fôrças. Andava com dificuldade, mas o desejo intenso de resolver o problema
das despesas domésticas triplicava-lhe as energias. Na casa vizinha, a família
Estigarríbia podia dispor de servos numerosos, mas a corajosa espôsa de Cirilo
não queria considerar a diversidade dos destinos e sim que havia trabalho a
reclamar-lhe atenção. As atividades iniciais custaram-lhe esforços dolorosos.
Às vêzes, era tanta a dor nos pés que necessitava interromper a tarefa para
repousar; todavia, auxiliada pela serva fiel, preparou e adubou o quintal,
libertando as árvores frutíferas dos parasitas que as sufocavam. Faltavam
sementes e mudas de plantas, mas Dolores, que tinha um gênio alegre e
comunicativo, prometeu que as pediria a um dos servos da casa vizinha, na
primeira oportunidade. Entre os rapazes de côr bronzeada que trabalhavam,
invariàvelmente, no campo próximo, a jovem desde muito havia fixado um, que
sempre a observava com atenção. Valeu-se dessa circunstância e, no primeiro
ensejo, entabulou ligeira conversa com o simpático desconhecido, junto à
tapada que dividia as propriedades. Tratava-se de um semiliberto da família
Estigarríbia, que chefiava os companheiros de serviço. Ele e os subordinados
não eram escravos, propriamente, mas haviam nascido cativos em colônia
portuguesa. D. Diego e o filho, D. Alfonso, tinham grandes interesses no tráfico
de homens livres e haviam selecionado os melhores operários para os labôres
da grande fazenda de Castela-a-Velha.
João de Deus, o servo que narrava a Dolores as suas lutas na vizinhança,
contemplava a criada de Madalena com expressão de enorme alegria e grande
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bondade. Atendendo-lhe ao pedido, prometeu as sementes e mudas, e, como
dispusesse de folga nos domingos, depois da missa, ofereceu-se para
cooperar semanalmente na horta que pretendiam plantar.
Com pleno assentimento da filha de D. Inácio, que lhe notou, de pronto, as
qualidades apreciáveis, o servo dos Estigarríbia passou a freqüentar a casa
aos domingos, contribuindo decididamente para enriquecimento do quintal.
Horas a fio, João de Deus historiava às duas mulheres o martírio dos
cativos nas colônias remotas. Elas mal continham o seu assombro. Parecialhes
incrível houvesse cidades no mundo, onde os filhos eram separados dos
pais amorosos e vendidos a senhores bárbaros e execráveis, O rapaz contavalhes
as cenas bárbaras do tronco, do chicote a lanhar carnes vivas, das
pesadas correntes atadas aos pés dos que tentavam fugir. Aquelas narrativas
levavam ao coração da espôsa de Cirilo indefiníveis consolos. Considerava que
havia terras onde mourejavam criaturas muito mais sacrificadas e sofredoras
do que ela própria. Confidencialmente, João lhes explicava sua condição
pessoal. Em verdade, não havia cativeiro ali na fazenda, cumprindo-lhe todavia
proceder e agir como escravo dos Estigarríbia, se não quisesse voltar à
colônia, para ser talvez pôsto a ferros. Nada valeriam reclamações, pois D.
Diego era irmão de um bispo assaz poderoso. Conquistara-lhe simpatia e, por
isso, aprendera a ler e contar, assumindo então o cargo de feitor.
Para Madalena, essas confidências acarretavam sempre veladas
consolações e foi com bons olhos que notou a crescente afeição do jovem par.
Sômente depois de três meses de boêmia e aventuras em Madrid, na
perniciosa comparsaria de Federigo Izaza, voltou Antero a casa, completamente
modificado em seus hábitos e atitudes. Não comentava senão as
vantagens do ouro fácil e explanava largos projetos para aquisição de minas
em Potosi. A transformação da humilde herdade surpreendeu-o. Em todos os
recantos havia alguma coisa diferente. Ali, a água multiplicara benefícios ao
solo; aqui, surgia um canteiro de legumes; acolá, as árvores pareciam mais
verdes e vigorosas. Miraculosas mãos haviam tratado a terra empobrecida.
Acentuando o quadro agradável, Madalena estava mais bela, embora lhe
pairasse no rosto, invariàvelmente, um véu sutil de invencível tristeza. Sua
saúde melhorara, de modo geral. Já podia permanecer de pé mais de uma
hora, sem necessidade de repousar. Consagrava-se ao lar e à filha com
heróico devotamento. Antero de Oviedo, contemplando-lhe a feição de
madona, sentiu reavivar-se a paixão que o atormentava desde a infância.
No segundo dia de sua chegada, procurou entreter com ela afetuosa
palestra, minudenciando o êxito superficial das suas transações em Madrid.
Enquanto a conversação não se desviava dos moldes fraternais, a prima
lhe correspondia de boamente, despreocupada em defender-se; mas, a certa
altura, o rapaz fixou nela os olhos brilhantes e disse:
— Sinto que não devo ocultar, por mais tempo, as minhas intenções;
suponho poder agora falar do meu imenso amor.
A noite já se fechara de todo, desdobrando seu manto de sombras pela
paisagem ambiente.
— Mas, que queres dizer com isso? — interrogou a prima, adivinhando-lhe
os propósitos íntimos.
— Ofereço-te meu braço forte nas lutas da vida. Seremos felizes, podes
crer. Espero consolidar minha fortuna a breve trecho. Meus negócios atuais
auspicianl lucros fabulosos. Construiremos um lar repleto de ventura. Não
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importa o passado, as amarguras vividas. Compreendo como o sôpro da
adversidade desfez teus sonhos de moça; entretanto, não julgues ser a única a
sofrer. Sigo-te os passos, silenciosamente, desde os primeiros albores da
nossa juventude. E quando surgiu o intruso Davenport, só eu sei do ódio que
me envenenou a alma. Agora, porém, a estrada da nossa ventura apresenta-se
plana e livre.
Ela ouvia-o sem dissimular a profunda surprêsa que lhe assaltava o
coração. Depois de refletir um minuto, respondeu delicada e firmemente:
— Tua confissão me sensibiliza e, no entanto, essa realidade é impossível,
de vez que o verdadeiro amor transcende a tôdas as contingências do mundo.
Minha escolha foi e permanece única, irredutível.
O rapaz demonstrou a contrariedade num gesto espontâneo e insistiu:
— Mas não te consideras liberta pela viuvez? Não seria loucura consagrar
o resto da vida ao luto e às lembranças da morte?
— Para mim — respondeu revelando profunda serenidade — a viuvez
significa pesar inconsolável e não disponibilidade do coração.
O moço espanhol mordeu os lábios e exclamou desapontado:
— É quase incrível te proponhas tão absurdo sacrifício por um homem que
se ausentou para uma aventura arriscada, quase na lua de mel.
— Mas Cirilo assim procedeu em obediência a circunstâncias imperiosas.
— Não creio.
— No entanto, não podes negar a enorme diferença de vantagens entre a
Côrte de Versalhes e a Sorbone.
— Mas, no caso — tentava explicar o sobrinho de D. Inácio, colérico — não
poderás invocar os salários franceses e sim examinar o problema da dedicação
e do amor.
— Esqueces, entretanto — esclareceu a suposta viúva —, que Cirilo tinha
pais carinhosos e necessitados, além de irmãos mais novos e carentes do seu
auxílio. Fôra um crime seqüestrá-lo à mãe desvelada, que o acariciara nos
braços, muito antes da minha afeição. Aliás, êle tudo fêz para que o
acompanhasse ao continente distante e tu não ignoras que a enfermidade de
mamãe me forçou a ficar em Paris, bem a meu pesar. Cirilo nunca me
exprobrou essa conduta involuntária, e também eu não podia recriminar-lhe o
impulso generoso de socorrer os seus.
Reconhecendo que as armas do seu despeito eram inúteis, Antero ensaiou
outros argumentos, murmurando com certa ansiedade:
— Afinal de contas, suponho que devas ser mais cordata e razoável...
É-me impossível transigir no que representa, para mim, sagrados deveres,
apenas.
— Não te apegues a recordações doentias. És jovem e posso fazer-te feliz.
Tenho trabalhado a vida tôda para realizar o ideal de nossa união. Sonho com
um lar ridente, um ditoso porvir.
— E nem deves perder a esperança de um futuro venturoso — mas há que
reformular o objetivo de tuas aspirações. Minha prova conjugal está encerrada:
a tua, porém, ainda não começou. A Espanha está cheia de nobres raparigas e
não será difícil encontrares uma companheira dedicada e digna do teu destino.
É verdade que jamais nos poderíamos unir pelos laços do matrimônio, mas eu
serei tua irmã reconhecida, enquanto me restar um sôpro de vida. Conheço a
extensão dos teus sacrifícios por mim e beijo-te as mãos. Nada possuindo,
entretanto, com que te demonstre minha sincera gratidão, feliz me julgaria em
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poder, a qualquer tempo, dar meus carinhos de mãe aos filhinhos de tua
espôsa. Deus te ajudará, concedendo-te alguma jovem rica de sentimentos,
digna, enfim, do teu coração.
Essas palavras, ditas em tom de carinhosa e fraternal sinceridade,
desarmavam o rapaz, que se sentia enleado nos mais contraditórios
pensamentos.
— Ainda ontem, Madalena — dizia insistente nos mesmos propósitos —,
adquiri uma casa confortável, junto à igreja de S. Tomás, a fim de lá te instalar
com Dolores e Alcione.
— Agradeço, Antero — mas a verdade é que não pretendo sair desta
chácara. Jesus me facultará, um dia. os meios de retribuir teus benefícios, pois
reconheço que não podemos exigir novos gastos de tua parte. Já temos
plantas a cuidar, os pequenos proventos da horta atendem às nossas
modestas necessidades caseiras. Como vês, é ocasião de pensar em ti
mesmo, na administração dos teus negócios.
Ele compreendeu que a prima preferia renunciar a qualquer nova
expressão de confôrto, para emancipar-se do seu ascendente, e manifestou-se
prêsa de incontido despeito. A expressão de ternura foi substituída pela de
cólera extrema. No íntimo, experimentou diabólico prazer ao recordar o pacto
com Susana. Tomava a resistência de Madalena à conta de orgulho feminino,
mas essa resistencia aguçava-lhe os intentos Criminosos de perseguição e de
posse.
Aproximou-se mais e teimou, ardentemente:
— Deste-me tuas razões, defendeste o irlandês intruso, induzes-me a
procurar alhures a ventura conjugal, mas eu não renuncio. Consente que me
aproxime do teu coração, a fim de te reanimar para a vida. Somos jovens, o
futuro nos chama...
Entretanto, a um gesto mais significativo, a pobre senhora retraiu-se e falou
nobremente:
— É impossível e espero te contenhas nos limites devidos. Ainda que a
lembrança de meu marido não chegue a demover-te, recorda que a sombra de
minha mãe se levanta entre nós.
A recordação de D. Margarida produzira extraordinário efeito. Ântero, muito
pálido, retrocedeu, como se obedecesse a uma imposição do plano invisível.
A filha de D. Inácio, assumindo atitude serena, valeu-se da circunstância e
prosseguiu:
— Concordo em que os nossos antepassados tenham tido numerosos
defeitos, mas não me consta que um Vilamil, algum dia, houvesse abusado de
uma irmã viúva e enfêrma.
Ouvindo a objurgatória formulada com enérgica inflexão de voz, o rapaz
corou e retirou-Se para o seu quarto, não sem dizer:
— Mudarás de opinião, mais cedo ou mais tarde.
Desde essa noite, não voltou a falar dos seus propósitos malsãos, e,
embora esperasse a oportunidade de uma capitulação ditada pelos extremos
de uma vida mísera quão desolada, pareceu desinteressar-se completamente
do assunto. Não permanecia na chácara de Ávila mais que uma semana, de
três em três meses. Agora fazia questão de corresponder à resistência de
Madalena com frieza fraternal. Além disso, os prazeres madrilenos modificavam-
lhe os rumos da sorte. As más companhias arruinavam-lhe o caráter.
Havia muito dinheiro para os divertimentos licenciosos, mas, começava-se a
94
indagar das suas origens.
*
Três anos são passados.
Madalena Vilamil lutava herôicamente. A pobreza dos terrenos de Castela-a-
Velha exigia muitos sacrifícios a qualquer cultura agrícola, mas, por isso
mesmo, suas plantações regulares tornaram-se utilíssimas. Dolores voltava,
tôdas as manhãs, do mercado de legumes com diminutos, mas, ainda assim,
suficientes recursos à provisão doméstica. A dona da casa tudo atribuia e
agradecia a Deus, e a vida continuava. As ausências prolongadas do primo
eram consideradas como tréguas, para seu alívio. Desde aquela noite
inolvidável, êle parecia contemplá-la com expressão de rancor. Sempre que
vinha, era para sobressaltar-lhe o coração. Além disso, ela preferia criar a
filhinha sem caprichos satisfeitos. Aquêle sítio avaro devia ser a sua primeira
escola. Mais tarde, então, pediria às freiras Carmelitas que se incumbissem da
sua educação intelectual; mas, como mãe, estava resolvida a tudo fazer para
que Alcione se habituasse mais cedo aos deveres laboriosos.
Assim corriam os dias, quando se espalharam em Ávila estranhos boatos
sôbre a situação de Antero, em Madrid. Dizia-se que os Izaza estavam
denunciados ao Santo Ofício pelo rapto de crianças libertas, nas colônias da
América e da África, e que o sócio responderia com os criminosos pela ação
nefanda. Em suas visitas periódicas àgranja, Madalena o informou das versões
correntes, mas Antero ouviu-a risonho e displicente, alegando que se tratava,
naturalmente, de puras baleias, fruto da inveja e despeito humanos.
Os meses corriam céleres e os boatos também cresciam de vulto.
Madalena preocupava-se. Dia houve em que procurou conhecer o que
João de Deus sabia e pensava a tal respeito.
— Ah! senhora — replicou o pretendente de Dolores, em tom confidencial
—, os Estigarríbias são senhores poderosos e não toleram quem lhes faça
concorrência no tráfico dos cativos. Em Segóvia, não há muito, dois
navegantes corajosos foram assassinados por ordem dêles. Em Valiadolid
havia um grupo de homens operosos, que cuidavam do mesmo negócio, e um
belo dia o Santo Ofício lhes confiscou os bens, sem justificativa, encarcerandoos
para o resto da vida. D. Diego e D. Alfonso dispõem da autoridade do clero.
Dizem que eles cedem aos inquisidores algo dos patrimônios conquistados,
mantendo-lhes a simpatia constante. O bispo D. Leôncio Molina faz parte da
família e não é fácil escapar-lhe à perseguição, com o auxílio dos missionários.
— Mas acreditas que tenham formulado alguma acusação contra Antero?
—. perguntou a filha de D. Inácio, naturalmente preocupada.
João de Deus alongou o olhar para além da porta, como a certificar-se de
estarem realmente sozinhos e respondeu à surdina:
— Já ouvi qualquer coisa nesse sentido. Uma noite D. Alfonso participava
ao pai que tôdas as providências estavam dadas em Madrid; que os santos
padres em missão nas selvas remotas haviam representado à autoridade
eclesiástica para que os Izaza e seus colaboradores fôssem punidos sem
mercê, por subtrairem crianças indefesas nas aldeias do litoral, e que os
credores de D. Antero iam todos reclamar o pagamento de suas dividas, a um
só tempo.
A jovem Madalena, muito impressionada, redargüiu:
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— Será possível que haja pessoas capazes de raptar crianças inocentes?
— Nas colônias — esclareceu o servo — pode crer que existem homens
cruéis a êsse ponto; mas, neste caso, é possível que a acusação tenha partido
daqui mesmo, dos Estigarríbia. Já ouvi dizer que, quando D. Diego era mais
moço, mandou prender o próprio pai.
Madalena Vilamil anotou mentalmente as tristes novas e procurou mudar o
curso da conversa.
Nos dias imediatos, muito desejou comunicar-se com o primo, tentando
salvar-lhe a reputação de homem digno, mas, reconhecendo a impossibilidade
de o fazer, contentou-se em orar, encomendando-o a Deus, em preces
fervorosas.
Ela, de si mesma, pouco a pouco habituara-se ao severo regime do contato
direto com a natureza. A fisionomia, porém, denotava grande abatimento.
Dividia as horas entre os labôres domésticos e as meditações. Recordava,
sempre, que seu primeiro projeto, em regressando à Espanha, fôra
encaminhar-se à América, à cata de notícias exatas da morte do marido. A
atitude ulterior do primo adiara a realização dos propósitos que lhe animavam o
espírito resoluto, mas não extinguira, de todo, o seu primeiro desígnio. É
verdade que continuava doente dos pés, impossibilitada de agir como
necessário, mas esperava no Altíssimo a recuperação da saúde para tentar,
em companhia da filha, a grande aventura, tão logo se verificasse o casamento
de Dolores. Nunca mais pudera alegrar-se, como nos dias risonhos da
juventude distante, mas a filhinha resumia, agora, as suas divinas consolações.
Alcione já se revelava uma criaturinha adorável nos seus quatro anos.
Sentada, de rosto apoiado nas mãos, como “gente grande”, permanecia muitas
horas ao lado da genitora, a ouvir histonetas de fundo educativo. Madalena
repetia-lhe, comovida, as lendas guardadas da sua própria infância. A pequena
encarecia notícias dos príncipes encantados, dos gênios ocultos nos bosques;
mas, quando escutava a palavra maternal sôbre Jesus, seus olhos tornavamse
mais brilhantes e perguntava a razão por que os homens inventaram a cruz
para o Salvador que Deus mandara à Terra.
Por vêzes, na sua condição de criança isolada, sem companhias infantis,
abandonava sübitamente os brinquedos pobres e ia interrogar à mãe o que
estaria fazendo Jesus. E ante as hesitações maternas, ela própria explicava mil
coisas, nas suas reflexões ingênuas e puras. Se fazia frio, afirmava que Cristo
estava socorrendo os peregrinos que não tinham teto, e, nos dias de excessivo
calor, supunha que suas mãos divinas estivessem acariciando as aves aflitas.
Madalena surpreendia-se. Aquelas idéias sublimes eram sempre
espontâneas naquela boquinha mimosa.
A genitora ensinava-lhe a ser reconhecida a todos, a estimar as plantas da
horta e a ser generosa para as árvores do quintal. Mandava-a em auxílio de
Dolores, sempre que havia maior quantidade de frutos e legumes, destinados à
feira da cidade vizinha. Alcione era amável com a serva e conduzia um cêsto
minúsculo, muito convicta de contribuir eficazmente na solução dos problemas
domésticos. E nos instantes em que Dolores se sentia cansada pelo sol
ardente, supunha que lhe atenuava as fadigas beijando-a, porque sua mãe
sempre dizia que o carinho era o único remédio que podia aliviar os corações
sofredores. A criada era muito sensível a tais mostras de afeto e, às vêzes, só
para receber as carícias da criaturinha adorável, declarava-se exausta, junto à
Porta de São Vicente, ao terminar a parte mais afanosa da tarefa. E era
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quando Alcione lhe tomava as mãos, em ósculos carinhosos.
Para Madalena e os dois únicos amigos que possuía na intimidade do lar, a
pequenina se tornara em fonte de inefáveis alegrias.
De quando em vez, surgia com observações sutilíssimas, que suscitavam
profundos pensamentos.
Certa feita, a canícula era quase insuportável e todos, ansiosos, desejavam
chuva. Alcione partilhava da inquietação geral e, instada por Dolores, fêz de
mãos postas as preces que sua mãe lhe ensinava, pedindo a Deus não
esquecesse as plantas ressequidas. O crepúsculo sobreveio carregado de
pesadas nuvens e a criança, de minuto a minuto, ia à porta espiar o céu, como
se aguardasse com certeza alguma coisa. Alta noite desabou torrencial
aguaceiro. Cessada a borrasca, Madalena abriu a janela, ansiosa pela frescura
da noite. A pequenina seguiu-lhe os movimentos, de olhos muitos vivos e pediu
que a deixassem na velha cadeira para contemplar o firmamento, onde haviam
ressurgido os astros faiscantes. Depois de aspirar o ar puro que enchia o
ambiente, exclamou, olhos fitos na altura, em solene atitude infantil:
— Agradeço muito.
— A quem falas, filha? Viste alguém ali na estrada? — perguntou Madalena
com certa curiosidade.
— Estou falando com Deus, mamãe: a senhora não me disse que devo ser
agradecida? Não pedimos hoje a água do céu?
A genitora não pôde disfarçar um gesto de admiração ao lhe observar a
expressão de sincera confiança na Providência Divina.
Em seguida, Alcione pareceu devassar a sombra da noite com os olhinhos
indagadores e brilhantes, permanecendo em encantadora atitude de
meditação. Depois, como se estivesse regressando de um oceano de
reflexões, interrogou:
— Mamãe, onde é que a chuva trabalha?
— No seio da terra, filhinha. A água que desce do alto alimenta a raiz das
árvores, lava as estradas por onde caminhamos, renova as fontes para que
não soframos sêde e, em todos os lugares por onde passa, espalha e entretém
a vida.
— E quando tem chuva nos olhos? — continuou perguntando com sincera
atenção.
— Mas que desejas dizer com isso, Alcione? — tornou Madalena
impressionada.
— É porque, às vêzes, mamãe, quando é de noite, os olhos da senhora
estão cheios de chuva.
A pobre mãe compreendeu a alusão e explicou, assaz comovida:
Ah! sim, filhinha, essa é a chuva das lágrimas e também desce do céu para
nutrir e purificar o coração.
A pequenina pareceu refletir na resposta, voltou a contemplar as fôlhas
gotejantes das árvores e inquiriu:
— Mamãe, quando é que vai chover nos meus olhos?
— Não penses nisso, filhinha!
E Madalena Vilamil torceu a palestra, distraindo-lhe a atenção.
De outra feita, Dolores trabalhava na chácara, acompanhada por Alcione,
que cavava o solo com minúsculo instrumento. Em dado instante, surge o
“Lôbo” — grande cão de D. Diego —, que tentava perturbar, todos os dias, os
trabalhos da rapariga.
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Dolores toma prestes de longa vara e, valendo-se da oportunidade,
espanca o animal que debalde procura uma saída.
— Não batas assim no “Lôbo”! — exclama Alcione perturbada e aflita.
E como começasse a gritar, a serva falou baixinho:
— Sossega, minha filha! Vamos aproveitar enquanto estamos sem vigias
no outro lado.
A menina, entretanto, esboçou um gesto significativo e lembrou:
— Mas nós não estamos aqui sôzinhas. Jesus está Conosco.
Anotando a advertência, a criada permitiu que o animal se safasse do
círculo apertado em que se achava, e esclareceu, como quem se via obrigada
a dar uma satisfação do seu ato:
— Este cão, Alcione, é vagabundo e ladrão. A pequena não respondeu de
pronto, mas, dirigiu-se ao interior da casa a passos vagarosos, tomou o
crucifixo de D . Margarida, sempre guardado à cabeceira da cama e
encaminhou-se novamente ao quintal. Aproximando-se de Dolores que a
observava, muito admirada, apontou, com muito carinho, para a escultura e
esclareceu na sua linguagem infantil:
— Estás vendo, Dolores? Mamãe contou que, quando Jesus morreu,
estava entre dois homens que roubavam.
— Pois bem — disse a empregada sorrindo em face da profunda
advertência —, depois falaremos com D. Madalena sôbre o caso dêsse cão.
E Alcione voltou a guardar o crucifixo, com a impressão de que havia
cumprido uma grande tarefa.
*
A vida na chácara continuava cheia da poesia que sempre adorna a
pobreza resignada.
Outro tanto, porem, não acontecia ao sobrinho de D. Inácio. Parecia êle
cada vez mais desorientado, desde o dia sinistro em que consentira no
criminoso pacto com Susana Davenport. O destino não correspondera às suas
expectativas de homem do mundo. A mentira sombria apenas espalhara
remorsos terríveis no seu caminho, dos quais buscava evadir-se, pelos
desregramentos de tôda sorte. Seu projeto mesquinho sofrera o primeiro abalo
no dia em que Madalena Vilamil não mais pudera erguer-se da cama, em
Versalhes. Assediar a prima enfêrma, representava muita covardia a seus
olhos. A moléstia, entretanto, não fôra incidente simples, persistira semanas e
semanas. Nesse ínterim, ela, Madalena, pela paciência demonstrada e pela
maternal dedicação para com a filhinha recém-nada, crescera muito aos seus
olhos, impedindo-lhe os ímpetos de suprema violência. E, desde a noite em
que fizera alusão à sombra de D. Margarida, êle não mais a contemplava sem
ver no seu rosto o da veneranda mãe adotiva, que o acariciara dos primeiros
dias da infância. Passou, então, a freqüentar raramente a chácara e, no íntimo,
chegava mesmo a pensar em uma viagem à América, para desfazer o engano
terrível, de modo a esperar a velhice, sem a recordação de um crime na
consciência. A nobre resistência da prima doente e sacrificada parecia imporlhe
a lembrança de D. Margarida, nos seus tempos de intraduzíveis amarguras.
O moço espanhol, no entanto, desejava reparar a falta, com a devida
prudência. Afinal de contas, no mais fundo d’alma, não obstante a situação que
o sensibilizava, nunca deixara de considerar Madalena excessivamente
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orgulhosa. Além disso, receava desfazer a trama odiosa, sem ouvir antes a
prima de Cirilo. Que teria acontecido na América durante aquêles longos quatro
anos? Era preciso esperar para não incidir em novos desatinos.
No entanto, agora entregue à idéia reparadora, via-se prêsa dos Izaza,
que o arrastavam a condenáveis desregramentos. Envolvido em negócios suspeitos
e desmandado nos prazeres que lhe exauriam as fôrças, não pôde
perceber a trama cavilosa que o colhia na sombra, devagarinho.
Quando menos se esperava, estalou em Ávila a triste nova: condenado
pelo Santo Ofício à prisão e confisco de todos os bens, Antero de Oviedo aparecera
morto, em Madrid, junto à Porta de Toledo. Falava-se à meia voz que
êle havia preferido o suicídio à ignomínia do cárcere. Noutras rodas, porém,
afirmavam que tudo não passava de mais um crime odioso da família
Estigarríbia. O processo, como tôdas as peças em exame no tribunal do Santo
Oficio, correra os trâmites no mais rigoroso sigilo. A condenação atingira Antero
e companheiros, mas sômente Gaspar Izaza fôra recolhido à prisão, pois
Federigo e Domingos haviam desaparecido misteriosamente.
O sobrinho de D. Inácio assim baixava ao túmulo com o grande segrêdo
da sua vida, tão cedo crestada por sua incontinência e leviandade.
Madalena ainda não conseguira aliviar a angustiosa aflição que a
atormentava, quando João de Deus bateu-lhe à porta, antes da alvorada. A
pobre senhora assustou-se, mas o rapaz tinha motivos para apressar-se.
— Senhora — disse amedrontado —, fugi para trazer-lhe graves notícias.
Esta noite ouvi a combinação de D. Diego e do filho, relativamente a esta casa.
— Como assim? — interrogou Madalena muito pálida.
— Sei que o Santo Ofício vai ocupar as propriedades do Sr. de Oviedo e
que os Estigarribias desejam incluir esta chácara no espólio do extinto.
— Mas esta casa me pertence — interrompeu a filha de D. Inácio com
energia.
— Queira, então, providenciar como convém.
A essa altura, o semiliberto mastigou as palavras, como que receoso de
prosseguir:
— Mas é uma iniqüidade — exclamou Madalena, convictamente.
— E não é só... — obtemperou o rapaz, reticencioso.
— Que maior infortúnio poderia sobrevir-nos?
— D. Alfonso — explicou o servo dedicado em palestra confidencial com o
pai, ponderou que, não sendo Alcione filha do finado, pode ser arrolada no
patrimônio, como escrava; e sei que tomou essa atitude, pela atração que a
mesma sempre exerceu sôbre êle.
— Horrível! — exclamou a viúva tornando-se lívida — não haverá justiça
para semelhantes bandidos?
— A justiça, por certo, não autoriza êsses crimes, mas os meus senhores
estão com os padres e será útil que a senhora tome as providências possíveis,
para defesa do seu lar.
Enquanto o rapaz se retirava apressado, de maneira a não despertar
suspeitas na casa a que servia, Madalena levou as mãos à cabeça, tentando
conter o vulcão de idéias que a incendiavam. Nenhuma preocupação na sua
vida continha o travo desta que ora a excruciava. Separar-se da filha, quando a
viuvez já lhe havia mortificado o coração, seria condenar-se a perpétuo
martírio. Reagiria contra os criminosos sem consciência. No torvelinho de suas
dores, entretanto, procurou encomendar-se a Deus com sincera compunção.
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Que Jesus se dignasse velar por sua fraqueza de mulher, defendendo-lhe a
filhinha dos lôbos desalmados.
O Sol já fulgurava no horizonte e o coração materno continuava em súplica
silenciosa, invocando a misericordiosa proteção do Crucificado. Procurando
ocultar sua aflição à serva e à filhinha, resolveu bater à porta das freiras
Carmelitas, no intuito de solicitar-lhes fraternal amparo.
Em todo o tempo de sua permanência em Ávila, freqüentara os ofícios
religiosos na Igreja de São Tomás apenas duas vêzes, pela dificuldade de se
locomover; mas isso fôra o bastante para abraçar velhas mestras, entre as
quais se destacava Madre Conceição do Santíssimo Sacramento, generosa
diretora do educandário onde ela, Madalena, recebera as primeiras letras.
Essa veneranda criatura, pensava a filha de D. Inácio consigo mesma, não
a deixaria sem assistência.
Com enorme dificuldade, dada a atrofia dos pés, encaminhou-se à cidade,
em companhia de Alcione, pela manhã. Desde a indelicada recusa das amigas
de sua mãe, em Paris, fizera o propósito de nada pedir em seu benefício; mas,
naquela hora grave em que lhe faltava o amparo do primo, tinha necessidade
de mão amiga para fazer respeitados os seus direitos. Não dispunha de outras
relações, além dos laços afetivos com as religiosas que tanto a beneficiaram e
acarinharam na infância.
Assaz inquieta, pediu para falar à Superiora do Convento de São José.
A velha monja, em cujo rosto as rugas marcavam invernos e padecimentos
longos, recebeu-a com afabilidade e doçura, visivelmente satisfeita com a
inesperada visita.
— Madre Conceição — começou dizendo acanhada e aflita —, esperava
socorrer-me de vossa bondade mais tarde, quando minha filha estivesse em
idade de iniciar os estudos, mas, circunstâncias imperiosas, quão imprevistas,
na minha vida, obrigam-me a incomodar-vos mais cedo.
— Dize, Madalena — respondeu a religiosa com bondade natural —, não
te perturbes, confia em nossa velha amizade. Desde que nos revimos, muito
tenho pensado em ti, nas tuas penas angustiosas; contudo, filha, são
numerosas as antigas alunas que se encontram nos sofrimentos da viuvez.
— Não venho aqui trazida por dificuldades materiais, minha boa Madre.
E passou a relatar as suas amarguras em face do desaparecimento do
primo, que a deixava em penosa situação moral, por motivo das perseguições
que o vitimaram. Pausadamente, imprimindo em cada palavra a fôrça da sua
emoção, explicou quanto sabia a respeito da sentença do Santo Ofício, que
levara Antero de Oviedo à suprema ruína. Em seguida, falou da maternal
angústia, devido às pretensões odiosas da família Estigarríbia, em lhe
extorquirem a propriedade rural e, além do mais, seqüestrar-lhe a própria filha.
A velha religiosa acompanhava-lhe as palavras, tomada de singular
admiração. Viu-a terminar, exausta, pálida, cabisbaixa, consternadíssima. Destacando
as últimas assertivas, exclamou inquieta:
— Mas o país não está em regime de cativeiro! Como poder alguém
escravizar uma criança inocente?
— Os que têm bastante dinheiro para demover os juizes — disse Madalena
convictamente — certo poderão gozar o beneficio das leis; mas eu sou
paupérrima e minha Alcione poderá ser levada por mãos criminosas, à revelia
da justiça. Não ignoramos que se fala bastante, na atualidade, em mestiços
que de nada servem, no conceito dos grandes senhores de terras, senão para
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os serviços rudes do Novo Mundo. E se D. Diego Estigarríbia pretender que
minha filhinha seja dessa espécie de criaturas? Ele tem as arcas abarrotadas
de pesetas para comprar os homens indignos. Suas violências talvez nem
cheguem a constar nos processos escritos.
