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sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Renúncia-Parte 2- Francisco Cândido Xavier

 

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fôrças. Andava com dificuldade, mas o desejo intenso de resolver o problema

das despesas domésticas triplicava-lhe as energias. Na casa vizinha, a família

Estigarríbia podia dispor de servos numerosos, mas a corajosa espôsa de Cirilo

não queria considerar a diversidade dos destinos e sim que havia trabalho a

reclamar-lhe atenção. As atividades iniciais custaram-lhe esforços dolorosos.

Às vêzes, era tanta a dor nos pés que necessitava interromper a tarefa para

repousar; todavia, auxiliada pela serva fiel, preparou e adubou o quintal,

libertando as árvores frutíferas dos parasitas que as sufocavam. Faltavam

sementes e mudas de plantas, mas Dolores, que tinha um gênio alegre e

comunicativo, prometeu que as pediria a um dos servos da casa vizinha, na

primeira oportunidade. Entre os rapazes de côr bronzeada que trabalhavam,

invariàvelmente, no campo próximo, a jovem desde muito havia fixado um, que

sempre a observava com atenção. Valeu-se dessa circunstância e, no primeiro

ensejo, entabulou ligeira conversa com o simpático desconhecido, junto à

tapada que dividia as propriedades. Tratava-se de um semiliberto da família

Estigarríbia, que chefiava os companheiros de serviço. Ele e os subordinados

não eram escravos, propriamente, mas haviam nascido cativos em colônia

portuguesa. D. Diego e o filho, D. Alfonso, tinham grandes interesses no tráfico

de homens livres e haviam selecionado os melhores operários para os labôres

da grande fazenda de Castela-a-Velha.

João de Deus, o servo que narrava a Dolores as suas lutas na vizinhança,

contemplava a criada de Madalena com expressão de enorme alegria e grande

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bondade. Atendendo-lhe ao pedido, prometeu as sementes e mudas, e, como

dispusesse de folga nos domingos, depois da missa, ofereceu-se para

cooperar semanalmente na horta que pretendiam plantar.

Com pleno assentimento da filha de D. Inácio, que lhe notou, de pronto, as

qualidades apreciáveis, o servo dos Estigarríbia passou a freqüentar a casa

aos domingos, contribuindo decididamente para enriquecimento do quintal.

Horas a fio, João de Deus historiava às duas mulheres o martírio dos

cativos nas colônias remotas. Elas mal continham o seu assombro. Parecialhes

incrível houvesse cidades no mundo, onde os filhos eram separados dos

pais amorosos e vendidos a senhores bárbaros e execráveis, O rapaz contavalhes

as cenas bárbaras do tronco, do chicote a lanhar carnes vivas, das

pesadas correntes atadas aos pés dos que tentavam fugir. Aquelas narrativas

levavam ao coração da espôsa de Cirilo indefiníveis consolos. Considerava que

havia terras onde mourejavam criaturas muito mais sacrificadas e sofredoras

do que ela própria. Confidencialmente, João lhes explicava sua condição

pessoal. Em verdade, não havia cativeiro ali na fazenda, cumprindo-lhe todavia

proceder e agir como escravo dos Estigarríbia, se não quisesse voltar à

colônia, para ser talvez pôsto a ferros. Nada valeriam reclamações, pois D.

Diego era irmão de um bispo assaz poderoso. Conquistara-lhe simpatia e, por

isso, aprendera a ler e contar, assumindo então o cargo de feitor.

Para Madalena, essas confidências acarretavam sempre veladas

consolações e foi com bons olhos que notou a crescente afeição do jovem par.

Sômente depois de três meses de boêmia e aventuras em Madrid, na

perniciosa comparsaria de Federigo Izaza, voltou Antero a casa, completamente

modificado em seus hábitos e atitudes. Não comentava senão as

vantagens do ouro fácil e explanava largos projetos para aquisição de minas

em Potosi. A transformação da humilde herdade surpreendeu-o. Em todos os

recantos havia alguma coisa diferente. Ali, a água multiplicara benefícios ao

solo; aqui, surgia um canteiro de legumes; acolá, as árvores pareciam mais

verdes e vigorosas. Miraculosas mãos haviam tratado a terra empobrecida.

Acentuando o quadro agradável, Madalena estava mais bela, embora lhe

pairasse no rosto, invariàvelmente, um véu sutil de invencível tristeza. Sua

saúde melhorara, de modo geral. Já podia permanecer de pé mais de uma

hora, sem necessidade de repousar. Consagrava-se ao lar e à filha com

heróico devotamento. Antero de Oviedo, contemplando-lhe a feição de

madona, sentiu reavivar-se a paixão que o atormentava desde a infância.

No segundo dia de sua chegada, procurou entreter com ela afetuosa

palestra, minudenciando o êxito superficial das suas transações em Madrid.

Enquanto a conversação não se desviava dos moldes fraternais, a prima

lhe correspondia de boamente, despreocupada em defender-se; mas, a certa

altura, o rapaz fixou nela os olhos brilhantes e disse:

— Sinto que não devo ocultar, por mais tempo, as minhas intenções;

suponho poder agora falar do meu imenso amor.

A noite já se fechara de todo, desdobrando seu manto de sombras pela

paisagem ambiente.

— Mas, que queres dizer com isso? — interrogou a prima, adivinhando-lhe

os propósitos íntimos.

— Ofereço-te meu braço forte nas lutas da vida. Seremos felizes, podes

crer. Espero consolidar minha fortuna a breve trecho. Meus negócios atuais

auspicianl lucros fabulosos. Construiremos um lar repleto de ventura. Não

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importa o passado, as amarguras vividas. Compreendo como o sôpro da

adversidade desfez teus sonhos de moça; entretanto, não julgues ser a única a

sofrer. Sigo-te os passos, silenciosamente, desde os primeiros albores da

nossa juventude. E quando surgiu o intruso Davenport, só eu sei do ódio que

me envenenou a alma. Agora, porém, a estrada da nossa ventura apresenta-se

plana e livre.

Ela ouvia-o sem dissimular a profunda surprêsa que lhe assaltava o

coração. Depois de refletir um minuto, respondeu delicada e firmemente:

— Tua confissão me sensibiliza e, no entanto, essa realidade é impossível,

de vez que o verdadeiro amor transcende a tôdas as contingências do mundo.

Minha escolha foi e permanece única, irredutível.

O rapaz demonstrou a contrariedade num gesto espontâneo e insistiu:

— Mas não te consideras liberta pela viuvez? Não seria loucura consagrar

o resto da vida ao luto e às lembranças da morte?

— Para mim — respondeu revelando profunda serenidade — a viuvez

significa pesar inconsolável e não disponibilidade do coração.

O moço espanhol mordeu os lábios e exclamou desapontado:

— É quase incrível te proponhas tão absurdo sacrifício por um homem que

se ausentou para uma aventura arriscada, quase na lua de mel.

— Mas Cirilo assim procedeu em obediência a circunstâncias imperiosas.

— Não creio.

— No entanto, não podes negar a enorme diferença de vantagens entre a

Côrte de Versalhes e a Sorbone.

— Mas, no caso — tentava explicar o sobrinho de D. Inácio, colérico — não

poderás invocar os salários franceses e sim examinar o problema da dedicação

e do amor.

— Esqueces, entretanto — esclareceu a suposta viúva —, que Cirilo tinha

pais carinhosos e necessitados, além de irmãos mais novos e carentes do seu

auxílio. Fôra um crime seqüestrá-lo à mãe desvelada, que o acariciara nos

braços, muito antes da minha afeição. Aliás, êle tudo fêz para que o

acompanhasse ao continente distante e tu não ignoras que a enfermidade de

mamãe me forçou a ficar em Paris, bem a meu pesar. Cirilo nunca me

exprobrou essa conduta involuntária, e também eu não podia recriminar-lhe o

impulso generoso de socorrer os seus.

Reconhecendo que as armas do seu despeito eram inúteis, Antero ensaiou

outros argumentos, murmurando com certa ansiedade:

— Afinal de contas, suponho que devas ser mais cordata e razoável...

É-me impossível transigir no que representa, para mim, sagrados deveres,

apenas.

— Não te apegues a recordações doentias. És jovem e posso fazer-te feliz.

Tenho trabalhado a vida tôda para realizar o ideal de nossa união. Sonho com

um lar ridente, um ditoso porvir.

— E nem deves perder a esperança de um futuro venturoso — mas há que

reformular o objetivo de tuas aspirações. Minha prova conjugal está encerrada:

a tua, porém, ainda não começou. A Espanha está cheia de nobres raparigas e

não será difícil encontrares uma companheira dedicada e digna do teu destino.

É verdade que jamais nos poderíamos unir pelos laços do matrimônio, mas eu

serei tua irmã reconhecida, enquanto me restar um sôpro de vida. Conheço a

extensão dos teus sacrifícios por mim e beijo-te as mãos. Nada possuindo,

entretanto, com que te demonstre minha sincera gratidão, feliz me julgaria em

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poder, a qualquer tempo, dar meus carinhos de mãe aos filhinhos de tua

espôsa. Deus te ajudará, concedendo-te alguma jovem rica de sentimentos,

digna, enfim, do teu coração.

Essas palavras, ditas em tom de carinhosa e fraternal sinceridade,

desarmavam o rapaz, que se sentia enleado nos mais contraditórios

pensamentos.

— Ainda ontem, Madalena — dizia insistente nos mesmos propósitos —,

adquiri uma casa confortável, junto à igreja de S. Tomás, a fim de lá te instalar

com Dolores e Alcione.

— Agradeço, Antero — mas a verdade é que não pretendo sair desta

chácara. Jesus me facultará, um dia. os meios de retribuir teus benefícios, pois

reconheço que não podemos exigir novos gastos de tua parte. Já temos

plantas a cuidar, os pequenos proventos da horta atendem às nossas

modestas necessidades caseiras. Como vês, é ocasião de pensar em ti

mesmo, na administração dos teus negócios.

Ele compreendeu que a prima preferia renunciar a qualquer nova

expressão de confôrto, para emancipar-se do seu ascendente, e manifestou-se

prêsa de incontido despeito. A expressão de ternura foi substituída pela de

cólera extrema. No íntimo, experimentou diabólico prazer ao recordar o pacto

com Susana. Tomava a resistência de Madalena à conta de orgulho feminino,

mas essa resistencia aguçava-lhe os intentos Criminosos de perseguição e de

posse.

Aproximou-se mais e teimou, ardentemente:

— Deste-me tuas razões, defendeste o irlandês intruso, induzes-me a

procurar alhures a ventura conjugal, mas eu não renuncio. Consente que me

aproxime do teu coração, a fim de te reanimar para a vida. Somos jovens, o

futuro nos chama...

Entretanto, a um gesto mais significativo, a pobre senhora retraiu-se e falou

nobremente:

— É impossível e espero te contenhas nos limites devidos. Ainda que a

lembrança de meu marido não chegue a demover-te, recorda que a sombra de

minha mãe se levanta entre nós.

A recordação de D. Margarida produzira extraordinário efeito. Ântero, muito

pálido, retrocedeu, como se obedecesse a uma imposição do plano invisível.

A filha de D. Inácio, assumindo atitude serena, valeu-se da circunstância e

prosseguiu:

— Concordo em que os nossos antepassados tenham tido numerosos

defeitos, mas não me consta que um Vilamil, algum dia, houvesse abusado de

uma irmã viúva e enfêrma.

Ouvindo a objurgatória formulada com enérgica inflexão de voz, o rapaz

corou e retirou-Se para o seu quarto, não sem dizer:

— Mudarás de opinião, mais cedo ou mais tarde.

Desde essa noite, não voltou a falar dos seus propósitos malsãos, e,

embora esperasse a oportunidade de uma capitulação ditada pelos extremos

de uma vida mísera quão desolada, pareceu desinteressar-se completamente

do assunto. Não permanecia na chácara de Ávila mais que uma semana, de

três em três meses. Agora fazia questão de corresponder à resistência de

Madalena com frieza fraternal. Além disso, os prazeres madrilenos modificavam-

lhe os rumos da sorte. As más companhias arruinavam-lhe o caráter.

Havia muito dinheiro para os divertimentos licenciosos, mas, começava-se a

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indagar das suas origens.

*

Três anos são passados.

Madalena Vilamil lutava herôicamente. A pobreza dos terrenos de Castela-a-

Velha exigia muitos sacrifícios a qualquer cultura agrícola, mas, por isso

mesmo, suas plantações regulares tornaram-se utilíssimas. Dolores voltava,

tôdas as manhãs, do mercado de legumes com diminutos, mas, ainda assim,

suficientes recursos à provisão doméstica. A dona da casa tudo atribuia e

agradecia a Deus, e a vida continuava. As ausências prolongadas do primo

eram consideradas como tréguas, para seu alívio. Desde aquela noite

inolvidável, êle parecia contemplá-la com expressão de rancor. Sempre que

vinha, era para sobressaltar-lhe o coração. Além disso, ela preferia criar a

filhinha sem caprichos satisfeitos. Aquêle sítio avaro devia ser a sua primeira

escola. Mais tarde, então, pediria às freiras Carmelitas que se incumbissem da

sua educação intelectual; mas, como mãe, estava resolvida a tudo fazer para

que Alcione se habituasse mais cedo aos deveres laboriosos.

Assim corriam os dias, quando se espalharam em Ávila estranhos boatos

sôbre a situação de Antero, em Madrid. Dizia-se que os Izaza estavam

denunciados ao Santo Ofício pelo rapto de crianças libertas, nas colônias da

América e da África, e que o sócio responderia com os criminosos pela ação

nefanda. Em suas visitas periódicas àgranja, Madalena o informou das versões

correntes, mas Antero ouviu-a risonho e displicente, alegando que se tratava,

naturalmente, de puras baleias, fruto da inveja e despeito humanos.

Os meses corriam céleres e os boatos também cresciam de vulto.

Madalena preocupava-se. Dia houve em que procurou conhecer o que

João de Deus sabia e pensava a tal respeito.

— Ah! senhora — replicou o pretendente de Dolores, em tom confidencial

—, os Estigarríbias são senhores poderosos e não toleram quem lhes faça

concorrência no tráfico dos cativos. Em Segóvia, não há muito, dois

navegantes corajosos foram assassinados por ordem dêles. Em Valiadolid

havia um grupo de homens operosos, que cuidavam do mesmo negócio, e um

belo dia o Santo Ofício lhes confiscou os bens, sem justificativa, encarcerandoos

para o resto da vida. D. Diego e D. Alfonso dispõem da autoridade do clero.

Dizem que eles cedem aos inquisidores algo dos patrimônios conquistados,

mantendo-lhes a simpatia constante. O bispo D. Leôncio Molina faz parte da

família e não é fácil escapar-lhe à perseguição, com o auxílio dos missionários.

— Mas acreditas que tenham formulado alguma acusação contra Antero?

—. perguntou a filha de D. Inácio, naturalmente preocupada.

João de Deus alongou o olhar para além da porta, como a certificar-se de

estarem realmente sozinhos e respondeu à surdina:

— Já ouvi qualquer coisa nesse sentido. Uma noite D. Alfonso participava

ao pai que tôdas as providências estavam dadas em Madrid; que os santos

padres em missão nas selvas remotas haviam representado à autoridade

eclesiástica para que os Izaza e seus colaboradores fôssem punidos sem

mercê, por subtrairem crianças indefesas nas aldeias do litoral, e que os

credores de D. Antero iam todos reclamar o pagamento de suas dividas, a um

só tempo.

A jovem Madalena, muito impressionada, redargüiu:

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— Será possível que haja pessoas capazes de raptar crianças inocentes?

— Nas colônias — esclareceu o servo — pode crer que existem homens

cruéis a êsse ponto; mas, neste caso, é possível que a acusação tenha partido

daqui mesmo, dos Estigarríbia. Já ouvi dizer que, quando D. Diego era mais

moço, mandou prender o próprio pai.

Madalena Vilamil anotou mentalmente as tristes novas e procurou mudar o

curso da conversa.

Nos dias imediatos, muito desejou comunicar-se com o primo, tentando

salvar-lhe a reputação de homem digno, mas, reconhecendo a impossibilidade

de o fazer, contentou-se em orar, encomendando-o a Deus, em preces

fervorosas.

Ela, de si mesma, pouco a pouco habituara-se ao severo regime do contato

direto com a natureza. A fisionomia, porém, denotava grande abatimento.

Dividia as horas entre os labôres domésticos e as meditações. Recordava,

sempre, que seu primeiro projeto, em regressando à Espanha, fôra

encaminhar-se à América, à cata de notícias exatas da morte do marido. A

atitude ulterior do primo adiara a realização dos propósitos que lhe animavam o

espírito resoluto, mas não extinguira, de todo, o seu primeiro desígnio. É

verdade que continuava doente dos pés, impossibilitada de agir como

necessário, mas esperava no Altíssimo a recuperação da saúde para tentar,

em companhia da filha, a grande aventura, tão logo se verificasse o casamento

de Dolores. Nunca mais pudera alegrar-se, como nos dias risonhos da

juventude distante, mas a filhinha resumia, agora, as suas divinas consolações.

Alcione já se revelava uma criaturinha adorável nos seus quatro anos.

Sentada, de rosto apoiado nas mãos, como “gente grande”, permanecia muitas

horas ao lado da genitora, a ouvir histonetas de fundo educativo. Madalena

repetia-lhe, comovida, as lendas guardadas da sua própria infância. A pequena

encarecia notícias dos príncipes encantados, dos gênios ocultos nos bosques;

mas, quando escutava a palavra maternal sôbre Jesus, seus olhos tornavamse

mais brilhantes e perguntava a razão por que os homens inventaram a cruz

para o Salvador que Deus mandara à Terra.

Por vêzes, na sua condição de criança isolada, sem companhias infantis,

abandonava sübitamente os brinquedos pobres e ia interrogar à mãe o que

estaria fazendo Jesus. E ante as hesitações maternas, ela própria explicava mil

coisas, nas suas reflexões ingênuas e puras. Se fazia frio, afirmava que Cristo

estava socorrendo os peregrinos que não tinham teto, e, nos dias de excessivo

calor, supunha que suas mãos divinas estivessem acariciando as aves aflitas.

Madalena surpreendia-se. Aquelas idéias sublimes eram sempre

espontâneas naquela boquinha mimosa.

A genitora ensinava-lhe a ser reconhecida a todos, a estimar as plantas da

horta e a ser generosa para as árvores do quintal. Mandava-a em auxílio de

Dolores, sempre que havia maior quantidade de frutos e legumes, destinados à

feira da cidade vizinha. Alcione era amável com a serva e conduzia um cêsto

minúsculo, muito convicta de contribuir eficazmente na solução dos problemas

domésticos. E nos instantes em que Dolores se sentia cansada pelo sol

ardente, supunha que lhe atenuava as fadigas beijando-a, porque sua mãe

sempre dizia que o carinho era o único remédio que podia aliviar os corações

sofredores. A criada era muito sensível a tais mostras de afeto e, às vêzes, só

para receber as carícias da criaturinha adorável, declarava-se exausta, junto à

Porta de São Vicente, ao terminar a parte mais afanosa da tarefa. E era

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quando Alcione lhe tomava as mãos, em ósculos carinhosos.

Para Madalena e os dois únicos amigos que possuía na intimidade do lar, a

pequenina se tornara em fonte de inefáveis alegrias.

De quando em vez, surgia com observações sutilíssimas, que suscitavam

profundos pensamentos.

Certa feita, a canícula era quase insuportável e todos, ansiosos, desejavam

chuva. Alcione partilhava da inquietação geral e, instada por Dolores, fêz de

mãos postas as preces que sua mãe lhe ensinava, pedindo a Deus não

esquecesse as plantas ressequidas. O crepúsculo sobreveio carregado de

pesadas nuvens e a criança, de minuto a minuto, ia à porta espiar o céu, como

se aguardasse com certeza alguma coisa. Alta noite desabou torrencial

aguaceiro. Cessada a borrasca, Madalena abriu a janela, ansiosa pela frescura

da noite. A pequenina seguiu-lhe os movimentos, de olhos muitos vivos e pediu

que a deixassem na velha cadeira para contemplar o firmamento, onde haviam

ressurgido os astros faiscantes. Depois de aspirar o ar puro que enchia o

ambiente, exclamou, olhos fitos na altura, em solene atitude infantil:

— Agradeço muito.

— A quem falas, filha? Viste alguém ali na estrada? — perguntou Madalena

com certa curiosidade.

— Estou falando com Deus, mamãe: a senhora não me disse que devo ser

agradecida? Não pedimos hoje a água do céu?

A genitora não pôde disfarçar um gesto de admiração ao lhe observar a

expressão de sincera confiança na Providência Divina.

Em seguida, Alcione pareceu devassar a sombra da noite com os olhinhos

indagadores e brilhantes, permanecendo em encantadora atitude de

meditação. Depois, como se estivesse regressando de um oceano de

reflexões, interrogou:

— Mamãe, onde é que a chuva trabalha?

— No seio da terra, filhinha. A água que desce do alto alimenta a raiz das

árvores, lava as estradas por onde caminhamos, renova as fontes para que

não soframos sêde e, em todos os lugares por onde passa, espalha e entretém

a vida.

— E quando tem chuva nos olhos? — continuou perguntando com sincera

atenção.

— Mas que desejas dizer com isso, Alcione? — tornou Madalena

impressionada.

— É porque, às vêzes, mamãe, quando é de noite, os olhos da senhora

estão cheios de chuva.

A pobre mãe compreendeu a alusão e explicou, assaz comovida:

Ah! sim, filhinha, essa é a chuva das lágrimas e também desce do céu para

nutrir e purificar o coração.

A pequenina pareceu refletir na resposta, voltou a contemplar as fôlhas

gotejantes das árvores e inquiriu:

— Mamãe, quando é que vai chover nos meus olhos?

— Não penses nisso, filhinha!

E Madalena Vilamil torceu a palestra, distraindo-lhe a atenção.

De outra feita, Dolores trabalhava na chácara, acompanhada por Alcione,

que cavava o solo com minúsculo instrumento. Em dado instante, surge o

“Lôbo” — grande cão de D. Diego —, que tentava perturbar, todos os dias, os

trabalhos da rapariga.

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Dolores toma prestes de longa vara e, valendo-se da oportunidade,

espanca o animal que debalde procura uma saída.

— Não batas assim no “Lôbo”! — exclama Alcione perturbada e aflita.

E como começasse a gritar, a serva falou baixinho:

— Sossega, minha filha! Vamos aproveitar enquanto estamos sem vigias

no outro lado.

A menina, entretanto, esboçou um gesto significativo e lembrou:

— Mas nós não estamos aqui sôzinhas. Jesus está Conosco.

Anotando a advertência, a criada permitiu que o animal se safasse do

círculo apertado em que se achava, e esclareceu, como quem se via obrigada

a dar uma satisfação do seu ato:

— Este cão, Alcione, é vagabundo e ladrão. A pequena não respondeu de

pronto, mas, dirigiu-se ao interior da casa a passos vagarosos, tomou o

crucifixo de D . Margarida, sempre guardado à cabeceira da cama e

encaminhou-se novamente ao quintal. Aproximando-se de Dolores que a

observava, muito admirada, apontou, com muito carinho, para a escultura e

esclareceu na sua linguagem infantil:

— Estás vendo, Dolores? Mamãe contou que, quando Jesus morreu,

estava entre dois homens que roubavam.

— Pois bem — disse a empregada sorrindo em face da profunda

advertência —, depois falaremos com D. Madalena sôbre o caso dêsse cão.

E Alcione voltou a guardar o crucifixo, com a impressão de que havia

cumprido uma grande tarefa.

*

A vida na chácara continuava cheia da poesia que sempre adorna a

pobreza resignada.

Outro tanto, porem, não acontecia ao sobrinho de D. Inácio. Parecia êle

cada vez mais desorientado, desde o dia sinistro em que consentira no

criminoso pacto com Susana Davenport. O destino não correspondera às suas

expectativas de homem do mundo. A mentira sombria apenas espalhara

remorsos terríveis no seu caminho, dos quais buscava evadir-se, pelos

desregramentos de tôda sorte. Seu projeto mesquinho sofrera o primeiro abalo

no dia em que Madalena Vilamil não mais pudera erguer-se da cama, em

Versalhes. Assediar a prima enfêrma, representava muita covardia a seus

olhos. A moléstia, entretanto, não fôra incidente simples, persistira semanas e

semanas. Nesse ínterim, ela, Madalena, pela paciência demonstrada e pela

maternal dedicação para com a filhinha recém-nada, crescera muito aos seus

olhos, impedindo-lhe os ímpetos de suprema violência. E, desde a noite em

que fizera alusão à sombra de D. Margarida, êle não mais a contemplava sem

ver no seu rosto o da veneranda mãe adotiva, que o acariciara dos primeiros

dias da infância. Passou, então, a freqüentar raramente a chácara e, no íntimo,

chegava mesmo a pensar em uma viagem à América, para desfazer o engano

terrível, de modo a esperar a velhice, sem a recordação de um crime na

consciência. A nobre resistência da prima doente e sacrificada parecia imporlhe

a lembrança de D. Margarida, nos seus tempos de intraduzíveis amarguras.

O moço espanhol, no entanto, desejava reparar a falta, com a devida

prudência. Afinal de contas, no mais fundo d’alma, não obstante a situação que

o sensibilizava, nunca deixara de considerar Madalena excessivamente

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orgulhosa. Além disso, receava desfazer a trama odiosa, sem ouvir antes a

prima de Cirilo. Que teria acontecido na América durante aquêles longos quatro

anos? Era preciso esperar para não incidir em novos desatinos.

No entanto, agora entregue à idéia reparadora, via-se prêsa dos Izaza,

que o arrastavam a condenáveis desregramentos. Envolvido em negócios suspeitos

e desmandado nos prazeres que lhe exauriam as fôrças, não pôde

perceber a trama cavilosa que o colhia na sombra, devagarinho.

Quando menos se esperava, estalou em Ávila a triste nova: condenado

pelo Santo Ofício à prisão e confisco de todos os bens, Antero de Oviedo aparecera

morto, em Madrid, junto à Porta de Toledo. Falava-se à meia voz que

êle havia preferido o suicídio à ignomínia do cárcere. Noutras rodas, porém,

afirmavam que tudo não passava de mais um crime odioso da família

Estigarríbia. O processo, como tôdas as peças em exame no tribunal do Santo

Oficio, correra os trâmites no mais rigoroso sigilo. A condenação atingira Antero

e companheiros, mas sômente Gaspar Izaza fôra recolhido à prisão, pois

Federigo e Domingos haviam desaparecido misteriosamente.

O sobrinho de D. Inácio assim baixava ao túmulo com o grande segrêdo

da sua vida, tão cedo crestada por sua incontinência e leviandade.

Madalena ainda não conseguira aliviar a angustiosa aflição que a

atormentava, quando João de Deus bateu-lhe à porta, antes da alvorada. A

pobre senhora assustou-se, mas o rapaz tinha motivos para apressar-se.

— Senhora — disse amedrontado —, fugi para trazer-lhe graves notícias.

Esta noite ouvi a combinação de D. Diego e do filho, relativamente a esta casa.

— Como assim? — interrogou Madalena muito pálida.

— Sei que o Santo Ofício vai ocupar as propriedades do Sr. de Oviedo e

que os Estigarribias desejam incluir esta chácara no espólio do extinto.

— Mas esta casa me pertence — interrompeu a filha de D. Inácio com

energia.

— Queira, então, providenciar como convém.

A essa altura, o semiliberto mastigou as palavras, como que receoso de

prosseguir:

— Mas é uma iniqüidade — exclamou Madalena, convictamente.

— E não é só... — obtemperou o rapaz, reticencioso.

— Que maior infortúnio poderia sobrevir-nos?

— D. Alfonso — explicou o servo dedicado em palestra confidencial com o

pai, ponderou que, não sendo Alcione filha do finado, pode ser arrolada no

patrimônio, como escrava; e sei que tomou essa atitude, pela atração que a

mesma sempre exerceu sôbre êle.

— Horrível! — exclamou a viúva tornando-se lívida — não haverá justiça

para semelhantes bandidos?

— A justiça, por certo, não autoriza êsses crimes, mas os meus senhores

estão com os padres e será útil que a senhora tome as providências possíveis,

para defesa do seu lar.

Enquanto o rapaz se retirava apressado, de maneira a não despertar

suspeitas na casa a que servia, Madalena levou as mãos à cabeça, tentando

conter o vulcão de idéias que a incendiavam. Nenhuma preocupação na sua

vida continha o travo desta que ora a excruciava. Separar-se da filha, quando a

viuvez já lhe havia mortificado o coração, seria condenar-se a perpétuo

martírio. Reagiria contra os criminosos sem consciência. No torvelinho de suas

dores, entretanto, procurou encomendar-se a Deus com sincera compunção.

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Que Jesus se dignasse velar por sua fraqueza de mulher, defendendo-lhe a

filhinha dos lôbos desalmados.

O Sol já fulgurava no horizonte e o coração materno continuava em súplica

silenciosa, invocando a misericordiosa proteção do Crucificado. Procurando

ocultar sua aflição à serva e à filhinha, resolveu bater à porta das freiras

Carmelitas, no intuito de solicitar-lhes fraternal amparo.

Em todo o tempo de sua permanência em Ávila, freqüentara os ofícios

religiosos na Igreja de São Tomás apenas duas vêzes, pela dificuldade de se

locomover; mas isso fôra o bastante para abraçar velhas mestras, entre as

quais se destacava Madre Conceição do Santíssimo Sacramento, generosa

diretora do educandário onde ela, Madalena, recebera as primeiras letras.

Essa veneranda criatura, pensava a filha de D. Inácio consigo mesma, não

a deixaria sem assistência.

Com enorme dificuldade, dada a atrofia dos pés, encaminhou-se à cidade,

em companhia de Alcione, pela manhã. Desde a indelicada recusa das amigas

de sua mãe, em Paris, fizera o propósito de nada pedir em seu benefício; mas,

naquela hora grave em que lhe faltava o amparo do primo, tinha necessidade

de mão amiga para fazer respeitados os seus direitos. Não dispunha de outras

relações, além dos laços afetivos com as religiosas que tanto a beneficiaram e

acarinharam na infância.

Assaz inquieta, pediu para falar à Superiora do Convento de São José.

A velha monja, em cujo rosto as rugas marcavam invernos e padecimentos

longos, recebeu-a com afabilidade e doçura, visivelmente satisfeita com a

inesperada visita.

— Madre Conceição — começou dizendo acanhada e aflita —, esperava

socorrer-me de vossa bondade mais tarde, quando minha filha estivesse em

idade de iniciar os estudos, mas, circunstâncias imperiosas, quão imprevistas,

na minha vida, obrigam-me a incomodar-vos mais cedo.

— Dize, Madalena — respondeu a religiosa com bondade natural —, não

te perturbes, confia em nossa velha amizade. Desde que nos revimos, muito

tenho pensado em ti, nas tuas penas angustiosas; contudo, filha, são

numerosas as antigas alunas que se encontram nos sofrimentos da viuvez.

— Não venho aqui trazida por dificuldades materiais, minha boa Madre.

E passou a relatar as suas amarguras em face do desaparecimento do

primo, que a deixava em penosa situação moral, por motivo das perseguições

que o vitimaram. Pausadamente, imprimindo em cada palavra a fôrça da sua

emoção, explicou quanto sabia a respeito da sentença do Santo Ofício, que

levara Antero de Oviedo à suprema ruína. Em seguida, falou da maternal

angústia, devido às pretensões odiosas da família Estigarríbia, em lhe

extorquirem a propriedade rural e, além do mais, seqüestrar-lhe a própria filha.

A velha religiosa acompanhava-lhe as palavras, tomada de singular

admiração. Viu-a terminar, exausta, pálida, cabisbaixa, consternadíssima. Destacando

as últimas assertivas, exclamou inquieta:

— Mas o país não está em regime de cativeiro! Como poder alguém

escravizar uma criança inocente?

— Os que têm bastante dinheiro para demover os juizes — disse Madalena

convictamente — certo poderão gozar o beneficio das leis; mas eu sou

paupérrima e minha Alcione poderá ser levada por mãos criminosas, à revelia

da justiça. Não ignoramos que se fala bastante, na atualidade, em mestiços

que de nada servem, no conceito dos grandes senhores de terras, senão para

100

os serviços rudes do Novo Mundo. E se D. Diego Estigarríbia pretender que

minha filhinha seja dessa espécie de criaturas? Ele tem as arcas abarrotadas

de pesetas para comprar os homens indignos. Suas violências talvez nem

cheguem a constar nos processos escritos.

