Nota do Blog: Apesar de estar integralmente apresentado. Esse livro ainda não está totalmente formatado nesse blog, para uma leitura mais prazerosa.
CARO AMIGO: Caso você tenha gostado do livro e tenha condições de comprá-lo, faça-o, pois os direitos autorais são doados.
Muita Paz
Homenageamos o primeiro centenário da desencarnação de ALLAN KARDEC
IRMÃO X
Uberaba, 31 de março de 1969.
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PREITO DE AMOR
Senhor Jesus!
Em teu louvor, apóstolo de tua causa homenageiam-te, em toda a parte. E vamos, por
toda a parte, os que te ofertam:
a riqueza do exemplo;
a oficina do lar;
o brilho da cultura;
o ouro da palavra;
a luz da fé viva;
as fontes da compreensão;
os sonhos da arte;
os lauréis da poesia;
as obras-primas da bondade;
os tesouros da afeto.
Perdoa, Mestre, se nada mais possuímos, a fim de honorificar-te, senão estas páginas
singelas que colocamos, em teu nome, na estante da vida, páginas que aliás,
fundamentalmente, não são nossas. Constituem migalhas de tua glória, humildes reflexos
de teus próprios ensinamentos que recolhemos na estrada, em que tentamos, de algum
modo, admirar-te e seguir-te.
E se assim procedemos, Senhor, trazendo-te em restituição aquilo que te pertence é que
nós todos – os espíritos ainda vinculados à Terra – precisamos de ti.
Irmão X
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1 - ENCONTRO EM HOLLYWOOD
Caminhávamos, alguns amigos, admirando a paisagem do Wilshire Boulevard, em
Hollywood, quando fizemos parada, ante a serenidade do Memoriam Park Cemetery,
entre o nosso caminho e os jardins de Glendon Avenue.
A formosa mansão dos mortos mostrava grande movimentação de Espíritos libertos da
experiência física, e estranhos.
Tudo, no interior, tranqüilidade e alegria.
Os túmulos simples pareciam monumentos erguidos à paz, induzindo à oração. Entre as
árvores que a primavera pintura de verde novo, numerosas entidades iam e vinham,
muitas delas escoradas umas nas outras, à feição de convalescentes, sustentadas por
enfermeiros em pátio de hospital agradável e extenso.
Numa esquina que se alteava com o terreno, duas laranjeiras ornamentais guardavam o
acesso para o interior de pequena construção que hospeda as cinzas de muitas
personalidades que demandaram o Além, sob o apreço do mundo. A um canto, li a
inscrição: =Marilyn Monroe – 1926-1962=. Surpreendido, perguntei a Clinton, um dos
amigos que nos acompanhavam:
- Estão aqui os restos de Marilyn, a estrela do cinema, cuja história chegou até mesmo ao
conhecimento de nós outros, os desencarnados de longo tempo no Mundo Espiritual?
- Sim – respondeu ele, e acentuou com expressão significativa: - não se detenha, porém,
a tatear-lhe a legenda mortuária... Ela está viva e você pode encontrá-la. Aqui e agora...
- Como?
O amigo indicou frondoso olmo chinês, cuja galharia compõe esmeraldino refúgio no largo
recinto, e falou:
- Ei-la que descansa, decerto em visita de reconforto e reminiscência...
A poucos passos de nós, uma jovem desencarnada, mas ainda evidentemente enferma,
repousava a cabeleira loura no colo de simpática senhora que a tutelava. Marilyn Monroe,
pois era ela, exibia a face desfigurada e os olhos tristes. Informados de que nos seria
lícito abordá-la, para alguns momentos de conversa, aproximando-nos, respeitosos.
Clinton fêz a apresentação e aduzi:
- Sou um amigo do Brasil que deseja ouvi-la.
- Um brasileiro a procurar-me, depois da morte?
- Sim, e porque não? – acrescentei – a sua experiência pessoal interessa a milhões de
pessoas no mundo inteiro...
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E o diálogo prosseguiu:
- Uma experiência fracassada...
- Uma lição talvez.
- Em que lhe poderia ser útil?
- A sua vida influenciou muitas vidas e estimaríamos receber ainda que fosse um pequeno
recado de sua parte para aqueles que lhe admiraram os filmes e que lhe recordam no
mundo a presença marcante...
- Quem gostaria de acolher um grito de dor?
- A dor instrui...
- Fui mulher como tantas outras e não tive tempo e nem disposição para cogitar de
filosofia.
- Mas fale mesmo assim...
- Bem, diga então às mulheres que não se iludam a respeito de beleza e fortuna,
emancipação e sucesso... Isso dá popularidade e a popularidade é um trapézio no qual
raras criaturas conseguem dar espetáculos de grandeza moral, incessantemente, no circo
do cotidiano.
- Admite, desse modo, que a mulher deve permanecer no lar, de maneira exclusiva?
- Não tanto. O lar é uma instituição que pertence à responsabilidade tanto da mulher
quanto do homem. Quero dizer que a mulher lutou durante séculos para obter a
liberdade... Agora que a possui nas nações progressistas, é necessário aprender a
controlá-la. A liberdade é um bem que reclama senso de administração, como acontece
ao poder, ao dinheiro, à inteligência...
Pensei alguns momentos na fama daquela jovem que se apresentara à Terra inteira, dali
mesmo, em Hollywood, e ajuntei:
- Miss Monroe, quando se refere à liberdade da mulher, você quer mencionar a liberdade
do sexo?
- Especialmente.
- Porquê?
- Concorrendo sem qualquer obstáculo ao trabalho do homem, a mulher, de modo geral,
se julga com direito a qualquer tipo de experiência e, com isso, na maioria das vezes,
compromete as bases da vida. Agora que regressei à Espiritualidade, compreendo que a
reencarnação é uma escola com muita dificuldade de funcionar para o bem, toda vez que
a mulher foge à obrigação de amar, nos filhos, a edificação moral a que é chamada.
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- Deseja dizer que o sexo...
- Pode ser comparado à porta da vida terrestre, canal de renascimento e renovação,
capaz de ser guiado para a luz ou para as trevas, conforme o rumo que se lhe dê.
- Ser-lhe-ia possível clarear um pouco mais este assunto?
- Não tenho expressões para falar sobre isso com o esclarecimento necessário; no
entanto, proponho-me a afirmar que o sexo é uma espécie de caminho sublime para a
manifestação do amor criativo, no campo das formas físicas e na esfera das obras
espirituais, e, se não for respeitado por uma sensata administração dos valores de que se
constitui, vem a ser naturalmente tumultuado pelas inteligências animalizadas que ainda
se encontram nos níveis mais baixos da evolução.
- Miss Monroe – considerei, encantado, em lhe ouvindo os conceitos -, devo asseverarlhe,
não sem profunda estima por sua pessoa, que o suicídio não lhe alterou a lucidez.
- A tese do suicídio não é verdadeira como foi comentada – acentuou ela sorrindo. – Os
vivos falam acerca dos mortos o que lhes vem à cabeça, sem que os mortos lhes possam
dar a resposta devida, ignorando que eles mesmo, os vivos, se encontrarão, mais tarde,
diante desse mesmo problema... A desencarnação me alcançou através de tremendo
processo obsessivo. Em verdade, na época, me achava sob profunda depressão. Desde
menina, sofri altos e baixos, em matéria de sentimento, por não saber governar a minha
liberdade... Depois de noites horríveis, nas quais me sentia desvairar, por falta de
orientação e de fé, ingeri, quase semi-inconsciente, os elementos mortíferos que me
expulsaram do corpo, na suposição de que tomava uma simples dose de pílulas
mensageiras do sono...
- Conseguiu dormir na grande transição?
- De modo algum. Quando minha governanta bateu à porta do quarto, inquieta ao ver a
luz acesa, acordei às súbitas da sonolência a que me confiara, sentindo-me duas pessoas
a um só tempo... Gritei apavorada, sem saber, de imediato, identifica-me, porque lograva
mover-me e falar, ao lado daquela outra forma, a vestimenta carnal que eu largara...
Infelizmente para mim, o aposento abrigava alguns malfeitores desencarnados que, mais
tarde, vim a saber, me dilapidavam as energias. Acompanhei, com indescritível angústia,
o que se seguiu com o meu corpo inerme; entretanto, isso faz parte de um capítulo do
meu sofrimento que lhe peço permissão para não relembrar...
- Ser-lhe-á possível explicar-nos porque terá experimentado essa agudeza de percepção,
justamente no instante em que a morte, de modo comum, traz anestesia e repouso?
- Efetivamente, não tive a intenção de fugir da existência, mas, no fundo, estava incursa
ao suicídio indireto. Malbaratara minhas forças, em nome da arte, entregara-me a
excessos que me arrasaram as oportunidades de elevação... Ultimamente, fui informada
por amigos daqui de que não me foi possível descansar, após a desencarnação,
enquanto não me desvencilhei da influência perniciosa de Espíritos vampirizadores a
cujos propósitos eu aderira, por falta de discernimento quanto às leis que regem o
equilíbrio da alma.
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- Compreendo que dispõe agora de valiosos conhecimentos, em torno da obsessão...
- Sim, creio hoje que a obsessão, entre as criaturas humana, é um flagelo muito pior que
o câncer. Peçamos a Deus que a ciência no mundo se decida a estudar-lhe os problemas
e resolvê-los...
A entrevistada mostrava sinais de fadiga e, pelos olhos da enfermeira que lhe guardava a
cabeça no regaço amigo, percebi que não me cabia avançar.
- Miss Monroe – concluí -, foi um prazer para mim este encontro em Hollywood. Podemos,
acaso, saber quais são, na atualidade, os seus planos para o futuro?
Ela emitiu novo sorriso, em que se misturavam a tristeza e a esperança, manteve silêncio
por alguns instantes e afirmou:
-
Na condição de doente, primeiro, quero melhorar-me... Em seguida, como aluna no
educandário da vida, preciso repetir as lições e provas em que fali... Por agora, não devo
e nem posso ter outro objetivo que não seja reencarnar, lutar, sofrer e reaprender...
Pronunciei algumas frases curtas de agradecimento e despedida e ela agitou a pequenina
mão num gesto de adeus. Logo após, alinharei estas notas, à guisa de reportagem, a fim
de pensar nas bênçãos do Espiritismo Evangélico e na necessidade da sua divulgação.
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2 - DEPOIMENTO
Aqui vai, meu amigo, a entrevista rápida que você solicitou ao velho jornalista
desencarnado com uma suicida comum. Sabe você, quanto eu, que não existem casos
absolutamente iguais. Cada um de nós é um mundo por si. Para nosso esclarecimento,
porém, devo dizer-lhe que se trata de jovem senhora que, há precisamente catorze anos,
largou o corpo físico, por deliberação própria, ingerindo formicida.
Mais alguns apontamentos, já que não podemos transformar o doloroso assunto em
novela de grande porte: ela se envenenou no Rio, aos trinta e dois de idade, deixando o
esposo e um filhinho em casa; não era pessoa de cultura excepcional, do ponto de vista
de cérebro, mas caracterizava-se, na Terra, por nobres qualidades morais, moça tímida,
honesta, operosa, de instrução regular e extremamente devotada aos deveres de esposa
e mãe.
Passemos, no entanto, às suas onze questões e vejamos as respostas que ela nos deu e
que transcrevo, na íntegra:
A irmã possuía alguma fé religiosa, que lhe desse convicção na vida depois da
morte?
Seguia a fé religiosa, como acontece a muita gente que acompanha os outros no jeito de
crer, na mesma situação com que se atende aos caprichos da moda. Para ser sincera,
não admitia fôsse encontrar a vida aqui, como a vejo, tão cheia de problemas ou, talvez,
mais cheia de problemas que a minha existência no mundo.
Quando sobreveio a morte do corpo, ficou inconsciente ou consciente?
Não conseguia sequer mover um dedo, mas, por motivos que ainda não sei explicar,
permaneci completamente lúcida e por muito tempo.
Quais as suas primeiras impressões ao verificar-se desencarnada?