Madre Conceição tinha uma grossa lágrima nos olhos. Maternalmente,
tomou as mãos da interlocutora e falou:
— Compreendo tuas angústias, entretanto...
— Será possível que não possa contar com o vosso auxílio? — perguntou
Madalena atemorizada.
— É que, minha filha, trata-se de uma questão com o Santo Oficio. Nesta
casa, somos muito indigentes para te auxiliar com êxito, contra inimigo tão
poderoso.
E, depois de levantar-se e sondar a porta vizinha, declarou à Madalena,
em voz muito baixa:
— Por buscarmos defender dois homens caluniados perante os
Inquisidores, duas irmãs e eu, no mês passado, fomos açoitadas cinco vêzes.
— Ah! como se permite semelhante tribunal no seio da Igreja? — indagou
a filha de D. Inácio penosamente surpreendida.
A monja enxugou as lágrimas com a manga do hábito rafado e murmurou:
— Talvez, minha filha, Deus haja permitido o funcionamento dessa
instituição impiedosa para que sejamos experimentados em nossa fé. Hoje em
dia, considero que não existe maior cilício que o suportar a evidência de tantos
crimes em nome do próprio Deus.
A jovem viúva começou a chorar em silêncio, mas a respeitável amiga
ponderou com solicitude:
— Não te desesperes: Jesus não está pobre de misericórdia. Faze o
possível por aliciar algum homem de mérito, que propugne os teus direitos.
Estou certa de que o céu nos oferecerá os meios precisos.
Madalena Vilamil despediu-se com palavras de sincero reconhecimento,
mas não pôde disfarçar o desânimo quase invencível. Ao vencer a distância
que a separava do teto humilde, sentia que as pernas tornavam-se mais
trôpegas. Mesmo assim, quis socorrer-se das autoridades civis ou religiosas,
mas a falta de dinheiro amortecia-lhe os impulsos. Os juizes, de um e de outro
lado, não trabalhavam de graça. Os processos não se movimentavam sem as
molas reais.
Alcione seguia-lhe os passos muito admirada das suas lágrimas e do seu
mutismo. Conduzida pela mão, a delicada criança parecia ansiosa por uma
oportunidade que lhe permitisse confortar o espírito materno. Assim que
atravessaram as muralhas, já no caminho empedrado, de regresso ao lar,
perguntou com a sua curiosidade infantil:
— A senhora não disse que íamos a outra casa?
— Não é possível, minha filha.
— Por quê?
— Não temos a chave de ouro com que poderíamos abrir a porta, concluía
Madalena, como a falar consigo mesma.
E passou o resto do dia mergulhada em dolorosas cismas. Via-se, na
imaginação, atirada no vórtice do destino. O Santo Oficio tudo lhe arrancaria,
tudo... A granja pequenina, cultivada com tantos sacrifícios, seria arrebatada
por verdugos cruéis. Mas, quando meditava na eventualidade de separação da
filha, profunda revolta dominava-lhe o coração. Seria a derradeira prova da sua
101
dedicação maternal, porque a morte, indubitàvelmente, viria nesse instante
enregelar-lhe as veias.
Enquanto Dolores trabalhava no quintal, intrigada com o pranto copioso da
ama, Alcione permanecia no aposento materno, procurando confortar
Madalena, com suas observações piedosas, embora infantis.
O crepúsculo desceu, pesadamente e, à noite, João de Deus reapareceu.
Depois de se informar do resultado da visita ao convento de São José, falou à
desolada senhora, deixando-lhe entrever novas esperanças:
— D. Madalena, conheço um padre que talvez nos possa valer.
— Quem é? — indagou ansiosamente a interpelada.
—É o padre Damiano, que oficia na igreja de São Vicente. Ele tem sido meu
amigo nas ocasiões difíceis, é bem possível que resolva satisfatoriamente o
caso. Se a senhora quiser, chamá-lo-ei ainda hoje mesmo, porque D. Alfonso
deverá vir aqui amanhã, depois do meio dia, para lhe dar conhecimento do
odioso mandato.
— Oh! sim! — exclamou reconhecida vai sem demora, conversarei com
êsse homem de Deus.
O rapaz saiu, e, quando o relógio marcava nove horas, regressava em
companhia do eclesiástico, recebido por Madalena com inequívocas
demonstrações de reconhecimento e aprêço.
Padre Damiano era homem dos seus cinqüenta anos e pela expressão do
olhar, como pelas cãs prematuras, dava conta de suas penosas lutas.
Em breves instantes, estabelecera-se entre êle e os presentes os laços
cariciosos da intimidade e da simpatia. Ouviu com atenção os informes da
viúva Davenport, entendendo-lhe as razões afetuosas, como se ouvisse uma
filha. A narrativa dos seus sofrimentos infundia-lhe respeito paternal. Em breve,
trocavam impressões e já pareciam velhos conhecidos. Também estivera em
Paris por ocasião da varíola de 63 e, por sinal, também sofrera a enfermidade
dolorosa, num estabelecimento religioso. Madalena Vilamil estava igualmente
satisfeita. A palavra do interlocutor parecia-lhe de um amigo sincero, que
tardara a aparecer. Historiando os incidentes da sua viuvez, o Padre prestou
maior atenção ao caso e sentenciou:
— É muito estranhável que a senhora tenha lutado com tão infausto
destino, mediante uma simples notícia. Nunca recebeu informações mais positivas
da América?
— Nunca.
— Também — continuou —, é preciso considerar a soledade em que ficou,
lá na França. A morte dos pais, a enfermidade rebelde, a necessidade imperiosa
de atender à recém-nascida...
— Sim — explicou Madalena agradecida ao seu afetuoso interêsse —,
mas não renuncio ao meu velho ideal de uma excursão à colônia do norte. Não
desejo morrer sem obter as últimas notícias de Cirilo.
O religioso fêz um sinal de aprovação e acentuou:
— Sempre acalentei o desejo de compartilhar dos trabalhos missionários
na América e, se algum dia o conseguir, ofereço-me a levá-la, com a sua
filhinha.
Madalena Vilamil agradeceu com um grande sorriso. A palestra prosseguiu,
animadamente, até que a hora avançada determinava as despedidas. Padre
Damiano referiu-se à sua disposição sincera de enfrentar a ousadia criminosa
dos Estigarríbias e prometeu que ali estaria no dia seguinte às doze horas. E
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como a viúva quisesse reiterar os agradecimentos, muito comovida, êle a
interrompeu, dizendo:
— Não se dê ao trabalho de manifestar gratidão. Neste mundo, somos
devedores uns dos outros e, neste momento, tenho a impressão de estar
resgatando uma dívida.
E retirou-se acompanhado por João de Deus, enquanto a pobre senhora
experimentava um grande alívio e desafôgo à mente atormentada.
No dia seguinte, à hora aprazada, o eclesiástico franqueava a porta e
aguardava os acontecimentos.
Nas primeiras horas da tarde, D. Alfonso Estigarríbia aproximou-se
acompanhado por seus homens, a fim de imprimir certo aparato ao feito.
Notando a presença de um sacerdote na casa suposta indefesa, não pôde
esconder o desapontamento; mas Damiano, querendo conhecer todo o ardil da
encenação cruel, tomou atitude humilde, fêz um gesto de extremo desinterêsse
pela causa e exclamou, após a primeira saudação:
— Entrai, meus filhos! Viva Deus e abençoado seja o nosso Santo Padre.
Encorajados com semelhante acolhida, D. Alfonso e os asseclas
cobraram alento e passaram a ler o torpe mandato, com ares de triunfo. O filho
de D. Diego fêz a leitura solene, pausada, enquanto Madalena e Dolores
ouviam a sentença, excessivamente pálidas. Terminada a intimação, o moço
Estigarríbia passou a explicar que a granja deveria ser desocupada dentro de
três dias e que, havendo ali uma criança mestiça, trazida por Antero de Oviedo,
competia ao Santo Ofício decidir do seu destino, pelo que exigia a sua entrega
imediata.
De posse de todos os fios da perversa meada, Padre Damiano fechou o
semblante e declarou com enérgica serenidade:
— Conhecemos a fôrça do Tribunal que assim ordena, mas somos
obrigados a declarar que existe lamentável engano a corrigir. A Inquisição terá
tido motivos para condenar nosso parente Antero de Oviedo, coisa que não
pretendemos discutir; consideramos, porém, que a sentença de confisco já foi
executada com a ocupação de suas casas em Ávila, e de outras propriedades
em Madrid. Julgamos, ainda, que se isso não bastasse, o condenado já pagou
duramente as suas faltas com a morte.
D. Alfonso ficou lívido.
— A que engano vos referis? — indagou.
— Esta chácara não pertencia ao réu.
— As provas? — acudiu o chefe da expedição, contrafeito.
A um gesto do religioso, Madalena Vilamil trouxe o documento da doação,
firmado pelo extinto.
— Mas, evidentemente — exclamou D. Alfonso — esta declaração não
tem efeito legal. É simples transação entre parentes. O sangue é o mesmo.
— Julgais, então — continuou Damiano —‘ que as pessoas honestas
possam responder por delitos dos irmãos consangüíneos? Jesus era o
Salvador e não impediu que Judas aparecesse na reduzida família dos seus
discípulos.
Ante a inesperada opugnação, o filho de Dom Diego mordeu os lábios,
encolerizado:
— Deveis saber que a condenação do Santo Ofício engloba a parentela.
— Não ignoro — explicou o padre — que o Santo Ofício muito cruelmente
persegue o condenado na pessoa dos descendentes, mas nós não somos da
103
estirpe de Antero de Oviedo.
Incapaz de rebater os argumentos do interlocutor, o chefe da diligência
acentuou:
— Consultaremos o bispo D. Leôncio Molina.
Compreendendo que o rapaz aludia ao parente, cheio de influência
política, Damiano acrescentou:
— E nós indagaremos a razão pela qual a família Estigarríbia anda
requisitando crianças livres nas cidades independentes da Espanha. A Côrte
nos informará, quanto a isso.
O vizinho fêz menção de retirar-se com os companheiros, mas, antes de o
fazer, o sacerdote concluiu:
— D. Alfonso, voltai na paz de Jesus. Esta casa está disposta a viver
cristãmente na vossa vizinhança, mas não esqueçais que tendes uma alma
para prestar contas a Deus.
A expedição partiu cabisbaixa, enquanto Madalena se retirava para o
interior e beijava o crucifixo que sua mãe lhe havia dado, agradecendo a Jesus
aquelas inefáveis consolações.
104
6
Novos rumos
A família Estigarríbia não voltou a renovar suas absurdas exigências e o
próprio D. Alfonso fêz o possível por demonstrar atitudes novas e mudança de
propósitos, de sorte que a torpe extorsão não chegou a consumar-se. Ciente
do fato, o bispo Molina desautorizou os criminosos intuitos e providenciou para
que o confisco não ultrapassasse os limites indicados pelos inquisidores.
Encerrado o incidente, a vida na granja prosseguia em adorável
simplicidade.
Alcione fizera-se amiguinha fiel do Padre Damiano e Madalena parecia
regozijar-se com a nova companhia.
O eclesiástico revelava idéias diferentes de sua época. Embebido nas
veneráveis tradições do passado, não podia compreender os crimes tramados
na sombra, em nome de Deus. Apreciava a filosofia antiga, desprezava os
exageros do fanatismo e não concordava com a tirania do Santo Ofício. Quase
diàriamente, à noite, ia à vivenda modesta da viúva Davenport, a cuja porta a
pequenina Alcione se postava para saudar graciosamente o cavalo paciente e
manso, que o servia no pequeno trajeto.
As conversações interessantes desdobravam-se, animadoras. Madalena
Vilamil parecia encontrar nas interpretações do religioso mais duradouras
consolações.
— Padre Damiano — dizia —, a Igreja parece despreocupar-se de nossas
amarguras. Em tôda parte preponderam as injunções políticas, ao passo que
Jesus foi bem claro nos ensinamentos relativos ao seu Reino, que ainda não é
dêste mundo. Todavia, em vez de cuidar da redenção das almas, a maioria dos
clérigos permanece em disputas vãs. Vivemos uma época de trevas espêssas.
A Inquisição é muito mais poderosa que os reis sem coração. A que atribuir tais
desmandos? Não considerais que temos sido escravos antes que devotos?
— Sim, minha filha — esclarecia o amigo com a sua madura experiência
da vida —, suas observações são justas. Deus cria a vida, não o cativeiro.
Entretanto, êsses clamorosos desvios são das instituições humanas. Os padres
ambiciosos de poder temporal constituem fileira quase interminável nos tempos
atuais, mas não poderão nunca destruir o Cristianismo na sua essência eterna,
divina. A misericórdia de Deus lhes tolera os insultos, mas há de chegar o
tempo de se restabelecer a verdade. Sou de opinião que tôdas as iniqüidades
da Terra são impotentes para aniquilar uma centelha de nossa fé.
A última frase despertou em Madalena pensamentos novos. Num belo
minuto de meditação, esquecia as vicissitudes da Terra e as angústias do
Tempo, para alcandorar-se nos sublimes problemas da alma.
— A fé? — obtemperou — como adquiri-la, — padre? De mim a entendo
como um estado superior, conseguido na oração. Tudo tenho feito por encontrar
alívio e refúgio na confiança em Deus. No entanto, sinto-me bem longe
da paz íntima que tanto ambiciono.
O eclesiástico lançou-lhe um olhar significativo, como a dizer que lhe era
impossível resolver definitivamente a questão e explicou:
— Não poderemos criar os valores da fé, enquanto nos sobeje a
inquietação, e acredito que nossas relações com a Divindade devem ser as
mais simples possíveis. Quanto a mim, considero que cada dia é uma
oportunidade renovada para o labor de nossa redenção. Resumo as minhas
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preces à vigília da manhã, na qual procuro a inspiração do Evangelho ou dos
livros que nos suscitam desejos de perfeita união com o Cristo, e ao louvor da
noite, quando busco examinar os ensejos de serviço ou testemunhos que o
Senhor me facultou.
Ela não compreendeu a contento e interrogou:
— Mas... como?
— Tôda a leitura edificante derivou da Providência por intermédio dos seus
mensageiros, em nosso socorro; com as suas advertências e conceitos, sábios
e preciosos, faço a vigília matinal e à noite rendo graças ao Pai, em
consciência, pelos favores que me foram dispensados. Na vigília, estabeleço
propósitos redentores; e no exame da noite julgo-me a mim mesmo, para
verificar onde se cristalizaram minhas maiores fraquezas, a fim de emendá-las
no dia imediato. O mundo, a meus olhos, é uma vasta oficina, onde poderemos
consertar muita coisa, mas reconhecendo que os primeiros reparos são
intrínsecos a nós mesmos.
Grandemente interessada, a suposta viúva de Cirilo insistiu:
— Se dais tanto valor ao esfôrço espiritual da manhã e às meditações da
noite, como encarar o dia?
Creio que entre a vigília e o louvor está
o trabalho que o Senhor nos deferiu, O dia constitui •o ensejo de concretizar as
intenções que a matinal vigília nos sugere e que à noite balanceamos.
O reduzido auditório, isto é: Madalena, Alcione e Dolores, bebia-lhe os
conceitos com profunda atenção.
A serva, talvez impressionada pelas suas definições de trabalho, indagou:
— Padre Damiano, como proceder, então, nos dias em que as
circunstâncias nos impeçam de trabalhar? Estaremos fugindo ao ensejo que
Deus nos concedeu?
O religioso compreendeu o móvel da pergunta e tentou explicar:
— Acreditas, então, que só aos braços foram conferidas as atribuições de
serviço? Os ouvidos trabalham quando ouvem, os pés quando caminham. A
língua esforça-se, a inteligência atua. Quando cessam as possibilidades de
ação no exterior, há no íntimo da criatura todo um mundo a desbravar. Chego a
refletir que, às vêzes, a enfermidade atormenta a criatura para que ela se volte
para dentro de si e aproveite a oportunidade, no esfôrço laborioso de sua
renovação.
Para a filha de D. Inácio, aquelas conclusões sôbre a prece eram novas e
surpreendentes. Tal como acontecia em tôdas as esferas religiosas do seu
tempo, supunha que orar equivalia a pedir. As cerimônias da igreja, quase
sempre, resumiam-se em longas súplicas, apenas. Os livros devocionais
englobavam rogativas, da primeira à última página. Os ex-votos, as procissões,
os sermões públicos, representavam pedidos insistentes. Por isso mesmo, a
viúva inquiriu com certa indecisão:
— Vossos esclarecimentos quanto à oração me surpreendem; contudo,
necessito expor minhas dúvidas mais íntimas. Não teria Deus concedido ao
mundo a faculdade de rezar, a fim de que a alma humana aprendesse a pedir?
Sempre conheci essa manifestação do sentimento como rogativa. Considero,
entretanto, que, se tôda a nossa atividade religiosa estivesse circunscrita aos
atos precatórios, não passaríamos, neste mundo, de uma assembléia de
mendigos. Que dizer do homem que reclamasse, de mãos postas, o manjar do
céu, sômente por reter o suor na semeadura do seu quintal? Poderá alguém
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insistir na obtenção da verdadeira paz, quando ainda disputa a ferro e fogo a
posse de bens perecíveis? Chegará alguém à esfera dos anjos, quando ainda
não chegou a ser homem?
Reconhecendo o interêsse despertado por suas palavras, Damiano
sentiu-se encorajado e continuou:
Naturalmente que deveremos apelar para o Céu, mas, no interpretar a
prece como rogativa, suponho que não devemos ir além do “Pai Nosso”,
porque, acima de tudo, julgo que a oração deve ser um esfôrço para nos
melhorarmos. Deus nos procura a todo momento e o ato devocional será,
então, tarefa incessante do espírito, apagando as imperfeições, para que o Pai
nos encontre.
— Mas, criaturas há que maldizem o destino —acrescentou Madalena
sumamente interessada. —Como não importunar o Céu, quando padecemos
necessidades angustiosas? Para muita gente, a Terra não passa de odioso
degrêdo e o corpo representa escuro cárcere.
— Não creio. Só há mendicidade em nossa alma. E no que se refere a
paisagens do mundo, o próprio deserto tem a sua beleza. As estradas que
pisamos estão repletas de perspectivas encantadoras. Uma fôlha da primavera
ou um punhado de areia são documentos da glória de Deus em nossos
caminhos. Quando nos referimos a regiões sombrias ou desoladas, geralmente
esquecemos que elas se localizam em nosso mundo íntimo. A noção de
cárcere, como a dor do remorso, nunca foram observadas no horizonte azul
nem no canto dos pássaros, simplesmente porque residem dentro de nós
mesmos.
— E o sofrimento, padre Damiano? — perguntou Madalena Vilamil, já
tocada por aquêles altos conceitos. — Que me dizeis do problema do destino e
da dor? Nosso futuro espiritual, após a morte, não está encerrado no céu, no
purgatório ou no inferno, sem remissão?
O interpelado sorriu e esclareceu:
— Esta palavra, ouvida pela Inquisição, representaria um crime de traição para
o fanatismo de nossa época e nos levaria à fogueira. Esta circunstância nos
leva a refletir na magnitude da tarefa a realizar, mas, se eu disser que minha
interpretação é diferente? A morte não existe como a entendemos. O que se
verifica, apenas, é uma transmutação de vida. Os teólogos suprimiram a chave
simples das nossas crenças. Quando o corpo é reclamado pelo sepulcro, o
Espírito volta à pátria de origem, e como a Natureza não dá saltos, as almas
que alimentam aspirações puramente terrestres continuam no ambiente do
mundo, embora sem o revestimento do corpo carnal. Desde a mais remota
antigüidade, os homens se comunicaram com os seus semelhantes já mortos.
E, ante o olhar admirativo da jovem senhora, Damiano passou a recordar:
— Eneias fêz consultas a Anquises, por meio dos estranhos poderes da
feiticeira de Cumas; Plutarco afirmava que os sêres de outro mundo se
manifestavam nos Mistérios; Sócrates tinha seu gênio familiar; Apolônio de
Tiana sentia-se auxiliado por entidades invisíveis; os imperadores romanos
buscavam os pareceres dos habitantes de Além-Túmulo, com a cooperação
dos Oráculos; Vespasiano procurou a palavra dos numes tutelares no Oráculo
de Geryon; Tito fêz o mesmo na Ilha de Chipre; Trajano imitava-os, sondando
as revelações do Oráculo de Heliópolis, na Síria; os cronistas do tempo antigo
declaram que Augusto, depois de iniciado no culto de Elêusis, tinha contato
com os fantasmas; nas páginas sagradas da Bíblia vemos Saul procurando o
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falecido Samuel por intermédio da pitonisa de Endor, e contemplamos os
discípulos de Jesus bafejados pelo Espírito-Santo, no glorioso dia do
Pentecostes...
É extraordinário! — exclamou a espôsa de Cirilo felicitada por novas luzes.
— Quer dizer que os entes queridos, que nos antecedem no túmulo, nos
esperam no limiar da outra vida, para as alegrias do reencontro?...
Damiano esboçou um gesto altamente significativo e acrescentou:
— Nem sempre será indispensável partir para reencontrar...
- Por quê? — interrogou admirada.
— Nossa época não comporta a divulgação das supremas verdades, mas
nós nascemos e renascemos. A vida é uma só; entretanto, as experiências são
diversas. O próprio Jesus declarou aos mentores de Israel que não era
possível atingir o Reino de Deus sem renascer de novo. Inferno ou purgatório
são estados do espírito em tribulação por faltas graves, ou em vias de
penitência regeneradora.
A “viúva” Davenport teve a sensação de haver sido levada a um pôrto de
grandiosas revelações. Recordou, súbitamente, seu primeiro colóquio com o
rapaz irlandês que elegera para seu companheiro de existência, quando lhe
confiara as predições do velhinho de Granada. A figura quase apagada do
egipciano erradio ressurgia-lhe nos arcanos da memória, com os mínimos
contornos. Assim, reviu na tela imaginada as portas do Alhambra e as amiguinhas
bem-amadas, destacando-se de tôdas as recordações as palavras
conselheiras do desconhecido:
“Prepara-te, minha filha, e une-te à fé em Deus, porque teu cálice, no mundo,
transbordará de sofrimentos. Não vivemos apenas esta vida. Temos várias
existências e a tua existência atual é promissora de tributos afanosos para a
redenção.” Sinceramente impressionada, relatou o incidente, que o religioso
acolheu com singular carinho.
— Podes crer — afirmou convicto — que êsse ancião deveria ser um
grande inspirado.
— Mas será possível que se troque de corpo como se muda de vestes?
— Justamente. Só isso, minha filha, explica as profundas diferenças do
caminho. Nas estradas em que buscamos a luz da salvação, encontramos os
sêres humanos mais díspares. Ali, depara-se-nos um homem impiedoso,
detentor de sólida fortuna; acolá, debate-se um justo entre a fome e a
enfermidade, que parecem intermináveis. Num mesmo lar nascem santos e
ladrões. Há pais excelentes cujos filhos são indesejáveis, monstruosos. Uma
via pública exibe jovens elegantes e miseráveis criaturas que se arrastam entre
a lepra e a cegueira. Poderias admitir que o Criador, magnânimo e sábio,
deixasse de ser pai para ser um experimentador desalmado? Não admitamos
êsse absurdo teológico, mas ponderemos na verdade de que se cumpre, desde
agora, o — “a cada um segundo suas obras”, dos ensinamentos de Jesus. Na
obra divina, infinita e eterna, cada filho tem responsabilidade própria. A criatura
se engrandecerá ou submeter-se-áao rebaixamento, conforme utilize as
possibilidades recebidas. No caminhar de cada dia, podemos observar os que
ascendem, apesar dos dolorosos testemunhos; os que estacionam em receios
inúteis; os que resgatam e os que contraem novas dívidas.
Madalena Vilamil, depois de apurar ainda mais as impressões próprias,
considerou sensibilizada:
— Vossas razões me suscitam mais vastos raciocínios. Às vêzes, padre,
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sonho com assembléias que me forçam a decisões prejudiciais, com praças
armadas e onde minha voz ordena ações cruéis... Vejo-me, então, detentora de
poderes, rodeada de súditos numerosos... Em seguida, acordo exausta, com a
impressão de haver regressado de uma região de reminiscências indesejáveis.
— Ah! sim? — murmurou Damiano com um sorriso — quem sabe a nossa
permanência em Ávila constitui uma repetição de circunstâncias do passado
ominoso? É possível que tenhamos tido riqueza e autoridade, exercendo
tirania. A casa. de Deus é cheia de justiça com misericórdia.
A viúva Davenport meditou alguns minutos nas provações sofridas,
considerou a razoabilidade dos conceitos expendidos e concordou:
— É verdade. Minha existência parece obedecer a êsse plano de tributos
expiatórios. Desde criança, venho observando que nas situações decisivas sou
obrigada a curvar-me às circunstâncias. Nos grandes lances, tenho a
impressão de que minha vontade é anulada por misterioso poder...
— E és muito feliz em não desobedecer.
— Entretanto, padre, as mágoas são muitas e rudes.
— Mas se o esfôrço divino de Jesus foi aureolado no Calvário, quem
poderá pensar na glória celeste sem a coroa de espinhos? As pessoas felizes
costumam não ter história, e, quando a possuem, nem sempre registram
episódios mais dignos. Com essa idéia, não quero dizer que devamos andar no
mundo como aventureiros do sofrimento, em farragem de trapos e lamentos,
mas desejo realçar o valor das lutas incruentas do coração, que temperam o
caráter e iluminam a vida. A maioria dos santos esteve indecisa, até que o
testemunho redentor, pela dilaceração de si mesmos, lhes abriu os horizontes
infinitos da Eternidade. Nascemos e renascemos, até que possamos encontrar
asas de sabedoria e de amor para os vôos supremos.
— Vossas idéias a respeito da pluralidade de existências — disse
Madalena — traduzem imensas consolações. Depois que voltei da França, já
fui duas vêzes à igreja de São Tomás assistir aos ofícios religiosos, mas nunca
poderei definir as emoções que me assaltaram ao contemplar-lhe as imagens
antigas. Ao ajoelhar-me próximo do púlpito, a grandeza do velho templo
parecia revocar-me a lembranças imprecisas de outras eras, que eu não
conseguiria definir. Terminada a missa, visitei todos os altares e extasiei-me na
contemplação do velho claustro... Poderosas impressões dominaram-me o
pensamento... Fiquei convencida de que cada coisa, ali, me era familiar e,
contudo, quando menina, no internato, raras vêzes visitei êsse templo e nunca
experimentei tais sensações.
— Sim — considerou Damiano em atitude de funda reflexão —, a igreja e
o claustro de São Tomás têm sua história longa e estranha. Ali foram tomadas
muitas deliberações importantes, nas reuniões dos reis católicos com os
membros do Santo Ofício.
Houve uma pausa e logo a moça interrompeu:
— Já que essas teorias tanto edificam, por que não cuida a Igreja de as
divulgar?
— Por enquanto não devemos pensar nisso. Estas revelações espirituais
nos chegam da mais remota antigüidade, mas a Igreja Católica não poderá tão
cedo espalhar o clarão dessas verdades confortadoras. A noite que desceu
sôbre nós ainda não terminou.
— Mas, acaso não se trata de consolações divinas?
— Sim, mas nossa crença atual tem sua base no terror da tirania religiosa
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e não na liberdade sublime do Evangelho. Se Jesus voltasse agora, à Terra,
seria perseguido como impostor, com suplícios talvez maiores que os da cruz.
A barca de Roma é diferente da barca da Galiléia. Na primeira, temos
sacerdotes ambiciosos e insaciáveis; na segunda, tínhamos pescadores. Em
Roma, esplendem palácios; enquanto que em Belém fulgia a manjedoura. No
Vaticano, faiscam gemas preciosas da tiara pontifícia; em Jerusalém o cálice
era de vinagre e a coroa tecida de espinhos.
Madalena recolhia as citações com indisfarçável interêsse, enquanto o
eclesiástico rematava:
— Compreendes as diferenças?
— Abraçais então a Reforma? — arriscou, referindo-se ao movimento
religioso iniciado por Martinho Lutero.
— Aceito a necessidade da reforma intima. Se os protestantes puderem
alcançar semelhante renovação, por certo serão bem-aventurados. Quanto ao
mais, se ainda me encontrasse sem responsabilidades definidas, seria justo
empunhar uma espada de batalhador ativo em prol do restabelecimento da
verdade; contudo, se Deus me chamou ao labor do ministério católico, devo
obedecer, compreendendo que o meu combate é no silêncio e na meditação,
longe dos olhos indiscretos do mundo.
*
Aquelas conversações construtivas repetiam-se diàriamente. Quando o
sacerdote não comparecia, a viúva Davenport, Dolores e João de Deus, seguidos
de Alcione, prosseguiam nos mesmos comentários. Eram passagens
evangélicas, livrinhos de meditações, contos educativos, o material de luz das
palestras fraternais do grupo modesto. Padre Damiano, de vez em quando,
contava a história dos primeiros mártires do Cristianismo, e a recordação dos
sacrifícios provocava um manancial de lágrimas benéficas. A lembrança de sua
resistência heróica, de sua exemplificação de coragem, bondade e fé, acendia,
em todos, novas claridades confortadoras.
Os meses corriam céleres para aquela reduzida assembléia de corações,
que não desejava outra coisa senão a paz perfeita em Jesus.
A pequena Alcione encontrava singular encanto nas descrições dos
tempos remotos, em que os cristãos perseguidos se reuniam nas catacumbas
abandonadas. A narrativa das festividades bárbaras da época de Nero
marejava-lhe os olhos, mas, quando ouvia a leitura das respostas firmes dos
mártires aos algozes, exultava de entusiasmo. Denunciando vocação para o
sacrifício, certa vez interrogou:
— Padre Damiano, onde é agora o circo? E as feras? Ainda podemos
sofrer para mostrar a Jesus que não estamos de acôrdo com os que o
crucificaram?
O religioso achou muita graça na lembrança e explicou:
— Sem dúvida, poderemos testemunhar nossa fé a todo tempo, em tôdas
as circunstâncias.
E observando que a criança aguardava resposta completa, concluiu
sorrindo:
- Agora o circo é o mundo e, na maioria dos casos, as feras são os homens.
*
110
Dois anos, relativamente tranqüilos, assim passaram, O religioso amigo
vivia sempre na expectativa de uma surtida à América. Quando todos os planos
pareciam ajustar-se ao cometimento, surgia um imprevisto dominante.
Adiavam-se então as esperanças, indefinidamente. Madalena Vilamil, todavia,
gozava melhor saúde, com exceção dos pés, que a obrigavam a se contentar
com a pequenina paisagem da sua pobre granja. Movimentava-se, porém, sem
maiores torturas, dentro de casa e no âmbito do quintal, e isso era motivo de
enorme satisfação. As palestras e reflexões diárias, sôbre a vida espiritual,
renovavam-lhe as fôrças psíquicas. Tinha ilimitada confiança no futuro de alémtúmulo.
No trato das idéias novas, chegava à conclusão de que a viuvez e a
pobreza material representavam condições do testemunho e em tudo havia
possibilidades de honrar os decretos divinos. Recordava o passado, detinha-se
nas reminiscências dos dias mais tormentosos e refletia que as piores
situações haviam passado. Além do mais, a Providência lhe concedera um
bálsamo celestial nas carícias da filhinha, cuja companhia representava o alfa e
o ômega da sua vida. Sua fé religiosa, ao influxo dos novos conhecimentos,
ganhara maravilhosos poderes de resistência. Estava certa de que encontraria
novamente o espôso e os pais, quando entregasse o corpo material às
sombras do túmulo. Essa crença proporcionava-lhe constante renovação de
energias morais, e chegada a noite, na hora das preces, sentia doce
tranqüilidade de consciência e infinita esperança a encher-lhe o ferido coração.
Por essa época, verificou-se memorável evento no sítio. Atendendo à
generosa interferência de amigos, os EstigarríbiaS consentiram no casamento
de João com a Dolores; e Madalena muito se regozijou com o feito. A
cerimônia, muito simples, foi celebrada na residência da noiva, pelo padre Damiano,
com a presença de D. Alfonso, que via no feito um elo a unir a fazenda
poderosa à humilde chácara confinante.