Madre Conceição tinha uma grossa lágrima nos olhos. Maternalmente,

tomou as mãos da interlocutora e falou:

— Compreendo tuas angústias, entretanto...

— Será possível que não possa contar com o vosso auxílio? — perguntou

Madalena atemorizada.

— É que, minha filha, trata-se de uma questão com o Santo Oficio. Nesta

casa, somos muito indigentes para te auxiliar com êxito, contra inimigo tão

poderoso.

E, depois de levantar-se e sondar a porta vizinha, declarou à Madalena,

em voz muito baixa:

— Por buscarmos defender dois homens caluniados perante os

Inquisidores, duas irmãs e eu, no mês passado, fomos açoitadas cinco vêzes.

— Ah! como se permite semelhante tribunal no seio da Igreja? — indagou

a filha de D. Inácio penosamente surpreendida.

A monja enxugou as lágrimas com a manga do hábito rafado e murmurou:

— Talvez, minha filha, Deus haja permitido o funcionamento dessa

instituição impiedosa para que sejamos experimentados em nossa fé. Hoje em

dia, considero que não existe maior cilício que o suportar a evidência de tantos

crimes em nome do próprio Deus.

A jovem viúva começou a chorar em silêncio, mas a respeitável amiga

ponderou com solicitude:

— Não te desesperes: Jesus não está pobre de misericórdia. Faze o

possível por aliciar algum homem de mérito, que propugne os teus direitos.

Estou certa de que o céu nos oferecerá os meios precisos.

Madalena Vilamil despediu-se com palavras de sincero reconhecimento,

mas não pôde disfarçar o desânimo quase invencível. Ao vencer a distância

que a separava do teto humilde, sentia que as pernas tornavam-se mais

trôpegas. Mesmo assim, quis socorrer-se das autoridades civis ou religiosas,

mas a falta de dinheiro amortecia-lhe os impulsos. Os juizes, de um e de outro

lado, não trabalhavam de graça. Os processos não se movimentavam sem as

molas reais.

Alcione seguia-lhe os passos muito admirada das suas lágrimas e do seu

mutismo. Conduzida pela mão, a delicada criança parecia ansiosa por uma

oportunidade que lhe permitisse confortar o espírito materno. Assim que

atravessaram as muralhas, já no caminho empedrado, de regresso ao lar,

perguntou com a sua curiosidade infantil:

— A senhora não disse que íamos a outra casa?

— Não é possível, minha filha.

— Por quê?

— Não temos a chave de ouro com que poderíamos abrir a porta, concluía

Madalena, como a falar consigo mesma.

E passou o resto do dia mergulhada em dolorosas cismas. Via-se, na

imaginação, atirada no vórtice do destino. O Santo Oficio tudo lhe arrancaria,

tudo... A granja pequenina, cultivada com tantos sacrifícios, seria arrebatada

por verdugos cruéis. Mas, quando meditava na eventualidade de separação da

filha, profunda revolta dominava-lhe o coração. Seria a derradeira prova da sua

101

dedicação maternal, porque a morte, indubitàvelmente, viria nesse instante

enregelar-lhe as veias.

Enquanto Dolores trabalhava no quintal, intrigada com o pranto copioso da

ama, Alcione permanecia no aposento materno, procurando confortar

Madalena, com suas observações piedosas, embora infantis.

O crepúsculo desceu, pesadamente e, à noite, João de Deus reapareceu.

Depois de se informar do resultado da visita ao convento de São José, falou à

desolada senhora, deixando-lhe entrever novas esperanças:

— D. Madalena, conheço um padre que talvez nos possa valer.

— Quem é? — indagou ansiosamente a interpelada.

—É o padre Damiano, que oficia na igreja de São Vicente. Ele tem sido meu

amigo nas ocasiões difíceis, é bem possível que resolva satisfatoriamente o

caso. Se a senhora quiser, chamá-lo-ei ainda hoje mesmo, porque D. Alfonso

deverá vir aqui amanhã, depois do meio dia, para lhe dar conhecimento do

odioso mandato.

— Oh! sim! — exclamou reconhecida vai sem demora, conversarei com

êsse homem de Deus.

O rapaz saiu, e, quando o relógio marcava nove horas, regressava em

companhia do eclesiástico, recebido por Madalena com inequívocas

demonstrações de reconhecimento e aprêço.

Padre Damiano era homem dos seus cinqüenta anos e pela expressão do

olhar, como pelas cãs prematuras, dava conta de suas penosas lutas.

Em breves instantes, estabelecera-se entre êle e os presentes os laços

cariciosos da intimidade e da simpatia. Ouviu com atenção os informes da

viúva Davenport, entendendo-lhe as razões afetuosas, como se ouvisse uma

filha. A narrativa dos seus sofrimentos infundia-lhe respeito paternal. Em breve,

trocavam impressões e já pareciam velhos conhecidos. Também estivera em

Paris por ocasião da varíola de 63 e, por sinal, também sofrera a enfermidade

dolorosa, num estabelecimento religioso. Madalena Vilamil estava igualmente

satisfeita. A palavra do interlocutor parecia-lhe de um amigo sincero, que

tardara a aparecer. Historiando os incidentes da sua viuvez, o Padre prestou

maior atenção ao caso e sentenciou:

— É muito estranhável que a senhora tenha lutado com tão infausto

destino, mediante uma simples notícia. Nunca recebeu informações mais positivas

da América?

— Nunca.

— Também — continuou —, é preciso considerar a soledade em que ficou,

lá na França. A morte dos pais, a enfermidade rebelde, a necessidade imperiosa

de atender à recém-nascida...

— Sim — explicou Madalena agradecida ao seu afetuoso interêsse —,

mas não renuncio ao meu velho ideal de uma excursão à colônia do norte. Não

desejo morrer sem obter as últimas notícias de Cirilo.

O religioso fêz um sinal de aprovação e acentuou:

— Sempre acalentei o desejo de compartilhar dos trabalhos missionários

na América e, se algum dia o conseguir, ofereço-me a levá-la, com a sua

filhinha.

Madalena Vilamil agradeceu com um grande sorriso. A palestra prosseguiu,

animadamente, até que a hora avançada determinava as despedidas. Padre

Damiano referiu-se à sua disposição sincera de enfrentar a ousadia criminosa

dos Estigarríbias e prometeu que ali estaria no dia seguinte às doze horas. E

102

como a viúva quisesse reiterar os agradecimentos, muito comovida, êle a

interrompeu, dizendo:

— Não se dê ao trabalho de manifestar gratidão. Neste mundo, somos

devedores uns dos outros e, neste momento, tenho a impressão de estar

resgatando uma dívida.

E retirou-se acompanhado por João de Deus, enquanto a pobre senhora

experimentava um grande alívio e desafôgo à mente atormentada.

No dia seguinte, à hora aprazada, o eclesiástico franqueava a porta e

aguardava os acontecimentos.

Nas primeiras horas da tarde, D. Alfonso Estigarríbia aproximou-se

acompanhado por seus homens, a fim de imprimir certo aparato ao feito.

Notando a presença de um sacerdote na casa suposta indefesa, não pôde

esconder o desapontamento; mas Damiano, querendo conhecer todo o ardil da

encenação cruel, tomou atitude humilde, fêz um gesto de extremo desinterêsse

pela causa e exclamou, após a primeira saudação:

— Entrai, meus filhos! Viva Deus e abençoado seja o nosso Santo Padre.

Encorajados com semelhante acolhida, D. Alfonso e os asseclas

cobraram alento e passaram a ler o torpe mandato, com ares de triunfo. O filho

de D. Diego fêz a leitura solene, pausada, enquanto Madalena e Dolores

ouviam a sentença, excessivamente pálidas. Terminada a intimação, o moço

Estigarríbia passou a explicar que a granja deveria ser desocupada dentro de

três dias e que, havendo ali uma criança mestiça, trazida por Antero de Oviedo,

competia ao Santo Ofício decidir do seu destino, pelo que exigia a sua entrega

imediata.

De posse de todos os fios da perversa meada, Padre Damiano fechou o

semblante e declarou com enérgica serenidade:

— Conhecemos a fôrça do Tribunal que assim ordena, mas somos

obrigados a declarar que existe lamentável engano a corrigir. A Inquisição terá

tido motivos para condenar nosso parente Antero de Oviedo, coisa que não

pretendemos discutir; consideramos, porém, que a sentença de confisco já foi

executada com a ocupação de suas casas em Ávila, e de outras propriedades

em Madrid. Julgamos, ainda, que se isso não bastasse, o condenado já pagou

duramente as suas faltas com a morte.

D. Alfonso ficou lívido.

— A que engano vos referis? — indagou.

— Esta chácara não pertencia ao réu.

— As provas? — acudiu o chefe da expedição, contrafeito.

A um gesto do religioso, Madalena Vilamil trouxe o documento da doação,

firmado pelo extinto.

— Mas, evidentemente — exclamou D. Alfonso — esta declaração não

tem efeito legal. É simples transação entre parentes. O sangue é o mesmo.

— Julgais, então — continuou Damiano —‘ que as pessoas honestas

possam responder por delitos dos irmãos consangüíneos? Jesus era o

Salvador e não impediu que Judas aparecesse na reduzida família dos seus

discípulos.

Ante a inesperada opugnação, o filho de Dom Diego mordeu os lábios,

encolerizado:

— Deveis saber que a condenação do Santo Ofício engloba a parentela.

— Não ignoro — explicou o padre — que o Santo Ofício muito cruelmente

persegue o condenado na pessoa dos descendentes, mas nós não somos da

103

estirpe de Antero de Oviedo.

Incapaz de rebater os argumentos do interlocutor, o chefe da diligência

acentuou:

— Consultaremos o bispo D. Leôncio Molina.

Compreendendo que o rapaz aludia ao parente, cheio de influência

política, Damiano acrescentou:

— E nós indagaremos a razão pela qual a família Estigarríbia anda

requisitando crianças livres nas cidades independentes da Espanha. A Côrte

nos informará, quanto a isso.

O vizinho fêz menção de retirar-se com os companheiros, mas, antes de o

fazer, o sacerdote concluiu:

— D. Alfonso, voltai na paz de Jesus. Esta casa está disposta a viver

cristãmente na vossa vizinhança, mas não esqueçais que tendes uma alma

para prestar contas a Deus.

A expedição partiu cabisbaixa, enquanto Madalena se retirava para o

interior e beijava o crucifixo que sua mãe lhe havia dado, agradecendo a Jesus

aquelas inefáveis consolações.

104

6

Novos rumos

A família Estigarríbia não voltou a renovar suas absurdas exigências e o

próprio D. Alfonso fêz o possível por demonstrar atitudes novas e mudança de

propósitos, de sorte que a torpe extorsão não chegou a consumar-se. Ciente

do fato, o bispo Molina desautorizou os criminosos intuitos e providenciou para

que o confisco não ultrapassasse os limites indicados pelos inquisidores.

Encerrado o incidente, a vida na granja prosseguia em adorável

simplicidade.

Alcione fizera-se amiguinha fiel do Padre Damiano e Madalena parecia

regozijar-se com a nova companhia.

O eclesiástico revelava idéias diferentes de sua época. Embebido nas

veneráveis tradições do passado, não podia compreender os crimes tramados

na sombra, em nome de Deus. Apreciava a filosofia antiga, desprezava os

exageros do fanatismo e não concordava com a tirania do Santo Ofício. Quase

diàriamente, à noite, ia à vivenda modesta da viúva Davenport, a cuja porta a

pequenina Alcione se postava para saudar graciosamente o cavalo paciente e

manso, que o servia no pequeno trajeto.

As conversações interessantes desdobravam-se, animadoras. Madalena

Vilamil parecia encontrar nas interpretações do religioso mais duradouras

consolações.

— Padre Damiano — dizia —, a Igreja parece despreocupar-se de nossas

amarguras. Em tôda parte preponderam as injunções políticas, ao passo que

Jesus foi bem claro nos ensinamentos relativos ao seu Reino, que ainda não é

dêste mundo. Todavia, em vez de cuidar da redenção das almas, a maioria dos

clérigos permanece em disputas vãs. Vivemos uma época de trevas espêssas.

A Inquisição é muito mais poderosa que os reis sem coração. A que atribuir tais

desmandos? Não considerais que temos sido escravos antes que devotos?

— Sim, minha filha — esclarecia o amigo com a sua madura experiência

da vida —, suas observações são justas. Deus cria a vida, não o cativeiro.

Entretanto, êsses clamorosos desvios são das instituições humanas. Os padres

ambiciosos de poder temporal constituem fileira quase interminável nos tempos

atuais, mas não poderão nunca destruir o Cristianismo na sua essência eterna,

divina. A misericórdia de Deus lhes tolera os insultos, mas há de chegar o

tempo de se restabelecer a verdade. Sou de opinião que tôdas as iniqüidades

da Terra são impotentes para aniquilar uma centelha de nossa fé.

A última frase despertou em Madalena pensamentos novos. Num belo

minuto de meditação, esquecia as vicissitudes da Terra e as angústias do

Tempo, para alcandorar-se nos sublimes problemas da alma.

— A fé? — obtemperou — como adquiri-la, — padre? De mim a entendo

como um estado superior, conseguido na oração. Tudo tenho feito por encontrar

alívio e refúgio na confiança em Deus. No entanto, sinto-me bem longe

da paz íntima que tanto ambiciono.

O eclesiástico lançou-lhe um olhar significativo, como a dizer que lhe era

impossível resolver definitivamente a questão e explicou:

— Não poderemos criar os valores da fé, enquanto nos sobeje a

inquietação, e acredito que nossas relações com a Divindade devem ser as

mais simples possíveis. Quanto a mim, considero que cada dia é uma

oportunidade renovada para o labor de nossa redenção. Resumo as minhas

105

preces à vigília da manhã, na qual procuro a inspiração do Evangelho ou dos

livros que nos suscitam desejos de perfeita união com o Cristo, e ao louvor da

noite, quando busco examinar os ensejos de serviço ou testemunhos que o

Senhor me facultou.

Ela não compreendeu a contento e interrogou:

— Mas... como?

— Tôda a leitura edificante derivou da Providência por intermédio dos seus

mensageiros, em nosso socorro; com as suas advertências e conceitos, sábios

e preciosos, faço a vigília matinal e à noite rendo graças ao Pai, em

consciência, pelos favores que me foram dispensados. Na vigília, estabeleço

propósitos redentores; e no exame da noite julgo-me a mim mesmo, para

verificar onde se cristalizaram minhas maiores fraquezas, a fim de emendá-las

no dia imediato. O mundo, a meus olhos, é uma vasta oficina, onde poderemos

consertar muita coisa, mas reconhecendo que os primeiros reparos são

intrínsecos a nós mesmos.

Grandemente interessada, a suposta viúva de Cirilo insistiu:

— Se dais tanto valor ao esfôrço espiritual da manhã e às meditações da

noite, como encarar o dia?

Creio que entre a vigília e o louvor está

o trabalho que o Senhor nos deferiu, O dia constitui •o ensejo de concretizar as

intenções que a matinal vigília nos sugere e que à noite balanceamos.

O reduzido auditório, isto é: Madalena, Alcione e Dolores, bebia-lhe os

conceitos com profunda atenção.

A serva, talvez impressionada pelas suas definições de trabalho, indagou:

— Padre Damiano, como proceder, então, nos dias em que as

circunstâncias nos impeçam de trabalhar? Estaremos fugindo ao ensejo que

Deus nos concedeu?

O religioso compreendeu o móvel da pergunta e tentou explicar:

— Acreditas, então, que só aos braços foram conferidas as atribuições de

serviço? Os ouvidos trabalham quando ouvem, os pés quando caminham. A

língua esforça-se, a inteligência atua. Quando cessam as possibilidades de

ação no exterior, há no íntimo da criatura todo um mundo a desbravar. Chego a

refletir que, às vêzes, a enfermidade atormenta a criatura para que ela se volte

para dentro de si e aproveite a oportunidade, no esfôrço laborioso de sua

renovação.

Para a filha de D. Inácio, aquelas conclusões sôbre a prece eram novas e

surpreendentes. Tal como acontecia em tôdas as esferas religiosas do seu

tempo, supunha que orar equivalia a pedir. As cerimônias da igreja, quase

sempre, resumiam-se em longas súplicas, apenas. Os livros devocionais

englobavam rogativas, da primeira à última página. Os ex-votos, as procissões,

os sermões públicos, representavam pedidos insistentes. Por isso mesmo, a

viúva inquiriu com certa indecisão:

— Vossos esclarecimentos quanto à oração me surpreendem; contudo,

necessito expor minhas dúvidas mais íntimas. Não teria Deus concedido ao

mundo a faculdade de rezar, a fim de que a alma humana aprendesse a pedir?

Sempre conheci essa manifestação do sentimento como rogativa. Considero,

entretanto, que, se tôda a nossa atividade religiosa estivesse circunscrita aos

atos precatórios, não passaríamos, neste mundo, de uma assembléia de

mendigos. Que dizer do homem que reclamasse, de mãos postas, o manjar do

céu, sômente por reter o suor na semeadura do seu quintal? Poderá alguém

106

insistir na obtenção da verdadeira paz, quando ainda disputa a ferro e fogo a

posse de bens perecíveis? Chegará alguém à esfera dos anjos, quando ainda

não chegou a ser homem?

Reconhecendo o interêsse despertado por suas palavras, Damiano

sentiu-se encorajado e continuou:

Naturalmente que deveremos apelar para o Céu, mas, no interpretar a

prece como rogativa, suponho que não devemos ir além do “Pai Nosso”,

porque, acima de tudo, julgo que a oração deve ser um esfôrço para nos

melhorarmos. Deus nos procura a todo momento e o ato devocional será,

então, tarefa incessante do espírito, apagando as imperfeições, para que o Pai

nos encontre.

— Mas, criaturas há que maldizem o destino —acrescentou Madalena

sumamente interessada. —Como não importunar o Céu, quando padecemos

necessidades angustiosas? Para muita gente, a Terra não passa de odioso

degrêdo e o corpo representa escuro cárcere.

— Não creio. Só há mendicidade em nossa alma. E no que se refere a

paisagens do mundo, o próprio deserto tem a sua beleza. As estradas que

pisamos estão repletas de perspectivas encantadoras. Uma fôlha da primavera

ou um punhado de areia são documentos da glória de Deus em nossos

caminhos. Quando nos referimos a regiões sombrias ou desoladas, geralmente

esquecemos que elas se localizam em nosso mundo íntimo. A noção de

cárcere, como a dor do remorso, nunca foram observadas no horizonte azul

nem no canto dos pássaros, simplesmente porque residem dentro de nós

mesmos.

— E o sofrimento, padre Damiano? — perguntou Madalena Vilamil, já

tocada por aquêles altos conceitos. — Que me dizeis do problema do destino e

da dor? Nosso futuro espiritual, após a morte, não está encerrado no céu, no

purgatório ou no inferno, sem remissão?

O interpelado sorriu e esclareceu:

— Esta palavra, ouvida pela Inquisição, representaria um crime de traição para

o fanatismo de nossa época e nos levaria à fogueira. Esta circunstância nos

leva a refletir na magnitude da tarefa a realizar, mas, se eu disser que minha

interpretação é diferente? A morte não existe como a entendemos. O que se

verifica, apenas, é uma transmutação de vida. Os teólogos suprimiram a chave

simples das nossas crenças. Quando o corpo é reclamado pelo sepulcro, o

Espírito volta à pátria de origem, e como a Natureza não dá saltos, as almas

que alimentam aspirações puramente terrestres continuam no ambiente do

mundo, embora sem o revestimento do corpo carnal. Desde a mais remota

antigüidade, os homens se comunicaram com os seus semelhantes já mortos.

E, ante o olhar admirativo da jovem senhora, Damiano passou a recordar:

— Eneias fêz consultas a Anquises, por meio dos estranhos poderes da

feiticeira de Cumas; Plutarco afirmava que os sêres de outro mundo se

manifestavam nos Mistérios; Sócrates tinha seu gênio familiar; Apolônio de

Tiana sentia-se auxiliado por entidades invisíveis; os imperadores romanos

buscavam os pareceres dos habitantes de Além-Túmulo, com a cooperação

dos Oráculos; Vespasiano procurou a palavra dos numes tutelares no Oráculo

de Geryon; Tito fêz o mesmo na Ilha de Chipre; Trajano imitava-os, sondando

as revelações do Oráculo de Heliópolis, na Síria; os cronistas do tempo antigo

declaram que Augusto, depois de iniciado no culto de Elêusis, tinha contato

com os fantasmas; nas páginas sagradas da Bíblia vemos Saul procurando o

107

falecido Samuel por intermédio da pitonisa de Endor, e contemplamos os

discípulos de Jesus bafejados pelo Espírito-Santo, no glorioso dia do

Pentecostes...

É extraordinário! — exclamou a espôsa de Cirilo felicitada por novas luzes.

— Quer dizer que os entes queridos, que nos antecedem no túmulo, nos

esperam no limiar da outra vida, para as alegrias do reencontro?...

Damiano esboçou um gesto altamente significativo e acrescentou:

— Nem sempre será indispensável partir para reencontrar...

- Por quê? — interrogou admirada.

— Nossa época não comporta a divulgação das supremas verdades, mas

nós nascemos e renascemos. A vida é uma só; entretanto, as experiências são

diversas. O próprio Jesus declarou aos mentores de Israel que não era

possível atingir o Reino de Deus sem renascer de novo. Inferno ou purgatório

são estados do espírito em tribulação por faltas graves, ou em vias de

penitência regeneradora.

A “viúva” Davenport teve a sensação de haver sido levada a um pôrto de

grandiosas revelações. Recordou, súbitamente, seu primeiro colóquio com o

rapaz irlandês que elegera para seu companheiro de existência, quando lhe

confiara as predições do velhinho de Granada. A figura quase apagada do

egipciano erradio ressurgia-lhe nos arcanos da memória, com os mínimos

contornos. Assim, reviu na tela imaginada as portas do Alhambra e as amiguinhas

bem-amadas, destacando-se de tôdas as recordações as palavras

conselheiras do desconhecido:

“Prepara-te, minha filha, e une-te à fé em Deus, porque teu cálice, no mundo,

transbordará de sofrimentos. Não vivemos apenas esta vida. Temos várias

existências e a tua existência atual é promissora de tributos afanosos para a

redenção.” Sinceramente impressionada, relatou o incidente, que o religioso

acolheu com singular carinho.

— Podes crer — afirmou convicto — que êsse ancião deveria ser um

grande inspirado.

— Mas será possível que se troque de corpo como se muda de vestes?

— Justamente. Só isso, minha filha, explica as profundas diferenças do

caminho. Nas estradas em que buscamos a luz da salvação, encontramos os

sêres humanos mais díspares. Ali, depara-se-nos um homem impiedoso,

detentor de sólida fortuna; acolá, debate-se um justo entre a fome e a

enfermidade, que parecem intermináveis. Num mesmo lar nascem santos e

ladrões. Há pais excelentes cujos filhos são indesejáveis, monstruosos. Uma

via pública exibe jovens elegantes e miseráveis criaturas que se arrastam entre

a lepra e a cegueira. Poderias admitir que o Criador, magnânimo e sábio,

deixasse de ser pai para ser um experimentador desalmado? Não admitamos

êsse absurdo teológico, mas ponderemos na verdade de que se cumpre, desde

agora, o — “a cada um segundo suas obras”, dos ensinamentos de Jesus. Na

obra divina, infinita e eterna, cada filho tem responsabilidade própria. A criatura

se engrandecerá ou submeter-se-áao rebaixamento, conforme utilize as

possibilidades recebidas. No caminhar de cada dia, podemos observar os que

ascendem, apesar dos dolorosos testemunhos; os que estacionam em receios

inúteis; os que resgatam e os que contraem novas dívidas.

Madalena Vilamil, depois de apurar ainda mais as impressões próprias,

considerou sensibilizada:

— Vossas razões me suscitam mais vastos raciocínios. Às vêzes, padre,

108

sonho com assembléias que me forçam a decisões prejudiciais, com praças

armadas e onde minha voz ordena ações cruéis... Vejo-me, então, detentora de

poderes, rodeada de súditos numerosos... Em seguida, acordo exausta, com a

impressão de haver regressado de uma região de reminiscências indesejáveis.

— Ah! sim? — murmurou Damiano com um sorriso — quem sabe a nossa

permanência em Ávila constitui uma repetição de circunstâncias do passado

ominoso? É possível que tenhamos tido riqueza e autoridade, exercendo

tirania. A casa. de Deus é cheia de justiça com misericórdia.

A viúva Davenport meditou alguns minutos nas provações sofridas,

considerou a razoabilidade dos conceitos expendidos e concordou:

— É verdade. Minha existência parece obedecer a êsse plano de tributos

expiatórios. Desde criança, venho observando que nas situações decisivas sou

obrigada a curvar-me às circunstâncias. Nos grandes lances, tenho a

impressão de que minha vontade é anulada por misterioso poder...

— E és muito feliz em não desobedecer.

— Entretanto, padre, as mágoas são muitas e rudes.

— Mas se o esfôrço divino de Jesus foi aureolado no Calvário, quem

poderá pensar na glória celeste sem a coroa de espinhos? As pessoas felizes

costumam não ter história, e, quando a possuem, nem sempre registram

episódios mais dignos. Com essa idéia, não quero dizer que devamos andar no

mundo como aventureiros do sofrimento, em farragem de trapos e lamentos,

mas desejo realçar o valor das lutas incruentas do coração, que temperam o

caráter e iluminam a vida. A maioria dos santos esteve indecisa, até que o

testemunho redentor, pela dilaceração de si mesmos, lhes abriu os horizontes

infinitos da Eternidade. Nascemos e renascemos, até que possamos encontrar

asas de sabedoria e de amor para os vôos supremos.

— Vossas idéias a respeito da pluralidade de existências — disse

Madalena — traduzem imensas consolações. Depois que voltei da França, já

fui duas vêzes à igreja de São Tomás assistir aos ofícios religiosos, mas nunca

poderei definir as emoções que me assaltaram ao contemplar-lhe as imagens

antigas. Ao ajoelhar-me próximo do púlpito, a grandeza do velho templo

parecia revocar-me a lembranças imprecisas de outras eras, que eu não

conseguiria definir. Terminada a missa, visitei todos os altares e extasiei-me na

contemplação do velho claustro... Poderosas impressões dominaram-me o

pensamento... Fiquei convencida de que cada coisa, ali, me era familiar e,

contudo, quando menina, no internato, raras vêzes visitei êsse templo e nunca

experimentei tais sensações.

— Sim — considerou Damiano em atitude de funda reflexão —, a igreja e

o claustro de São Tomás têm sua história longa e estranha. Ali foram tomadas

muitas deliberações importantes, nas reuniões dos reis católicos com os

membros do Santo Ofício.

Houve uma pausa e logo a moça interrompeu:

— Já que essas teorias tanto edificam, por que não cuida a Igreja de as

divulgar?

— Por enquanto não devemos pensar nisso. Estas revelações espirituais

nos chegam da mais remota antigüidade, mas a Igreja Católica não poderá tão

cedo espalhar o clarão dessas verdades confortadoras. A noite que desceu

sôbre nós ainda não terminou.

— Mas, acaso não se trata de consolações divinas?

— Sim, mas nossa crença atual tem sua base no terror da tirania religiosa

109

e não na liberdade sublime do Evangelho. Se Jesus voltasse agora, à Terra,

seria perseguido como impostor, com suplícios talvez maiores que os da cruz.

A barca de Roma é diferente da barca da Galiléia. Na primeira, temos

sacerdotes ambiciosos e insaciáveis; na segunda, tínhamos pescadores. Em

Roma, esplendem palácios; enquanto que em Belém fulgia a manjedoura. No

Vaticano, faiscam gemas preciosas da tiara pontifícia; em Jerusalém o cálice

era de vinagre e a coroa tecida de espinhos.

Madalena recolhia as citações com indisfarçável interêsse, enquanto o

eclesiástico rematava:

— Compreendes as diferenças?

— Abraçais então a Reforma? — arriscou, referindo-se ao movimento

religioso iniciado por Martinho Lutero.

— Aceito a necessidade da reforma intima. Se os protestantes puderem

alcançar semelhante renovação, por certo serão bem-aventurados. Quanto ao

mais, se ainda me encontrasse sem responsabilidades definidas, seria justo

empunhar uma espada de batalhador ativo em prol do restabelecimento da

verdade; contudo, se Deus me chamou ao labor do ministério católico, devo

obedecer, compreendendo que o meu combate é no silêncio e na meditação,

longe dos olhos indiscretos do mundo.

*

Aquelas conversações construtivas repetiam-se diàriamente. Quando o

sacerdote não comparecia, a viúva Davenport, Dolores e João de Deus, seguidos

de Alcione, prosseguiam nos mesmos comentários. Eram passagens

evangélicas, livrinhos de meditações, contos educativos, o material de luz das

palestras fraternais do grupo modesto. Padre Damiano, de vez em quando,

contava a história dos primeiros mártires do Cristianismo, e a recordação dos

sacrifícios provocava um manancial de lágrimas benéficas. A lembrança de sua

resistência heróica, de sua exemplificação de coragem, bondade e fé, acendia,

em todos, novas claridades confortadoras.

Os meses corriam céleres para aquela reduzida assembléia de corações,

que não desejava outra coisa senão a paz perfeita em Jesus.

A pequena Alcione encontrava singular encanto nas descrições dos

tempos remotos, em que os cristãos perseguidos se reuniam nas catacumbas

abandonadas. A narrativa das festividades bárbaras da época de Nero

marejava-lhe os olhos, mas, quando ouvia a leitura das respostas firmes dos

mártires aos algozes, exultava de entusiasmo. Denunciando vocação para o

sacrifício, certa vez interrogou:

— Padre Damiano, onde é agora o circo? E as feras? Ainda podemos

sofrer para mostrar a Jesus que não estamos de acôrdo com os que o

crucificaram?

O religioso achou muita graça na lembrança e explicou:

— Sem dúvida, poderemos testemunhar nossa fé a todo tempo, em tôdas

as circunstâncias.

E observando que a criança aguardava resposta completa, concluiu

sorrindo:

- Agora o circo é o mundo e, na maioria dos casos, as feras são os homens.

*

110

Dois anos, relativamente tranqüilos, assim passaram, O religioso amigo

vivia sempre na expectativa de uma surtida à América. Quando todos os planos

pareciam ajustar-se ao cometimento, surgia um imprevisto dominante.

Adiavam-se então as esperanças, indefinidamente. Madalena Vilamil, todavia,

gozava melhor saúde, com exceção dos pés, que a obrigavam a se contentar

com a pequenina paisagem da sua pobre granja. Movimentava-se, porém, sem

maiores torturas, dentro de casa e no âmbito do quintal, e isso era motivo de

enorme satisfação. As palestras e reflexões diárias, sôbre a vida espiritual,

renovavam-lhe as fôrças psíquicas. Tinha ilimitada confiança no futuro de alémtúmulo.

No trato das idéias novas, chegava à conclusão de que a viuvez e a

pobreza material representavam condições do testemunho e em tudo havia

possibilidades de honrar os decretos divinos. Recordava o passado, detinha-se

nas reminiscências dos dias mais tormentosos e refletia que as piores

situações haviam passado. Além do mais, a Providência lhe concedera um

bálsamo celestial nas carícias da filhinha, cuja companhia representava o alfa e

o ômega da sua vida. Sua fé religiosa, ao influxo dos novos conhecimentos,

ganhara maravilhosos poderes de resistência. Estava certa de que encontraria

novamente o espôso e os pais, quando entregasse o corpo material às

sombras do túmulo. Essa crença proporcionava-lhe constante renovação de

energias morais, e chegada a noite, na hora das preces, sentia doce

tranqüilidade de consciência e infinita esperança a encher-lhe o ferido coração.

Por essa época, verificou-se memorável evento no sítio. Atendendo à

generosa interferência de amigos, os EstigarríbiaS consentiram no casamento

de João com a Dolores; e Madalena muito se regozijou com o feito. A

cerimônia, muito simples, foi celebrada na residência da noiva, pelo padre Damiano,

com a presença de D. Alfonso, que via no feito um elo a unir a fazenda

poderosa à humilde chácara confinante.