Ao lado de terríveis sofrimentos, um remorso indefinível tomou conta de mim. Ouvia os
lamentos de meu marido e de meu filho pequenino, debalde gritando também, a suplicar
socorro. Quando o rabecão me arrebatou o corpo imóvel, tentei ficar em casa mas não
pude. Tinha a impressão de que eu jazia amarrada ao meu próprio cadáver pelos nós de
uma corda grossa. Sentia em mim, num fenômeno de repercussão que não sei definir,
todos os baques do corpo ao veículo em correria; atirada com ele a um compartimento do
necrotério, chorava de enlouquecer. Depois de poucas horas, notei que alguém me
carregava para a mesa de exame. Vi-me desnuda de chofre e tremi de vergonha. Mas a
vergonha fundiu-se no terror que passei a experimentar ao ver que dois homens moços
me abriam o ventre sem nenhuma cerimônia, embora o respeitoso silêncio com que se
davam à pavorosa tarefa. Não sei o que me doía mais, se a dor indescritível que me
percorria a forma, em meu novo estado de ser, quando os golpes do instrumento cortante
me rasgavam a carne. Mas, o martírio não ficou nesse ponto, porque eu, que horas antes
me achava no conforto de meu leito doméstico, tive de agüentar duchas de água fria na
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vísceras expostas, como se eu fôsse um animal dos que eu vira morrer, quando menina,
no sítio de meu pai... Então, clamei ainda mais por socorro, mas ninguém me escutava,
nem via...
Recorreu à prece no sofrimento?
Sim, mas orava, à maneira dos loucos desesperados, sem qualquer noção de Deus...
Achava-me em franco delírio de angústia, atormentada por dores físicas e mentais... Além
disso, para salvar o corpo que eu mesma destruíra, a oração era um recurso de que
lançava mão, muito tarde.
Encontrou amigos ou parentes desencarnados, em suas primeiras horas no plano
espiritual?
Hoje sei que muitos deles procuravam auxiliar-me, mas inutilmente, porque a minha
condição de suicida me punha em plenitude de forças físicas. As energias do corpo
abandonado como que me eram devolvidas por ele e me achava tão materializada em
minha forma espiritual quanto na forma terrestre. Sentia-me completamente sozinha,
desamparada...
Assistiu ao seu próprio enterro?
Com o terror que o meu amigo é capaz de imaginar.
Não havia Espíritos benfeitores no cemitério?
Sim, mas não poderia vê-los. Estava mentalmente cega de dor. Senti-me sob a terra,
sempre ligada ao corpo, como alguém a se debater num quarto abafado, lodoso e
escuro...
Que aconteceu em seguida?
Até agora, não consigo saber quanto tempo estive na cela do sepulcro, seguindo, hora a
hora, a decomposição de meus restos... Houve, porém, um instante em que a corda
magnética cedeu e me vi libertada. Pus-me de pé sobre a cova. Reconhecia-me fraca,
faminta, sedenta, dilacerada... Não havia tomado posse de meus próprios raciocínios,
quando me vi cercada por uma turma de homens que, mais tarde, vim a saber serem
obsessores cruéis. Deram-me voz de prisão. Um deles me notificou que o suicídio era
falta grave, que eu seria julgada em corte de justiça e que não me restava outra saída,
senão acompanhá-los ao Tribunal. Obedeci e, para logo, fui por eles encarcerada em
tenebrosa furna, onde pude ouvir o choro de muitas outras vítimas. Esses malfeitores me
guardaram em cativeiro e abusavam da minha condição de mulher, sem qualquer noção
de respeito ou misericórdia... Somente após muito tempo de oração e remorso, obtive o
socorro de Espíritos missionários, que me retiraram do cárcere, depois de enormes
dificuldades, a fim de me internarem num campo de tratamento.
Por que razão decidiu matar-se?
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Ciúmes de meu esposo, que passara a simpatizar com outra mulher.
Julga que a sua atitude lhe trouxe algum benefício?
Apenas complicações. Após seis anos de ausência, ferida por terríveis saudades, obtive
permissão para visitar a residência que eu julgava como sendo minha casa no Rio.
Tremenda surpresa!... Em nada adiantara o suplício. Meu esposo, moço ainda,
necessitava de companhia e escolhera para segunda esposa a rival que eu abominava...
Ele e meu filho estavam sob os cuidados da mulher que suscitava ódio e revolta... Sofri
muito em meu orgulho abatido. Desesperei-me. Auxiliada pacientemente, contudo, por
instrutores caridosos, adquiri novos princípios de compreensão e conduta... Estou
aprendendo agora a converter aversão em amor. Comecei procedendo assim por
devotamento ao meu filho, a quem ansiava estender as mãos, e só possuía, no lar, as
mãos dela, habilitadas a me prestarem semelhante favor... A pouco e pouco, notei-lhe as
qualidades nobres de caráter e coração e hoje a amo, deveras, por irmã de minh’alma...
Como pode observar, o suicídio me intensificou a luta íntima e me impôs, de imediato,
duras obrigações.
Que aguarda para o futuro?
Tenho fome de esquecimento e de paz. Trabalho de boa vontade em meu próprio
burilamento e qualquer que seja a provação que me espere, nas corrigendas que mereço,
rogo à Compaixão Divina me permita nascer na Terra, outra vez, quando então conto
retornar o ponto de evolução em que estacionei, para consertar as terríveis
conseqüências do erro que cometi.
***
Aqui, meu caro, termina o curioso depoimento em que figurei na posição de seu
secretário.
Sinceramente, não sei porque você deseja semelhante entrevista com tanto empenho. Se
é para curar doentia ansiedade em pessoa querida, inclinada a matar-se, é possível que
você alcance o objetivo almejado. Quem sabe? O amor tem força para converter e
instruir. Mas se você supõe que esta mensagem pode servir de instrumento para alguma
transformação na sociedade terrena, sobre os alicerces da verdade espiritual, não estou
muito certo quanto ao êxito do tenta-me. Digo isso, porque, se estivesse aí, no meu corpo
de carne, entre o frango assado e o café quente, e se alguém me trouxesse a ler a
presente documentação, sem dúvida que eu julgaria tratar-se de uma história da
carochinha.
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3 - DIÁLOGO E ESTUDO
Teodomiro Ferreira e Cássio Teles saíam do templo espírita de que se haviam feito
assíduos freqüentadores e o diálogo entre ambos rolava, curioso. Teles, agarrado aos
conceitos de ciência pura; Ferreira, atento aos ideais religiosos.
- Então, meu velho – considerava o primeiro -, não será tempo de largar os chavões da
fé? Não entendo a atitude dos Espíritos amigos, repetindo exortações de ordem moral!...
- Falam de Moisés, comentam Isaías, lembram Amós, entram pelo Novo Testamento e a
história não acaba mais...
Ferreira lembrava, conciliador:
- É forçoso, porém, que você pondere quanto às exigências da alma. Que será da Terra
se o coração não se elevar ao nível do cérebro?
- Não penso assim. Creio que a ciência, só por ai, clareará os caminhos da Humanidade.
- Sim, respeitemos a ciência. Desconsiderá-la seria loucura, mas é justo convir que não
se lhe pode pedir intervenções no sentimento...
- Velharias!... Definam-se as coisas e o sentimento será corrigido. E, já que você encontra
no sentimento a fonte de tudo...
- Cogitar de definições claras na vida é nosso dever; entretanto, a ciência na Terra explica
os fenômenos, sem abordar as origens...
- Não concordo. Devemos à ciência tudo de grandioso e de exato que o mundo nos
oferece.
- Até certo ponto, estou de acordo, mas os domínios científicos possuem os limites que
lhe são próprios. Impossível desacatar a importância dos ensinamentos religiosos na
sustentação da paz de espírito.
- Quem nos deu o automóvel e o avião?
- Claro que foi a ciência, mas isso não impede que o motor seja empregado para a
condução de tanques e bombardeiros utilizados para destruir...
- A física nuclear? quem nos propiciou essa maravilha, destinada a patrocinar os mais
altos benefícios para as civilizações do futuro?
- Sei que isso é prodígio da inteligência; contudo., não nos será lícito esquecer as vítimas
das cidades que passaram pelo suplício da bomba atômica...
- Bem, você pensa assim, de outro modo penso eu... Não aprovo a pregação incessante
que anda por aí...
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A palavra seguia nesse tom, quando os dois se aboletaram, como de costume, num bar
amigo para o cafezinho habitual.
O garção ia e vinha, quando, à frente deles, o televisor exibiu a figura de conhecido
repórter, que passou ao seguinte noticiário, lendo expressiva nota da imprensa:
“O mundo atual sofre o risco de ser destruído pela sua própria
grandeza no campo da inteligência. O perigo mais insidioso, talvez, é que
numerosas conquistas científicas, realizadas com intentos de paz, possam
ser empregadas, de um instante para outro, nos objetivos de guerra. As
descobertas na biologia molecular são utilizáveis no desenvolvimento de
agentes letais e aquelas que se relacionam com as drogas abrem horizontes
à ofensiva psicoquímica. Sabe-se que as armas biológicas, em forma de
“spray”, são de fácil confecção, com possibilidades de espalhar a peste
sobre homens e animais. A chamada “febre de coelhos”, conduzida por uma
tonelada de “spray”, através de nuvens, dirigidas pelo vento, pode anular a
resistência de milhões de pessoas. Um homem só, carregando pequena
maleta de “vírus”, é capaz de contaminar as reservas de água endereçada à
manutenção de grande cidade, conturbando-lhe a vida. Está demonstrando
ainda que, com recursos microbianos, é possível, em pouco tempo,
enlouquecer populações maciças. Uma tonelada de ácido lisérgico
distribuída entre os habitantes de qualquer grande metrópole, através de
canais alimentares, poderá torná-los esquizofrênicos, durante o tempo que
isso venha a interessar ao inimigo. Químicos ilustres já asseveram que o
mundo de hoje dispõe de venenos tão poderosos que bastarão alguns quilos
deles para estabelecer a perturbação mental de nações inteiras. Fala-se
agora que não é impossível operar ruturas na camada de ozônio que
circunda a Terra, de modo a queimar lentamente as criaturas domiciliadas
nas regiões que ficaram desprotegidas contra os raios solares
infravermelhos. Além de tudo, comenta-se a possibilidade da criação de
bombas nucleares semoventes, aptas a caminharem com os implementos
próprios e que serão detidas tão-só pela explosão de um artefato atômico.
Esses engenhos sinistros transportariam a sua própria carga e, se colocadas
no rumo de determinadas zonas inimigas, reclamariam a utilização de um
foguete interceptador significando autodestruição para qualquer grupo
alinhado em defensiva...”
O comentário deu lugar a programa diferente e Ferreira falou para o companheiro
impressionado:
- Viu e ouviu com exatidão? A ciência é luz no cérebro, mas, só por si, não resolve os
problemas da Humanidade. Que diz você de tão inquietantes perspectivas?
- É... é... – gaguejou Teles, evidentemente desapontado.
Toda a resposta dele, porém, não passou disso.
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4 - ESTUDO DA PARÁBOLA
Comentávamos a necessidade da divulgação da Doutrina Espírita, quando o rabí Zoan
ben Ozias, distinto orientador israelita, hoje consagrado às verdades do Evangelho no
Mundo Espiritual, pediu licença a fim de parafrasear a parábola dos talentos, contada por
Jesus, e falou, simples:
- Meus amigos, o Senhor da Terra, partindo, em caráter temporário, para fora do mundo,
chamou três dos seus servos e, considerando a capacidade de cada um, confiou-lhes
alguns dos seus próprios bens, a título de empréstimo, participando-lhes que os
reencontraria, mais tarde, na Vida Superior...
Ao primeiro transmitiu o Dinheiro, o Poder, o Conforto, a Habilidade e o Prestígio; ao
segundo concedeu a Inteligência e a Autoridade, e ao terceiro entregou o Conhecimento
Espírita.
Depois de longo tempo, os três servidores, assustados e vacilantes, compareceram diante
do Senhor para as contas necessárias.
O primeiro avançou e disse:
- Senhor, cometi muitos disparates e não consegui realizar-te a vontade, que determina o
bem para todos os teus súditos, mas, com os cinco talentos que me puseste nas mãos,
comecei a cultivar, pelo menos com pequeninos resultados, outros cinco, que são o
Trabalho, o Progresso, a Amizade, a Esperança e a Gratidão, em alguns dos
companheiros que ficaram no mundo... Perdoa-me, ó Divino Amigo, se não pude fazer
mais!...