João de Deus, no entanto, casara-se sob condição de continuar na mesma
situação de semi-liberto, da qual a espôsa teria de compartilhar. Dolores,
todavia, ficou livre para prosseguir cooperando com a ex-senhora, como lhe
aprouveSse, apesar de Madalena ter agenciado outra serva, indispensável aos
trabalhos da horta e do pomar.
A família Estigarríbia, desejando talvez apagar as más impressões do
passado, mandou construir uma casinha modesta para o casal, justamente na
divisa da chácara, para que a senhora Vilamil não ficasse afastada dos seus
amigos prestimosos.
Dessarte, o casamento da serva não alterou o regime doméstico de
Madalena, de maneira essencial.
E, como a interpenetração de planos constitui fenômeno inelutável no
curso da vida, vejamos o que ocorria a Antero de Oviedo no plano espiritual.
Em região de sombras compactas, seu espírito reparava com lágrimas de
compunção a inconsciência de outrora. Azorragado pelo remorso, tinha a
impressão de estar mergulhado em noite infinda, no bôjo imenso de insondável
abismo. Dois anos lhe pareciam dois séculos de amargor inconcebível. De
quando em quando, tentava erguer-se do abatimento que o prostrava, para
logo recair em marasmo de agonias, como se lhe não fôra possível intentar,
sequer, desprender-se daquela geena.
A princípio, tinha fome e sêde, mas, aos poucos, tais sensações cediam a
111
padecimentos mais atrozes. As últimas impressões da morte trágica subsistiam
e até se requintavam, esmagando-o, qual catadupa de indefiníveis angústias.
Terrifico silêncio envolvia-o, uniforme, invariável. Quando ansiava por ouvir
vozes humanas, chegavam-lhe ruídos confusos de gargalhadas escarninhas,
deixando-o quase convicto de estar sendo espreitado por inimigos intangíveis
que, embora igualmente mergulhados no manto de trevas espêssas,
zombavam de Deus e das noções santificantes da vida.
Lágrimas dolorosas lavavam-lhe o rosto, incessantemente Apesar de
convencido do seu desprendimento do corpo carnal, guardava a impressão
nítida de sua personalidade humana.
Precito impenitente recompunha os mínimos elos das experiencias em que
fracassara. A infância na Espanha, os desvelos maternais de D. Margarida, as
preciosas oportunidades perdidas, tudo, tudo o atormentava e transformava o
coração em fonte de pranto inestancável As Possibilidades de Paris apareciamlhe
agora como largos caminhos que o teriam Conduzido ao dever mais nobre,
e, no entanto, cruel e egoisticamente desprezado. A lembrança do crime
praticado com a prima, enfêrma e indefesa, era uma úlcera envenenada que
lhe agravava a desventura. Era como se ali a tivesse, recebendo a falsa notícia
da morte do marido, acarinhando a recém-nascida, desfeita em pranto. Depois,
era o moço irlandês viajando cheio de confiança nos seus préstimos fraternos,
e — coisa extraordinária! — no pandemônio das recordações como que lhe
ouvia as últimas palavras na véspera da partida.
Apuado pelo remorso, voltava às ruas parisienses devastadas pela varíola
ascorosa, e debalde tentava regredir no tempo, a fim de corrigir o êrro
clamoroso. Nos pesadelos que o assediavam, revia a casa de Santo Honorato,
ansioso por defender Madalena até ao fim, mas, simultâneamente, a lembrança
do cemitério, com as aleivosas sugestões de Susana, passava-lhe no cérebro
entontecido, qual nuvem de fogo. Uma azenha ao estridor de reminiscências
amargas que pareciam não ter fim. A recordação do regresso à terra natal com
propósitos ignóbeis e a insistência brutal por satisfazê-los com a prima, que
deveria respeitar, levavam-no às raias da loucura. Federigo Izaza surgia-lhe
como verdugo de cuja influência aviltante era preciso fugir, mesmo de longe.
Atemorizavam-no as reminiscências concernentes ao comércio e tráfico
escravista. Revia as cenas torpes das embarcações negreiras, nas raras vêzes
que as visitara ao largo da costa africana. E ouvia as lamentações e o
praguedo dos que se viam obrigados à separação dos entes queridos. Tudo lhe
aflorava à mente dolorida, com prodigiosa vivacidade e nitidez.
Como não conseguira entrever a verdade na Terra? Que venda estranha
lhe cegara os olhos? Por que não amparara Madalena nas vicissitudes da
sorte, em vez de arruinar-lhe o porvir de espôsa e mãe? Por que anuíra à
criminosa sugestão de abusar das criaturas ignorantes, conduzindo-as a
imerecido cativeiro, quando lhe competia auxiliá-las fraternalmente, por
comezinho dever de humanidade?
Rememorando o passado, Antero de Oviedo chorava convulsivamente,
azorragado na consciência.
O veneno fulminante, com que se suicidara, parecia corroer-lhe ainda as
vísceras, num suplício sem fim.
Tremia, chorava, aniquilava-se dentro da sua imensa dor.
Todavia, o fato que mais o impressionava era ter a destra mirrada e um dos
pés ressequido! A treva impedia-lhe a visão, mas, de quando em quando, pelo
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tato, com sensações dolorosas, ia compreendendo a singular anomalia.
Escoados mais de setecentos dias de incomensurável amargura, certa
vez rogou a Deus, com tôdas as veras do coração, lhe permitisse uma esmola
de luz no seio das trevas que o envolviam. Recordou a figura do Cristo, que
jamais procurara entender na Terra, e chorou como nunca. Implorou, então,
compungidamente, que o Salvador se apiedasse da sua angústia infinita. Em
voz baixa, qual criança imbele, pediu com sinceridade, embora reconhecendo o
demérito próprio, que o auxiliasse, permitindo que sua mãe adotiva viesse
trazer-lhe uma palavra de coragem e reconfôrto.
Depois de assim recorrer com a humildade de quem suplica saturado de
inútil desespêro, viu, pela primeira vez, destacar-se na treva um círculo de
claridades confortadoras. Tomado de assombro, sentiu que alguém se
aproximava em seu socorro. Mais alguns instantes e o Espírito de D. Margarida
tornava-se-lhe visível.
— Ah! minha mãe!... — exclamou, arrastando-se para beijar-lhe os pés —
há quantos séculos me separei do seu coração afetuoso?
A espôsa de D. Inácio, cercada por um halo de luz, tinha os olhos
nevoados de lágrimas. Inclinou-se e murmurou docemente:
— Oh! meu filho, como te encontro!... Onde puseste o amor que te dei? Por
que te chafurdaste no tremedal das paixões humanas, quando te ensinei a
elevar o pensamento a Deus, desde os primeiros dias da tua infância?
Em atitude maternal, sentou-se ao seu lado e acariciou-lhe a cabeça, que o
rapaz conservava sôbre a mão esquerda, a chorar convulsivamente.
— Como te venho encontrar, Antero! Os mensageiros de Jesus permitiram
viesse trazer-te alguma consolação. Reanima-te, filho!...
— Perdi tudo — exclamou o desventurado
não me resta da experiência humana senão um mar de tormentos e lágrimas.
E, por fim, minha mãe, Deus me atirou neste abismo nefando!...
Mas ã nobre entidade lhe cortou a palavra, asseverando:
— Não blasfemes! Deus é Nosso Pai e nos criou para a luz eterna. Somos
os responsáveis pela queda nos desfiladeiros cruciais. A Providência nos cerca
de todos os carinhos, traça as sendas de amor que devemos trilhar e, no
entanto, meu filho, no círculo da liberdade humana, relativa, a paixão nos
aniquila, o orgulho nos cega, o egoismo nos encarcera em suas prisões
malsãs. Como poderias afiançar que o Senhor te conduziu a êste lugar
tenebroso, se desprezaste o roteiro da sua infinita misericórdia?
Antero, entretanto, tocado pelas angustiosas recordações terrenas,
obtemperou amargurado:
— Mas tudo no mundo conspirou contra mim!
— Não seria mais acertado dizeres que conspiraste contra tudo?
Combateste os sentimentos nobres que te infundi na infância; guerreaste a paz
do nosso lar; tramaste contra os sêres nascidos em liberdade. Onde pus, em
teu coração, os ensinos do Cristo, entronaste a indiferença; no caminho de
duas almas em união santificada por Jesus, semeaste a mentira e o sofrimento;
nas regiões por Deus destinadas à vida livre, plantaste os espinhos da
escravidão. Não teria sido misericórdia arrancar-te aos sorvedouros do mal,
trazendo-te a esta noite desolada para que pudesses meditar? Abençoa as
dores que te ferem o espírito e estraçalham o coração. Essas amarguras
atrozes obrigam-te a calar, para que a verdade te fale à consciência. Ainda
para os mais broncos criminosos, endurecidos no mal, sempre surge um
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momento em que, premidos pela dor, são forçados a ouvir a voz de Deus.
O réprobo soluçava nos braços da interlocutora, qual filho ansioso por
desabafar tôdas as mágoas no regaço materno. Aquelas palavras deram-lhe
grande alento ao coração delido.
— Reconheço a enormidade das minhas faltas concordou humildemente
—, no entanto, mãe, fui órfão de tôdas as alegrias!
— Não o fôste tal, e sim, e só, um ser incontentável.
— Aspirações cortadas por um destino cruel...
— Ninguém pode alcançar felicidade quando transforma as aspirações em
caprichos inferiores.
Traduzindo num gesto relutância e desacôrdo, ei-lo a insistir:
— Tôdas as lutas terrestres ser-me-iam favoráveis se Madalena me
houvesse atendido ao coração. Ao seu lado eu cultivaria a virtude, fugiria do
mal, teria vencido as mais rudes batalhas, mas...
A nobre entidade, aproveitando a pausa reticenciosa, redargüiu com energia
e serenidade:
— Não acuses tua irmã por faltas oriundas de tuas próprias fraquezas.
Madalena jamais te faltou com a exemplificação fraternal. Assediada por necessidades
cruéis, foi tua amiga desvelada; nas horas de incerteza, sempre
teve uma palavra de inspiração para os teus desígnios. Que mais poderias
desejar?
Êle abanou a cabeça e respondeu:
— Mas, de coração foi sempre inflexível. Talvez um gesto de ternura, um
beijo, uma esperança... me salvassem...
— Como nunca te lembraste de lhe oferecer o carinho com desinterêsse
de coração? Por que não recordaste o beijo fraternal, com cuja essência poderias
retificar a mentira execrável que lhe agravou os padecimentos no
mundo? Viveste, meu filho, aproveitando as situações críticas para forjar ações
criminosas; acompanhaste-lhe as lágrimas com atitudes frias e gozaste
intimamente com a separação de duas almas que Jesus havia unido em suas
bênçãos de amor. Que seria de ti se Madalena houvesse atendido aos teus
arrastamentos inferiores, esquecendo os deveres sagrados de espôsa e mãe?
Terias uma noite mais densa, dores mais cruéis. Caíste, é verdade; mas, ainda
podes orar, ainda tens a dádiva do pranto remissor!...
O sobrinho de D. Inácio, agora, parecia flagelado por uma tempestade de
lágrimas. Tinha a impressão de recuperar a razão, mediante aquelas
recriminações lançadas face a face pela lealdade da mãe adotiva. Nada
obstante os sofrimentos experimentados, ainda não havia tudo aprendido.
Sômente agora conseguia esmar a extensão da sua cegueira criminosa no
mundo. Esmagado pelo justo reconhecimento das faltas clamorosas, sentiu-se
incapaz de algo mais objetar, permanecendo à mercê dos remorsos pungentes.
D. Margarida, depois de longa pausa, acariciou-lhe a mão mirrada e falou:
— Já refletiste nos resultados da emprêsa que tentaste no mundo? O
menosprêzo da oportunidade reparadora fere-te agora com amargas
conseqüências. A mão que assinou documentos condenáveis, aí a tens
mirrada; o pé que se moveu no rumo dos feitos delituosos está ressequido; os
olhos que procuraram o mal repletam-se de sombras espêssas...
Ao ouvir tais coisas, o rapaz mostrou reconhecer num gesto a sua penosa
situação, mas, lembrando-se sübitamente da presteza com que sua prece fôra
atendida, no caso da vinda de sua mãe pelos laços espirituais, asseverou
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humildemente:
— Rogarei a Jesus me socorra com a liberdade de movimentos.
— Sim — explicou D. Margarida —, o Senhor não te negará o quinhão da
sua excelsa bondade, mas só ao contato de novas lutas terrenas conseguirás
reintegrar-te nas faculdades sagradas que espezinhaste, esquecendo
voluntàriamente os mais nobres deveres.
— Como assim? — interrogou admirado.
— Jesus perdoa, não com as fórmulas verbais, tão fáceis de enunciar, mas
com a renovação do ensejo de purificação, O corpo carnal é tenda preciosa, na
qual podemos corrigir ou engrandecer a alma, apagar as nódoas do passado
obscuro, ou desenvolver asas divinas, por nos librarmos a pleno espaço em
busca dos mundos superiores. Sômente na Terra, meu filho, onde imprimiste
tão negro cunho aos próprios erros, encontrarás meios de regenerar a saúde
espiritual, pervertida no crime.
— Mas não bastaria a misericórdia divina a meu favor? — volveu ansioso,
por afastar a perspectiva de humilhações no ambiente humano.
— A misericórdia jamais falta, em tempo algum; ela permanece na afeição
sincera dos amigos espirituais, que velam por ti, e no próprio remorso que te
molga o espírito desolado. Deus tudo concede, mas não nos isenta das
experiências necessárias. O perdão do Pai, ao lavrador ocioso, está na
repetição anual da época do plantio. Nessa renovação de possibilidades, o
semeador indolente encontra os meios de regenerar-se, ao passo que o
trabalhador diligente e ativo defronta condições de engrandecimento sempre
maior. Compreendes, agora, o perdão de Deus?
— Compreendo!
— Pois bem; se rogaste ao Senhor a minha presença, implorei igualmente
a Jesus me permitisse reorganizar as tuas possibilidades de trabalho no orbe
terrestre. A bondade infinita do Mestre concedeu-me essa dita. Só assim
poderás restabelecer o equilíbrio da tua personalidade.
E ante o gesto de espanto do rapaz, que a ouvia mudo, a benfeitora
prosseguiu:
—Ainda poderás aproveitar a missão de Alcione, que voltou ao nosso núcleo
familiar a fim de nos ensinar a todos a humildade, o amor, o perdão recíproco e
a obediência a Deus. Não terás a beleza física de outros tempos, nem a
liberdade plena de movimentos, mesmo porque regressarás ao mundo para um
esfôrço de cura; todavia, se bem souberes renunciar aos teus caprichos, ao
terminar as futuras provas estarás reintegrado na harmonia espiritual, para
prosseguimento de novas tarefas evolutivas, na carne ou fora dela. Jesus me
concedeu a felicidade de trazer-te esta dádiva. De ti, porém, depende agora
prolongar teus sofrimentos expiatórios, ou assumir o compromisso de os
abreviar.
Antero temia as angústias da Terra, mas, compreendendo a generosa
intenção da venerável amiga, murmurou:
— Aceito.
*
Desde o momento em que se revelou absolutamente conformado, sentiu
que o Espírito maternal o sustinha nos braços fortes e acolhedores.
Por quanto tempo andaram assim, os dois, através de extensas paragens
115
sombrias? De si, não o saberia dizer.
Em dado instante, porém, viu-se, com a benfeitora, defronte de modesta
vivenda cercada de arvoredo. Não teve dificuldade em identificar o teto humilde
onde havia instalado Madalena. Aproximaram-se. A espôsa de Cirilo
entretinha-se a costurar junto da filha, que parecia muito atenta ao trabalho
materno. O rapaz esboçou um gesto e teve uma exclamação de surprêsa, mas
logo compreendeu que ninguém dera pela sua presença naquele aposento
banhado de sol.
D. Margarida tranquilizou-o com um gesto e acrescentou:
— Vês? Ela vem lutando herôicamente e aproveita agora as contingências
da pobreza material para elevar-se a Deus.
O precito entrou a meditar profundamente. Daí a instantes, todavia, a
graciosa Alcione, como que tocada no uno do coração, exclamou com estranho
fulgor nos grandes olhos:
— Mamãe, a senhora tem-se lembrado do primo Antero?
— Por que perguntas?
— É que hoje quero pedir a Deus por êle, quando a senhora fôr rezar.
— Pois sim — disse a espôsa de Cirilo, comovida.
- Mamãe, há quanto tempo êle foi para o Céu? — interrogou a linda
criança, na sua encantadora ingenuidade.
— Há pouco mais de dois anos.
Mal sabiam que Antero de Oviedo ali estava ajoelhado junto delas e
desfeito em lágrimas, ao refletir que aquêles dois anos lhe pareciam dois
longos séculos.
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7
Caminhos de luta
A chegada dos retirantes irlandeses em terras da América ocorreu sem
maiores incidentes, não obstante a demorada travessia, delonga normal
naquela época.
O velho Gordon, como guia experimentado, conduziu a caravana com
segurança ao pôrto de destino, onde os imigrantes se instalaram na zona mais
tarde absorvida pelos subúrbios de Hartford.
Todos os corações estuavam de esperanças novas.
Cirilo estava deslumbrado com a riqueza da terra, impressionando-se com
a beleza dos horizontes. A paisagem evidenciava, de fato, um mundo diferente,
que, no dizer de Abraão Gordon, era a região destinada por Deus aos homens
de boa vontade.
A adaptação da pequena comunidade não apresentou dificuldades
apreciáveis. Em breves dias, identificava-se satisfeita com as mudanças
havidas, embalando-se em perspectivas promissoras. A caça e a pesca eram
novidades que a todos proporcionavam não sômente diversões inéditas, senão
também abundante celeiro.
Samuel e Abraão, aportados à nova terra, adquiriram uma centena de
escravos, e, com o auxílio do braço negro, iniciaram as primeiras culturas. Ao
calor de entusiasmos fecundos, desdobravam-se energias para as tarefas
imensas, assinalando-se que, ao fim de poucas semanas, todo o trabalho
estava normalizado.
Recordando o berço natal, a extensa região que abrangia as duas
grandes propriedades rurais foi batizada com o expressivo nome de Nova Irlanda.
Samuel e Constância não cabiam em si de contentes e, apesar das
saudades do Ulster, faziam o possível para reproduzir e conservar as pequeninas
coisas que adornavam as antigas fazendas da Irlanda distante.
Movimentavam-se os empreendimentos, nesse sentido, não apenas no interior
doméstico, mas igualmente na divisão das pastagens, na localização da
lavoura de batatas e legumes, nos aviários, estábulos e redis.
Cirilo, ao lado de João e Carlos Gordon, promovia importantes iniciativas.
Cheios de energia e mocidade, operavam, os três, uma verdadeira revolução
agrária, orientando grandes turmas de servos, na transformação benéfica dos
patrimônios da natureza. Aqui, eram braços d’água captados a distância de
quilômetros, para fertilizar pastagens e acionar moinhos; além, eram os
campos de experimentação dos cereais encontrados. Aproveitavam-se todos
os conselhos dos colonos chegados antes dêles. Regiões vastas foram
destinadas ao plantio do fumo — base econômica de maior importância para o
comércio de exportação.
Cirilo, principalmente, não tinha meças de repouso, encantado com a
grandeza do território que lhe desafiava a mocidade robusta e empreendedora.
Atividade posta no trabalho intensivo e pensamento voltado para o lar distante,
iniciou logo a construção da casa própria, fiel aos desígnios trazidos da Europa.
A exemplo do que fazem aves providas, escolhia com desvelado carinho o
material mais adequado à construção do ninho de futura tranqüilidade.
Lembrava as menores observações da companheira, com referência ao
assunto, para que fôssem cuidadosamente desdobrados os serviços iniciais. A
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paisagem parecia corresponder aos mais íntimos desejos da espôsa, pois de
fato encontrara uma pequena zona de cômoros verdejantes, regada pelas
águas claras do Connecticut, tudo a esbater-se em magnífico fundo azul. Cirilo
cercara o local com particular cuidado, para que as árvores frutíferas
desenrolassem os primeiros ramos.
Ouvindo-lhe os planos de futuro, todos calcados em sonhos de paternal
ventura, Constância sorria, embevecida, e, por sua vez, idealizava mil coisas
para que a nora só encontrasse bem-estar no ambiente colonial.
Estava a completar-se um ano que haviam emigrado, um ano de
esperanças e trabalhos para Cirilo, e também de saudades e expectativas ansiosas
de notícias que jamais lhe chegavam, excetuadas as cartas recebidas
nos primeiros tempos.
Agora, esperava êle uma embarcação segura para voltar a Paris, em busca
da espôsa que tanto o preocupava. Entretanto, êsse navio, que o deveria levar,
trazia-lhe dolorosa carta do tio Jaques, na qual, com mão trêmula, comunicava
os tristes acontecimentos de França. Historiava a epidemia com tôdas as côres
negras e, por fim, registrava, pesaroso, a espantosa notícia do falecimento de
Madalena e de seu pai, pouco depois da morte de D. Margarida, e mais que, de
Versalhes, Antero de Oviedo lhe comunicara que seguiria para a América do
Sul, sobrecarregado de profundos desgostos.
A leitura da lutuosa carta fizera-se acompanhar de efeito fulminante. O
rapaz debalde ensaiou um gesto de resignação ante a fatalidade que lhe
modificava o destino. As letras baralharam-se-lhe na retina, trêmulo de
assombro. Lágrimas ardentes misturavam-se a soluços de irremediável aflição,
apesar das expressões confortadoras de sua mãe. Naquele momento, tudo
estava terminado para o seu coração afetuoso. De que lhe servira tamanha
bagagem de esperanças se a fatalidade assim anulava todos os projetos
sublimes? Agora, concluía que a mudança, efetuada com tão grandes
aspirações de futuro venturoso, não passava de estranho e miserável exílio.
Custava-lhe admitir a realidade das informações inesperadas e exasperantes.
Entretanto, a carta do velho amigo de Blois não dava margem a qualquer
dúvida. Além disso, na mesma embarcação que lhe trouxera a infausta nova,
chegaram diversos imigrantes franceses, que se declaravam involuntàriamente
expatriados, diante da epidemia devastadora.
O pobre rapaz caiu em situação desesperadora. Espantava-o a tremenda
impossibilidade de qualquer lenitivo. Seu intraduzível sofrimento tinha, ao seu
ver, o cunho de fatalidade irremediável. Prostrado em febre alta, foi forçado a
acamar-se, movimentando tôda a “Nova Irlanda” em tôrno do seu leito. Em vão,
porém, sucediam-se os argumentos consoladores. Seu olhar era quase
indiferente às exortações evangélicas do ancião de Belfast, e reagia,
dificilmente, mesmo aos apelos maternais. Ao seu ver, aquela dor era
inacessível ao raciocínio de quantos o rodeavam. Nenhum dos seus havia
conhecido Madalena e ninguém na colônia podia avaliar sinceramente a sua
desgraça irreparável.
Constância, porém, desfazia-se em desvelos, na sua infinita capacidade de
afeição. Na véspera da missa que mandara celebrar em intenção da nora
supostamente falecida, abeirou-se do leito do filho inconsolável e falou-lhe com
carinho:
— Meu filho, é verdade que o teu sofrimento é indefinível e que longe
estamos de imaginar tôda a intensidade do teu desgôsto, mas, peço-te con118
siderar minha confiança de mãe!... Acaso terão terminado todos os teus
deveres neste mundo? Reconheço que teu amor conjugal é muito grande;
todavia, nós também te amamos muito!...
Quis responder, asseverando que sua ventura estava destruida, que o
mundo não lhe oferecia novos ideais; contudo, a voz morria-lhe na garganta
opreSsa.
— Não te entregues a êsse abatimento fulminante de coração —
continuava a palavra maternal com profundo desvêlo. — Não te peço êsse
sacrifício de teus sentimentos apenas por mim. Há três noites Samuel não
dorme, dizendo-se perseguido de remorsos atrozes, por te haver trazido sem a
espôsa! Não sei mais que fazer, meu filho, por demonstrar que em tudo
devemos obedecer à vontade do Pai que está nos ceus
Nesse ínterim, a bondosa senhora interrompeu-se para enxugar as
lágrimas.
— Também sofro com os pensamentos que afligem teu pai, mas que seria
de nós, aqui, sem as iniciativas do teu cérebro e o valor dos teus braços?
Como vês, a felicidade na colônia não se resume num sonho de quem troca o
berço em que nasceu por uma pátria diferente, O equilíbrio doméstico exige
alta soma de esforços e de sacrifícios. Qual a situação se não tivesses vindo?
Não podíamos continuar dependendo tanto dos Gordons, nossos velhos
amigos. Não acreditas, meu filho, que se hajam cumprido insondáveis
desígnios de Deus? Se puderes, tranqüiliza teu pai e a mim também, neste
transe tão amargo, revelando conformação e paciência; e se não fôr agravo
aos teus padecimentos íntimos, acompanha-nos, amanhã, ao ofício religioso
em intenção da paz de Madalena no seio de Deus.
As considerações maternas, ditas com inflexão de imenso carinho,
atingiam fundo o coração do filho.
— Logo que possas, levanta-te — prosseguiu, passando-lhe a mão pelos
cabelos —, recorda as nossas necessidades de trabalho, pensa nos teus
irmãos!...
Êle continuou silencioso, não obstante os inestimáveis resultados da
exortação instante e humilde.
Tão logo a genitora volveu ao interior da casa, êle começou a meditar mais
sêriamente na sua necessidade de reação. Não seria egoísmo insular-se, de
modo absoluto, na dor que o acabrunhava? Cumpria não agravar as
tribulações maternas, nem abandonar o genitor, em meio de tantos
empreendimentos iniciados. Nada no mundo poderia cicatrizar a úlcera que se
lhe abrira na alma e, contudo, era preciso ocultá-la, retomar a charrua cotidiana
e renovar as disposições, a fim de não parecer covarde. Com grande esfôrço
levantou-se. A contemplação da natureza ambiente não lhe devolveu as
alegrias primitivas. A magnífica paisagem americana assumia, agora, a seus
olhos, o aspecto de cemitério adornado de árvores esplêndidas, em apoteose
de flores.
A missa do dia imediato foi particularmente penosa para o seu espírito
afetuoso. Os Gordon e os Davenport ocupavam os lugares mais destacados do
interior da capela, enquanto os escravos se conservavaxn a certa distância,
olhando-o com olhos piedosos. O pobre rapaz, entrajado em rigoroso luto, não
sabia como disfarçar por mais tempo as emoções que lhe estrangulavam a
alma sensível. Ao terminar o ofício, quando recebeu o último abraço de
condolências, sentiu um grande alívio.
119
Agora desejava ardentemente embarcar para a França, ao menos para
visitar o túmulo da companheira inolvidável e rever os sítios inesquecíveis da
sua efêmera ventura conjugal; mas o professor de Blois anunciava sua vinda
breve, e definitiva, acompanhado de Susana. Jaques revelara, em todos os
trechos da carta, amargurosa desolação. Também fôra vítima da enfermidade
terrível. A escola amada estava extinta. E pretendia embarcar, sem perda de
tempo, atendendo aos rogos da filha, aflita para afastar-se do teatro de
acontecimentos tão tristes.
Cirilo ponderou que seria conveniente esperá-los. Certo lhe trariam
pormenores que ansiava por conhecer. Daí por diante, duplicou as próprias
tarefas, buscando, no trabalho, lenitivo à mágoa profunda que o devorava.
Taciturno e, nada obstante, enérgico e resoluto, levantava-se quando ainda as
estrêlas luziam no firmamento, compartilhando no esfôrço rude dos escravos.
Costumava fazer as refeições no campo e só regressava ao lar quando os
astros da noite despontavam.
O quadro doméstico prosseguia sem alterações, quando a chegada de
Jaques com a filha veio suscitar assuntos novos. Diàriamente, à noite, renovavam-
se as palestras animadas, em casa de Samuel, ou na de Abraão, ao
ritmo da curiosidade geral pelas notícias do Velho Mundo, O espôso de Madalena
lograra algum confôrto com a presença do prestimoso amigo e, fumando o
seu cachimbo, calado, ouvia as dolorosas descrições da epidemia que flagelara
as populações francesas do norte. De quando em vez, Susana intervinha no
assunto, com sutileza, por dar impressões pessoais. Contara a todos que não
pudera abraçar Madalena Vilamil na hora extrema, porém tivera oportunidade
de acompanhar Antero de Oviedo nas derradeiras homenagens devidas a D.
Inácio. Dada a sua presença em Paris, podia descrever os quadros
impressionantes da capital francesa — circunstância que frisava com
entusiasmo — carregando nas tintas negras para produzir maior efeito no
auditório atento e estarrecido.
Cirilo guardou carinhosamente a cópia das anotações de sepultamento
colhidas pela prima, em Paris. O fúnebre documento, aos seus olhos, era o
último capitulo da realidade sem remédio.
A situação em “Nova Irlanda” era muito próspera. As duas fazendas
realizavam vultosos negócios. Com a vinda dos dois colonos tão importantes,
ia resolver-se um grande problema, que era o da escola. Abraão Gordon já
havia ponderado o assunto e resolvido procurar um professor para o grande
centro rural, O educador de Blois, todavia, atendeu com vantagem a
semelhantes necessidades.
Espírito corajoso e realizador, em poucos dias iniciava o movimento de
instrução primária, entusiasticamente aplaudido por todos os companheiros. As
fazendas vizinhas interessaram-se igualmente pela iniciativa. Crianças de
longe vinham matricular-se nas aulas prestigiosas, dirigidas por professor de
reconhecido mérito;
Notava-se em Susana uma transformação singular, parecia outra, ali assim,
no ambiente americano. Renunciara aos hábitos frívolos, punha de parte a
ociosidade e auxiliava o pai nos trabalhos escolares. O próprio Jaques estava
impressionado com aquela transformação. Com alto senso psicológico de
mulher, Susana dividiu turmas em classes, estabeleceu melhor aproveitamento
dos horários, arregimentou planos surpreendentes. Conhecendo o interêsse de
120
Cirilo pelos escravos, consagrou parte do dia à instrução dos filhos dos cativos,
visitava as senzalas pela manhã, ministrando noções de higiene e ensinando o
melhor meio de lograr harmonia doméstica. Lançou a idéia de um grupo
musical formado pelos servos, iniciativa que alcançava enorme êxito, após
algum tempo de laboriosa preparação.
Tornara-se, enfim, credora da estima geral, esforçava-se por ser útil a
grandes e pequenos, sem embargo dos sentimentos menos dignos que lhe
moviam o coração. Tornara-se a alma de tôdas as realizações mais intimas,
pela afabilidade com que dissimulava as intenções. Não sômente se consagrava
ao trabalho gratuito em benefício das crianças necessitadas, como
organizava os serviços da capela, cooperava em todos os misteres de assistência
aos enfermos, prestava auxilio eficiente aos matrimônios improvisados.
Não raro, chegavam a Hartford pequenas turmas de jovens órfãs ou de
outras candidatas ao matrimônio na colônia, onde o número de homens
sobrepujava, de muito, o de mulheres e constituía espetáculo interessante a
parada dos rapazes do campo, consultando as qualidades das futuras espôsas.
Raramente se examinavam os traços de beleza física. Quase todos, porém, se
interessavam pela saúde das que reuniam melhores requisitos de capacidade
para o trabalho, principalmente rijeza de pulsos e tornozelos. Os serviços da
colônia exigiam pesados esforços físicos, ou então longas caminhadas através
das lavouras. As concorrentes julgadas incapazes dificilmente conseguiam
noivar.
As famílias de tratamento entretinham-se em assistir às interessantes
competições, encontrando nelas inesgotável assunto para serões humorísticos.
Jaques Davenport chegara mesmo a observar que o novo continente era a
primeira região do mundo na qual a mulher deveria vencer, longe da moda, e
da faceirice femininas.
Em tal ambiente, era de prever que Susana Duchesne interessasse a todos
os rapazes de nobre educação. Inteligente e afável, estimada por tôda a
comunidade, dado as suas iniciativas de trabalho, entrou a ser reqüestada com
empenho. E, contudo, ela se mostrava insensível às atenções de Carlos
Gordon, que a cortejava francamente. No íntimo, Susana recalcava o seu
despeito bem feminino, ao verificar que o primo, cuja afeição não hesitara em
conquistar mediante um crime, dava-lhe a impressão de não lhe perceber a
presença, senão como irmã desvelada e sincera.