João de Deus, no entanto, casara-se sob condição de continuar na mesma

situação de semi-liberto, da qual a espôsa teria de compartilhar. Dolores,

todavia, ficou livre para prosseguir cooperando com a ex-senhora, como lhe

aprouveSse, apesar de Madalena ter agenciado outra serva, indispensável aos

trabalhos da horta e do pomar.

A família Estigarríbia, desejando talvez apagar as más impressões do

passado, mandou construir uma casinha modesta para o casal, justamente na

divisa da chácara, para que a senhora Vilamil não ficasse afastada dos seus

amigos prestimosos.

Dessarte, o casamento da serva não alterou o regime doméstico de

Madalena, de maneira essencial.

E, como a interpenetração de planos constitui fenômeno inelutável no

curso da vida, vejamos o que ocorria a Antero de Oviedo no plano espiritual.

Em região de sombras compactas, seu espírito reparava com lágrimas de

compunção a inconsciência de outrora. Azorragado pelo remorso, tinha a

impressão de estar mergulhado em noite infinda, no bôjo imenso de insondável

abismo. Dois anos lhe pareciam dois séculos de amargor inconcebível. De

quando em quando, tentava erguer-se do abatimento que o prostrava, para

logo recair em marasmo de agonias, como se lhe não fôra possível intentar,

sequer, desprender-se daquela geena.

A princípio, tinha fome e sêde, mas, aos poucos, tais sensações cediam a

111

padecimentos mais atrozes. As últimas impressões da morte trágica subsistiam

e até se requintavam, esmagando-o, qual catadupa de indefiníveis angústias.

Terrifico silêncio envolvia-o, uniforme, invariável. Quando ansiava por ouvir

vozes humanas, chegavam-lhe ruídos confusos de gargalhadas escarninhas,

deixando-o quase convicto de estar sendo espreitado por inimigos intangíveis

que, embora igualmente mergulhados no manto de trevas espêssas,

zombavam de Deus e das noções santificantes da vida.

Lágrimas dolorosas lavavam-lhe o rosto, incessantemente Apesar de

convencido do seu desprendimento do corpo carnal, guardava a impressão

nítida de sua personalidade humana.

Precito impenitente recompunha os mínimos elos das experiencias em que

fracassara. A infância na Espanha, os desvelos maternais de D. Margarida, as

preciosas oportunidades perdidas, tudo, tudo o atormentava e transformava o

coração em fonte de pranto inestancável As Possibilidades de Paris apareciamlhe

agora como largos caminhos que o teriam Conduzido ao dever mais nobre,

e, no entanto, cruel e egoisticamente desprezado. A lembrança do crime

praticado com a prima, enfêrma e indefesa, era uma úlcera envenenada que

lhe agravava a desventura. Era como se ali a tivesse, recebendo a falsa notícia

da morte do marido, acarinhando a recém-nascida, desfeita em pranto. Depois,

era o moço irlandês viajando cheio de confiança nos seus préstimos fraternos,

e — coisa extraordinária! — no pandemônio das recordações como que lhe

ouvia as últimas palavras na véspera da partida.

Apuado pelo remorso, voltava às ruas parisienses devastadas pela varíola

ascorosa, e debalde tentava regredir no tempo, a fim de corrigir o êrro

clamoroso. Nos pesadelos que o assediavam, revia a casa de Santo Honorato,

ansioso por defender Madalena até ao fim, mas, simultâneamente, a lembrança

do cemitério, com as aleivosas sugestões de Susana, passava-lhe no cérebro

entontecido, qual nuvem de fogo. Uma azenha ao estridor de reminiscências

amargas que pareciam não ter fim. A recordação do regresso à terra natal com

propósitos ignóbeis e a insistência brutal por satisfazê-los com a prima, que

deveria respeitar, levavam-no às raias da loucura. Federigo Izaza surgia-lhe

como verdugo de cuja influência aviltante era preciso fugir, mesmo de longe.

Atemorizavam-no as reminiscências concernentes ao comércio e tráfico

escravista. Revia as cenas torpes das embarcações negreiras, nas raras vêzes

que as visitara ao largo da costa africana. E ouvia as lamentações e o

praguedo dos que se viam obrigados à separação dos entes queridos. Tudo lhe

aflorava à mente dolorida, com prodigiosa vivacidade e nitidez.

Como não conseguira entrever a verdade na Terra? Que venda estranha

lhe cegara os olhos? Por que não amparara Madalena nas vicissitudes da

sorte, em vez de arruinar-lhe o porvir de espôsa e mãe? Por que anuíra à

criminosa sugestão de abusar das criaturas ignorantes, conduzindo-as a

imerecido cativeiro, quando lhe competia auxiliá-las fraternalmente, por

comezinho dever de humanidade?

Rememorando o passado, Antero de Oviedo chorava convulsivamente,

azorragado na consciência.

O veneno fulminante, com que se suicidara, parecia corroer-lhe ainda as

vísceras, num suplício sem fim.

Tremia, chorava, aniquilava-se dentro da sua imensa dor.

Todavia, o fato que mais o impressionava era ter a destra mirrada e um dos

pés ressequido! A treva impedia-lhe a visão, mas, de quando em quando, pelo

112

tato, com sensações dolorosas, ia compreendendo a singular anomalia.

Escoados mais de setecentos dias de incomensurável amargura, certa

vez rogou a Deus, com tôdas as veras do coração, lhe permitisse uma esmola

de luz no seio das trevas que o envolviam. Recordou a figura do Cristo, que

jamais procurara entender na Terra, e chorou como nunca. Implorou, então,

compungidamente, que o Salvador se apiedasse da sua angústia infinita. Em

voz baixa, qual criança imbele, pediu com sinceridade, embora reconhecendo o

demérito próprio, que o auxiliasse, permitindo que sua mãe adotiva viesse

trazer-lhe uma palavra de coragem e reconfôrto.

Depois de assim recorrer com a humildade de quem suplica saturado de

inútil desespêro, viu, pela primeira vez, destacar-se na treva um círculo de

claridades confortadoras. Tomado de assombro, sentiu que alguém se

aproximava em seu socorro. Mais alguns instantes e o Espírito de D. Margarida

tornava-se-lhe visível.

— Ah! minha mãe!... — exclamou, arrastando-se para beijar-lhe os pés —

há quantos séculos me separei do seu coração afetuoso?

A espôsa de D. Inácio, cercada por um halo de luz, tinha os olhos

nevoados de lágrimas. Inclinou-se e murmurou docemente:

— Oh! meu filho, como te encontro!... Onde puseste o amor que te dei? Por

que te chafurdaste no tremedal das paixões humanas, quando te ensinei a

elevar o pensamento a Deus, desde os primeiros dias da tua infância?

Em atitude maternal, sentou-se ao seu lado e acariciou-lhe a cabeça, que o

rapaz conservava sôbre a mão esquerda, a chorar convulsivamente.

— Como te venho encontrar, Antero! Os mensageiros de Jesus permitiram

viesse trazer-te alguma consolação. Reanima-te, filho!...

— Perdi tudo — exclamou o desventurado

não me resta da experiência humana senão um mar de tormentos e lágrimas.

E, por fim, minha mãe, Deus me atirou neste abismo nefando!...

Mas ã nobre entidade lhe cortou a palavra, asseverando:

— Não blasfemes! Deus é Nosso Pai e nos criou para a luz eterna. Somos

os responsáveis pela queda nos desfiladeiros cruciais. A Providência nos cerca

de todos os carinhos, traça as sendas de amor que devemos trilhar e, no

entanto, meu filho, no círculo da liberdade humana, relativa, a paixão nos

aniquila, o orgulho nos cega, o egoismo nos encarcera em suas prisões

malsãs. Como poderias afiançar que o Senhor te conduziu a êste lugar

tenebroso, se desprezaste o roteiro da sua infinita misericórdia?

Antero, entretanto, tocado pelas angustiosas recordações terrenas,

obtemperou amargurado:

— Mas tudo no mundo conspirou contra mim!

— Não seria mais acertado dizeres que conspiraste contra tudo?

Combateste os sentimentos nobres que te infundi na infância; guerreaste a paz

do nosso lar; tramaste contra os sêres nascidos em liberdade. Onde pus, em

teu coração, os ensinos do Cristo, entronaste a indiferença; no caminho de

duas almas em união santificada por Jesus, semeaste a mentira e o sofrimento;

nas regiões por Deus destinadas à vida livre, plantaste os espinhos da

escravidão. Não teria sido misericórdia arrancar-te aos sorvedouros do mal,

trazendo-te a esta noite desolada para que pudesses meditar? Abençoa as

dores que te ferem o espírito e estraçalham o coração. Essas amarguras

atrozes obrigam-te a calar, para que a verdade te fale à consciência. Ainda

para os mais broncos criminosos, endurecidos no mal, sempre surge um

113

momento em que, premidos pela dor, são forçados a ouvir a voz de Deus.

O réprobo soluçava nos braços da interlocutora, qual filho ansioso por

desabafar tôdas as mágoas no regaço materno. Aquelas palavras deram-lhe

grande alento ao coração delido.

— Reconheço a enormidade das minhas faltas concordou humildemente

—, no entanto, mãe, fui órfão de tôdas as alegrias!

— Não o fôste tal, e sim, e só, um ser incontentável.

— Aspirações cortadas por um destino cruel...

— Ninguém pode alcançar felicidade quando transforma as aspirações em

caprichos inferiores.

Traduzindo num gesto relutância e desacôrdo, ei-lo a insistir:

— Tôdas as lutas terrestres ser-me-iam favoráveis se Madalena me

houvesse atendido ao coração. Ao seu lado eu cultivaria a virtude, fugiria do

mal, teria vencido as mais rudes batalhas, mas...

A nobre entidade, aproveitando a pausa reticenciosa, redargüiu com energia

e serenidade:

— Não acuses tua irmã por faltas oriundas de tuas próprias fraquezas.

Madalena jamais te faltou com a exemplificação fraternal. Assediada por necessidades

cruéis, foi tua amiga desvelada; nas horas de incerteza, sempre

teve uma palavra de inspiração para os teus desígnios. Que mais poderias

desejar?

Êle abanou a cabeça e respondeu:

— Mas, de coração foi sempre inflexível. Talvez um gesto de ternura, um

beijo, uma esperança... me salvassem...

— Como nunca te lembraste de lhe oferecer o carinho com desinterêsse

de coração? Por que não recordaste o beijo fraternal, com cuja essência poderias

retificar a mentira execrável que lhe agravou os padecimentos no

mundo? Viveste, meu filho, aproveitando as situações críticas para forjar ações

criminosas; acompanhaste-lhe as lágrimas com atitudes frias e gozaste

intimamente com a separação de duas almas que Jesus havia unido em suas

bênçãos de amor. Que seria de ti se Madalena houvesse atendido aos teus

arrastamentos inferiores, esquecendo os deveres sagrados de espôsa e mãe?

Terias uma noite mais densa, dores mais cruéis. Caíste, é verdade; mas, ainda

podes orar, ainda tens a dádiva do pranto remissor!...

O sobrinho de D. Inácio, agora, parecia flagelado por uma tempestade de

lágrimas. Tinha a impressão de recuperar a razão, mediante aquelas

recriminações lançadas face a face pela lealdade da mãe adotiva. Nada

obstante os sofrimentos experimentados, ainda não havia tudo aprendido.

Sômente agora conseguia esmar a extensão da sua cegueira criminosa no

mundo. Esmagado pelo justo reconhecimento das faltas clamorosas, sentiu-se

incapaz de algo mais objetar, permanecendo à mercê dos remorsos pungentes.

D. Margarida, depois de longa pausa, acariciou-lhe a mão mirrada e falou:

— Já refletiste nos resultados da emprêsa que tentaste no mundo? O

menosprêzo da oportunidade reparadora fere-te agora com amargas

conseqüências. A mão que assinou documentos condenáveis, aí a tens

mirrada; o pé que se moveu no rumo dos feitos delituosos está ressequido; os

olhos que procuraram o mal repletam-se de sombras espêssas...

Ao ouvir tais coisas, o rapaz mostrou reconhecer num gesto a sua penosa

situação, mas, lembrando-se sübitamente da presteza com que sua prece fôra

atendida, no caso da vinda de sua mãe pelos laços espirituais, asseverou

114

humildemente:

— Rogarei a Jesus me socorra com a liberdade de movimentos.

— Sim — explicou D. Margarida —, o Senhor não te negará o quinhão da

sua excelsa bondade, mas só ao contato de novas lutas terrenas conseguirás

reintegrar-te nas faculdades sagradas que espezinhaste, esquecendo

voluntàriamente os mais nobres deveres.

— Como assim? — interrogou admirado.

— Jesus perdoa, não com as fórmulas verbais, tão fáceis de enunciar, mas

com a renovação do ensejo de purificação, O corpo carnal é tenda preciosa, na

qual podemos corrigir ou engrandecer a alma, apagar as nódoas do passado

obscuro, ou desenvolver asas divinas, por nos librarmos a pleno espaço em

busca dos mundos superiores. Sômente na Terra, meu filho, onde imprimiste

tão negro cunho aos próprios erros, encontrarás meios de regenerar a saúde

espiritual, pervertida no crime.

— Mas não bastaria a misericórdia divina a meu favor? — volveu ansioso,

por afastar a perspectiva de humilhações no ambiente humano.

— A misericórdia jamais falta, em tempo algum; ela permanece na afeição

sincera dos amigos espirituais, que velam por ti, e no próprio remorso que te

molga o espírito desolado. Deus tudo concede, mas não nos isenta das

experiências necessárias. O perdão do Pai, ao lavrador ocioso, está na

repetição anual da época do plantio. Nessa renovação de possibilidades, o

semeador indolente encontra os meios de regenerar-se, ao passo que o

trabalhador diligente e ativo defronta condições de engrandecimento sempre

maior. Compreendes, agora, o perdão de Deus?

— Compreendo!

— Pois bem; se rogaste ao Senhor a minha presença, implorei igualmente

a Jesus me permitisse reorganizar as tuas possibilidades de trabalho no orbe

terrestre. A bondade infinita do Mestre concedeu-me essa dita. Só assim

poderás restabelecer o equilíbrio da tua personalidade.

E ante o gesto de espanto do rapaz, que a ouvia mudo, a benfeitora

prosseguiu:

—Ainda poderás aproveitar a missão de Alcione, que voltou ao nosso núcleo

familiar a fim de nos ensinar a todos a humildade, o amor, o perdão recíproco e

a obediência a Deus. Não terás a beleza física de outros tempos, nem a

liberdade plena de movimentos, mesmo porque regressarás ao mundo para um

esfôrço de cura; todavia, se bem souberes renunciar aos teus caprichos, ao

terminar as futuras provas estarás reintegrado na harmonia espiritual, para

prosseguimento de novas tarefas evolutivas, na carne ou fora dela. Jesus me

concedeu a felicidade de trazer-te esta dádiva. De ti, porém, depende agora

prolongar teus sofrimentos expiatórios, ou assumir o compromisso de os

abreviar.

Antero temia as angústias da Terra, mas, compreendendo a generosa

intenção da venerável amiga, murmurou:

— Aceito.

*

Desde o momento em que se revelou absolutamente conformado, sentiu

que o Espírito maternal o sustinha nos braços fortes e acolhedores.

Por quanto tempo andaram assim, os dois, através de extensas paragens

115

sombrias? De si, não o saberia dizer.

Em dado instante, porém, viu-se, com a benfeitora, defronte de modesta

vivenda cercada de arvoredo. Não teve dificuldade em identificar o teto humilde

onde havia instalado Madalena. Aproximaram-se. A espôsa de Cirilo

entretinha-se a costurar junto da filha, que parecia muito atenta ao trabalho

materno. O rapaz esboçou um gesto e teve uma exclamação de surprêsa, mas

logo compreendeu que ninguém dera pela sua presença naquele aposento

banhado de sol.

D. Margarida tranquilizou-o com um gesto e acrescentou:

— Vês? Ela vem lutando herôicamente e aproveita agora as contingências

da pobreza material para elevar-se a Deus.

O precito entrou a meditar profundamente. Daí a instantes, todavia, a

graciosa Alcione, como que tocada no uno do coração, exclamou com estranho

fulgor nos grandes olhos:

— Mamãe, a senhora tem-se lembrado do primo Antero?

— Por que perguntas?

— É que hoje quero pedir a Deus por êle, quando a senhora fôr rezar.

— Pois sim — disse a espôsa de Cirilo, comovida.

- Mamãe, há quanto tempo êle foi para o Céu? — interrogou a linda

criança, na sua encantadora ingenuidade.

— Há pouco mais de dois anos.

Mal sabiam que Antero de Oviedo ali estava ajoelhado junto delas e

desfeito em lágrimas, ao refletir que aquêles dois anos lhe pareciam dois

longos séculos.

116

7

Caminhos de luta

A chegada dos retirantes irlandeses em terras da América ocorreu sem

maiores incidentes, não obstante a demorada travessia, delonga normal

naquela época.

O velho Gordon, como guia experimentado, conduziu a caravana com

segurança ao pôrto de destino, onde os imigrantes se instalaram na zona mais

tarde absorvida pelos subúrbios de Hartford.

Todos os corações estuavam de esperanças novas.

Cirilo estava deslumbrado com a riqueza da terra, impressionando-se com

a beleza dos horizontes. A paisagem evidenciava, de fato, um mundo diferente,

que, no dizer de Abraão Gordon, era a região destinada por Deus aos homens

de boa vontade.

A adaptação da pequena comunidade não apresentou dificuldades

apreciáveis. Em breves dias, identificava-se satisfeita com as mudanças

havidas, embalando-se em perspectivas promissoras. A caça e a pesca eram

novidades que a todos proporcionavam não sômente diversões inéditas, senão

também abundante celeiro.

Samuel e Abraão, aportados à nova terra, adquiriram uma centena de

escravos, e, com o auxílio do braço negro, iniciaram as primeiras culturas. Ao

calor de entusiasmos fecundos, desdobravam-se energias para as tarefas

imensas, assinalando-se que, ao fim de poucas semanas, todo o trabalho

estava normalizado.

Recordando o berço natal, a extensa região que abrangia as duas

grandes propriedades rurais foi batizada com o expressivo nome de Nova Irlanda.

Samuel e Constância não cabiam em si de contentes e, apesar das

saudades do Ulster, faziam o possível para reproduzir e conservar as pequeninas

coisas que adornavam as antigas fazendas da Irlanda distante.

Movimentavam-se os empreendimentos, nesse sentido, não apenas no interior

doméstico, mas igualmente na divisão das pastagens, na localização da

lavoura de batatas e legumes, nos aviários, estábulos e redis.

Cirilo, ao lado de João e Carlos Gordon, promovia importantes iniciativas.

Cheios de energia e mocidade, operavam, os três, uma verdadeira revolução

agrária, orientando grandes turmas de servos, na transformação benéfica dos

patrimônios da natureza. Aqui, eram braços d’água captados a distância de

quilômetros, para fertilizar pastagens e acionar moinhos; além, eram os

campos de experimentação dos cereais encontrados. Aproveitavam-se todos

os conselhos dos colonos chegados antes dêles. Regiões vastas foram

destinadas ao plantio do fumo — base econômica de maior importância para o

comércio de exportação.

Cirilo, principalmente, não tinha meças de repouso, encantado com a

grandeza do território que lhe desafiava a mocidade robusta e empreendedora.

Atividade posta no trabalho intensivo e pensamento voltado para o lar distante,

iniciou logo a construção da casa própria, fiel aos desígnios trazidos da Europa.

A exemplo do que fazem aves providas, escolhia com desvelado carinho o

material mais adequado à construção do ninho de futura tranqüilidade.

Lembrava as menores observações da companheira, com referência ao

assunto, para que fôssem cuidadosamente desdobrados os serviços iniciais. A

117

paisagem parecia corresponder aos mais íntimos desejos da espôsa, pois de

fato encontrara uma pequena zona de cômoros verdejantes, regada pelas

águas claras do Connecticut, tudo a esbater-se em magnífico fundo azul. Cirilo

cercara o local com particular cuidado, para que as árvores frutíferas

desenrolassem os primeiros ramos.

Ouvindo-lhe os planos de futuro, todos calcados em sonhos de paternal

ventura, Constância sorria, embevecida, e, por sua vez, idealizava mil coisas

para que a nora só encontrasse bem-estar no ambiente colonial.

Estava a completar-se um ano que haviam emigrado, um ano de

esperanças e trabalhos para Cirilo, e também de saudades e expectativas ansiosas

de notícias que jamais lhe chegavam, excetuadas as cartas recebidas

nos primeiros tempos.

Agora, esperava êle uma embarcação segura para voltar a Paris, em busca

da espôsa que tanto o preocupava. Entretanto, êsse navio, que o deveria levar,

trazia-lhe dolorosa carta do tio Jaques, na qual, com mão trêmula, comunicava

os tristes acontecimentos de França. Historiava a epidemia com tôdas as côres

negras e, por fim, registrava, pesaroso, a espantosa notícia do falecimento de

Madalena e de seu pai, pouco depois da morte de D. Margarida, e mais que, de

Versalhes, Antero de Oviedo lhe comunicara que seguiria para a América do

Sul, sobrecarregado de profundos desgostos.

A leitura da lutuosa carta fizera-se acompanhar de efeito fulminante. O

rapaz debalde ensaiou um gesto de resignação ante a fatalidade que lhe

modificava o destino. As letras baralharam-se-lhe na retina, trêmulo de

assombro. Lágrimas ardentes misturavam-se a soluços de irremediável aflição,

apesar das expressões confortadoras de sua mãe. Naquele momento, tudo

estava terminado para o seu coração afetuoso. De que lhe servira tamanha

bagagem de esperanças se a fatalidade assim anulava todos os projetos

sublimes? Agora, concluía que a mudança, efetuada com tão grandes

aspirações de futuro venturoso, não passava de estranho e miserável exílio.

Custava-lhe admitir a realidade das informações inesperadas e exasperantes.

Entretanto, a carta do velho amigo de Blois não dava margem a qualquer

dúvida. Além disso, na mesma embarcação que lhe trouxera a infausta nova,

chegaram diversos imigrantes franceses, que se declaravam involuntàriamente

expatriados, diante da epidemia devastadora.

O pobre rapaz caiu em situação desesperadora. Espantava-o a tremenda

impossibilidade de qualquer lenitivo. Seu intraduzível sofrimento tinha, ao seu

ver, o cunho de fatalidade irremediável. Prostrado em febre alta, foi forçado a

acamar-se, movimentando tôda a “Nova Irlanda” em tôrno do seu leito. Em vão,

porém, sucediam-se os argumentos consoladores. Seu olhar era quase

indiferente às exortações evangélicas do ancião de Belfast, e reagia,

dificilmente, mesmo aos apelos maternais. Ao seu ver, aquela dor era

inacessível ao raciocínio de quantos o rodeavam. Nenhum dos seus havia

conhecido Madalena e ninguém na colônia podia avaliar sinceramente a sua

desgraça irreparável.

Constância, porém, desfazia-se em desvelos, na sua infinita capacidade de

afeição. Na véspera da missa que mandara celebrar em intenção da nora

supostamente falecida, abeirou-se do leito do filho inconsolável e falou-lhe com

carinho:

— Meu filho, é verdade que o teu sofrimento é indefinível e que longe

estamos de imaginar tôda a intensidade do teu desgôsto, mas, peço-te con118

siderar minha confiança de mãe!... Acaso terão terminado todos os teus

deveres neste mundo? Reconheço que teu amor conjugal é muito grande;

todavia, nós também te amamos muito!...

Quis responder, asseverando que sua ventura estava destruida, que o

mundo não lhe oferecia novos ideais; contudo, a voz morria-lhe na garganta

opreSsa.

— Não te entregues a êsse abatimento fulminante de coração —

continuava a palavra maternal com profundo desvêlo. — Não te peço êsse

sacrifício de teus sentimentos apenas por mim. Há três noites Samuel não

dorme, dizendo-se perseguido de remorsos atrozes, por te haver trazido sem a

espôsa! Não sei mais que fazer, meu filho, por demonstrar que em tudo

devemos obedecer à vontade do Pai que está nos ceus

Nesse ínterim, a bondosa senhora interrompeu-se para enxugar as

lágrimas.

— Também sofro com os pensamentos que afligem teu pai, mas que seria

de nós, aqui, sem as iniciativas do teu cérebro e o valor dos teus braços?

Como vês, a felicidade na colônia não se resume num sonho de quem troca o

berço em que nasceu por uma pátria diferente, O equilíbrio doméstico exige

alta soma de esforços e de sacrifícios. Qual a situação se não tivesses vindo?

Não podíamos continuar dependendo tanto dos Gordons, nossos velhos

amigos. Não acreditas, meu filho, que se hajam cumprido insondáveis

desígnios de Deus? Se puderes, tranqüiliza teu pai e a mim também, neste

transe tão amargo, revelando conformação e paciência; e se não fôr agravo

aos teus padecimentos íntimos, acompanha-nos, amanhã, ao ofício religioso

em intenção da paz de Madalena no seio de Deus.

As considerações maternas, ditas com inflexão de imenso carinho,

atingiam fundo o coração do filho.

— Logo que possas, levanta-te — prosseguiu, passando-lhe a mão pelos

cabelos —, recorda as nossas necessidades de trabalho, pensa nos teus

irmãos!...

Êle continuou silencioso, não obstante os inestimáveis resultados da

exortação instante e humilde.

Tão logo a genitora volveu ao interior da casa, êle começou a meditar mais

sêriamente na sua necessidade de reação. Não seria egoísmo insular-se, de

modo absoluto, na dor que o acabrunhava? Cumpria não agravar as

tribulações maternas, nem abandonar o genitor, em meio de tantos

empreendimentos iniciados. Nada no mundo poderia cicatrizar a úlcera que se

lhe abrira na alma e, contudo, era preciso ocultá-la, retomar a charrua cotidiana

e renovar as disposições, a fim de não parecer covarde. Com grande esfôrço

levantou-se. A contemplação da natureza ambiente não lhe devolveu as

alegrias primitivas. A magnífica paisagem americana assumia, agora, a seus

olhos, o aspecto de cemitério adornado de árvores esplêndidas, em apoteose

de flores.

A missa do dia imediato foi particularmente penosa para o seu espírito

afetuoso. Os Gordon e os Davenport ocupavam os lugares mais destacados do

interior da capela, enquanto os escravos se conservavaxn a certa distância,

olhando-o com olhos piedosos. O pobre rapaz, entrajado em rigoroso luto, não

sabia como disfarçar por mais tempo as emoções que lhe estrangulavam a

alma sensível. Ao terminar o ofício, quando recebeu o último abraço de

condolências, sentiu um grande alívio.

119

Agora desejava ardentemente embarcar para a França, ao menos para

visitar o túmulo da companheira inolvidável e rever os sítios inesquecíveis da

sua efêmera ventura conjugal; mas o professor de Blois anunciava sua vinda

breve, e definitiva, acompanhado de Susana. Jaques revelara, em todos os

trechos da carta, amargurosa desolação. Também fôra vítima da enfermidade

terrível. A escola amada estava extinta. E pretendia embarcar, sem perda de

tempo, atendendo aos rogos da filha, aflita para afastar-se do teatro de

acontecimentos tão tristes.

Cirilo ponderou que seria conveniente esperá-los. Certo lhe trariam

pormenores que ansiava por conhecer. Daí por diante, duplicou as próprias

tarefas, buscando, no trabalho, lenitivo à mágoa profunda que o devorava.

Taciturno e, nada obstante, enérgico e resoluto, levantava-se quando ainda as

estrêlas luziam no firmamento, compartilhando no esfôrço rude dos escravos.

Costumava fazer as refeições no campo e só regressava ao lar quando os

astros da noite despontavam.

O quadro doméstico prosseguia sem alterações, quando a chegada de

Jaques com a filha veio suscitar assuntos novos. Diàriamente, à noite, renovavam-

se as palestras animadas, em casa de Samuel, ou na de Abraão, ao

ritmo da curiosidade geral pelas notícias do Velho Mundo, O espôso de Madalena

lograra algum confôrto com a presença do prestimoso amigo e, fumando o

seu cachimbo, calado, ouvia as dolorosas descrições da epidemia que flagelara

as populações francesas do norte. De quando em vez, Susana intervinha no

assunto, com sutileza, por dar impressões pessoais. Contara a todos que não

pudera abraçar Madalena Vilamil na hora extrema, porém tivera oportunidade

de acompanhar Antero de Oviedo nas derradeiras homenagens devidas a D.

Inácio. Dada a sua presença em Paris, podia descrever os quadros

impressionantes da capital francesa — circunstância que frisava com

entusiasmo — carregando nas tintas negras para produzir maior efeito no

auditório atento e estarrecido.

Cirilo guardou carinhosamente a cópia das anotações de sepultamento

colhidas pela prima, em Paris. O fúnebre documento, aos seus olhos, era o

último capitulo da realidade sem remédio.

A situação em “Nova Irlanda” era muito próspera. As duas fazendas

realizavam vultosos negócios. Com a vinda dos dois colonos tão importantes,

ia resolver-se um grande problema, que era o da escola. Abraão Gordon já

havia ponderado o assunto e resolvido procurar um professor para o grande

centro rural, O educador de Blois, todavia, atendeu com vantagem a

semelhantes necessidades.

Espírito corajoso e realizador, em poucos dias iniciava o movimento de

instrução primária, entusiasticamente aplaudido por todos os companheiros. As

fazendas vizinhas interessaram-se igualmente pela iniciativa. Crianças de

longe vinham matricular-se nas aulas prestigiosas, dirigidas por professor de

reconhecido mérito;

Notava-se em Susana uma transformação singular, parecia outra, ali assim,

no ambiente americano. Renunciara aos hábitos frívolos, punha de parte a

ociosidade e auxiliava o pai nos trabalhos escolares. O próprio Jaques estava

impressionado com aquela transformação. Com alto senso psicológico de

mulher, Susana dividiu turmas em classes, estabeleceu melhor aproveitamento

dos horários, arregimentou planos surpreendentes. Conhecendo o interêsse de

120

Cirilo pelos escravos, consagrou parte do dia à instrução dos filhos dos cativos,

visitava as senzalas pela manhã, ministrando noções de higiene e ensinando o

melhor meio de lograr harmonia doméstica. Lançou a idéia de um grupo

musical formado pelos servos, iniciativa que alcançava enorme êxito, após

algum tempo de laboriosa preparação.

Tornara-se, enfim, credora da estima geral, esforçava-se por ser útil a

grandes e pequenos, sem embargo dos sentimentos menos dignos que lhe

moviam o coração. Tornara-se a alma de tôdas as realizações mais intimas,

pela afabilidade com que dissimulava as intenções. Não sômente se consagrava

ao trabalho gratuito em benefício das crianças necessitadas, como

organizava os serviços da capela, cooperava em todos os misteres de assistência

aos enfermos, prestava auxilio eficiente aos matrimônios improvisados.

Não raro, chegavam a Hartford pequenas turmas de jovens órfãs ou de

outras candidatas ao matrimônio na colônia, onde o número de homens

sobrepujava, de muito, o de mulheres e constituía espetáculo interessante a

parada dos rapazes do campo, consultando as qualidades das futuras espôsas.

Raramente se examinavam os traços de beleza física. Quase todos, porém, se

interessavam pela saúde das que reuniam melhores requisitos de capacidade

para o trabalho, principalmente rijeza de pulsos e tornozelos. Os serviços da

colônia exigiam pesados esforços físicos, ou então longas caminhadas através

das lavouras. As concorrentes julgadas incapazes dificilmente conseguiam

noivar.

As famílias de tratamento entretinham-se em assistir às interessantes

competições, encontrando nelas inesgotável assunto para serões humorísticos.

Jaques Davenport chegara mesmo a observar que o novo continente era a

primeira região do mundo na qual a mulher deveria vencer, longe da moda, e

da faceirice femininas.