O Senhor respondeu tranqüilo:
- Bem está, servo fiel, pois não erraste por intenção... Volta ao campo terrestre e reinicia a
obra interrompida, renascendo sob o amparo das afeições que ajudaste.
Veio o segundo e alegou:
- Senhor, digna-te desculpar-me a incapacidade... Não te pude compreender claramente
os desígnios que preceituam a felicidade igual para todas as criaturas e perpetrei
lastimáveis enganos... Ainda assim, mobilizei os dois valores que me deste e, com eles,
angariei outros dois que são a Cultura e a Experiência para muitos dos irmãos que
permanecem na retarguada...
O Excelso Benfeitor replicou, satisfeito:
- Bem está, servo fiel, pois não erraste por intenção... Volta ao campo terrestre e reinicia a
obra interrompida, renascendo sob o amparo das afeições que ajuntaste.
O terceiro adiantou-se e explicou:
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- Senhor, devolvo-te o Conhecimento Espírita, intocado e puro, qual o recebi de tua
munificência... O Conhecimento Espírita é Luz, Senhor, e, com ele, aprendi que a tua Lei
é obra dura demais, atribuindo a cada um conforme as próprias obras. De que modo usar
uma lâmpada assim, brilhante e viva, se os homens na Terra estão divididos por
pesadelos de inveja e ciúme, crueldade e ilusão? Como empregar o clarão de tua verdade
sem ferir ou incomodar? e como incomodar ou ferir, sem trazer deploráveis
conseqüências para mim próprio? Sabes que a Verdade, entre os homens, cria problemas
onde aparece... Em vista disso, tive medo de tua Lei e julguei como sendo a medida mais
razoável para mim o acomodar-me com o sossego de minha casa... Assim pensando,
ocultei o dom que me recomendaste aplicar e restituo-te semelhante riqueza, sem o
mínimo toque de minha parte!...
O Sublime Credor, porém, entre austero e triste, ordenou que o tesouro do Conhecimento
Espírita lhe fôsse arrancado e entregou, de imediato, aos dois colaboradores diligentes
que se encaminhariam para a Terra, de novo, declarando, incisivo:
- Servo infiel, não existe para a tua negligência outra alternativa senão a de recomeçares
toda a tua obra pelos mais obscuros entraves do principio...
- Senhor!... Senhor!... – chorou o servo displicente. – Onde a tua equidade? Deste aos
meus companheiros o Dinheiro, o Poder, o Conforto, a Habilidade, o Prestígio, a
Inteligência e a Autoridade, e a mim concedeste tão-só o Conhecimento Espírita... Como
fazes cair sobre mim todo o peso de tua severidade?
O Senhor, entretanto, explicou, brandamente:
- Não desconheces que te atribuí a luz da Verdade como sendo o bem maior de todos. Se
ambos lhes faltava o discernimento que lhes podias ter ministrado, através do exemplo,
de que fugiste por medo da responsabilidade de corrigir amando e trabalhar instruindo...
Escondendo a riqueza que te emprestei, não só te perdeste pelo temor de sofrer e
auxiliar, como também prejudicaste a obra deficitária de teus irmãos, cujos dias no mundo
teriam alcançado maior rendimento no Bem Eterno, se houvessem recebido o quinhão de
amor e serviço, humildade e paciência que lhes negaste!...
- Senhor!... Senhor!... porquê? – soluçou o infeliz – porque tamanho rigor, se a tua Lei é
de Misericórdia e Justiça.
Então, os assessores do Senhor conduziam o servo desleal para as sombras do
recomeço, esclarecendo a ele que a Lei, realmente, é disciplina de Misericórdia e Justiça,
mas com uma diferença: para os ignorantes do dever. A Justiça chega pelo alvará da
Misericórdia; mas, para as criaturas conscientes das próprias obrigações, a Misericórdia
chega pelo cárcere da Justiça.
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5 - MÉDIUM ESPÍRITA
Quando o Médium Espírita apareceu na assembléia doutrinária, sinceramente decidido à
tarefa que lhe fora designada, abraçou o serviço com ardor; no entanto, das pequenas
multidões que o acompanhavam saíram vozes: “é por demais verde, não tem
experiências”. O seareiro do Bem assumiu ares de adulto e adotou costumes austeros e
mostrou-se entusiasta, mas ouviu novo conceito: “é um temperamento perigoso, entregue
à chocarrice”. Procurou então adicionar veemência ao otimismo e os circunstantes
fizeram coro: “é explosivo, dado à violência”.
O servidor arrefeceu os impulsos e começou a usar textos esclarecedores para
fundamentar as próprias asserções, lendo pareceres de autoridades, e escutou novo
apontamento: “é um burro que não sabe falar, senão recorrendo a notas alheias”.
Abandonou, daí em diante, o sistema de citações e passou a dar somente respostas
rápidas sobre os problemas que lhe vinham à esfera de ação, e exclamaram para logo: “é
um preguiçoso, sem qualquer atenção para o estudo”. Nessa altura, o obreiro da
Espiritualidade julgou mais razoável servir à Causa da Luz, no próprio lar; contudo, ouviu:
“é um covarde, não enfrenta responsabilidades diante do povo”. O Médium regressou às
atividades públicas e entrou a colaborar na sementeira do conhecimento superior, onde
fôsse chamado, e surgiu outra sentença: “é um manequim da vaidade, manobrado por
agentes das trevas”.
O atormentado trabalhador procurou evitar discussões e escolheu atitude de reserva,
falando apenas em torno das questões mais simples da edificação espiritual, e comentouse:
“é mole demais, sem qualquer fibra moral para os testemunhos de fé”. Registrando
isso, esposou o regime da mente arejada com o verbo franco, e anotaram, de imediato: “é
um obsidiado, entregue à mistificação”. Tentou acomodar-se, fazendo unicamente aquilo
que considerava como sendo o seu próprio dever, e clamaram: “é vagabundo, nada quer
com o trabalho”. Ele tornou a inflamar-se de boa vontade, oferecendo o máximo das
próprias forças à construção da Espiritualidade Maior, e acusaram: “é revolucionário, deve
ser vigiado...”
Aflito, o medianeiro procurou o Mentor Espiritual que lhe propiciava amparo constante, e
chorou:
- Ah! benfeitor meu, que faço se não satisfaço?
- De quem recebeste a tarefa do bem? – perguntou o amigo. – Do Senhor ou dos
homens?
- Do Senhor – soluçou o Médium.
- Então – replicou o abnegado companheiro -, levarei tua indagação ao Senhor e amanhã
trarei a resposta.
No dia seguinte, ao amanhecer, quando o servidor orava, rogando força e inspiração,
surgiu-lhe à frente o instrutor espiritual e falou, sereno:
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- O Senhor mandou dizer-te que, em te nomeando para colaborar na Obra de redenção,
assim o fêz porque confiava em teu amor para com os irmãos da família humana, e que,
por isso mesmo, não te solicitou o inventário das críticas que porventura te fôssem feitas,
e sim te recomendou tão-somente servir e trabalhar.
Nesse instante, o primeiro clarão diurno varou, de chofre, a vidraça. O medianeiro, de
alma subitamente bafejada por nova compreensão, mirou o fio de luz que vencera as
trevas para aquecê-lo em silêncio... Em seguida, pensou e pensou, a pouco e pouco
invadido de estranho júbilo... Desde então, o Médium Espírita olvidou a si mesmo e
aprendeu com o raio de Sol que a sua força vinha do Senhor e que a sua felicidade se
resumia em servir e servir, trabalhar e trabalhar.
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6 - QUESTÃO MODERNA
Os quatros mensageiros da Esfera Superior, antes da vinda à Terra em missão
educadora e reconfortativa, ouviram claramente as palavras do sábio orientador que os
dirigia:
- Filhos, guardareis em tudo e com todos a nobreza de nossos princípios.
Onde estiverdes, habilitai-vos a falar com segurança e a estender mãos limpas, a fim de
ajudar.
Defendei a simplicidade e a pureza da doutrina renovadora de que sois emissários. Não a
maculeis com inovações que se lhe façam incompatíveis com a essência de luz!” Não
mistureis o joio com o trigo, nem a mentira com a verdade...
Em todas as circunstâncias, recordai que sois enviados a servir!...
A diminuta caravana partiu de luminoso caminho no rumo da Terra e, em ponto
determinado, os quatro componentes se separaram com a promessa de reencontro, no
mesmo sítio, vinte meses depois.
Findo esse tempo, ei-los de retorno para o entendimento afetivo.
Vinham, no entanto, fatigados, desiludidos...
O primeiro falou:
- Estou cansado de lutar. A comunidade a que me coube prestar concurso é constituída
por classes que se tiranizam entre si. O orgulho arrasa-lhes a força moral e os
preconceitos de raça consomem-lhes as melhores aspirações de raça consomem-lhes as
melhores aspirações de fraternidade. Nada pude fazer. Sem dúvida, acreditam no Cristo e
reverenciam-lhe o Evangelho; contudo, em vista do que exponho, não creio possam
receber a nossa cooperação e guardar nobreza de princípios.
Disse o segundo:
- Onde estive, encontrei somente a paixão pela fortuna terrestre. As criaturas aceitam a
Doutrina Cristã e falam nela, respectivamente, uma vez por semana; entretanto,
imobilizam a mente em questões de dinheiro... Trabalham, sofrem e desencarnam quase
que unicamente por isso... Volto desalentado porque não admito consigam, assim, amar a
Deus e a Humanidade, levantando mãos limpas...
Explicou-se o terceiro:
- Vi apenas religiosos fanáticos por onde passei. Vaidosos das letras que entesouraram,
acreditam nas Divinas Escrituras, mas formam grupos de intolerâncias entre si e
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combatem qualquer pessoa que não interprete os ensinamentos do Senhor à maneira
deles...
Desisti de ajudá-los, de vez que não os suponho capazes de mostrar coração humilde e
simples na Obra do Mestre!...
Por fim, queixou-se o último:
- Não trago também outra coisa que não seja amargura e desencanto. Nas regiões que
visitei, pude tomar contacto com milhares de irmãos que veneram Jesus, mas em meio de
entidades menos evolvidas, cuja visão não vai além de vantagens e gratificações da
existência material. Essas pessoas, segundo deduzi, não aspiram a outra atividade
espiritual que não seja o intercâmbio mediúnico em bases de interesse rasteiro e
misticismo primitivista. Não compreendo como conseguiram aceitar-nos a colaboração,
sem fazer inovações desaconselháveis, na seara do Cristo de Deus.
Mesclando lamentação e censura, entraram em prece, apelando para o discernimento do
mentor que os despachara, e, depois de alguns minutos, o experiente amigo se fêz
visível, considerando, após ouví-los:
- Meus filhos, viestes cooperar no trabalho urgente do Evangelho ou sois partes do
problema de Jesus? Devemos guardar nobreza de princípios, movimentar mãos limpas,
conservar simplicidade e evitar inconveniências na construção do Reino do Senhor, mas,
sem dúvida, instruindo os nossos companheiros da Humanidade par que façam o mesmo,
através de paciência, esforço, boa palavra e exemplo edificante. Que dizer do médico
decidido a fugir do enfermo que lhe espera os cuidados, sob a desculpa de que o irmão
necessitado é portador de doença? Saberemos nós algo de útil sem que alguém nos haja
ensinado? A evangelização é empresa de amor. Como reclamar virtudes alheias sem
ajudar a levantá-las? Onde nos será possível encontrar aperfeiçoamento e renovação
sem que nos disponhamos a servir? E não será para servir melhor que o Senhor nos
auxilia e nos induz a melhor conhecer? Retomemos as nossas obrigações e sejamos
fiéis!...
Calou-se o orientador e, percebendo que ele se aprestava a partir, de regresso à
Espiritualidade Maior, um dos tarefeiros inquiriu, aflitivamente:
- Generoso amigo, uma palavra a mais!... Sintetizai para nós alguma derradeira
advertência que nos possa manter o raciocínio claro na ação justa!... Socorrei-nos!...