É verdade que o tempo lhe desfizera a sombria catadura, como se se
houvesse afeiçoado à própria dor, sem conseguir alijá-la. Nunca mais, contudo,
voltou a ser o mesmo homem de alegria sem mácula. A taciturnidade das
primeiras semanas de viuvez foi substituida por constante retraimento, e o riso
franco e sonoro de outros tempos transformou-se em discreto sorriso, ainda
assim, raro. Decorrido o primeiro ano, em que sobrepujara tôdas as expressões
individuais em serviço efetuado, a família começou a preocupar-se com a Sua
viuvez.
Constância, instigada pela sobrinha, por trás dos bastidores, certa noite
em que se achava a sós com o filho, chamou-lhe a atenção para o caso. Muito
delicada, evidenciando nobre prudência maternal, começou a dizer,
sensibilizada:
— Na verdade, tua situação de viúvo me preocupa muitíssimo. Não achas
acertado refazer o destino, cogitando de um novo lar? Aí já tens a casa que a
falecida, de saudosa memória, não logrou desfrutar. Quando te vejo a cultivar,
121
sôzinho, as roseiras e fruteiras, sinto que o coração se me aperta no peito!...
Mais vale abandonares aquelas plantações, que só teriam significação se
tivesses a consorte ao lado.
O rapaz não podia perceber a intenção materna e ponderou com
sinceridade cristalina:
— Tenho a impressão de que Madalena me acompanha em pensamento.
Já em Paris havíamos combinado os dispositivos ornamentais desta vivenda.
As roseiras do portão, o cultivo dos pessegueiros e mesmo a frente da casa
para o rio, são idéias dela, que não poderei esquecer. Se me não ficou ao
menos um filhinho para beijar, guardarei essas lembranças em penhor de
fidelidade à sua memória.
— Concordo com a nobreza de tuas recordações, mas não posso aprovar a
solidão em que vives. Suponho que poderias aliar as saudades aos imperativos
da vida real, pois, moço como estás...
Aparando de pronto a mal disfarçada sugestão, Círio respondeu:
— Julgo, minha mãe, que ninguém pode amar duas vêzes.
— Será talvez um engano, pois os afetos da vida não se confundem
nunca. Como espôsa e mãe, conheço o amor em formas diferentes e estou
habilitada a dizer que estimo o marido e os filhos com um só coração, mas a
cada um de certa maneira. E quando minha experiência fôese particular, há de
convir que, se muitas vêzes há consórcios de amor, também não faltam os de
conveniência.
— A senhora não admite que um homem possa viver sôzinho?
— Não vou tão longe, mas não vejo razão para que um rapaz, na tua
idade, se isole totalmente da vida, como vens fazendo.
— Mas... por quê? — indagou Cirilo intrigado.
A boa senhora teve certa dificuldade em condicionar a resposta, mas, num
momento, encontrou boa saída invocando os argumentos religiosos:
— Ora, meu filho, se Jeová se preocupou com a solidão de Adão no
Paraíso, dando-lhe a companhia de Eva, que não sinto eu, na minha maternal
fragilidade humana, ao ver-te sempre sozinho e triste? E a verdade é que Deus
estava no céu e nós estamos no mundo ...
— Mas o Criador — disse o rapaz, esforçando-se por sorrir às delicadas
sugestões maternas —não deu a Adão duas Evas...
A genitora também sorriu meio contrafeita e, contudo, prosseguiu firme:
— Deixemo-nos de humorismos. Eu estou encarando a sério a situação.
Ouve-me, filho: por que não esposas Susana, para que nossa alegria se
complete? Tua prima sempre te acompanhou os passos com extrema
fidelidade - Desde a infância que se interessa por teu bem-estar e procura o teu
coração. Jamais lhe ouvi qualquer censura aos respeitáveis sentimentos que te
levaram ao primeiro matrimônio. É um coração afetuoso, dedicado, fiel. Não
seria a criatura talhada para te restituir a ventura que bem mereces? E não
seria louvável que lhe oferecesses agora o teu braço protetor?
Cirilo esboçou um gesto de quem via confirmadas certas suspeitas mais
Intimas e afiançou:
— Desde a chegada do tio Jaques, noto de fato, na prima, umas tantas
pretensões, mas a verdade é que não posso esposá-la. Não se deve mentir
nem mesmo ao próprio coração.
— De qualquer maneira, porém — acentuou
D. Constância —, não se justifica a solidão em que vives. A própria Madalena,
122
se estivesse conosco, não concordaria com semelhantes atitudes.
Cirilo deu a entender que os alvitres seriam objeto de acuradas meditações,
mas estava longe de pensar que a investida materna representava o início de
cerrada ofensiva familiar, a fim de lhe modificarem os pontos de vista.
Daí por diante, entrou a reparar mais detidamente nas atitudes mínimas de
Susana, compreendendo-lhe as razões sutis no tratamento delicado
dispensado aos seus homens de serviço. A pretexto de atender às crianças
negras, ela percorria freqüentemente as zonas de trabalho rude, distribuindo
sorrisos e palavras de confôrto. Cirilo começou a pensar naquelas
necessidades do homem moço, insulado no mundo, sem assistência afetuosa
de uma alma feminina e sem o estímulo dos filhinhos, coisas que sua mãe fazia
questão de salientar, quase tôdas as noites, no serão doméstico. Por vêzes, as
idéias batalhavam-lhe no cérebro oprimido. Via-se à frente de caminhos de luta
áspera, em que necessitava vigilância para não cair. Assediado por uma
torrente de opiniões, chegava a temer que as próprias idéias lhe faltassem no
momento oportuno. A idéia de segundas núpcias lhe causava tal ou qual
repugnância. Sempre considerara o amor como patrimônio intransferível. Era
impossível bipartir a alma, trair os estos espontâneos do coração.
*
Os meses corriam em tensas expectativas para a filha de Jaques, quando
inesperado acontecimento veio imprimir novo rumo à situação.
Certa manhã de radioso domingo, após o culto, o ancião de Belfast procurou
Susana, declarando-se mensageiro de grave assunto, que desejava examinar
a sós com ela. A jovem atendeu, algo perturbada, visto não contar com a
assistência do genitor, que se encontrava ausente.
Logo que se defrontaram a sós, na saleta particular, Abraão Gordon
expandiu-se com alegria:
— Não te vexes — exclamou sorridente, com ares patriarcais —, teu pai
não ignora o que te venho dizer. Conversamos ontem à noite, tendo-me êle
asseverado que o caso não lhe reclama a autoridade paternal e sim o teu
coração de filha.
— Mas, que vem a ser tudo isto, “tio” Abraão? - interrogou a jovem
obedecendo aos costumes familiares, com a designação mais íntima.
— Di-lo-ei sem circunlóquios — respondeu o ancião sorridente: — É que a
colônia está precisando de gente nova e novos lares, e Carlos me incumbiu de
consultar-te quanto à possibilidade de um enlace, que a todos nós se afigura
auspicioso.
Susana descorou. Não esperava tal coisa. A presença do velho amigo, que
se habituara a respeitar desde menina, impunha-lhe uma resposta leal. Mas a
sinceridade e nobreza da consulta causavam-lhe estranha emoção. Admirava
Carlos Gordon, como rapaz culto e digno, mas não conseguiria ir além disso.
Pois que se lhe impunha formal recusa, procurava, debalde, os recursos da
palavra.
— Diga, Susana — continuou o ancião solícito —, por que te perturbas?
Considera que não tens nenhum compromisso.
E vendo que ela não lhe retribuia em satisfazção o que lhe oferecia com
tanto júbilo, calculou a luta íntima que lhe ia na alma e procurou socorrê-la:
— Teus olhos rasos d’água, tanto quanto a expressão do rosto, são assaz
123
eloqüentes para mim. Já sei que não podes preencher o futuro de Carlos, tal
como o imagina êle.
Nesse comenos, sentindo-se fielmente interpretada, a jovem Susana
prorrompeu em pranto, dando a perceber que nutria velhas mágoas. Abraão,
tocado pelas profundas experiências da vida, inclinou-se. paternalmente e
disse:
— Acaso, terás sentimentos que eu não possa conhecer? Não creio que
andes indiferente nesta nossa Nova Irlanda. Naturalmente, hás de ter inclinações
que ignoro. Carlos e João são filhos do meu lar; Cirilo é também meu
filho, por afinidade. Tuas lágrimas revelam alguma coisa em teu coração, que
eu preciso conhecer. Porventura, aguardas o braço de Cirilo para penetrar os
mistérios do amor?
A tais palavras, ditas em tom de imenso carinho, a filha de Jaques levantou
o olhar e fêz um gesto afirmativo, que não podia deixar margem a qualquer
dúvida.
— Pois bem — disse o bondoso velhinho revelando carinhosa
compreensão —‘ fica descansada, eu mesmo me entenderei com Cirilo.
Ela esboçou um gesto de reconhecimento e falou:
— “Tio” Abraão, tendes sido para mim um segundo pai; entretanto, não
desejo ofender os sentimentos nobres de Carlos.
— Ora essa! Não te incomodes com isso. Meu filho não saberá desta
nossa palestra. Dir-lhe-ei que, informado da tua preferência, resolvi não tocar
no assunto, visando a completa felicidade de Cirilo.
— Como vos agradeço! — murmurou a jovem osculando-lhe ternamente as
mãos.
E enquanto o ancião se retirava, Susana experimentava novas esperanças
banharem-lhe o coração.
Na noite daquele mesmo dia, Gordon solicitou do filho de Samuel uma
entrevista em particular.
Cirilo o acompanhou a um canto da extensa varanda, não isento de alguma
inquietação. A influência do velho amigo dos Davenport era sempre decisiva no
seu caminho. O que Jaques conseguia dêle por efeito de amor, Abraão
igualmente obtinha por fôrça de autoridade moral. Algo perturbado, o filho de
Constância seguia-lhe os gestos mínimos, até que o padrinho começou a falar,
depois de longas reflexões:
— Meu filho, venho tratar da solução de problema de importância capital
para as nossas famílias; assim, espero que me compreendas a intenção, como
se exposta fôsse por teu próprio pai!...
— Sou todo ouvidos, replicou o rapaz, considerando a solenidade do
preâmbulo.
— É que — continuou o velho com bondade —não podemos concordar
com o teu isolamento, e talvez saibas que Susana te ama desde a adolescência.
— Mas eu já me casei uma vez... — redargüiu Cirilo, desejando fugir ao
assunto.
— Isso, porém, não impede a recomposição da vida.
— Não me sinto bem ao pensar nisso. Por vêzes, tio Abraão, quando
essas idéias me ocorrem, tenho a impressão de me trair a mim mesmo. O amor
conjugal, a meu ver, é único, insubstituível. Sempre encarei o segundo
matrimônio como taça vazia. Que teria, então, para oferecer a Susana?
124
— Essas idéias, crê, não passam de fantasias, sem fundamento no plano
das realidades positivas. Sou casado em segundas núpcias e nem por isso me
considero o pior dos homens.
O rapaz experimentou um leve abalo, visto não ter encarado o problema
sob êsse aspecto, firme no propósito de insular-se no seu infortúnio, em culto
de eterna saudade.
Gordon continuou:
— Entretanto, compreendo os teus escrúpulos, até certo ponto. A
mocidade nos enche o coração de sublimes idealismos. Todavia, as vozes da
experiência são muito diversas. Sei da saudade que te empolga o espírito
afetuoso, mesmo porque, dada a tua conduta presente, parece-me que a
espôsa morta resumiu no mundo o conjunto dos teus melhores ideais; no
entanto poderás guardá-la na memória como símbolo de inspiração, como página
viva a reler, diàriamente, no imo d’alma, a fim de criar uma nova situação
feliz. A primeira mulher foi a jardineira cuidadosa e fiel, que te deixou o perfume
de lições sacrossantas para tôda a vida, mas não há esquecer que não estás
fora do jardim da vida.
Cirilo não respondeu, engolfado em profundo Cismar.
— Julgas, porventura meu filho, que “Nova Irlanda” poderia progredir
sômente a expensas de nobilíssimos ideais? Muita vez tenho Ouvido tuas
apologias calorosas à opulência da terra que nos foi confiada. Repara o maciço
da vegetação luxuriante que se perde na noite, observa como o rio vai
espalhando a vida, silenciosamente Tôda a extensão vastíssima, que o vosso
olhar abrange, espera o braço do homem. Meditemos nesse imperativo da
natureza. A criatura viverá pelo coração, mas necessita aplicar e multiplicar os
braços para colaborar na obra divina. A floresta requer cuidado, a terra aguarda
o intercâmbio das sementes no seio fecundo, o curso d’água reclama
retificações para trabalhos proveitosos, os campos mais áridos sonham com
um braço do rio!... O mundo material é uma tenda de esforços infinitos, onde
fomos chamados a colaborar com o Criador no aperfeiçoamento de suas obras.
É impossível a cooperação perfeita, sem lar e sem prole.
O filho de Samuel desejava confutar, expender argumentos ponderosos
mas a autoridade patriarcal de Gordon era sempre sagrada aos olhos de todos.
As razões por êle invocadas, frutos de madureza e bom senso, também lhe
pareciam dignas de Ponderação e respeito. Afinal, o venerando ancião sempre
tinha uma preocupação mais elevada pelo bem coletivo, uma observação
sensata, colimando o supremo alvo da vida — perpetuar a espécie. Sua
dedicação aos problemas da gleba, manifestada não apenas teôricamente,
mas exemplificada com sacrifícios, era um dos muitos predicados que lhe
realçavam a personalidade. Todavia, examinando e profundando os mais
abscônditos ditames do coração, Cirilo sentia-se estranhamente angustiado,
quando compelido a conjeturar um segundo matrimônio. Sem dúvida, a prima
cumulava-o sempre de gentilezas e deferências especiais. Associava-se, de
bom grado, aos seus planos de serviços, amparava-lhe os empreendimentos
com o prestígio pessoal adquirido por sua afabilidade, junto de todos os
servidores. A seu ver, ela corresponderia ao papel de uma boa amiga, mas não
poderia jamais substituir Madalena, no seu coração. As afirmações de Gordon,
todavia, eram ponderáveis. Apresentavam argumentos mais fortes que os
maternais. O ancião de Belfast não se referia apenas a interêsses pessoais,
mas à coletividade, ao impessoal, ao mundo, à obra de Deus por intermédio da
125
natureza.
Reconhecendo-lhe a necessidade de raciocinar, o tio fizera longa pausa,
voltando a insistir:
— Espero, pois, medites o assunto e nos proporciones a certeza da breve
restauração do lar, para que “Nova Irlanda” se enriqueça, mais tarde, com a tua
descendência...
Forçado a tomar atitude decisiva na resposta ao velho amigo, mas
querendo adiar um compromisso formal, o rapaz obtemperou sensatamente:
— Por enquanto, creio que me não devo pronunciar em definitivo,
reservando qualquer decisão para depois da visita que tenciono fazer ao
túmulo de Madalena, em Paris.
Abraão Gordon, porém, considerou que a resposta equivalia a meio
caminho andado.
A situação do restrito ambiente de “Nova Irlanda” continuava, assim, a ensejar
ansiosas expectativas em tôrno do caso de Cirilo. A renúncia de Carlos em
favor do companheiro, tornando-se arredio, sem que o filho de Samuel pudesse
atinar com a causa do seu retraimento, imprimia nova fôrça à opinião dos
palradores. O rapaz sentia-se cada vez mais apertado no círculo dos
comentários familiares, enquanto a filha de Jaques continuava agindo. O
generoso professor de Blois não encarava os boatos com simpatia espontânea,
mas também não desejava intervir em decisões de tal natureza, não só porque
poderia parecer egoísta ao sobrinho, como ingrato e insensível à filha, que já
lhe havia confiado seus votos mais íntimos, por ocasião do casamento de
Madalena.
Tão logo marcou a viagem para a França, com o fito de visitar o sepulcro
da espôsa, Cirio notou que Susana desejava a mesma coisa. A jovem temia,
intimamente, que o primo pudesse encontrar algum fio da sombria teia, e
dispunha-se a segui-lo em jornada tão penosa, com a intenção de vigiar-lhe os
passos. Em face das objeções familiares, alegou que precisava de material
escolar para imprimir novo impulso aos seus trabalhos educativos. A fim de não
agravar a preocupação dos parentes, deliberou levar Dorotéia, uma das
pequenas irmãs de Cirilo. Declarava-se desejosa de visitar, igualmente, a
sepultura inesquecível e aproveitar o ensejo para rever antigas relações em
Paris.
E não houve como dissuadi-la. Após mais de dois anos de ausência, o
marido de Madalena regressava à França, assomado de amaríssimas recordações.
Não estava prôpriamente alquebrado, pois o trabalho contínuo do
campo dotara-o de singular robustez; no entanto, o olhar reservado, a
comunicabilidade esquiva, davam conta da profunda mudança operada.
A chegada à capital francesa, depois de longos dias de viagem exaustiva,
verificou-se sem incidentes dignos de menção, a não ser a gentileza crescente
de Susana.
Cirilo procurou avistar-se com os velhos amigos, que o receberam
alegremente. Cada paisagem, cada rua, assinaladas pelos antigos hábitos,
foram outros tantos espículos de consternação. Os antigos companheiros
pintavam-lhe ao vivo as cenas tétricas e inesquecíveis da varíola devastadora.
Muitos sêres caros haviam partido para sempre. Em companhia de Susana,
visitou a casa de Santo Honorato, o recanto adorável de sua primeira ventura.
Os novos locatários simpatizaram com êle e o convidaram a rever o interior da
antiga morada, em atenção aos ascendentes da visita. Penetrou nos aposentos
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comovido e reverente, dando a impressão de ingressar num santuário muito
amado. Susana descrevia-lhe o derradeiro quadro, indicando o local onde
repousara D. Inácio Vilamil, pela última vez, junto do sobrinho enlouquecido de
dor. Cirilo foi mais longe. Avistou-se com a serva que sobrevivera a tantos
infortúnios, vendo confirmadas as reminiscências angustiosas, de que a prima
parecia intérprete fiel. Das relações afetivas da extinta encontrou apenas
Colete, que se referiu àmorta com lágrimas copiosas. Não conseguira vê-la no
extremo instante, mas fôra informada do seu passamento, logo após a nuvem
de sofrimento que abafara Paris, por várias semanas, acrescentando que seu
túmulo, no cemitério dos Inocentes, era objeto do seu carinho constante.
Onde, porém, as impressões de Cirilo se tornaram mais dolorosas, foi
justamente na silenciosa mansão dos mortos, quando lá chegou ao entardecer,
em companhia da prima e da irmãzinha.
Aproximou-se das duas campas com respeito infinito e ajoelhou-se junto à
lousa que tinha o nome de Madalena. Reparou no róseo coração de mármore,
atravessado por um punhal, símbolo profundo que devia à lembrança do tio
Jaques e, esmagado pela saudade, soluçou longamente. A presença da prima
não lhe impedia o pranto copioso. Mergulhado em preces, não reparou que
Susana retirava da bôlsa um papelinho. A jovem parecia reler velhas palavras,
tocada igualmente por vibrações de indizível tristeza. Tratava-se da carta que a
filha de D. Inácio lhe escrevera para a Irlanda. Depois, ela aproximou-se de
leve e entregou a carta ao primo, dizendo:
— Veja, é da nossa querida morta.
Ele mergulhou os olhos sôfregos no documento. Entre muitas outras
advertências afetuosas, lá estavam as recomendações de Madalena: — “Não
deixes de amparar... Cirilo, durante minha ausência. Se eu pudesse aí estaria
para ajudá-lo a resolver com os nossos familiares os problemas emergentes,
mas circunstâncias imperiosas se opõem aos meus desejos. Confio, entretanto,
na tua amizade. Aconselha-o; Auxilia-o como se fôsses eu mesma. O rapaz
beijou o papel e falou comovidamente:
— Ninguém se desvelava tanto por mim.
*
Deixemos agora o filho de Samuel Davenport entregue à sua luta espiritual
e voltemos à modesta chácara de Ávila, onde passaremos a examinar um novo
acontecimento.
Precisamente um ano depois do auxilio prestado ao Espírito de Antero de
Oviedo, por aquela que lhe fôra mãe adotiva na Terra, nascia o primeiro filhinho
de Dolores.
Todos esperavam aquêle advento com alvoroçada alegria, mas a criança
causou a maior decepção. A mâozinha e o pé direito apresentavam-se
deformados, e não só isso, como singular defeito do aparelho visual. A mão
tinha apenas dois dedos, enquanto que o pé os tinha tortos e retraídos. No
primeiro dia, os pais tentaram encobrir o fato, acabrunhados e receosos; mas a
velha serva, que servia de parteira na grande propriedade dos Estigarribias,
levou a notícia a D. Alfonso, cujo pai não admitia a existência de aleijados em
seus domínios.
Na manhã do segundo dia, João de Deus foi chamado pelo amo mais
moço, que lhe falou irritado e severo:
127
— Hás de reconhecer que fomos bastante cordatos por ocasião do teu
matrimônio, mas a fazenda não pode sustentar crias anormais.
O pobre pai não ignorava a sorte reservada aos pobrezinhos que nasciam
assinalados por estigmas dolorosos, incapazes para o trabalho, e respondeu
humildemente:
— Já sei, senhor, mas, peço-vos pelo amor de Deus não seja meu filhinho
eliminado, pois hoje mesmo dar-lhe-emos novo destino -
D. Alfonso aquiesceu, enquanto o infeliz servo regressava ao ambiente
doméstico. Depois de comunicar à espôsa o ocorrido, misturou com as dela as
suas lágrimas, deliberando recorrer à bondade de D. Madalena, para que a
criança fôsse devidamente socorrida. Ponderaram as dificuldades extremas da
generosa benfeitora e, acanhados de lhe falar diretamente, resolveram chamar
a pequena Alcione que, de certo, os auxiliaria com a sua ternura infantil.
Atendendo ao chamado, a graciosa menina aproximou-se curiosa do berço
improvisado:
Dolores esforçou-se herôicamente para não chorar e falou:
- Mandei buscar-te, Alcione, para dizer que o pequenino é teu e de tua
mãe!
A menina arregalou os olhos de alegria, entremostrando assombro infantil.
Sem nada dizer, estendeu os bracinhos com sublime expressão de doçura.
João de Deus envolveu o filhinho na camisola rendada que Madalena havia
dado e ajudou-a a segurar a criança. Alcione exultava de alegria. Com enorme
cuidado, voltou a casa, provocando a admiração maternal.
A espôsa de Cirilo surpreendeu-se. Transbordante de júbilo, Alcione
mostrou-lhe a criancinha, murmurando:
— Julgo que a cegonha deixou cair o pequenino em lugar errado. Deus não
o mandou para Dolores, porque ela me disse que o bebê é meu e da senhora!
— Não é possível — afirmou Madalena curiosa. A filha fêz um gesto de
quem não desejava qualquer modificação na providência, e sentenciou:
— Ah! mamãe, não fale assim...
E como que buscando uma defesa prévia, aproximou-se mais da mãezinha
e continuou a dizer com graciosa expressão:
— Se a senhora o deixar comigo, nunca mais pedirei brinquedos... e
carregá-lo-ei ao colo, para não lhe dar trabalho...
A genitora supunha que tudo aquilo não passasse de capricho infantil e
acrescentou:
— Não podemos separá-lo de Dolores, minha filha! Terias coragem de vêlo
chorando, longe da mamãe?
João de Deus acompanhava o diálogo, afogando o coração em lágrimas,
mas vendo que Alcione se preparava para responder, pediu a D. Madalena um
momento de atenção, em particular, e falou gravemente:
— Minha senhora, conhecemos as vossas dificuldades; entretanto, não
temos outra fonte de caridade a que possamos recorrer. Ignorais, talvez, que
aleijados ou cegos de nascença, dos escravos de algumas fazendas coloniais,
são eliminados ao nascer, Os Estigarríbias adotam êsse regime. É verdade que
Dolores não tem o estigma do cativeiro, mas, tenho-o eu, infelizmente, na
qualidade de pai. Hoje de manhã, D. Alfonso me chamou para tratar do caso e
acabou por intimar-me a consumir com o desgraçadinho.
— Mas isso é uma imposição criminosa — atalhou a filha de D. Inácio.
— Ainda assim, é tradicional na colônia, onde os brancos têm filhos, mas
128
os prêtos só têm crias. Seria talvez interessante reclamar e defender meus
direitos, mas sei que nada adiantaria, ou antes, que me valeria o ser
reconduzido a ferros para os duros trabalhos da minha primeira mocidade.
— Compreendo...
— Lembramo-nos, então, Dolores e eu, de solicitar-vos êste sacrifício. Por
quem sois, ajudai-nos a salvar o pequenino.
Madalena considerou os apuros em que se via para manter o exíguo lar,
mas, profundamente comovida, não hesitou um minuto e respondeu:
— Não julguei que se tratasse de problema tão grave; mas já que assim é,
vocês devem contar conosco. Seu filhinho será também meu. Dolores virá
amamentá-lo, em minha companhia, e por tudo o mais fiquem descansados,
porque o petiz será o irmão mais moço de Alcione.
— Será vosso servo — murmurou o semiliberto, enxugando uma lágrima.
— Será meu filho — emendou a filha de D. Inácio, voltando incontinenti à sala,
onde a criança choramingava nos braços carinhosos da filha. Tomou-a e
conchegou-a ao coração. Não saberia jamais definir as doces comoções que
se lhe apossaram da alma generosa. Acariciou a mãozinha defeituosa, beijou-a
com ternura. O recém-nascido aquietou-se brandamente. E enquanto João de
Deus se despedia, para atender ao labor diuturno, a espôsa enfermiça de Cirilo
Davenport mergulhava num abismo de profundas interrogações. Por que
mistério o filhinho de Dolores ia reclamar seus carinhos maternais?
Contemplou-lhe detidamente os traços grosseiros, aliados aos defeitos físicos
que lhe haviam assinado tão doloroso destino. Mergulhada num mar de cismas
atrozes, rogou a Deus lhe concedesse fôrças para desempenhar a tarefa
maternal até ao fim. Não ignorava a extensão dos sacrifícios que a decisão lhe
impunha nas lides diárias... No entanto, a criança reclinada ao seio parecia
falar-lhe intimamente de um infinito reconhecimento. Não podia contar com as
próprias fôrças, mas habituara-se a confiar na misericórdia de Deus.
À noite, como de costume, Padre Damiano apareceu para o serão habitual.
Relatou-lhe o fato da manhã, extremamente comovida, comentando o
caráter inexplicável das suas comoções e o velho amigo acentuou:
Deus tem numerosos meios de aproximar as almas. Quem poderá saber
de onde vem esta pobre criança tão penosamente assinalada do berço? Estejamos
preparados para cumprir os celestiais desígnios e agradeçamos
sinceramente a emotividade maternal que bafejou seu coração!
Mal acabava de o dizer, Alcione entrou na sala com a criança ao colo.
Depois de saudar afetuosamente o sacerdote, apresentou-lhe “o seu bebê”,
com requintes de zêlo.
— Este menino, padre Damiano, foi a cegonha quem trouxe do Céu, para
mamãe e para mim. Veja como é bonito!...
O eclesiástico tomou o petiz, cuidadosamente, enquanto a menina o
ajudava a segurá-lo convenientemente nos braços, murmurando:
— Sem dúvida, é um belo rapaz que Deus nos mandou.
Em seguida, fixou nela os olhos e interrogou, após uma pausa:
— Como se chama?
Alcione lembrou a história que mais admirava, entre as que a mãe
costumava respigar das obras irlandesas, que o marido lhe deixara, e voltandose
para a genitora, como a pedir-lhe aprovação, respondeu:
— É Robbie.
— Um lindo nome das terras de teu pai — disse o religioso, revelando
129
interêsse. — E por que o escolheste?
— O senhor não sabe a história?
— Não. Conta-a la...
A pequena Alcione assumiu encantadora atitude, por coordenar detalhes na
mente infantil, e explicou:
— Robbie era um menino que a cegonha esqueceu numa rua, quando
todos dormiam; mas, depois, foi achado por uma senhora de bons sentimentos,
que o criou para as coisas de Deus. Muita gente o julgava insuportável porque
era muito feio, mas era tão generoso e tão humilde que recebeu de Jesus uma
grande missão.
Lembraste muito bem, Alcione, e estou certo de que o Salvador há de
amparar êste nosso Robbie.
O sacerdote examinava a criança com atenção. Depois de lhe observar o
defeito dos olhos, examinou o pé e a mãozinha mirrados.
— Parece doentinho — acrescentou um tanto impressionado. Acredito que
não poderá trabalhar muito bem quando ficar homem.
Alcione havia-se assentado em atitude expectante e, ouvindo a alusão do
velho clérigo, acrescentou solícita:
— Mamãe já falou isso, mas o senhor não acha que o Robbie poderá
aprender música?
Damiano comprendeu o alcance da infantil lembrança e opinou satisfeito:
— Muito bem lembrado! Estudará em nossas aulas e, quando crescer, darlhe-
emos um violino de Cremona.
A menina bateu palmas de contentamento, como se houvera resolvido
problema de alta relevância e, aproximando-se do sacerdote, retomou o petiz
com infinitos cuidados, enquanto a mãe lhe acompanhava os movimentos com
um olhar de ternura indefinível.
Assim regressava Antero de Oviedo ao cenáculo do mundo, para as tarefas
laboriosas da redenção.
FIM DA PRIMEIRA PARTE
130
SEGUNDA PARTE
131
1
O padre Carlos
Estamos no decurso de 1681.
Em Ávila houve algumas modificações. Madalena Vilamil passou a residir
na cidade, em casa modesta e confortável, tendo arrendado a chácara aos
Estigarríbias. A educação de Alcione exigira a mudança, aliás consumada com
grandes dificuldades.
A pobre senhora estava prematuramente envelhecida. Não fôssem os
extremos cuidados pelo Robbie e o apêgo à filha dotada de virtudes raras e
preciosas, talvez já tivesse atendido aos apelos da saudade, buscando as
regiões da morte. Diversas vêzes, nas crises periódicas da enfermidade dos
pés, abeirava-se do sepulcro; mas a dedicação maternal vencia sempre,
dilatando-lhe as fôrças físicas. Assim, oscilava ela entre os dois entes mais
amados, como pêndulo afetuoso, sem qualquer preocupação pelo resto do
mundo, exceto o antigo projeto de uma visita à América distante.
Afora os propósitos ardentes do padre Damiano, relativos a uma possível
missão religiosa nas terras do Novo Mundo, suas esperanças esbatiam-se em
planos vagos e indefinidos. E a vida continuava entre esperanças e
recordações.
Robbie tem agora sete anos, e Alcione conta dezessete primaveras. O
pequeno inicia os estudos primários, enquanto a jovem tem completado o curso
escolar nos moldes da época. A filha de Cirilo, protegida por Madre Conceição
e sob os desvelos do Padre Damiano, sabe o latim, o inglês e o francês,
distinguindo-se igualmente na música por suas formosas e inspiradas
composições. No canto é a primeira voz no côro da catedral da cidade famosa.
Suas relações mais íntimas expressam singular admiração pela delicadeza
feminil, aliada a vastos conhecimentos científicos. Nas reuniões mais seletas é
convidada a tocar ao cravo as suas inspiradas composições. Artista por temperamento,
nem por isso lhe desfalece, antes avulta e prepondera a flama, o
pendor religioso. Lê os textos do Evangelho nos originais latinos e comenta as
suas passagens sob prismas novos. Dentre os que a estimam, Damiano e
Madalena, não obstante a convivência diuturna, são os seus maiores
admiradores. É que a jovem, com tantos dotes de inteligência e coração, nunca
teve uma palavra de superioridade jactanciosa, jamais se desinteressou do
trabalho doméstico em suas mínimas facetas. A filha de D. Inácio, para atender
as despesas domésticas, teve que intensificar os trabalhos de agulha, auxiliada
pela filha sempre incansável e prestadia. Alcione nunca esqueceu os dias
venturosos de lição espiritual, em companhia de Dolores, no mercado de
verduras; entregava as costuras da genitora, com a mesma humildade dos
primeiros tempos. O prestígio da sua bondade granjeava para a tarefa materna
maior aceitação. Como filha, era um modêlo de virtude familiar; como discípula,
tivera o louvor de todos os preceptores pela aplicação irrepreensível aos
estudos; como amiga, era sempre companheira afável e carinhosa, pronta a
cooperar nas situações mais difíceis, com a sabedoria do amor fraternal.