Em tal ambiente, era de prever que Susana Duchesne interessasse a todos

os rapazes de nobre educação. Inteligente e afável, estimada por tôda a

comunidade, dado as suas iniciativas de trabalho, entrou a ser reqüestada com

empenho. E, contudo, ela se mostrava insensível às atenções de Carlos

Gordon, que a cortejava francamente. No íntimo, Susana recalcava o seu

despeito bem feminino, ao verificar que o primo, cuja afeição não hesitara em

conquistar mediante um crime, dava-lhe a impressão de não lhe perceber a

presença, senão como irmã desvelada e sincera.

É verdade que o tempo lhe desfizera a sombria catadura, como se se

houvesse afeiçoado à própria dor, sem conseguir alijá-la. Nunca mais, contudo,

voltou a ser o mesmo homem de alegria sem mácula. A taciturnidade das

primeiras semanas de viuvez foi substituida por constante retraimento, e o riso

franco e sonoro de outros tempos transformou-se em discreto sorriso, ainda

assim, raro. Decorrido o primeiro ano, em que sobrepujara tôdas as expressões

individuais em serviço efetuado, a família começou a preocupar-se com a Sua

viuvez.

Constância, instigada pela sobrinha, por trás dos bastidores, certa noite

em que se achava a sós com o filho, chamou-lhe a atenção para o caso. Muito

delicada, evidenciando nobre prudência maternal, começou a dizer,

sensibilizada:

— Na verdade, tua situação de viúvo me preocupa muitíssimo. Não achas

acertado refazer o destino, cogitando de um novo lar? Aí já tens a casa que a

falecida, de saudosa memória, não logrou desfrutar. Quando te vejo a cultivar,

121

sôzinho, as roseiras e fruteiras, sinto que o coração se me aperta no peito!...

Mais vale abandonares aquelas plantações, que só teriam significação se

tivesses a consorte ao lado.

O rapaz não podia perceber a intenção materna e ponderou com

sinceridade cristalina:

— Tenho a impressão de que Madalena me acompanha em pensamento.

Já em Paris havíamos combinado os dispositivos ornamentais desta vivenda.

As roseiras do portão, o cultivo dos pessegueiros e mesmo a frente da casa

para o rio, são idéias dela, que não poderei esquecer. Se me não ficou ao

menos um filhinho para beijar, guardarei essas lembranças em penhor de

fidelidade à sua memória.

— Concordo com a nobreza de tuas recordações, mas não posso aprovar a

solidão em que vives. Suponho que poderias aliar as saudades aos imperativos

da vida real, pois, moço como estás...

Aparando de pronto a mal disfarçada sugestão, Círio respondeu:

— Julgo, minha mãe, que ninguém pode amar duas vêzes.

— Será talvez um engano, pois os afetos da vida não se confundem

nunca. Como espôsa e mãe, conheço o amor em formas diferentes e estou

habilitada a dizer que estimo o marido e os filhos com um só coração, mas a

cada um de certa maneira. E quando minha experiência fôese particular, há de

convir que, se muitas vêzes há consórcios de amor, também não faltam os de

conveniência.

— A senhora não admite que um homem possa viver sôzinho?

— Não vou tão longe, mas não vejo razão para que um rapaz, na tua

idade, se isole totalmente da vida, como vens fazendo.

— Mas... por quê? — indagou Cirilo intrigado.

A boa senhora teve certa dificuldade em condicionar a resposta, mas, num

momento, encontrou boa saída invocando os argumentos religiosos:

— Ora, meu filho, se Jeová se preocupou com a solidão de Adão no

Paraíso, dando-lhe a companhia de Eva, que não sinto eu, na minha maternal

fragilidade humana, ao ver-te sempre sozinho e triste? E a verdade é que Deus

estava no céu e nós estamos no mundo ...

— Mas o Criador — disse o rapaz, esforçando-se por sorrir às delicadas

sugestões maternas —não deu a Adão duas Evas...

A genitora também sorriu meio contrafeita e, contudo, prosseguiu firme:

— Deixemo-nos de humorismos. Eu estou encarando a sério a situação.

Ouve-me, filho: por que não esposas Susana, para que nossa alegria se

complete? Tua prima sempre te acompanhou os passos com extrema

fidelidade - Desde a infância que se interessa por teu bem-estar e procura o teu

coração. Jamais lhe ouvi qualquer censura aos respeitáveis sentimentos que te

levaram ao primeiro matrimônio. É um coração afetuoso, dedicado, fiel. Não

seria a criatura talhada para te restituir a ventura que bem mereces? E não

seria louvável que lhe oferecesses agora o teu braço protetor?

Cirilo esboçou um gesto de quem via confirmadas certas suspeitas mais

Intimas e afiançou:

— Desde a chegada do tio Jaques, noto de fato, na prima, umas tantas

pretensões, mas a verdade é que não posso esposá-la. Não se deve mentir

nem mesmo ao próprio coração.

— De qualquer maneira, porém — acentuou

D. Constância —, não se justifica a solidão em que vives. A própria Madalena,

122

se estivesse conosco, não concordaria com semelhantes atitudes.

Cirilo deu a entender que os alvitres seriam objeto de acuradas meditações,

mas estava longe de pensar que a investida materna representava o início de

cerrada ofensiva familiar, a fim de lhe modificarem os pontos de vista.

Daí por diante, entrou a reparar mais detidamente nas atitudes mínimas de

Susana, compreendendo-lhe as razões sutis no tratamento delicado

dispensado aos seus homens de serviço. A pretexto de atender às crianças

negras, ela percorria freqüentemente as zonas de trabalho rude, distribuindo

sorrisos e palavras de confôrto. Cirilo começou a pensar naquelas

necessidades do homem moço, insulado no mundo, sem assistência afetuosa

de uma alma feminina e sem o estímulo dos filhinhos, coisas que sua mãe fazia

questão de salientar, quase tôdas as noites, no serão doméstico. Por vêzes, as

idéias batalhavam-lhe no cérebro oprimido. Via-se à frente de caminhos de luta

áspera, em que necessitava vigilância para não cair. Assediado por uma

torrente de opiniões, chegava a temer que as próprias idéias lhe faltassem no

momento oportuno. A idéia de segundas núpcias lhe causava tal ou qual

repugnância. Sempre considerara o amor como patrimônio intransferível. Era

impossível bipartir a alma, trair os estos espontâneos do coração.

*

Os meses corriam em tensas expectativas para a filha de Jaques, quando

inesperado acontecimento veio imprimir novo rumo à situação.

Certa manhã de radioso domingo, após o culto, o ancião de Belfast procurou

Susana, declarando-se mensageiro de grave assunto, que desejava examinar

a sós com ela. A jovem atendeu, algo perturbada, visto não contar com a

assistência do genitor, que se encontrava ausente.

Logo que se defrontaram a sós, na saleta particular, Abraão Gordon

expandiu-se com alegria:

— Não te vexes — exclamou sorridente, com ares patriarcais —, teu pai

não ignora o que te venho dizer. Conversamos ontem à noite, tendo-me êle

asseverado que o caso não lhe reclama a autoridade paternal e sim o teu

coração de filha.

— Mas, que vem a ser tudo isto, “tio” Abraão? - interrogou a jovem

obedecendo aos costumes familiares, com a designação mais íntima.

— Di-lo-ei sem circunlóquios — respondeu o ancião sorridente: — É que a

colônia está precisando de gente nova e novos lares, e Carlos me incumbiu de

consultar-te quanto à possibilidade de um enlace, que a todos nós se afigura

auspicioso.

Susana descorou. Não esperava tal coisa. A presença do velho amigo, que

se habituara a respeitar desde menina, impunha-lhe uma resposta leal. Mas a

sinceridade e nobreza da consulta causavam-lhe estranha emoção. Admirava

Carlos Gordon, como rapaz culto e digno, mas não conseguiria ir além disso.

Pois que se lhe impunha formal recusa, procurava, debalde, os recursos da

palavra.

— Diga, Susana — continuou o ancião solícito —, por que te perturbas?

Considera que não tens nenhum compromisso.

E vendo que ela não lhe retribuia em satisfazção o que lhe oferecia com

tanto júbilo, calculou a luta íntima que lhe ia na alma e procurou socorrê-la:

— Teus olhos rasos d’água, tanto quanto a expressão do rosto, são assaz

123

eloqüentes para mim. Já sei que não podes preencher o futuro de Carlos, tal

como o imagina êle.

Nesse comenos, sentindo-se fielmente interpretada, a jovem Susana

prorrompeu em pranto, dando a perceber que nutria velhas mágoas. Abraão,

tocado pelas profundas experiências da vida, inclinou-se. paternalmente e

disse:

— Acaso, terás sentimentos que eu não possa conhecer? Não creio que

andes indiferente nesta nossa Nova Irlanda. Naturalmente, hás de ter inclinações

que ignoro. Carlos e João são filhos do meu lar; Cirilo é também meu

filho, por afinidade. Tuas lágrimas revelam alguma coisa em teu coração, que

eu preciso conhecer. Porventura, aguardas o braço de Cirilo para penetrar os

mistérios do amor?

A tais palavras, ditas em tom de imenso carinho, a filha de Jaques levantou

o olhar e fêz um gesto afirmativo, que não podia deixar margem a qualquer

dúvida.

— Pois bem — disse o bondoso velhinho revelando carinhosa

compreensão —‘ fica descansada, eu mesmo me entenderei com Cirilo.

Ela esboçou um gesto de reconhecimento e falou:

— “Tio” Abraão, tendes sido para mim um segundo pai; entretanto, não

desejo ofender os sentimentos nobres de Carlos.

— Ora essa! Não te incomodes com isso. Meu filho não saberá desta

nossa palestra. Dir-lhe-ei que, informado da tua preferência, resolvi não tocar

no assunto, visando a completa felicidade de Cirilo.

— Como vos agradeço! — murmurou a jovem osculando-lhe ternamente as

mãos.

E enquanto o ancião se retirava, Susana experimentava novas esperanças

banharem-lhe o coração.

Na noite daquele mesmo dia, Gordon solicitou do filho de Samuel uma

entrevista em particular.

Cirilo o acompanhou a um canto da extensa varanda, não isento de alguma

inquietação. A influência do velho amigo dos Davenport era sempre decisiva no

seu caminho. O que Jaques conseguia dêle por efeito de amor, Abraão

igualmente obtinha por fôrça de autoridade moral. Algo perturbado, o filho de

Constância seguia-lhe os gestos mínimos, até que o padrinho começou a falar,

depois de longas reflexões:

— Meu filho, venho tratar da solução de problema de importância capital

para as nossas famílias; assim, espero que me compreendas a intenção, como

se exposta fôsse por teu próprio pai!...

— Sou todo ouvidos, replicou o rapaz, considerando a solenidade do

preâmbulo.

— É que — continuou o velho com bondade —não podemos concordar

com o teu isolamento, e talvez saibas que Susana te ama desde a adolescência.

— Mas eu já me casei uma vez... — redargüiu Cirilo, desejando fugir ao

assunto.

— Isso, porém, não impede a recomposição da vida.

— Não me sinto bem ao pensar nisso. Por vêzes, tio Abraão, quando

essas idéias me ocorrem, tenho a impressão de me trair a mim mesmo. O amor

conjugal, a meu ver, é único, insubstituível. Sempre encarei o segundo

matrimônio como taça vazia. Que teria, então, para oferecer a Susana?

124

— Essas idéias, crê, não passam de fantasias, sem fundamento no plano

das realidades positivas. Sou casado em segundas núpcias e nem por isso me

considero o pior dos homens.

O rapaz experimentou um leve abalo, visto não ter encarado o problema

sob êsse aspecto, firme no propósito de insular-se no seu infortúnio, em culto

de eterna saudade.

Gordon continuou:

— Entretanto, compreendo os teus escrúpulos, até certo ponto. A

mocidade nos enche o coração de sublimes idealismos. Todavia, as vozes da

experiência são muito diversas. Sei da saudade que te empolga o espírito

afetuoso, mesmo porque, dada a tua conduta presente, parece-me que a

espôsa morta resumiu no mundo o conjunto dos teus melhores ideais; no

entanto poderás guardá-la na memória como símbolo de inspiração, como página

viva a reler, diàriamente, no imo d’alma, a fim de criar uma nova situação

feliz. A primeira mulher foi a jardineira cuidadosa e fiel, que te deixou o perfume

de lições sacrossantas para tôda a vida, mas não há esquecer que não estás

fora do jardim da vida.

Cirilo não respondeu, engolfado em profundo Cismar.

— Julgas, porventura meu filho, que “Nova Irlanda” poderia progredir

sômente a expensas de nobilíssimos ideais? Muita vez tenho Ouvido tuas

apologias calorosas à opulência da terra que nos foi confiada. Repara o maciço

da vegetação luxuriante que se perde na noite, observa como o rio vai

espalhando a vida, silenciosamente Tôda a extensão vastíssima, que o vosso

olhar abrange, espera o braço do homem. Meditemos nesse imperativo da

natureza. A criatura viverá pelo coração, mas necessita aplicar e multiplicar os

braços para colaborar na obra divina. A floresta requer cuidado, a terra aguarda

o intercâmbio das sementes no seio fecundo, o curso d’água reclama

retificações para trabalhos proveitosos, os campos mais áridos sonham com

um braço do rio!... O mundo material é uma tenda de esforços infinitos, onde

fomos chamados a colaborar com o Criador no aperfeiçoamento de suas obras.

É impossível a cooperação perfeita, sem lar e sem prole.

O filho de Samuel desejava confutar, expender argumentos ponderosos

mas a autoridade patriarcal de Gordon era sempre sagrada aos olhos de todos.

As razões por êle invocadas, frutos de madureza e bom senso, também lhe

pareciam dignas de Ponderação e respeito. Afinal, o venerando ancião sempre

tinha uma preocupação mais elevada pelo bem coletivo, uma observação

sensata, colimando o supremo alvo da vida — perpetuar a espécie. Sua

dedicação aos problemas da gleba, manifestada não apenas teôricamente,

mas exemplificada com sacrifícios, era um dos muitos predicados que lhe

realçavam a personalidade. Todavia, examinando e profundando os mais

abscônditos ditames do coração, Cirilo sentia-se estranhamente angustiado,

quando compelido a conjeturar um segundo matrimônio. Sem dúvida, a prima

cumulava-o sempre de gentilezas e deferências especiais. Associava-se, de

bom grado, aos seus planos de serviços, amparava-lhe os empreendimentos

com o prestígio pessoal adquirido por sua afabilidade, junto de todos os

servidores. A seu ver, ela corresponderia ao papel de uma boa amiga, mas não

poderia jamais substituir Madalena, no seu coração. As afirmações de Gordon,

todavia, eram ponderáveis. Apresentavam argumentos mais fortes que os

maternais. O ancião de Belfast não se referia apenas a interêsses pessoais,

mas à coletividade, ao impessoal, ao mundo, à obra de Deus por intermédio da

125

natureza.

Reconhecendo-lhe a necessidade de raciocinar, o tio fizera longa pausa,

voltando a insistir:

— Espero, pois, medites o assunto e nos proporciones a certeza da breve

restauração do lar, para que “Nova Irlanda” se enriqueça, mais tarde, com a tua

descendência...

Forçado a tomar atitude decisiva na resposta ao velho amigo, mas

querendo adiar um compromisso formal, o rapaz obtemperou sensatamente:

— Por enquanto, creio que me não devo pronunciar em definitivo,

reservando qualquer decisão para depois da visita que tenciono fazer ao

túmulo de Madalena, em Paris.

Abraão Gordon, porém, considerou que a resposta equivalia a meio

caminho andado.

A situação do restrito ambiente de “Nova Irlanda” continuava, assim, a ensejar

ansiosas expectativas em tôrno do caso de Cirilo. A renúncia de Carlos em

favor do companheiro, tornando-se arredio, sem que o filho de Samuel pudesse

atinar com a causa do seu retraimento, imprimia nova fôrça à opinião dos

palradores. O rapaz sentia-se cada vez mais apertado no círculo dos

comentários familiares, enquanto a filha de Jaques continuava agindo. O

generoso professor de Blois não encarava os boatos com simpatia espontânea,

mas também não desejava intervir em decisões de tal natureza, não só porque

poderia parecer egoísta ao sobrinho, como ingrato e insensível à filha, que já

lhe havia confiado seus votos mais íntimos, por ocasião do casamento de

Madalena.

Tão logo marcou a viagem para a França, com o fito de visitar o sepulcro

da espôsa, Cirio notou que Susana desejava a mesma coisa. A jovem temia,

intimamente, que o primo pudesse encontrar algum fio da sombria teia, e

dispunha-se a segui-lo em jornada tão penosa, com a intenção de vigiar-lhe os

passos. Em face das objeções familiares, alegou que precisava de material

escolar para imprimir novo impulso aos seus trabalhos educativos. A fim de não

agravar a preocupação dos parentes, deliberou levar Dorotéia, uma das

pequenas irmãs de Cirilo. Declarava-se desejosa de visitar, igualmente, a

sepultura inesquecível e aproveitar o ensejo para rever antigas relações em

Paris.

E não houve como dissuadi-la. Após mais de dois anos de ausência, o

marido de Madalena regressava à França, assomado de amaríssimas recordações.

Não estava prôpriamente alquebrado, pois o trabalho contínuo do

campo dotara-o de singular robustez; no entanto, o olhar reservado, a

comunicabilidade esquiva, davam conta da profunda mudança operada.

A chegada à capital francesa, depois de longos dias de viagem exaustiva,

verificou-se sem incidentes dignos de menção, a não ser a gentileza crescente

de Susana.

Cirilo procurou avistar-se com os velhos amigos, que o receberam

alegremente. Cada paisagem, cada rua, assinaladas pelos antigos hábitos,

foram outros tantos espículos de consternação. Os antigos companheiros

pintavam-lhe ao vivo as cenas tétricas e inesquecíveis da varíola devastadora.

Muitos sêres caros haviam partido para sempre. Em companhia de Susana,

visitou a casa de Santo Honorato, o recanto adorável de sua primeira ventura.

Os novos locatários simpatizaram com êle e o convidaram a rever o interior da

antiga morada, em atenção aos ascendentes da visita. Penetrou nos aposentos

126

comovido e reverente, dando a impressão de ingressar num santuário muito

amado. Susana descrevia-lhe o derradeiro quadro, indicando o local onde

repousara D. Inácio Vilamil, pela última vez, junto do sobrinho enlouquecido de

dor. Cirilo foi mais longe. Avistou-se com a serva que sobrevivera a tantos

infortúnios, vendo confirmadas as reminiscências angustiosas, de que a prima

parecia intérprete fiel. Das relações afetivas da extinta encontrou apenas

Colete, que se referiu àmorta com lágrimas copiosas. Não conseguira vê-la no

extremo instante, mas fôra informada do seu passamento, logo após a nuvem

de sofrimento que abafara Paris, por várias semanas, acrescentando que seu

túmulo, no cemitério dos Inocentes, era objeto do seu carinho constante.

Onde, porém, as impressões de Cirilo se tornaram mais dolorosas, foi

justamente na silenciosa mansão dos mortos, quando lá chegou ao entardecer,

em companhia da prima e da irmãzinha.

Aproximou-se das duas campas com respeito infinito e ajoelhou-se junto à

lousa que tinha o nome de Madalena. Reparou no róseo coração de mármore,

atravessado por um punhal, símbolo profundo que devia à lembrança do tio

Jaques e, esmagado pela saudade, soluçou longamente. A presença da prima

não lhe impedia o pranto copioso. Mergulhado em preces, não reparou que

Susana retirava da bôlsa um papelinho. A jovem parecia reler velhas palavras,

tocada igualmente por vibrações de indizível tristeza. Tratava-se da carta que a

filha de D. Inácio lhe escrevera para a Irlanda. Depois, ela aproximou-se de

leve e entregou a carta ao primo, dizendo:

— Veja, é da nossa querida morta.

Ele mergulhou os olhos sôfregos no documento. Entre muitas outras

advertências afetuosas, lá estavam as recomendações de Madalena: — “Não

deixes de amparar... Cirilo, durante minha ausência. Se eu pudesse aí estaria

para ajudá-lo a resolver com os nossos familiares os problemas emergentes,

mas circunstâncias imperiosas se opõem aos meus desejos. Confio, entretanto,

na tua amizade. Aconselha-o; Auxilia-o como se fôsses eu mesma. O rapaz

beijou o papel e falou comovidamente:

— Ninguém se desvelava tanto por mim.

*

Deixemos agora o filho de Samuel Davenport entregue à sua luta espiritual

e voltemos à modesta chácara de Ávila, onde passaremos a examinar um novo

acontecimento.

Precisamente um ano depois do auxilio prestado ao Espírito de Antero de

Oviedo, por aquela que lhe fôra mãe adotiva na Terra, nascia o primeiro filhinho

de Dolores.

Todos esperavam aquêle advento com alvoroçada alegria, mas a criança

causou a maior decepção. A mâozinha e o pé direito apresentavam-se

deformados, e não só isso, como singular defeito do aparelho visual. A mão

tinha apenas dois dedos, enquanto que o pé os tinha tortos e retraídos. No

primeiro dia, os pais tentaram encobrir o fato, acabrunhados e receosos; mas a

velha serva, que servia de parteira na grande propriedade dos Estigarribias,

levou a notícia a D. Alfonso, cujo pai não admitia a existência de aleijados em

seus domínios.

Na manhã do segundo dia, João de Deus foi chamado pelo amo mais

moço, que lhe falou irritado e severo:

127

— Hás de reconhecer que fomos bastante cordatos por ocasião do teu

matrimônio, mas a fazenda não pode sustentar crias anormais.

O pobre pai não ignorava a sorte reservada aos pobrezinhos que nasciam

assinalados por estigmas dolorosos, incapazes para o trabalho, e respondeu

humildemente:

— Já sei, senhor, mas, peço-vos pelo amor de Deus não seja meu filhinho

eliminado, pois hoje mesmo dar-lhe-emos novo destino -

D. Alfonso aquiesceu, enquanto o infeliz servo regressava ao ambiente

doméstico. Depois de comunicar à espôsa o ocorrido, misturou com as dela as

suas lágrimas, deliberando recorrer à bondade de D. Madalena, para que a

criança fôsse devidamente socorrida. Ponderaram as dificuldades extremas da

generosa benfeitora e, acanhados de lhe falar diretamente, resolveram chamar

a pequena Alcione que, de certo, os auxiliaria com a sua ternura infantil.

Atendendo ao chamado, a graciosa menina aproximou-se curiosa do berço

improvisado:

Dolores esforçou-se herôicamente para não chorar e falou:

- Mandei buscar-te, Alcione, para dizer que o pequenino é teu e de tua

mãe!

A menina arregalou os olhos de alegria, entremostrando assombro infantil.

Sem nada dizer, estendeu os bracinhos com sublime expressão de doçura.

João de Deus envolveu o filhinho na camisola rendada que Madalena havia

dado e ajudou-a a segurar a criança. Alcione exultava de alegria. Com enorme

cuidado, voltou a casa, provocando a admiração maternal.

A espôsa de Cirilo surpreendeu-se. Transbordante de júbilo, Alcione

mostrou-lhe a criancinha, murmurando:

— Julgo que a cegonha deixou cair o pequenino em lugar errado. Deus não

o mandou para Dolores, porque ela me disse que o bebê é meu e da senhora!

— Não é possível — afirmou Madalena curiosa. A filha fêz um gesto de

quem não desejava qualquer modificação na providência, e sentenciou:

— Ah! mamãe, não fale assim...

E como que buscando uma defesa prévia, aproximou-se mais da mãezinha

e continuou a dizer com graciosa expressão:

— Se a senhora o deixar comigo, nunca mais pedirei brinquedos... e

carregá-lo-ei ao colo, para não lhe dar trabalho...

A genitora supunha que tudo aquilo não passasse de capricho infantil e

acrescentou:

— Não podemos separá-lo de Dolores, minha filha! Terias coragem de vêlo

chorando, longe da mamãe?

João de Deus acompanhava o diálogo, afogando o coração em lágrimas,

mas vendo que Alcione se preparava para responder, pediu a D. Madalena um

momento de atenção, em particular, e falou gravemente:

— Minha senhora, conhecemos as vossas dificuldades; entretanto, não

temos outra fonte de caridade a que possamos recorrer. Ignorais, talvez, que

aleijados ou cegos de nascença, dos escravos de algumas fazendas coloniais,

são eliminados ao nascer, Os Estigarríbias adotam êsse regime. É verdade que

Dolores não tem o estigma do cativeiro, mas, tenho-o eu, infelizmente, na

qualidade de pai. Hoje de manhã, D. Alfonso me chamou para tratar do caso e

acabou por intimar-me a consumir com o desgraçadinho.

— Mas isso é uma imposição criminosa — atalhou a filha de D. Inácio.

— Ainda assim, é tradicional na colônia, onde os brancos têm filhos, mas

128

os prêtos só têm crias. Seria talvez interessante reclamar e defender meus

direitos, mas sei que nada adiantaria, ou antes, que me valeria o ser

reconduzido a ferros para os duros trabalhos da minha primeira mocidade.

— Compreendo...

— Lembramo-nos, então, Dolores e eu, de solicitar-vos êste sacrifício. Por

quem sois, ajudai-nos a salvar o pequenino.

Madalena considerou os apuros em que se via para manter o exíguo lar,

mas, profundamente comovida, não hesitou um minuto e respondeu:

— Não julguei que se tratasse de problema tão grave; mas já que assim é,

vocês devem contar conosco. Seu filhinho será também meu. Dolores virá

amamentá-lo, em minha companhia, e por tudo o mais fiquem descansados,

porque o petiz será o irmão mais moço de Alcione.

— Será vosso servo — murmurou o semiliberto, enxugando uma lágrima.

— Será meu filho — emendou a filha de D. Inácio, voltando incontinenti à sala,

onde a criança choramingava nos braços carinhosos da filha. Tomou-a e

conchegou-a ao coração. Não saberia jamais definir as doces comoções que

se lhe apossaram da alma generosa. Acariciou a mãozinha defeituosa, beijou-a

com ternura. O recém-nascido aquietou-se brandamente. E enquanto João de

Deus se despedia, para atender ao labor diuturno, a espôsa enfermiça de Cirilo

Davenport mergulhava num abismo de profundas interrogações. Por que

mistério o filhinho de Dolores ia reclamar seus carinhos maternais?

Contemplou-lhe detidamente os traços grosseiros, aliados aos defeitos físicos

que lhe haviam assinado tão doloroso destino. Mergulhada num mar de cismas

atrozes, rogou a Deus lhe concedesse fôrças para desempenhar a tarefa

maternal até ao fim. Não ignorava a extensão dos sacrifícios que a decisão lhe

impunha nas lides diárias... No entanto, a criança reclinada ao seio parecia

falar-lhe intimamente de um infinito reconhecimento. Não podia contar com as

próprias fôrças, mas habituara-se a confiar na misericórdia de Deus.

À noite, como de costume, Padre Damiano apareceu para o serão habitual.

Relatou-lhe o fato da manhã, extremamente comovida, comentando o

caráter inexplicável das suas comoções e o velho amigo acentuou:

Deus tem numerosos meios de aproximar as almas. Quem poderá saber

de onde vem esta pobre criança tão penosamente assinalada do berço? Estejamos

preparados para cumprir os celestiais desígnios e agradeçamos

sinceramente a emotividade maternal que bafejou seu coração!

Mal acabava de o dizer, Alcione entrou na sala com a criança ao colo.

Depois de saudar afetuosamente o sacerdote, apresentou-lhe “o seu bebê”,

com requintes de zêlo.

— Este menino, padre Damiano, foi a cegonha quem trouxe do Céu, para

mamãe e para mim. Veja como é bonito!...

O eclesiástico tomou o petiz, cuidadosamente, enquanto a menina o

ajudava a segurá-lo convenientemente nos braços, murmurando:

— Sem dúvida, é um belo rapaz que Deus nos mandou.

Em seguida, fixou nela os olhos e interrogou, após uma pausa:

— Como se chama?

Alcione lembrou a história que mais admirava, entre as que a mãe

costumava respigar das obras irlandesas, que o marido lhe deixara, e voltandose

para a genitora, como a pedir-lhe aprovação, respondeu:

— É Robbie.

— Um lindo nome das terras de teu pai — disse o religioso, revelando

129

interêsse. — E por que o escolheste?

— O senhor não sabe a história?

— Não. Conta-a la...

A pequena Alcione assumiu encantadora atitude, por coordenar detalhes na

mente infantil, e explicou:

— Robbie era um menino que a cegonha esqueceu numa rua, quando

todos dormiam; mas, depois, foi achado por uma senhora de bons sentimentos,

que o criou para as coisas de Deus. Muita gente o julgava insuportável porque

era muito feio, mas era tão generoso e tão humilde que recebeu de Jesus uma

grande missão.

Lembraste muito bem, Alcione, e estou certo de que o Salvador há de

amparar êste nosso Robbie.

O sacerdote examinava a criança com atenção. Depois de lhe observar o

defeito dos olhos, examinou o pé e a mãozinha mirrados.

— Parece doentinho — acrescentou um tanto impressionado. Acredito que

não poderá trabalhar muito bem quando ficar homem.

Alcione havia-se assentado em atitude expectante e, ouvindo a alusão do

velho clérigo, acrescentou solícita:

— Mamãe já falou isso, mas o senhor não acha que o Robbie poderá

aprender música?

Damiano comprendeu o alcance da infantil lembrança e opinou satisfeito:

— Muito bem lembrado! Estudará em nossas aulas e, quando crescer, darlhe-

emos um violino de Cremona.

A menina bateu palmas de contentamento, como se houvera resolvido

problema de alta relevância e, aproximando-se do sacerdote, retomou o petiz

com infinitos cuidados, enquanto a mãe lhe acompanhava os movimentos com

um olhar de ternura indefinível.

Assim regressava Antero de Oviedo ao cenáculo do mundo, para as tarefas

laboriosas da redenção.

FIM DA PRIMEIRA PARTE

130

SEGUNDA PARTE

131

1

O padre Carlos

Estamos no decurso de 1681.

Em Ávila houve algumas modificações. Madalena Vilamil passou a residir

na cidade, em casa modesta e confortável, tendo arrendado a chácara aos

Estigarríbias. A educação de Alcione exigira a mudança, aliás consumada com

grandes dificuldades.

A pobre senhora estava prematuramente envelhecida. Não fôssem os

extremos cuidados pelo Robbie e o apêgo à filha dotada de virtudes raras e

preciosas, talvez já tivesse atendido aos apelos da saudade, buscando as

regiões da morte. Diversas vêzes, nas crises periódicas da enfermidade dos

pés, abeirava-se do sepulcro; mas a dedicação maternal vencia sempre,

dilatando-lhe as fôrças físicas. Assim, oscilava ela entre os dois entes mais

amados, como pêndulo afetuoso, sem qualquer preocupação pelo resto do

mundo, exceto o antigo projeto de uma visita à América distante.

Afora os propósitos ardentes do padre Damiano, relativos a uma possível

missão religiosa nas terras do Novo Mundo, suas esperanças esbatiam-se em

planos vagos e indefinidos. E a vida continuava entre esperanças e

recordações.

Robbie tem agora sete anos, e Alcione conta dezessete primaveras. O

pequeno inicia os estudos primários, enquanto a jovem tem completado o curso

escolar nos moldes da época. A filha de Cirilo, protegida por Madre Conceição

e sob os desvelos do Padre Damiano, sabe o latim, o inglês e o francês,

distinguindo-se igualmente na música por suas formosas e inspiradas

composições. No canto é a primeira voz no côro da catedral da cidade famosa.

Suas relações mais íntimas expressam singular admiração pela delicadeza

feminil, aliada a vastos conhecimentos científicos. Nas reuniões mais seletas é

convidada a tocar ao cravo as suas inspiradas composições. Artista por temperamento,

nem por isso lhe desfalece, antes avulta e prepondera a flama, o

pendor religioso. Lê os textos do Evangelho nos originais latinos e comenta as

suas passagens sob prismas novos. Dentre os que a estimam, Damiano e

Madalena, não obstante a convivência diuturna, são os seus maiores

admiradores. É que a jovem, com tantos dotes de inteligência e coração, nunca

teve uma palavra de superioridade jactanciosa, jamais se desinteressou do

trabalho doméstico em suas mínimas facetas. A filha de D. Inácio, para atender

as despesas domésticas, teve que intensificar os trabalhos de agulha, auxiliada

pela filha sempre incansável e prestadia. Alcione nunca esqueceu os dias

venturosos de lição espiritual, em companhia de Dolores, no mercado de

verduras; entregava as costuras da genitora, com a mesma humildade dos

primeiros tempos. O prestígio da sua bondade granjeava para a tarefa materna

maior aceitação. Como filha, era um modêlo de virtude familiar; como discípula,

tivera o louvor de todos os preceptores pela aplicação irrepreensível aos

estudos; como amiga, era sempre companheira afável e carinhosa, pronta a

cooperar nas situações mais difíceis, com a sabedoria do amor fraternal.

