lhe causava,

mas, limitou-se a responder:

— De qualquer modo, senhora, minha mãe e eu lhe ficamos reconhecidas.

Deus permita que nunca venha a experimentar nossa angústia.

64

A senhora Falguiêre esboçou um sorriso intraduzível e Madalena saiu, tomada

de repulsa, quase em desesperação. Em plena rua enxugou as lágrimas e

refletiu se deveria procurar a Senhora de Saint-Medard, à vista do insucesso da

primeira tentativa. Experimentou sincero desejo de furtar-se a nova

humilhação, mas recordou as lágrimas da mãezinha doente, quando

rememorava os antigos tempos de alegria com as inolvidáveis companheiras

da infância, em Toulouse. D. Margarida estava tão confiada na sua afeição

sincera, que a espôsa de Cirilo considerou praticar uma falta se deixasse de ir

até ao fim. Mergulhada em profundas cismas, concluiu que tudo deveria fazer

por amor à genitora. Possivelmente, a outra amiga seria mais condescendente

e razoável. Nessa esperança, procurou outra casa elegante nas proximidades

do mesmo local. Anunciada por lacaios solícitos, foi recebida numa ante-sala

luxuosa, por velha senhora que, pelos modos, parecia mais rígida e protocolar

que a primeira. Só então a filha de D. Inácio pressentiu que a experiência, ali,

talvez lhe fôsse mais dolorosa. -

No seu natural acanhamento, expôs o motivo da visita, mas a Senhora de

Saint-Medard, fixando-a com estranheza, falou com ar escarninho:

— Ah! recordo-me sim, você é Madalena, pois não?

— Para servi-la, minha senhora.

— Você já leu, porventura, uns versos do Sr. La Fontaine (1) sôbre a

cigarra e a formiga?

Madalena estranhou a pergunta, mas, na ingenuidade de quem repousa

com boa fé, guardando

no coração sinceridade cristalina, retrucou sem a

menor preocupação -

— Sim, mas que deseja dizer com isso?

— Pois diga a D. Margarida — continuou a

Senhora de Saint-Medard com profunda ironia —que ela e D. Inácio muito

cantaram em Granada

e que é justo dançarem agora em Paris. -

(1) As Fábulas de La Fontaine, em seu conjunto, surgiram entre 1668 e

1693, mas, como trabalhos isolados, algumas já eram conhecidas em

Paris no ano de 1663, que assinalou justamente a entrada do poeta para a

Academia. — Nota de Emmanuel.

Madalena ficou lívida. Na primeira porta, encontrara fria altivez; na

segunda, escárnio cruel. Contemplou a interlocutora com o pranto a lhe saltar

dos olhos e exclamou:

— Passe bem, senhora.

Desceu a escada, à pressa, com as idéias em torvelinho. Atravessou o

jardim e viu-se em plena rua, sem se deter na observação de coisa alguma. As

lágrimas molhavam-lhe o rosto, ao passo que, em seu coração, furiosa

tempestade de revolta abafava-lhe os sentimentos. Onde guardara as fôrças

morais para não revidar o insulto execrável? Percorria ruas e praças, a pé,

automàticamente, engolfada na repulsa que lhe dominava o espírito. Na

imaginação exacerbada via a velha genitora quase agonizante, a confiar nas

afeições falazes, e o pai decrépito, sem energias para defender o lar da ironia

dos ingratos. Se as suas lágrimas eram de amargura, originavam-se muito

mais na humilhação dos melindres filiais.

65

Ao dobrar uma esquina, porém, num recanto solitário, deparou-se-lhe um nicho

da tradicional devoção popular, que lhe chamou a atenção. Inexplicavelmente,

sentiu súbita necessidade de orar, de maneira a afugentar os pensamentos de

revolta e amargor. Encaminhou-se ao oratório da fé pública e viu a imagem de

Jesus Crucificado, simples, sem adornos, apenas encimada por minúsculo teto

de madeira, que resguardava a obra de arte das intempéries. Contemplou,

enlevada como nunca, a relíquia do povo e orou, através do véu de lágrimas,

pelas chagas sangrentas e pela coroa de espinhos que pendia da fronte

dilacerada. Como simples criatura anônima, ajoelhou-se no pó da via pública,

invocando a proteção do “Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo”.

Nesse momento em que se humilhava, qual jamais fizera em ato de contrição

religiosa, a filha de D. Inácio experimentou uma sensação de consôlo que

jamais conhecera, em tempo algum. Dir-se-ia que sua alma sofredora

assinalava a presença de um anjo, invisível aos olhos mortais, a passar-lhe as

mãos pela fronte com suavidade cariciosa. Doces emoções da maternidade

elevaram-se-lhe do coração ao cérebro. A consciência parecia dilatada a uma

esfera de compreensão divina. Ao bafejo da energia desconhecida, chegava a

conclusões rápidas e profundas. A dor não mais a humilhava, antes lhe

engrandecia o coração. Sentia algo semelhante a uma voz falando-lhe no imo

da alma, em vibrações de suave mistério. Teve a impressão indefinivel de que

alguém lhe tomava o braço com afagos brandos, convidando-a a erguer-se.

Nunca soubera pensar em Cristo como naquela hora inesquecível. Em poucos

momentos, os olhos estavam enxutos. O profundo e carinhoso nome de mãe

ressoava-lhe no peito como incompreensível e sublime esperança. Quem era o

homem da Terra, e quem era Jesus? Essa pergunta que se lhe apoderara da

mente, como se fôra sugerida por alguém, de plano mais alto, proporcionavalhe

infinita consolação à alma ferida. As angústias do dia se desvaneceram

como incidente fugaz. Os algozes do Cristo deviam ter sido muito mais cruéis

que as senhoras de Falguière e Saint-Medard, que não passavam, aliás, a

ajuizar por sua conduta, de duas mulheres ignorantes e orgulhosas, a

abusarem das possibilidades do mundo. E que era a sua mágoa comparada à

do Mestre que se imolara pelos pecadores? Sofria muito naquela hora, em

retribuição aos carinhos e dedicações materiais; mas Jesus aceitara o madeiro

por amor aos bons e aos maus, aos justos e aos injustos. Beijou então,

comovidamente, a pequena cruz e encaminhou-se para casa, sentindo-se

amparada por uma fôrça invisível que jamais conseguiria definir.

Abraçando a mãezinha doente, sentiu que era indispensável mentir para

confortar; esconder a verdade dura, de modo a não abrir chagas mais cruéis.

Sentindo-se forte e bem disposta ao influxo das fôrças desconhecidas que a

amparavam, beijou a enfêrma com muito carinho, enquanto esta a interrogava

com um sorriso de confiança:

— Chegaste a obter pelo menos mil francos, minha filha?

— Infelizmente, minha mãe, as nossas amigas não estavam em casa.

— Oh!... exclamou a doente sem disfarçar a tristeza súbita.

E começou a lembrar outros nomes, desejosa de encontrar um recurso

pronto para a situação. Mas a filha percebendo que seu espírito, cheio de boa

fé, voltaria a renovar as solicitações afetuosas, procurou confortá-la dizendo:

— O essencial, mamãe, é que a senhora fique tranqüila, sem

preocupações. De outro modo, não alcançará as melhoras desejadas. Jesus

não nos esquecerá. Além disso, o tio Jaques não tardará a chegar. Amigo de

66

nossa confiança, sentir-nos-emos mais à vontade para tratar dêsse empréstimo.

— Ah! sim, será mais prático... Esperaremos — disse D. Margarida,

resignada.

E Madalena tinha razão, porque Jaques Davenport daí a três dias batia-lhe

à porta em visita afetuosa. A sobrinha sentiu imensa alegria apertando-lhe as

mãos benfazejas. Depois de palestra cordial com D. Inácio Vilamil, o bondoso

amigo entrou a ver a querida enfêrma, considerando muito grave a situação,

pelo seu penoso abatimento.

Psicólogo profundo, o educador de Blois leu no semblante de Madalena a

expressão do velado martírio doméstico.

D. Margarida, altamente confortada com a visita, contava, em detalhes,

seus padecimentos diuturnos. Dormia pouquissimo em vista das aflições

ininterruptas; alimentava-se com extrema dificuldade, por ter o estômago ferido,

intoxicado pela multiplicidade das drogas em uso; as pernas muito inchadas

impediam-lhe os movimentos livres, forçando a filha a exaustivos esforços.

Jaques reanimou-a, sinceramente comovido, comentando a situação de outros

doentes em situação mais precária, afirmava ter visto casos idênticos. com

sintomas mais graves e que, no entanto, não passavam de fenômenos

orgânicos passageiros, em certas fases de desequilíbrio físico. A doente sorria,

quase satisfeita, a demonstrar novo ânimo no semblante abatido, mas, na

intimidade, quando se retirou do aposento, Jaques chamou a sobrinha de

parte, mudou de semblante e falou penalizado:

— Minha filha, Deus te conceda fôrças para a luta, porque tua mãe está

vivendo os derradeiros dias.

— Compreendo... — murmurou ela enxugando uma lágrima.

— Apega-te à fé, Madalena. Em tais instantes, o socorro humano, por mais

eficiente que o consideremos, é sempre precário. Devemos estar certos,

porém, de que Deus tem um bálsamo para tôdas as angústias do coração.

A sobrinha não conseguiu responder, sentindo que a emoção lhe

constringia a garganta, mas, penetrando as necessidades mais sutis, e, longe

de ferir o coração da filha, com expressões menos generosas, o carinhoso

amigo acrescentou:

— Madalena, Cirilo me recomendou, no último encontro em Blois, te

trouxesse mil e quinhentos francos que representam velha dívida minha para

com êle. Guarda-os. Neste transe, não faltará ensejo de os empregar utilmente.

E na hipótese de necessitares mais alguma coisa, não te esqueças, filha, que

me encontro a teu lado para tôdas as providências que se façam precisas.

A filha de D. Inácio recebeu os mil e quinhentos francos da lembrança

generosa, imensamente comovida. Consoladora satisfação inundou-lhe a alma,

porqüanto era possível atender agora aos pequenos caprichos da enfêrma, a

quem encheu de mimos, entre doces ternuras do coração.

Jaques esperou no dia seguinte o Dr. Dupont, com quem se manteve em

demorada conferência. Aquelas manchas violáceas, que a doente apresentava

à flor da pele, não o enganavam. O médico reafirmou-lhe a convicção,

declarando, discretamente, que D. Margarida não podia viver mais de uma

semana. À vista do prognóstico, o educador de Blois adiou o regresso, na

intenção de ser útil aos Vilamil, em alguma coisa.

Com efeito, a matrona piorava dia a dia, dando a todos impressão dolorosa

de lenta agonia. Não permitia que a filha se afastasse, um minuto sequer.

67

Falava-lhe, comovedoramente, do futuro e pedia-lhe que embarcasse para a

América, a reunir-se ao espôso, tão logo lhe fechassem a cova. Nada obstante,

rogava-lhe igualmente por Antero, por quem sempre experimentara desvelos

maternais. A situação de D. Inácio era também objeto de suas conversações

“in extremis”. A pobre senhora não sabia como alvitrar soluções a Madalena,

que a ouvia, olhos marejados de pranto. O velho fidalgo acompanhava os

sofrimentos físicos da espôsa, com o coração angustiado, enquanto o sobrinho,

que lhe consagrava imensa afeição, desdobrava-se em atenções e sacrifícios

para que fossem satisfeitos os seus menores desejos. Jaques Davenport ali

estava cabisbaixo e silencioso, aguardando o fim daqueles padecimentos, que

parecia muito próximo.

Na derradeira noite, D. Margarida confessava-se aliviada e mais lúcida. Tal

circunstância alegrava a todos, enchendo os parentes de sinceras esperanças.