Madalena Vilamil e Padre Damiano, em tom confidencial, muitas vêzes
analisaram-lhe os atos de exemplar pureza, com votos de sincera alegria e
reconhecimento a Deus. A única coisa. que de algum modo os preocupava, era
a indefinível atitude de Alcione, com relação ao casamento e ao amor conjugal.
Dois nobres rapazes de Ávila já se haviam apaixonado por ela, sem lograrem
132
outra retribuição, além de fraternal estima. Ás vêzes, quando a genitora lhe
chamava a atenção para os imperativos da vida humana, costumava dizer:
— Ora, mamãe, sempre me pareceu que estes problemas nunca se
resolverão pela necessidade e sim pelos sentimentos espontâneos. Uma
necessidade atendida pode abrir caminho a outras maiores; ao passo que o
sentimento é patrimônio de nossa alma eterna. Que me valeria aceitar a proposta
de um fidalgo, tão só para satisfazer a situações exteriores? Não seria
trair o coração que devemos consagrar a Deus?
Madalena Vilamil ouvia-a, entre satisfeita e orgulhosa. Aquêle espírito de
trabalho e decisão, de que Alcione dava testemunho, propiciava inefável
confôrto ao seu coração de mãe. O passado só lhe oferecia tormento e
lágrimas. Muita vez, tivera diante dos olhos o cálice da angústia a transbordar;
mas a afeição da filha era como bálsamo poderoso que anestesiava a úlcera
das recordações. Sim! Alcione tinha sempre uma palavra mágica para qualquer
dificuldade; um motivo de edificação nos fatos mais insignificantes. Desde que
se associara às palestras domésticas, insensivelmente a levara a esquecer os
motivos do abatimento espiritual, que faziam dela uma prisioneira da
melancolia, ensimesmada no seu passado. A intimidade do Evangelho davalhe
à expressão verbal propriedades eufóricas. O exemplo de Jesus era
aplicado a preceito, em cada caso, precisa e logicamente. Semelhante atitude,
porém, não obedecia a posições hieráticas, a gestos estudados, a mímica do
fanatismo. Tudo era espontâneo, como acontece na vida das grandes almas,
que descobrem a presença permanente do Mestre em seus caminhos,
sentindo-lhe a companhia divina, qual Amigo Invisível a lhes medir cada passo,
cheios de compreensão e de júbilo.
Nada obstante essa dádiva de Deus à sua alma Sofredora, a filha de D.
Inácio não podia forrar-se a umas tantas preocupações mais fortes, O filhinho
adotivo trazia-lhe o espírito inquieto, pela sua rebeldia constante. O que se
dera com a educação de Alcione estava longe de vingar com a índole caprichosa
de Robbie.
No tempo a que nos reportamos, começara êle a freqüentar as aulas de
instrução primária, mantidas por Damiano na igreja de São Vicente, e todos os
dias voltava ao lar com queixas e reclamações. Interpelado, alegava as fadigas
da caminhada, atento o pé defeituoso, encarecia as dificuldades para escrever
com a mão esquerda, tinha sempre uma palavra mais áspera a respeito dos
colegas.
Certo dia, regressou a casa debulhado em pranto convulsivo.
Madalena chamou-o, afagou-lhe os cabelos muito crespos e perguntou
carinhosa:
— Que é isso? por que choras assim?
— Ah! não vou mais à escola do padre Damiano...
- Mas, por que, meu filhinho?
— Os meninos disseram que a senhora não éminha mãe, que sou escravo
dos portugueses!...
— Mas não deves dar importância a isso, Robbie. O bom menino é
obediente, não dá ouvidos a tolices. Talvez não chegasses a observar os companheiros
vadios, se te entregasses inteiramente às lições.
E vendo que o pobrezinho enxugava as lágrimas nas saias maternais,
Alcione intervinha, dizendo:
— Perdoa, Robbie. Tu tens esquecido nossos conselhos de cada dia. Não
133
viste ontem, na igreja, aquêle menino cego? A irmãzinha guiava-o pela mão.
Não tiveste tanta pena da sua cegueira e das suas feridas? Era uma criança
tão infeliz e, como não podia ver padre Damiano, pediu-lhe a mão para beijar.
Como não te lembras dêsses exemplos, quando os meninos ignorantes
provocam a tua cólera? Quem muito reclama não sabe agradecer
Como o pequeno não respondesse, Madalena perguntou:
— Quem sabe, meu filho, esqueceste de rezar o “Pai Nosso” pela manhã?
Robbie limpou os olhos ingênuos e fêz um sinal de quem se havia
esquecido, ao que a viúva Davenport obtemperou:
— Pois, então, reza agora. A prece sempre alivia o coração.
Diante das duas — que tinham os olhos úmidos por ver a boa vontade da
criança em se penitenciar, apesar da revolta que lhe vibrava no espírito —,
Robbie ajoelhou-se, cruzou as mãos e começou a oração dominical em tom
magoado. Ao terminar, a mãezinha adotiva observou:
— Estas palavras, meu filho, são um legado de Jesus. Não reparaste na
rogativa “perdoai as nossas dívidas, assim como perdoamos aos nossos
devedores”? Trata-se de um pedido que o Salvador nos prescreveu, e, se não
perdoas aos teus coleguinhas malcriados, como poderás viver, mais tarde,
enfrentando as dificuldades do mundo?
Entretanto, como acontece a muita gente adulta, que repete as. expressões
verbais, amorosas e sublimes, nas orações mais significativas, sem lhes
penetrar o sentido, conservando intactos a mágoa da ofensa e o impulso de
revide, o pequenino acrescentou:
— Mas os meninos da escola, mamãe, chamaram-me moleque.
— Que tem isso — retrucou Madalena sensibilizada —, se em casa sei que
és meu filho e que Alcione é tua irmã?
O pequeno pareceu meditar alguns momentos, enquanto mãe e filha
ponderavam silenciosas a precocidade das suas objeções. Mas não tardou que
êle se aproximasse da jovem que bordava com atenção, e depois de estender
o braço, comparando as epidermes, rompesse a chorar abraçando-se à
Madalena.
— A senhora está vendo? A mão de Alcione é branca e a minha é escura;
ela tem cinco dedos, eu tenho só dois!
— Deus quis assim, meu filho! — esclareceu a espôsa de Cirilo fazendo o
possível para não chorar também.
— Então Deus não é tão bom como a senhora falou — advertiu, causando
a ambas funda impressão.
Nesse ínterim, Alcione levantou-se e disse, melíflua:
— Está bem, Robbie, agora chega de recriminações. Mamãe já te
aconselhou, já rezaste, já te pedimos para perdoar. Hás de esquecer estas tolices.
Vamos à aula de música.
O rapazelho fêz uma expressão de enfado, mas foi ao quarto de dormir e
voltou com o delicado instrumento. A irmã ensinou-lhe com ternura a tomar
posição adequada e em seguida sentou-se ao cravo e feriu algumas notas. O
aprendiz moveu o arco, dificilmente, acentuando logo a seguir:
— Creio que não vai, O ruído das cordas causa-me mal-estar em todo o
corpo.
— No princípio é assim mesmo — explicou a jovem bondosamente. — É
preciso insistir.
E Robbie prosseguia no exercício, vencendo, pesadamente, os obstáculos
134
iniciais. Esgotado o tempo regimental, Alcione tocava antigas músicas da
mocidade de sua mãe, enchendo a casa de suaves harmonias.
*
A situação doméstica prosseguia sem alterações, quando Damiano trouxe
a notícia da próxima chegada de um pupilo seu, que acabava de receber
ordens num seminário romano. Às perguntas curiosas de Madalena e da filha,
o velho amigo informava, atencioso:
— Carlos é o meu único sobrinho e sempre foi credor do meu afeto. Seu
pai descendia de antigos espanhóis, domiciliados na Irlanda após o desastre
da Invencível Armada. Numa viagem ao continente, simpatizou com a irmã que
Deus me havia dado, desposando-a pouco depois. Viveram em plena harmonia
conjugal, cinco anos, quando pereceu meu cunhado num naufrágio, deixando a
companheira aturdida e desolada. Por desventura da Emilia, nada houve que
lhe restaurasse as energias do espírito. Nem o filhinho de tenra idade, nem a fé
religiosa, conseguiram salvá-la da apatia a que se entregou, até à morte.
Debalde tentei arrancá-la da perturbação em que se engolfou, sem remédio. A
hora da morte, entregou uma carta testamentária aos parentes do marido, na
qual exprimia as últimas vontades, determinando que o filho único, tão logo
atingisse a idade própria, fôsse internado num seminário romano, para
consagrar-se ao sacerdócio. Para isso, legava-lhe a pequena fortuna, dizendo
não desejar ao seu único descendente a dor incomensurável da viuvez...
— Uma história bem triste — comentou Madalena Vilamil, refletindo no seu
caso pessoal.
— E uma preocupação muito injusta de minha irmã — acentuou Damiano
com firmeza. — O pequeno Carlos esteve em minha companhia durante três
anos, em sua primeira infância. Estudando-lhe o temperamento, fiz o possível
por afastá-lo do caminho traçado pela determinação materna, mas seus tios
irlandeses fizeram tamanha questão de atender ao espírito perturbado de
Emilia que não houve meios de subtrair a criança aos seus propósitos. Tive de
assumir responsabilidades de tutor no seminário romano, e Carlos foi levado,
talvez contra a vontade, a receber a tonsura.
— Mas sois contra a carreira do rapaz? — indagou a espôsa de Cirilo com
interêsse.
— Não é bem isso. Minha irmã, quando pretendeu afastar o filho das
provações amargas da viuvez, ignorava os sacrifícios que dêle exigia.
Considero o sacerdócio tarefa sagrada, mas que ninguém deveria aceitar por
imposição e sim por vocação natural, ou determinação firme, depois de
grandes sofrimentos. Como Deus não se impõe às criaturas, parece que nunca
será possível tiranizar no capítulo dos serviços divinos. O resultado é que,
quando abracei o jovem seminarista há dois anos, achei-o singularmente
acabrunhado, dando-me a impressão de um homem repleto de batalhas interiores.
Compadeci-me da sua tremenda luta espiritual, mas nada pude fazer em
seu favor.
Alcione parecia beber as palavras do caroável ministro de Deus e,
enquanto êle tomava fôlego, obtemperou:
— E como definis a vocação religiosa, padre Damiano?
O velho sacerdote esclareceu sem rebuços:
— Antes de tudo, considero que a vocação religiosa não será o primeiro
135
impulso para envergar um hábito convencional. Semelhante estado de espírito
significará, primeiramente, decisão firme para o trabalho e testemunho com
Jesus. Ora, a meu ver, o lar é o primeiro dos estabelecimentos religiosos aqui
na Terra. Dentro de suas paredes, nobres ou plebéias, há sempre grandes
tarefas a realizar. Que dizer de um filho que procurasse a sombra de um
claustro porque seus pais vivem na luta, porque seus germanos não se
harmonizaram com o seu modo de pensar? Onde estaria a renúncia num caso
como êsse? Certo, a virtude não estaria em retirar-se, em busca de pousos
mais cômodos. Se os trabalhos domésticos, porém, deixam de existir, se
chegou a viuvez sem filhos, se sobreveio o abandono do coração, em tais
circunstâncias admito a oportunidade de maiores sofrimentos, seja na prova
rude dos que se encarceram em lágrimas dolorosas, seja nos testemunhos de
amor universal, estendendo-se a dedicação fraterna a todos os sêres. Suponho
que o ambiente doméstico resume a nossa oficina primacial, segundo os
desígnios de Deus. Aí se encontram material e ferramentas adequadas ao
serviço da nossa salvação. Entretanto, se essa tenda nos falta, a circunstância
significará talvez que fomos chamados, em nossa vocação religiosa, a
importantes trabalhos de ordem coletiva.
A jovem, satisfeita com a enunciação do ponto de vista do interlocutor, não
insistiu no assunto, mas Madalena perguntou delicadamente:
— E demora ainda a chegar o padre Carlos?
— Creio que não, pois já há meses que está na Irlanda, onde celebrou a
primeira missa, em obediência ao desejo dos parentes. No entanto, tôdas as
providências para sua instalação, aqui em Ávila, estão tomadas perante as
autoridades que nos regem. Tenciono tê-lo a meu lado, não só porque poderei
auxiliá-lo com as minhas velhas experiências, como também porque ainda não
renunciei ao antigo ideal de uma excursão à América e, nesse cometimento,
não posso dispensar companheiros de confiança.
A palestra fixou-se no plano da grande jornada, comentando-se as notícias
gerais e vagas, obtidas em Castela-a-Velha, dos processos de vida ha colônia.
Não decorrera um mês sôbre esta conversa e o padre Carlos Clenaghan
chegava inesperadamente, a fim de cooperar com o tio nos serviços religiosos
da igreja de São Vicente.
Alto, magro, de maneiras excessivamente simpáticas, pela bondade que
evidenciavam, olhos muito lúcidos, o novo sacerdote impressionava pelo
encanto do trato pessoal, dando a impressão de que se abeirava dos trinta
anos. Naturalmente, a primeira visita, em companhia do orientador de suas
atividades, foi a casa de Madalena Vilamil, que o recebeu com sinceras
demonstrações de carinho. Ao ser apresentado, porém, à filha da casa, o
sobrinho de Damiano não conseguiu disfarçar a profunda impressão que ela
lhe causara. Ambos pareciam perturbados. A jovem, sentindo-se sob o
magnetismo do seu olhar, empalidecera de leve.
— Alcione? — perguntou o padre, com inflexão carinhosa, não obstante
demonstrar na voz a necessidade de readaptação ao castelhano. — Onde teria
ouvido êste nome? Tenho vaga idéia de já o ter ouvido.
— Entretanto, não é comum — acentuou o tio, satisfeito.
A primeira palestra não foi além do comentário familiar de quem inicia
novas relações. Carlos Clenaghan relatava as suas emoções ao contato do
altar irlandês, que lhe proporcionara o júbilo da missa nova, cantada. Falou-se
da missão sacerdotal, dos serviços da Igreja, das condições gerais da vida em
136
Ávila. Alcione impressionava o recém-chegado, cada vez mais, com a
ponderação do seu espírito esclarecido e afetuoso. O rapaz, que vinha repleto
da teologia do seminário, de quando em quando ensaiava assunto difícil num
quadro de teologia ou de história; no entanto, a filha de Madalena lhe respondia
com precisão admirável, em linguagem simples, a espelhar nos olhos a pureza
do coração. Ela estava em dia com os clássicos gregos e romanos,
enriquecendo a conversação de apontamentos notáveis, pontilhando cada
parecer com as luzes de elevada sabedoria, cheia de compreensão e de amor.
Ouvindo-a falar sem vaidade e afetação, o novo sacerdote tinha a impressão
de ouvir uma criança adorada, a falar da sua intimidade com Sócrates e Cícero,
colocando cada filósofo no seu lugar, à face de Jesus, o amado Salvador que
lhe enchia a alma de sublimes e ardentes inspirações.
Ambos experimentavam singulares idéias. Se não fôsse muito avançar,
teriam declarado, num impulso espontâneo, que se haviam conhecido alliures,
não obstante a filha de Madalena nunca haver saído de Castela-a-Velha.
O visitante retirou-se daquele primeiro encontro sob verdadeiro fascínio.
— Meu tio, estou maravilhado — confessou, de regresso ao presbitério —;
a jovem Vilamil dá a impressão de uma criatura angelical, divinamente
inspirada.
Damiano sentiu-se orgulhoso com o conceito, circunstância que o levou a
pensar em pedir o auxílio espiritual da jovem, para que o pupilo firmasse
diretrizes seguras na carreira sacerdotal.
No dia seguinte, Damiano chamou a amiguinha, após a missa, e falou-lhe
em tom confidencial.
— Sei que as tuas orações e pureza devocional são preciosos tesouros,
ante o amor de Jesus, sem que minhas palavras envolvam qualquer pensamento
de lisonja a envenenar-te o coração. Falo como pai espiritual, pedindo o
teu fraternal concurso para um outro filho, pois assim o considero pelos laços
do espírito.
— Conheço minha indigência, padre Damiano — replicou a jovem, com
humildade —, mas disponde da minha insignificância como julgardes mais
acertado.
— Trata-se de Carlos, minha filha, para quem desejo o socorro de tuas
sugestões fraternais. Não o vejo muito seguro em suas decisões, nos caminhos
escolhidos, e temo um futuro desastre espiritual. Mas, ciente da nobre
impressão que a tua sadia palestra lhe despertou, muito me agradaria que o
orientasses em nossas tertúlias, robustecendo-lhe o ânimo vacilante na estrada
sacrificial do sacerdócio cristão.
Ela baixou os olhos, entremostrando a perturbação do espírito humilde,
pela confiança nela depositada, e acrescentou:
— Não creio possa ter alguma coisa de mim mesma para auxiliá-lo, mas
estou certa de que Jesus não nos faltará com o pábulo do seu amor
inesgotável.
O velho eclesiástico não podia avaliar o efeito de suas palavras, mas
reparou que a filha de Madalena voltou ao lar bastante impressionada.
Daí em diante, as visitas de Carlos à viúva Davenport repetiam-se tôdas as
noites. Renovavam-se as encantadoras alegrias domésticas, multiplicavam-se
as dissertações íntimas e preciosas.
A atração do jovem par tornava-se dia a dia mais forte. O sacerdote tinha a
convicção de haurir naquela convivência um salutar estimulo às suas energias
137
morais, à proporção que ela experimentava confortadora emotividade no seu
trato. Ambos sentiam indefinível facilidade para o entendimento das coisas
santas, sempre que se defrontavam no mesmo tema. ele não ocultava o seu
deslumbramento ao observar que a interlocutora lhe completava as
elucubrações filosóficas, traduzindo em linguagem diserta os mais profundos
teoremas. Começava a refletir, francamente, que Alcione constituía a personificação
do seu ideal humano, a realidade viva e insofismável dos seus
sonhos mais íntimos, mas as algemas da convenção religiosa lhe atavam o
espírito ao tronco do celibato.
Os dias sucediam-se com o júbilo discreto de duas almas unidas no mundo
sublime das idéias e, no entanto, separadas no plano temporal.
Por vêzes, o pupilo de Damiano experimentava enorme desejo de se
revelar, mas a conduta irrepreensível da moça paralisava-lhe os impulsos,
compelindo-o a converter tôda a ansiedade num conjunto de gentilezas sutis.
Carlos interessava-se, afetuosamente, por tôdas as coisas que a ela diziam
respeito. Cooperava beneditinamente na educação musical de Robbie,
acompanhava-a nas visitas aos deserdados da sorte e aos moribundos
desesperados. Desdobrava-se em atenções carinhosas com as crianças que
lhe ouviam as lições, simples e puras de moral cristã, e as horas de maior
descanso passava-as em casa de Madalena Vilamil, ou na igreja de São
Vicente, quando Alcione turturinava os cânticos sacros do ritual. Em tais
ocasiões o sacerdote parecia alimentar o coração. O amor Sincero e santo de
duas almas tem mistérios profundos e singulares em suas fontes divinas.
Basta, às vêzes, um gesto, uma palavra, um olhar, para contentá-lo e
transfigurar a ansiedade em esperança sublime.
Isso dava ao padre irlandês motivo para cuidar-se com esmêro. A
fisionomia ganhava novas expressões de ânimo resoluto, mais fraternal, expansivo,
acolhedor no trato. Damiano tudo atribuía ao ambiente de Ávila e
louvava-se pela resolução de fixar o sobrinho na Espanha, ignorando o drama
silencioso de dois corações.
Alcione, por sua vez, tornara-se mais pensativa, sem nunca disfarçar,
porém, a alegria que a felicitava, na convivência diária com o jovem sacerdote.
A situação assim prosseguia quando chegou o Natal de 1681. Às vésperas
do Ano-Bom, numa esplendorosa manhã de domingo, segundo os costumes da
época, diversos rapazes presenteavam as escolhidas com belos ramalhetes de
flores, à saída do santuário, ao terminar a missa.
Padre Carlos e Alcione contemplavam curiosa-mente a cena em que se
revelavam os impulsos amorosos e espontâneos da juventude. Instintivamente,
trocaram um olhar que dizia de tôda a afetividade sublime que lhes
palpitava na alma. O sobrinho de Damiano não resistiu à interpelação
silenciosa da jovem que resumia os sonhos da sua mocidade e, retirando linda
fôlha de trevo de um jarrão próximo, ofereceu-a à dlleta do coração, falando-lhe
comovidamente, em tom muito discreto:
— Perdoa! Não te posso oferecer o ramalhete da esperança para um
noivado venturoso, mas dou-te esta fôlha de trevo que é um símbolo da minha
terra!
Ela recebeu a dádiva, muito trêmula, emocionada, palidíssima. Quis agradecer
mas não conseguiu articular palavra. Naquela hora recebia, inesperadamente,
a revelação direta do espírito que encarnava os seus mais lindos ideais de
mulher. Ele compreendeu a perturbação natural e acrescentou:
138
— Não sofras por isso!... Quero apenas lembrar que, não fôra o
compromisso assumido, poderia hoje dizer que, apesar dos meus quase trinta
anos, ousaria suplicar a Deus me concedesse a ventura de os conjugar às tuas
dezoito primaveras.
Alcione estatelou. No Intimo, obediente à lealdade, nada tinha a dizer
senão que desejava, igualmente, realizar o sonho comum; que êle era o único
homem, no mundo, capaz de lhe proporcionar a doce luz da felicidade
conjugal, mas as convenções também lhe cerravam pesadamente os lábios.
Nesse momento, notou no semblante do interlocutor algumas lágrimas que lhe
corriam furtivamente dos olhos. Não pôde permanecer mais tempo na silente
expectação de alma ferida. Dolorosa comoção empolgou-lhe a alma sensível e,
com o pranto ardente a lhe fluir do Intimo, estendeu a mão carinhosa e trêmula,
exclamando:
— Padre Carlos, pode crer que suas palavras me tocam o sacrário do
coração!...
— Alcione — falou o pupilo de Damiano profundamente comovido —, se te
fôr possível, doravante chama-me Carlos apenas, na intimidade. Dos outros
suportarei o título de apóstolo sem o ser.
A jovem pronunciou um monossílabo que traduzia aquiescência, enquanto
o sacerdote acentuava comovido:
— Falaremos depois...
Naquela noite, em casa de Madalena, os dois disfarçavam a custo a ansiedade
que lhes trabalhava no espírito. Carlos ardia em desejos de arrebatar Alcione
da sala, a fim de lhe comunicar suas angústias infinitas, ao passo que ela
implorava intimamente a Jesus lhe concedesse uma oportunidade, de modo a
se lhe fazer compreendida. O ensejo surgiu, quando, após uma hora de
música, o pequeno Robbie pediu ao Padre Damiano que o levasse até às
muralhas, passeando ao luar, O velho eclesiástico acedeu, prazeroso. Apesar
do frio, a noite ostentava beleza excepcional. Madalena fizera questão de ficar,
alegando a costura, e os quatro demandaram a Porta de São Vicente, em
alegre entretenimento. Enquanto Damiano atendia aos caprichos do petiz, o
jovem par encontrava a desejada oportunidade para expandir-se.
— Alcione — começou o sacerdote comovidamente —, o destino cercoume
o espírito de altas muralhas e colou-me aos lábios férrea mordaça;
entretanto, espero me perdoes esta minha afeição sincera, pelo amor de Jesus,
a quem serves com tamanho fervor. Sinto que ainda não o sei atender com o
devotamento que te marca os gestos de santa e, por isso mesmo, aguardo a
tua compreensão caridosa, quando me não possas retribuir em espírito...
Nunca a filha de Madalena experimentara tamanha luta íntima. O primeiro
impulso do coração que sina é sempre o de consolar ou defender o objeto
amado.
— Dize-me — prosseguia o rapaz na sua paixão ardente — se de fato me
compreendes e desculpas o meu desvario.
— Pelo muito que tenho chorado em minhas preces — respondeu a jovem
suspirando —, Jesus sabe que te entendo o coração.
A inflexão carinhosa dessas palavras não dava margem a dúvidas. Carlos
Clenaghan, tão somente em face da declaração afetiva, sentia-se o mais venturoso
dos homens.
— Teus olhos falavam-me, Alcione, mas eu esperei, ansioso, que teus
lábios confirmassem a minha felicidade. Que longas têm sido as minhas noites
139
de dolorosas vigílias! É verdade que sou prisioneiro de uma convenção
poderosa e terrível, mas tua compreensão e teu afeto representam, para mim,
a visita e o interêsse de um anjo por desventurado galé em cárcere sombrio!...
— Não digas tal, Carlos — tornou a jovem comovidamente, evidenciando
embora a suprema luta íntima —, o dever não pode, jamais, tornar-se um
fantasma aos nossos olhos. Deus semeou a criação de infinita alegria e nós
estamos no divino trabalho de acendramento espiritual. Tôda obrigação nobre
embeleza o caminho e não devemos andar tristes na tarefa grandiosa ou
simples, que nos foi confiada.
O sacerdote sentia a beleza da concepção, mas, obtemperou:
— Entretanto, para mim, a existência tem sido madrasta.
— Acreditas, porém, que a vida se encerre nos dias fugazes do mundo? —
revidou Alcione carinhosamente. — Para o nosso conceito de paz e felicidade,
são quase mesquinhos os períodos de tempo que assinalam, na Terra, a
infância, a juventude e a velhice. Somos espíritos eternos, O mundo, Carlos,
deve ser uma grande escola, onde o Senhor nos proporciona possibilidades
benditas de trabalho e educação para a vida sem fim...
O rapaz enternecia-se ao ouvi-la. Sua voz parecia vir de longe, da região
da verdade e da esperança, que lhe embalava os sonhos mais íntimos.
Aquêles conceitos caíam-lhe no coração ferido, como bálsamo precioso.
— Entretanto — disse com inflexão amargurosa —, por mais que me
acolha ao manto da fé, não me furto de pesar imenso, oriundo do voto de
minha mãe, que me escravizou para sempre.
— Não inculpes tua mãe do círculo de obrigações e testemunhos que te
cabem — advertiu ela criteriosamente —; acima de qualquer decisão humana
está Deus, que dispõe de infinitos meios para exercer sua vontade soberana.
Além disso, tua mãe, assim alvitrando, obedeceu a propósitos muito dignos,
oferecendo-te a Deus em doce consagração. E se o Pai aceitou o voto
maternal é que existem, certo, no conteúdo da decisão, imperativos da lei
inelutável de aperfeiçoamento pela dor.
Reparando que êle a escutava com alguma surprêsa, continuou:
— Crês, acaso, na afirmativa de muitos teólogos de que Deus cria as almas
no ato mesmo do nascimento do corpo?
Carlos Clenaghan pareceu meditar longamente e retrucou:
— Não ignoro que muitos vultos da Igreja antiga desautorizam essa
opinião.
— Apesar das torvas cruezas do Santo Ofício — acentuou, de olhos
brilhantes, a filha de Cirilo —, prefiro acompanhar a corrente dos velhos pensadores,
que admitiam a multiplicidade das existências. É impossível, Carlos,
que estejamos na Terra pela primeira vez. Os livros do padre Damiano fizeramme
sentir essa consoladora verdade. Há quanto tempo teremos enfunado as
velas do barco de nossa vida, em procura do amor paternal de Deus? Quantas
vêzes teremos naufragado em nossas intenções mais santas? Quantas vêzes
teremos conduzido a embarcação às penedias negras do crime? Há mais de
cinco anos, procuro àvidamente os indícios dessa lei poderosa que nos
equilibra os destinos. Por vêzes engolfo-me na leitura dos grandiosos
pensamentos de quantos já perlustraram os nossos caminhos. Esses
mensageiros da sabedorIa e da paz não teriam sido portadores de mensagens
vãs. E, acima dêles, temos a palavra do Cristo nos Evangelhos, dizendo-nos
que o homem não atingirá o reino de Deus sem renascer de novo...
140
Padre Carlos estava muito admirado, como alguém que retomasse velhas
idéias abandonadas de há muito tempo. Mas, reconhecendo o efeito de suas
asserções confortadoras, a filha de Madalena prosseguiu com serenidade:
— Neste mundo não será possível acordar para os elevados domínios do
conhecimento, sem nos voltarmos com atenção para o problema da dor. Desde
cedo, habituei-me a rebuscar comparações. Por que o leproso, ao lado dos de
rosto brilhante? Por que se confundem, na mesma rua, os felizes e os
desventurados? Seria justiça ministrar o pão a alguns e as pedras a muitos?
No quadro da teologia atual, o Criador seria quase cruel. Mas é tão grande a
misericórdia divina que o Pai permite aos filhos a enunciação dos mais loucos
raciocínios, até que se compenetrem da grandeza acolhedora do seu amor
desvelado. Naturalmente, Carlos, somos espíritos integrando a enorme caravana
da Humanidade. Teremos falido inúmeras vêzes, fugindo aos desígnios
do Senhor para atender a nossos caprichos misérrimos. No entanto, a
Providência nos acolhe de novo na escola terrestre, dando-nos um corpo
diferente e renovando-nos a oportunidade sacrossanta...
O jovem sacerdote tinha a impressão de ouvir um anjo a esclarecer a
essência dos mistérios divinos.
— De fato — murmurou comovido —, são idéias que aliviam a alma e
nobilitam a vida.
— Quem poderá afirmar que o voto de tua mãe não signifique apenas uma
contribuição para que se cumpram os desígnios de Jesus? É inegável que
nossos corações se preparam para suportar as dores rispidas da separação,
achando-nos tão perto um do outro nas estradas da vida. Entretanto, estou
certa de que nossas lágrimas hão de ser recebidas no Céu, enriquecendo
nosso patrimônio espiritual no futuro, O mostrador do Destino marcará a hora
de unirmos nossas mãos para sempre... O roteiro doloroso nos descortinará a
luz do noivado eterno, mas, até lá, importa saibamos retribuir a bondade de
Deus com testemunhos de trabalho, abençoando os sacrifícios.
Nesse momento, de coração aliviado pela claridade do ensinamento, Carlos
tomou-lhe a mão entre as dêle, tocando-a no fundo dalma, mas, vendo-a
retrair-se num movimento instintivo, não ocultou sua mágoa, murmurando:
— Alcione, reconhecemos que esta nossa afeição é tramada em
sentimentos puros. Sei que minha condição sacerdotal acarreta responsabilidades
pesadíssimas; não ignoro que, não só pelo meu título, como pela idade,
era a mim que caberia, antes que a ti, exemplificar; mas, perdoa: o padre é
também homem, carregado de fraquezas - Agora, que sei corresponderes aos
meus mais íntimos sentimentos, sinto que um fogo abrasador me devasta o
espírito abatido. Quero deter o pensamento nas esperanças infinitas que me
deixaste entrever, quero ampliar meus ideais aqui na Terra, e anseio por fixar
os impulsos dalma, na comunhão com Jesus; no entanto, o complexo das
tendências, os desejos insatisfeitos, me suscitam maiores inquietações. O
amor não é apenas um sol que ilumina, é também vulcão que devasta...
Releva-me os impulsos impensados, ensina-me, corrige-me. Julgas que nossos
sentimentos traduzam um pecado aos olhos de Deus?
— Não o creio — respondeu carinhosa. — O amor é lei universal, que une
o Criador ao Infinito de suas obras. Jesus passou pela Terra, amando sempre.
Tôdas as nobres almas, vindas ao mundo, não deram testemunhos diferentes,
no entanto, Carlos, seria um crime forçar a satisfação do nosso ideal na Terra.
Devemos ser duas almas unidas numa só aspiração, mas conscientes de que
141
nunca encontraremos os júbilos da união, sem a argamassa do sacrifício.
— Tudo isto — acrescentou o rapaz com tristeza — porque a Igreja nos
acorrenta a compromissos absurdos. Como doutrinei’ a família se não a
possuimos?