Madalena Vilamil e Padre Damiano, em tom confidencial, muitas vêzes

analisaram-lhe os atos de exemplar pureza, com votos de sincera alegria e

reconhecimento a Deus. A única coisa. que de algum modo os preocupava, era

a indefinível atitude de Alcione, com relação ao casamento e ao amor conjugal.

Dois nobres rapazes de Ávila já se haviam apaixonado por ela, sem lograrem

132

outra retribuição, além de fraternal estima. Ás vêzes, quando a genitora lhe

chamava a atenção para os imperativos da vida humana, costumava dizer:

— Ora, mamãe, sempre me pareceu que estes problemas nunca se

resolverão pela necessidade e sim pelos sentimentos espontâneos. Uma

necessidade atendida pode abrir caminho a outras maiores; ao passo que o

sentimento é patrimônio de nossa alma eterna. Que me valeria aceitar a proposta

de um fidalgo, tão só para satisfazer a situações exteriores? Não seria

trair o coração que devemos consagrar a Deus?

Madalena Vilamil ouvia-a, entre satisfeita e orgulhosa. Aquêle espírito de

trabalho e decisão, de que Alcione dava testemunho, propiciava inefável

confôrto ao seu coração de mãe. O passado só lhe oferecia tormento e

lágrimas. Muita vez, tivera diante dos olhos o cálice da angústia a transbordar;

mas a afeição da filha era como bálsamo poderoso que anestesiava a úlcera

das recordações. Sim! Alcione tinha sempre uma palavra mágica para qualquer

dificuldade; um motivo de edificação nos fatos mais insignificantes. Desde que

se associara às palestras domésticas, insensivelmente a levara a esquecer os

motivos do abatimento espiritual, que faziam dela uma prisioneira da

melancolia, ensimesmada no seu passado. A intimidade do Evangelho davalhe

à expressão verbal propriedades eufóricas. O exemplo de Jesus era

aplicado a preceito, em cada caso, precisa e logicamente. Semelhante atitude,

porém, não obedecia a posições hieráticas, a gestos estudados, a mímica do

fanatismo. Tudo era espontâneo, como acontece na vida das grandes almas,

que descobrem a presença permanente do Mestre em seus caminhos,

sentindo-lhe a companhia divina, qual Amigo Invisível a lhes medir cada passo,

cheios de compreensão e de júbilo.

Nada obstante essa dádiva de Deus à sua alma Sofredora, a filha de D.

Inácio não podia forrar-se a umas tantas preocupações mais fortes, O filhinho

adotivo trazia-lhe o espírito inquieto, pela sua rebeldia constante. O que se

dera com a educação de Alcione estava longe de vingar com a índole caprichosa

de Robbie.

No tempo a que nos reportamos, começara êle a freqüentar as aulas de

instrução primária, mantidas por Damiano na igreja de São Vicente, e todos os

dias voltava ao lar com queixas e reclamações. Interpelado, alegava as fadigas

da caminhada, atento o pé defeituoso, encarecia as dificuldades para escrever

com a mão esquerda, tinha sempre uma palavra mais áspera a respeito dos

colegas.

Certo dia, regressou a casa debulhado em pranto convulsivo.

Madalena chamou-o, afagou-lhe os cabelos muito crespos e perguntou

carinhosa:

— Que é isso? por que choras assim?

— Ah! não vou mais à escola do padre Damiano...

- Mas, por que, meu filhinho?

— Os meninos disseram que a senhora não éminha mãe, que sou escravo

dos portugueses!...

— Mas não deves dar importância a isso, Robbie. O bom menino é

obediente, não dá ouvidos a tolices. Talvez não chegasses a observar os companheiros

vadios, se te entregasses inteiramente às lições.

E vendo que o pobrezinho enxugava as lágrimas nas saias maternais,

Alcione intervinha, dizendo:

— Perdoa, Robbie. Tu tens esquecido nossos conselhos de cada dia. Não

133

viste ontem, na igreja, aquêle menino cego? A irmãzinha guiava-o pela mão.

Não tiveste tanta pena da sua cegueira e das suas feridas? Era uma criança

tão infeliz e, como não podia ver padre Damiano, pediu-lhe a mão para beijar.

Como não te lembras dêsses exemplos, quando os meninos ignorantes

provocam a tua cólera? Quem muito reclama não sabe agradecer

Como o pequeno não respondesse, Madalena perguntou:

— Quem sabe, meu filho, esqueceste de rezar o “Pai Nosso” pela manhã?

Robbie limpou os olhos ingênuos e fêz um sinal de quem se havia

esquecido, ao que a viúva Davenport obtemperou:

— Pois, então, reza agora. A prece sempre alivia o coração.

Diante das duas — que tinham os olhos úmidos por ver a boa vontade da

criança em se penitenciar, apesar da revolta que lhe vibrava no espírito —,

Robbie ajoelhou-se, cruzou as mãos e começou a oração dominical em tom

magoado. Ao terminar, a mãezinha adotiva observou:

— Estas palavras, meu filho, são um legado de Jesus. Não reparaste na

rogativa “perdoai as nossas dívidas, assim como perdoamos aos nossos

devedores”? Trata-se de um pedido que o Salvador nos prescreveu, e, se não

perdoas aos teus coleguinhas malcriados, como poderás viver, mais tarde,

enfrentando as dificuldades do mundo?

Entretanto, como acontece a muita gente adulta, que repete as. expressões

verbais, amorosas e sublimes, nas orações mais significativas, sem lhes

penetrar o sentido, conservando intactos a mágoa da ofensa e o impulso de

revide, o pequenino acrescentou:

— Mas os meninos da escola, mamãe, chamaram-me moleque.

— Que tem isso — retrucou Madalena sensibilizada —, se em casa sei que

és meu filho e que Alcione é tua irmã?

O pequeno pareceu meditar alguns momentos, enquanto mãe e filha

ponderavam silenciosas a precocidade das suas objeções. Mas não tardou que

êle se aproximasse da jovem que bordava com atenção, e depois de estender

o braço, comparando as epidermes, rompesse a chorar abraçando-se à

Madalena.

— A senhora está vendo? A mão de Alcione é branca e a minha é escura;

ela tem cinco dedos, eu tenho só dois!

— Deus quis assim, meu filho! — esclareceu a espôsa de Cirilo fazendo o

possível para não chorar também.

— Então Deus não é tão bom como a senhora falou — advertiu, causando

a ambas funda impressão.

Nesse ínterim, Alcione levantou-se e disse, melíflua:

— Está bem, Robbie, agora chega de recriminações. Mamãe já te

aconselhou, já rezaste, já te pedimos para perdoar. Hás de esquecer estas tolices.

Vamos à aula de música.

O rapazelho fêz uma expressão de enfado, mas foi ao quarto de dormir e

voltou com o delicado instrumento. A irmã ensinou-lhe com ternura a tomar

posição adequada e em seguida sentou-se ao cravo e feriu algumas notas. O

aprendiz moveu o arco, dificilmente, acentuando logo a seguir:

— Creio que não vai, O ruído das cordas causa-me mal-estar em todo o

corpo.

— No princípio é assim mesmo — explicou a jovem bondosamente. — É

preciso insistir.

E Robbie prosseguia no exercício, vencendo, pesadamente, os obstáculos

134

iniciais. Esgotado o tempo regimental, Alcione tocava antigas músicas da

mocidade de sua mãe, enchendo a casa de suaves harmonias.

*

A situação doméstica prosseguia sem alterações, quando Damiano trouxe

a notícia da próxima chegada de um pupilo seu, que acabava de receber

ordens num seminário romano. Às perguntas curiosas de Madalena e da filha,

o velho amigo informava, atencioso:

— Carlos é o meu único sobrinho e sempre foi credor do meu afeto. Seu

pai descendia de antigos espanhóis, domiciliados na Irlanda após o desastre

da Invencível Armada. Numa viagem ao continente, simpatizou com a irmã que

Deus me havia dado, desposando-a pouco depois. Viveram em plena harmonia

conjugal, cinco anos, quando pereceu meu cunhado num naufrágio, deixando a

companheira aturdida e desolada. Por desventura da Emilia, nada houve que

lhe restaurasse as energias do espírito. Nem o filhinho de tenra idade, nem a fé

religiosa, conseguiram salvá-la da apatia a que se entregou, até à morte.

Debalde tentei arrancá-la da perturbação em que se engolfou, sem remédio. A

hora da morte, entregou uma carta testamentária aos parentes do marido, na

qual exprimia as últimas vontades, determinando que o filho único, tão logo

atingisse a idade própria, fôsse internado num seminário romano, para

consagrar-se ao sacerdócio. Para isso, legava-lhe a pequena fortuna, dizendo

não desejar ao seu único descendente a dor incomensurável da viuvez...

— Uma história bem triste — comentou Madalena Vilamil, refletindo no seu

caso pessoal.

— E uma preocupação muito injusta de minha irmã — acentuou Damiano

com firmeza. — O pequeno Carlos esteve em minha companhia durante três

anos, em sua primeira infância. Estudando-lhe o temperamento, fiz o possível

por afastá-lo do caminho traçado pela determinação materna, mas seus tios

irlandeses fizeram tamanha questão de atender ao espírito perturbado de

Emilia que não houve meios de subtrair a criança aos seus propósitos. Tive de

assumir responsabilidades de tutor no seminário romano, e Carlos foi levado,

talvez contra a vontade, a receber a tonsura.

— Mas sois contra a carreira do rapaz? — indagou a espôsa de Cirilo com

interêsse.

— Não é bem isso. Minha irmã, quando pretendeu afastar o filho das

provações amargas da viuvez, ignorava os sacrifícios que dêle exigia.

Considero o sacerdócio tarefa sagrada, mas que ninguém deveria aceitar por

imposição e sim por vocação natural, ou determinação firme, depois de

grandes sofrimentos. Como Deus não se impõe às criaturas, parece que nunca

será possível tiranizar no capítulo dos serviços divinos. O resultado é que,

quando abracei o jovem seminarista há dois anos, achei-o singularmente

acabrunhado, dando-me a impressão de um homem repleto de batalhas interiores.

Compadeci-me da sua tremenda luta espiritual, mas nada pude fazer em

seu favor.

Alcione parecia beber as palavras do caroável ministro de Deus e,

enquanto êle tomava fôlego, obtemperou:

— E como definis a vocação religiosa, padre Damiano?

O velho sacerdote esclareceu sem rebuços:

— Antes de tudo, considero que a vocação religiosa não será o primeiro

135

impulso para envergar um hábito convencional. Semelhante estado de espírito

significará, primeiramente, decisão firme para o trabalho e testemunho com

Jesus. Ora, a meu ver, o lar é o primeiro dos estabelecimentos religiosos aqui

na Terra. Dentro de suas paredes, nobres ou plebéias, há sempre grandes

tarefas a realizar. Que dizer de um filho que procurasse a sombra de um

claustro porque seus pais vivem na luta, porque seus germanos não se

harmonizaram com o seu modo de pensar? Onde estaria a renúncia num caso

como êsse? Certo, a virtude não estaria em retirar-se, em busca de pousos

mais cômodos. Se os trabalhos domésticos, porém, deixam de existir, se

chegou a viuvez sem filhos, se sobreveio o abandono do coração, em tais

circunstâncias admito a oportunidade de maiores sofrimentos, seja na prova

rude dos que se encarceram em lágrimas dolorosas, seja nos testemunhos de

amor universal, estendendo-se a dedicação fraterna a todos os sêres. Suponho

que o ambiente doméstico resume a nossa oficina primacial, segundo os

desígnios de Deus. Aí se encontram material e ferramentas adequadas ao

serviço da nossa salvação. Entretanto, se essa tenda nos falta, a circunstância

significará talvez que fomos chamados, em nossa vocação religiosa, a

importantes trabalhos de ordem coletiva.

A jovem, satisfeita com a enunciação do ponto de vista do interlocutor, não

insistiu no assunto, mas Madalena perguntou delicadamente:

— E demora ainda a chegar o padre Carlos?

— Creio que não, pois já há meses que está na Irlanda, onde celebrou a

primeira missa, em obediência ao desejo dos parentes. No entanto, tôdas as

providências para sua instalação, aqui em Ávila, estão tomadas perante as

autoridades que nos regem. Tenciono tê-lo a meu lado, não só porque poderei

auxiliá-lo com as minhas velhas experiências, como também porque ainda não

renunciei ao antigo ideal de uma excursão à América e, nesse cometimento,

não posso dispensar companheiros de confiança.

A palestra fixou-se no plano da grande jornada, comentando-se as notícias

gerais e vagas, obtidas em Castela-a-Velha, dos processos de vida ha colônia.

Não decorrera um mês sôbre esta conversa e o padre Carlos Clenaghan

chegava inesperadamente, a fim de cooperar com o tio nos serviços religiosos

da igreja de São Vicente.

Alto, magro, de maneiras excessivamente simpáticas, pela bondade que

evidenciavam, olhos muito lúcidos, o novo sacerdote impressionava pelo

encanto do trato pessoal, dando a impressão de que se abeirava dos trinta

anos. Naturalmente, a primeira visita, em companhia do orientador de suas

atividades, foi a casa de Madalena Vilamil, que o recebeu com sinceras

demonstrações de carinho. Ao ser apresentado, porém, à filha da casa, o

sobrinho de Damiano não conseguiu disfarçar a profunda impressão que ela

lhe causara. Ambos pareciam perturbados. A jovem, sentindo-se sob o

magnetismo do seu olhar, empalidecera de leve.

— Alcione? — perguntou o padre, com inflexão carinhosa, não obstante

demonstrar na voz a necessidade de readaptação ao castelhano. — Onde teria

ouvido êste nome? Tenho vaga idéia de já o ter ouvido.

— Entretanto, não é comum — acentuou o tio, satisfeito.

A primeira palestra não foi além do comentário familiar de quem inicia

novas relações. Carlos Clenaghan relatava as suas emoções ao contato do

altar irlandês, que lhe proporcionara o júbilo da missa nova, cantada. Falou-se

da missão sacerdotal, dos serviços da Igreja, das condições gerais da vida em

136

Ávila. Alcione impressionava o recém-chegado, cada vez mais, com a

ponderação do seu espírito esclarecido e afetuoso. O rapaz, que vinha repleto

da teologia do seminário, de quando em quando ensaiava assunto difícil num

quadro de teologia ou de história; no entanto, a filha de Madalena lhe respondia

com precisão admirável, em linguagem simples, a espelhar nos olhos a pureza

do coração. Ela estava em dia com os clássicos gregos e romanos,

enriquecendo a conversação de apontamentos notáveis, pontilhando cada

parecer com as luzes de elevada sabedoria, cheia de compreensão e de amor.

Ouvindo-a falar sem vaidade e afetação, o novo sacerdote tinha a impressão

de ouvir uma criança adorada, a falar da sua intimidade com Sócrates e Cícero,

colocando cada filósofo no seu lugar, à face de Jesus, o amado Salvador que

lhe enchia a alma de sublimes e ardentes inspirações.

Ambos experimentavam singulares idéias. Se não fôsse muito avançar,

teriam declarado, num impulso espontâneo, que se haviam conhecido alliures,

não obstante a filha de Madalena nunca haver saído de Castela-a-Velha.

O visitante retirou-se daquele primeiro encontro sob verdadeiro fascínio.

— Meu tio, estou maravilhado — confessou, de regresso ao presbitério —;

a jovem Vilamil dá a impressão de uma criatura angelical, divinamente

inspirada.

Damiano sentiu-se orgulhoso com o conceito, circunstância que o levou a

pensar em pedir o auxílio espiritual da jovem, para que o pupilo firmasse

diretrizes seguras na carreira sacerdotal.

No dia seguinte, Damiano chamou a amiguinha, após a missa, e falou-lhe

em tom confidencial.

— Sei que as tuas orações e pureza devocional são preciosos tesouros,

ante o amor de Jesus, sem que minhas palavras envolvam qualquer pensamento

de lisonja a envenenar-te o coração. Falo como pai espiritual, pedindo o

teu fraternal concurso para um outro filho, pois assim o considero pelos laços

do espírito.

— Conheço minha indigência, padre Damiano — replicou a jovem, com

humildade —, mas disponde da minha insignificância como julgardes mais

acertado.

— Trata-se de Carlos, minha filha, para quem desejo o socorro de tuas

sugestões fraternais. Não o vejo muito seguro em suas decisões, nos caminhos

escolhidos, e temo um futuro desastre espiritual. Mas, ciente da nobre

impressão que a tua sadia palestra lhe despertou, muito me agradaria que o

orientasses em nossas tertúlias, robustecendo-lhe o ânimo vacilante na estrada

sacrificial do sacerdócio cristão.

Ela baixou os olhos, entremostrando a perturbação do espírito humilde,

pela confiança nela depositada, e acrescentou:

— Não creio possa ter alguma coisa de mim mesma para auxiliá-lo, mas

estou certa de que Jesus não nos faltará com o pábulo do seu amor

inesgotável.

O velho eclesiástico não podia avaliar o efeito de suas palavras, mas

reparou que a filha de Madalena voltou ao lar bastante impressionada.

Daí em diante, as visitas de Carlos à viúva Davenport repetiam-se tôdas as

noites. Renovavam-se as encantadoras alegrias domésticas, multiplicavam-se

as dissertações íntimas e preciosas.

A atração do jovem par tornava-se dia a dia mais forte. O sacerdote tinha a

convicção de haurir naquela convivência um salutar estimulo às suas energias

137

morais, à proporção que ela experimentava confortadora emotividade no seu

trato. Ambos sentiam indefinível facilidade para o entendimento das coisas

santas, sempre que se defrontavam no mesmo tema. ele não ocultava o seu

deslumbramento ao observar que a interlocutora lhe completava as

elucubrações filosóficas, traduzindo em linguagem diserta os mais profundos

teoremas. Começava a refletir, francamente, que Alcione constituía a personificação

do seu ideal humano, a realidade viva e insofismável dos seus

sonhos mais íntimos, mas as algemas da convenção religiosa lhe atavam o

espírito ao tronco do celibato.

Os dias sucediam-se com o júbilo discreto de duas almas unidas no mundo

sublime das idéias e, no entanto, separadas no plano temporal.

Por vêzes, o pupilo de Damiano experimentava enorme desejo de se

revelar, mas a conduta irrepreensível da moça paralisava-lhe os impulsos,

compelindo-o a converter tôda a ansiedade num conjunto de gentilezas sutis.

Carlos interessava-se, afetuosamente, por tôdas as coisas que a ela diziam

respeito. Cooperava beneditinamente na educação musical de Robbie,

acompanhava-a nas visitas aos deserdados da sorte e aos moribundos

desesperados. Desdobrava-se em atenções carinhosas com as crianças que

lhe ouviam as lições, simples e puras de moral cristã, e as horas de maior

descanso passava-as em casa de Madalena Vilamil, ou na igreja de São

Vicente, quando Alcione turturinava os cânticos sacros do ritual. Em tais

ocasiões o sacerdote parecia alimentar o coração. O amor Sincero e santo de

duas almas tem mistérios profundos e singulares em suas fontes divinas.

Basta, às vêzes, um gesto, uma palavra, um olhar, para contentá-lo e

transfigurar a ansiedade em esperança sublime.

Isso dava ao padre irlandês motivo para cuidar-se com esmêro. A

fisionomia ganhava novas expressões de ânimo resoluto, mais fraternal, expansivo,

acolhedor no trato. Damiano tudo atribuía ao ambiente de Ávila e

louvava-se pela resolução de fixar o sobrinho na Espanha, ignorando o drama

silencioso de dois corações.

Alcione, por sua vez, tornara-se mais pensativa, sem nunca disfarçar,

porém, a alegria que a felicitava, na convivência diária com o jovem sacerdote.

A situação assim prosseguia quando chegou o Natal de 1681. Às vésperas

do Ano-Bom, numa esplendorosa manhã de domingo, segundo os costumes da

época, diversos rapazes presenteavam as escolhidas com belos ramalhetes de

flores, à saída do santuário, ao terminar a missa.

Padre Carlos e Alcione contemplavam curiosa-mente a cena em que se

revelavam os impulsos amorosos e espontâneos da juventude. Instintivamente,

trocaram um olhar que dizia de tôda a afetividade sublime que lhes

palpitava na alma. O sobrinho de Damiano não resistiu à interpelação

silenciosa da jovem que resumia os sonhos da sua mocidade e, retirando linda

fôlha de trevo de um jarrão próximo, ofereceu-a à dlleta do coração, falando-lhe

comovidamente, em tom muito discreto:

— Perdoa! Não te posso oferecer o ramalhete da esperança para um

noivado venturoso, mas dou-te esta fôlha de trevo que é um símbolo da minha

terra!

Ela recebeu a dádiva, muito trêmula, emocionada, palidíssima. Quis agradecer

mas não conseguiu articular palavra. Naquela hora recebia, inesperadamente,

a revelação direta do espírito que encarnava os seus mais lindos ideais de

mulher. Ele compreendeu a perturbação natural e acrescentou:

138

— Não sofras por isso!... Quero apenas lembrar que, não fôra o

compromisso assumido, poderia hoje dizer que, apesar dos meus quase trinta

anos, ousaria suplicar a Deus me concedesse a ventura de os conjugar às tuas

dezoito primaveras.

Alcione estatelou. No Intimo, obediente à lealdade, nada tinha a dizer

senão que desejava, igualmente, realizar o sonho comum; que êle era o único

homem, no mundo, capaz de lhe proporcionar a doce luz da felicidade

conjugal, mas as convenções também lhe cerravam pesadamente os lábios.

Nesse momento, notou no semblante do interlocutor algumas lágrimas que lhe

corriam furtivamente dos olhos. Não pôde permanecer mais tempo na silente

expectação de alma ferida. Dolorosa comoção empolgou-lhe a alma sensível e,

com o pranto ardente a lhe fluir do Intimo, estendeu a mão carinhosa e trêmula,

exclamando:

— Padre Carlos, pode crer que suas palavras me tocam o sacrário do

coração!...

— Alcione — falou o pupilo de Damiano profundamente comovido —, se te

fôr possível, doravante chama-me Carlos apenas, na intimidade. Dos outros

suportarei o título de apóstolo sem o ser.

A jovem pronunciou um monossílabo que traduzia aquiescência, enquanto

o sacerdote acentuava comovido:

— Falaremos depois...

Naquela noite, em casa de Madalena, os dois disfarçavam a custo a ansiedade

que lhes trabalhava no espírito. Carlos ardia em desejos de arrebatar Alcione

da sala, a fim de lhe comunicar suas angústias infinitas, ao passo que ela

implorava intimamente a Jesus lhe concedesse uma oportunidade, de modo a

se lhe fazer compreendida. O ensejo surgiu, quando, após uma hora de

música, o pequeno Robbie pediu ao Padre Damiano que o levasse até às

muralhas, passeando ao luar, O velho eclesiástico acedeu, prazeroso. Apesar

do frio, a noite ostentava beleza excepcional. Madalena fizera questão de ficar,

alegando a costura, e os quatro demandaram a Porta de São Vicente, em

alegre entretenimento. Enquanto Damiano atendia aos caprichos do petiz, o

jovem par encontrava a desejada oportunidade para expandir-se.

— Alcione — começou o sacerdote comovidamente —, o destino cercoume

o espírito de altas muralhas e colou-me aos lábios férrea mordaça;

entretanto, espero me perdoes esta minha afeição sincera, pelo amor de Jesus,

a quem serves com tamanho fervor. Sinto que ainda não o sei atender com o

devotamento que te marca os gestos de santa e, por isso mesmo, aguardo a

tua compreensão caridosa, quando me não possas retribuir em espírito...

Nunca a filha de Madalena experimentara tamanha luta íntima. O primeiro

impulso do coração que sina é sempre o de consolar ou defender o objeto

amado.

— Dize-me — prosseguia o rapaz na sua paixão ardente — se de fato me

compreendes e desculpas o meu desvario.

— Pelo muito que tenho chorado em minhas preces — respondeu a jovem

suspirando —, Jesus sabe que te entendo o coração.

A inflexão carinhosa dessas palavras não dava margem a dúvidas. Carlos

Clenaghan, tão somente em face da declaração afetiva, sentia-se o mais venturoso

dos homens.

— Teus olhos falavam-me, Alcione, mas eu esperei, ansioso, que teus

lábios confirmassem a minha felicidade. Que longas têm sido as minhas noites

139

de dolorosas vigílias! É verdade que sou prisioneiro de uma convenção

poderosa e terrível, mas tua compreensão e teu afeto representam, para mim,

a visita e o interêsse de um anjo por desventurado galé em cárcere sombrio!...

— Não digas tal, Carlos — tornou a jovem comovidamente, evidenciando

embora a suprema luta íntima —, o dever não pode, jamais, tornar-se um

fantasma aos nossos olhos. Deus semeou a criação de infinita alegria e nós

estamos no divino trabalho de acendramento espiritual. Tôda obrigação nobre

embeleza o caminho e não devemos andar tristes na tarefa grandiosa ou

simples, que nos foi confiada.

O sacerdote sentia a beleza da concepção, mas, obtemperou:

— Entretanto, para mim, a existência tem sido madrasta.

— Acreditas, porém, que a vida se encerre nos dias fugazes do mundo? —

revidou Alcione carinhosamente. — Para o nosso conceito de paz e felicidade,

são quase mesquinhos os períodos de tempo que assinalam, na Terra, a

infância, a juventude e a velhice. Somos espíritos eternos, O mundo, Carlos,

deve ser uma grande escola, onde o Senhor nos proporciona possibilidades

benditas de trabalho e educação para a vida sem fim...

O rapaz enternecia-se ao ouvi-la. Sua voz parecia vir de longe, da região

da verdade e da esperança, que lhe embalava os sonhos mais íntimos.

Aquêles conceitos caíam-lhe no coração ferido, como bálsamo precioso.

— Entretanto — disse com inflexão amargurosa —, por mais que me

acolha ao manto da fé, não me furto de pesar imenso, oriundo do voto de

minha mãe, que me escravizou para sempre.

— Não inculpes tua mãe do círculo de obrigações e testemunhos que te

cabem — advertiu ela criteriosamente —; acima de qualquer decisão humana

está Deus, que dispõe de infinitos meios para exercer sua vontade soberana.

Além disso, tua mãe, assim alvitrando, obedeceu a propósitos muito dignos,

oferecendo-te a Deus em doce consagração. E se o Pai aceitou o voto

maternal é que existem, certo, no conteúdo da decisão, imperativos da lei

inelutável de aperfeiçoamento pela dor.

Reparando que êle a escutava com alguma surprêsa, continuou:

— Crês, acaso, na afirmativa de muitos teólogos de que Deus cria as almas

no ato mesmo do nascimento do corpo?

Carlos Clenaghan pareceu meditar longamente e retrucou:

— Não ignoro que muitos vultos da Igreja antiga desautorizam essa

opinião.

— Apesar das torvas cruezas do Santo Ofício — acentuou, de olhos

brilhantes, a filha de Cirilo —, prefiro acompanhar a corrente dos velhos pensadores,

que admitiam a multiplicidade das existências. É impossível, Carlos,

que estejamos na Terra pela primeira vez. Os livros do padre Damiano fizeramme

sentir essa consoladora verdade. Há quanto tempo teremos enfunado as

velas do barco de nossa vida, em procura do amor paternal de Deus? Quantas

vêzes teremos naufragado em nossas intenções mais santas? Quantas vêzes

teremos conduzido a embarcação às penedias negras do crime? Há mais de

cinco anos, procuro àvidamente os indícios dessa lei poderosa que nos

equilibra os destinos. Por vêzes engolfo-me na leitura dos grandiosos

pensamentos de quantos já perlustraram os nossos caminhos. Esses

mensageiros da sabedorIa e da paz não teriam sido portadores de mensagens

vãs. E, acima dêles, temos a palavra do Cristo nos Evangelhos, dizendo-nos

que o homem não atingirá o reino de Deus sem renascer de novo...

140

Padre Carlos estava muito admirado, como alguém que retomasse velhas

idéias abandonadas de há muito tempo. Mas, reconhecendo o efeito de suas

asserções confortadoras, a filha de Madalena prosseguiu com serenidade:

— Neste mundo não será possível acordar para os elevados domínios do

conhecimento, sem nos voltarmos com atenção para o problema da dor. Desde

cedo, habituei-me a rebuscar comparações. Por que o leproso, ao lado dos de

rosto brilhante? Por que se confundem, na mesma rua, os felizes e os

desventurados? Seria justiça ministrar o pão a alguns e as pedras a muitos?

No quadro da teologia atual, o Criador seria quase cruel. Mas é tão grande a

misericórdia divina que o Pai permite aos filhos a enunciação dos mais loucos

raciocínios, até que se compenetrem da grandeza acolhedora do seu amor

desvelado. Naturalmente, Carlos, somos espíritos integrando a enorme caravana

da Humanidade. Teremos falido inúmeras vêzes, fugindo aos desígnios

do Senhor para atender a nossos caprichos misérrimos. No entanto, a

Providência nos acolhe de novo na escola terrestre, dando-nos um corpo

diferente e renovando-nos a oportunidade sacrossanta...

O jovem sacerdote tinha a impressão de ouvir um anjo a esclarecer a

essência dos mistérios divinos.

— De fato — murmurou comovido —, são idéias que aliviam a alma e

nobilitam a vida.

— Quem poderá afirmar que o voto de tua mãe não signifique apenas uma

contribuição para que se cumpram os desígnios de Jesus? É inegável que

nossos corações se preparam para suportar as dores rispidas da separação,

achando-nos tão perto um do outro nas estradas da vida. Entretanto, estou

certa de que nossas lágrimas hão de ser recebidas no Céu, enriquecendo

nosso patrimônio espiritual no futuro, O mostrador do Destino marcará a hora

de unirmos nossas mãos para sempre... O roteiro doloroso nos descortinará a

luz do noivado eterno, mas, até lá, importa saibamos retribuir a bondade de

Deus com testemunhos de trabalho, abençoando os sacrifícios.

Nesse momento, de coração aliviado pela claridade do ensinamento, Carlos

tomou-lhe a mão entre as dêle, tocando-a no fundo dalma, mas, vendo-a

retrair-se num movimento instintivo, não ocultou sua mágoa, murmurando:

— Alcione, reconhecemos que esta nossa afeição é tramada em

sentimentos puros. Sei que minha condição sacerdotal acarreta responsabilidades

pesadíssimas; não ignoro que, não só pelo meu título, como pela idade,

era a mim que caberia, antes que a ti, exemplificar; mas, perdoa: o padre é

também homem, carregado de fraquezas - Agora, que sei corresponderes aos

meus mais íntimos sentimentos, sinto que um fogo abrasador me devasta o

espírito abatido. Quero deter o pensamento nas esperanças infinitas que me

deixaste entrever, quero ampliar meus ideais aqui na Terra, e anseio por fixar

os impulsos dalma, na comunhão com Jesus; no entanto, o complexo das

tendências, os desejos insatisfeitos, me suscitam maiores inquietações. O

amor não é apenas um sol que ilumina, é também vulcão que devasta...

Releva-me os impulsos impensados, ensina-me, corrige-me. Julgas que nossos

sentimentos traduzam um pecado aos olhos de Deus?

— Não o creio — respondeu carinhosa. — O amor é lei universal, que une

o Criador ao Infinito de suas obras. Jesus passou pela Terra, amando sempre.

Tôdas as nobres almas, vindas ao mundo, não deram testemunhos diferentes,

no entanto, Carlos, seria um crime forçar a satisfação do nosso ideal na Terra.

Devemos ser duas almas unidas numa só aspiração, mas conscientes de que

141

nunca encontraremos os júbilos da união, sem a argamassa do sacrifício.

— Tudo isto — acrescentou o rapaz com tristeza — porque a Igreja nos

acorrenta a compromissos absurdos. Como doutrinei’ a família se não a

possuimos?