Deixai-nos um conselho, uma frase que nos sirva de luz na hora da indecisão!...
O mentor fixou, de maneira expressiva, a reduzida assembléia e concluiu:
- Ah! meus filhos!... meus filhos!... Somos chamados a desenvolver a sementeira e a
colheita do Evangelho, onde a sementeira e a colheita do Evangelho se encontrem!... Em
verdade, pouco podeis contra a escuridão do materialismo, quando a escuridão do
materialismo animaliza as criaturas... Estejamos, porém, convencidos de que, onde esse
ou aquele grupo humano demonstre sinceridade e boa consciência, qualquer serviço por
Jesus e em nome de Jesus será sempre melhor do que nada.
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7 - O ANJO E O MALFEITOR
O mensageiro do Céu volveu do Alto a sombrio vale do mundo, em apoio de centenas de
criaturas mergulhadas na enfermidade e no crime, na miséria e na ignorância, e,
necessitando de concurso alheio para estender socorro urgente, começou por recorrer à
publicação de apelos do próprio Evangelho, induzindo corações, em nome do Cristo, à
compaixão e à caridade.
Entretanto, porque tardasse qualquer resultado concreto, de vez que todos os habitantes
do vale se comoviam com as legendas, mas não se encorajavam à menor manifestação
de amparo ao próximo, o Enviado Celestial, convicto de que fora recomendado pelo
Senhor a servir e não a questionar, julgou mais acertado assumir a forma de um homem e
solicitar sem delegar o apoio de alguém que lhe pudesse prestar auxílio.
Materializado a preceito, procurou pela colaboração dos homens considerados mais
responsáveis.
Humilde e resoluto, repetia sempre o mesmo convite à prática evangélica, registrando
respostas que o surpreendiam pela diferença.
O VIRTUOSO – Não posso manchar meu nome em contacto à prática evangélica,
registrando respostas que o surpreendiam pela diferença.
O SÁBIO – Cada qual está na colheita daquilo que semeou. Falta-me tempo para ajudar
vagabundos, voluntariamente distanciados da própria restauração.
O PRUDENTE – Não posso arriscar minha posição dificilmente conquistada, na
intimidade de pessoas que me prejudicariam a estima pública.
O FILANTROPO – Dou o dinheiro que seja necessário, mas de modo algum me animaria
a lavar feridas de quem quer que seja.
O PREGADOR – Que diriam de mim se me vissem na companhia de criminosos?
O FILÓSOFO – Nunca desceria a semelhante infantilidade... Aspiro a alcançar as mais
altas revelações do Universo. Devo estudar infinitamente... Além disso, estou cansado de
saber que, se não houvesse sofrimento, ninguém se livraria do mal...
O PESQUISADOR DA VERDADE – Não sou a pessoa indicada. Caridade é capa de
muitas dobras, que tanto acolhe o altruísmo quanto a fraude. Não me incomode... Procuro
tão-somente as realizações essenciais.
Desencanto, o Mensageiro bateu à porta de conhecido malfeitor, aliás, a pessoa menos
categorizada para a tarefa, e reformulou a solicitação.
O convidado, embora os desajustes íntimos, considerou, de imediato, a honra que o
Senhor lhe fazia, propiciando-lhe o ensejo de operar no levantamento do bem geral, e
meditou, agradecido, na Infinita Bondade que o arrancava da condenação para o favor do
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serviço. Não vacilou. Seguiu aquele desconhecido de maneiras fraternais que lhe pedia
cooperação e entregou-se decididamente ao trabalho. Em pouco tempo, conheceu a
fundo o martírio das mãos desamparadas, entre a doença e a penúria, carregando órfãos
de pais vivos; o pranto das viúvas relegadas à solidão; as aflições dos enfermos que
esperavam a morte nas áreas de ninguém; a tragédia das crianças abandonadas; o
suplício dos caluniados sem defesa; os problemas terríveis dos obsidiados sem
assistência; a mágoa das vítimas dos preconceitos levados ao exagero pelo orgulho
social; a angústia dos sofredores caídos em desespero pela ausência de fé...
Modificado nos mais profundos sentimentos, o ex-malfeitor consagrou-se ao alívio e à
felicidade dos outros, e, percebendo necessidades e provações que não conhecia,
procurou instruír-se e aperfeiçoar-se. Com quarenta anos de abnegação, adquiriu as
qualidades básicas dos Virtuosos, os recursos primordiais do Sábio, o equilíbrio do
Prudente, as facilidades econômicas do Filantropo, a competência do Pregador, a
acuidade mental do Filósofo e os altos pensamentos do Pesquisador da Verdade...
Quando largou o corpo físico, pela desencarnação – Espírito lucificado no cadinho da
própria regeneração, ao calor do devotamento ao próximo -, entrou vitoriosamente no
Céu, para a ascensão a outros Céus...
***
Um dia, chegaram ao limiar da Esfera Superior o Virtuoso, o Sábio, o Prudente, o
Filantropo, o Pregador, o Filósofo e o Pesquisador da Verdade... Examinados na Justiça
Divina, foram considerados dignos perante as Leis do Senhor; entretanto, para o mérito
de seguirem adiante, luzes acima, faltava-lhes trabalhar na seara do amor aos
semelhantes... Enquanto na Terra, não haviam desentranhado os tesouros que Deus lhes
havia conferido em benefício dos outros, Cabia-lhes, assim, o dever de regressar às lides
da reencarnação, mas, porque haviam abraçado conduta respeitável no mundo, o
Virtuosos receberia, na existência vindoura, mais veneração, o Sábio mais apreço, o
Prudente mais serenidade, o Filantropo mais dinheiro, o Pregador mais inspiração, o
Filósofo mais discernimento e o Pesquisador da Verdade mais luz...
Observando, porém, que o malfeitor, sobejamente conhecido deles todos, vestia alva
túnica resplendente, funcionando entre os agentes da Divina Justiça, começaram a
discutir entre sí, incapazes de reconhecer que na obra do amor qualquer filho de Deus
encontra os instrumentos e caminhos da própria renovação. Desalentados, passaram a
reclamar... Em nome dos companheiros, o Virtuoso aproximou-se do orientador maior que
lhes revisava os interesses no Plano Espiritual e indagou:
- Venerável Juiz, por que motivo um malfeitor atravessou, antes de nós, as fronteiras do
Céu?!...
O magistrado, porém, abençoou-lhe a inquietação com um sorriso e informou,
simplesmente:
- Serviu.
22
8 - O MENSAGEIRO DA ESTRADA
Mediunidade a serviço dos semelhantes!
Diz você que isso custa caro, e fala em renúncia e problemas pessoais. Mas, esquecerse-
á você dos benefícios que os dotes medianímicos trazem a todos aqueles que os
mobilizam na extensão das boas obras? Olvidará quantas vezes a empresa do bem lhe
arrebatou o coração às garras do mal? Pense nisso, meu caro missivista, e não atire fora
as suas vantagens que superam de muito os obstáculos que, porventura, lhe estorvem a
vida.
A esse respeito, conto a você, em versão nova, uma lenda antiga que corre o mundo
cristão, desde longo tempo.
***
Certo homem, que se reencarnara a fim de educar-se em duras provas, quais sejam
enfermidades, abandono e solidão, montou a choupana que lhe serviria de casa à beira
de estrada deserta e poeirenta, a cavaleiro de fundo vale, onde uma fonte permanente
mantinha no chão seco larga faixa de verdura.
Viajores iam e vinham e, fôssem eles ocupantes de carruagens, ou simplesmente pobres
romeiros a pé, ei-los que paravam junto ao casebre, contentes e agradecidos por
encontrarem, ali, com o homem solitário, uma bênção muito rara na região: a água pura.
O ermitão, em demonstrações de bondade incessante, várias vezes, diariamente, descia
a encosta agressiva até o manancial e enchia o cântaro, regressando vereda acima, tãosó
no intuito de oferecer água cristalina aos viajantes diversos.
Na faina de auxiliar, entrou em contacto com um Espírito angélico a quem o Senhor
incumbira de velar por todos os que transitassem pela extensa rodovia, e o eremita,
profundamente emocionado e feliz, passou a chamar-lhe Anjo da Estrada.
Estabeleceu-se para logo, entre os dois, suave convívio. Nenhum dos passantes lhe via o
celestial companheiro; entretanto, para o solitário, aquele benfeitor espiritual se
transformara em presença sublime. Se cansado, eis que o Anjo lhe restaurava as
energias; se doente, recebia dele o remédio salutar. Se triste, recolhia-lhe as exortações
confortativas e, quando em dúvida sobre doenças e dificuldades naturais do cotidiano,
tomava-lhe as sugestões tocadas de amor. O Amigo do Céu descia com ele até à fonte,
tantas vezes quantas fôssem necessárias, ajudava-o a transportar o grande vaso cheio,
narrava-lhe histórias das Mansões Divinas, recobria-lhe a alma de tranqüilidade e júbilo
sereno.
O tempo rolou e trinta anos dobraram sobre aquela amizade entre duas criaturas
domiciliadas em mundos diferentes.
23
A estrada era sempre uma estalagem da Natureza, albergando viajores que se
renovavam constantemente, mas o ermitão, conquanto satisfeito, mostrava agora a
cabeleira branca e os ombros caídos.
Certa feita, um homem prático, de passagem pelo lugar, em lhe enxergando a cabeça
vergada ao peso do cântaro bojudo, observou-lhe, conselheiral:
- Amigo, porque um sacrifício assim tão grande? Não seria melhor e mais justo transferir a
casa para a fonte, ao invés de buscar a fonte para casa?
O doador de água estremeceu de alegria. Como não pensara nisso antes? Da idéia à
realização mediaram poucos dias... No entanto, em carregando o velho material da velha
choca para a reentrância do vale, ei-lo que vê o amigo angélico em lágrimas copiosas...
- Anjo bom, porque choras?
E a resposta veio célere:
- Pois, então, não percebes? Concedeu-me o Senhor a tarefa de proteger as vidas de
quantos se arriscaram na estrada... Enquanto lá te achavas, oferecendo água límpida aos
que viajam com sede, tinha eu a permissão de trocar contigo as bênçãos da amizade.
Mas agora... Se preferes o menor esforço, é forçoso que eu me resigne a distância de ti,
esperando que alguém se decida a cooperar comigo, junto dos viajores que me cabe
amparar na condição de zelador do caminho!...
O eremita não hesitou. Suspendeu a mudança, tornou ao lugar primitivo, retomou a sua
venturosa paz de espírito ao pé da multidão anônima a que prestava serviço, e preferia
trabalhar e ser feliz, em companhia do mensageiro celeste. Com quem partiu para o Mais
Além, no dia em que lhe surgiu a morte do corpo.
***
Como é fácil de ajuizar e de ver, meu caro amigo, abençoe a sua possibilidade de
dessedentar os peregrinos da romagem terrestre com as águas puras de fé viva,
esclarecimento, pacificação e consolo, sem se fixar nos eventuais sacrifícios que isso lhe
custe. Você compreenderá, um dia, que vale muito mais livrar-se alguém de aflições e
tentações, junto dos Espíritos Benevolentes e Amigos, que viver à conta de nossas
próprias imperfeições das existências passadas, e que é muito melhor desencarnar
sofrendo, mas servindo ao próximo, em favor da própria libertação espiritual, que ter de
acompanhar o desgaste repelente do corpo, a pouco e pouco, em facilidade e descanso,
para afundar, de novo, no momento da morte, na corrente profunda de nossas paixões e
desequilíbrios.
24
9 - A LENDA DO PODER
A assembléia familiar comentava a difícil situação dos Espíritos revoltados que se
habituam ao azedume crônico por vasta fieira de encarnações sucessivas, quando João
de Kotchana, experimentado instrutor de cristãos desencarnados, nas regiões da
Bulgária, contou-nos, entre sensato e otimista:
- Temos nós antiga lenda que adaptarei ao nosso assunto para a devida meditação...
Dizem que Deus, quando começou a repartir os dons da vida, entre os primeiros homens
dos primeiros grandes agrupamentos humanos constituídos na Terra, decretou fôsse
concedido aos Bons o Poder Soberano.