— Não te deixes emaranhar em raciocínios revolucionários. No futuro,
naturalmente, o ministro do Evangelho, no Catolicismo, a exemplo do que já
sucede com a Reforma, participará das alegrias doces de um lar; mas, por
enquanto, Jesus não considerou conveniente a supressão dessa escola de
ascetismo, que a Igreja Romana nos aponta. Se erramos tantas vêzes em
nossos misteres mínimos, de ordem material, quantos crimes chegaríamos a
cometer se invadíssemos o terreno da fé, onde o Mestre é o mesmo para
todos? A preocupação de consertar será talvez louvável, mas um cérebro
desesperado. ao lado de muitos outros que se acomodam à situação, por
necessidade da experiência, personifica a rebeldia criminosa. Não será melhor
adotar a obediência ativa e operante, como o Cristo? O hábito sacerdotal pode
ser, no conceito de nós ambos, em razão de nossos sofrimentos atuais, um
instrumento de opressão e desventura; mas, para quantas almas êle tem sido
um refúgio de paz entre os infortúnios da vida? Muitos o desonram pelos
abusos, em nome de Deus, mas quantos o glorificaram, na renúncia e na
abnegação santificantes? Os missionários generosos salvam os maus padres,
como os justos salvam os injustos. O amor, Carlos, é a luz do caminho, mas o
egoísmo traz a cegueira. É indispensável guardar o coração contra o seu
assédio. Quando enxergamos apenas as nossas conveniências, tornamo-nos
cegos desventurados. Vejamos as vantagens dos outros e a vida nos encherá
de suas divinas compensações. Além do mais, o dia de hoje terminará com a
noite. É preciso honrá-lo com o trabalho sadio e com a obediência a Deus, para
que o amanhã seja o presente glorificado. Ninguém deverá aguardar a
claridade no porvir, se se compraz em repouso nas trevas, durante o dia que
passa.
O sacerdote bebia-lhe as palavras profundamente enternecido. Nunca
ouvira apreciações tão justas, relativamente ao sacerdócio. No seminário, os
preceptores eram pródigos de atitudes enfáticas e protocolares, enquanto os
alunos permaneciam indecisos ou revoltados. Para uns, a Igreja não passava
de instituição humana, ao passo que para outros representava um cárcere do
qual era necessário fugir por meio de criminosas acomodações. Alcione, na
sua inspiração sublime, não pudera cicatrizar-lhe de todo a chaga espiritual,
mas engrandecera a seus olhos a tarefa apostólica, fazendo-lhe sentir a
grandeza de suas responsabilidades no caminho para Deus. Todavia, no mais
recôndito da alma, ficara-lhe a êle um pensamento amarguroso. No fundo, era
o egoísmo ferido, a vaidade humana perturbada. As observações sábias da jovem
pareceram-lhe desinterêsse sentimental. Ela não experimentaria, talvez, a
mesma afeição ardente que o excruciava. Suas idéias gerais revelavam
enorme desprendimento do mundo. Carlos Clenaghan, na sua condição de
homem, chegava quase a ter ciúmes daquele Jesus tão amado e invocado a
todo momento. Dominado por conjeturas tais, obtemperou:
— Tuas concepções são nobres e elevadas, mas em mim as
características sentimentais se apresentam de outra forma. Compreendo a
sublimidade do idealismo da Igreja, tal como o expões, mas nunca poderei
perdoar a iniqüidade do destino, privando-me de um lar e do sorriso das
criancinhas. O ideal da paternidade sempre me perseguiu qual tremenda
142
obsessão... Com o teu desprendimento sublime, talvez não possas
compreender esta tortura espiritual.
— Enganas-te! Teus ideais são os meus. Esperei teu olhar, tuas mãos, teu
verbo, teus pensamentos, em todos os lugares por onde passei, desde a hora
em que despertei para o sentimento. Muitos homens passaram. Em alguns
encontrei as possibilidades de uma paternal afeição; noutros, apenas liames
fraternais. Enquanto aguardei tua vinda, os sonhos de um lar povoaram
minhalma, eu pedia ao Sol que me desse seus raios ardentes, como rogava às
estrêlas uma gôta de sua formosura para tecer a rêde de alegrias, de modo a
solenizar tua presença, quando chegasses. Palpitavas em meu espírito com a
primeira melodia saída de minhas mãos, quando tive a impressão de tocar ao
compasso do teu caminho... Mas, logo que nos encontramos, compreendi que
meus primeiros ideais deveriam ser renovados. Meus desejos evolaram-se em
silêncio, porque Jesus havia estabelecido outros desígnios às nossas lutas
terrenas. De que me valeria recalcitrar, provocando nossa própria ruína?
Reconheci-te no primeiro olhar. Nem me enganaria nunca. A alma é servida
por estranhos poderes que o mundo ainda não conhece. Apesar disso, Carlos,
senti que meus lábios se calavam sob a pressão de fortes arganéis. As
condições em que nos encontramos eram como que uma grande mensagem.
O Senhor recomendava-me adiar o idealismo da mulher, abnegando meus
caprichos em favor de propósitos mais altos. Compreendes agora?
Havia tamanha inflexão de ternura nessas palavras que Carlos Clenaghan
sentiu-se vencido. Acabrunhado nas suas disposições interiores, acentuou:
— Tens razão, Alcione...
— Quanto ao lar e aos filhinhos — continuou a jovem carinhosamente —, é
indispensável não nos perturbarmos com as visões falsas da experiência
diuturna. Padre Damiano está valetudinário, alquebrado nos trabalhos intensos
da sua amada igreja; minha mãe tem sofrido, incessantemente, desde o
primeiro dia de viuvez; Robbie é uma criança necessitada. Por que não ver,
não sentir nos três os nossos filhinhos do coração? E sem falar dos mais
próximos, onde colocas os pobres velhinhos e os enfermos que te procuram,
ao desamparo? O título de sacerdote inculca um pai.
O pupilo de Damiano enxugou uma lágrima.
— Pedirás a Deus, por mim — disse entristecido —, rogarás ao Céu que
mitigue minha dor, por não possuir a família direta.
— Sim, o lar deve ser uma ilha de suave descanso no vórtice das lutas
terrenas, à feição de um santuário sagrado onde a criatura consiga estender
seu amor à comunidade universal. Possuí-lo, será receber opima dádiva do
Criador; entretanto, Carlos, para nos encorajar a todos nos testemunhos de
sofrimento, bastaria recordar que Jesus passou pela Terra sem família direta.
Nesse instante, Damiano aproximou-se, interrompendo o colóquio.
Alcione tinha o coração opresso por indefinível angústia. Consultando as
tendências da sua sensibilidade feminina, experimentava o desejo de se
encontrar novamente com o rapaz, tão logo se afastasse o velho amigo, para
reafirmar o seu afeto, a sua dedicação sem limites. Enquanto trocavam trivialidades
sôbre a beleza da noite, sua alma carinhosa padecia longo anseio.
Depois da significativa confissão de Carlos Clenaghan, achava-o mais belo. Os
olhos se lhe haviam tornado mais brilhantes, a fisionomia mais expressiva.
Alcione chegava a recear pelas comoções que lhe vibravam no espírito
sensível. Não havia sonhado tanto? Não era êle o homem esperado
143
ansiosamente? Mas a lição cristã lhe falava, poderosa, no íntimo. Era preciso
conservar-se com o Cristo, ainda que o mundo inteiro lhe fôsse adverso.
Lutaria contra si mesma, até ao fim.
Nessa noite, porém, suas preces turvaram-se de lágrimas candentes. As
declarações de Carlos não lhe saíam dos ouvidos e a filha de Madalena, pela
primeira vez, na Terra, sentia-se cativa de singulares pesadelos.
O pupilo de Damiano, por sua vez, estava impressionado e decidido a
cultivar a sublime afeição, acima de tudo. Supunha haver aquilatado o amor
sincero da jovem pela inflexão da sua voz, pelo impulso ardente que
vislumbrava nas suas palavras de espiritualidade profunda. Experimentava
ainda, nas mãos, o calor da mão trêmula que se esquivara ao carinho, qual
pássaro assustado. Alcione estava cheia de uma sabedoria diferente, mas a
elevação espiritual, de que dava testemunho, exaltava-lhe ainda mais os
desejos ardentes. Não renunciaria aos seus propósitos. Debalde tomava os
manuais de oração, no afã de atenuar a inquietude que o atormentava, mas era
como se espêsso véu lhe vendasse os olhos dalma. Raciocinava, compreendia
a sublimidade dos textos, mas não conseguia confeiçoá-los ao coração. A
palavra serena e sábia da moça forçava-o a reflexões mais sérias, mas, no
curso dos dias, o sobrinho do velho sacerdote da igreja de São Vicente nada
mais fazia que exacerbar os próprios desejos. De quando em vez, voltava a lhe
falar no assunto, mas, encontrava-lhe o coração sempre blindado na fé, e
sempre inspirada e vigilante.
Decorridas algumas semanas, certa feita encontrou-a sozinha, no
santuário, retirando os adornos de antigo altar, após a missa.
Em tôrno, tudo era silêncio naquela manhã banhada de sol.
Damiano, terminada a missa, retirara-se ao presbitério, levemente
indisposto. O jovem sacerdote, inflamado de paixão, achou que a oportunidade
era ótima para expandir-se mais uma vez, recapitulando os idilios que fazem as
delícias dos corações enamorados.
Após a saudação carinhosa, em que os dois manifestavam natural
perturbação, o rapaz falou comovido:
— Não te admires de assim falar no recesso de um templo. Esta é a casa
que Deus me facultou e não disponho de outro recurso. Há muitos dias, venho
espreitando a possibilidade de alguns minutos, para confiar-te as minhas
infinitas inquietações.
O próprio Carlos notava que a jovem se tornara mais pálida pela comoção
que lhe ia nalma. Contudo, solidamente apegada aos seus princípios de
virtude, a moça respondeu, esforçando-se por manter a maior serenidade:
— Inquietarmo-nos será enorme êrro. Se Deus nos honrou com os
trabalhos, não nos esquecerá com os recursos da paz necessária ao
cumprimento do dever.
— Compreendo, replicou êle quase impaciente, mas começo a crer que me
não amas bastante. Aproximo-me de ti, sedento o coração, e vejo que as tuas
objeções paralisam meus impulsos...
Assim falando, reparou que a jovem se tornara branca de mármore. Pela
primeira vez, diante dêle, Alcione chorou. O apêlo era demasiado forte para
que se contivesse impassível.
— Desvairas, Carlos? — perguntou com angustiosa inflexão. — Admites
minha amorosa dedicação estraçalhando os programas do Cristo? Deus
conhece minhas vigílias em preces fervorosas. Desde que nos vimos pela
144
primeira vez, diluo as minhas aspirações mais antigas em lágrimas dolorosas.
Contemplando-a nessa atitude, o rapaz avançou alguns passos
visivelmente emocionado. Tomou-lhe a mão, de leve, e, de olhos marejados de
pranto, acrescentou:
— Perdoa-me! O amor me alucina. Tenho feito o possível por descansar a
mente, confiante em Jesus e na certeza da vida eterna; entretanto, a paixão me
obscurece a razão e caio sempre vencido nessas batalhas silenciosas do
pensamento... Tua imagem, sempre ela, a me preocupar o cérebro e o coração
atormentados! Vejo-te a cada hora, em tudo e em tôda parte, sinto-te nos
mínimos episódios da vida e creio divisar teu sorriso até no fundo das hóstias
consagradas...
— Não procedas assim — disse a moça extremamente conturbada —; tua
dedicação afetuosa sensibiliza-me o coração de maneira intraduzível, mas só
Jesus é bastante digno do amor supremo. Amo-te também, acima de tôdas as
coisas da Terra, mas sou mísera criatura, Carlos. Repletemos nossa alma com
a visão sublimada do sacrifício pelo dever. Não creias que eu possa viver sem
sonhar com os teus carinhos, mas considera que não será justo colocar tôdas
as nossas ânsias nos aspectos exteriores da vida. A felicidade no plano imortal
deve ser como a planta que nasce e se desenvolve gradativamente. Por que
aniquilar o germe de nossa ventura sublime, por simples inquietação de espírito
inconformado? E se a primeira vergôntea da nossa união divina tem a profunda
beleza de um ideal celeste, como será imensa a sua beleza quando se tomar
em dadivosa fronde de amor, nos luminosos paços da eternidade? Estamos no
período das almas esperanças, quando as sementes brotam... Se é
indispensável adubar com lágrimas, não hesitemos um instante!...
O sobrinho de Damiano ouvia enlevado. Sentindo a sutileza delicada dos
apelos feminis da religiosa e meiga Alcione, apertou-lhe a mão entre as dêle,
mais fortemente, e obtemperou:
— Concordo com a tua resignação admirável, embora não participe das
tuas virtudes celestiais; entretanto, penso que não se nega uma gôta de
orvalho à planta tenra! Não me deixes órfão da tua ternura. Ouve, querida!
Concede-me a dita de um beijo apenas e serei o mais ditoso dos sêres...
A moça fêz um gesto de doloroso espanto, ao mesmo tempo que
pervagava o olhar pela nave silenciosa.
— Não temas — prosseguia Carlos febril-mente —; os santos que nos
assistem são mais compreensíveis que os homens criminosos. Sob tetos
humanos, envenenariam as nossas atitudes sagradas, mas aqui estamos na
morada de Deus, que é Pai amoroso e sábio...
Alcione Vilamil, no entanto, fêz um gesto de recuo e murmurou:
— Não posso!
— Por quê? — revidou Cienaghan em tom de mágoa.
Então, envolvida num halo de tristeza indefinível, ela explicou:
— O incêndio devastador começa de uma simples fagulha.
— Mas nós temos sido deserdados, Alcione...
— E que dizermos de um homem — continuou com energia e serenidade
— que, sentindo o frio do inverno, acendesse um lume imprudente no seio da
floresta acolhedora, ameaçando a própria casa e a paz dos seus habitantes,
tão só a pretexto de se livrar do frio?
Ante a inesperada resistência, o pupilo de Damiano sentiu-se
envergonhado.
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— Sou bem infeliz — disse amarguradamente entretanto, estou convencido
de que nunca trai meus deveres!...
— Lembremos, Carlos, os antigos apóstolos da Igreja, quando advertiam
que, depois de cumpridos todos os deveres, ainda nos deveríamos considerar
servos inúteis, porque tudo nos vem da misericórdia divina...
O rapaz admirava-lhe a energia afetuosa, caíra novamente em si do
desvario momentâneo que lhe perturbara os sentidos, mas conservava-se
inerte, deixando correr copiosas lágrimas.
Profundamente comovida, a jovem acentuou:
— Não posso dar o beijo que pediste, mas posso dar-te o ósculo de
minh’alma.
Retirou do pequeno altar próximo um crucifixo de prata, sobrepôs no peito
do Crucificado minúscula fôlha de trevo e acrescentou:
— Abaixo do Céu, Carlos, és o meu maior afeto; entre nós, porém, está
Jesus-Cristo. Em nossa consciência, o Senhor ainda não nos permite uma
aproximação integral. Pois bem: confio a Jesus o beijo da minh’alma, para que
seu misericordioso coração te entregue a minha pobre lembrança.
Em seguida, beijou a fôlha de trevo, passando a pequena relíquia de prata
ao escolhido, que osculou por sua vez a fôlha minúscula, com indizível carinho.
Aquela singular concessão pareceu calmá-lo. Sorriu confortado,
agradecendo com palavras afetuosas à noiva espiritual, obtemperando em seguida:
— É preciso suportar o isolamento e cumprir o dever até ao fim...
Alcione, quase satisfeita, completou-lhe a concepção nestes têrmos:
— De cidade em cidade, há sempre alguma distância a percorrer. É
intuitivo que da imperfeição de nossos espíritos à perfeição do Cristo há a
contar uma distância quase imensurável... Portanto, qualquer discípulo sincero,
para se unir ao Mestre, tem de sobrepor-se à limitação e mesquinhez da
natureza humana, disposto a tolerar as fadigas da solidão inerente à grande
jornada. Semelhante estado, Carlos, identifica todos os que vão sentindo o
tédio do mundo, ansiosos de novas luzes. Jesus nos aponta os caminhos e não
seria justo que estacionássemos, alegando temor da soledade benéfica que
nos ensina a ver o próprio coração como um livro aberto!... Apenas aí, a sós
conosco, podemos discernir mais claro o justo do injusto, o bom do mau.
Clenaghan retirou-se plenamente confortado, experimentando o espírito
banhado em fôrças novas.
Os dias continuaram a sua marcha, ao mesmo passo que as gentilezas
crescentes do novo sacerdote para com a filha de Madalena Vilamil iam-se
tornando pasto da maledicência devota. Espiolhava-se o assunto em surdina,
quando o rapaz deliberou recorrer à experiência do tio, para resolver a
situação. Damiano recebeu-lhe a palavra confidencial com alguma surprêsa.
Carlos alegava que, dada a falta de vocação sacerdotal, pretendia rejeitar a
batina, ainda que devesse contar com as mais ásperas censuras. Influia nessa
deliberação o amor que Alcione lhe inspirava e que êle revelou ao tio
pausadamente, na atitude espontânea, própria dos jovens apaixonados. Padre
Damiano mostrou-se logo muito preocupado, considerando a gravidade do
caso, e aconselhou ao pupilo não resolver tão delicado problema com a
precipitação dos espíritos levianos. Sempre fôra contrário à realização do voto
da irmã, mas, em tal emergência, era imprescindível proceder com a maior
prudência. Fêz ver ao sobrinho os obstáculos ponderosos, as ameaças dos
146
novos rumos e, por último, já que se consideravam quase como familiares de
Madalena, sugeria que o assunto fôsse levado à análise da viúva Davenport e
da filha, a quem interessaria, maiormente, tôda e qualquer decisão. Carlos
Clenaghan aceitou a idéia visivelmente satisfeito.
Chegados a casa da filha de D. Inácio, encontraram-na só, à espera da
jovem gue havia saído em companhia de Robbie, momentos antes, O velho
sacerdote aproveitou a oportunidade para explanar detidamente o assunto. A
nobre senhora mostrava-se muito admirada, sem poder disfarçar a estranheza
que a resolução de Clenaghan lhe causava. Madalena sentia-se assaz
embaraçada para opinar judiciosamente em problema tão melindroso. Quando
os últimos esclarecimentos do padre Damiano se fizeram ouvir, a viúva
Davenport respondeu muito pálida:
— Tudo isso é muito estranho para o meu coração de mãe, pois ignorava
que entre minha filha e o padre Carlos pudessem existir laços afetivos de tal
natureza...
— Não será bem assim que devemos dizer —atalhou Clenaghan
nobremente. — O que meu tio acaba de expor não passa, por enquanto, de
pretensão minha. Não existem laços entre nós, mas sim inclinações; nem
Alcione poderia presumir ou saber dos meus desígnios de alijar a batina.
— Ela ignora, então, as providências em curso? — perguntou a senhora
Vilamil bastante surpreendida.
— Sim — reafirmou Carlos, com sinceridade —, meu tio e eu deliberamos
vir a vossa casa, dada a nossa confiança e intimidade. Não desejávamos
resolver tão delicado problema por nós mesmos, quando a solução parece que
nos afetará a todos.
A viúva teve um gesto expressivo, evidenciando o seu embaraço, mas o
jovem sacerdote, percebendo-lhe a estranheza, continuou:
— O ambiente convencional em que me encontro sufoca-me o coração.
Temos necessidade de emancipação espiritual. Não quero dizer com isso que
abjure a crença que me alimenta o espírito desde a infância, e sim que não
concordo com o celibato compulsório, porque, para mim, o padre católicoromano
jamais poderá colaborar santamente na edificação da família humana,
deixando de constituí-la êle mesmo.
A filha de D. Inácio ouvia aquêle desabafo um tanto constrangida. No
íntimo, desejaria revidar, defender a missão do sacerdote, neutralizar uma
providência que poderia acarretar grandes amarguras à filha. A presença do
padre Damiano, porém, não lhe consentia maior franqueza. Habituara-se a
estimá-lo quase como ao próprio pai. Admitia o seu bom senso, aceitava a
superioridade da sua longa experiência da vida. Se êle deliberara afetar-lhe o
assunto, é que teria razões ponderáveis para isso. Mal acabava de assim
pensar, quando o velho sacerdote ponderou:
— Vejo, Madalena, que o caso te impressiona mais do que poderia supor.
É natural, porqüanto o coração materno é sempre uma sentinela vigilante. Eu
não ignorava que as preocupações de Carlos te magoariam a alma sensível,
mas, minha filha, não tive remédio senão informar-te devida-mente, com a
devida franqueza. Trata-se da ventura de dois corações muito jovens e eu me
sinto incapaz de intervir mais decisivamente, mesmo porque, penso que meu
sobrinho nada pode nem deve resolver, sem que Alcione seja ouvida.
A nobre senhora compreendeu os escrúpulos do velho sacerdote e
confessou:
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— Também julgo muito arrojadas as pretensões do padre Carlos, no
sentido de enfrentar a sociedade em que vivemos, mas sou a primeira a
desejar a felicidade de minha filha. Por ela, sinto que devo recalcar minhas
concepções pessoais do dever e da vida. Aliás, devo esclarecer que Alcione
nunca me deu a menor preocupação, sendo esta a primeira vez que me vejo
compelida a examinar problema tão difícil, condizente ao seu futuro. Por isso
mesmo, confio em que ela própria saberá elucidar-nos o que mais convenha...
Nesse comenos, Alcione entrou de surpresa, saudando afàvelmente os
amigos.
Mais alguns momentos e padre Damiano lhe pede atenção para o assunto
em foco. Enquanto Clenaghan acompanhava as suas palavras visivelmente
emocionado, a jovem recebia a noticia com intranquilidade e amargura.
— Como vês, Alcione — terminava o velho sacerdote —, as intenções de
Carlos preocuparam-me sobremaneira e me senti sem fôrças para resolver só
por mim. Já me entendi com tua mãe e agora esperamos que te pronuncies
sinceramente.
A moça dirigiu ao amado de sua alma um olhar de exprobração, e,
sentindo-se encarcerada num círculo de opiniões, onde a sua deveria prevalecer
mais fortemente, esclareceu:
— Em consciência, padre Damiano, não posso concordar com tudo isso.
Ao que suponho, Carlos está sendo vítima de grande equívoco. Alma alguma
poderá ser feliz olvidando seus deveres. Nossa afeição seria condenável se
forçasse um de nós a esquecer as suas obrigações.
Nesse instante, o moço contemplava-a entristecido, amargurado com
aquela resistência, ao passo que o tutor justificava:
— Compreendemos a delicadeza dos teus sentimentos, mas, vale advertir
que, qual se tem dado com outros muitos, Carlos se desligaria dos votos
sacerdotais, continuando ao serviço de Jesus, dentro do Evangelho. A
resolução, portanto, apenas visaria atenuar as exigências tirânicas da Igreja,
com referência à felicidade de dois corações nobres e sinceros.
— Padre Damiano — tornou a jovem algo conturbada —, acredito na
grandeza da sua complacência para conosco e lamento bastante ser obrigada
a contrariar seu generoso coração, pela primeira vez; mas a verdade é que não
posso aplaudir êsse plano. Admito que o celibato obrigatório representa, de
fato, uma exigência tirânica, mas ninguém deverá eximir um homem dos
compromissos assumidos conforme os desígnios de Deus. Nós, que aceitamos
a pluralidade da existência na Terra, não podemos haver por meramente
casuais os acontecimentos que levaram Carlos a envergar a batina. Quem
sabe esta sua condição atual não seja uma repetição de experiências
pregressas? Quem nos dirá que êle não tenha vivido noutra época, conspurcando
o altar, e que eu não tenha cooperado em suas quedas? Não será
justo soframos ambos a conseqüência de nossos erros? Ainda que assim não
fôra, tínhamos a considerar, necessariamente, os desígnios de Jesus, sublimes
e insondáveis. É verdade que consagro a Clenaghan uma afeição intensa e
divina, que confesso diante de mamãe pela primeira vez. Esta circunstância,
porém, não será motivo de queda espiritual, mas antes de estímulo para que
redobre meus zelos pelo seu nome, O imperativo eclesiástico pode ser muito
duro, mas creio não sermos os únicos a sofrer-lhe as conseqüências. Outras
almas, tão sinceras quanto as nossas, estarão sofrendo e confiando na
bondade de Jesus-Cristo.
148
O velho sacerdote não esperava da jovem outra atitude senão aquela com
que testemunhava a suprema elevação do seu espírito, mas estava surpreendido
pela maneira como se exprimia, pela inflexão da voz, cuja emoção
se casava à firmeza dos raciocínios.
Nesse ínterim, Clenaghan interveio, murmurando:
— Teus pareceres, Alcione, evidenciam o acendramento de tua bondade;
todavia, tenho refletido na renúncia dos meus votos como ato de coragem e
fidelidade espiritual.
— Sim, para o mundo — aparteou Alcione —talvez fôsses uma criatura
desassombrada; mas onde estaria a verdadeira coragem? Na decisão
escandalosa de um dia? Ou no sagrado cumprimento dos votos empenhados
para uma vida inteira?
O rapaz não pôde dissimular a enorme surprêsa que o argumento lhe
causava. Sob os olhares perscrutadores de Madalena e do tio, Carlos parecia
titubeante, acentuando, porém, como a defender-se:
— Não sou, contudo, o primeiro a pensar nisso. Outros sacerdotes
renovaram suas concepções e mudaram de roteiro, em vista das absurdas e
criminosas imposições de que eram vítimas.
Alcione pareceu meditar um momento e respondeu:
— Renovar concepções é um dever nobre de tôda criatura, mas um pai
sômente se engrandece quando eleva consigo todos os filhos da sua casa;
nunca, porém, deixando a família ao abandono. Um sacerdote do Cristo,
Carlos, ainda que incompreendido no mundo, deve ser sempre um pai...
Quanto a mudar de roteiro, é coisa outra que merece atenção especial. É justo
que um passageiro dessa ou daquela embarcação troque de navio em pleno
mar, ou que se deixe ficar à tôa em pôrto diferente, acreditando abreviar a
viagem; mas, que dizer de um comandante que assim procedesse com os que
nêle confiam? Não será melhor permanecer, tanto nas rotas perigosas como
nas ondas mansas? E que é nossa vida neste mundo senão uma viagem para
esferas mais altas? Dia virá que chegaremos ao pôrto da verdade e é
necessário cumprir o dever até ao fim. Para as almas vulgares, a existência
pode representar um conjunto de possibilidades, de levianas experiências, mas
nós, que já recebemos algum conhecimento das coisas divinas, não podemos
interpretar a passagem pela Terra senão como santa oportunidade de trabalho
e purificação!... Referimo-nos à organização tirânica da Igreja, mas seria injusto
esquecer que um instituto defeituoso apenas se regenerará quando prevaleça
a atuação de seus elementos mais dignos. Os maus padres hão de
desaparecer quando os sacerdotes inteligentes e devotados tiverem a coragem
da renúncia a benefício da Igreja, permanecendo na tarefa por amor aos
necessitados e ignorantes, que Jesus lhes confiou!...
Damiano estava profundamente comovido e impressionado. Aquêles
conceitos não pareciam derivar de um cérebro humano. Após longa pausa, o
ancião, de olhos úmidos, acrescentou solenemente:
— Creio que as explicações de Alcione nos vêm de mais alto. A claridade
do dia do Pentecostes nunca morreu no mundo.
E, dirigindo-se ao pupilo, frisava:
— Como vês, nada tenho a dizer. Minhas objeções de velho poderiam ser
levadas a conta de impertinência. Jesus te envia, contudo, pela própria eleita, a
mensagem salvadora. Não hesites, meu filho, entre o capricho e o dever!...
A pequena assembléia familiar dispersou-se friamente. Carlos Clenaghan,
149
comovidíssimo, despediu-se de Alcione enxugando uma lágrima. No dia
seguinte, de manhã, compareceu à missa de rosto angustioso, demonstrando
que as provas da véspera lhe haviam calado fundo no coração.
Damiano também estava mais impressionado do que se poderia supor. As
afirmativas da discípula ressoavam-lhe aos ouvidos em poderosas vibrações.
Suas experiências da vida eram rudes e longas, mas nunca se lhe deparara
uma jovem com tamanha compreensão do sofrimento e do destino. Que fôra a
sua vida de sacerdote senão aquêle rigoroso programa esboçado pela jovem
Alcione? Recordava os tempos difíceis, as horas de tentações mais ásperas,
os sacrifícios longos, as dores que pareciam sem têrmo, para concluir que
Jesus lhe enviara luzes consoladoras pelos lábios carinhosos daquela criatura
que sempre estimara como filha.
Ainda assim, competia-lhe ponderar gravemente a situação. Era necessário
subtrair Alcione ao ambiente de Ávila. Além disso, impunha-se uma alteração
de regime, visto que os dois se amavam intensamente e convinha distanciá-los
a título preventivo. Madalena Vilamil sempre esperara, pacientemente, a
oportunidade de conhecer a América do Norte. Os acontecimentos pareciam
favorecer e reavivar os seus desejos. Como, porém, realizá-los? Muitas vêzes,
as ocasiões haviam surgido, mas só-mente para as colônias espanholas e êle
as recusara sempre, porque não seria razoável submeter a senhora Davenport
e os seus a penosas peregrinações.
Damiano lembrou-se do seu espicilégio. Talvez os documentos particulares
lhe sugerissem algum empreendimento. Releu a carta de um amigo de Paris.
Convidava-o a rever sua comunidade e trabalhar na capital francesa. Não seria
difícil partir da França para o norte da América. Satisfeito com o achado, reteve
a idéia durante um mês. Decorrido êsse prazo, quando as pretensões de
Clenaghan já estavam esquecidas na residência de Madalena, o velho
sacerdote começou a tratar do assunto.
150
2
Novamente em Paris
Madalena Vilamil acolheu o alvitre do velho sacerdote, entre cismas e
esperanças. Desejava, sinceramente, poder um dia abraçar os Davenport.
Nunca renunciara ao propósito de ouvir algum sobrevivente do naufrágio em
que, segundo a carta de Blois, perdera o espôso amado, Os anos haviam
corrido entre esforços angustiosos, mas nunca se lhe apagara na mente a
figura de Jaques com a sua generosidade paternal. Às vêzes, conjeturava que
o carinhoso benfeitor de Blois também já houvera falecido. Ainda assim, seria
sempre possível encontrar Susana ou algum dos irmãos de Cirilo, no
Connecticut. Ao demais, sentia-se cansada e doente. Não seria prudente
aproximar Alcione dos parentes? Temia morrer deixando a filha sem parentes
próximos que lhe velassem pelo futuro. Em tempo, alimentara a esperança de
um casamento feliz, mas agora estava certa de que êsse problema, na vida da
jovem, era muito mais complexo do que poderia supor. Se a morte lhe
sobreviesse, poderia contar com a afeição sincera do padre Damiano, mas
também notava que o velho amigo ia-se curvando para a terra, devagarinho, ao
pêso do intenso trabalho junto das almas. Quanto ao filhinho adotivo, não podia
presumir nem esperar dêle outra coisa que não fôsse preocupações e
trabalhos ásperos. Alcione não poderia esperar de Robbie o concurso
necessário no porvir. Antes, pelo contrário, ele é que não poderia prescindir do
seu arrimo fraternal. E, nada obstante, a espôsa de Cirilo sentia-se sem
coragem para aderir ao projeto. Compreendia as vantagens e o acêrto da
emprêsa, mas sentia-se ao mesmo tempo exausta de fôrças para tentar a
jornada penosa. Não hesitaria, se a viagem estivesse definitivamente decidida
e traçada em seus detalhes; entretanto, a permanência em Paris, antes da
resolução definitiva, infirmava-lhe o ânimo. A capital francesa regurgitava de
recordações doces e amargas para o seu espírito sensível. Rever os lugares
onde conhecera a inolvidável ventura da mocidade não significaria abeirar-se
do túmulo dos mais lindos sonhos e chorar para sempre? E enquanto ela assim
relutava, Damiano intervinha solícito, valendo-se das ocasiões em que se
encontravam a sós.
— Reconheço quão amargurosas são as tuas expectativas, mas penso que
a felicidade de Alcione e as necessidades de Robbie justificam teu sacrifício.