Os homens e as servas recolheram-se mais cedo; Madalena, porém,

conservando no espírito sombrios presságios, manteve-se vigilante ao lado da

genitora, que parecia mais calma e repousada.

Sentindo-se só com a filha, D. Margarida mirou as unhas roxeadas, levou a

mão ao peito como a examinar o próprio coração e falou compassadamente:

— Madalena, esta melhora é a primeira visita da morte. Não nos devemos

iludir.

— Ora, mamãe — turturinou a espôsa de Cirilo depois de um beijo afetuoso

—, não fales assim. O médico retirou-se hoje muito satisfeito e papai ficou tão

contente!...

A enfêrma ouviu-a atenta, patenteando grande comoção nos olhos rasos de

lágrimas.

— O Dr. Dupont poderá ter falado com otimismo a Inácio, mas também

ouço uma voz que me fala aqui dentro do coração. Minhas horas estão

contadas. Dou graças a Deus por levar-me dêste mundo sem ódio a ninguém.

Levo comigo tão só-mente as mágoas justas de mãe, por deixar-te na Terra, à

mercê de lutas bem ásperas, mas rogarei a Jesus para que te reúnas a Cirilo

em breves dias. Penso, também, em Antero que criei como filho querido.

Quanto a Inácio, espero em Deus nos possamos reunir brevemente, na

eternidade!...

Sua voz tinha entonações lúgubres, e Madalena soluçava baixinho,

angustiada, incapaz de responder.

— Não chores, filha. Curvemo-nos resignados aos sagrados desígnios de

Deus. Certamente, o futuro ainda te reservará muitos dissabores. Vais ser mãe,

também, e compreenderás a montanha de sacrifícios que importa escalar por

amor aos filhos; no afã das lutas e sofrimentos, não te esqueças da confiança

sincera no Todo-Poderoso. Tôda mulher, e mormente tôdas as mães, precisam

compreender o valor da renúncia, da caridade, do perdão. O caminho do

mundo está cheio de malfeitores. Aqui ou ali, a ingratidão insulta e o egoísmo

calunia. Sômente a fé pode proporcionar o escudo indispensável à alma

ansiosa e ferida. Nunca percas a fé, minha filha, ainda que os padecimentos

sejam os mais duros. Recorda a Mãe de Jesus em seus martírios e resiste às

tentações.

Depois de longa pausa para tomar fôlego, continuou com visível emoção:

— Deus é testemunha de que eu muito desejava recuperar a saúde para

esperar o fruto do teu amor, envolvendo-o nos meus carinhos de avó, mas o

Senhor, certamente, tem outros desígnios.

68

Ouvindo a terna observação, Madalena murmurou entre lágrimas:

— O céu nos restituirá a alegria, minha mãe. Ficarás junto de mim por todo

o sempre.

— Ainda esta noite — prosseguiu D. Margarida com ternura — sonhei que

minha mãe vinha buscar-me. Apareceu como nos meus tempos de criança, a

brincar descuidada às margens do Garona. Ela chegou, muito meiga, tomoume

nos braços e perguntou, depois de um beijo, por que me havia demorado

tanto, longe dos seus carinhos. Ah! deve haver uma estância além desta, onde

nos encontremos com os mortos bem-amados. A vida é mais bela e infinita do

que supomos. Deus, que nos uniu nas estradas do mundo, não poderá

separar-nos para sempre...

A voz tornava-se melancólica, arquejante. A evocação do sonho pareceu

transportá-la a divagações diferentes. Nos olhos muito brilhantes pairavam

reflexos de luz extraterrena. A filha acompanhava-lhe a mutação fisionômica,

com um misto de ternura e dor indescritíveis. Recordava-lhe os sacrifícios

domésticos e o heroismo maternal, que o mundo não conhecera. Lembrava

suas cartas afáveis e consoladoras, ao tempo do internato. Ela, que conhecia

as leviandades do pai e as dificuldades em que viviam, sempre notava que a

genitora nunca tivera uma palavra de blasfêmia ou falsa virtude, em tôda a sua

vida.

Madalena — continuou D. Margarida, com a mesma emotividade —, se

Deus te mandar uma pequenina, dá-lhe o nome de Alcione, em memória de

minha mãe. Não sei por que mistério a sinto aqui ao nosso lado, esperando-me

talvez no limiar do sepulcro. Desde ontem, sinto-me impressionada por deixarte

sem recursos monetários que te garantam a tranqüilidade, até te reunires

definitivamente a teu marido. À noite passada, muito refleti sôbre isso, porque

nem mesmo as minhas velhas jóias puderam escapar no sorvedouro de nossas

economias domésticas. Mas, agora, minha filha, ouço no intimo a voz de minha

mãe, que me sugere deixar-te nosso velho crucifixo de madeira, confidente de

nossas lágrimas.

Apontou para o pequenino oratório e acentuou:

— Guarda-o bem contigo, porque não haverá maior tesouro que o do

coração unido ao Cristo.

Madalena chorava discretamente. D. Margarida, porém, continuou falando,

mas, agora, parecia responder a interpelações de uma sombra. Debalde, a filha

tentou desviar-lhe a atenção para outro assunto. Seus olhos, imensamente

lúcidos, davam a impressão de contemplar outros horizontes, muito além das

quatro paredes do quarto lúgubre. Madalena alarmou-se, mas procurou

manter-se calma, sem chamar os que repousavam de longa vigília. Todavia, de

manhã despertou as criadas e chamou D. Inácio para comunicar o

agravamento da situação. D. Margarida, após a última conversação, caíra em

coma. Raiara a manhã em dolorosas perspectivas. Enquanto Antero segurava

as mãos da agonizante, D. Inácio buscou um sacerdote que lhe ministrou os

últimos sacramentos. O professor de Blois assistiu ao traspasse, em silêncio,

procurando confortar a cada qual.

À tarde, sem mais palavra, D. Margarida entregara a alma a Deus,

perfeitamente tranqüila. A espôsa de Cirilo não saberia definir a própria dor,

mas, amparada na fé, amortalhou o cadáver entre flores e orações tão doridas

quão fervorosas.

No dia seguinte, Jaques acompanhou o funeral e, após as cerimônias

69

lutuosas, insistiu com Madalena para que o acompanhasse a Blois, de modo a

descansar alguns dias. A jovem, entretanto, reconhecendo o extremo

abatimento do pai, recusou o oferecimento carinhoso, apresentando delicadas

escusas. D. Inácio, de fato, mostrava-se profundamente acabrunhado. Não

seria razoável deixá-lo em Paris, em tal estado. O tio de Cirilo estendeu o

convite aos demais. Partiriam todos em sua companhia e, depois de algum

repouso em seu velho parque, voltariam à capital, retomando as preocupações

e os misteres. Intimamente, Madalena desejou aceitar a proposta generosa,

mas D. Inácio se opôs. Alegava que seria muito mais difícil consolar-se da

perda que acabava de sofrer se partisse com a obrigação de regressar mais

dia, menos dia. A seu ver, deveria enfrentar as impressões amargas, combatêlas

até ao fim, mesmo porque, depois da volta de Cirilo, pretendia tornar a

Granada, a fim de aguardar a morte, já que a viuvez nunca lhe permitiria

completa felicidade na colônia distante. Nem os pareceres de Antero, nem as

propostas afetuosas da filha, conseguiram modificar-lhe as intenções.

Foi assim que Jaques Davenport regressou ao lar, daí a dois dias, com a

promessa de Antero, de conduzir a prima a Blois, tão logo chegassem a um

acôrdo com D. Inácio. O velho educador, na intimidade, foi mais explícito com o

rapaz. Insistia nos seus propósitos, porque desejava que Madalena tivesse a

criança em casa dêle. Antero demonstrou acatar-lhe o desejo, nada obstante o

ciúme feroz que lhe rola o coração, e assumiu o compromisso de acompanhála

dai a dois meses.

Sentindo-se profundamente só, após o falecimento da mãe, Madalena

Vilamil repartia a existência entre os deveres domésticos e as orações, na casa

enlutada e silenciosa.

Entretanto, não havia decorrido um mês sôbre o triste desenlace, quando a

residência de Santo Honorato passou a partilhar das angústias imensas que

começavam a pesar sôbre a população parisiense.

Reboara na cidade a noticia alarmante. Alastrava-se um surto variólico de

enormes proporções. Tôda a cidade esfervilhava em reboliço. Segredava-se à

surdina que a moléstia irrompera entre os imundos prisioneiros da Bastilha,

conquanto alguém afiançasse que o boato fôra lançado adrede pelas

personalidades eminentes, de modo a desviar a atenção pública de alguns

fidalgos recém-chegados da Espanha, atacados do mal, e que haviam procurado

socorro em Paris, sem qualquer preocupação pela saúde do povo.

A terrível moléstia, trazida à Europa pelos sarracenos no século 6º, era,

então, o terror das cidades populosas. A capital francesa já conhecia as suas

características execráveis e, por isso mesmo, suas colméias humanas

permaneciam desoladas e inquietas. Enquanto a moléstia circunscrevia-se às

moradas confortáveis dos mais abastados, houve meios de ocultar os quadros

mais tristes. Em poucos dias, no entanto, a população experimentava os

penosos efeitos da epidemia fulminante.

Ninguém mais se preocupava com os jogos da péla, da malha ou da

argola. Véu espêsso de sinistras apreensões cobriu a coletividade, de um dia

para outro. Os casos positivos e dolorosos não mais ficavam ocultos pelo

insulamento nos palacetes de luxo das ruas aristocráticas. As habitações

burguesas da Cité e da Ville povoavam-se de cenas angustiosas. A

Universidade tomava medidas extremas, em face dos imprevistos. Os doentes

numerosos surgiam da rua São Dinis, da Plâterie, da Tixanderie. Criaturas

míseras tombavam, sem recursos, junto do antigo local da Cruz Faubin.

70

Arrabaldes como Santa Genoveva, Santo Honorato e Montmartre, começaram

a exibir quadros dolorosos. No bairro de São Dinis, ao longo da região

tradicional da cêrca de São Ladres, davam-se óbitos numerosos. As aldeias

que se erguiam nos arredores não eram menos devastadas; Issy, Montrouge,

Vincennes, participavam em larga escala dos padecimentos em curso.

Improvisavam-se cemitérios nas grandes planícies, embora a autoridade eclesiástica

ordenasse a abertura de um local isolado, no velho cemitério dos

Inocentes, para os mortos cujas famílias pudessem custear as despesas do

sepultamento.

Ninguém mais se atrevia aos passeios de barca no Sena, cujas águas

inspiravam temor.

Em Courtille e Vanvres, organizavam-se socorros apressados, mas eram

raras, as pessoas dispostas aos serviços de assistência.

O êxodo foi iniciado com penosas características.

A Côrte de Luiz 14, desde os princípios da epidemia, recolhera-se ao

confôrto de Versalhes, rodeada de sentinelas alertas. As correntes de

retirantes, porém, marchavam com enorme dificuldade nas estradas de Ëvreux,

de Compiêgne, de Auxerre, de Blois, assomadas de contagioso pavor.

É que o surto epidêmico não se constituía de simples sintomas

passageiros, com características benignas. Tratava-se da varíola negra,

hemorrágica, com um coeficiente de mortalidade apavorante. Quem escapasse

da morte, não fugiria àhorrível deformação do rosto.