— Não te deixes emaranhar em raciocínios revolucionários. No futuro,

naturalmente, o ministro do Evangelho, no Catolicismo, a exemplo do que já

sucede com a Reforma, participará das alegrias doces de um lar; mas, por

enquanto, Jesus não considerou conveniente a supressão dessa escola de

ascetismo, que a Igreja Romana nos aponta. Se erramos tantas vêzes em

nossos misteres mínimos, de ordem material, quantos crimes chegaríamos a

cometer se invadíssemos o terreno da fé, onde o Mestre é o mesmo para

todos? A preocupação de consertar será talvez louvável, mas um cérebro

desesperado. ao lado de muitos outros que se acomodam à situação, por

necessidade da experiência, personifica a rebeldia criminosa. Não será melhor

adotar a obediência ativa e operante, como o Cristo? O hábito sacerdotal pode

ser, no conceito de nós ambos, em razão de nossos sofrimentos atuais, um

instrumento de opressão e desventura; mas, para quantas almas êle tem sido

um refúgio de paz entre os infortúnios da vida? Muitos o desonram pelos

abusos, em nome de Deus, mas quantos o glorificaram, na renúncia e na

abnegação santificantes? Os missionários generosos salvam os maus padres,

como os justos salvam os injustos. O amor, Carlos, é a luz do caminho, mas o

egoísmo traz a cegueira. É indispensável guardar o coração contra o seu

assédio. Quando enxergamos apenas as nossas conveniências, tornamo-nos

cegos desventurados. Vejamos as vantagens dos outros e a vida nos encherá

de suas divinas compensações. Além do mais, o dia de hoje terminará com a

noite. É preciso honrá-lo com o trabalho sadio e com a obediência a Deus, para

que o amanhã seja o presente glorificado. Ninguém deverá aguardar a

claridade no porvir, se se compraz em repouso nas trevas, durante o dia que

passa.

O sacerdote bebia-lhe as palavras profundamente enternecido. Nunca

ouvira apreciações tão justas, relativamente ao sacerdócio. No seminário, os

preceptores eram pródigos de atitudes enfáticas e protocolares, enquanto os

alunos permaneciam indecisos ou revoltados. Para uns, a Igreja não passava

de instituição humana, ao passo que para outros representava um cárcere do

qual era necessário fugir por meio de criminosas acomodações. Alcione, na

sua inspiração sublime, não pudera cicatrizar-lhe de todo a chaga espiritual,

mas engrandecera a seus olhos a tarefa apostólica, fazendo-lhe sentir a

grandeza de suas responsabilidades no caminho para Deus. Todavia, no mais

recôndito da alma, ficara-lhe a êle um pensamento amarguroso. No fundo, era

o egoísmo ferido, a vaidade humana perturbada. As observações sábias da jovem

pareceram-lhe desinterêsse sentimental. Ela não experimentaria, talvez, a

mesma afeição ardente que o excruciava. Suas idéias gerais revelavam

enorme desprendimento do mundo. Carlos Clenaghan, na sua condição de

homem, chegava quase a ter ciúmes daquele Jesus tão amado e invocado a

todo momento. Dominado por conjeturas tais, obtemperou:

— Tuas concepções são nobres e elevadas, mas em mim as

características sentimentais se apresentam de outra forma. Compreendo a

sublimidade do idealismo da Igreja, tal como o expões, mas nunca poderei

perdoar a iniqüidade do destino, privando-me de um lar e do sorriso das

criancinhas. O ideal da paternidade sempre me perseguiu qual tremenda

142

obsessão... Com o teu desprendimento sublime, talvez não possas

compreender esta tortura espiritual.

— Enganas-te! Teus ideais são os meus. Esperei teu olhar, tuas mãos, teu

verbo, teus pensamentos, em todos os lugares por onde passei, desde a hora

em que despertei para o sentimento. Muitos homens passaram. Em alguns

encontrei as possibilidades de uma paternal afeição; noutros, apenas liames

fraternais. Enquanto aguardei tua vinda, os sonhos de um lar povoaram

minhalma, eu pedia ao Sol que me desse seus raios ardentes, como rogava às

estrêlas uma gôta de sua formosura para tecer a rêde de alegrias, de modo a

solenizar tua presença, quando chegasses. Palpitavas em meu espírito com a

primeira melodia saída de minhas mãos, quando tive a impressão de tocar ao

compasso do teu caminho... Mas, logo que nos encontramos, compreendi que

meus primeiros ideais deveriam ser renovados. Meus desejos evolaram-se em

silêncio, porque Jesus havia estabelecido outros desígnios às nossas lutas

terrenas. De que me valeria recalcitrar, provocando nossa própria ruína?

Reconheci-te no primeiro olhar. Nem me enganaria nunca. A alma é servida

por estranhos poderes que o mundo ainda não conhece. Apesar disso, Carlos,

senti que meus lábios se calavam sob a pressão de fortes arganéis. As

condições em que nos encontramos eram como que uma grande mensagem.

O Senhor recomendava-me adiar o idealismo da mulher, abnegando meus

caprichos em favor de propósitos mais altos. Compreendes agora?

Havia tamanha inflexão de ternura nessas palavras que Carlos Clenaghan

sentiu-se vencido. Acabrunhado nas suas disposições interiores, acentuou:

— Tens razão, Alcione...

— Quanto ao lar e aos filhinhos — continuou a jovem carinhosamente —, é

indispensável não nos perturbarmos com as visões falsas da experiência

diuturna. Padre Damiano está valetudinário, alquebrado nos trabalhos intensos

da sua amada igreja; minha mãe tem sofrido, incessantemente, desde o

primeiro dia de viuvez; Robbie é uma criança necessitada. Por que não ver,

não sentir nos três os nossos filhinhos do coração? E sem falar dos mais

próximos, onde colocas os pobres velhinhos e os enfermos que te procuram,

ao desamparo? O título de sacerdote inculca um pai.

O pupilo de Damiano enxugou uma lágrima.

— Pedirás a Deus, por mim — disse entristecido —, rogarás ao Céu que

mitigue minha dor, por não possuir a família direta.

— Sim, o lar deve ser uma ilha de suave descanso no vórtice das lutas

terrenas, à feição de um santuário sagrado onde a criatura consiga estender

seu amor à comunidade universal. Possuí-lo, será receber opima dádiva do

Criador; entretanto, Carlos, para nos encorajar a todos nos testemunhos de

sofrimento, bastaria recordar que Jesus passou pela Terra sem família direta.

Nesse instante, Damiano aproximou-se, interrompendo o colóquio.

Alcione tinha o coração opresso por indefinível angústia. Consultando as

tendências da sua sensibilidade feminina, experimentava o desejo de se

encontrar novamente com o rapaz, tão logo se afastasse o velho amigo, para

reafirmar o seu afeto, a sua dedicação sem limites. Enquanto trocavam trivialidades

sôbre a beleza da noite, sua alma carinhosa padecia longo anseio.

Depois da significativa confissão de Carlos Clenaghan, achava-o mais belo. Os

olhos se lhe haviam tornado mais brilhantes, a fisionomia mais expressiva.

Alcione chegava a recear pelas comoções que lhe vibravam no espírito

sensível. Não havia sonhado tanto? Não era êle o homem esperado

143

ansiosamente? Mas a lição cristã lhe falava, poderosa, no íntimo. Era preciso

conservar-se com o Cristo, ainda que o mundo inteiro lhe fôsse adverso.

Lutaria contra si mesma, até ao fim.

Nessa noite, porém, suas preces turvaram-se de lágrimas candentes. As

declarações de Carlos não lhe saíam dos ouvidos e a filha de Madalena, pela

primeira vez, na Terra, sentia-se cativa de singulares pesadelos.

O pupilo de Damiano, por sua vez, estava impressionado e decidido a

cultivar a sublime afeição, acima de tudo. Supunha haver aquilatado o amor

sincero da jovem pela inflexão da sua voz, pelo impulso ardente que

vislumbrava nas suas palavras de espiritualidade profunda. Experimentava

ainda, nas mãos, o calor da mão trêmula que se esquivara ao carinho, qual

pássaro assustado. Alcione estava cheia de uma sabedoria diferente, mas a

elevação espiritual, de que dava testemunho, exaltava-lhe ainda mais os

desejos ardentes. Não renunciaria aos seus propósitos. Debalde tomava os

manuais de oração, no afã de atenuar a inquietude que o atormentava, mas era

como se espêsso véu lhe vendasse os olhos dalma. Raciocinava, compreendia

a sublimidade dos textos, mas não conseguia confeiçoá-los ao coração. A

palavra serena e sábia da moça forçava-o a reflexões mais sérias, mas, no

curso dos dias, o sobrinho do velho sacerdote da igreja de São Vicente nada

mais fazia que exacerbar os próprios desejos. De quando em vez, voltava a lhe

falar no assunto, mas, encontrava-lhe o coração sempre blindado na fé, e

sempre inspirada e vigilante.

Decorridas algumas semanas, certa feita encontrou-a sozinha, no

santuário, retirando os adornos de antigo altar, após a missa.

Em tôrno, tudo era silêncio naquela manhã banhada de sol.

Damiano, terminada a missa, retirara-se ao presbitério, levemente

indisposto. O jovem sacerdote, inflamado de paixão, achou que a oportunidade

era ótima para expandir-se mais uma vez, recapitulando os idilios que fazem as

delícias dos corações enamorados.

Após a saudação carinhosa, em que os dois manifestavam natural

perturbação, o rapaz falou comovido:

— Não te admires de assim falar no recesso de um templo. Esta é a casa

que Deus me facultou e não disponho de outro recurso. Há muitos dias, venho

espreitando a possibilidade de alguns minutos, para confiar-te as minhas

infinitas inquietações.

O próprio Carlos notava que a jovem se tornara mais pálida pela comoção

que lhe ia nalma. Contudo, solidamente apegada aos seus princípios de

virtude, a moça respondeu, esforçando-se por manter a maior serenidade:

— Inquietarmo-nos será enorme êrro. Se Deus nos honrou com os

trabalhos, não nos esquecerá com os recursos da paz necessária ao

cumprimento do dever.

— Compreendo, replicou êle quase impaciente, mas começo a crer que me

não amas bastante. Aproximo-me de ti, sedento o coração, e vejo que as tuas

objeções paralisam meus impulsos...

Assim falando, reparou que a jovem se tornara branca de mármore. Pela

primeira vez, diante dêle, Alcione chorou. O apêlo era demasiado forte para

que se contivesse impassível.

— Desvairas, Carlos? — perguntou com angustiosa inflexão. — Admites

minha amorosa dedicação estraçalhando os programas do Cristo? Deus

conhece minhas vigílias em preces fervorosas. Desde que nos vimos pela

144

primeira vez, diluo as minhas aspirações mais antigas em lágrimas dolorosas.

Contemplando-a nessa atitude, o rapaz avançou alguns passos

visivelmente emocionado. Tomou-lhe a mão, de leve, e, de olhos marejados de

pranto, acrescentou:

— Perdoa-me! O amor me alucina. Tenho feito o possível por descansar a

mente, confiante em Jesus e na certeza da vida eterna; entretanto, a paixão me

obscurece a razão e caio sempre vencido nessas batalhas silenciosas do

pensamento... Tua imagem, sempre ela, a me preocupar o cérebro e o coração

atormentados! Vejo-te a cada hora, em tudo e em tôda parte, sinto-te nos

mínimos episódios da vida e creio divisar teu sorriso até no fundo das hóstias

consagradas...

— Não procedas assim — disse a moça extremamente conturbada —; tua

dedicação afetuosa sensibiliza-me o coração de maneira intraduzível, mas só

Jesus é bastante digno do amor supremo. Amo-te também, acima de tôdas as

coisas da Terra, mas sou mísera criatura, Carlos. Repletemos nossa alma com

a visão sublimada do sacrifício pelo dever. Não creias que eu possa viver sem

sonhar com os teus carinhos, mas considera que não será justo colocar tôdas

as nossas ânsias nos aspectos exteriores da vida. A felicidade no plano imortal

deve ser como a planta que nasce e se desenvolve gradativamente. Por que

aniquilar o germe de nossa ventura sublime, por simples inquietação de espírito

inconformado? E se a primeira vergôntea da nossa união divina tem a profunda

beleza de um ideal celeste, como será imensa a sua beleza quando se tomar

em dadivosa fronde de amor, nos luminosos paços da eternidade? Estamos no

período das almas esperanças, quando as sementes brotam... Se é

indispensável adubar com lágrimas, não hesitemos um instante!...

O sobrinho de Damiano ouvia enlevado. Sentindo a sutileza delicada dos

apelos feminis da religiosa e meiga Alcione, apertou-lhe a mão entre as dêle,

mais fortemente, e obtemperou:

— Concordo com a tua resignação admirável, embora não participe das

tuas virtudes celestiais; entretanto, penso que não se nega uma gôta de

orvalho à planta tenra! Não me deixes órfão da tua ternura. Ouve, querida!

Concede-me a dita de um beijo apenas e serei o mais ditoso dos sêres...

A moça fêz um gesto de doloroso espanto, ao mesmo tempo que

pervagava o olhar pela nave silenciosa.

— Não temas — prosseguia Carlos febril-mente —; os santos que nos

assistem são mais compreensíveis que os homens criminosos. Sob tetos

humanos, envenenariam as nossas atitudes sagradas, mas aqui estamos na

morada de Deus, que é Pai amoroso e sábio...

Alcione Vilamil, no entanto, fêz um gesto de recuo e murmurou:

— Não posso!

— Por quê? — revidou Cienaghan em tom de mágoa.

Então, envolvida num halo de tristeza indefinível, ela explicou:

— O incêndio devastador começa de uma simples fagulha.

— Mas nós temos sido deserdados, Alcione...

— E que dizermos de um homem — continuou com energia e serenidade

— que, sentindo o frio do inverno, acendesse um lume imprudente no seio da

floresta acolhedora, ameaçando a própria casa e a paz dos seus habitantes,

tão só a pretexto de se livrar do frio?

Ante a inesperada resistência, o pupilo de Damiano sentiu-se

envergonhado.

145

— Sou bem infeliz — disse amarguradamente entretanto, estou convencido

de que nunca trai meus deveres!...

— Lembremos, Carlos, os antigos apóstolos da Igreja, quando advertiam

que, depois de cumpridos todos os deveres, ainda nos deveríamos considerar

servos inúteis, porque tudo nos vem da misericórdia divina...

O rapaz admirava-lhe a energia afetuosa, caíra novamente em si do

desvario momentâneo que lhe perturbara os sentidos, mas conservava-se

inerte, deixando correr copiosas lágrimas.

Profundamente comovida, a jovem acentuou:

— Não posso dar o beijo que pediste, mas posso dar-te o ósculo de

minh’alma.

Retirou do pequeno altar próximo um crucifixo de prata, sobrepôs no peito

do Crucificado minúscula fôlha de trevo e acrescentou:

— Abaixo do Céu, Carlos, és o meu maior afeto; entre nós, porém, está

Jesus-Cristo. Em nossa consciência, o Senhor ainda não nos permite uma

aproximação integral. Pois bem: confio a Jesus o beijo da minh’alma, para que

seu misericordioso coração te entregue a minha pobre lembrança.

Em seguida, beijou a fôlha de trevo, passando a pequena relíquia de prata

ao escolhido, que osculou por sua vez a fôlha minúscula, com indizível carinho.

Aquela singular concessão pareceu calmá-lo. Sorriu confortado,

agradecendo com palavras afetuosas à noiva espiritual, obtemperando em seguida:

— É preciso suportar o isolamento e cumprir o dever até ao fim...

Alcione, quase satisfeita, completou-lhe a concepção nestes têrmos:

— De cidade em cidade, há sempre alguma distância a percorrer. É

intuitivo que da imperfeição de nossos espíritos à perfeição do Cristo há a

contar uma distância quase imensurável... Portanto, qualquer discípulo sincero,

para se unir ao Mestre, tem de sobrepor-se à limitação e mesquinhez da

natureza humana, disposto a tolerar as fadigas da solidão inerente à grande

jornada. Semelhante estado, Carlos, identifica todos os que vão sentindo o

tédio do mundo, ansiosos de novas luzes. Jesus nos aponta os caminhos e não

seria justo que estacionássemos, alegando temor da soledade benéfica que

nos ensina a ver o próprio coração como um livro aberto!... Apenas aí, a sós

conosco, podemos discernir mais claro o justo do injusto, o bom do mau.

Clenaghan retirou-se plenamente confortado, experimentando o espírito

banhado em fôrças novas.

Os dias continuaram a sua marcha, ao mesmo passo que as gentilezas

crescentes do novo sacerdote para com a filha de Madalena Vilamil iam-se

tornando pasto da maledicência devota. Espiolhava-se o assunto em surdina,

quando o rapaz deliberou recorrer à experiência do tio, para resolver a

situação. Damiano recebeu-lhe a palavra confidencial com alguma surprêsa.

Carlos alegava que, dada a falta de vocação sacerdotal, pretendia rejeitar a

batina, ainda que devesse contar com as mais ásperas censuras. Influia nessa

deliberação o amor que Alcione lhe inspirava e que êle revelou ao tio

pausadamente, na atitude espontânea, própria dos jovens apaixonados. Padre

Damiano mostrou-se logo muito preocupado, considerando a gravidade do

caso, e aconselhou ao pupilo não resolver tão delicado problema com a

precipitação dos espíritos levianos. Sempre fôra contrário à realização do voto

da irmã, mas, em tal emergência, era imprescindível proceder com a maior

prudência. Fêz ver ao sobrinho os obstáculos ponderosos, as ameaças dos

146

novos rumos e, por último, já que se consideravam quase como familiares de

Madalena, sugeria que o assunto fôsse levado à análise da viúva Davenport e

da filha, a quem interessaria, maiormente, tôda e qualquer decisão. Carlos

Clenaghan aceitou a idéia visivelmente satisfeito.

Chegados a casa da filha de D. Inácio, encontraram-na só, à espera da

jovem gue havia saído em companhia de Robbie, momentos antes, O velho

sacerdote aproveitou a oportunidade para explanar detidamente o assunto. A

nobre senhora mostrava-se muito admirada, sem poder disfarçar a estranheza

que a resolução de Clenaghan lhe causava. Madalena sentia-se assaz

embaraçada para opinar judiciosamente em problema tão melindroso. Quando

os últimos esclarecimentos do padre Damiano se fizeram ouvir, a viúva

Davenport respondeu muito pálida:

— Tudo isso é muito estranho para o meu coração de mãe, pois ignorava

que entre minha filha e o padre Carlos pudessem existir laços afetivos de tal

natureza...

— Não será bem assim que devemos dizer —atalhou Clenaghan

nobremente. — O que meu tio acaba de expor não passa, por enquanto, de

pretensão minha. Não existem laços entre nós, mas sim inclinações; nem

Alcione poderia presumir ou saber dos meus desígnios de alijar a batina.

— Ela ignora, então, as providências em curso? — perguntou a senhora

Vilamil bastante surpreendida.

— Sim — reafirmou Carlos, com sinceridade —, meu tio e eu deliberamos

vir a vossa casa, dada a nossa confiança e intimidade. Não desejávamos

resolver tão delicado problema por nós mesmos, quando a solução parece que

nos afetará a todos.

A viúva teve um gesto expressivo, evidenciando o seu embaraço, mas o

jovem sacerdote, percebendo-lhe a estranheza, continuou:

— O ambiente convencional em que me encontro sufoca-me o coração.

Temos necessidade de emancipação espiritual. Não quero dizer com isso que

abjure a crença que me alimenta o espírito desde a infância, e sim que não

concordo com o celibato compulsório, porque, para mim, o padre católicoromano

jamais poderá colaborar santamente na edificação da família humana,

deixando de constituí-la êle mesmo.

A filha de D. Inácio ouvia aquêle desabafo um tanto constrangida. No

íntimo, desejaria revidar, defender a missão do sacerdote, neutralizar uma

providência que poderia acarretar grandes amarguras à filha. A presença do

padre Damiano, porém, não lhe consentia maior franqueza. Habituara-se a

estimá-lo quase como ao próprio pai. Admitia o seu bom senso, aceitava a

superioridade da sua longa experiência da vida. Se êle deliberara afetar-lhe o

assunto, é que teria razões ponderáveis para isso. Mal acabava de assim

pensar, quando o velho sacerdote ponderou:

— Vejo, Madalena, que o caso te impressiona mais do que poderia supor.

É natural, porqüanto o coração materno é sempre uma sentinela vigilante. Eu

não ignorava que as preocupações de Carlos te magoariam a alma sensível,

mas, minha filha, não tive remédio senão informar-te devida-mente, com a

devida franqueza. Trata-se da ventura de dois corações muito jovens e eu me

sinto incapaz de intervir mais decisivamente, mesmo porque, penso que meu

sobrinho nada pode nem deve resolver, sem que Alcione seja ouvida.

A nobre senhora compreendeu os escrúpulos do velho sacerdote e

confessou:

147

— Também julgo muito arrojadas as pretensões do padre Carlos, no

sentido de enfrentar a sociedade em que vivemos, mas sou a primeira a

desejar a felicidade de minha filha. Por ela, sinto que devo recalcar minhas

concepções pessoais do dever e da vida. Aliás, devo esclarecer que Alcione

nunca me deu a menor preocupação, sendo esta a primeira vez que me vejo

compelida a examinar problema tão difícil, condizente ao seu futuro. Por isso

mesmo, confio em que ela própria saberá elucidar-nos o que mais convenha...

Nesse comenos, Alcione entrou de surpresa, saudando afàvelmente os

amigos.

Mais alguns momentos e padre Damiano lhe pede atenção para o assunto

em foco. Enquanto Clenaghan acompanhava as suas palavras visivelmente

emocionado, a jovem recebia a noticia com intranquilidade e amargura.

— Como vês, Alcione — terminava o velho sacerdote —, as intenções de

Carlos preocuparam-me sobremaneira e me senti sem fôrças para resolver só

por mim. Já me entendi com tua mãe e agora esperamos que te pronuncies

sinceramente.

A moça dirigiu ao amado de sua alma um olhar de exprobração, e,

sentindo-se encarcerada num círculo de opiniões, onde a sua deveria prevalecer

mais fortemente, esclareceu:

— Em consciência, padre Damiano, não posso concordar com tudo isso.

Ao que suponho, Carlos está sendo vítima de grande equívoco. Alma alguma

poderá ser feliz olvidando seus deveres. Nossa afeição seria condenável se

forçasse um de nós a esquecer as suas obrigações.

Nesse instante, o moço contemplava-a entristecido, amargurado com

aquela resistência, ao passo que o tutor justificava:

— Compreendemos a delicadeza dos teus sentimentos, mas, vale advertir

que, qual se tem dado com outros muitos, Carlos se desligaria dos votos

sacerdotais, continuando ao serviço de Jesus, dentro do Evangelho. A

resolução, portanto, apenas visaria atenuar as exigências tirânicas da Igreja,

com referência à felicidade de dois corações nobres e sinceros.

— Padre Damiano — tornou a jovem algo conturbada —, acredito na

grandeza da sua complacência para conosco e lamento bastante ser obrigada

a contrariar seu generoso coração, pela primeira vez; mas a verdade é que não

posso aplaudir êsse plano. Admito que o celibato obrigatório representa, de

fato, uma exigência tirânica, mas ninguém deverá eximir um homem dos

compromissos assumidos conforme os desígnios de Deus. Nós, que aceitamos

a pluralidade da existência na Terra, não podemos haver por meramente

casuais os acontecimentos que levaram Carlos a envergar a batina. Quem

sabe esta sua condição atual não seja uma repetição de experiências

pregressas? Quem nos dirá que êle não tenha vivido noutra época, conspurcando

o altar, e que eu não tenha cooperado em suas quedas? Não será

justo soframos ambos a conseqüência de nossos erros? Ainda que assim não

fôra, tínhamos a considerar, necessariamente, os desígnios de Jesus, sublimes

e insondáveis. É verdade que consagro a Clenaghan uma afeição intensa e

divina, que confesso diante de mamãe pela primeira vez. Esta circunstância,

porém, não será motivo de queda espiritual, mas antes de estímulo para que

redobre meus zelos pelo seu nome, O imperativo eclesiástico pode ser muito

duro, mas creio não sermos os únicos a sofrer-lhe as conseqüências. Outras

almas, tão sinceras quanto as nossas, estarão sofrendo e confiando na

bondade de Jesus-Cristo.

148

O velho sacerdote não esperava da jovem outra atitude senão aquela com

que testemunhava a suprema elevação do seu espírito, mas estava surpreendido

pela maneira como se exprimia, pela inflexão da voz, cuja emoção

se casava à firmeza dos raciocínios.

Nesse ínterim, Clenaghan interveio, murmurando:

— Teus pareceres, Alcione, evidenciam o acendramento de tua bondade;

todavia, tenho refletido na renúncia dos meus votos como ato de coragem e

fidelidade espiritual.

— Sim, para o mundo — aparteou Alcione —talvez fôsses uma criatura

desassombrada; mas onde estaria a verdadeira coragem? Na decisão

escandalosa de um dia? Ou no sagrado cumprimento dos votos empenhados

para uma vida inteira?

O rapaz não pôde dissimular a enorme surprêsa que o argumento lhe

causava. Sob os olhares perscrutadores de Madalena e do tio, Carlos parecia

titubeante, acentuando, porém, como a defender-se:

— Não sou, contudo, o primeiro a pensar nisso. Outros sacerdotes

renovaram suas concepções e mudaram de roteiro, em vista das absurdas e

criminosas imposições de que eram vítimas.

Alcione pareceu meditar um momento e respondeu:

— Renovar concepções é um dever nobre de tôda criatura, mas um pai

sômente se engrandece quando eleva consigo todos os filhos da sua casa;

nunca, porém, deixando a família ao abandono. Um sacerdote do Cristo,

Carlos, ainda que incompreendido no mundo, deve ser sempre um pai...

Quanto a mudar de roteiro, é coisa outra que merece atenção especial. É justo

que um passageiro dessa ou daquela embarcação troque de navio em pleno

mar, ou que se deixe ficar à tôa em pôrto diferente, acreditando abreviar a

viagem; mas, que dizer de um comandante que assim procedesse com os que

nêle confiam? Não será melhor permanecer, tanto nas rotas perigosas como

nas ondas mansas? E que é nossa vida neste mundo senão uma viagem para

esferas mais altas? Dia virá que chegaremos ao pôrto da verdade e é

necessário cumprir o dever até ao fim. Para as almas vulgares, a existência

pode representar um conjunto de possibilidades, de levianas experiências, mas

nós, que já recebemos algum conhecimento das coisas divinas, não podemos

interpretar a passagem pela Terra senão como santa oportunidade de trabalho

e purificação!... Referimo-nos à organização tirânica da Igreja, mas seria injusto

esquecer que um instituto defeituoso apenas se regenerará quando prevaleça

a atuação de seus elementos mais dignos. Os maus padres hão de

desaparecer quando os sacerdotes inteligentes e devotados tiverem a coragem

da renúncia a benefício da Igreja, permanecendo na tarefa por amor aos

necessitados e ignorantes, que Jesus lhes confiou!...

Damiano estava profundamente comovido e impressionado. Aquêles

conceitos não pareciam derivar de um cérebro humano. Após longa pausa, o

ancião, de olhos úmidos, acrescentou solenemente:

— Creio que as explicações de Alcione nos vêm de mais alto. A claridade

do dia do Pentecostes nunca morreu no mundo.

E, dirigindo-se ao pupilo, frisava:

— Como vês, nada tenho a dizer. Minhas objeções de velho poderiam ser

levadas a conta de impertinência. Jesus te envia, contudo, pela própria eleita, a

mensagem salvadora. Não hesites, meu filho, entre o capricho e o dever!...

A pequena assembléia familiar dispersou-se friamente. Carlos Clenaghan,

149

comovidíssimo, despediu-se de Alcione enxugando uma lágrima. No dia

seguinte, de manhã, compareceu à missa de rosto angustioso, demonstrando

que as provas da véspera lhe haviam calado fundo no coração.

Damiano também estava mais impressionado do que se poderia supor. As

afirmativas da discípula ressoavam-lhe aos ouvidos em poderosas vibrações.

Suas experiências da vida eram rudes e longas, mas nunca se lhe deparara

uma jovem com tamanha compreensão do sofrimento e do destino. Que fôra a

sua vida de sacerdote senão aquêle rigoroso programa esboçado pela jovem

Alcione? Recordava os tempos difíceis, as horas de tentações mais ásperas,

os sacrifícios longos, as dores que pareciam sem têrmo, para concluir que

Jesus lhe enviara luzes consoladoras pelos lábios carinhosos daquela criatura

que sempre estimara como filha.

Ainda assim, competia-lhe ponderar gravemente a situação. Era necessário

subtrair Alcione ao ambiente de Ávila. Além disso, impunha-se uma alteração

de regime, visto que os dois se amavam intensamente e convinha distanciá-los

a título preventivo. Madalena Vilamil sempre esperara, pacientemente, a

oportunidade de conhecer a América do Norte. Os acontecimentos pareciam

favorecer e reavivar os seus desejos. Como, porém, realizá-los? Muitas vêzes,

as ocasiões haviam surgido, mas só-mente para as colônias espanholas e êle

as recusara sempre, porque não seria razoável submeter a senhora Davenport

e os seus a penosas peregrinações.

Damiano lembrou-se do seu espicilégio. Talvez os documentos particulares

lhe sugerissem algum empreendimento. Releu a carta de um amigo de Paris.

Convidava-o a rever sua comunidade e trabalhar na capital francesa. Não seria

difícil partir da França para o norte da América. Satisfeito com o achado, reteve

a idéia durante um mês. Decorrido êsse prazo, quando as pretensões de

Clenaghan já estavam esquecidas na residência de Madalena, o velho

sacerdote começou a tratar do assunto.

150

2

Novamente em Paris

Madalena Vilamil acolheu o alvitre do velho sacerdote, entre cismas e

esperanças. Desejava, sinceramente, poder um dia abraçar os Davenport.

Nunca renunciara ao propósito de ouvir algum sobrevivente do naufrágio em

que, segundo a carta de Blois, perdera o espôso amado, Os anos haviam

corrido entre esforços angustiosos, mas nunca se lhe apagara na mente a

figura de Jaques com a sua generosidade paternal. Às vêzes, conjeturava que

o carinhoso benfeitor de Blois também já houvera falecido. Ainda assim, seria

sempre possível encontrar Susana ou algum dos irmãos de Cirilo, no

Connecticut. Ao demais, sentia-se cansada e doente. Não seria prudente

aproximar Alcione dos parentes? Temia morrer deixando a filha sem parentes

próximos que lhe velassem pelo futuro. Em tempo, alimentara a esperança de

um casamento feliz, mas agora estava certa de que êsse problema, na vida da

jovem, era muito mais complexo do que poderia supor. Se a morte lhe

sobreviesse, poderia contar com a afeição sincera do padre Damiano, mas

também notava que o velho amigo ia-se curvando para a terra, devagarinho, ao

pêso do intenso trabalho junto das almas. Quanto ao filhinho adotivo, não podia

presumir nem esperar dêle outra coisa que não fôsse preocupações e

trabalhos ásperos. Alcione não poderia esperar de Robbie o concurso

necessário no porvir. Antes, pelo contrário, ele é que não poderia prescindir do

seu arrimo fraternal. E, nada obstante, a espôsa de Cirilo sentia-se sem

coragem para aderir ao projeto. Compreendia as vantagens e o acêrto da

emprêsa, mas sentia-se ao mesmo tempo exausta de fôrças para tentar a

jornada penosa. Não hesitaria, se a viagem estivesse definitivamente decidida

e traçada em seus detalhes; entretanto, a permanência em Paris, antes da

resolução definitiva, infirmava-lhe o ânimo. A capital francesa regurgitava de

recordações doces e amargas para o seu espírito sensível. Rever os lugares

onde conhecera a inolvidável ventura da mocidade não significaria abeirar-se

do túmulo dos mais lindos sonhos e chorar para sempre? E enquanto ela assim

relutava, Damiano intervinha solícito, valendo-se das ocasiões em que se

encontravam a sós.

— Reconheço quão amargurosas são as tuas expectativas, mas penso que

a felicidade de Alcione e as necessidades de Robbie justificam teu sacrifício.