Creio que o ambiente de Ávila já proporcionou às duas crianças o máximo de
experiência. E chegados a êste ponto, nutro os meus receios pelo sobrinho.
Alcione nos deu vigoroso exemplo de fé e sacrifício, recusando-lhe os planos
de rapaz impetuoso, sacrificado na sua vocação; mas, não será o caso de
auxiliarmos agora a generosa menina, prodigalizando-lhe um bálsamo ao
coração dilacerado? É que, não obstante o bom senso e a grandeza dalma, ela
deve ter o coração repleto de amor. Isso é inegável. Considero crueldade expôla,
diàriamente, ao exame da sua chaga. Em cada pormenor da igreja, como
em cada paisagem de Ávila, seus olhos carinhosos hão de ver a figura do amor
torturado e insatisfeito. Por outro lado, pressinto em meu sobrinho manifesta
incapacidade de renúncia. A meu ver, êle deu tréguas ao problema, sem o
quitar no coração. Quando menos esperarmoS, voltará ao assunto com
argumentos novos. Não julgas que mais convém prevenir subtraindo Alcione às
tentações? Confio bastante nela, na sua conduta irrepreensível, mas imagino
que a medida lhe beneficiará o espírito impressionável.
151
— Vossa opinião é respeitável, padre Damiano, mas, por mim, penso
que Paris fica demasiado longe...
— E, contudo, a mudança para outra região espanhola pouco adiantaria.
Com referência ao caso de meu sobrinho, êle encontraria logo qualquer
pretexto para continuar junto de Alcione, e no que diz com a viagem à América
do Norte, àFrança ou à Inglaterra, sômente nos oferecem facilidades.
— Tendes razão — acentuou a filha de D. Inácio, convicta.
— Pois reflitamos no caso — concluía o velho sacerdote — certos de que,
nas feridas do amor, a distância sempre foi remédio de benéficas reações.
A espôsa de Cirilo passou a considerar a conveniência da iniciativa,
comunicando à filha os seus projetos. Alcione exultou de alegria. O ambiente
acanhado de Ávila feria-lhe o coração; os comentários maliciosos
apoquentavam-na. Todavia, ao revelar-se jubilosa, não se referiu a tais coisas,
alegando apenas a esperançosa perspectiva de melhor saúde para sua mãe e
para a educação de Robbie. Ante a opinião da jovem, Madalena ganhou novo
ânimo. As primeiras providências foram dadas, com grande espanto de padre
Carlos.
Enquanto Damiano comunicava para Paris a deliberação de partir, a filha
de D. Inácio vendia a chácara aos Estigarríbias. Realizou o negócio sem
preocupação e sem mágoas, mesmo porque, seus velhos amigos Dolores e
João de Deus haviam partido para a colônia, com certas vantagens materiais,
de acôrdo com os patrões. Quanto ao mais, Ávila não lhe oferecia motivo a
saudades acerbas. Amparada nas esperanças da filha, estava resolvida a
partir, ainda que tivesse de enfrentar maiores dificuldades na capital francesa.
Enquanto permanecia irresoluta, Alcione incumbira-se de lhe dissipar os
últimos receios. Não lhes faltaria trabalho nas cidades grandes. A costura era
serviço remunerativo em qualquer parte. Além disso, Robbie teria ensejo de
prosseguir mais firmemente na música. Padre Damiano assevera não ser impossível
conseguir serviço pago ao seu violino, em alguma igreja. Nesse caso,
Madalena animava-se, chegando a esperar com visível satisfação o dia da
partida.
Clenaghan, no entanto, mantinha-se em atitude reservada, O tutor lhe
confiara a igreja de São Vicente com severas recomendações. Fizera-lhe sentir
maiormente o quadro de responsabilidades que o cercavam e induzia-o a
manter o espírito de renúncia e sacrifício no coração, qual fogo sagrado da sua
tarefa. Carlos, porém, parecia alheio aos exercícios religiosos. Alcione era sua
preocupação máxima. Inúmeras vêzes buscava-lhe a companhia carinhosa
para aliviar o coração, mas encontrava sempre a expressiva nobreza da sua
alma cristã, adjurando-o a consumir-se inteiramente pelo dever bem cumprido,
em face do Eterno.
Na véspera da separação que o deixaria mergulhado em saudades
angustiosas, buscou-a de maneira a lhe falar intimamente, antes de se
apartarem definitivamente. Depois de longas considerações afetivas com que
traduzia as penas íntimas do coração, assim falou:
— Não sei se poderei suportar para sempre o cativeiro em que me
encontro. Sou um pássaro engaiolado, ansioso de liberdade...
— Somos escravos do Cristo — atalhou ela, resignada.
— Farei o possível por viver em observância às verdades que me
ensinaste; mas, se um dia fôr compelido a modificar meu roteiro, irei buscar-te
na França ou na América, a fim de construirmos o castelo de nossa ventura...
152
Muitíssimo emocionada, Alcione advertiu:
— Espero que nunca interfiras no que Deus organizou, ainda que se
destacassem as razões mais poderosas, porque, acima de tudo, Carlos,
suponho que deveremos aguardar nossa ventura entre as luzes do céu.
O pupilo de Damiano calou-se e a palestra prosseguiu entre juras e
compromissos afetuosos.
No dia seguinte, pela manhã, as últimas despedidas lhe provocaram
lágrimas copiosas. Abraçou o velho tio comovidamente, dirigindo a todos palavras
de reconhecimento e amor, com os votos sinceros de feliz jornada. Alcione
estava sufocada. O dever falava-lhe fortemente ao espírito, mas a separação
doía-lhe nas fibras mais recônditas. No último instante, as lágrimas lhe
saltaram dos olhos. Damiano dava mostras de forte emoção. A senhora Vilamil
permanecia recolhida em si mesma. Apenas Robbie mostrava enorme alegria
pela novidade da excursão e quase maravilhado com as suas roupas novas.
Um velho companheiro de lutas, que se conservava ao lado de Clenaghan,
abraçou os viajantes e, reconhecendo a comoção do antigo sacerdote, falou
sensibilizado:
— Padre Damiano, não nos conformamos com a sua partida, não sômente
pela falta de sua palavra animadora, como também porque não acreditamos
que se esqueça de Ávila, onde residiu e trabalhou longos anos!...
— Sim, meu amigo — respondeu o interpelado sem hesitação —, sem
dúvida que não poderei alijar as confortadoras lembranças da igreja de São Vicente
e das pessoas queridas que aqui ficam; mas, por outro lado, não há
esquecer que em tôda parte servimos ao Senhor.
Cada qual fazia por se mostrar mais esperançado e confiante no futuro.
Novos adeuses, últimos abraços, e o carro espaçoso partiu aos solavancos
e ao trote dos animais pelo caminho empedrado e poeirento.
A viagem em direção ao litoral da Galiza não foi muito fácil; entretanto,
com alguns dias de penosa jornada, a pequena caravana atingia Vigo, de onde
uma embarcação holandesa a conduziria ao pôrto do Havre. Madalena Vilamil
conservava-se melancólica, prêsa de recordações dolorosas da França.
Damiano a todos encorajava formulando vastos projetos de futuro. Não seria
difícil seguir de Paris para a América, mais tarde ou mais cedo, e essa
promessa entretinha e exaltava o otimismo geral. Para distrair Alcione e
Robbie, o velho amigo descrevia a beleza dos sítios mais atraentes da capital
francesa, falando com entusiasmo da suntuosidade dos templos e dos
passeios pitorescos pelas águas do Sena. Madalena ouvia-o atenta,
identificando os sítios de suas venturosas excursões em companhia do marido
e parecia perder-se num abismo insondavel de saudades ansiosas e lindas
recordações.
Afinal, chegaram a Paris, depois de longo tempo e de experimentarem os
maiores incômodos na viagem.
O padre Amâncio Malouzec, da confraria dos Agostinhos e companheiro
dedicado de Damiano, esperava-os solícito. Segundo a noticia enviada de
Ávila, preparara uma casa modesta no burgo de São Marcelo para Madalena e
os seus, reservando um apartamento no presbitério de São Jaques para o
velho amigo de muitos anos. A filha de D. Inácio, da caleça em que se
encontravam em trânsito, reparava com admiração as ruas e praças do seu
conhecimento. Luís 14 reinava ainda e a cidade atestava uma administração
vigilante e cuidadosa. Depois de atravessar o burgo de São Vitor, a viatura
153
penetrava o de São Marcelo e paráva ao lado de modesta casinha. Desceram
todos, enquanto padre Amâncio, muito gentil, oferecia a singela residência. A
filha de D. Inácio experimentava enorme estranheza pela mudança brusca de
ambiente. Procurou, porém, adaptar-se à nova situação. Insistindo pela nota
das despesas, fêz questão de pagar tudo, embora Damiano e o amigo
fizessem o possível por evitar o feito. Sômente mais tarde, o velho sacerdote
retirou-se para São Jaques, quando a organização de todos os projetos
tranqüilizara Madalena e os seus.
Alcione não conseguia dissimular a surprêsa que lhe causava a extensão
de Paris, com as suas expressões de vida intensa. No íntimo, rogava a Deus
lhe fortalecesse o espírito para os trabalhos que lhe estivessem ali reservados,
pronta à execução dos seus deveres.
A primeira necessidade dos Vilamil foi atendida daí a dois dias; padre
Amâncio lhes angariou ótima serva, uma velhinha desamparada e dona de
nobres sentimentos. Luisa captou logo as simpatias de Madalena e da filha. Há
muito que ela se via quase em abandono. As famílias abastadas recusavam os
serviços de gente mais idosa e a sua situação era das mais precárias. Tal
circunstância aproximou-a mais fortemente da nova patroa, constituindo valioso
arrimo para a espôsa de Cirilo, que necessitava incrementar o próprio trabalho
remunerado, para atender aos gastos domésticos.
Prementes dificuldades, no entanto, esperavam a filha de D. Inácio, que a
breve trecho se encontrou em maiores apuros. Nem sequer pudera sair à via
pública, a fim de visitar o túmulo dos pais, como tanto desejava. A mudança de
meio trouxera-lhe a revivescência da enfermidade dos pés, com caráter
agudíssimo. Padre Damiano, por inexplicáveis circunstâncias, também
adoecera em casa do colega, em São Jaques. Alcione, depois de atender aos
encargos caseiros, ia todos os dias de um a outro bairro, grandemente
preocupada com os dois enfermos. Em casa, tomava as lições do irmão
adotivo, buscava praticar o francês em longas conversações com Luisa e
cuidava, com infinitos desvelos, das melhoras da genitora. Esta, muito impressionada
com a evasão dos reduzidos recursos que trouxera de Ávila,
procurava instruir a filhinha para que a obtenção de trabalho em Paris lhe fôsse
facilitada. Em vão, enviou-a em procura de Colete e de outras amizades dos
tempos idos. Madalena tinha a impressão de que fôrças impiedosas haviam
varrido todos os traços parisienses em que concentrava as suas lembranças
cariciosas. Alcione, apesar da fé que lhe fortalecia o coração, permanecia
igualmente preocupada. Era indispensável atender ao tratamento materno,
cuidar dos pagamentos à serva, prover as necessidades de Robbie. Em suas
visitas a Damiano, abstinha-se de lhe confiar as graves inquietações. O velho
sacerdote, contraindo inesperadamente implacável moléstia dos pulmões,
definhava dia a dia. A jovem, porém, criou coragem e solicitou o socorro do
padre Amancio, a fim de lhe angariar algum trabalho. Costurava, bordava,
ensinava música e talvez não fôsse difícil obter colocação nalguma oficina
honesta, ou em casas abastadas. O novo amigo dos Vilamil pôs-se em campo.
Antiga costureira, nas vizinhanças da ponte de São Miguel, autorizou padre
Amàncio a lhe mandar a candidata para lhe conhecer as habilitações.
Alcione apresentou-se. Madame Paulete, que mascarava os péssimos
costumes com atitudes beatas, não gostou do seu porte nobre e da sua candura.
Era demasiado pura e simples para servir-lhe aos propósitos obnóxios.
Após observá-la meticulosamente, a costureira esboçou um gesto
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significativo e sentenciou:
— Lamento bastante, mas não é possível utilizar seus serviços, por
enquanto.
— Por que Madame? — perguntou a filha de Madalena com inflexão de
tristeza, por ver aniquilada a sua esperança.
A interlocutora procurou ocultar os verdadeiros sentimentos, acentuando:
— Sua dificuldade de pronúncia não satisfaz as exigências da freguesia.
— Mas poderei costurar sem inconveniente e, com o tempo, creio poder
satisfazê-la no referente à linguagem.
— Não posso — disse a outra, inflexível —, a clientela de bom gôsto exige
muitos recursos verbais.
Alcione, muito humilde, deixando transparecer grande amargura na voz,
insistiu:
— Madame Paulete, certamente a senhora está com a razão; entretanto,
ousaria apelar para sua bondade. Tenho muita necessidade de trabalho!...
Minha mãe está gravemente enfêrma e, além disso, tôdas as despesas da
casa correm por minha conta... Se a senhora pudesse admitir-me em sua
oficina de costura, pode crer que praticaria uma ação caridosa e justa, com o
nosso eterno reconhecimento. Quem sabe terá outros serviços de que me
possa ocupar, honestamente, em sua casa? Sem conhecimentos em Paris,
estamos em luta com os maiores obstáculos.
Essas palavras, porém, embora denunciassem extrema aflição de uma filha
carinhosa, não produziram efeito. Madame Paulete, com expressão algo
irônica, voltou a dizer:
— Infelizmente não estou em condições de atendê-la; mas, minha menina,
não será só a costura que lhe poderá valer. Há muitas mulheres da sua idade
ganhando a vida em Paris, com menores esforços.
Enquanto Alcione, surpreendida com insinuação tão ingrata, sentia-se
impossibilitada de responder, a interlocutora concluía impiedosamente:
— Com seus modos simples e com a sua juventude não seria difícil.
Alcione sufocou as lágrimas dentro do peito e despediu-se. Atordoada com o
burburinho das ruas, voltou a casa, submersa em graves cogitações. Madame
Paulete fôra cruel, mas cumpria colocá-la em sua posição e esquecê-la.
Compreendia a inutilidade de se entregar a lamentações estéreis. Certo, Deus
não lhe havia concedido as claridades divinas da fé para as horas tranqüilas da
existência. Seu coração detinha o depósito sagrado, a fim de aprender a
nortear-se para o mais alto, ainda que desabassem as mais violentas
tempestades. Êsse pensamento tranqüilizou-a. Não acreditava em Jesus como
Salvador distante, sim como Mestre amado, presente em espírito às lições dos
discípulos entre os sofrimentos e experiências do mundo. Sentia-se em
momentos de testemunho. O Senhor não a esqueceria. Da sua inesgotável
bondade viriam recursos inesperados. Prosseguiria esforçando-se e estava
certa de que a mão de Jesus viria em seu socorro.
Engolfada em profundas meditações, entrou em casa, morta de cansaço.
Tal como sucedera um dia a Madalena, Alcione também tivera necessidade de
tranqüilizar o espírito materno com palavras que disfarçassem as realidades
amargas.
De olhos esperançados, a espôsa de Cirilo interrogou ansiosa:
— E o trabalho?
Esboçando um sorriso de paz espiritual, a jovem acentuou:
155
— A oficina me admitirá por êstes dias.
A senhora Vilamil deu um suspiro de alívio e murmurou:
— Graças a Deus! Que me dizes da Madame Paulete? É pessoa
respeitável?
— Pouco conversamos, mas, ainda assim, me pareceu pessoa muito
estimável e digna.
— Ainda bem — exclamou a mãezinha, despreocupando-se. — Meu maior
receio provém de conhecer alguma coisa dos abusos parisienses. Nem tôdas
as costureiras são criaturas dedicadas ao lar.
— Pode ficar tranqüila, mamãe — declarou a jovem por desfazer os
temores maternos —; em quaisquer circunstâncias não esquecerei seus bons
exemplos.
Madalena Vilamil envolveu-a num olhar de carinho imenso, no qual
transparecia a mágoa de não poder locomover-se e trabalhar. Mais comovida,
falou depois de longa pausa:
— Conheço de experiência própria o que significa pleitear umas tantas
coisas nesta Paris. Antes de nasceres, minha mãe esteve de cama longo tempo.
As necessidades tornavam-se cada vez mais prementes e tive de sair à
cata de recursos, com a diferença que eu rogava favores e tu pedes trabalho.
Em voz pausada, entrou a relatar velhas reminiscências, pintando ao vivo o
quadro das falsas amigas de D. Margarida, quando lhe atiraram era rosto
certas observações ingratas e implacáveis.
Quando terminou, chorava copiosamente, mas Alcione tomou-lhe o rosto
entre as mãos e beijou-a com enternecimento, dizendo-lhe:
— Esqueçamos, mãezinha! Por que recordar coisas tristes? Deus não
esquece os seus filhos. Certo que não nos faltará recurso e amparo!... Breve
estarei trabalhando, com vencimentos que nos satisfaçam as necessidades.
Além disso, padre Damiano, logo que melhore, arranjará serviço musical para
Robbie, na igreja. Depois a senhora melhorará e conseguiremos bordados para
fazer em casa. Não é verdade que temos um mundo de boas esperanças à
nossa frente?
A enfêrma pareceu adquirir nova expressão de bom ânimo.
— Teu otimismo é contagioso — murmurou mais tranqüila —, no entanto,
com referência ao padre Damiano, tenho triste nova a dar-te, O reverendo
Amâncio esteve aqui, na tua ausência, para certificar-nos do seu estado. O
médico já perdeu as esperanças, pois, afirma que o velho amigo está tísico e
terá poucos meses de vida.
A moça ouvia os informes sem dissimular a dor que lhe causavam. A
genitora, porém, prosseguia em tom pesaroso:
— Um pormenor muito grave da situação, segundo informa padre
Amâncio, é que o nosso ben-feitor não dispõe presentemente de qualquer recurso.
Notei-o muito preocupado com a atual situação do virtuoso sacerdote, que,
segundo alega, tem necessidade premente de efetuar certos gastos, entre os
quais, por exemplo, os que decorrem da admissão de um servo, além da
aquisição de vários utensílios de uso privado, já que terá de isolar-se, lá
mesmo no presbitério, por ser portador de mal contagioso.
— Então o padre Malouzec não pode auxiliá-lo nisso? — perguntou Alcione
compungida e aflita.
— Notei-o pouco disposto a fazê-lo.
156
— E que lhe disse a senhora?
— Fiz-lhe ver que nossas necessidades também eram duras, nestes seis
meses sem trabalho, mas, ainda assim, que esta casinha está à disposição do
enfêrmo. Minha declaração desconcertou-lhe um tanto o espírito prático;
todavia, tenho preocupações muito justas.
— Providenciaremos para obter o dinheiro —anunciou a moça, resoluta.
— Como? — perguntou Madalena, assaz impressionada — se precisamos
no mínimo de duzentos a trezentos francos para atender às despesas de instalação
do doente em pequeno pavilhão separado.
— Estou certa de que não nos faltará a soma precisa — confirmou a jovem.
Amanhã cedo irei encorajá-lo e tratar do assunto.
— Com os nossos sofrimentos atuais, acrescentou Madalena, creio que fica
liquidado o projeto de viagem à América.
— Não diga tal, mamãe! Nas noites mais escuras a esperança é um raio
mais forte.
A palestra continuou entre motivos de mútuas consolações.
Na manhã seguinte, apesar de muito preocupada com o insucesso da véspera,
a jovem chegava ao quarto do enfêrmo, antes das nove horas. Não se avistava
com o amigo havia três dias. Encontrou-o muito desfigurado, excessivamente
pálido, olhos encovados. Empurrou de mansinho a porta entreaberta, a fim de
surpreendê-lo. Reparou-lhe na fisionomia cansada e deteve-se na observação
detalhada de suas características. Com efeito, piorara muito. As mãos, a
reterem volumoso livro, cujas páginas lia atentamente, pareciam de cêra. A respiração
revelava-se algo acelerada. Alcione reprimiu a própria amargura,
dominou a emoção e exclamou sorridente:
— Lendo a Bíblia?
Damiano fêz um gesto de grande alegria, saudando-a com ternura. Ela o
abraçou e, arrebatando o livro, procurou ver que meditações o preocupavam no
momento. Eram as exortações do Eclesiastes:
— “Tudo tem o seu tempo determinado e há tempo para todo propósito
debaixo do Céu; há tempo de nascer e tempo de morrer.” (1)
— Discordo — murmurou solícita — que o senhor, adoentado como se
encontra, esteja a ler estas coisas tristes.
O sacerdote esboçou um sorriso algo desalentado, informando:
— À tua mãe, Alcione, talvez não tivesse coragem de falar com esta
franqueza sôbre o meu caso. Ela é demasiado sensível e já tem sofrido muito.
Não seria razoável aumentar-lhe as amarguras. Eis por que preciso desabafar
contigo, não obstante a tua mocidade. Já sei que êste meu mal é incurável e
não posso deixar de concluir que, para mim, vem perto a hora da partida.
Estejamos, pois, fortalecidos em Jesus, porque, como nos diz a Bíblia, a carne
é também um vento que passa e nós somos filhos da eternidade!
A moça escutava-o comovida, olhos marejados de pranto. Desde a infância
habituara-se a encontrar naquela afeição os melhores estímulos de coragem
(1) Eclesiastes, 3:1-2. — Nota de Emmanuel.
para as lutas da vida. Estimava-o, qual se fôra seu pai. Instintivamente,
lembrou-se do tempo das vigorosas pregações evangélicas em Ávila. Ninguém
diria que aquêle homem robusto, insinuante e sugestivo pela sua palavra
franca, chegaria àquele estado de miséria orgânica. Seus olhos lúcidos
157
denunciavam o desassombro e a serenidade de todos os dias, mas a
expressão geral evidenciava enorme astenia. Quis responder, consolá-lo com
palavras animadoras, mas nada lhe ocorreu. Forte constrição da garganta lhe
embargava a voz. A franqueza do velho sacerdote desarmara-lhe o espírito
carinhoso. Impossível ensaiar palavras que iludissem a gravidade da situação,
quando o próprio Damiano se sentia tranqüilo e conformado. Percebendo-lhe o
enleio, o religioso continuou:
— Não falemos de mim, Alcione. Conta-me antes o resultado da diligência
de ontem. Conseguiste trabalho?
A pobre menina fêz um gesto triste e sentiu-se no dever de falar
francamente ao grande amigo da sua infância.
Quando terminou a exposição amarga, o sacerdote comentou:
— Imagino como terás sofrido nesse contato direto com a espurcícia
humana; entretanto, não sofras por isso. Agradece a Deus o te haver revelado
Madame Paulete, tal qual é, antes de assumires qualquer compromisso, pois
quando nos comprometemos com o mal, ainda que inocentemente, aliciamos
grandes dificuldades por nos libertarmos dos seus odiosos laços. No teu caso,
pois, devemos estimar a esmola de uma santa lição. É que, às vêzes, naquilo
que denominamos maldade e ingratidão do mundo, pode existir um socorro
divino em nossa própria defesa.
A jovem enxugou as lágrimas e sorriu concordando.
— O trabalho honesto não falta — prosseguiu o religioso, paternalmente —;
temos outros amigos em Paris. Espero a visita de um colega a quem pedirei se
interesse por ti. O padre Guilherme é um companheiro de lutas que conheceu
Carlos e sua mãe, ainda na Irlanda. Estou certo de que nos auxiliará.
A jovem, notando-lhe a preocupação sincera, procurou esquivar-se ao
assunto que lhe dizia respeito. E vendo-lhe os pés descalços, perguntou:
— Onde está o agasalho de lã? O senhor não pode ficar assim...
Ele sorriu e informou:
— Guardei-o na mala.
— Por quê? — insistiu surpreendida.
— Creio que, para a semana, me recolherei ao pavilhão dos indigentes, na
Misericórdia, ou na casa dos pobres de São Ladres.
— Não pode ser — exclamou a filha de Cirilo, contristada —, não podemos
concordar com o seu recolhimento a casas religiosas, como indigente. Nós
ainda aqui estamos...
Assim falando, a menina Vilamil tinha o aspecto mortificado de uma filha
angustiada.
— Que tem isso, Alcione? — tornou o religioso, serenamente — não devo
sobrecarregar teu coração, que enfrenta agora tantas lutas em silêncio! Além
disso, não será útil o meu internamento nas instituições piedosas? Atualmente
não me poderei ocupar dos ofícios eclesiásticos, mas lá, entre os necessitados,
talvez encontre algum serviço nas prédicas evangélicas aos mais desditosos.
A resignação do velho amigo provocava-lhe pranto copioso.
— O catre da indigência — continuou Damiano — deve proporcionar
meditações sadias. E não será isso um acréscimo de misericórdia? Basta
lembrar que o Mestre não o teve. Seu derradeiro pouso foi a cruz; seu último
caldo um pouco de vinagre; sua última lembrança do mundo a coroa de
espinhos!...
Alcione esboçou uma atitude de profunda compreensão e disse:
158
— Não rejeito as lições de Jesus e rogo à sua infinita bondade nos proteja
o coração para os testemunhos necessários, mas creio que o Mestre atenderá
minhas súplicas e entenderá meus rogos filiais!... Diga-me se lhe não falta
dinheiro para as despesas imediatas.
E embora convicta de não encontrar recursos com a genitora, asseverou,
confiando em Jesus:
— Pode crer que, não obstante as dificuldades do momento, ainda temos
recursos suficientes para cuidar das suas melhoras.
Damiano parecia acanhado, em vista da sua carência absoluta de meios,
mas, esforçando-se por confessar a verdade, acabou murmurando:
— De fato, meus recursos estão esgotados com as despesas que fui
obrigado a fazer, aqui em São Jaques, mas não nos preocupemos com o
dinheiro, filha...
— Não, não é o dinheiro que me preocupa, e sim as suas necessidades...
Não concordo com a sua transferência para a Misericórdia. Se não puder ficar
aqui, ficará em nossa casa.
E como o sacerdote experimentasse certa dificuldade para redargüir,
Alcione continuou:
— Perdoe-me, se intervenho ousadamente em tal assunto, mas o que
reclamo tem prerrogativas de direito — o direito da amizade. Sempre o considerei
um pai. Diga-me: quanto pede o reverendo Amâncio pelas suas novas
acomodações?
De olhos brilhantes no testemunho de humildade daquela hora de extremas
provações, Damiano respondeu:
— Duzentos francos para a aquisição de utensílios e pagamentos iniciais a
um serviçal.
—Ora essa! — disse a generosa menina revelando despreocupação — nunca
mais me fale em se reunir aos indigentes por tão infima quantia! Queira
assumir o compromisso, porque depois de amanhã trarei o dinheiro. Temos
maior quantia lá em casa e não nos fará falta de maneira alguma.
O velho amigo dirigiu-lhe um olhar de reconhecimento.
Ainda trocaram idéias e consolações por algum tempo, ficando ela de
voltar dali a dois dias, e o velho sacerdote falou da esperança que tinha na
próxima visita do padre Guilherme, que, por certo, não lhes faltaria com
prestimosa cooperação.
Alcione despediu-se, mostrando-se confortada, mas tão logo alcançou a
rua, sentiu-se prêsa de extrema preocupação. Onde conseguir duzentos
francos para socorrer o amigo doente? Debalde excogitava meios de satisfazer
a promessa. Os vizinhos eram gente paupérrima. Obter qualquer adiantamento
em oficinas de trabalho, era impossível, porqüanto não alcançara nem mesmo
um trabalho certo. De alma opressa, lembrava que não poderia confiar o
assunto à genitora, fazendo-a sofrer mais que ela própria. Entretanto, era indispensável
conseguir o dinheiro. Andava depressa e, contudo, concentrada em
aflitiva meditação. Começou por pedir fervorosamente a Jesus lhe inspirasse
um meio lícito. Já próximo de casa, notou que alguém cantava à porta de uma
velha igreja do bairro de São Marcelo, para ganhar a vida. Era um cego.
Aproximou-se e deu-lhe alguma coisa do pouco que tinha consigo.
Imediatamente, nasceram-lhe novas idéias. Não seria viável um concêrto com
o concurso de Robbie, num local bem concorrido? Poderia cantar ao som do
violino do irmão adotivo. Talvez conseguisse dessarte a quantia necessária
159
para socorrer de pronto o padre Damiano. Essa perspectiva alegrou-a. Entrou
em casa tão satisfeita que a genitora perguntou interessada:
— Como vai o padre Damiano? Pelo que leio em teu rosto, êle não está
assim tão mal.
— Seu estado ainda é grave, mas, achei-o calmo e otimista.
A senhora fêz um gesto de admiração e acrescentou:
— Que há, Alcione? Vejo-te muito mais animada e satisfeita...
— É que já fui avisada que amanhã poderei comparecer ao serviço.
— Graças a Deus! Bendita a hora em que aprendeste a costura!...
Em seguida, Alcione chamou Robbie ao pequeno quintal, para cientificá-lo
do plano.
— Um concêrto? — disse o rapazote impressionado.
— Sim, mas é preciso guardar segrêdo. Mamãe sofreria muito se viesse a
saber. Se não arranjarmos o dinheiro, padre Damiano irá parar na Misericórdia
e talvez nunca mais o vejamos. Cantaremos só amanhã, porque depois é
possível que eu arranje trabalho para nós.
O pequeno arregalou os olhos estrábicos e concordou:
— Então vamos.
E passaram logo a trocar idéias e conchavar no tentame para o dia
seguinte. Isto feito, entraram em casa de semblante alegre. Justificando o
ensaio, Robbie pediu para tocar alguma coisa. Não obstante a hora imprópria,
Madalena concordou e Alcione disse que ia cantar para distraí-la. Ambos,
tomando posição, recordaram velhas melodias castelhanas, canções
aragonesas, versos populares da Andaluzia. Apesar do sofrimento dos pés, a
senhora Vilamil sorria encantada, murmurando:
— Nossa casa hoje está muito alegre! Que dia adorável!... Foi pena ter
deixado em Ávila o meu velho cravo...
Robbie entusiasmava-se ao lhe ouvir as expansões e exibia arcadas mais
difíceis e mais seguras. Luisa ria e chorava de contentamento e emoção. A
jovem cantou quanto lhe veio à lembrança. Repetiu as raras canções francesas
que conseguira aprender e recitou numerosas poesias de La Fontaine.
E assim terminou o dia entre cariciosas alegrias domésticas.
Na manhã seguinte, Alcione beijou a mãe ao despedir-se e preveniu:
— Logo, voltarei para a refeição, e ao tornar ao trabalho quero que me
concedas a companhia de Robbie, pois creio que tenho de regressar mais
tarde, à noite.
Madalena disse que sim e abençoou-a com as suas blandicias de mãe.
Alcione andou muitos quilômetros de ruas e praças, estudando o local
adequado à iniciativa. Algo cansada, parou junto ao templo de Nossa Senhora
e entrou. Descansou longamente em preces fervorosas, lembrando que não
haveria melhor local para o empreendimento que o adro daquela casa
consagrada à Mãe Santíssima. Não vacilou. Voltaria ao bairro de São Marcelo
para trazer o irmão adotivo. Começariam o concêrto ao cair da tarde,
confiantes no interêsse popular.
Entrou em casa muito esfogueada de sol, tomou a refeição e saiu com o
rapaz. Tiveram o maior cuidado no retirar o instrumento, para não serem
percebidos por Madalena e pela criada.
Emocionada, naquela conjuntura de angariar o dinheiro indispensável ao
velho amigo, Alcione
penetrou novamente na igreja e orou, implorando o socorro divino.
160
As brisas suaves do crepúsculo corriam mansamente quando os dois
artistas improvisados tomaram posição e preludiaram as primeiras notas,
justamente quando a multidão em massa afluia ao templo. Numerosos carros
iam e vinham. No firmamento escampo de nuvens, Vésper cintilava. Alcione
começou a cantar, mas, com tanta harmonia e sentimento, que dir-se-ia um
anjo baixado à Terra para transmitir aos homens as suaves belezas do
crepúsculo. Em breves instantes, ranseuntes, clérigos, fidalgos e gente do
povo formavam em tôrno compacta assistência. Cada canção era aplaudida
frenêticamente. A cantora inspirava profunda simpatia apesar da malícia de
alguns cavalheiros presentes. E assim transcorreu uma hora de franco êxito.