Numerosas casas religiosas abriram, caridosamente, suas portas aos

enfermos. Havia postos de socorro junto aos templos de Nossa Senhora, de

São Jaques do Passo, de São Germano dos Prados. Abrigos generosos foram

instalados pelas “Filhas de Deus”, na rua Montorgueil. As autoridades concentravam

a maior parte dos trabalhos de providência. O Preboste desenvolvia

medidas enérgicas, com a colaboração da Universidade, mas, dado o terror

que se instalara no ânimo popular, agravavam-se o descuido e a indiferença

pelos doentes, o que fazia aumentar o obituário para vinte e trinta per cento,

em vez de dez, como de outras vêzes, em epidemias anteriores. Ninguém,

todavia, desejava arriscar a pele ou a vida. Eram bexigas negras e, por detrás

das pústulas repelentes, estava a deformação ou a morte. Não se encontravam

médicos, nem outros serventuários de enfermagem. Apenas alguns sacerdotes

abnegados visitavam os lares cheios de pranto e luto, levando o confôrto de

suas experiências ou as palavras carinhosas da extrema-unção.

Cada casa atingida era marcada com um grande sinal vermelho, na porta

de entrada, por ordem dos superintendentes do serviço.

O povo fazia oferendas espetaculosas nos altares dos templos. A igreja de

Santa Oportuna estava repleta de devotos, dia e noite, a reclamarem milagres.

A plebe parecia alucinada, Os homens de idéias liberais eram acusados de

provocadores da peste, então havida como castigo do Céu, e a multidão pedia

que êles fôssem queimados no forno do Mercado dos Porcos. Sucediam-se

procissões e exorcismos. Numerosas famílias dispunham dos bens a qualquer

preço e dirigiam-se para os portos do Atlântico, a caminho da América do

Norte.

Nas ruas, tôdas as cenas de funerais eram pungentes e dolorosas. De

quando em quando surgiam mulheres loucas, em penosa algazarra, obrigando

os gendarmes a medidas mais violentas.

Entretanto, o mais monstruoso, em tudo isso, é que alguns agonizantes

71

estavam sendo sepultados antes do derradeiro sôpro de vida. Quase tôdas as

atividades da ordem pública, nessas lamentáveis circunstâncias, estavam

afetas a homens indignos, que assalariavam o esforço de truões sem

escrúpulos. Não eram poucas as casas nobres depredadas em seus tesouros.

Valia-se, então, do terror para extorquir e abusar. Muitos crimes, nessas

condições, foram perpetrados na sombra, com plena segurança de

impunidade.

Nos cemitérios improvisados nas planícies e nas aldeias próximas, não era

difícil ver um que outro moribundo atirado à vala comum, entre gemidos.

O soberano dera ordens para que fôssem contratados homens honestos

para os serviços, mas os operários mais honrados não haviam acorrido, permanecendo

na tarefa gigantesca de salvação da própria família. Trabalhadores

boçais e embriagados tinham permissão de invadir as residências marcadas

com o sinal fatídico, a fim de remover cadáveres ou doentes graves para os

núcleos da rua do Forno.

Essa vaga imensa de provações coletivas abrangeu a residência de Santo

Honorato num véu de tristezas e preocupações infinitas. Madalena, mal se

refizera do golpe sofrido com a perda de sua mãe, mantinha-se em atitude

quase indiferente, incapaz de ponderar a gravidade do perigo que os

ameaçava; mas D. Inácio e Antero estavam aflitíssimos.

Como acontecera ao grosso da população, os Vilamil só vieram a conhecer

a terrível realidade quando já sitiados por numerosos casos na vizinhança.

Depois de muito confabular, tio e sobrinho resolveram a mudança para os

subúrbios de Versalhes, sem perda de tempo. Era inútil procurar a zona de

arrabaldes parisienses. A moléstia espalhara-se por todos os recantos. Apenas

Versalhes poderia oferecer alguma segurança, pelo grande número de guardas

que obrigavam os retirantes a tomar o rumo de Evreux, para não infestar a

zona destinada às figuras mais importantes da Côrte. Antero poderia obter

concessões, em vista de suas ligações com os funcionários de relêvo. Não

havia como hesitar nas medidas urgentes.

O sobrinho de D. Inácio saiu à tentativa, mas tamanhos eram os

obstáculos, que só conseguiu o que pretendia após esfalfantes trabalhos de

cinco longos dias. Conseguida a casinha môdesta que os poria a salvo, o rapaz

voltou a Paris para conduzir os familiares, mas, a primeira surpresa dolorosa

esperava-o qual espectro de amarguras inevitáveis.

Na véspera, uma das antigas servas de D. Margarida, de nome Fabiana,

caíra de cama, com febre alta e todos os sintomas graves da epidemia.

D. Inácio sentiu imenso alívio com o regresso do sobrinho, a fim de

assentarem as medidas salvadoras, indispensáveis.

Em vão Madalena rogou que encarassem a situação sem pavor, insistindo

mesmo para que Fabiana fôsse guardada, discretamente, sob seus cuidados.

D. Inácio divergiu da filha, ao mesmo tempo que Antero retrucava:

— É impossível, Madalena. A situação e o momento não comportam

tergiversações e condescendências, a título de generosidade. Chamarei os

encarregados do serviço de saúde pública a fim de remover a rapariga para os

centros de socorro, mesmo porque só nos falta o carro para Versalhes.

Ela esboçou um gesto de mágoa e sentenciou:

— Mas êsses funcionários são homens insensíveis e cruéis -

— Que fazer, filha? — atalhou D. Inácio tentando convencê-la de vez. —

Antero tem razão e, além de tudo, se êsses homens são, por vêzes, grosseiros

72

e intratáveis, representam o contingente único de que dispomos e não seria

lícito desprezá-los.

— E se fôsse um de nós o necessitado? — interrogou sübitamente a jovem,

num ímpeto de salvar a antiga serva de sua mãe.

Os dois perceberam o alcance e significação da pergunta, entreolharam-se

admirados, mas D. Inácio, dando a entender que não podia aprovar qualquer

indecisão naquele momento, exclamou para o sobrinho, resolutamente:

— Não podemos divagar. Vai chamar os homens para a remoção da

enfêrma e, se possível, traze contigo a carruagem que nos leve -

O rapaz não vacilou. O velho fidalgo, agora só com a filha, fazia-lhe sentir a

gravidade do perigo e frisava a nobreza da sua intenção. Madalena concordou.

Era o genitor que falava e não seria justo menosprezar suas afirmativas e

determinações. Entretanto, não podia conter as lágrimas copiosas.

Antero não se demorou muito, O serviço de assistência mandaria os

homens naquela mesma tarde. A carruagem, essa é que não foi possível

encontrar. Depois de leve refeição, saiu novamente num esfôrço supremo.

Necessitava de um veículo que comportasse quatro a cinco pessoas. Todavia,

a condução desejada não foi obtida em parte alguma.

Quase à tardinha, voltou profundamente descoroçoado. O tio, que se

contaminara de lastimável pavor, procurou confortá-lo, mas alvitrou que se

retirassem a cavalo, no dia seguinte. D. Inácio, profundamente impressionado

com as cenas tristes da rua, suspirava por um meio de abandonar a cidade, de

qualquer modo. A princípio, refletiu mesmo na possibilidade de partirem a pé,

mas isso seria muito arriscar. Os caminhos estavam cheios de doentes sem lar,

de fisionomias deformadas, estendendo as mãos horrendas e sujas à caridade

dos fugitivos sãos.

Antero aceitou a nova sugestão. Arranjaria cavalos para o dia imediato. Mal

terminavam as combinações, chegaram os assalariados da assistência, a fim

de removerem Fabiana para a rua do Forno. A primeira medida foi lançar o

tremendo sinal vermelho na porta. D. Inácio sentiu-se mal com o atrevimento

dos rudes enfermeiros, mas, por outro lado, considerou que partiriam no dia

seguinte para Versalhes.

— Por que essa identificação na porta quando vamos afastar daqui a única

doente? — interrogou Antero sem disfarçar a contrariedade que o assaltara.

— Sim — foi-lhe respondido —, retiramos a enfêrma, mas não sabemos se

estamos afastando a enfermidade.

D. Inácio acolheu a resposta ao sobrinho, com irreprimível espanto, mas,

calou-se na suposição de que, em breves horas, estaria respirando outros ares.

Foi muito comovedora a despedida entre a es pôsa de Cirilo e a velha

serva, que a havia acalentado quando menina, O genitor e o primo impediram

Madalena de abraçá-la pela última vez, quando passava pela sala, carregada

por grosseiros condutores. A filha de D. Inácio, no entanto, confortou-a com

palavras amorosas, ditas em voz alta. Sensibilizada com aquela manifestação

de carinho, Fabiana fêz um esfôrço e falou com doloroso acento:

— Não chore, minha menina. Se eu sarar voltarei da rua do Forno para

seguir seus passos; e, se morrer, hei de encontrar minha senhora na eternidade.

A jovem Madalena mal podia conter o pranto, apesar das observações

quase ásperas do pai.

73

A noite caiu, pesada e angustiosa.

Logo depois de sair a serva, o velho fidalgo começou a queixar-se de

prostração geral com sensações dolorosas em todo o corpo. Daí a horas,

explodia a febre devoradora, do período de incubação da enfermidade.

Madalena e o primo rodearam-lhe o leito penosamente surpreendidos. Ante as

lágrimas da filha e as preocupações do rapaz,

D. Inácio ponderava com firmeza:

— Fiquem tranqüilos, filhos! Êstes sintomas não podem ser os da moléstia

execranda. Acredito que a modificação do nosso alimento habitual, imposta

pelas circunstâncias, tenha-me prejudicado o estômago. Esta febre é natural.

Mas os gemidos abafados, a transformação fisionômica devido à febre, não

podiam enganar.

A filha não conseguira dormir. O doente não conseguia acalmar a sêde

abrasadora. Em vão recorrera a calmantes e tisanas outras, próprias da época.

A manhã surgiu com alarmantes perspectivas.

Depois de ouvir a prima, Antero procurou o quarto do enfêrmo, notando-lhe o

profundo abatimento.

— Não te impressiones comigo — dizia D. Inácio num esfôrço heróico para

conseguir a retirada de Paris. — Creio que não poderei sair a cavalo, mas é

possível que encontremos algum carro, ainda hoje...

O sobrinho, comovido, procurou confortá-lo, prometendo acelerar as

providências.

Retirando-se, tratou de trocar idéias com a prima sôbre o que poderiam

fazer. Madalena não conseguia ocultar o pessimismo. Para ela não havia

dúvidas. Era positivamente a varíola em fase de incubação. E para que D.

Inácio não fôsse transportado aos grandes centros de socorro, onde a

promiscuidade parecia convocar a morte mais depressa, era imprescindível o

máximo cuidado, em vista da identificação da porta. Aquêle sinal vermelho era

inexorável. Preocupadíssimo, Antero voltou novamente a procurar condução

para Versalhes. Tinha a impressão de que a moléstia seria benigna, uma vez

tratada noutro ambiente, longe da pesada atmosfera de Paris. Todos os

esforços foram vãos. Ansioso por atenuar os rigores da situação doméstica,

procurou um médico que se devotasse ao tratamento do velho tio, mas debalde

buscou valer-se dos seus conhecimentos e relações. Os que não estavam

foragidos, estavam prostrados, sem esperança. Disposto a alcançar qualquer

recurso, demandou o templo Magloire, onde antigo sacerdote atendia aos

pobrezinhos.

O padre Bourget recebeu-lhe a solicitação com muito carinho. Já tivera

bexigas, noutros tempos, sentindo-se à vontade entre os doentes numerosos.