Informados de que o Supremo Senhor estava fazendo concessões, os Corajosos
acudiram apressados à Divina Presença, solicitando o quinhão que lhes seria adjudicado.
- Que desejais, filhos meus? – indagou o Eterno.
- Senhor, queremos o Poder Supremo.
- Essa atribuição – explicou o Todo-Misericordioso – já concedi aos Bons; eles
unicamente conseguirão governar o reino dos corações, o território vivo do espírito, onde
se exerce o poder verdadeiro.
- Ah! Senhor, e nós? Que será de nós, os que dispomos de suficiente ousadia para
comandar os distritos da existência e transformá-los?
- Não posso revogar uma ordem que expedi – observou o Onipotente -, entretanto, se não
vos posso confiar o Poder Soberano, concedo-vos um encargo dos mais importantes, a
Autoridade. Ide em paz.
Espalhou-se a notícia e vieram os Intelectuais ao Trono Excelso.
O Todo-Poderoso inquiriu quanto ao propósito dos visitantes e a resposta não se fêz
esperar:
- Senhor, aspiramos à posse do Poder Soberano.
- Impossível. Essa prerrogativa foi concedida ao Bons. Só eles lograrão renovar as outras
criaturas em meu nome.
E porque os Intelectuais perguntassem respeitosamente com que recurso lhes seria lícito
operar. Deus entregou-lhes o domínio da Ciência.
Veio, então, a vez dos Habilidosos. Com vasta representação, surgiram diante do Pai e,
como fôssem questionados quanto ao que pretendiam, responderam veementemente:
- Senhor, suplicamos para nós o Poder Soberano.
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O Todo-Bondoso relacionou a impossibilidade de atender, mas deu-lhes o Engenho.
Depois, acorreram os Imaginosos ao Sagrado Recinto e esclareceram que contavam para
eles com a mesma cobiçada atribuição.
O Todo-Amoroso respondeu pela negativa afetuosa; no entanto, brindou-os com a luz da
Arte.
Logo após, os Devotados chegaram ao Augusto Cenáculo e rogaram igualmente se lhes
conferisse a faculdade do mando, e recolheram a mesma recusa, em termos de
extremado carinho; contudo, o Todo-Misericordioso outorgou-lhes o talento bendito do
Trabalho.
Em seguida, os Revoltados, que não procuravam senão defeitos e problemas transitórios
na obra da Vida – os problemas e defeitos que Deus sanaria com o apoio do Tempo, de
modo a não ferir os interesses dos filhos mais ignorantes e mais fracos - compareceram
perante o Supremo Doador de Todas as Bênçãos e, em vista de se mostrarem com
agressiva atitude, a voz do Pai se fêz mais doce ao perguntar-lhes:
- Que desejais, filhos meus?
Os Revoltados retrucaram duramente:
- Senhor, exigimos para nós o Poder Soberano.
- Isso pertence aos Bons – disse o Todo-Sábio -, pois somente aqueles que dispõem de
suficiente abnegação para esquecer os agravos que se lhes façam, prosseguindo
infatigáveis no cultivo do bem aos semelhantes, guardarão consigo o poder de governar
os corações... No entanto, meus filhos, tenho outros dons para conceder-vos...
Antes, porém, que o Supremo Senhor terminasse, os ouvintes gritaram
intempestivamente:
- Não aceitamos outra coisa que não seja o Poder soberano. Queremos dominar,
dominar... Fora do poder, o resto é miséria...
O Onipotente fitou cada um dos circunstantes, tomado de compaixão, e declarou, sem
alterar-se:
- Então, meus filhos, em todo o tempo que estiverdes na condição de Revoltados, tereis
convosco a miséria...
E, desde essa ocasião, rematou Kotchana, todo espírito, enquanto rebelado, não tem
para si mesmo senão o azedume da queixa e a penúria do coração.
***
Ouvi a lenda, retiro o ensinamento que me toca e ofereço a peça aos companheiros
reencarnados na Terra, que porventura sejam ainda inutilmente revoltados quanto tenho
sido e já não quero mais ser.
26
10 - A MEADA
- A conversação entre as duas jovens senhoras se desenvolvia no ônibus.
- Você não pode imaginar o meu amor por ele...
- Não posso concordar com você.
- Decerto que não me entende.
- Mas, Dulce, você chega a querer o Dionísio, tanto quanto ao marido?
- Não tanto, mas não consigo passar sem os dois.
- Meu Deus! Isso é coisa de casal sem filhos!...
- É possível...
- Você não acha isso estranho, inadmissível?
- Acho natural.
- Noto você demasiadamente apegada, não é justo...
- Sei que você não me compreende...
- Simplesmente não concordo.
- Mas Dionísio...
- Isso é uma psicose...
Dona Dulce e a amiga, no entanto, ignoravam que Dona Lequinha, vizinha de ambas,
sentara-se perto e estava de ouvido atento, sem perder palavra.
De parada em parada. Cada uma volveu ao lar suburbano, mas Dona Lequinha, ao
chegar em casa, começou a fantasiar... Bem que notara Dona Dulce acompanhada por
um moço ao tomar o elétrico, aliás, pessoa de cativante presença. Recordava-lhe as
palavras derradeiras: “vá tranqüila, amanhã telefonarei...”
Cabeça quente, vasculhando novidades no ar, aguardou o esposo, colega de serviço do
marido de Dona Dulce, e tão logo à mesa, a sós com ele para o jantar, surgiu novo
diálogo:
- Você não imagina o que vi hoje...
- Diga, mulher...
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- Dona Dulce, calcule você!... Dona Dulce, que sempre nos pareceu uma santa, está de
aventuras...
- O quê?!...
- Vi com meus olhos... Um rapazão a seguia mostrando gestos de apaixonado e, por fim,
no ônibus, ela própria se confessou a Dona Cecília... Chegou a dizer que não consegue
viver sem o marido e sem o outro... Uma calamidade!...
- Ah! mas isso não fica assim, não! Júlio é meu colega e Júlio vai saber!...
A conversa transitou através de comentários escusos e, no dia imediato, pela manhã, na
oficina, o amigo ouve do amigo o desabafo em tom sigiloso:
- Júlio, você me entende... somos companheiros e não posso enganá-lo... O que vou dizer
representa um sacrifício para mim, mas falo para seu bem... Seu nome é limpo demais
para ser desrespeitado, como estou vendo... Não posso ficar calado por mais tempo...
Sua mulher...
E o esposo escutou a denúncia, longamente cochichada, qual se lhe enterrassem afiada
lâmina no peito.
Agradeceu, pálido...
Em seguida, pediu licença ao chefe para ir a casa, alegando um pretexto qualquer. No
fundo, porém, ansiava por um entendimento com a esposa, aconselhá-la, saber o que
havia de certo.
Deixou o serviço, no rumo do lar e, aí chegando, penetrou a sala, agoniado...
Estacou, de improviso.
A companheira falava, despreocupamente, ao telefone, no quarto de dormir: “Ah! sim!...”,
“Não há problema”, “Hoje mesmo”. “Às três horas”... “Meu marido não pode saber...”.
Júlio retrocedeu, à maneira de cão espantado. Sob enorme excitação, tornou à rua. Logo
após, notificou na oficina que se achava doente e pretendia medicar-se. Retornou a casa
e tentou o almoço, em companhia da mulher que, em vão, procurou fazê-lo sorrir.
Acabrunhado, voltou a perambular pelas vias públicas e, poucos minutos depois das três
da tarde, entrou sutilmente no lar... Aflito, mentalmente descontrolado, entreabriu
devagarinho a porta do quarto e viu, agora positivamente aterrado, um rapaz em mangas
de camisa, a inclinar-se sobre o seu próprio leito. De imaginação envenenada, concebeu
a pior interpretação...
O pobre operário recusou em delírio e, à noite, foi encontrado morto num pequeno galpão
dos fundos. Enforcara-se em desespero...
Só então, ao choro de Dona Dulce, o mexerico foi destrinçado.
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Dionísio era apenas o belo gatinho angorá que a desolada senhora criava com estimação
imensa; o moço que a seguira até o ônibus era o veterinário, a cujos cuidados
profissionais confiara ela o animal doente; o telefonema era baseado na encomenda que
Dona Dulce fizera de um colchão de molas, ao gosto moderno, para uma afetuosa
surpresa ao marido, e o rapaz que se achava no aposento íntimo do casal era, nem mais
nem menos, o empregado da casa de móveis que viera ajustar o colchão referido ao leito
de grandes proporções.
A tragédia, porém, estava consumada e Dona Lequinha, diante do suicida exposto à
visitação, comentou, baixinho, para a amiga de lado:
- Que homem precipitado!... Morrer por uma bobagem! A gente fala certas coisas, só por
falar!...
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11 - LIÇÃO VIVA
A caminho do aeroporto, Aristeu Soares comentava com o amigo Alcides Mota os
ensinamentos recolhidos na reunião mediúnica da véspera, e estabeleceu-se, de pronto,
curioso diálogo.
- Creio absolutamente importuna qualquer pregação tendente a ferir-nos a independência
– falava Soares, decidido.
- Mas... – volvia Mota, reticencioso.
- O assunto não comporta evasivas. Os Espíritos amigos que se comuniquem, que
consolem, que instruam; no entanto, nada de fabricarem freios psicológicos, copiando as
religiões do passado.
- Mas, estamos no estágio da reencarnação, à maneira de alunos na escola. Não
sabemos tudo e nem dispensamos o auxílio de professores que nos apontem o caminho
certo, para que venhamos a errar o menos possível...
- Ninguém aprende sem experimentar a lição por sí próprio.
- A função do ensino será, decerto, conduzir-nos à experiência sem quedas
desnecessárias.
- Você está procurando subterfúgios.
- Não, meu caro, compreendamos que os bons Espíritos nos ajudam sem coação. A lei de
Deus nos conclama a viver hoje de modo mais elevado que antes. Você, claro, não
quererá repetir as mesmas faltas de passadas reencarnações...
- Isso é outra coisa. O ensinamento é luz para o íntimo. Concordo em que os benfeitores
espirituais nos eduquem os sentimentos; entretanto, a meu ver, não é justo que se
aproveitem do intercâmbio conosco para nos arredarem da regalia de proceder como
quisermos... Serão bons amigos, sem dúvida; contudo, na maioria das vezes, fazem-se
doces e afáveis para induzir-nos a uma posição de disciplina que não aprovo. Nada de
exposições acerca de penas e lágrimas além-túmulo e de apelos constrangedores a essa
ou àquela atitude, ante os princípios de causa e efeito, quais se devêssemos
desempenhara o papel de crianças assombradas...
- Soares, Soares!... Você, ao que vejo, não percebe que os instrutores espirituais nos
guiem para o bem, exclusivamente para o bem...
- Compreendo que se prova a imortalidade da alma e aceito a necessidade da convicção,
mas não justifico advertências e avisos de amigos encarnados ou desencarnados. Se
todos dispomos de livre arbítrio e se a própria Doutrina Espírita consagra a
responsabilidade pessoal, por que motivo os discursos ou escritos de corrigenda ou
reprovação?!...
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Mota, porém, não esmorecia na sensata argumentação com que se impunha, e replicava,
enquanto o ônibus deslizava, célere:
- Lembre-se de que estamos na Terra, “mundo de provas e expiações”. Somos na
Humanidade os membros de uma só família, na obrigação de amparar-nos e defendernos
mutuamente. Em muitas ocasiões, em vez de agirmos com acerto, procedemos à
feição de loucos... Ora, nem sempre cumpriremos o dever de solidariedade, oferecendo
rosas e caramelos uns aos outros. Um companheiro, prestes a afogar-se, é salvo através
de um choque providencial!...
- Não. Nesta de escapatória. Acidente é outra coisa. Refiro-me a conselhos que ninguém
pede...
- Onde colocaremos, então, a medicina preventiva e os preceitos da ordem social? Num
planeta, qual o nosso, não podemos ignorar o valor da polícia e da imunização.
- Não me venha com sofismas. Sou contra qualquer palavra da Terra ou do Mundo
Espiritual que intente furtar-nos o direito irrestrito à liberdade de ação...