Creio que o ambiente de Ávila já proporcionou às duas crianças o máximo de

experiência. E chegados a êste ponto, nutro os meus receios pelo sobrinho.

Alcione nos deu vigoroso exemplo de fé e sacrifício, recusando-lhe os planos

de rapaz impetuoso, sacrificado na sua vocação; mas, não será o caso de

auxiliarmos agora a generosa menina, prodigalizando-lhe um bálsamo ao

coração dilacerado? É que, não obstante o bom senso e a grandeza dalma, ela

deve ter o coração repleto de amor. Isso é inegável. Considero crueldade expôla,

diàriamente, ao exame da sua chaga. Em cada pormenor da igreja, como

em cada paisagem de Ávila, seus olhos carinhosos hão de ver a figura do amor

torturado e insatisfeito. Por outro lado, pressinto em meu sobrinho manifesta

incapacidade de renúncia. A meu ver, êle deu tréguas ao problema, sem o

quitar no coração. Quando menos esperarmoS, voltará ao assunto com

argumentos novos. Não julgas que mais convém prevenir subtraindo Alcione às

tentações? Confio bastante nela, na sua conduta irrepreensível, mas imagino

que a medida lhe beneficiará o espírito impressionável.

151

— Vossa opinião é respeitável, padre Damiano, mas, por mim, penso

que Paris fica demasiado longe...

— E, contudo, a mudança para outra região espanhola pouco adiantaria.

Com referência ao caso de meu sobrinho, êle encontraria logo qualquer

pretexto para continuar junto de Alcione, e no que diz com a viagem à América

do Norte, àFrança ou à Inglaterra, sômente nos oferecem facilidades.

— Tendes razão — acentuou a filha de D. Inácio, convicta.

— Pois reflitamos no caso — concluía o velho sacerdote — certos de que,

nas feridas do amor, a distância sempre foi remédio de benéficas reações.

A espôsa de Cirilo passou a considerar a conveniência da iniciativa,

comunicando à filha os seus projetos. Alcione exultou de alegria. O ambiente

acanhado de Ávila feria-lhe o coração; os comentários maliciosos

apoquentavam-na. Todavia, ao revelar-se jubilosa, não se referiu a tais coisas,

alegando apenas a esperançosa perspectiva de melhor saúde para sua mãe e

para a educação de Robbie. Ante a opinião da jovem, Madalena ganhou novo

ânimo. As primeiras providências foram dadas, com grande espanto de padre

Carlos.

Enquanto Damiano comunicava para Paris a deliberação de partir, a filha

de D. Inácio vendia a chácara aos Estigarríbias. Realizou o negócio sem

preocupação e sem mágoas, mesmo porque, seus velhos amigos Dolores e

João de Deus haviam partido para a colônia, com certas vantagens materiais,

de acôrdo com os patrões. Quanto ao mais, Ávila não lhe oferecia motivo a

saudades acerbas. Amparada nas esperanças da filha, estava resolvida a

partir, ainda que tivesse de enfrentar maiores dificuldades na capital francesa.

Enquanto permanecia irresoluta, Alcione incumbira-se de lhe dissipar os

últimos receios. Não lhes faltaria trabalho nas cidades grandes. A costura era

serviço remunerativo em qualquer parte. Além disso, Robbie teria ensejo de

prosseguir mais firmemente na música. Padre Damiano assevera não ser impossível

conseguir serviço pago ao seu violino, em alguma igreja. Nesse caso,

Madalena animava-se, chegando a esperar com visível satisfação o dia da

partida.

Clenaghan, no entanto, mantinha-se em atitude reservada, O tutor lhe

confiara a igreja de São Vicente com severas recomendações. Fizera-lhe sentir

maiormente o quadro de responsabilidades que o cercavam e induzia-o a

manter o espírito de renúncia e sacrifício no coração, qual fogo sagrado da sua

tarefa. Carlos, porém, parecia alheio aos exercícios religiosos. Alcione era sua

preocupação máxima. Inúmeras vêzes buscava-lhe a companhia carinhosa

para aliviar o coração, mas encontrava sempre a expressiva nobreza da sua

alma cristã, adjurando-o a consumir-se inteiramente pelo dever bem cumprido,

em face do Eterno.

Na véspera da separação que o deixaria mergulhado em saudades

angustiosas, buscou-a de maneira a lhe falar intimamente, antes de se

apartarem definitivamente. Depois de longas considerações afetivas com que

traduzia as penas íntimas do coração, assim falou:

— Não sei se poderei suportar para sempre o cativeiro em que me

encontro. Sou um pássaro engaiolado, ansioso de liberdade...

— Somos escravos do Cristo — atalhou ela, resignada.

— Farei o possível por viver em observância às verdades que me

ensinaste; mas, se um dia fôr compelido a modificar meu roteiro, irei buscar-te

na França ou na América, a fim de construirmos o castelo de nossa ventura...

152

Muitíssimo emocionada, Alcione advertiu:

— Espero que nunca interfiras no que Deus organizou, ainda que se

destacassem as razões mais poderosas, porque, acima de tudo, Carlos,

suponho que deveremos aguardar nossa ventura entre as luzes do céu.

O pupilo de Damiano calou-se e a palestra prosseguiu entre juras e

compromissos afetuosos.

No dia seguinte, pela manhã, as últimas despedidas lhe provocaram

lágrimas copiosas. Abraçou o velho tio comovidamente, dirigindo a todos palavras

de reconhecimento e amor, com os votos sinceros de feliz jornada. Alcione

estava sufocada. O dever falava-lhe fortemente ao espírito, mas a separação

doía-lhe nas fibras mais recônditas. No último instante, as lágrimas lhe

saltaram dos olhos. Damiano dava mostras de forte emoção. A senhora Vilamil

permanecia recolhida em si mesma. Apenas Robbie mostrava enorme alegria

pela novidade da excursão e quase maravilhado com as suas roupas novas.

Um velho companheiro de lutas, que se conservava ao lado de Clenaghan,

abraçou os viajantes e, reconhecendo a comoção do antigo sacerdote, falou

sensibilizado:

— Padre Damiano, não nos conformamos com a sua partida, não sômente

pela falta de sua palavra animadora, como também porque não acreditamos

que se esqueça de Ávila, onde residiu e trabalhou longos anos!...

— Sim, meu amigo — respondeu o interpelado sem hesitação —, sem

dúvida que não poderei alijar as confortadoras lembranças da igreja de São Vicente

e das pessoas queridas que aqui ficam; mas, por outro lado, não há

esquecer que em tôda parte servimos ao Senhor.

Cada qual fazia por se mostrar mais esperançado e confiante no futuro.

Novos adeuses, últimos abraços, e o carro espaçoso partiu aos solavancos

e ao trote dos animais pelo caminho empedrado e poeirento.

A viagem em direção ao litoral da Galiza não foi muito fácil; entretanto,

com alguns dias de penosa jornada, a pequena caravana atingia Vigo, de onde

uma embarcação holandesa a conduziria ao pôrto do Havre. Madalena Vilamil

conservava-se melancólica, prêsa de recordações dolorosas da França.

Damiano a todos encorajava formulando vastos projetos de futuro. Não seria

difícil seguir de Paris para a América, mais tarde ou mais cedo, e essa

promessa entretinha e exaltava o otimismo geral. Para distrair Alcione e

Robbie, o velho amigo descrevia a beleza dos sítios mais atraentes da capital

francesa, falando com entusiasmo da suntuosidade dos templos e dos

passeios pitorescos pelas águas do Sena. Madalena ouvia-o atenta,

identificando os sítios de suas venturosas excursões em companhia do marido

e parecia perder-se num abismo insondavel de saudades ansiosas e lindas

recordações.

Afinal, chegaram a Paris, depois de longo tempo e de experimentarem os

maiores incômodos na viagem.

O padre Amâncio Malouzec, da confraria dos Agostinhos e companheiro

dedicado de Damiano, esperava-os solícito. Segundo a noticia enviada de

Ávila, preparara uma casa modesta no burgo de São Marcelo para Madalena e

os seus, reservando um apartamento no presbitério de São Jaques para o

velho amigo de muitos anos. A filha de D. Inácio, da caleça em que se

encontravam em trânsito, reparava com admiração as ruas e praças do seu

conhecimento. Luís 14 reinava ainda e a cidade atestava uma administração

vigilante e cuidadosa. Depois de atravessar o burgo de São Vitor, a viatura

153

penetrava o de São Marcelo e paráva ao lado de modesta casinha. Desceram

todos, enquanto padre Amâncio, muito gentil, oferecia a singela residência. A

filha de D. Inácio experimentava enorme estranheza pela mudança brusca de

ambiente. Procurou, porém, adaptar-se à nova situação. Insistindo pela nota

das despesas, fêz questão de pagar tudo, embora Damiano e o amigo

fizessem o possível por evitar o feito. Sômente mais tarde, o velho sacerdote

retirou-se para São Jaques, quando a organização de todos os projetos

tranqüilizara Madalena e os seus.

Alcione não conseguia dissimular a surprêsa que lhe causava a extensão

de Paris, com as suas expressões de vida intensa. No íntimo, rogava a Deus

lhe fortalecesse o espírito para os trabalhos que lhe estivessem ali reservados,

pronta à execução dos seus deveres.

A primeira necessidade dos Vilamil foi atendida daí a dois dias; padre

Amâncio lhes angariou ótima serva, uma velhinha desamparada e dona de

nobres sentimentos. Luisa captou logo as simpatias de Madalena e da filha. Há

muito que ela se via quase em abandono. As famílias abastadas recusavam os

serviços de gente mais idosa e a sua situação era das mais precárias. Tal

circunstância aproximou-a mais fortemente da nova patroa, constituindo valioso

arrimo para a espôsa de Cirilo, que necessitava incrementar o próprio trabalho

remunerado, para atender aos gastos domésticos.

Prementes dificuldades, no entanto, esperavam a filha de D. Inácio, que a

breve trecho se encontrou em maiores apuros. Nem sequer pudera sair à via

pública, a fim de visitar o túmulo dos pais, como tanto desejava. A mudança de

meio trouxera-lhe a revivescência da enfermidade dos pés, com caráter

agudíssimo. Padre Damiano, por inexplicáveis circunstâncias, também

adoecera em casa do colega, em São Jaques. Alcione, depois de atender aos

encargos caseiros, ia todos os dias de um a outro bairro, grandemente

preocupada com os dois enfermos. Em casa, tomava as lições do irmão

adotivo, buscava praticar o francês em longas conversações com Luisa e

cuidava, com infinitos desvelos, das melhoras da genitora. Esta, muito impressionada

com a evasão dos reduzidos recursos que trouxera de Ávila,

procurava instruir a filhinha para que a obtenção de trabalho em Paris lhe fôsse

facilitada. Em vão, enviou-a em procura de Colete e de outras amizades dos

tempos idos. Madalena tinha a impressão de que fôrças impiedosas haviam

varrido todos os traços parisienses em que concentrava as suas lembranças

cariciosas. Alcione, apesar da fé que lhe fortalecia o coração, permanecia

igualmente preocupada. Era indispensável atender ao tratamento materno,

cuidar dos pagamentos à serva, prover as necessidades de Robbie. Em suas

visitas a Damiano, abstinha-se de lhe confiar as graves inquietações. O velho

sacerdote, contraindo inesperadamente implacável moléstia dos pulmões,

definhava dia a dia. A jovem, porém, criou coragem e solicitou o socorro do

padre Amancio, a fim de lhe angariar algum trabalho. Costurava, bordava,

ensinava música e talvez não fôsse difícil obter colocação nalguma oficina

honesta, ou em casas abastadas. O novo amigo dos Vilamil pôs-se em campo.

Antiga costureira, nas vizinhanças da ponte de São Miguel, autorizou padre

Amàncio a lhe mandar a candidata para lhe conhecer as habilitações.

Alcione apresentou-se. Madame Paulete, que mascarava os péssimos

costumes com atitudes beatas, não gostou do seu porte nobre e da sua candura.

Era demasiado pura e simples para servir-lhe aos propósitos obnóxios.

Após observá-la meticulosamente, a costureira esboçou um gesto

154

significativo e sentenciou:

— Lamento bastante, mas não é possível utilizar seus serviços, por

enquanto.

— Por que Madame? — perguntou a filha de Madalena com inflexão de

tristeza, por ver aniquilada a sua esperança.

A interlocutora procurou ocultar os verdadeiros sentimentos, acentuando:

— Sua dificuldade de pronúncia não satisfaz as exigências da freguesia.

— Mas poderei costurar sem inconveniente e, com o tempo, creio poder

satisfazê-la no referente à linguagem.

— Não posso — disse a outra, inflexível —, a clientela de bom gôsto exige

muitos recursos verbais.

Alcione, muito humilde, deixando transparecer grande amargura na voz,

insistiu:

— Madame Paulete, certamente a senhora está com a razão; entretanto,

ousaria apelar para sua bondade. Tenho muita necessidade de trabalho!...

Minha mãe está gravemente enfêrma e, além disso, tôdas as despesas da

casa correm por minha conta... Se a senhora pudesse admitir-me em sua

oficina de costura, pode crer que praticaria uma ação caridosa e justa, com o

nosso eterno reconhecimento. Quem sabe terá outros serviços de que me

possa ocupar, honestamente, em sua casa? Sem conhecimentos em Paris,

estamos em luta com os maiores obstáculos.

Essas palavras, porém, embora denunciassem extrema aflição de uma filha

carinhosa, não produziram efeito. Madame Paulete, com expressão algo

irônica, voltou a dizer:

— Infelizmente não estou em condições de atendê-la; mas, minha menina,

não será só a costura que lhe poderá valer. Há muitas mulheres da sua idade

ganhando a vida em Paris, com menores esforços.

Enquanto Alcione, surpreendida com insinuação tão ingrata, sentia-se

impossibilitada de responder, a interlocutora concluía impiedosamente:

— Com seus modos simples e com a sua juventude não seria difícil.

Alcione sufocou as lágrimas dentro do peito e despediu-se. Atordoada com o

burburinho das ruas, voltou a casa, submersa em graves cogitações. Madame

Paulete fôra cruel, mas cumpria colocá-la em sua posição e esquecê-la.

Compreendia a inutilidade de se entregar a lamentações estéreis. Certo, Deus

não lhe havia concedido as claridades divinas da fé para as horas tranqüilas da

existência. Seu coração detinha o depósito sagrado, a fim de aprender a

nortear-se para o mais alto, ainda que desabassem as mais violentas

tempestades. Êsse pensamento tranqüilizou-a. Não acreditava em Jesus como

Salvador distante, sim como Mestre amado, presente em espírito às lições dos

discípulos entre os sofrimentos e experiências do mundo. Sentia-se em

momentos de testemunho. O Senhor não a esqueceria. Da sua inesgotável

bondade viriam recursos inesperados. Prosseguiria esforçando-se e estava

certa de que a mão de Jesus viria em seu socorro.

Engolfada em profundas meditações, entrou em casa, morta de cansaço.

Tal como sucedera um dia a Madalena, Alcione também tivera necessidade de

tranqüilizar o espírito materno com palavras que disfarçassem as realidades

amargas.

De olhos esperançados, a espôsa de Cirilo interrogou ansiosa:

— E o trabalho?

Esboçando um sorriso de paz espiritual, a jovem acentuou:

155

— A oficina me admitirá por êstes dias.

A senhora Vilamil deu um suspiro de alívio e murmurou:

— Graças a Deus! Que me dizes da Madame Paulete? É pessoa

respeitável?

— Pouco conversamos, mas, ainda assim, me pareceu pessoa muito

estimável e digna.

— Ainda bem — exclamou a mãezinha, despreocupando-se. — Meu maior

receio provém de conhecer alguma coisa dos abusos parisienses. Nem tôdas

as costureiras são criaturas dedicadas ao lar.

— Pode ficar tranqüila, mamãe — declarou a jovem por desfazer os

temores maternos —; em quaisquer circunstâncias não esquecerei seus bons

exemplos.

Madalena Vilamil envolveu-a num olhar de carinho imenso, no qual

transparecia a mágoa de não poder locomover-se e trabalhar. Mais comovida,

falou depois de longa pausa:

— Conheço de experiência própria o que significa pleitear umas tantas

coisas nesta Paris. Antes de nasceres, minha mãe esteve de cama longo tempo.

As necessidades tornavam-se cada vez mais prementes e tive de sair à

cata de recursos, com a diferença que eu rogava favores e tu pedes trabalho.

Em voz pausada, entrou a relatar velhas reminiscências, pintando ao vivo o

quadro das falsas amigas de D. Margarida, quando lhe atiraram era rosto

certas observações ingratas e implacáveis.

Quando terminou, chorava copiosamente, mas Alcione tomou-lhe o rosto

entre as mãos e beijou-a com enternecimento, dizendo-lhe:

— Esqueçamos, mãezinha! Por que recordar coisas tristes? Deus não

esquece os seus filhos. Certo que não nos faltará recurso e amparo!... Breve

estarei trabalhando, com vencimentos que nos satisfaçam as necessidades.

Além disso, padre Damiano, logo que melhore, arranjará serviço musical para

Robbie, na igreja. Depois a senhora melhorará e conseguiremos bordados para

fazer em casa. Não é verdade que temos um mundo de boas esperanças à

nossa frente?

A enfêrma pareceu adquirir nova expressão de bom ânimo.

— Teu otimismo é contagioso — murmurou mais tranqüila —, no entanto,

com referência ao padre Damiano, tenho triste nova a dar-te, O reverendo

Amâncio esteve aqui, na tua ausência, para certificar-nos do seu estado. O

médico já perdeu as esperanças, pois, afirma que o velho amigo está tísico e

terá poucos meses de vida.

A moça ouvia os informes sem dissimular a dor que lhe causavam. A

genitora, porém, prosseguia em tom pesaroso:

— Um pormenor muito grave da situação, segundo informa padre

Amâncio, é que o nosso ben-feitor não dispõe presentemente de qualquer recurso.

Notei-o muito preocupado com a atual situação do virtuoso sacerdote, que,

segundo alega, tem necessidade premente de efetuar certos gastos, entre os

quais, por exemplo, os que decorrem da admissão de um servo, além da

aquisição de vários utensílios de uso privado, já que terá de isolar-se, lá

mesmo no presbitério, por ser portador de mal contagioso.

— Então o padre Malouzec não pode auxiliá-lo nisso? — perguntou Alcione

compungida e aflita.

— Notei-o pouco disposto a fazê-lo.

156

— E que lhe disse a senhora?

— Fiz-lhe ver que nossas necessidades também eram duras, nestes seis

meses sem trabalho, mas, ainda assim, que esta casinha está à disposição do

enfêrmo. Minha declaração desconcertou-lhe um tanto o espírito prático;

todavia, tenho preocupações muito justas.

— Providenciaremos para obter o dinheiro —anunciou a moça, resoluta.

— Como? — perguntou Madalena, assaz impressionada — se precisamos

no mínimo de duzentos a trezentos francos para atender às despesas de instalação

do doente em pequeno pavilhão separado.

— Estou certa de que não nos faltará a soma precisa — confirmou a jovem.

Amanhã cedo irei encorajá-lo e tratar do assunto.

— Com os nossos sofrimentos atuais, acrescentou Madalena, creio que fica

liquidado o projeto de viagem à América.

— Não diga tal, mamãe! Nas noites mais escuras a esperança é um raio

mais forte.

A palestra continuou entre motivos de mútuas consolações.

Na manhã seguinte, apesar de muito preocupada com o insucesso da véspera,

a jovem chegava ao quarto do enfêrmo, antes das nove horas. Não se avistava

com o amigo havia três dias. Encontrou-o muito desfigurado, excessivamente

pálido, olhos encovados. Empurrou de mansinho a porta entreaberta, a fim de

surpreendê-lo. Reparou-lhe na fisionomia cansada e deteve-se na observação

detalhada de suas características. Com efeito, piorara muito. As mãos, a

reterem volumoso livro, cujas páginas lia atentamente, pareciam de cêra. A respiração

revelava-se algo acelerada. Alcione reprimiu a própria amargura,

dominou a emoção e exclamou sorridente:

— Lendo a Bíblia?

Damiano fêz um gesto de grande alegria, saudando-a com ternura. Ela o

abraçou e, arrebatando o livro, procurou ver que meditações o preocupavam no

momento. Eram as exortações do Eclesiastes:

— “Tudo tem o seu tempo determinado e há tempo para todo propósito

debaixo do Céu; há tempo de nascer e tempo de morrer.” (1)

— Discordo — murmurou solícita — que o senhor, adoentado como se

encontra, esteja a ler estas coisas tristes.

O sacerdote esboçou um sorriso algo desalentado, informando:

— À tua mãe, Alcione, talvez não tivesse coragem de falar com esta

franqueza sôbre o meu caso. Ela é demasiado sensível e já tem sofrido muito.

Não seria razoável aumentar-lhe as amarguras. Eis por que preciso desabafar

contigo, não obstante a tua mocidade. Já sei que êste meu mal é incurável e

não posso deixar de concluir que, para mim, vem perto a hora da partida.

Estejamos, pois, fortalecidos em Jesus, porque, como nos diz a Bíblia, a carne

é também um vento que passa e nós somos filhos da eternidade!

A moça escutava-o comovida, olhos marejados de pranto. Desde a infância

habituara-se a encontrar naquela afeição os melhores estímulos de coragem

(1) Eclesiastes, 3:1-2. — Nota de Emmanuel.

para as lutas da vida. Estimava-o, qual se fôra seu pai. Instintivamente,

lembrou-se do tempo das vigorosas pregações evangélicas em Ávila. Ninguém

diria que aquêle homem robusto, insinuante e sugestivo pela sua palavra

franca, chegaria àquele estado de miséria orgânica. Seus olhos lúcidos

157

denunciavam o desassombro e a serenidade de todos os dias, mas a

expressão geral evidenciava enorme astenia. Quis responder, consolá-lo com

palavras animadoras, mas nada lhe ocorreu. Forte constrição da garganta lhe

embargava a voz. A franqueza do velho sacerdote desarmara-lhe o espírito

carinhoso. Impossível ensaiar palavras que iludissem a gravidade da situação,

quando o próprio Damiano se sentia tranqüilo e conformado. Percebendo-lhe o

enleio, o religioso continuou:

— Não falemos de mim, Alcione. Conta-me antes o resultado da diligência

de ontem. Conseguiste trabalho?

A pobre menina fêz um gesto triste e sentiu-se no dever de falar

francamente ao grande amigo da sua infância.

Quando terminou a exposição amarga, o sacerdote comentou:

— Imagino como terás sofrido nesse contato direto com a espurcícia

humana; entretanto, não sofras por isso. Agradece a Deus o te haver revelado

Madame Paulete, tal qual é, antes de assumires qualquer compromisso, pois

quando nos comprometemos com o mal, ainda que inocentemente, aliciamos

grandes dificuldades por nos libertarmos dos seus odiosos laços. No teu caso,

pois, devemos estimar a esmola de uma santa lição. É que, às vêzes, naquilo

que denominamos maldade e ingratidão do mundo, pode existir um socorro

divino em nossa própria defesa.

A jovem enxugou as lágrimas e sorriu concordando.

— O trabalho honesto não falta — prosseguiu o religioso, paternalmente —;

temos outros amigos em Paris. Espero a visita de um colega a quem pedirei se

interesse por ti. O padre Guilherme é um companheiro de lutas que conheceu

Carlos e sua mãe, ainda na Irlanda. Estou certo de que nos auxiliará.

A jovem, notando-lhe a preocupação sincera, procurou esquivar-se ao

assunto que lhe dizia respeito. E vendo-lhe os pés descalços, perguntou:

— Onde está o agasalho de lã? O senhor não pode ficar assim...

Ele sorriu e informou:

— Guardei-o na mala.

— Por quê? — insistiu surpreendida.

— Creio que, para a semana, me recolherei ao pavilhão dos indigentes, na

Misericórdia, ou na casa dos pobres de São Ladres.

— Não pode ser — exclamou a filha de Cirilo, contristada —, não podemos

concordar com o seu recolhimento a casas religiosas, como indigente. Nós

ainda aqui estamos...

Assim falando, a menina Vilamil tinha o aspecto mortificado de uma filha

angustiada.

— Que tem isso, Alcione? — tornou o religioso, serenamente — não devo

sobrecarregar teu coração, que enfrenta agora tantas lutas em silêncio! Além

disso, não será útil o meu internamento nas instituições piedosas? Atualmente

não me poderei ocupar dos ofícios eclesiásticos, mas lá, entre os necessitados,

talvez encontre algum serviço nas prédicas evangélicas aos mais desditosos.

A resignação do velho amigo provocava-lhe pranto copioso.

— O catre da indigência — continuou Damiano — deve proporcionar

meditações sadias. E não será isso um acréscimo de misericórdia? Basta

lembrar que o Mestre não o teve. Seu derradeiro pouso foi a cruz; seu último

caldo um pouco de vinagre; sua última lembrança do mundo a coroa de

espinhos!...

Alcione esboçou uma atitude de profunda compreensão e disse:

158

— Não rejeito as lições de Jesus e rogo à sua infinita bondade nos proteja

o coração para os testemunhos necessários, mas creio que o Mestre atenderá

minhas súplicas e entenderá meus rogos filiais!... Diga-me se lhe não falta

dinheiro para as despesas imediatas.

E embora convicta de não encontrar recursos com a genitora, asseverou,

confiando em Jesus:

— Pode crer que, não obstante as dificuldades do momento, ainda temos

recursos suficientes para cuidar das suas melhoras.

Damiano parecia acanhado, em vista da sua carência absoluta de meios,

mas, esforçando-se por confessar a verdade, acabou murmurando:

— De fato, meus recursos estão esgotados com as despesas que fui

obrigado a fazer, aqui em São Jaques, mas não nos preocupemos com o

dinheiro, filha...

— Não, não é o dinheiro que me preocupa, e sim as suas necessidades...

Não concordo com a sua transferência para a Misericórdia. Se não puder ficar

aqui, ficará em nossa casa.

E como o sacerdote experimentasse certa dificuldade para redargüir,

Alcione continuou:

— Perdoe-me, se intervenho ousadamente em tal assunto, mas o que

reclamo tem prerrogativas de direito — o direito da amizade. Sempre o considerei

um pai. Diga-me: quanto pede o reverendo Amâncio pelas suas novas

acomodações?

De olhos brilhantes no testemunho de humildade daquela hora de extremas

provações, Damiano respondeu:

— Duzentos francos para a aquisição de utensílios e pagamentos iniciais a

um serviçal.

—Ora essa! — disse a generosa menina revelando despreocupação — nunca

mais me fale em se reunir aos indigentes por tão infima quantia! Queira

assumir o compromisso, porque depois de amanhã trarei o dinheiro. Temos

maior quantia lá em casa e não nos fará falta de maneira alguma.

O velho amigo dirigiu-lhe um olhar de reconhecimento.

Ainda trocaram idéias e consolações por algum tempo, ficando ela de

voltar dali a dois dias, e o velho sacerdote falou da esperança que tinha na

próxima visita do padre Guilherme, que, por certo, não lhes faltaria com

prestimosa cooperação.

Alcione despediu-se, mostrando-se confortada, mas tão logo alcançou a

rua, sentiu-se prêsa de extrema preocupação. Onde conseguir duzentos

francos para socorrer o amigo doente? Debalde excogitava meios de satisfazer

a promessa. Os vizinhos eram gente paupérrima. Obter qualquer adiantamento

em oficinas de trabalho, era impossível, porqüanto não alcançara nem mesmo

um trabalho certo. De alma opressa, lembrava que não poderia confiar o

assunto à genitora, fazendo-a sofrer mais que ela própria. Entretanto, era indispensável

conseguir o dinheiro. Andava depressa e, contudo, concentrada em

aflitiva meditação. Começou por pedir fervorosamente a Jesus lhe inspirasse

um meio lícito. Já próximo de casa, notou que alguém cantava à porta de uma

velha igreja do bairro de São Marcelo, para ganhar a vida. Era um cego.

Aproximou-se e deu-lhe alguma coisa do pouco que tinha consigo.

Imediatamente, nasceram-lhe novas idéias. Não seria viável um concêrto com

o concurso de Robbie, num local bem concorrido? Poderia cantar ao som do

violino do irmão adotivo. Talvez conseguisse dessarte a quantia necessária

159

para socorrer de pronto o padre Damiano. Essa perspectiva alegrou-a. Entrou

em casa tão satisfeita que a genitora perguntou interessada:

— Como vai o padre Damiano? Pelo que leio em teu rosto, êle não está

assim tão mal.

— Seu estado ainda é grave, mas, achei-o calmo e otimista.

A senhora fêz um gesto de admiração e acrescentou:

— Que há, Alcione? Vejo-te muito mais animada e satisfeita...

— É que já fui avisada que amanhã poderei comparecer ao serviço.

— Graças a Deus! Bendita a hora em que aprendeste a costura!...

Em seguida, Alcione chamou Robbie ao pequeno quintal, para cientificá-lo

do plano.

— Um concêrto? — disse o rapazote impressionado.

— Sim, mas é preciso guardar segrêdo. Mamãe sofreria muito se viesse a

saber. Se não arranjarmos o dinheiro, padre Damiano irá parar na Misericórdia

e talvez nunca mais o vejamos. Cantaremos só amanhã, porque depois é

possível que eu arranje trabalho para nós.

O pequeno arregalou os olhos estrábicos e concordou:

— Então vamos.

E passaram logo a trocar idéias e conchavar no tentame para o dia

seguinte. Isto feito, entraram em casa de semblante alegre. Justificando o

ensaio, Robbie pediu para tocar alguma coisa. Não obstante a hora imprópria,

Madalena concordou e Alcione disse que ia cantar para distraí-la. Ambos,

tomando posição, recordaram velhas melodias castelhanas, canções

aragonesas, versos populares da Andaluzia. Apesar do sofrimento dos pés, a

senhora Vilamil sorria encantada, murmurando:

— Nossa casa hoje está muito alegre! Que dia adorável!... Foi pena ter

deixado em Ávila o meu velho cravo...

Robbie entusiasmava-se ao lhe ouvir as expansões e exibia arcadas mais

difíceis e mais seguras. Luisa ria e chorava de contentamento e emoção. A

jovem cantou quanto lhe veio à lembrança. Repetiu as raras canções francesas

que conseguira aprender e recitou numerosas poesias de La Fontaine.

E assim terminou o dia entre cariciosas alegrias domésticas.

Na manhã seguinte, Alcione beijou a mãe ao despedir-se e preveniu:

— Logo, voltarei para a refeição, e ao tornar ao trabalho quero que me

concedas a companhia de Robbie, pois creio que tenho de regressar mais

tarde, à noite.

Madalena disse que sim e abençoou-a com as suas blandicias de mãe.

Alcione andou muitos quilômetros de ruas e praças, estudando o local

adequado à iniciativa. Algo cansada, parou junto ao templo de Nossa Senhora

e entrou. Descansou longamente em preces fervorosas, lembrando que não

haveria melhor local para o empreendimento que o adro daquela casa

consagrada à Mãe Santíssima. Não vacilou. Voltaria ao bairro de São Marcelo

para trazer o irmão adotivo. Começariam o concêrto ao cair da tarde,

confiantes no interêsse popular.

Entrou em casa muito esfogueada de sol, tomou a refeição e saiu com o

rapaz. Tiveram o maior cuidado no retirar o instrumento, para não serem

percebidos por Madalena e pela criada.

Emocionada, naquela conjuntura de angariar o dinheiro indispensável ao

velho amigo, Alcione

penetrou novamente na igreja e orou, implorando o socorro divino.

160

As brisas suaves do crepúsculo corriam mansamente quando os dois

artistas improvisados tomaram posição e preludiaram as primeiras notas,

justamente quando a multidão em massa afluia ao templo. Numerosos carros

iam e vinham. No firmamento escampo de nuvens, Vésper cintilava. Alcione

começou a cantar, mas, com tanta harmonia e sentimento, que dir-se-ia um

anjo baixado à Terra para transmitir aos homens as suaves belezas do

crepúsculo. Em breves instantes, ranseuntes, clérigos, fidalgos e gente do

povo formavam em tôrno compacta assistência. Cada canção era aplaudida

frenêticamente. A cantora inspirava profunda simpatia apesar da malícia de

alguns cavalheiros presentes. E assim transcorreu uma hora de franco êxito.