Antero respirou. Era a primeira pessoa que lhe falava com sincera

tranqüilidade. O abnegado irmão dos sofredores acompanhou-o à casa cheia

de inquietação, examinou detidamente o enfêrmo que lhe seguia os menores

movimentos com angustiosa desconfiança, e acabou dirigindo-lhe palavras

confortadoras, filhas do seu hábito de consolar a todos os aflitos. Em particular,

contudo, dirigiu-se à jovem senhora e ao rapaz, dizendo-lhes:

— Em casos como êste há que encarar os acontecimentos com o máximo

de resignação e fé em Deus. Não devo ocultar-lhes que o doente inspira sérios

cuidados. Além da varíola, perfeitamente caracterizada, há outros sintomas

graves.

Madalena quis inteirar-se de tudo, conhecer os pormenores, mas sentia-se

74

impossibilitada de falar como desejava.

— Aqui virei duas vêzes por semana — concluiu o bondoso sacerdote.

Antero e a prima queriam implorar que viesse mais vêzes, que ficasse em

sua companhia, mas, considerando que a cidade quase inteira estava ao

abandono, calaram-se comovidos, certos de que seria pedir muito.

A situação doméstica prosseguiu torturante. Quando menos se esperava,

surgiam os rudes auxiliares do serviço de saúde, compelindo Ântero a maior

vigilância, para que D. Inácio continuasse em casa, às ocultas. Madalena

desdobrava-se em sacrifícios silenciosos. Desvelada e carinhosa, quase não

arredava pé do leito do genitor, que piorava a olhos vistos, O velho fidalgo

passava longas noites em franco delírio. Tinha frases estranhas, desconexas,

induzindo a filha e o sobrinho a graves reflexões.

Ao fim de uma semana, caiu a outra serva dos Vilamil e, no dia seguinte, o

lacaio apresentou os mesmos sintomas. Ântero não vacilou e mandou remover

ambos.

Agora, como acontecia em grande número de casas nobres, êle e a prima

eram obrigados a executar os mínimos serviços caseiros.

Durante quatro dias, os problemas domésticos foram solucionados

satisfatoriamente, apesar dos sacrifícios que se impunham; no quinto dia

porém, Madalena experimentou os primeiros sintomas do mal devastador.

Aflitíssima, comunicou ao primo o seu penoso mal-estar, O rapaz inquietou-se

viva-mente. Dispôs o apartamento contíguo ao do enfêrmo, buscou tranqüilizála,

afiançando que, sôzinho, se incumbiria dos trabalhos da casa. Ela aceitou o

oferecimento, de olhos molhados. Havia dois dias que experimentava

impressões orgânicas muito angustiosas e desejava repousar; todavia,

abstivera-se de falar-lhe a respeito, obediente ao imperativo de suas tarefas

pesadíssimas. O rapaz, entretanto, não só por cavalheirismo como pelo muito

amor que lhe consagrava, consolou-a com as melhores mostras de carinho,

que ela levou àconta de fraternidade sem mácula.

— Antero — disse preocupada —, não ignoramos a gravidade do estado de

papai e não sei se chegarei ao mesmo estado...

— Não te acabrunhes — murmurou o rapaz solícito —, havemos de vencer

a batalha. Tenhamos esperança nos dias que hão de vir.

— Tenho orado com fervor e não perderei a fé em Deus — acentuou a

espôsa de Cirilo, convicta.

— A Providência Divina saberá a razão de nossas provas agudas, e somos

bastante pequeninos para discutir os designios do Pai Celestial. Duas coisas,

porém, te peço...

Nesse ínterim, a voz se lhe embargara em soluços.

— Dize, Madalena! que não faria por ti? —exclamou o primo ansiando por

confortá-la com tôda a ternura que lhe vibrava nalma.

— Não me deixes à mercê dos carregadores de doentes caso a febre me

transtorne os sentidos —disse comovidamente —, pois ignoro o que seria de

mim na confusão das casas de assistência pública; e o outro favor é que

mandes um emissário a Blois, chamando o tio Jaques, de minha parte.

— Nunca te levarão para a rua do Forno —disse o rapaz com firmeza. —

Ainda que eu também venha a adoecer, haveremos de encontrar um recurso.

Quanto ao portador para Blois, é possível que não encontremos um

mensageiro que vá e volte a. Paris, mas poderei enviar uma carta ao professor

Jaques, por algum fugitivo conhecido.

75

Madalena enxugou as lágrimas num gesto triste e sentenciou:

— Deus recompensará teus sacrifícios fraternais. Quanto a despesas,

espero que Cirilo regresse da América, mais breve do que penso, e então...

O rapaz cortou-lhe a palavra, murmurando:

— Não fales em despesas. O dinheiro não deve entrar nos problemas

condizentes à nossa paz e saúde.

Naquele mesmo dia, Ântero de Oviedo encontrou alguém que abandonava

a cidade, rumo de Blois, e a carta a Jaques Davenport foi encaminhada com

boa remuneração e especial carinho.

Dai por diante o sobrinho de D. Inácio multiplicou as energias próprias para

atender as necessidades dos dois enfermos, que lhe recebiam as

demonstrações afetivas com profundo reconhecimento no olhar enternecido.

O padre Bourget, em suas visitas periódicas, meneava negativamente a

cabeça diante do velho fidalgo, cujo estado se agravava com prenúncios de

morte. Na segunda visita à Madalena, o generoso sacerdote chamou o rapaz,

ao despedir-se, e disse:

— Meu filho, todos os meus deveres nesta calamidade pública têm sido

amargos e dolorosos. Eis que devo, agora, cumprir mais um.

Antero fêz-se lívido. A solidão angustiava-lhe o espírito. A princípio, esperou

que Jaques ou Susana aparecessem dispostos a conduzir a enfêrma para

Blois, mas oito dias já haviam passado da expedição da carta. Atormentado,

procurou inutilmente as palavras com que pudesse alinhavar uma resposta ao

sacerdote, quando êste, notando-lhe a palidez, prosseguiu:

— Não te deixes abater pelo desânimo. Deus conhece os filhos que o

amam na tempestade de amarguras e é preciso amar o Todo-Poderoso, acatando-

lhe a vontade justa. Apesar de nossos esforços, meu filho, não creio que

teu velho tio possa viver mais de dois dias. Quanto à jovem, somente se

salvará porque Deus concede fôrças, que não compreendemos, aos corações

maternos; seu estado, porém, é melindroso e difícil. Tenho quase certeza de

que ela se curará da moléstia terrível, mas não sabemos quando poderá

levantar-se da cama.

Antero de Oviedo sentiu funda revolta naquele penoso instante da vida.

Embora reconhecido à boa vontade do sacerdote, experimentou um desejo

forte de enxotá-lo com violência. Não haveria outras novas senão aquelas de

angustiados vaticínios? Em outra ocasião, se estivesse diante de um médico,

dir-lhe-ia pesados impropérios; mas a verdade é que ali estava rodeado pela

varíola sinistra, sem amigos, sem ninguém. Mesmo assim, não disfarçou um

gesto de profundo rancor e falou revoltado:

— Está bem, padre Bourget. Fico ciente de que o senhor nada mais tem a

fazer aqui.

O velho ministro da Igreja contemplou o rapaz, compadecidamente, e saiu.

Quando se viu novamente só, o moço espanhol entrou em funda meditação e

chorou desesperado. Tinha dinheiro, dispunha de relações prestigiosas, no

entanto, via-se privado das coisas mínimas da vida. De um lado, o velho tio, a

quem considerava como pai, a franquear os umbrais da morte, sem o confôrto

de um médico à cabeceira; de outro lado, a prima muito amada, a eleita da sua

juventude, na febre intensa que a fazia delirar, delindo-lhe o coração. D.

Margarida, amiga maternal de sua infância risonha, partira para sempre. Os

servos da casa haviam saído, um a um, aos golpes da impiedosa enfermidade.

D. Inácio estava moribundo, conforme o afirmava o padre Bourget. E se

76

Madalena também partisse para as regiões ignoradas do sepulcro? A êsse

pensamento, um frio cortante lhe dominou o coração. Ela era sua derradeira

esperança. Por que suportar a permanência na França, senão por ela? A

Espanha tinha outros muitos encantos que o chamavam com insistência.

Entretanto, sentia quase prazer nos trabalhos pesados de Paris e Versalhes,

porque isso lhe dava a oportunidade de vê-la todos os dias. Não fôsse a

ternura da mãe adotiva e teria aniquilado Cirilo Davenport, antes que êle a

desposasse. Tolerara o ato de suas núpcias com o rapaz irlandês, mas nunca

renunciaria aos seus propósitos. Por último, perseverava em afrontar a

situação perigosa da capital francesa, tão somente por seu amor. No íntimo

reconhecia-se capaz de todos os sacrifícios por D. Inácio; entretanto, verificava

que ainda isso seria por causa de Madalena. A idéia de que ela pudesse

sucumbir no torvelinho das provações amargas, amedrontava-o tenazmente. O

coração, ferido pelos cuidados, começou a perturbar-lhe os raciocínios. Passou

a pensar fortemente na situação de Cirilo. Era possível que o rival nunca mais

regressasse da América distante. Se tal acontecesse, consagrar-se-ia ao único

tesouro da sua vida. Buscaria cativar a prima pelas maneiras generosas.

Acolheria o fruto do seu enlace ao outro com desvelos paternais. E, quem

sabe? Talvez Madalena lhe reconhecesse a dedicação e cedesse aos seus

rogos. Os maus pensamentos rondaram-lhe a mente. E se fugisse com ela

para a colônia do sul, seduzindo-a com a promessa de encontrarem o marido

na América do Norte? Não faltariam pretextos para isso, principalmente depois

que Dom Inácio Vilamil expirasse. O único empecilho a considerar, na

realização do execrando projeto, seria a presença de Jaques Davenport, mas

quem podia saber o que acontecia lá em Blois? Antero de Oviedo passou as

mãos pela fronte como se quisesse expulsar os planos criminosos que o

assediavam.

Diàriamente quase, atendia aos carregadores de variolosos, que vinham à

cata de informações, atraidos pelo sinal fatídico:

— Aqui não há mais enfermos — declarava invariàvelmente.

Certa ocasião, todavia, um deles interrogou:

— Por que, então, teima em permanecer numa casa tão triste?

— Tenho razões para proceder assim sentenciou sem se dar por achado.

As lutas prosseguiam acesas, mas, na segunda noite após as declarações

do padre Bourget, Antero tinha confirmados os dolorosos prognósticos. Corrido

o dia de longos sofrimentos, o velho tio caiu em funda prostração, agonizando

aos poucos. De quando em quando, Ântero corria ao quarto de Madalena e

voltava para junto do moribundo, que, ao romper dalva, entregou a alma ao

Criador. Absolutamente só, tomou as providências imediatas, aguardando o

clarear do dia para atender a outras que se tornavam imprescindíveis. Doloroso

pensamento acudiu-lhe ao cérebro cansado. Deixaria Madalena sôzinha, febril,

qUase inconsciente de si própria? E os enfermeiros abomináveis? Consolou-se

com a idéia de que sempre vinham àtarde, e que sairia a providenciar sepultura

mais ou menos condigna para D. Inácio, pela manhã, no Cemitério dos

Inocentes. Deixaria a porta bem fechada. Tomaria providências à pressa e,

antes do crepúsculo, tudo estaria liquidado para que continuasse enfrentando a

nova fase, da penosa situação.

Mergulhado nessas dolorosas cogitações, Ântero repousou alguns minutos.

A carta do sobrinho de D. Inácio chegou às mãos do destinatário, em Blois, três

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dias depois de escrita. O boníssimo educador alarmou-se, embora estivesse

igualmente de cama, atacado pela mesma enfermidade, pôsto que, de forma

assaz benigna. Impossibilitado de atender ao chamado, consultou Susana a

propósito e a jovem acedeu corajosamente:

— Logo que o senhor esteja melhor — disse resoluta — irei a Paris para

atender às ocorrências.