Nisso, o veículo parou e a conversa interrompeu-se, porque o avião estava quase a
decolar.
Mais alguns minutos, e os dois companheiros se achavam a pleno céu, confortavelmente
instalados no rumo da capital argentina.
Tudo corria às mil maravilhas, quando, a meio da noite, ambos viram certo companheiro
de viagem, evidentemente enfermos e em momento de insânia, ajustando uma bomba,
rente a si próprio, para suicídio espetacular.
Foi então que Mota falou para Soares, com excelente lógica:
- Agora, meu caro, recordemos nosso desacordo e examinemos a prova diante de nós.
Tomamos medida contra o vizinho em delírio ou comprometemos, conscientemente, não
apenas a nossa vida, como, também a vida de dezenas de passageiros. E não é só. É
preciso agir com prudência ou iremos todos pelos ares...
Aristeu concordou num sorriso amarelo:
- É... é...
E enquanto Mota se dirigia, cauteloso, ao comando da nave, para a solução pacífica do
problema, foi o próprio Soares quem se abeirou, afetuosamente, do louco e, após
identificar-lhe a condição de espírito revoltado, passou a adverti-lo com palavras de
brandura e entendimento, chamando-o por “Irmão”.
31
12 - DOCUMENTO RARO
Enquanto agíamos na prestação de socorro a companheiros em prova, horas após
enorme desastre em que dezenas de pessoas perderam a existência por afogamento
num grande rio, encontrei a folha de anotações de Joaquim Nonato, cuja presença entre
os desencarnados me fora apontada por um amigo. Impressionado com a leitura desse
curioso documento, empapado de lodo, sinto-me no dever de transcrevê-lo, na íntegra:
2-1-66 – Estou iniciando o meu trabalho deste ano, decidido a ganhar mais dinheiro.
Não renuncio a isso. Voltei ontem à casa do primo Juca e ouvi a mesma cantilena. Duro
pensar que ele repete o caso, há dez anos sem falhar!...
Coitado! Homem bom, mas crédulo demais. Escutou, no grupo de espíritas que freqüenta,
algum velhaco interessado em surripiar-me dinheiro e afirma que só a caridade poderá
remover a provação que me espera... Contou-me o pobre Juca que ele mesmo, numa
visão, me enxergou em vida passada, na condição de malfeitor, afogando um viajante,
alta noite, para roubar-lhe grande fortuna!... e acrescentou que o médium da confiança
dele confirma isso.
Mas não é só. Puseram o nome de minha mãe, morta há trinta anos, nessa história
engraçada. Diz o médium que a velha me mandou pedir auxiliar os outros, amparar os
necessitados e beneficiar o próximo, tomando a caridade por patrona de minha defesa,
assim como alguém, que se encontra complicado em assuntos com a justiça, contrata o
apoio de um advogado... Minha mãe teria dado comunicações rogando para que eu
distribua pelo menos a quinta parte do meu dinheiro em boas obras, de modo a evitar
grande parte dos meus sofrimentos futuros!...
O infeliz do Juca ainda tentou persuadir-me que, diante das leis de Deus, é possível
resgatar em amor ao próximo as dívidas que nos cabe solver em provação... Boa bola!...
Meu dinheiro é o que eles querem!... Coitado do Juca! Esse caso de avisos é
simplesmente o resultado de conversa minha. Há onze anos, sonhei que estava atirando
um homem nas águas de um rio, depois de havê-lo espancado para furtar-lhe a bolsa.
Acordei suado, aflito. Fiz a bobagem de contar isso, na loja do Ascânio, em Bonsucesso,
numa roda de amigos e, com certeza, os espíritos tomaram conhecimento de minha
imprudência e agora me cercam no intuito de me extorquirem dinheiro... Estão muito
enganados. Não darei um tostão a ninguém. Quem gosta de fantasma é criança. O bobo
do meu primo ainda me veio explicar que há muita gente sofrendo por aí e que devo
ajudar... Essa é boa! Não sou dono do mundo!...
4-2-66 – Executei a viúva Soares e recebi os dois milhões que ela teimava em não pagar,
alegando as dificuldades em que ficou, depois da morte do marido. Chorou, chorou, mas
caiu com os cobres. Quando vendi ao casal o lote 16, o homem não me falou que era
doente e, afinal, eu não mando na morte...
15-3-66 – Queixei-me à polícia do velho Cirino Arão. Velho atrevido!... Além do débito de
um milhão e quinhentos mil em que está atrasado comigo, desde quatro dias, ainda me
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insultou, chamando-me “pão duro”... Mas isso não fica assim, não... Ele será chamado às
falas e resolverá o problema. Não perdoarei um vintém...
16-4-66 – Juca telefonou-me, aconselhando para que me lembre da mensagem e visite,
em companhia dele, uma casa de órfãos. Simples armadilha. Neguei-me. Não quero
encontrar espertalhões. Tenho mais que fazer. Disse-lhe, claramente, que preciso ir hoje
a Nova Iguaçu receber os dois milhões restantes dos seis lotes que vendi no mês
passado.
10-5-66 – Executei a lavadeira Ernestina em oitocentos mil cruzeiros... Lastimava-se de
que não poderia pagar agora as prestações do terreno que me comprou, porque os quatro
filhos adoeceram ao mesmo tempo... Essa gente é um fábula!... Na hora de comprar, é
promessa; no pagamento, é choradeira.
2-6-66 – Fui pessoalmente à cobrança dos seis milhões que diversos clientes me devem,
desde janeiro. Todos pagarão ou acertarão contas com a Justiça...
10-7-66 – Recebi hoje quatro geladeiras e duas máquinas de costura para abater débitos
atrasados. Tudo em bom estado. Creio que farei um milhão e duzentos mil, à vista, com
esse material.
11-8-66 – Juca voltou a procurar-me para falar de reencarnações passadas e de
beneficência para melhorar a vida. Hoje, não agüentei... Ri na cara dele. Só receberei
recados de outro mundo, se algum Espírito me ensinar o melhor modo de evitar
caloteiros.
14-9-66 – Executei João Serra em novecentos mil... Sempre a mesma história... Doença e
doença... Nada tenho com isso...
20-10-66 – Telefonema de Juca. Quer visitar-me com o médium dos avisos e das
caridades... Respondi que não posso recebê-los agora, por estar comprometido numa
viagem a São Paulo... Já sei o que procuram...
10-11-66 – Tenho estudado com o meu procurador a melhor maneira de forçar meus
devedores ao pagamento dos terrenos que vendi sem maiores garantias. Começarei
meus negócios no ano próximo, com nova orientação. Tenho sido idiota. Perco os
melhores lucros por excesso de tolerância. Obrigação de quem deve é pagar.
20-12-66 – Apesar da luta, suponho que poderei seguir no mês próximo para São Paulo,
a fim de colocar algum dinheiro a juros mais altos, com amigos industriais... Juca me
procurou quatro vezes, nas vésperas do Natal, dizendo à empregada que era portador de
recados de minha mãe... Já sei... Queria dinheiro para donativos a desocupados e
vagabundos. Nada disso... O que é meu, é meu...
Aqui terminavam as anotações que li, comovidamente.
Em seguida, mergulhamos na corrente espessa do rio em assombrosa cheia. Preso ao
barro viscoso do fundo, estava o cadáver disforme de Joaquim Nonato e, a poucos
metros, vimos a pasta dele, começando a perder irremediavelmente na lama o valioso
conteúdo de vinte e dois milhões.
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13 - PERTO DE DEUS
Entre a alma, prestes a reencarnar na Terra, e o Mensageiro Divino travou-se expressivo
diálogo:
- Anjo bom – disse ela -, já fiz numerosas romagens no mundo. Cansei-me de prazeres
envenenados e posses inúteis... Se posso pedir algo, desejaria agora colocar-me em
serviço, perto de Deus, embora deva achar-me entre os homens...
- Sabes efetivamente a que aspiras? Que responsabilidade procuras? – replicou o
interpelado. – Quando falham aqueles que servem à vida, perto de Deus, a obra da vida,
em torno deles, é perturbada nos mais íntimos mecanismos.
- Por misericórdia, anjo amigo! Dar-me-ás instruções...
- Conseguirás aceitá-las?
- Assim espero, com o amparo do Senhor.
- O Céu, então, conceder-te-á o que solicitas.
- Posso informar-me quanto ao trabalho que me aguarda?
- Porque estarás mais perto de Deus, conquanto entre os homens, recolherás dos
homens o tratamento que eles habitualmente dão a Deus...
- Como assim?
- Amarás com todas as fibras de teu espírito, mas ninguém conhecerá, nem te avaliará as
reservas de ternura!... Viverás abençoando e servindo, qual se carregasses no próprio
peito a suprema felicidade e o desespero supremo. Nunca te fartarás de dar e os que te
cercarem jamais se fartarão de exigir...
- Que mais?
- Dar-te-ão no mundo um nome bendito, como se faz com o Pai Celestial, contudo, qual
se faz igualmente até hoje na Terra com o Todo-Misericordioso, reclamar-se-á tudo de ti,
sem que se te dê coisa alguma. Embora detendo o direito de fulgir à luz do primeiro lugar
nas assembléias humanas, estarás na sombra do último... Nutrirás as criaturas queridas
com a essência do próprio sangue; no entanto, serás apartada geralmente de todas elas,
como se o mundo esmerasse em te apunhalar o coração. Muitas vezes, serás obrigada a
sorrir, engulindo as próprias lágrimas, e conhecerás a verdade com a obrigação de
respeitar a mentira... Conquanto venhas a residir no regozijo oculto da vizinhança de
Deus, respirarás no fogo invisível do sofrimento!...
- Que mais?
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- Adorarás as outras criaturas para que brilhem nos salões da beleza ou nos torneios da
inteligência; entretanto, raras te guardarão na memória, quando erguidas ao fausto do
poder ou ao delírio da fama. Produzirás o encanto da paz; todavia, quando os homens se
inclinem à guerra, serás impotente para afastar-lhes o impulso homicida... Por isso
mesmo, debalde chorarás quando se decidirem ao extermínio uns dos outros, de vez que
te acharás perto do Todo-Sábio e, por enquanto, o Todo-Sábio é o Grande Anônimo,
entre os povos da Terra...
- Que mais?
- Todas as profissões no Planeta são honorificadas com salários correspondentes às
tarefas executadas, mas o teu ofício, porque estejas em mais íntima associação com o
Eterno e para que não comprometas a Obra da Divina Providência, não terá
compensações amoedadas. Outros seareiros da Vinha terrestre serão beneficiados com a
determinação de horários especiais; contudo, já que o Supremo Pai serve dia e noite, não
disporás de ocasiões para descanso certo, porquanto o amor te colocará em permanente
vigília!... Não medirás sacrifícios para auxiliar, com absoluto esquecimento de ti; no
entanto, verás teu carinho e abnegação apelidados, quase sempre, por fanatismo e
loucura... Zelarás pelos outros, mas os outros muito dificilmente se lembrarão de zelar por
ti... Farás o pão dos entes amados... Na maioria das circunstâncias, porém, serás a última
pessoa a servir-se dos restos da mesa, e, quando o repouso felicite aqueles que te
consumirem as horas, velarás, noite a dentro, sozinha e esquecida, entre a prece de
Deus, e, em razão disso, terás por dever agir com o ilimitado amor com que Deus ama...
- Anjo bom – disse a Alma, em pranto de emoção e esperança -, que missão será essa?
O Emissário Divino endereçou-lhe profundo olhar e respondeu num gesto de bênção:
- Serás mãe!...
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14 - O GUIA
Necessitando melhorar conhecimentos de orientação, acompanhei um dia de serviço do
guardião Aurelino Piva, Espírito amigo que desempenha a função de guia comum da
senhora Sinésia Camerino, dama culta e distinta, domiciliada em elegante setor do mundo
paulista.
Cabia-me aprender como ajudar alguém, individualmente, na posição de desencarnado.
Auxiliar em esforço anônimo, exercer o amor silencioso e desconhecido.
Cheguei cedo à residência, cujo pequeno jardim a primavera aformoseada. Quatro horas
da manhã, justamente quando Aurelino preparava as forças de sua protegida para o dia
nascente. Trabalho de humildade e devotamento.