Dois padres generosos mandaram acender tochas, para que o concêrto se
prolongasse até mais tarde. Alcione cantava sempre. Sentia-se corar de
vergonha quando as dádivas lhe caíam na bôlsa, mas vinham-lhe à mente o
padre Damiano e a mãezinha, e experimentava enorme consolação, julgandose
quase feliz. E enquanto agradecia as palmas com ademanes graciosos,
Robbie arrancava cristalinos acordes do seu violino. Todos se impressionavam
com a beleza da jovem, a contrastar os traços grosseiros do pequeno violinista.
Houve mesmo quem lhe sussurrasse no ouvido:
— Parece um morcêgo ao lado de uma cotovia!...
Compreendeu o sentido da frase, mas interpelada pelo irmão adotivo, que
não entendia muito bem o francês, procurou confortá-lo, dizendo:
— O auditório está entusiasmado e calculo que já temos quase cem
francos. Não desanimemos.
— Estou bem fatigado — alegou o rapaz...
— Lembra-te de mamãe e do padre Damiano...
O menino pareceu refletir e fazia vibrar o instrumento com maior
entusiasmo.
Nesse ínterim, surgiu poucos metros distante uma carruagem de família rica.
No seu sotaque espanhol, Alcione cantava, no momento, velhas modinhas
francesas. Impressionados, talvez, com o quadro inédito, os dois passageiros
da viatura deram ordem de parar. Um cavalheiro prematuramente envelhecido,
aparentando mais de cinqüenta anos sem os ter, desceu do coche dando o
braço a uma senhora muito magra e abatida. Dominado por estranha emoção,
encaminhou-se resoluto para o grupo, como que forçando a companheira a
seguir-lhe o passo lesto e resoluto. A certa distância, podiam ver a cantora, que
parecia coroada pela luz das tochas resplandecentes.
— É o retrato de Madalena! — disse êle, empalidecendo.
— Vamo-nos embora — murmurou a companheira num ensaio de recuo —
, deve ser alguma vulgar cantora de rua.
— Não, não — respondeu o desconhecido em voz muito firme, como a
indiciar que viviam em constante desacôrdo —, se queres, vai-te e manda-me o
carro depois.
— Isso não — revidou visivelmente enfadada, deixando-se ficar junto dêle,
que se mostrava de mais a mais enlevado e atento à cantora, cuja voz
melodiosa enchia o silêncio da noite e lhe falava misteriosamente ao coração.
Quando ela cantou uma velha música espanhola, êle não se conteve,
levou a mão ao peito e disse à companheira:
— Lembras-te do Carrousel de junho de 1662? Não foi esta uma das
melodias de Madalena?
A senhora, apesar de muito contrariada, redargüiu:
161
— Sem dúvida... Recordo-me perfeitamente do baile de Madame de
Choisy...
Ele aproximou-se mais. Estava tão embevecido que se fazia notado dos
circunstantes, a despeito do carrancudo semblante da companheira. O
desconhecido, porém, parecia não dar por isso. Entregue à contemplação da
cantora, envolvera-se no suave magnetismo da sua personalidade, sem se dar
conta de tudo mais.
No momento em que Alcione terminava uma doce cantiga de Castela-a-
Velha, êle aproximou-se dos dois artistas e perguntou delicadamente:
— A Senhorita que conhece tantas músicas da península, conhecerá uma
velha melodia espanhola, chamada “A Calhandra Aragonesa”? —
perfeitamente, e se faz gôsto posso cantá-la para o senhor.
— Terei imenso prazer.
Alcione advertiu ao irmão adotivo como devia ensaiar as primeiras notas.
— Não me recordo bem — acentuou o violinista.
— Ora, Robbie, como é isso? E’ uma daquelas primeiras melodias que
mamãe te ensinou.
O menino fêz grande esfôrço mental e concluiu:
— Já sei...
Algumas arcadas harmoniosas assinalaram o intróito de inefável beleza e,
daí a momentos, a voz límpida e aveludada da jovem se fazia ouvir, em
religioso silêncio da assembléia numerosa. Obedecendo, talvez, a secretos
impulsos do coração, Alcione imprimia novo encantamento espiritual em cada
acorde. Dir-se-ia o nenioso gorjeio de um pássaro abandonado, na vastidão da
noite.
A música, muito delicada, realçava antiga lenda que traduzia o lirismo
popular:
No manto da noite amiga,
Ouve esta velha cantiga,
Guarda no peito a canção
Da calhandra do caminho,
Que errava sem ter um ninho
Na verdura de Aragão.
A pobrezinha vivia
Numa perene agonia,
Em dolorosa mudez;
Era a Imagem da saUdade,
Nos andrajos da orfandade.
No luto da viuvez.
Mas, em certa primavera,
A pobre, que andava à espera,
Reparou, findo o arrebol,
Que chegava de mansinho.
Olhos cheios de carinho.
Seu amado — o rouxinol.
Desde essa hora divina,
162
A calhandra pequenina,
Que errava de déu em déu,
Enfeitou-se na vitória,
Encheu-se de vida e glória,
Cantando no azul do céu.
Brincava na paz da fonte,
Ia ao longe, no horizonte,
Sob o sol, sob o luar...
Fôsse noite, fôsse dia,
Transbordava de alegria,
Nas penugens do seu lar!
Mas, um dia, o companheiro
Deu-lhe o olhar derradeiro
Da bôlsa de um caçador!...
A calhandra infortunada
Tombou sem vida na estrada,
Na angústia do seu amor.
No manto da noite amiga,
Ouve esta velha cantiga,
Guarda no peito a canção
Da calhandra do caminho,
Que errava, sem ter um ninho,
Na verdura de Aragão.
Quando terminou, o cavalheiro levou o lenço ao rosto, como se fôra
enxugar o suor, mas, na verdade, disfarçando as lágrimas que lhe brotavam
dos olhos. Depois de consultar o bôlso, retirou um pacote de moedas e
entregou-o à cantora, nestes têrmos:
— Tome lá, senhorita, esta lembrança lhe pertence. Sua voz me deu
emoções que procuro, em vão, há vinte anos.
E, enquanto Alcione hesitava diante de uma espórtula tão vultosa, o
desconhecido insistia:
— Isto é nada, comparado ao que lhe fico a dever.
A companheira bem que o fisgava com olhares de censura, mas êle
permanecia alheio e indiferente às suas atitudes. A cantora, porém, mostravase
sumamente reconhecida.
— Deus o recompense, senhor!
Robbie também lhe mandou um olhar de enorme satisfação, através do
qual transparecia o desejo de encerrar o ato. E, como se estivesse apenas
esperando o cavalheiro desconhecido para terminar o trabalho da noite, a filha
de Madalena agradeceu a todos, comovidamente, e retirou-se com humildade,
amparando o irmão adotivo que se mostrava exausto pelo esfôrço despendido.
O casal, por sua vez, retomou o carro, sob forte impressão.
— Quanto deste à cantora? — perguntou a mulher abruptamente.
— Trezentos francos.
— Ainda havemos de acabar indigentes, graças ao teu sentimentalismo —
exprobrou, amuada.
163
— Se lhe houvesse dado três mil escudos, nem assim pagaria a terna
emoção que me despertou nalma saudosa...
E recaíram em penoso silêncio, enquanto a carruagem rompia a escuridão
da noite.
Alcione e Robbie regressavam ao lar, tomados de imensa alegria. Quando
se viram longe do adro de Nossa Senhora, o pequeno comentou:
— É bem duro pedir, não achas, Alcione?
— Não é tanto assim — respondeu-lhe resignada. A necessidade, Robbie,
às vêzes nos ensina a afabilidade e a doçura com o próximo. Nunca reparaste
que as crianças muito independentes costumam ser caprichosas e ásperas?
Assim também, já crescidos, é útil que venhamos a precisar do concurso de
outrem, por tornarmo-nos mais carinhosos, mais sensíveis ao afeto fraternal...
— Isso é verdade — concordou o pequeno —, são raros os meninos
brancos que me tratam bem.
— É porque ainda não sabem o que é a vida. Se um dia a necessidade
lhes bater à porta, compreenderão, talvez imediatamente, que somos todos
irmãos. Suponho que Deus, sendo tão bom, facultou a pobreza e a doença ao
mundo para que aprendêssemos a sua divina lei de fraternidade e auxílio
mútuo.
Robbie, muito admirado, ponderou:
— Desejava sentir essas coisas conformado, assim como te vejo, mas a
verdade é que, quando me humilham, sofro muito. Faço enorme esfôrço para
não reagir com más palavras e confesso que, por vêzes, se não fôsse a mão
doente, agrediria alguns meninos.
— Não agasalhes êsses pensamentos, procura fazer exercícios mentais de
tolerância. Reflete, contigo mesmo, como tratarias as crianças negras se
fôsses branco, imagina qual seria tua atitude com os doentes, se fôsses
completamente são.
O pequeno violinista meditou longamente e respondeu muito sério:
— Tens razão.
— Sem dúvida, isto que aqui te digo requer muito esfôrço, porque só o
pecado oferece portas largas ao nosso espírito. A virtude é mais difícil.
O menino pareceu refletir algum tempo e perguntou, mudando o rumo do
diálogo:
— Quem será aquêle homem tão bom que nos deu tanto dinheiro?
Alcione fêz um gesto significativo e respondeu:
— Eu também estou impressionada. Deve ser algum enviado de Deus.
— Mas parecia tão triste...
— Também notei isso. Que Jesus o abençoe pelo auxílio que nos deu.
Amanhã levarei ao padre Damiano o pacote que parece conter mais de duzentos
francos, e com o restante vou pagar à Luisa o que lhe devemos e
chamar um médico para tratamento mais sério da saúde de mamãe...
Mal havia terminado as explicações, o pequeno tropeçou, caíndo ao solo,
desamparadamente. Ante a fôrça moral que a irmã adotiva exercia sôbre êle,
levantou-se com esfôrço, acrescentando:
— Não te incomodes, não foi nada. Cai porque precisei resguardar o
violino...
A jovem, contudo, inclinou-se comovida.
— Como vês, Robbie — disse intencionalmente —, não apenas pediste
nesta noite. Trabalhaste muito. Estás cansado... Vamos procurar um carro que
164
nos leve a São Marcelo. É um luxo que hoje poderemos pagar.
Ele concordou de bom grado e não tardaram muito a reentrar em casa,
onde Madalena já se mostrava inquieta.
No dia seguinte, em vez de sair para o trabalho, conforme dizia à genitora,
Alcione dirigiu-se a São Jaques do Passo Alto, com o socorro destinado ao
velho sacerdote.
Damiano contou o dinheiro com atenção e advertiu:
— Trezentos francos, minha filha? Sei que Madalena luta com enormes
dificuldades. Onde guardavas esta quantia?
Enfrentando aquêle olhar penetrante, cheio de preocupações afetuosas,
Alcione deu-se por vencida e confessou o feito da véspera. Sem dinheiro e sem
relações, resolvera dar um concêrto público com Robbie, no adro da igreja de
Nossa Senhora. O rendimento fôra muito além da expectativa.
O enfermo abraçou-a, comovidíssimo, cheio de gratidão pelo sacrifício.
Depois de contar os episódios da feliz aventura e dar as impressões do
seu contato com a massa popular, Damiano lhe ponderou:
— Sem dúvida Jesus te protegeu nessa aventura singular,
compadecendo-se das nossas necessidades. Entretanto, minha filha, penso
que não deves reincidir nessas exibições. Ao lado das pessoas educadas, há
sempre muitos exploradores e numerosos vadios. Temo por tua mocidade e
pela inocência de Robbie!...
E enquanto ela concordava, pensativa, o eclesiástico prosseguia
explicando:
— Tenho o pressentimento de que encontrarás, agora, uma ocupação
muito nobre, com ótima remuneração.
— Será uma ditosa surprêsa! — exclamou a moça com infinita alegria
transbordante dos olhos.
— Padre Guilherme aqui esteve ontem por duas vêzes. De manhã, falei-lhe
a teu respeito e prontificou-se a tomar logo as primeiras providências. À noite,
voltou com a notícia auspiciosa. Uma família sua conhecida precisa dos
serviços de uma jovem educada, de irrepreensível conduta. Esclareceu que a
remuneração é das mais condignas. Trata-se de um casal que há três anos
chegou da América do Norte em busca de saúde para a filhinha única, que se
encontra doente. O chefe da família é um homem abastado, que, além de proprietário
em Paris, representa vasta zona comercial de fumo da colônia, em
ligação com o comércio europeu. A dona da casa, de conformidade com as
informações do padre Guilherme, é católica praticante e rigorosa no culto. Tem
uma filhinha que a impressiona, em extremo, por isso que, da mais tenra idade,
parece fugir à ternura maternal e, presentemente, com quase treze anos, vive
prêsa de grande nervosismo e estranhas preocupações. Os pais deliberaram
tomar uma governanta que lhe seja enfermeira e educadora, ao mesmo tempo.
E, por coincidência, di-lo ainda o Guilherme, trata-se de gente irlandesa, que
passou longos anos na América.
Alcione alegrou-se. Assim entretidos, formularam vastos planos. Ao
despedir-se com a idéia de chamar um médico para a genitora, Damiano lhe
disse:
— Ficamos então combinados. De hoje a três dias, Guilherme te
apresentará nessa casa de sua confiança e que fica, creio, nas proximidades
de São Landry, na Cité. Farás ver à Madalena as vantagens do cargo. Quem
sabe terá soado o minuto da nossa completa tranqüilidade? Não estará aí,
165
talvez, o ensejo para tua mãe realizar o velho sonho de uma viagem ao
Connecticut? Por mim, morrerei mais sossegado se puder partir com esta
esperança.
A jovem sorriu e observou, resignada:
— O senhor tem razão. Tudo isso poderá acontecer.
Muito animada, a filha de Cirilo Davenport chegou a casa, onde não teve
dificuldade em convencer a genitora de quanto lhe dissera o velho sacerdote.
Madalena Vilamil concordou. O cargo de governanta e educadora seria mais
conveniente. A costura, em contato com tanta gente desconhecida, não era um
penhor de tranqüilidade. A pobre senhora acabou por sentir enorme satisfação,
e, quando soube que se tratava de família ligada àAmérica do Norte, não
ocultou a velha esperança de conhecer o Novo Mundo.
Nesse dia, à tarde, o Dr. Luciano Thierry, procurado pela jovem Vilamil, por
indicação dos vizinhos, visitou a enfêrma, submetendo-a a rigoroso exame.
Enquanto permanecia a seu lado, o médico não poupou prognósticos otimistas;
mas, ao retirar-se, chamou Alcione em particular e disse:
— Menina, o caso de sua mãe é muito mais complexo do que se pode
imaginar. Claro que não pouparei todos os recursos ao meu alcance, mas
penso que ela dificilmente se levantará da cama.
— A moléstia é tão grave assim? — inquiriu a moça, evidenciando aflição.
— O reumatismo assumiu caráter muito Sério. Os pés e joelhos me
parecem definitivamente inutilizados, condenados a inanição. Mandarei algumas
pomadas para fomentações e digo-lhe que sua mamãe ainda poderá viver
alguns anos. Da paralisia, porém, só Deus poderá libertá-la.
A filha de Madalena agradeceu, naturalmente acabrunhada, mas procurando
reforçar as energias íntimas. Jesus, que sempre lhes enviava recursos nos
grandes momentos da vida, não as deixaria sem amparo.
No dia combinado, lá se foi com o padre Guilherme, para estrear o novo
emprêgo. E experimentava enorme confôrto em saber que teria, doravante, o
pão assegurado para si e para os seus, mercê de atividade honesta e digna.
Instruiu Luisa na aplicação dos remédios à doente, fêz recomendações a
Robbie e beijou Madalena, prometendo regressar à noite, conforme ficara
previsto e combinado.
Passava de meio dia, quando o padre Guilherme procurou Damiano para
exprimir-lhe o seu reconhecimento.
— O Sr. Davenport ficou radiante: a senhora Susana não estava em casa
no momento, mas o chefe da família, bem como o velho Jaques, ficaram
ôtimamente impressionados com a sua pupila. Deixei-a, portanto, num
ambiente de franca simpatia.
Ouvindo aquêles nomes, Damiano manifestou a mais viva curiosidade.
Efetivamente, êle os ouvia amiúde, repetidos nas conversações de Madalena.
Cercando-se de grande prudência, perguntou:
— De que região da América procede essa família?
— Do Connecticut.
O eclesiástico experimentou o primeiro abalo íntimo; todavia, buscou
controlar-se e continuou:
— O nome Davenport não me é estranho. Se me não engano já ouvi um
colega referir-se a um tal Samuel, que, há muitos anos, residiu em Belfast.
— Isso mesmo — confirmou o outro, satisfeito —, trata-se do pai
166
dêste Cirilo Davenport, rico negociante de fumo, de cuja residência venho
neste instante. Há vinte anos, aproximadamente, a família que se empobrecera
com a perseguição dos inglêses, na Irlanda do Norte, retirou-se para a
América, onde adquiriu sólida fortuna. Na mocidade, porém, o Sr. Davenport
trabalhou, modestamente, aqui em Paris...
Ah! — disse Damiano, quase aterrado. Intensa palidez inundara-lhe o
semblante vincado de rugas.
— O Samuel a que se refere — prosseguia Guilherme, loquaz —, pelo que
infiro das missas celebradas em sua intenção, deve ter falecido há uns dez
anos.
Justificando a expressão fisionômica, o velho sacerdote de Avila observou:
— Este mal do peito sempre me causa torturas momentâneas
E levantou-se para tomar um copo d’água.
- Escuta, Guilherme — continuou a dizer, pausadamente —, o casal
Davenport tem uma vida feliz? Naturalmente que êstes assuntos me pre-
OCUpam, dado que a minha pupila vai agora conviver com êles.
Assim se manifestando, visava obter por meios indiretos qualquer
informação sôbre o passado conjugal de Cirilo. Sem cuidar de que versava
assunto dehcadíssimo, o interpelado acentuou:
— O Sr. Davenport é casado em segundas núpcias. A primeira espôsa, ao
que estou informado, era espanhola, de Granada. Chamava-se Madalena
Vilamil e morreu no surto varjólico de 63.
Damiano não sabia como dissimular a comoção. Debalde procurava um
meio de parecer despreocupado. O amigo, porém, tudo atribuía ao seu precário
estado de saúde.
— A falecida foi sepultada no cemitério dos Inocentes. Já lhe visitei o
túmulo em companhia dos senhores Jaques e Cirilo.
— Quem é êsse Sr. Jaques? — inquiriu Damiano, apesar da emoção.
— É sogro do Sr. Davenport e, ao mesmo tempo, seu tio, pois o
negociante de fumo é casado com uma prima, em segundas núpcias. Aliás, o
bom velhinho que se encontra hoje beirando o sepulcro, pelos muitos achaques
da senectude, foi por muitos anos professor aqui na França.
— Em Paris?
— Não, em Blois.
Damiano estava satisfeito, não poderia ter mais dúvidas.
— Deus abençoe Alcione para que saiba servir nessa casa com amor
cristão — concluiu serena-mente —, não desejo outra coisa.
Muito hàbilmente desviou depois a palestra noutros rumos, de maneira a
não se trair pela intensa emoção. Mas, quando Guilherme se retirou,
reiterando-lhe agradecimentos, entregou-se a profunda e dolorosa meditação.
Acabava de palpar o enigma sem poder atinar com a chave. Naturalmente, o
drama sinistro que adivinhava, por trás da situação, fôra urdido por alguma
inteligência perversa. Recordava as mínimas revelações e confidências da
senhora Vilamil, nas longas conversações de Ávila e não podia duvidar da
inveracidade dos acontecimentos que Madalena aceitara como verdade
inconcussa. Sempre lhe parecera estranho o fato de haver Cirilo Davenport
desaparecido, sem qualquer noticia direta da América, para a espôsa distante.
Considerava, também, que, se Madalena o havia por morto, o mesmo se dava
com o marido que lhe venerava a suposta sepultura. Quem havia tramado,
assim, contra a felicidade de dois corações? Rememorou as confidências que a
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filha de D. Inácio lhe fizera a respeito da personalidade de Antero de Oviedo.
Seria êle o autor do nefando delito? Depois de laboriosas reflexões, concluía que, se não fôra êle o único criminoso, devia ter sido cúmplice ativo do feito
abominável. Em seguida, mente cansada, passava a refletir nos estranhos,
insondáveis desígnios da Providência Divina, que haviam conduzido Alcione ao
segundo lar paterno. Experimentava profunda ansiedade por se dirigir, mesmo
doente, à residência do Sr. Davenport, mas a tarde começava a cair, muito fria,
e receava os acessos de tosse. Não descansaria, porém, enquanto não se
avistasse com a jovem, de modo a ouvir-lhe as primeiras impressões. Para
isso, deu ordens ao criado que mandasse um carro a São Marcelo, para que a
menina Vilamil o visitasse nas primeiras horas da noite, depois de regressar ao
lar.
Quando a moça entrou em casa, cêrca de dezenove horas, já encontrou a
viatura que a esperava, recomendando-lhe a genitora não se demorasse em
seguir para São Jaques do Passo Alto, porqüanto o chamado de Damiano lhe
dava muito que pensar. Receava que o velho amigo tivesse piorado. A jovem
atendeu com presteza. Depois de responder às primeiras argüições maternas
sôbre o novo cargo, declarando-se muito satisfeita e bem impressionada,
dirigiu-se ao bairro próximo, assaz preocupada.
O velho sacerdote de Ávila abraçou-a comovido.
— Como fôste de serviço, minha filha?
— Primeiramente, fale-me da sua pessoa. Como vai? Ficamos aflitas com a
ida do carro. A saúde piorou?
— Nada. Vou muito bem. Chamei-te tão só-mente para saber como te
deste com o novo emprego.
A moça tranqüilizou-se, exclamando:
— Ora, graças a Deus!
— O padre Guilherme — prosseguiu Damiano solícito — aqui esteve e deume
informações, mas preciso falar-te sêriamente, em particular. Tiveste boa
impressão da casa e da gente?
— É muito interessante o que pude observar, porqüanto o Sr. Davenport e
a espôsa não me eram de todo desconhecidos.
— Como assim? — indagou Damiano, intrigado.
É que assistiram ao concêrto lá no adro de Nossa Senhora e, por sinal, foi
o Sr. Cirilo quem me deu os trezentos francos que eu lhe trouxe.
— Como tudo isso é significativo! — exclamou o sacerdote, muito
emocionado. — E como te receberam?
— O Sr. Davenport e o tio, bem como a pequena Beatriz, de quem vou
cuidar, trataram-me com excepcional carinho. A meninota parece nervosa e
acabrunhada, mas tem muito bom coração. Como primícias da tarefa,
conversamos quase todo o dia, valendo-me eu da ocasião para falar-lhe dos
ensinamentos do Cristo como verdadeiro e legitimo remédio para tôdas as
necessidades da vida e do coração. Ela está mocinha e creio que me compreenderá.
Infelizmente, não posso dizer o mesmo da senhora Susana. Esta,
quando voltou de uma visita elegante, encontrando-me em casa, não disfarçou
a contrariedade. Não sorriu quando o marido lhe falou que eu era a cantora da
noite em que haviam estacionado na praça da igreja, afirmando que essa
circunstância depunha contra mim. Acrescentou que o padre Guilherme estava,
por certo, enganado na escolha, pois solicitara uma governanta mais velha,
com maior experiência da vida. Quando me disse que meus serviços não lhe
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convinham, a pequena Beatriz fêz grande bulha, afiançando o contrário. A
enfêrma abraçou-se comigo, a gritar, provocando a intervenção do pai e do
avô, que acorreram pressurosos. Esclarecido o motivo de suas lágrimas, o Sr.
Davenport cravou na espôsa um olhar muito austero e decidiu que eu ficasse
de qualquer maneira. Vendo, porém, o enfado da senhora, pedi permissão para
desistir, mas não fui atendida, O Sr. Jaques foi a meu favor, recriminando a
conduta da filha. Reconhecendo-se isolada no seu ponto de vista, a senhora
Susana passou então a tratar-me com brandura, concordando com a minha
permanência ao lado da filha.
Damiano, que a escutava com atenção, valeu-se da pausa e interrogou:
— E os nomes nessa família irlandesa não te preocuparam?
— Sem dúvida que me ocorreram pensamentos estranhos, em contacto
com as pessoas da casa. Cirilo Davenport é o nome de meu pai, e os nomes
de Jaques e Susana parecem muito ligados às recordações da mamãe.
— Porventura não te perguntaram pelo teu nome de família?
— Sim, mas deu-se um fato muito interessante, que me compeliu a
permanecer um tanto retraida. Quando cheguei, o Sr. Jaques me contemplou
muito admirado e disse ao sobrinho: — “éo retrato de Madalena Vilamil”. Tive
um grande susto ao ouvir essa inesperada referência ao nome de mamãe, mas
suponho que tratavam de pessoa importante de suas relações. Dentro em
pouco, soube que a família é Davenport. E fiquei atrapalhada para responder
ao Sr. Cirilo, quando procurou saber meu nome. Se dissesse Vilamil, ou
Davenport, poderiam supor que estava querendo insinuar-me e classificar-me
como parente da casa; vendo a senhora Susana tão agastada com a minha
presença e para não lhe parecer petulante, disse, então, que me chamo
“Alcione da Chácara”. Essa resposta foi boa porque me tranqüilizou a consciência,
visto ser êsse o nome com que me tratavam lá em Ávila, na intimidade.
Assim, padre, creio que não ofendi à dona da casa, nem faltei à verdade.
Damiano fêz um gesto de quem se tranqüilizava e sentenciou:
— Procedeste muito bem. A prudência salva sempre.
E depois de consultar o coração aflito e receoso das amargurosas
revelações, disse à interlocutora com inflexão de carinho:
— Agora, vamos aos motivos da inquietação que me obrigou a chamar-te.
Voz pausada, evidenciando forte emoção, iniciou as confidências,
reportando-se às afirmativas de Madalena e confrontando-as com as do padre
Guilherme.
A filha de Cirilo tudo ouvia com penoso assombro. Estupefata, não
conseguia responder. Quando êle se referiu ao que se passara junto do túmulo
da genitora, no cemitério dos Inocentes, as lágrimas lhe rolaram dos olhos.
Sumariando as suas conclusões, Damiano acentuava:
— Não podemos ter qualquer dúvida, mas eu espero que te mantenhas
sobranceira à prova que nos visita e precisamos enfrentar. Sei quão amargas
devem ser tuas lágrimas, mas, estou certo de que Deus te amparará o coração
afetuoso.
— Não choro por mim, padre Damiano, e sim pela mamãe, cujos
padecimentos me cortam o coração.
Impressionado com o acento comovedor dessas palavras, o velho amigo
considerou:
— Se vês que não podes continuar na casa dos teus parentes irlandeses,
poderemos arranjar uma desculpa que justifique a tua desistência. Se quiseres,
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dada a complexidade e gravidade do caso que nos defronta, poderemos
aconselhar tua mãe a voltar para Castela. Estou doente, é verdade, mas isso
não é motivo para deixar de acompanhá-las. E assim guardaríamos lá o
doloroso segrêdo, para sempre!...
Alcione recordou a figura do genitor quando lhe pôs nas mãos uma bôlsa
recheada, lembrou o acolhimento que lhe dispensara no ambiente doméstico e
ponderou:
— Não podemos fugir. Não seria Deus que me conduziu à casa paterna
para que eu aprendesse alguma virtude das que se ligam à divina humildade?
Não creio que meus parentes precisem de mim para alguma coisa, mas, sinto
que necessito dêles para acendrar meu coração.
O velho sacerdote acolhia, profundamente comovido, aquela preciosa lição de
renúncia. Observar a atitude angélica de Alcione representava enorme confôrto
para o seu espírito cansado. Por isso mesmo, caIara-se para que ela, nobre e
humildemente, continuasse a derramar-lhe na alma exausta as sublimes
consolações da discípula de Jesus.
— Além disso — prosseguiu Alcione depois de uma pausa —, se meu pai
estendeu-me a carinhosa mão na via pública, proporcionando-me tanta alegria
sem saber que eu era sua filha, como poderei abandoná-lo agora, ciente de
que me deu a vida? Não seria renegar os ensinamentos do Cristo? O Sr. Cirilo
Davenport me conquistou pela sua generosidade. A partir de hoje, confiou-me
a filhinha como se me conhecesse de há longos anos, obrigou-me a sentar à
mesa da família, ordenou que seu carro particular me trouxesse a São Marcelo.
Não posso admitir que meu pai procedesse conscientemente contra minha
mãe. Atrás de tudo isso deve existir uma trama criminosa.
Muito sensibilizado, o eclesiástico replicou:
— Tuas razões são sagradas e concordo com o teu parecer, de que Jesus
te conduziu ao lar paterno com algum objetivo; mas, se sugeri o retôrno à
Espanha foi pensando nos teus padecimentos morais, bem como na hipótese
de Madalena ter agravados, algum dia, os seus sofrimentos já quase
intoleráveis.
Alcione meditou um minuto e redargüiu serenamente:
— Sim, por minha mãe todos os sacrifícios serão poucos, mas buscarei
ocultar com os meus beijos a realidade dolorosa. Jesus me auxiliará para que
ela saia dêste mundo desconhecendo as verdades amargas... Amará meu pai
até ao fim, como símbolo da ventura que a espera no Céu e será, para mim,
como a santa de um altar, ligada a Deus; mas, estando meu pai ainda no
mundo, não será razoável cooperar para que ambos se unam para sempre na
eternidade?
— Mas, e o teu esfôrço penoso? E os sacrifícios diários por desenvolver
dignamente a tarefa em tal situação?
— Cinjo-me às próprias lições que me destes desde a infância. Será que
Jesus peregrinou pela Terra sõmente para que o admirássemos? Teria sido
escrito o Evangelho apenas para que os homens encontrassem nas suas
páginas motivos de apologias brilhantes? Sua palavra, padre, não me inculcou,
sempre, que permanecemos no mundo com o santo objetivo de purificar o
coração? Deus quer que nos amemos uns aos outros. Sua misericórdia, de
quando em quando, reúne fortuitamente os próprios inimigos, para verificar se
já estão prontos à tarefa sacrossanta do amor. Se a Providência Divina me
conduz agora aos braços paternos, por que e como contrariar seus insondáveis
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desígnios?
- Deus te abençoe os propósitos sublimes —murmurou o sacerdote,
sensibilizado até às lágrimas —; amanhã ou depois, farei uma visita aos
Davenport, não obstante o meu precário estado de saúde. Preciso observar de
perto as personagens do nosso drama, a fim de legitimar as minhas ilações.
Irei como teu tutor, ratificar a apresentação do padre Guilherme e, então,
estudarei fisionomias e sondarei corações. Recomendo-te, porém, muita
cautela, para que tua mãe permaneça alheia a esta nova amargura do seu
caminho. Será mesmo de alta prudência não desceres do carro de teu pai à
porta de casa, mas distante e de maneira a evitarmos qualquer surprêsa
dolorosa.
Ela concordou e conversaram ainda alguns minutos, até que se despediu
com as novas recomendações de prudência e votos de tranqüilidade, do velho
sacerdote.
Decorridos dois dias, com enorme dificuldade Damiano tomou um carro em
companhia de Guilherme, a fim de vingar seus propósitos no elegante palacete
das cercanias de São Landry. Prevenida de véspera, a família Davenport
aguardava-o com homenagens afetuosas, recebendo-o com excepcional
carinho.
Logo às primeiras palavras, notou que Alcione gozava da simpatia geral,
embora as atitudes de Susana indiciassem preocupações indefiníveis. De
pronto a conversa generalizou-se animada, O professor de Blois, agora ancião
venerando pelos cabelos de neve, comentava o concurso da Igreja nos planos
educacionais da época, destacando a cooperação preciosa dos padres
integrados no conhecimento de sua missão divina. Damiano surpreendia-se
com a vivacidade intelectual do velho educador. Cirilo, de quando em vez,
intervinha com alguma observação, dando impressão de homem ativo e
trabalhador, mas de alma envelhecida, em virtude do véu de tristeza inalterável
que lhe ensombrava o rosto. A espôsa parecia amável, embora pouco
expansiva. A um canto da sala, a filha de Madalena descansava num divã ao
lado da jovem Beatriz, em atitude humilde.