— Mas não tens qualquer receio? — perguntou o genitor bondosamente —

porque, nessa hipótese, poderei enviar algum amigo daqui, já provado pela

moléstia e indene de contágio.

— Não, meu pai — insistiu a jovem, afetando generosidade —, êstes casos

devem ser resolvidos pelos próprios parentes. Levarei Pierre comigo e é

quanto basta. Nossa vizinha conhece remédios preventivos de primeira ordem

e não devo temer.

Jaques Davenport endereçou à filha um olhar de agradecimento sincero.

Logo que se acentuaram as melhoras do pai, Susana tomou as

providências, chamou Pierre, empregado de sua inteira confiança e

encaminhou-se a Paris, conduzindo no pequeno veículo todos os reduzidos

objetos de socorro de que poderia precisar, tanto em remédios como em

armas.

À medida que avançava nos caminhos, mais se espantava com a

mendicância e a desolação de morte espalhadas por tôda parte. Não obstante

o esfôrço despendido, foi obrigada a pernoitar num dos postos de muda,

próximo da cidade, para chegar às portas parisienses apenas no dia seguinte

de manhã.

Em frente à casa dos Vilamil, em Santo Honorato, Susana entregou as

rédeas ao companheiro e encaminhou-se à porta assinalada, algo comovida.

Bateu inutilmente. Que teria acontecido? Forcejou debalde a porta, que parecia

hermeticamente fechada. Não se conformou com isso. Deu alguns passos

buscando o ângulo lateral da casa, que dava para o jardim. Preocupada,

empregou tôda a fôrça na janela mais próxima, até que esta cedeu, oferecendo

fácil passagem. Logo de entrada, pareceu-lhe tudo deserto e tomou-se de

assombro, embora a coragem de que dava testemunho. Conhecia o perigo que

enfrentava, mas não vacilou. Depois de alguns passos, entrou no quarto onde

o cadáver do velho fidalgo jazia deformado sôbre o leito. Não pôde evitar um

gesto de espanto. Tinha a impressão de haver ingressado num túmulo.

Conteve as emoções mais fortes e avançou para o quarto contíguo, ocupado

por Madalena. A situação da espôsa de Cirilo impressionou-a fundamente. A

filha de D. Inâcio repousava num sono cheio de abatimento singular. Não

obstante a fase eruptiva, quando se atenuam os dolorosos fenômenos do

período de incubação, Madalena Vilamil estava prostradíssima, sob a pressão

de altíssima febre. As môscas terríveis pousavam-lhe no rosto lacerado, sem

que ela reagisse, de leve. Susana inclinou-se para a rival, profundamente

impressionada. Onde estaria Ântero de Oviedo? Intuitivamente, chegou à

conclusão de que o rapaz estaria no Cemitério dos Inocentes, providenciando

sepultura digna para D. Inácio. A desolação da casa inquietava-lhe o espírito.

Sentia necessidade de alguém para repartir a aflição própria. Voltou à janela e

dirigiu-se à rua, desejosa de consultar a vizinhança.

— Pierre — disse ao servo, resoluta —, tenho necesidade de colhêr

informes nas casas próximas e recomendo-te muito cuidado na vigilância do

animal e também desta morada. Logo que chegue alguém, busca-me sem

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tardança.

Enquanto o serviçal fazia um sinal de obediência, Susana bateu os

arredores, mas tôdas as portas estavam silenciosas e impenetráveis. A epidemia

alastrara o terror, despovoara os lares e, além disso, os moradores de

Paris não conheciam a camaradagem fraternal da pacata Blois. A moça,

porém, não desanimava: esmurrava portas, chamava, insistia. Ao parar à porta

de uma casa mais distante, prosseguindo na diligência inútil, eis que surge

Pierre, ofegante, chamando-a:

— Apressai-vos porque um grupo de cinco homens, depois de observar o

sinal vermelho, arrombou a porta, penetrando na casa.

Susana retrocedeu aos saltos. Algumas carriolas fechadas permaneciam

na via pública. Num ápice compreendeu que os execráveis veículos coletavam

os mortos da manhã.

Grandemente revoltada pela desenvoltura com que agia a turma de

socorro, a prima de Cirilo penetrou afoitamente no interior.

Dois homens musculosos começavam a deslocar o cadáver de D. Inácio

Vilamil, enquanto três outros tentavam erguer Madalena, desalojando-a do

leito.

— Que é isto? — bradou enérgica e estridente.

Os invasores tremeram ouvindo-lhe a voz impulsiva. Imediatamente se

detiveram na lúgubre tarefa e acercaram-se da jovem, como se atendessem a

uma voz de comando. Num relance d’olhos, Susana percebeu que eram

operários rudes e avinhados.

— Senhora — exclamou um que parecia o chefe da turma —, por ordem do

Preboste, auxiliamos a remoção e sepultamento dos cadáveres...

— Mas estão enterrando pessoas vivas em Paris?

A essa pergunta formulada em tom enérgico, os míseros encarregados dos

serviços fúnebres entreolharam-se receosos.

— Mas aqui há dois mortos — respondeu o interpelado timidamente -

Susana nesse instante foi assaltada por um pensamento sinistro. E se

permitisse que a rival detestada seguisse como cadáver nas miseráveis

ambulâncias? Não seria um modo prático de se desvencilhar de tão odiada

inimiga? Madalena estava coberta de môscas, sem a mais leve reação. Seu

corpo, abrasado pela febre, parecia insensível. Não teria testemunhas do ato

trágico do seu negro atentado. Mas a idéia do crime lhe repugnou.

Lutou contra a tentação dos instintos inferiores e bradou em voz alta,

estentórica, como se quisesse afugentar o gênio perverso que pretendia

empolgá-la.

— Para trás, corvos malvados! Não vêdes, então, que esta mulher está

viva?

Essa exprobração foi gritada de maneira tão violenta que os infelizes

tremeram, humilhados.

— Cumpríamos ordens, senhora — aventurou o chefe titubeante —; já que

reagis contra nós...

— Rua! todos... — bradou Susana indignada — esta casa tem dono. Não

arredarão daqui uma palha. Se retirarem um objeto, mandarei encerrá-los na

Bastilha.

Quando ouviram falar no cárcere e diante daquela resistência imprevista,

ainda não encontrada em outros lares, onde as famílias pareciam ansiosas por

se libertarem dos cadáveres e dos doentes graves, a qualquer preço, os cinco

79

trabalhadores regressaram à via pública, retomando com timidez a lúgubre

tarefa.

Uma vez só, a filha de Jaques entendeu que não devia ficar inativa. A idéia

de que poderia ter afastado Madalena do seu caminho, perseguia-a agora,

horrivelmente. Se a filha de D. Inácio tivesse morrido, estaria livre para

conquistar Cirilo, na América. Convenceria o pai de que deveriam partir para a

colônia distante e buscaria substituir a rival junto do primo, que não conseguiu

esquecer. Experimentando imenso receio das idéias que lhe surgiam no

cérebro com fortes apelos ao crime, refletiu que era preciso encontrar Antero

para assentar as providências que a situação exigia. Se o rapaz não tivesse

fugido de Paris, estaria, por certo, no Cemitério dos Inocentes. Era a única

explicação que lhe ocorria para justificar sua ausência naquele ambiente de dor

infinita. Urgia encontrá-lo. Poderia enviar Pierre ao seu encalço, mas o servo

não o conhecia. Deliberou procurá-lo pessoalmente.

Ordenando ao rude auxiliar se conservasse de guarda à porta dos Vilamil,

de arma em punho, Susana concluiu:

— Não te afastes daqui para coisa alguma.

E depois de dar os sinais de Antero como a única pessoa autorizada a

transpor aquela porta, tomou a viatura e fustigou o animal a galope, em direção

ao Cemitério dos Inocentes.

A prima de Cirilo não se enganava. Logo na portaria encontrou o sobrinho

de D. Inácio, que esperava a vez de ser atendido por gordo abade, chegado de

poucos instantes.

Antero acolheu a jovem com infinita alegria. Era alguém que chegava para

compartilhar de seus trabalhos e angústias. Susana contou-lhe o feito terrível

da manhã e, observando-lhe a inquietação justa, informou que a porta de

entrada estava agora sob a guarda de um servidor fiel. O rapaz relatava as

lutas e amarguras experimentadas, até que o eclesiástico, velhinho amável e

bonacheirão, de rosto marcado pela varíola impiedosa, o chamou para anotar

as devidas declarações.

Aproximara-se.

— Muito trabalho, reverendo? — perguntou a moça desejando amenizar a

triste situação.

— Ah! sim, minha filha — aqui estou a postos há três longos dias, sem

companheiros que me substituam. Ainda bem que já sofri a pérfida enfermidade

que nos tem castigado com tanto rigor.

E o abade Montreuil abriu um caderno de notas provisórias. Susana

contemplou curiosamente a nominata das últimas pessoas sepultadas. Entre os

mortos da véspera, leu um nome que constituía a seus olhos impressionante

coincidência:

“Madalena Villar, espanhola, procedente do arrabalde de Santo Honorato,

com vinte anos de idade.”

Susana não mais ouviu as declarações de Antero ao superintendente do

grande estabelecimento funerário, para só pensar nas idéias extravagantes que

lhe acudiam ao cérebro atormentado. Defendera a rival contra os carregadores

infames, mas também não queria perder a sua oportunidade em renovar a

grande tentativa de suas paixões inferiores. Reagira ao impulso criminoso de

incluir a espôsa de Cirilo entre os cadáveres destinados a vala comum e agora

estava Considerando que se o plano constituísse uma falta, esta não seria tão

grave aos seus olhos, O nome da morta, ali registrado fortuitamente, sugeria80

lhe um rol de projetos nefandos. A rival poderia passar, doravante, por morta,

se Antero de Oviedo aderisse aos seus propositos. Bastaria modificar o nome

Villar para Vilamil. Além disso, a seu ver, no quadro da sua paixão mesquinha,

a providência seria uma retificação do destino. Jamais poderia amar outro homem

a não ser Cirilo Davenport. O sobrinho de D. Inácio Vilamil, por sua vez,

segundo lhe confessara, jamais se uniria a outra mulher que não fôsse

Madalena. A idéia a estonteava. O veneno sutil da tentação empolgou-a por

completo. Esperou, ansiosa, que o rapaz terminasse o diálogo com o abade

Montreuil e, quando êle se dispunha a regressar, pediu-lhe um minuto de

atenção para assunto de grande importância para ambos, O moço atendeu,

curioso e solícito.

Afastando-se alguns passos, até à sombra de velho muro, Susana

começou discretamente:

- Nunca pensei tanto na sua situação, como agora: D. Margarida já não é

dêste mundo, seu tio acaba igualmente de partir e Madalena exige os seus

cuidados. Não considera, porventura, as lutas que o esperam? Desde que me

confiou seus padecimentos íntimos em troca da minha confiança fraternal,

reflito na insatisfação da sua alma generosa.

— Sim, tudo isso é verdade — confirmou êle num suspiro.

— Esta situação me impressiona e comove, porque suas aspirações

irrealizadas são gêmeas das minhas. Sofro, ainda mais, porque estou certa de

que Cirilo se casou com Madalena mais por um capricho. Meu primo não

poderá amá-la, nunca, e reconhecendo tudo isso vejo-o, por outro lado, incapaz

de eleger outra mulher.

A jovem de Blois ia percebendo o profundo efeito das suas palavras.

Mostrando-se sumamente reconhecido ao seu cuidado, o sobrinho de D. mácio

acrescentou:

— Estamos de perfeito acôrdo.