Na véspera, dona Sinésia não estivera tão sóbria ao jantar. Excedera-se em quitutes e
licores, mas o amigo espiritual erguia-se em piedosa sentinela e, antes que a senhora
reabrisse os olhos no corpo, aplicava-lhe passes de reajuste.
- É preciso que nossa irmã desperte tão hígida quanto possível – explicou-me.
E sorrindo:
- Um dia tranqüilo no corpo físico é uma bênção que devemos enriquecer de harmonia e
esperança.
Depois de complicada operação magnética, observei que a tutelada se dispunha a
movimentar-se, e esperei.
Seis horas da manhã.
Aurelino formulou uma prece, rogando ao Senhor lhe abençoasse a nova oportunidade de
trabalho e tive a idéia de tornar a escutar-lhe as palavras confortadoras: “um dia tranqüilo
no corpo físico é uma bênção...”
A senhora acordou e o benfeitor espiritual postou-se ao lado dela, à feição de pai
amoroso, falando-lhe dos recursos imensos da vida que estuavam lá fora, como a buscarlhe
o coração para o serviço com alegria. Dona Sinésia ouvia em pensamento e, qual se
dialogasse consigo mesma, recusava a mensagem de otimismo e respondeu às benéficas
sugestões, resmungando: “dia aborrecido, tempo sem graça...” Nisso, dois meninos
altercaram, lá dentro, com a empregada. Bate-boca em família. Dona Sinésia não se
mexeu. Sabia que os dois filhos manhosos nada queriam com estudo, nem suportavam
qualquer disciplina, mas não deu bola. Aurelino, porém, correu à copa e eu o acompanhei.
O amigo desencarnado apaziguou as crianças e acalmou a servidora da casa, à custa de
apelos edificantes. Ajudou os pequenos a encontrarem os cadernos de exercícios
escolares que haviam perdido e acompanhou-os até o ônibus.
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De volta ao interior doméstico, chegou a vez de se amparar o esposo de Dona Sinésia,
que deixara o quarto sob grande acesso de tosse. Bronquite velha. Um guardião
espiritual, ligado a ele, auxiliava-o, presto; no entanto, Aureliano pensou na tranqüilidade
de sua protegida e entregou-se à tarefa de colaboração socorrista. Passes, insuflações.
O chefe da família estava nervoso, abatido. Aurelino não repousou enquanto não lhe viu o
espírito asserenado, diante da empregada, a quem auxiliou de novo, a fim de que o café
com leite fôsse servido com carinho e limpeza. Logo após, demandou o grande aposento,
em que iniciáramos a tarefa, rogando a Dona Sinésia viesse à copa abençoar o marido
com um sorriso de confiança. A dama escutou o convite suplicante, através da intuição,
mas ficou absolutamente parada sob os lençóis, e, ouvindo o esposo a pigarrear, na
saída, comentou intimamente: “não vou com asma, estou farta”.
Sete horas. Aurelino estugou o passe a fim de sustentar o senhor Camerino, na travessia
da rua. Explicou-me que Dona Sinésia precisava de paz e, em razão disso, devia ajudarlhe
o marido com as melhores possibilidades de que dispunha. E, atencioso, deu a ele, na
espera da condução, idéias de tolerância e caridade, bom ânimo e fé viva para
compreender as suas dificuldades de contador na firma a que se vincula.
Regressamos a casa. Dona Sinésia em descanso. Oito horas, quando se levantou.
Aurelino sugeriu-lhe o desejo de tomar água pura e informou-me de que se esmerava em
defendê-la contra intoxicações. Magnetizou o líquido simples, dotando-o de qualidades
terapêuticas especiais e... continuaram serviços e preocupações.
Trabalho de proteção para Dona Sinésia, em múltiplas circunstâncias pequeninas
suscetíveis de gerar grandes males; apoio à empregada de Dona Sinésia, para que não
falhassem minudências na harmonia do lar; remoção de obstáculos a fim de que
contratempos não viessem perturbar a calma de Dona Sinésia; socorro incessante às
crianças de Dona Sinésia, ao retornarem da escola; cooperação indireta para que Dona
Sinésia escolhesse os pratos capazes de lhe assegurarem a necessária euforia orgânica;
inspirações adequadas de modo a que Dona Sinésia encontrasse boas leituras; amparo
constante ao senhor Camerino, tanto quanto possível, a fim de que Dona Sinésia não se
afligisse...
Enfim, Dona Sinésia, sem a obrigação de ser agradecida, já que não identificava os
benefícios contínuos que recebia, teve um dia admirável, enquanto Aurelino e eu
estávamos realmente estafados, não obstante a nossa condição de Espíritos sem corpo
físico.
À noite, porém, justamente quando Aurelino se sentou ao meu lado para dois dedos de
prosa, Dona Sinésia, desatenta, feriu o polegar da mão esquerda com a agulha que
manejava para enfeitar um vestido.
Bastou isso e a senhora desmandou-se aos gritos:
- Oh! meu Deus! meu Deus!... ninguém me ajuda! Vivo sozinha, desamparada!... Não há
mulher mais infeliz do que eu!...
Positivamente assombrado, espiei Aurelino, que se mantinha imperturbável, e observei:
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- Que reação é esta, meu amigo? Dona Sinésia recolheu socorro e bênçãos durante o dia
inteiro!... como justificar este ataque de cólera por picadela sem importância nenhuma?!...
Aurelino, entretanto, sorriu e falou paciente:
- Acalme-se, meu caro. Auxiliemos nossa irmã a reequilibrar-se. Esta irritação não há de
ser nada. Ela também, mais tarde, vai desencarnar como nós, e será guia...
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15 - O COMPROMISSO
Chamados ao concurso fraterno, em auxílio de pequeno grupo familiar, fustigado por
doloroso caso de obsessão, instrutores amigos nos indicaram alguém no plano físico, que
poderia colaborar conosco. Alberto Nogueira, a pessoa certa. Médium que reencarnara,
trinta e seis anos antes, sob o amparo do núcleo espiritual de que partiria a nossa
expedição socorrista.
Tratando-se de companheiro que ainda não conhecíamos, em sentido direto, meu amigo
Saturnino e eu, atendendo à recomendação de companheiros outros, fomos compulsarlhe
a ficha, ou melhor, o processo que lhe dera origem à existência atual, com tarefa
mediúnica de permeio.
Engolfados na consulta, lemos comovidamente a súplica do próprio Alberto, antes do
renascimento, ali nas primeiras folhas da curiosa documentação:
Senhor Jesus!
Conheço a minha posição de Espírito delinqüente e, por isso, rogo a vossa permissão
para tornar ao campo terrestre, de modo a resgatar minhas faltas. Pequei contra as leis
de Deus, oh! Divino Tutor de nossas almas, e fomentei intrigas nas quais, a mando meu,
pereceram dezenas de criaturas. Destruí lares, abusando da autoridade de que me
assenhoreei por atos de rapina, e perverti a inteligência, patrocinando o furto e o crime, a
espalhar a fome e o sofrimento, entre os meus irmãos da Humanidade! Concedei-me a
volta ao corpo terrestre, Senhor, com os necessários recursos da provação depuradora!
Quero que a lepra me desfigure, a fim de que eu pague com lágrimas constantes as
feridas que abri nos corações indefesos! Quero padecer o abandono dos entes mais
queridos, para que eu possa aprender quanto dói a deserção dos compromissos
abraçados. Rogo, Senhor, se tanto for preciso, que eu passe pela extrema penúria,
esmolando o pão que me alimente e a veste que agasalhe as feridas que mereço! Se
julgardes mais conveniente à minha depuração, dai-me a loucura ou a cegueira para que
eu possa expiar minhas faltas, seja nas angústias do hospício ou nas meditações
agoniadas da sombra!... Compreendo a extensão de meus débitos, e, se considerardes
que devo apagar-me num cérebro incapaz ou retardado, fazei-me essa concessão! Seja
através de calvários morais ou pelos mais detestados tormentos físicos, valei-me, Senhor,
e dai-me novo corpo na Terra. Quero chorar, lavando com lágrimas de fogo as nódoas de
meu passado e expor-me às mais duras humilhações a fim de regenerar minha vida!
Senhor, concedei-me as aflições de que me vejo necessitado e anulai em mim qualquer
possibilidade de reação! Fazei-me padecer, mas fazei-me viver novamente entre os
homens! Quero corrigir-me, recomeçar! Bendito seja o vosso nome, Senhor! Bendita a
vossa mão que me salva e guia!
Por baixo do requerimento comovedor, vinha a assinatura daquele que adotava agora no
mundo a personalidade de Alberto Nogueira e, logo após, lia-se o magnânimo despacho
da autoridade superior que determinava, em nome do Cristo de Deus:
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O Senhor pede misericórdia, não sacrifício. O interessado resgatará os próprios débitos,
em vida normal, com as tarefas naturais de um lar humano e de uma família, em cujo seio
encontrará os contratempos justos e educativos para qualquer criatura com necessidades
de reequilíbrio e aprimoramento, mas, por mercê do Senhor, será médium espírita, com a
obrigação de dar, pelo menos, oito horas de serviço gratuito por semana, em favor dos
irmãos necessitados da Terra, consolando-os e instruindo-os, na condição de instrumento
dos Bons Espíritos que operam a transformação do mundo, em nome de Nosso Senhor
Jesus-Cristo. Desse modo, assumirá compromisso aos trinta anos de idade, na existência
próxima, e praticará a mediunidade com o Evangelho de Jesus, até os sessenta, quando
se lhe encerrarão as oportunidades de trabalho e elevação, resgatando, assim, em
atividade de amor, os débitos que teria fatalmente de pagar através do sofrimento.
Louvado seja o Senhor!
Diante de páginas tão expressivas, decerto Saturnino e eu não precisaríamos alongar
anotações.
Partimos, no encalço do seareiro do bem, com escala pela moradia que a obsessão
atormentava.
Penetrando a cidade em que se nos situaria o serviço programado e atingindo a casa em
que deveríamos trabalhar, vimos, para logo, uma jovem vampirizada por infeliz irmão,
desde muito tempo habituado à perturbação no reino das sombras.
Imprescindível socorrer a menina ingênua, alertar-lhe a mente, sacudir-lhe as forças
profundas da alma, com informações e instruções suscetíveis de libertá-la. Nada de
perder tempo.
Depois de uma prece, conseguimos influenciar a genitora da enferma, colocando-a, com a
filha obsidiada, a caminho do templo espírita cristão, onde Alberto Nogueira estaria em
serviço, na evangelização da noite, segundo estaria por nós recolhidos na Esfera
Superior.
Entre aflição e desapontamento, não o encontramos no lugar indicado.
Formulando indagações, por via telepática, ao simpático dirigente da casa, esclareceunos
ele, em pensamento, que o amigo referido abandonara a pontualidade e aparecia
raramente.
Surgira o impasse, de vez que para auxiliar, no momento, precisávamos de Alberto.
Munidos das informações necessárias, logramos situar, novamente, mãe e filha conosco,
à procura dele.
Vinte horas e vinte minutos. Achamo-lo em bonita varanda, lendo um jornal do dia, em
larga espreguiçadeira.
Inspirada por nós, a desvalida senhora solicitou-lhe a colaboração mediúnica em socorro
à doente. Humilhou-se, rogou, chorou, mas Nogueira respondeu, inflexível:
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- Não, senhora, não lhe posso ser útil. Realmente por dois longos anos servi na condição
de médium, nas obras de caridade. Finalmente, adoeci... Aliás, não sei se adoeci ou se
me cansei. A senhora sabe, um homem que é pai de família, como eu, com deveres
enormes a cumprir, tem que zelar pela própria saúde... Preciso defender-me...
E porque a infortunada mãe insistisse, atendendo-nos aos rogos, rematou numa tirada
humorística:
- A única criatura que trabalha, dando de si sem pensar em si, que eu saiba até agora, é
só o burro.
Saímos como entramos, carregando o mesmo problema, a mesma inquietação.