Dois padres generosos mandaram acender tochas, para que o concêrto se

prolongasse até mais tarde. Alcione cantava sempre. Sentia-se corar de

vergonha quando as dádivas lhe caíam na bôlsa, mas vinham-lhe à mente o

padre Damiano e a mãezinha, e experimentava enorme consolação, julgandose

quase feliz. E enquanto agradecia as palmas com ademanes graciosos,

Robbie arrancava cristalinos acordes do seu violino. Todos se impressionavam

com a beleza da jovem, a contrastar os traços grosseiros do pequeno violinista.

Houve mesmo quem lhe sussurrasse no ouvido:

— Parece um morcêgo ao lado de uma cotovia!...

Compreendeu o sentido da frase, mas interpelada pelo irmão adotivo, que

não entendia muito bem o francês, procurou confortá-lo, dizendo:

— O auditório está entusiasmado e calculo que já temos quase cem

francos. Não desanimemos.

— Estou bem fatigado — alegou o rapaz...

— Lembra-te de mamãe e do padre Damiano...

O menino pareceu refletir e fazia vibrar o instrumento com maior

entusiasmo.

Nesse ínterim, surgiu poucos metros distante uma carruagem de família rica.

No seu sotaque espanhol, Alcione cantava, no momento, velhas modinhas

francesas. Impressionados, talvez, com o quadro inédito, os dois passageiros

da viatura deram ordem de parar. Um cavalheiro prematuramente envelhecido,

aparentando mais de cinqüenta anos sem os ter, desceu do coche dando o

braço a uma senhora muito magra e abatida. Dominado por estranha emoção,

encaminhou-se resoluto para o grupo, como que forçando a companheira a

seguir-lhe o passo lesto e resoluto. A certa distância, podiam ver a cantora, que

parecia coroada pela luz das tochas resplandecentes.

— É o retrato de Madalena! — disse êle, empalidecendo.

— Vamo-nos embora — murmurou a companheira num ensaio de recuo —

, deve ser alguma vulgar cantora de rua.

— Não, não — respondeu o desconhecido em voz muito firme, como a

indiciar que viviam em constante desacôrdo —, se queres, vai-te e manda-me o

carro depois.

— Isso não — revidou visivelmente enfadada, deixando-se ficar junto dêle,

que se mostrava de mais a mais enlevado e atento à cantora, cuja voz

melodiosa enchia o silêncio da noite e lhe falava misteriosamente ao coração.

Quando ela cantou uma velha música espanhola, êle não se conteve,

levou a mão ao peito e disse à companheira:

— Lembras-te do Carrousel de junho de 1662? Não foi esta uma das

melodias de Madalena?

A senhora, apesar de muito contrariada, redargüiu:

161

— Sem dúvida... Recordo-me perfeitamente do baile de Madame de

Choisy...

Ele aproximou-se mais. Estava tão embevecido que se fazia notado dos

circunstantes, a despeito do carrancudo semblante da companheira. O

desconhecido, porém, parecia não dar por isso. Entregue à contemplação da

cantora, envolvera-se no suave magnetismo da sua personalidade, sem se dar

conta de tudo mais.

No momento em que Alcione terminava uma doce cantiga de Castela-a-

Velha, êle aproximou-se dos dois artistas e perguntou delicadamente:

— A Senhorita que conhece tantas músicas da península, conhecerá uma

velha melodia espanhola, chamada “A Calhandra Aragonesa”? —

perfeitamente, e se faz gôsto posso cantá-la para o senhor.

— Terei imenso prazer.

Alcione advertiu ao irmão adotivo como devia ensaiar as primeiras notas.

— Não me recordo bem — acentuou o violinista.

— Ora, Robbie, como é isso? E’ uma daquelas primeiras melodias que

mamãe te ensinou.

O menino fêz grande esfôrço mental e concluiu:

— Já sei...

Algumas arcadas harmoniosas assinalaram o intróito de inefável beleza e,

daí a momentos, a voz límpida e aveludada da jovem se fazia ouvir, em

religioso silêncio da assembléia numerosa. Obedecendo, talvez, a secretos

impulsos do coração, Alcione imprimia novo encantamento espiritual em cada

acorde. Dir-se-ia o nenioso gorjeio de um pássaro abandonado, na vastidão da

noite.

A música, muito delicada, realçava antiga lenda que traduzia o lirismo

popular:

No manto da noite amiga,

Ouve esta velha cantiga,

Guarda no peito a canção

Da calhandra do caminho,

Que errava sem ter um ninho

Na verdura de Aragão.

A pobrezinha vivia

Numa perene agonia,

Em dolorosa mudez;

Era a Imagem da saUdade,

Nos andrajos da orfandade.

No luto da viuvez.

Mas, em certa primavera,

A pobre, que andava à espera,

Reparou, findo o arrebol,

Que chegava de mansinho.

Olhos cheios de carinho.

Seu amado — o rouxinol.

Desde essa hora divina,

162

A calhandra pequenina,

Que errava de déu em déu,

Enfeitou-se na vitória,

Encheu-se de vida e glória,

Cantando no azul do céu.

Brincava na paz da fonte,

Ia ao longe, no horizonte,

Sob o sol, sob o luar...

Fôsse noite, fôsse dia,

Transbordava de alegria,

Nas penugens do seu lar!

Mas, um dia, o companheiro

Deu-lhe o olhar derradeiro

Da bôlsa de um caçador!...

A calhandra infortunada

Tombou sem vida na estrada,

Na angústia do seu amor.

No manto da noite amiga,

Ouve esta velha cantiga,

Guarda no peito a canção

Da calhandra do caminho,

Que errava, sem ter um ninho,

Na verdura de Aragão.

Quando terminou, o cavalheiro levou o lenço ao rosto, como se fôra

enxugar o suor, mas, na verdade, disfarçando as lágrimas que lhe brotavam

dos olhos. Depois de consultar o bôlso, retirou um pacote de moedas e

entregou-o à cantora, nestes têrmos:

— Tome lá, senhorita, esta lembrança lhe pertence. Sua voz me deu

emoções que procuro, em vão, há vinte anos.

E, enquanto Alcione hesitava diante de uma espórtula tão vultosa, o

desconhecido insistia:

— Isto é nada, comparado ao que lhe fico a dever.

A companheira bem que o fisgava com olhares de censura, mas êle

permanecia alheio e indiferente às suas atitudes. A cantora, porém, mostravase

sumamente reconhecida.

— Deus o recompense, senhor!

Robbie também lhe mandou um olhar de enorme satisfação, através do

qual transparecia o desejo de encerrar o ato. E, como se estivesse apenas

esperando o cavalheiro desconhecido para terminar o trabalho da noite, a filha

de Madalena agradeceu a todos, comovidamente, e retirou-se com humildade,

amparando o irmão adotivo que se mostrava exausto pelo esfôrço despendido.

O casal, por sua vez, retomou o carro, sob forte impressão.

— Quanto deste à cantora? — perguntou a mulher abruptamente.

— Trezentos francos.

— Ainda havemos de acabar indigentes, graças ao teu sentimentalismo —

exprobrou, amuada.

163

— Se lhe houvesse dado três mil escudos, nem assim pagaria a terna

emoção que me despertou nalma saudosa...

E recaíram em penoso silêncio, enquanto a carruagem rompia a escuridão

da noite.

Alcione e Robbie regressavam ao lar, tomados de imensa alegria. Quando

se viram longe do adro de Nossa Senhora, o pequeno comentou:

— É bem duro pedir, não achas, Alcione?

— Não é tanto assim — respondeu-lhe resignada. A necessidade, Robbie,

às vêzes nos ensina a afabilidade e a doçura com o próximo. Nunca reparaste

que as crianças muito independentes costumam ser caprichosas e ásperas?

Assim também, já crescidos, é útil que venhamos a precisar do concurso de

outrem, por tornarmo-nos mais carinhosos, mais sensíveis ao afeto fraternal...

— Isso é verdade — concordou o pequeno —, são raros os meninos

brancos que me tratam bem.

— É porque ainda não sabem o que é a vida. Se um dia a necessidade

lhes bater à porta, compreenderão, talvez imediatamente, que somos todos

irmãos. Suponho que Deus, sendo tão bom, facultou a pobreza e a doença ao

mundo para que aprendêssemos a sua divina lei de fraternidade e auxílio

mútuo.

Robbie, muito admirado, ponderou:

— Desejava sentir essas coisas conformado, assim como te vejo, mas a

verdade é que, quando me humilham, sofro muito. Faço enorme esfôrço para

não reagir com más palavras e confesso que, por vêzes, se não fôsse a mão

doente, agrediria alguns meninos.

— Não agasalhes êsses pensamentos, procura fazer exercícios mentais de

tolerância. Reflete, contigo mesmo, como tratarias as crianças negras se

fôsses branco, imagina qual seria tua atitude com os doentes, se fôsses

completamente são.

O pequeno violinista meditou longamente e respondeu muito sério:

— Tens razão.

— Sem dúvida, isto que aqui te digo requer muito esfôrço, porque só o

pecado oferece portas largas ao nosso espírito. A virtude é mais difícil.

O menino pareceu refletir algum tempo e perguntou, mudando o rumo do

diálogo:

— Quem será aquêle homem tão bom que nos deu tanto dinheiro?

Alcione fêz um gesto significativo e respondeu:

— Eu também estou impressionada. Deve ser algum enviado de Deus.

— Mas parecia tão triste...

— Também notei isso. Que Jesus o abençoe pelo auxílio que nos deu.

Amanhã levarei ao padre Damiano o pacote que parece conter mais de duzentos

francos, e com o restante vou pagar à Luisa o que lhe devemos e

chamar um médico para tratamento mais sério da saúde de mamãe...

Mal havia terminado as explicações, o pequeno tropeçou, caíndo ao solo,

desamparadamente. Ante a fôrça moral que a irmã adotiva exercia sôbre êle,

levantou-se com esfôrço, acrescentando:

— Não te incomodes, não foi nada. Cai porque precisei resguardar o

violino...

A jovem, contudo, inclinou-se comovida.

— Como vês, Robbie — disse intencionalmente —, não apenas pediste

nesta noite. Trabalhaste muito. Estás cansado... Vamos procurar um carro que

164

nos leve a São Marcelo. É um luxo que hoje poderemos pagar.

Ele concordou de bom grado e não tardaram muito a reentrar em casa,

onde Madalena já se mostrava inquieta.

No dia seguinte, em vez de sair para o trabalho, conforme dizia à genitora,

Alcione dirigiu-se a São Jaques do Passo Alto, com o socorro destinado ao

velho sacerdote.

Damiano contou o dinheiro com atenção e advertiu:

— Trezentos francos, minha filha? Sei que Madalena luta com enormes

dificuldades. Onde guardavas esta quantia?

Enfrentando aquêle olhar penetrante, cheio de preocupações afetuosas,

Alcione deu-se por vencida e confessou o feito da véspera. Sem dinheiro e sem

relações, resolvera dar um concêrto público com Robbie, no adro da igreja de

Nossa Senhora. O rendimento fôra muito além da expectativa.

O enfermo abraçou-a, comovidíssimo, cheio de gratidão pelo sacrifício.

Depois de contar os episódios da feliz aventura e dar as impressões do

seu contato com a massa popular, Damiano lhe ponderou:

— Sem dúvida Jesus te protegeu nessa aventura singular,

compadecendo-se das nossas necessidades. Entretanto, minha filha, penso

que não deves reincidir nessas exibições. Ao lado das pessoas educadas, há

sempre muitos exploradores e numerosos vadios. Temo por tua mocidade e

pela inocência de Robbie!...

E enquanto ela concordava, pensativa, o eclesiástico prosseguia

explicando:

— Tenho o pressentimento de que encontrarás, agora, uma ocupação

muito nobre, com ótima remuneração.

— Será uma ditosa surprêsa! — exclamou a moça com infinita alegria

transbordante dos olhos.

— Padre Guilherme aqui esteve ontem por duas vêzes. De manhã, falei-lhe

a teu respeito e prontificou-se a tomar logo as primeiras providências. À noite,

voltou com a notícia auspiciosa. Uma família sua conhecida precisa dos

serviços de uma jovem educada, de irrepreensível conduta. Esclareceu que a

remuneração é das mais condignas. Trata-se de um casal que há três anos

chegou da América do Norte em busca de saúde para a filhinha única, que se

encontra doente. O chefe da família é um homem abastado, que, além de proprietário

em Paris, representa vasta zona comercial de fumo da colônia, em

ligação com o comércio europeu. A dona da casa, de conformidade com as

informações do padre Guilherme, é católica praticante e rigorosa no culto. Tem

uma filhinha que a impressiona, em extremo, por isso que, da mais tenra idade,

parece fugir à ternura maternal e, presentemente, com quase treze anos, vive

prêsa de grande nervosismo e estranhas preocupações. Os pais deliberaram

tomar uma governanta que lhe seja enfermeira e educadora, ao mesmo tempo.

E, por coincidência, di-lo ainda o Guilherme, trata-se de gente irlandesa, que

passou longos anos na América.

Alcione alegrou-se. Assim entretidos, formularam vastos planos. Ao

despedir-se com a idéia de chamar um médico para a genitora, Damiano lhe

disse:

— Ficamos então combinados. De hoje a três dias, Guilherme te

apresentará nessa casa de sua confiança e que fica, creio, nas proximidades

de São Landry, na Cité. Farás ver à Madalena as vantagens do cargo. Quem

sabe terá soado o minuto da nossa completa tranqüilidade? Não estará aí,

165

talvez, o ensejo para tua mãe realizar o velho sonho de uma viagem ao

Connecticut? Por mim, morrerei mais sossegado se puder partir com esta

esperança.

A jovem sorriu e observou, resignada:

— O senhor tem razão. Tudo isso poderá acontecer.

Muito animada, a filha de Cirilo Davenport chegou a casa, onde não teve

dificuldade em convencer a genitora de quanto lhe dissera o velho sacerdote.

Madalena Vilamil concordou. O cargo de governanta e educadora seria mais

conveniente. A costura, em contato com tanta gente desconhecida, não era um

penhor de tranqüilidade. A pobre senhora acabou por sentir enorme satisfação,

e, quando soube que se tratava de família ligada àAmérica do Norte, não

ocultou a velha esperança de conhecer o Novo Mundo.

Nesse dia, à tarde, o Dr. Luciano Thierry, procurado pela jovem Vilamil, por

indicação dos vizinhos, visitou a enfêrma, submetendo-a a rigoroso exame.

Enquanto permanecia a seu lado, o médico não poupou prognósticos otimistas;

mas, ao retirar-se, chamou Alcione em particular e disse:

— Menina, o caso de sua mãe é muito mais complexo do que se pode

imaginar. Claro que não pouparei todos os recursos ao meu alcance, mas

penso que ela dificilmente se levantará da cama.

— A moléstia é tão grave assim? — inquiriu a moça, evidenciando aflição.

— O reumatismo assumiu caráter muito Sério. Os pés e joelhos me

parecem definitivamente inutilizados, condenados a inanição. Mandarei algumas

pomadas para fomentações e digo-lhe que sua mamãe ainda poderá viver

alguns anos. Da paralisia, porém, só Deus poderá libertá-la.

A filha de Madalena agradeceu, naturalmente acabrunhada, mas procurando

reforçar as energias íntimas. Jesus, que sempre lhes enviava recursos nos

grandes momentos da vida, não as deixaria sem amparo.

No dia combinado, lá se foi com o padre Guilherme, para estrear o novo

emprêgo. E experimentava enorme confôrto em saber que teria, doravante, o

pão assegurado para si e para os seus, mercê de atividade honesta e digna.

Instruiu Luisa na aplicação dos remédios à doente, fêz recomendações a

Robbie e beijou Madalena, prometendo regressar à noite, conforme ficara

previsto e combinado.

Passava de meio dia, quando o padre Guilherme procurou Damiano para

exprimir-lhe o seu reconhecimento.

— O Sr. Davenport ficou radiante: a senhora Susana não estava em casa

no momento, mas o chefe da família, bem como o velho Jaques, ficaram

ôtimamente impressionados com a sua pupila. Deixei-a, portanto, num

ambiente de franca simpatia.

Ouvindo aquêles nomes, Damiano manifestou a mais viva curiosidade.

Efetivamente, êle os ouvia amiúde, repetidos nas conversações de Madalena.

Cercando-se de grande prudência, perguntou:

— De que região da América procede essa família?

— Do Connecticut.

O eclesiástico experimentou o primeiro abalo íntimo; todavia, buscou

controlar-se e continuou:

— O nome Davenport não me é estranho. Se me não engano já ouvi um

colega referir-se a um tal Samuel, que, há muitos anos, residiu em Belfast.

— Isso mesmo — confirmou o outro, satisfeito —, trata-se do pai

166

dêste Cirilo Davenport, rico negociante de fumo, de cuja residência venho

neste instante. Há vinte anos, aproximadamente, a família que se empobrecera

com a perseguição dos inglêses, na Irlanda do Norte, retirou-se para a

América, onde adquiriu sólida fortuna. Na mocidade, porém, o Sr. Davenport

trabalhou, modestamente, aqui em Paris...

Ah! — disse Damiano, quase aterrado. Intensa palidez inundara-lhe o

semblante vincado de rugas.

— O Samuel a que se refere — prosseguia Guilherme, loquaz —, pelo que

infiro das missas celebradas em sua intenção, deve ter falecido há uns dez

anos.

Justificando a expressão fisionômica, o velho sacerdote de Avila observou:

— Este mal do peito sempre me causa torturas momentâneas

E levantou-se para tomar um copo d’água.

- Escuta, Guilherme — continuou a dizer, pausadamente —, o casal

Davenport tem uma vida feliz? Naturalmente que êstes assuntos me pre-

OCUpam, dado que a minha pupila vai agora conviver com êles.

Assim se manifestando, visava obter por meios indiretos qualquer

informação sôbre o passado conjugal de Cirilo. Sem cuidar de que versava

assunto dehcadíssimo, o interpelado acentuou:

— O Sr. Davenport é casado em segundas núpcias. A primeira espôsa, ao

que estou informado, era espanhola, de Granada. Chamava-se Madalena

Vilamil e morreu no surto varjólico de 63.

Damiano não sabia como dissimular a comoção. Debalde procurava um

meio de parecer despreocupado. O amigo, porém, tudo atribuía ao seu precário

estado de saúde.

— A falecida foi sepultada no cemitério dos Inocentes. Já lhe visitei o

túmulo em companhia dos senhores Jaques e Cirilo.

— Quem é êsse Sr. Jaques? — inquiriu Damiano, apesar da emoção.

— É sogro do Sr. Davenport e, ao mesmo tempo, seu tio, pois o

negociante de fumo é casado com uma prima, em segundas núpcias. Aliás, o

bom velhinho que se encontra hoje beirando o sepulcro, pelos muitos achaques

da senectude, foi por muitos anos professor aqui na França.

— Em Paris?

— Não, em Blois.

Damiano estava satisfeito, não poderia ter mais dúvidas.

— Deus abençoe Alcione para que saiba servir nessa casa com amor

cristão — concluiu serena-mente —, não desejo outra coisa.

Muito hàbilmente desviou depois a palestra noutros rumos, de maneira a

não se trair pela intensa emoção. Mas, quando Guilherme se retirou,

reiterando-lhe agradecimentos, entregou-se a profunda e dolorosa meditação.

Acabava de palpar o enigma sem poder atinar com a chave. Naturalmente, o

drama sinistro que adivinhava, por trás da situação, fôra urdido por alguma

inteligência perversa. Recordava as mínimas revelações e confidências da

senhora Vilamil, nas longas conversações de Ávila e não podia duvidar da

inveracidade dos acontecimentos que Madalena aceitara como verdade

inconcussa. Sempre lhe parecera estranho o fato de haver Cirilo Davenport

desaparecido, sem qualquer noticia direta da América, para a espôsa distante.

Considerava, também, que, se Madalena o havia por morto, o mesmo se dava

com o marido que lhe venerava a suposta sepultura. Quem havia tramado,

assim, contra a felicidade de dois corações? Rememorou as confidências que a

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filha de D. Inácio lhe fizera a respeito da personalidade de Antero de Oviedo.

Seria êle o autor do nefando delito? Depois de laboriosas reflexões, concluía que, se não fôra êle o único criminoso, devia ter sido cúmplice ativo do feito

abominável. Em seguida, mente cansada, passava a refletir nos estranhos,

insondáveis desígnios da Providência Divina, que haviam conduzido Alcione ao

segundo lar paterno. Experimentava profunda ansiedade por se dirigir, mesmo

doente, à residência do Sr. Davenport, mas a tarde começava a cair, muito fria,

e receava os acessos de tosse. Não descansaria, porém, enquanto não se

avistasse com a jovem, de modo a ouvir-lhe as primeiras impressões. Para

isso, deu ordens ao criado que mandasse um carro a São Marcelo, para que a

menina Vilamil o visitasse nas primeiras horas da noite, depois de regressar ao

lar.

Quando a moça entrou em casa, cêrca de dezenove horas, já encontrou a

viatura que a esperava, recomendando-lhe a genitora não se demorasse em

seguir para São Jaques do Passo Alto, porqüanto o chamado de Damiano lhe

dava muito que pensar. Receava que o velho amigo tivesse piorado. A jovem

atendeu com presteza. Depois de responder às primeiras argüições maternas

sôbre o novo cargo, declarando-se muito satisfeita e bem impressionada,

dirigiu-se ao bairro próximo, assaz preocupada.

O velho sacerdote de Ávila abraçou-a comovido.

— Como fôste de serviço, minha filha?

— Primeiramente, fale-me da sua pessoa. Como vai? Ficamos aflitas com a

ida do carro. A saúde piorou?

— Nada. Vou muito bem. Chamei-te tão só-mente para saber como te

deste com o novo emprego.

A moça tranqüilizou-se, exclamando:

— Ora, graças a Deus!

— O padre Guilherme — prosseguiu Damiano solícito — aqui esteve e deume

informações, mas preciso falar-te sêriamente, em particular. Tiveste boa

impressão da casa e da gente?

— É muito interessante o que pude observar, porqüanto o Sr. Davenport e

a espôsa não me eram de todo desconhecidos.

— Como assim? — indagou Damiano, intrigado.

É que assistiram ao concêrto lá no adro de Nossa Senhora e, por sinal, foi

o Sr. Cirilo quem me deu os trezentos francos que eu lhe trouxe.

— Como tudo isso é significativo! — exclamou o sacerdote, muito

emocionado. — E como te receberam?

— O Sr. Davenport e o tio, bem como a pequena Beatriz, de quem vou

cuidar, trataram-me com excepcional carinho. A meninota parece nervosa e

acabrunhada, mas tem muito bom coração. Como primícias da tarefa,

conversamos quase todo o dia, valendo-me eu da ocasião para falar-lhe dos

ensinamentos do Cristo como verdadeiro e legitimo remédio para tôdas as

necessidades da vida e do coração. Ela está mocinha e creio que me compreenderá.

Infelizmente, não posso dizer o mesmo da senhora Susana. Esta,

quando voltou de uma visita elegante, encontrando-me em casa, não disfarçou

a contrariedade. Não sorriu quando o marido lhe falou que eu era a cantora da

noite em que haviam estacionado na praça da igreja, afirmando que essa

circunstância depunha contra mim. Acrescentou que o padre Guilherme estava,

por certo, enganado na escolha, pois solicitara uma governanta mais velha,

com maior experiência da vida. Quando me disse que meus serviços não lhe

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convinham, a pequena Beatriz fêz grande bulha, afiançando o contrário. A

enfêrma abraçou-se comigo, a gritar, provocando a intervenção do pai e do

avô, que acorreram pressurosos. Esclarecido o motivo de suas lágrimas, o Sr.

Davenport cravou na espôsa um olhar muito austero e decidiu que eu ficasse

de qualquer maneira. Vendo, porém, o enfado da senhora, pedi permissão para

desistir, mas não fui atendida, O Sr. Jaques foi a meu favor, recriminando a

conduta da filha. Reconhecendo-se isolada no seu ponto de vista, a senhora

Susana passou então a tratar-me com brandura, concordando com a minha

permanência ao lado da filha.

Damiano, que a escutava com atenção, valeu-se da pausa e interrogou:

— E os nomes nessa família irlandesa não te preocuparam?

— Sem dúvida que me ocorreram pensamentos estranhos, em contacto

com as pessoas da casa. Cirilo Davenport é o nome de meu pai, e os nomes

de Jaques e Susana parecem muito ligados às recordações da mamãe.

— Porventura não te perguntaram pelo teu nome de família?

— Sim, mas deu-se um fato muito interessante, que me compeliu a

permanecer um tanto retraida. Quando cheguei, o Sr. Jaques me contemplou

muito admirado e disse ao sobrinho: — “éo retrato de Madalena Vilamil”. Tive

um grande susto ao ouvir essa inesperada referência ao nome de mamãe, mas

suponho que tratavam de pessoa importante de suas relações. Dentro em

pouco, soube que a família é Davenport. E fiquei atrapalhada para responder

ao Sr. Cirilo, quando procurou saber meu nome. Se dissesse Vilamil, ou

Davenport, poderiam supor que estava querendo insinuar-me e classificar-me

como parente da casa; vendo a senhora Susana tão agastada com a minha

presença e para não lhe parecer petulante, disse, então, que me chamo

“Alcione da Chácara”. Essa resposta foi boa porque me tranqüilizou a consciência,

visto ser êsse o nome com que me tratavam lá em Ávila, na intimidade.

Assim, padre, creio que não ofendi à dona da casa, nem faltei à verdade.

Damiano fêz um gesto de quem se tranqüilizava e sentenciou:

— Procedeste muito bem. A prudência salva sempre.

E depois de consultar o coração aflito e receoso das amargurosas

revelações, disse à interlocutora com inflexão de carinho:

— Agora, vamos aos motivos da inquietação que me obrigou a chamar-te.

Voz pausada, evidenciando forte emoção, iniciou as confidências,

reportando-se às afirmativas de Madalena e confrontando-as com as do padre

Guilherme.

A filha de Cirilo tudo ouvia com penoso assombro. Estupefata, não

conseguia responder. Quando êle se referiu ao que se passara junto do túmulo

da genitora, no cemitério dos Inocentes, as lágrimas lhe rolaram dos olhos.

Sumariando as suas conclusões, Damiano acentuava:

— Não podemos ter qualquer dúvida, mas eu espero que te mantenhas

sobranceira à prova que nos visita e precisamos enfrentar. Sei quão amargas

devem ser tuas lágrimas, mas, estou certo de que Deus te amparará o coração

afetuoso.

— Não choro por mim, padre Damiano, e sim pela mamãe, cujos

padecimentos me cortam o coração.

Impressionado com o acento comovedor dessas palavras, o velho amigo

considerou:

— Se vês que não podes continuar na casa dos teus parentes irlandeses,

poderemos arranjar uma desculpa que justifique a tua desistência. Se quiseres,

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dada a complexidade e gravidade do caso que nos defronta, poderemos

aconselhar tua mãe a voltar para Castela. Estou doente, é verdade, mas isso

não é motivo para deixar de acompanhá-las. E assim guardaríamos lá o

doloroso segrêdo, para sempre!...

Alcione recordou a figura do genitor quando lhe pôs nas mãos uma bôlsa

recheada, lembrou o acolhimento que lhe dispensara no ambiente doméstico e

ponderou:

— Não podemos fugir. Não seria Deus que me conduziu à casa paterna

para que eu aprendesse alguma virtude das que se ligam à divina humildade?

Não creio que meus parentes precisem de mim para alguma coisa, mas, sinto

que necessito dêles para acendrar meu coração.

O velho sacerdote acolhia, profundamente comovido, aquela preciosa lição de

renúncia. Observar a atitude angélica de Alcione representava enorme confôrto

para o seu espírito cansado. Por isso mesmo, caIara-se para que ela, nobre e

humildemente, continuasse a derramar-lhe na alma exausta as sublimes

consolações da discípula de Jesus.

— Além disso — prosseguiu Alcione depois de uma pausa —, se meu pai

estendeu-me a carinhosa mão na via pública, proporcionando-me tanta alegria

sem saber que eu era sua filha, como poderei abandoná-lo agora, ciente de

que me deu a vida? Não seria renegar os ensinamentos do Cristo? O Sr. Cirilo

Davenport me conquistou pela sua generosidade. A partir de hoje, confiou-me

a filhinha como se me conhecesse de há longos anos, obrigou-me a sentar à

mesa da família, ordenou que seu carro particular me trouxesse a São Marcelo.

Não posso admitir que meu pai procedesse conscientemente contra minha

mãe. Atrás de tudo isso deve existir uma trama criminosa.

Muito sensibilizado, o eclesiástico replicou:

— Tuas razões são sagradas e concordo com o teu parecer, de que Jesus

te conduziu ao lar paterno com algum objetivo; mas, se sugeri o retôrno à

Espanha foi pensando nos teus padecimentos morais, bem como na hipótese

de Madalena ter agravados, algum dia, os seus sofrimentos já quase

intoleráveis.

Alcione meditou um minuto e redargüiu serenamente:

— Sim, por minha mãe todos os sacrifícios serão poucos, mas buscarei

ocultar com os meus beijos a realidade dolorosa. Jesus me auxiliará para que

ela saia dêste mundo desconhecendo as verdades amargas... Amará meu pai

até ao fim, como símbolo da ventura que a espera no Céu e será, para mim,

como a santa de um altar, ligada a Deus; mas, estando meu pai ainda no

mundo, não será razoável cooperar para que ambos se unam para sempre na

eternidade?

— Mas, e o teu esfôrço penoso? E os sacrifícios diários por desenvolver

dignamente a tarefa em tal situação?

— Cinjo-me às próprias lições que me destes desde a infância. Será que

Jesus peregrinou pela Terra sõmente para que o admirássemos? Teria sido

escrito o Evangelho apenas para que os homens encontrassem nas suas

páginas motivos de apologias brilhantes? Sua palavra, padre, não me inculcou,

sempre, que permanecemos no mundo com o santo objetivo de purificar o

coração? Deus quer que nos amemos uns aos outros. Sua misericórdia, de

quando em quando, reúne fortuitamente os próprios inimigos, para verificar se

já estão prontos à tarefa sacrossanta do amor. Se a Providência Divina me

conduz agora aos braços paternos, por que e como contrariar seus insondáveis

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desígnios?

- Deus te abençoe os propósitos sublimes —murmurou o sacerdote,

sensibilizado até às lágrimas —; amanhã ou depois, farei uma visita aos

Davenport, não obstante o meu precário estado de saúde. Preciso observar de

perto as personagens do nosso drama, a fim de legitimar as minhas ilações.

Irei como teu tutor, ratificar a apresentação do padre Guilherme e, então,

estudarei fisionomias e sondarei corações. Recomendo-te, porém, muita

cautela, para que tua mãe permaneça alheia a esta nova amargura do seu

caminho. Será mesmo de alta prudência não desceres do carro de teu pai à

porta de casa, mas distante e de maneira a evitarmos qualquer surprêsa

dolorosa.

Ela concordou e conversaram ainda alguns minutos, até que se despediu

com as novas recomendações de prudência e votos de tranqüilidade, do velho

sacerdote.

Decorridos dois dias, com enorme dificuldade Damiano tomou um carro em

companhia de Guilherme, a fim de vingar seus propósitos no elegante palacete

das cercanias de São Landry. Prevenida de véspera, a família Davenport

aguardava-o com homenagens afetuosas, recebendo-o com excepcional

carinho.

Logo às primeiras palavras, notou que Alcione gozava da simpatia geral,

embora as atitudes de Susana indiciassem preocupações indefiníveis. De

pronto a conversa generalizou-se animada, O professor de Blois, agora ancião

venerando pelos cabelos de neve, comentava o concurso da Igreja nos planos

educacionais da época, destacando a cooperação preciosa dos padres

integrados no conhecimento de sua missão divina. Damiano surpreendia-se

com a vivacidade intelectual do velho educador. Cirilo, de quando em vez,

intervinha com alguma observação, dando impressão de homem ativo e

trabalhador, mas de alma envelhecida, em virtude do véu de tristeza inalterável

que lhe ensombrava o rosto. A espôsa parecia amável, embora pouco

expansiva. A um canto da sala, a filha de Madalena descansava num divã ao

lado da jovem Beatriz, em atitude humilde.

 

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