- Ela aproveitou a brecha e lançou a grande interrogação:

— Não será justo retificar tão avaro destino por nossas próprias mãos?

O rapaz que, há dois dias, vinha refletindo no melhor meio de subtrair

Madalena ao marido emigrado, embora a luta íntima por se desembaraçar de

semelhante sugestão, perguntou atônito:

— Retificar... mas como?

— Não será tão difícil — murmurou ofegante, a jovem.

E passou a expor o plano que lhe acudia ao cérebro apaixonado. Pagariam

ao abade Montreuil o trabalho de emendar a grafia do nome da enterrada da

véspera. Madalena Vilamil e não Villar, para todos os efeitos. Identificariam o

sepulcro com adornos preciosos, antes que eventuais interessados

pretendessem descobrir qualquer engano. Em casa, contudo, tratariam a

enfêrma com desvelado carinho e logo que melhorasse notificá-la-iam por

carta, que ela, Susana, se incumbiria de expedir em Blois, que Cirilo havia

perecido em naufrágio, antes de chegar às terras americanas. Naturalmente,

grande desgôsto lhe adviria, mas Antero buscaria distraí-la levando-a para a

Espanha, ou mesmo para a colônia sul-americana, onde já tinha parentes. Ela,

Susana, compeliria o velho pai a partir e procuraria renovar seus ideais

amorosos junto do homem amado, enquanto êle, Ântero, conquistaria a prima

acenando-lhe com risonho porvir.

O moço castelhano estava enlevado. Afinal de contas, não era isso mesmo

que tentara, em vão, descobrir? Procurara ardentemente uma fórmula sutil, que

81

sômente agora lhe aparecia por inspiração de Susana, ali, junto dos sepulcros,

onde não havia olhos nem ouvidos humanos capazes de recolher o segrêdo

terrível. Olhar fixo, abstraído de quaisquer outras cogitações, êle

experimentava a renovação dos recalcados impulsos. A sugestão dava-lhe a

vitória. Sentiria prazer em comunicar a Madalena que o marido se abismara no

torvelinho das águas insondáveis. Levá-la-ia à Espanha e, de lá, se possível,

demandariam a América do Sul, cheia de lendas fantásticas. Daria largas ao

espírito aventureiro que lhe palpitava nas veias. A prima, em breve, se

escapasse à varíola, teria uma criancinha necessitada de proteção paternal.

Dar-lhe-ia essa proteção. E aos seus olhos afigurava-se incrível que Madalena

lhe repelisse a afeição em tão duras circunstâncias. A filha de Jaques acompanhava-

lhe a expressão fisionômica, visivelmente satisfeita.

Como a despertar de um sonho, o moço acentuou:

— Magnífica inspiração! Há dois dias buscava, em vão, um meio de

reconstituir minha tranqüilidade. Realizando êsse plano já não serei o mais

desgraçado dos homens.

— Ainda bem! — retrucou a jovem em tom de alegria.

— Mas... os detalhes? — volveu Ântero ansioso. — E o servo que te

acompanha e lá está à nossa porta?

— Não te incomodes — esclareceu resoluta.

— A titulo de preservar-lhe a saúde, mandarei que me espere no pôsto de

muda, próximo de Paris. Quanto ao resto, é muito fácil para nós ambos.

Amanhã mesmo aqui voltarei para providenciar um mausoléu adequado a D.

Inácio e filha. Logo que Madalena melhore, regressarei a Blois, onde

cientificarei a meu pai, do seu falecimento. Sabendo quanto êle a estima,

convirá que te mudes para algum bairro distante, ou para Versalhes, porque

naturalmente desejará visitar-lhe o túmulo e rever a casa onde ela se finou. Um

mês depois do meu regresso, escreverei de Blois comunicando-te, bem como à

tua prima, o naufrágio de Círio e a nossa resolução (minha e de papai) de

seguir para a América. Dêste modo, a meu ver, tudo ficará bem concluído.

Antero mal escondia a grande surprêsa. A jovem arrazoava tão clara e

naturalmente, que as providências mais se assemelhavam a velho projeto

apenas dependente de oportuna aplicação. De qualquer modo, entretanto, a

satisfação do moço espanhol era enorme e intraduzível. Depois do solene

juramento de sigilo perpétuo, dirigiram-se ao oratório do abade

superintendente, a quem Susana falou nestes têrmos:

— Reverendo Montreuil, desejamos um grande obséquio da sua parte.

— Dizei sem receio — respondeu o interpelado com benevolente sorriso.

Antero parecia hesitante, a jovem prosseguiu:

— Por nossa infelicidade, perdemos ao mesmo tempo um tio e uma prima e

desejaríamos que seus túmulos ficassem fronteiros.

— Isso não é difícil — retrucou o eclesiástico —, mas, como talvez não

ignorem, as autoridades religiosas ordenaram a abertura de certa zona do

cemitério aos que possam concorrer para as nossas obras pias com os óbolos

mais vultosos. Assim sendo, poderemos atender ao vosso desejo, mas, isso

custará mais cinqüenta francos.

—. Pagaremos de bom grado — declarou o sobrinho de D. Inácio, mais

animado.

— Agora, reverendo, ainda um outro favor —acrescentou a filha de

Jaques resolutamente —, precisamos ver o local em que foi sepultada

82

Madalena Vilamil, nossa prima, na data de ontem.

O abade tomou maquinalmente o caderno e perguntou:

— Madalena Vilar?

— Há evidente equívoco — interpôs a moça acompanhando a leitura —; o

nome de família é Vilamil. Rogo-lhe o obséquio de uma corrigenda.

O superintendente esboçou um sorriso e explicou:

— A retificação, porém, custa mais cinqüenta francos. Não vos admireis,

filhos, a caridade da Igreja assim exige.

— Do melhor grado — redargüiu Susana sem vacilação.

O abade Montreuil retificou o nome, mas Susana ainda não se dava por

satisfeita.

— Agora — disse ela com naturalidade — desejo uma certidão, ou cópia

dos registros.

O reverendo não teve dificuldade em atender ao novo pedido, depois de

exigir mais umas dezenas de francos.

A prima de Cirilo, não obstante a paisagem fúnebre do momento, não

dissimulava a satisfação que lhe ia nalma. Ao retirar-se, depôs nas mãos do

superintendente surprêso a quantia de cem escudos, assim dobrando as

exigências da sua tabela.

O sepulcro destinado ao fidalgo espanhol foi escolhido junto ao presumido

túmulo da filha. Consumara-se o passo decisivo para a dolorosa modificação

do destino de nossas personagens.

Com energia incrível, Susana cooperou em tôdas as providências necessárias

ao sepultamento de D. Inácio, valendo-se de Pierre nesse sentido. Em seguida,

mandou que o servo a esperasse no pôsto de muda, a poucos quilômetros de

Paris e auxiliou Antero até que Madalena convalescesse. Para o sobrinho dos

Vilamil, essa colaboração foi preciosa, permitindo-lhe reparar a fadiga imensa.

Desejosa de captar-lhe uma simpatia cada vez mais profunda, a jovem

irlandesa tudo fêz pelas melhoras da enfêrma, esforços êsses que Antero

acompanhava com um sorriso de sincero reconhecimento.

Ao fim de uma semana, Madalena estava em vias de franca

convalescença. A morte do genitor causara-lhe profunda consternação, mas a

esperança de reunir-se, em breve, ao espôso, renovava-lhe as energias.

Ante suas perguntas afetuosas, Susana explicava que o pai não pudera vir

a Paris, por ter sido igualmente empestado, mas haveria de o fazer, tão logo

lhe permitissem as fôrças restauradas.

— E Cirilo? — perguntou, logo que voltara a si do estado delirante — não

há em Blois notícias de sua chegada à América?

— Por enquanto, nada de positivo — esclarecia a outra.

Mas, ensaiando a trama do criminoso drama, acentuava:

— Amigos recentemente chegados do Ulster afirmaram-nos que duas

embarcações do capitão Clínton haviam naufragado no litoral da colônia

distante, mas, até agora, temos esperado, ansiosamente, informes detalhados

do sinistrô.

A pobre senhora considerou, muito pálida:

— Como isso me assusta! Espero em Deus nada haja acontecido de mal,

pois de há muitos meses venho entregando Cirilo à proteção da Virgem

Santíssima.

— Também eu — ajuntou a jovem — estou certa de que a Providência

Divina não nos esquecera.

83

Decorrida a semana que assinalara as melhoras promissoras de Madalena

Vilamil, entre conversações afetuosas no domínio das palavras, Susana

Duchesne Davenport regressou ao lar, levando ao pai a noticia das dolorosas

ocorrências.

O generoso Jaques teve um profundo abalo. Ao saber que os Vilamil

haviam desaparecido em circunstâncias tão trágicas, sentiu-se inconsolável.

Revia ainda, na imaginação, a resignação silenciosa de Madalena por ocasião

da morte de D. Margarida e lembrava, com espanto, o modo pelo qual insistira

para que ela o acompanhasse a Blois. Tinha a impressão de ouvir as negativas

reiteradas de D. Inácio e sua oposição irredutível ao convite afetuoso.

Concluía, então, que, certamente, interferiram nos fatos os ascendentes da

Vontade Divina, que lhe não eram dado conhecer ou investigar. Durante um

mês, não deixou um só dia de confugir-se em dolorosas recordações. E estava,

na verdade, exausto. Enfraquecido pela enfermidade cruel, a convalescença

parecia prolongar-se indefinidamente, pela sua invariável tristeza. À retina dos

olhos fatigados, desdobrava-se a fila dos alunos mortos. Muitas crianças de

Blois haviam sucumbido, nada obstante a relativa benignidade do mal, nos

ambientes campesinos. O bondoso educador pensava na reabertura das aulas,

grandemente apreensivo. Um dia a filha se aproximou do seu banco, entre as

árvores farfalhantes do parque, e dirigiu-lhe a palavra comovidamente:

— Papai, tudo tenho feito para que seus sofrimentos sejam atenuados e

suas lágrimas menos abundantes.

— Ah! minha filha, não te incomodes por mim — exclamou em tom de

suprema resignação -; as lágrimas que menos dilaceram a alma devem ser as

que nos caem dos olhos aliviando o coração.

— Hoje, porém, noto que o senhor está mais triste — acrescentou afetiva.

— A resposta do Sr. Ântero de Oviedo, descrevendo-me os derradeiros

sofrimentos de Madalena, muito me comoveu. A pobrezinha deveria ter

padecido muito, antes de entregar a alma a Deus. De qualquer modo, porém,

essa carta veio encerrar o capítulo das minhas preocupações, pois nutria

certas dúvidas relativamente à criança. Agora, fico sabendo que a primeira flor

do matrimônio de Cirilo não chegou a desabrochar. E enquanto êle enxugava

uma lágrima, Susana acrescentava:

— Meu pai, nunca experimentei tanta angústia em França, como agora. Em

cada canto tenho a impressão de contemplar fantasmas de amarguras a

perseguirem-nos sem tréguas. Não lhe parece razoável a idéia de nos

juntarmos aos nossos parentes lá na América? Aqui, em Blois, desapareceram

com a peste devastadora os alunos que mais o compreendiam. Carolina

parece não se lembrar mais de nós, e quanto aos laços que prendiam Cirilo a

Paris, restam apenas dois túmulos tristes no Cemitério dos Inocentes.

Jaques Davenport fitou a filha lacrimosa e exclamou:

— Tens razão.

Olhou o recinto enorme e silencioso, pareceu escutar atento o sussurro das

frondes balouçadas pelo vento e falou:

— Quando Cirilo partiu, outros eram meus planos, mas agora meu velho

parque também está morto. O frio mais doloroso é o da desilusão e da

saudade, minha filha...

Susana não insistiu. Compreendeu que aquelas palavras equivaliam a

compromisso firmado para o futuro. Dai a dois meses, pai e filha realizavam

84

uma romaria ao túmulo de Madalena. Providenciaram para que fôssem as

sepulturas assinaladas por lousas preciosas. Sôbre a de D. Inácio o professor

de Blois mandou colocar uma cruz; mas, identificando a campa onde supunha

descansar aquela a quem amara como filha, elegeu para ornamentá-la formosa

figura de anjo trazendo na destra um róseo coração atravessado por um

punhal, ignorando a extensão do grandioso símbolo. Também mandaram

gravar epitáfios de saudade e fé, em frases afetuosas. Jaques fêz ainda

questão de visitar a casa de Santo Honorato, onde se haviam desenrolado os

lutuosos acontecimentos. Encontrando-a fechada, indagou da vizinhança

relativamente aos criados, de vez que Antero de Oviedo, na missiva que lhe

enviara para Blois, datada de Versalhes, participava a decisão de regressar à

Espanha dentro de poucos dias. Fabiana havia falecido, mas a outra serva e o

lacaio haviam conseguido escapar à morte. O professor também procurou

visitá-los na residência de Santa Genoveva, onde trabalhavam, sendo que

ambos se diziam informados, por Antero, do falecimento da jovem senhora e

do velho patrão, cuja perda recordavam chorosos.

Em Paris, após o regresso de Susana para Blois, a situação continuou

muito mais triste e estranha para Madalena, incapaz de avaliar tôda a trama

dolorosa que lhe negrejava o destino.

Seu estado geral melhorou e, no entanto, segundo previra o padre Bourget,

os pés lhe ficaram inertes, quase paralíticos. Enquanto se mantinha imóvel, as

dores se atreguavam; mas, tentasse soerguer-se e andar, logo reapareciam as

sensações estranhas, forçando-a a sentar-se no leito, O primo, porém,

desfazia-se em atenções e desvelos. Tão logo voltou Susana à casa paterna,

êle providenciou a mudança para Versalhes, com assentimento da enfêrma, ela

mesma ansiosa por outro ambiente e crente de que isso lhe atenuaria o malestar

orgânico. O sobrinho de D. Inácio ainda notificou às relações mais íntimas

dos Vilamil — como, por exemplo, as famílias de Colete e Cecília — o passamento

do velho fidalgo e da filha, acrescentando informações sôbre a situação

dos respectivos túmulos no Cemitério dos Inocentes. Aos vizinhos fêz constar

os mesmos informes com mensagens verbais aos velhos servos, caso

escapassem dos martírios da rua do Forno.

Asseguradas tôdas as providências de conformidade com a sua argúcia

psicológica, tratou da mudança para Versalhes, efetuando-a alta noite e

valendo-se da confusão ainda reinante no bairro desorganizado pelas

conseqüências da epidemia devastadora. Ao raiar de um lindo dia, Antero

chegou com a convalescente à pequena cidade da Côrte, onde se instalou

numa casa confortável dos arredores.

A necessidade de uma serviçal de confiança era o que mais se impunha.

Um amigo indicou-lhe uma órfã castelhana, de nome Dolores, que havia

perdido a mãe, única pessoa de família que lhe restava na vida, entre os

mortos de Vincennes. A pobre criatura fôra apanhada semimorta, na estrada de

Evreux, quando tentava fugir dos tristes quadros parisienses. Estava quase

restabelecida e podia prestar ótimos serviços. O sobrinho de Dom Inácio

procurou-a e de fato encontrou nessa jovem de vinte anos, de tez amorenada

— pois descendia de pai outrora escravo —, uma companheira abnegada para

Madalena, que a recebeu de braços abertos, num verdadeiro transporte de

consolação e de alegria.

Sob o guante das provações que a sitiavam, a espôsa de Cirilo não

85

conseguia dissimular a estranheza que lhe causava a falta de notícias do professor

de Blois. Debalde escrevera-lhe duas longas cartas, mal podendo

imaginar que haviam de ser consumidas pelo primo, encarregado de as

expedir, e assim se mantinha de coração pressago.

Ao fim de algum tempo, nasceu-lhe a filhinha sob a assistência carinhosa

de Dolores, que se revelou irmã dedicada e fiel, nas mínimas circunstâncias, O

advento encheu a casa de brando confôrto e Madalena, guardando a recémnascida

nos braços, com infinito carinho, chamou-lhe Alcione pela primeira vez.

Longa missiva foi escrita a Jaques e entregue ao primo, mas êste, que a

reduziria a cinzas instantes depois, já se encontrava sumamente preocupado

com a demora da mensagem de Blois, anunciando o suposto desaparecimento

de Cirilo.

Sômente um mês depois do nascimento da menina, chegava a Versalhes

longa carta de Susana, participando, em nome de Jaques, o suposto

falecimento de Cirilo Davenport. A missiva desdobrava-se em considerações

dolorosas, ao mesmo tempo que procurava confortar a viúva na sua grande

dor. A jovem comunicava igualmente que havia resolvido mudar-se para a

Irlanda, onde o pai desejava juntar-se a alguns parentes e lá esperar o seu

têrmo de vida. Prometia escrever-lhe futuramente, dando informes mais

minuciosos da nova situação.

Antero, fingidamente comovido, leu a carta àpobre moça — que não

desejava outra coisa senão morrer, ali mesmo, na imensidade da sua desdita.

Quase paralítica, Madalena Vilamil era obrigada a chorar diante do primo e de

Dolores, que, em vão, procuravam consolá-la.

Sentia-se só e desamparada no mundo. Cirilo era a sua derradeira

esperança na Terra. Coração sufocado de angústia, rememorou a infância, a

primeira juventude cheia de cuidados por sua mãe e lembrou a figura do

mendigo de Granada, que lhe predissera dissabores e amarguras no porvir. Estava

doente, sem o arrimo afetuoso de ninguém, sentia-se a mais desditosa

das criaturas. Debalde a nova serva rodeou-a de gentilezas carinhosas.

À noite, Antero aproximou-se fundamente sensibilizado e falou-lhe com

brandura:

— Madalena, nem tudo está perdido.

— Nada mais me resta — murmurou entre lágrimas. — Tenho lutado

corajosamente contra a adversidade, mas agora...

O primo sentou-se ao seu lado e continuou:

— És moça e Deus não te negará saúde para reconquistares a felicidade

que parece destruída. Poderás contar comigo em tôdas as circunstâncias.

Também sou um homem e não me faltam energias para vencer nas lutas mais

ásperas.

A prima contemplou-o através do véu de pranto, para verificar a diferença

de expressão magnética daquelas palavras em confronto com as vivas

recordações do espôso. Cirilo também lhe falava assim, nas horas tristes, mas

seus gestos e mesmo a entonação da voz eram profundamente diversos. Num

instante, compreendeu até onde Antero desejava chegar, reconhecendo que

poderia estimá-lo como a um irmão; jamais, porém, poderia aceitar-lhe o velho

sonho conjugal, de outros tempos.

— Não duvido da sua amizade valiosa — esclareceu a suposta viúva com

delicadeza fraternal

—, mas a morte de Cirilo deixa-me aniquilada para sempre.

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— Mas tens uma filha a exigir teus desvelos — advertiu algo enciumado,

apelando para os seus sentimentos de mãe.

Madalena tomou Alcione ao colo, como a buscar o derradeiro motivo do seu

apêgo ao mundo, enquanto o rapaz continuava:

— Não te deixes abater por impressões transitórias. A luz volta do céu,

diàriamente, a alegria se renova sempre. A ventura tornará depois dos dias

amargosos de adaptação aos novos hábitos. Tenho pensado nas muitas dores

que nos provaram na França e também estou ansioso por mudar de vida. Dize

uma palavra e levar-te-ei aonde quiseres. Não desejarias ir à nossa Espanha

muito amada? Se te prouver, tornaremos a Granada, a fim de recordar nossa

infância feliz e descuidosa. Veremos de novo o céu da pátria e Alcione

crescerá à sombra do nosso afeto.

A tais palavras comovedoras, Madalena quis dizer que desejava ir para

Blois imediatamente, a fim de ajoelhar-se aos pés de Jaques, implorando-lhe

não a abandonasse com a criancinha. Suplicar-lhe-ia que a levasse consigo

para a Irlanda, depois de confiar-lhe suas grandes mágoas. Poderia, então,

esperar tranqüilamente a morte, confiando-lhe Alcione como sua própria filha.

No entanto, lembrou que o educador e Susana haviam sido muito reservados

na sua mensagem dolorosa. Ambos deviam conhecer a enormidade da sua angústia,

os apuros em que se via e, nada obstante, não Lhe haviam mandado

sequer um convite para acompanhá-los na Irlanda. Não seria justo perturbá-los.

Além disso, guardava nítidas as reminiscências da fase difícil, enfrentada por

ocasião da longa moléstia de sua mãe. Possivelmente, o tio de Cirilo havia de

acolher-lhe as súplicas com a sua bondade inata, mas, ponderou que Susana

talvez lhe respondesse como a senhora de Saint-Medard. Depois de muito

refletir, voltou a dizer:

— Compreendo que minha filha necessita da minha assistência constante

e que não devo desanimar, mas a verdade é que me sinto desorientada e

doente. Como encarar a possibilidade de mudanças se nem me posso

locomover?

— E para que servem os carros? — disse êle enternecido — poderemos

partir quando quiseres. Alcione terá minha afeição paternal, e quando te

restabeleceres hás de reconhecer que a ventura tem modalidades infinitas.

Madalena concentrou-se um instante e declarou:

— De nada valem as mudanças quando padecemos de males incuráveis;

mas, se fôsse possível, partiria para Connecticut, a fim de colhêr as derradeiras

notícias de Cirilo. A carta de Blois conta que o naufrágio ocorreu nas costas da

colônia. Quem sabe se foram salvos alguns náufragos? A família Davenport

compunha-se de várias pessoas. Minha sogra parecia uma criatura virtuosa e

santa. É bem possível que lá esteja e me receba com carinho. É verdade que

não me conhecem, mas tenho as cartas afetuosas que me escreveram de

Belfast, elas me identificariam.

Assim discorrendo, tinha os olhos brilhantes nessas evocações.

— Quem sabe os sobreviventes foram recolhidos por mãos piedosas? —

prosseguia mais animada — talvez ainda encontre o túmulo de Cirilo para

cobri-lo de flores.

Antero, que a ouvia atencioso, obtemperou:

— De pronto não podemos cogitar de viagem tão longa, mas poderemos

regressar à Espanha e lá tentá-la a qualquer tempo. Não faltam por lá

embarcações seguras e confortáveis.

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— Rogarei a Deus nos conceda essa graça.

— E eu não descansarei enquanto não tiveres essa alegria — concluiu o

rapaz, revelando extrema dedicação.

Mais algumas palavras fraternais e Madalena ficou só, novamente

entregue às suas penosas recordações. Apagado o candelabro, a sombra

como que lhe aumentava a angústia. Não obstante as afirmativas animadoras

do primo, fazia questão de examinar a extensão de sua mágoa inconsolável.

Ainda que atingisse a América, que encontrasse o túmulo do marido e

conhecesse todos os pormenores da catástrofe, não deixaria de padecer com a

sua viuvez e a orfandade da filha. Se chegasse a abraçar Constância, seria

para chorar, sem esperança de júbilos novos. Sentia-se doente, abatida,

desesperançosa. E se não mais conseguisse caminhar com agilidade? Não

seria um espectro acorrentado à cama, um fardo sacrificante para outrem? Em

vão, tentava coordenar planos. Por outro lado, não acreditava no absoluto

desinterêsse do primo. Cedo ou tarde, êle talvez lhe viesse falar de amor. Não

seria temeridade aumentar sua dívida de gratidão? Poderia receber-lhe os

favores, aceitar-lhe a dedicação, mas, se um dia êle resolvesse exigir o

impossível?

A filha de D. Inácio sentia-se morrer. Enquanto se debulhav~ em lágrimas

silenciosas, sinistra idéia se lhe embutiu no cérebro atormentado. Não era

preferível morrer? Acariciou a sugestão, alucinada. Viúva, reconhecia-se

desamparada e inútil. Sabia de mulheres que haviam procurado a morte por

motivos fúteis. A intenção sinistra avolumava-se-lhe no cérebro. Recordou o

vidro minúsculo, no qual o pai sempre guardara um tóxico fulminante.

Bastariam algumas gôtas num cálice d’água. Se não fôsse possível arrastar-se

alguns passos, pediria a Dolores que lho trouxesse como simples calmante

para conciliar o sono. Dessarte, não seria pesada a ninguém, não precisaria

temer a influência indefinível de Ântero, nem suplicar a piedade dos Davenport.

Prêsa da tentação que a empolgava sutilmente, ia chamar a serva em voz

alta a fim de consumar o sinistro desejo, quando Alcione chorou de mansinho

reclamando-lhe os cuidados.

Assustou-se como a despertar de um pesadelo. Fêz um movimento

instintivo com os braços para atender a criancinha, mas a destra que se movia

na sombra esbarrou no crucifixo que lhe fôra dado por sua mãe, na véspera de

morrer. A pequena cruz caiu-lhe sôbre o coração, como se valesse advertência

indireta e profunda. Pareceu compreender a magnitude do apêlo, pensou

sinceramente em Jesus tal como fizera um dia na via pública de Paris, e

dispôs-se a confortar a filhinha. Nesse gesto, porém, aguardava-a uma

surprêsa ainda mais singular. Alcione tinha os bracinhos em movimento, como

se a buscasse com ânsia, e tão logo se viu envolvida na sua ternura, agarrouse-

lhe ao pescoço comprimindo-o com as delicadas mãozinhas. A pobre mãe

teve a impressão de que a recem-nascida lhe pedia socorro e buscava um

doce refúgio no seu seio de mãe. Compreendeu a silenciosa mensagem de

Deus, no imo do coração. A emoção que lhe timbrava nas fibras mais íntimas,

fê-la dobrar-se em lágrimas e beijos sôbre a pequenina.

Assim foi que a filha de D. Inácio, singular-mente comovida, murmurou aos

ouvidos de Alcione:

— Não chores mais, filhinha! Jesus compadeceu-se da minha alma

atormentada... Ficarei contigo até ao fim!...

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5

Na infância de Alcione

Estabelecido o acôrdo de transferência para a Espanha, na expectativa de

possível viagem à América do Norte, Antero de Oviedo resolveu os negócios

pendentes, conseguindo apurar consideráveis recursos para encetar vida nova.

Madalena Vilamil, mantendo rigoroso luto, aguardava paciente o curso dos

acontecimentos. A dedicação de um médico da Côrte restituira-lhe, em parte, o

movimento dos pés, sem poder, contudo, caminhar muitos passos. Mesmo em

casa, era, não raro, obrigada a se arrimar em Dolores, sempre que teimava em

permanecer de pé por mais tempo. A dor constante dos tornozelos havia desaparecido

e isto já representava grande consôlo. Continuava usando as

fomentações receitadas, com enorme esperança de completa cura e encarava

a partida, resignadamente, como providência inevitável na sua condição de

viuvez. Interpelada por Antero, relativamente à cidade espanhola em que

preferia residir e tratar-se, até que pudessem visitar a América distante,

escolheu Ávila pelo doce atrativo que essa Cidade sempre exercera em seu

espírito. O sobrinho de D. Inácio concordou, satisfeito, alegando que a região

de Castela Velha lhe facultaria bom emprêgo de capitais; e, mais por temor de

conhecidos que por conveniência, deliberou que a jornada não se faria pelos

portos do Atlântico, mas pelo Mediterrâneo, obrigando-se os viajantes a

verdadeira excursão por terra, até ao sul da França.

A viagem na direção de Marselha foi difícil e penosa, não obstante Antero

de Oviedo fazer o possível por demorar-se com as três companheiras nas

cidades mais interessantes, a título de entretenimento e repouso.

Da janela dos carros, sempre trocados em cada pôsto de muda, Madalena

contemplava os campos de França, tomada de imensa saudade e dando a

impressão de que regressava ao berço natal como alguém que se sentisse

perseguido pela realidade cruel, depois de um sonho bom.

Depois de muitos dias de jornada, defrontaram o antigo pôrto, vizinho da

Catalunha. AI descansaram duas semanas, tomando em seguida um navio

confortável, para a época, que os conduziria a Valência. Uma vez acomodados,

com imensos sacrifícios para Madalena, que se amparava em Dolores

sustentando a filhinha ao colo, eis que Ântero reencontra velho amigo da

infância, abraçando-se ambos com ruidosa alegria.

Federigo Izaza e o sobrinho de D. Inácio, depois de muito conversarem

sôbre inúmeros problemas, como só acontecer a conhecidos que se não vêem

de há longos anos, passaram a tratar do regresso do fidalgo à Espanha. Ântero

confessou o intuito de mobilizar os capitais trazidos da França, na perspectiva

de bons negócios. Izaza, sem que êle percebesse, tem estranho brilho nos

olhos argutos e exclama: — Pois veja que feliz acaso nos aproxima! É que

tenho justamente em mãos o melhor negócio dos últimos tempos.

— Como assim? — interroga o rapaz, curioso.

— Conheces o mercado de escravos para as colônias estrangeiras?

Em face da atitude de estranheza do interlocutor, Federigo prosseguiu

animadamente:

- É a negociação mais rendosa nos tempos que correm. Como não ignoras,

o novo Continente necessita do braço escravo. Os emigrantes da Europa não

poderiam atacar, sozinhos, o desbravamento do solo. As epidemias, as

dificuldades, as florestas inóspitas, destruiriam os organismos delicados e, com

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alguns navios e poucos homens de confiança, é possível obter uma fonte de

lucros opimos, com esfôrço quase insignificante.

- Mas... como? — inquiriu o outro.

— Bastam algumas naus corajosas que visitem periodicamente a Costa

d’África.

- Apenas isso?

— Nada mais. A trôco de pequeninas bugigangas, conseguimos elevado

número de selvagens que, sem embargo do cativeiro, passam a gozar os

benefícios da civilização. De modo que — explicava Izaza na atitude egoísta do

homem que deseja mascarar propósitos execráveis — além de vingarmos

transações lucrativas, ainda espalhamos numerosos benefícios entre os negros

bárbaros, de costumes primitivos.

Depois de uma pausa, entrava em outros pormenores:

— Acredito que chegas à Espanha em momento azado aos teus

interêsses, porqüanto eu e meus irmãos necessitamos de um sócio capitalista

para incremento de grandes iniciativas. Dispondo apenas de um navio, temos

perdido ótimas oportunidades nos mercados mais rendosos. As colônias

inglêsas, francesas e portuguesas são grandes centros de consumo.

E o astuto amigo passava a minudenciar e encarecer a importância de

lucros tão fáceis, seduzindo o companheiro para o risco das largas aventuras.

As palestras renovavam-se durante tôda a viagem, e, quando

desembarcaram em Valência, Antero de Oviedo já estava convencido das

vantagens do tráfico negro, decidido a entrar na emprêsa com todos os

recursos disponíveis. Obrigado a conduzir o pequeno séquito até Ávila,

despediu-se do amigo com a promessa de se encontrarem no mês seguinte,

para tomar as providências definitivas.

A reduzida caravana descansou alguns dias antes de atravessar o Aragão,

em demanda das regiões de Castela antiga; mas, no fim da segunda semana

de permanência na Espanha, instalava-Se em modesta vivenda a três

quilômetros das portas da cidade onde Madalena recebera a melhor educação,

num estabelecimento religioso das Carmelitas.

A paisagem não era bela. As águas do Adaja vinham fertilizar a terra

empedrada, com minúscula corrente roubada ao leito do rio, e algumas árvores

frutíferas mitigavam a aridez do solo. Não fôra uma casa-grande, próxima, em

que o poderoso senhor D. Diego Estigarríbia movimentava grande patrimônio

rural, e o modesto sítio mais se assemelharia a lugar malsinado, em abandono.

Antero, porém, adquirira-o em definitivo, oferecendo-o à prima, que recebera a

dádiva com satisfação justa e sincera.

Ao fundo da paisagem repontavam as tôrres das velhas muralhas da

cidade famosa e os bronzes dos seus templos românticos enchiam o ambiente

com dobres impregnados de dolorosas evocações.

Nos primeiros dias, Madalena Vilamil não saberia explicar a sensação de

tristeza que intimamente a empolgava. Observava o casario a distância,

experimentando impressões indefiníveis. Aquelas muralhas antigas, com as

suas oitenta e seis torres originallssimas, falavam-lhe à alma sensível. Sentiase

encarcerada, prêsa de receios estranhos, num conjunto de sensações

amargas que a desolação da terra empobrecida mais acentuava.

Uma vez terminados os serviços da instalação, Ântero viajou para Madrid,

a cuidar dos novos interêsses. O rapaz, entretanto, fora das disciplinas a que o

submetiam os protocolos franceses de Versalhes e Paris, e sem a assistência

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afetiva de D. Margarida, que maternalmente se deevelara pela sua pureza de

hábitos e de caráter, entregou-se, logo no primeiro contato com a capital

espanhola, a perigosas dissipações, com lamentável ausência de escrúpulos.

Federigo Izaza, de posse da prêsa fácil, conduzia-o dia a dia ao total

esquecimento de suas obrigações. Assim, empregou a maior parte da fortuna

nas aventuras do tráfico negreiro, assinando compromissos de vulto com

agiotas e financistas astuciosos e inflexíveis. Como se desejasse desforrar os

dias lúgubres da epidemia parisiense, lançou-se a noitadas alegres, cheias de

prazeres e de vinhos caros. A princípio, recordava a prima e o ardor da paixão

que o levara a participar de um crime; mas, com o egoísmo próprio da criatura

humana, lembrava que Madalena continuava doente, incapaz de algo deliberar

em consciência. Tentar impor-se à prima enferma, figurava-se-lhe extrema

covardia. Era mais nobre aguardar ensejo adequado, e, até que o ensejo

chegasse, ei-lo entregue à volúpia de gozos fáceis e aventuras perigosas.

Havia um mês que se ausentara. A filha de D. Inácio, no entanto, apesar

da monotonia do seu pedaço de campo, procurava encarar as dificuldades com

o heroismo das almas crentes.

O primo não lhe havia deixado maiores recursos, mas, ainda assim, estava

satisfeita. No íntimo, chegava a estimar aquela ausência. Compreendia bem os

olhares que o rapaz lhe dirigira, em todo o percurso da longa viagem. Concluía

mesmo, considerando as suas silenciosas atitudes, que a moléstia era, para

ela, o maior escudo e o melhor antídoto contra aqueles propósitos inferiores.

Subjugada pelo mal-estar da extrema dependência em que se encontrava,

certo dia dirigiu-se a Dolores, encarecendo o valor de um trabalho mais intenso

na vivenda empobrecida. Poderiam enriquecer o pomar de novas plantas,

cultivar legumes para vender. A serva entusiasmou-se. Organizaram projetos

de numerosos serviços. O terreno não era fértil, mas possuía bastante água. O

trabalho e o adubo fariam o resto. A idéia conferiu a Madalena Vilamil novas

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