Aquele espírito valoroso que pedira lepra, cegueira, loucura, idiotia, fogo, lágrimas,
penúria e abandono, a fim de desagravar a própria consciência, no plano físico, depois de
acomodar-se nas concessões do Senhor, esquecera todas as necessidades que lhe
caracterizavam a obra de reajuste e preferia a ociosidade, enquadrado em pijama, com
medo de trabalhar.
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16 - O MALFEITOR
Terminada que foi a tarefa de evangelização no templo espírita, a que emprestávamos
concurso fraterno, acompanhei Anísio Terra, amigo espiritual de muito tempo, que me
dissera estar encarregado por alguns instrutores de socorrer um moço obsesso,
ameaçado de colapso nervoso naquela mesma noite. Por espírito de aprendizado, dispusme
a seguir o companheiro que se postara rente a dois cavalheiros bem-postos, distintos
irmãos encarnados, que Terra me designou pelos nomes de Noronha e Silva, conhecidos
dele e freqüentadores da casa.
Atento ao hábito de cooperar sem perguntar, acomodei-me, ao lado de Anísio, no ônibus
que levava os dois senhores, que passaram a entretecer curioso diálogo.
- Creia que fiquei emocionado com a preleção evangélica de hoje. Há muito tempo não
ouço um orador emitindo conceitos tão felizes em torno da caridade – falou Noronha,
comovido.
- Sem dúvida... – respondeu Silva, reticencioso.
- Não acha você que os Bons Espíritos nos falaram por ele, induzindo-nos à piedade?
- Que quer dizer com isso? – disse o outro em tom de mofa.
- Nosso plano para esta noite...
- Será cumprido.
- Mas, você compreende... Existem muitos caminhos para o reajuste de alguém, sem
violência, sem escândalo.
- Ora essa! Você está com um malfeitor dentro de casa, como tudo indica, entre os
próprios empregados, e desiste de pôr a coisa em pratos limpos?!...
- Sim, sim... É preciso pensar. Provoquei a viagem de minha mulher, dei férias aos quatro,
comunicando a eles que me ausentaria ao encontro dela, a partir de hoje, na convicção
de que o autor do furto, do mês passado, venha a surgir agora, já que guardaríamos
silêncio e procuramos sair de novo, mas, depois de ouvir a preleção evangélica...
- Que é isto, homem de Deus? O Evangelho não aplaude roubalheiras...
- Mas nos chama à caridade uns com os outros.
- E a cadeia não é caridade para o delinqüente?
- Oh! Silva, não diga isso!... Por amor de Deus!...
- Você não recuará. Sou eu quem não deixa.
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- Não será melhor esperarmos a criatura infeliz com a palavra do Evangelho? Se orarmos,
pedindo o socorro de nossos guias, não será mais justo que solicitar a intervenção da
polícia?
- Não, não me venha com essa! Você é meu cunhado e os valores de minha irmã que
desapareceram são bens de família. Assumo a responsabilidade. Defenderei vocês dois e
não retrocedo no que foi resolvido. E, consultando o relógio, Silva acrescentou: - São
mais de dez horas. Entraremos no escuro, ficaremos no quarto contíguo à alcova do cofre
e, se o ladrão ou a ladra aparecerem, permitiremos que comece a revistar os guardados
e, assim que o biltre ou a megera se engolfarem na busca, trancaremos a porta, por fora,
e, em seguida, meu caro, é o telefone e a radiopatrulha.
- Mas, Silva...
- Nada de escapatória... Malfeitores não entendem de conselhos, nem de orações, são
gente criada como as bestas do campo, abandonadas aos próprios instintos... E homem
ou mulher que crescem ao sabor das próprias tendências são, quase sempre, criminosos
natos...
- Silva, o coração me dói...
- Não há razão para isso. Tudo faz crer que o ladrão estará entre os seus quatro
empregados; precisamos averiguar quem o culpado e a polícia faz isso muito bem, sem
que necessitemos punir a alguém com as próprias mãos.
- Penso que deveríamos ser mais humanos...
- Não perca tempo, filosofia tem lugar próprio.
Nesse ponto da conversa, efetuou-se a descida. Ambos os interlocutores apearam do
ônibus e rumaram para a grande residência dos Noronha, enquanto nos pusemos a
segui-los de perto.
Entraram à socapa, varando o silêncio e a sombra, e colocaram-se de plantão, num
aposento espaçoso, vizinho da câmara estreita, em que naturalmente se localizaria o
cofre da família.
Duas horas de expectativa passaram morosas, pingando laboriosamente os minutos.
Algum tempo depois de zero hora, alguém penetrou a casa... Pé ante pé, atravessou dois
salões e como quem conhecia todos os cantos do largo domicílio encaminhou-se para a
alcova indicada.
Mais alguns instantes de sofreguidão e, ao modo de gatos pulando no objetivo após longo
tempo na mira, Silva e Noronha cerraram a porta, no lado externo, enquanto o salteador
passou a gritar lancinantemente.
Fêz-se tumulto. Os dois amigos correram de um lado para outro. Acender de luzes,
chamada ao telefone, pedido de urgência à radiopatrulha. Nada de atenção para com a
voz angustiada, suplicando socorro.
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Noronha, sensível, mostrava-se acabrunhado, ao passo que Silva, em agitação, saiu à
porta de entrada, rogando a colaboração de populares, preparando espetaculosamente a
recepção das autoridades.
Terra, muito sereno, recomendou-me sustentar as forças de Noronha, enquanto se
dirigiria para a alcova, de modo a socorrer o prisioneiro, em acerba algazarra.
Poucos minutos e a sirene policial anunciou a chegada da missão punitiva.
Silva propunha providências e explicava pormenores, transeuntes detidos para a
cooperação de emergência, renteando com os guardas, ouviam, curiosos.
De aramas em punho e com avisos prévios ao malfeitor para que não reagisse, foi aberta
a porta e um jovem de seus vinte e dois anos apareceu em lágrimas. Avistando Silva,
atirou-se-lhe aos braços, clamando em desespero:
- Socorro!... Socorro, meu pai!...
Silva abaixou a cabeça, envergonhado. Encontrara ali seu próprio filho.
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17 - NOTA EM SESSÃO
Quando Anastácio, o diretor da reunião mediúnica, encaminhava as tarefas da noite para
a fase terminal, comunicou-se o Irmão Silvério para as instruções do costume.
Apontamento vai, apontamento vem, e Anastácio, o doutrinador, desfechou curiosa
pergunta ao amigo desencarnado:
- Irmão Silvério, com o devido respeito, desejávamos colher a sua opinião em torno de
grave assunto que admitimos seja problema não somente para nós, nesta casa, mas para
a maioria dos grupos semelhantes ao nosso...
- Diga o que há...
- Referimo-nos aos médiuns, depois de iniciados na tarefa espírita. Porque tanta
dificuldade para conservá-los em ação? Quantas vezes temos visto companheiros de
excelente começo, e outros, até mesmo com o merecimento de obras consolidadas,
abandonarem o serviço, de momento para outro?!... Uns foram curados de aflitivas
obsessões, outros abraçaram o apostolado, em plenitude de madureza do raciocínio...
Esposam benditas responsabilidades, de coração jubiloso, e principiam a trabalhar,
corajosos e felizes... Surge, porém, um dia em que tudo ou quase tudo largam, de quanto
prossigam credores de nossa maior consideração pela vida respeitável e digna de que
dão testemunho, seja no lar ou na profissão. Como explicar semelhante fenômeno?
O mensageiro anotou, através do médium:
- Meu irmão, estamos em combate espiritual, o combate da luz contra as trevas. Muitos
de nossos aliados sofrem pesada ofensiva por parte das forças que nos são contrárias, e
é razoável que deixem a posição, quando já não mais suportem o assédio... somos,
então, obrigados a compreendê-los e a favorecer-lhes a retirada, embora lhes
valorizemos a colaboração, com as nossas melhores reservas afetivas.
- Sim, entendo – acentuou o inquieto companheiro do plano físico -, entendo que os
agentes da sombra nos espiam e nos hostilizam, no intuito de arrasar-nos... Mas, porque
essa perseguição? Não estamos nós do lado da luz? Não somos chamados a confiar em
Deus? Acaso, não nos achamos vinculados aos princípios do Bem Eterno? Não nos
situamos, porventura, sob a vigilância de nossos Instrutores da Vida mais Alta?
O Espírito amigo sorriu e replicou, paciente:
- Anastácio, ontem à noite estive em serviço de socorro às vítimas de alguns malfeitores
encarnados, numa casa de entretenimentos públicos. Os nossos infelizes irmãos, para
atenderem aos baixos intentos de que se viam possuídos, fixaram-se, antes de tudo, no
propósito de apagarem a luz no recinto, a fim de operarem sob regime de perturbação, no
clima das trevas. Avançaram para as lâmpadas vigorosas que alumiavam a casa e, para
logo, inutilizaram-lhes a capacidade de serviço, tumultuando aquele ambiente. Depois de
darem muito trabalho aos policiais, estes, finalmente, restabeleceram a normalidade.
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Como você pode avaliar, o apoio elétrico não se modificou na retarguada, não impedindo
que as lâmpadas fôssem substituídas para que se recuperasse a iluminação. Assim
também, meu caro, em nossas realizações espíritas. Os elementos da sombra,
interessados em vampirizar a Humanidade, visam, sobretudo, a anular os médiuns que
iluminam e, notadamente, os de maior responsabilidade, de maneira que possam dominar
com os inferiores desígnios que lhes caracterizam as lamentáveis disputas. Depois de
formarem o tumulto e a treva de espírito, reclamam grande esforço dos Emissários de
Jesus para que a harmonia se refaça no serviço regular de nossa Doutrina Renovadora.
Apesar de tudo isso, porém, é preciso reconhecer que a ordem se reconstitui sempre para
a vitória do bem de todos. Entende você?
- Sim... – reticenciou o doutrinador, e aduziu: - mas, que fazer para melhorar a situação?
E Irmão Silvério rematou com serenidade e otimismo:
- Paciência e serviço, meu caro, paciência e serviço cada vez mais. Assim como, em
qualquer desastre da iluminação comum, a usina, os técnicos e a eletricidade
prosseguem inalteráveis, também nos acidentes do intercâmbio espiritual, Deus, os Bons
Espíritos e as Leis Divinas são invariavelmente os mesmos... Quanto às lâmpadas, é
imperioso substituí-las, toda vez que não mais se ajustam à tomada de força, até que o
progresso nos ofereça material de valor fixo... Compreendeu?
Anastácio sorriu por sua vez, demonstrando haver compreendido, e encerrou a sessão.
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18 - A LENDA DA CRIANÇA
Dizem que o Supremo Senhor, após situar na Terra os primeiros homens, dividindo-os em
raças diversas, esperou, anos e anos, pela adesão deles ao Bem Eterno. Criando a todos
para a liberdade, aguardou pacientemente que cada um construísse o seu próprio mundo
de sabedoria e felicidade. À vista disso, com surpresa, começou a ouvir do Planeta
Terrestre, ao invés de gratidão e louvor, unicamente desespero e lágrimas, blasfêmias e
imprecações, até que, um dia, os mais instruídos, amparados no prestígio de
Embaixadores Angélicos, se elevaram até Deus, a fim de suplicarem providências
especiais. E, prosternados diante do Todo-Poderoso, rogaram cada qual por sua vez:
Pai, tem misericórdia de nós!... Repartimos a Terra, mas não nos entendemos... Todos
reprovamos o egoísmo; no entanto, a ambição nos enlouquece e, um por um, aspiramos
a possuir o maior quinhão!...
Oh! Senhor!... Auxilia-nos!... Deste-nos a autonomia; contudo, de que modo manejá-la
com segurança? Instruíste-nos códigos de amparo mútuo; no entanto, ai de nós!...
Caímos, a cada passo, pelos abusos de nossa prerrogativas!...
Santo dos Santos, socorre-nos por piedade!... Concedeste-nos a paz e hostilizamo-nos
uns aos outros. Reuniste-nos debaixo do mesmo Sol!... Nós, porém, desastradamente,
em nossos desvarios, na conquista de domínio, inventamos a guerra... Ferimo-nos e
ensangüentamo-nos, à maneira de feras no campo, como se não tivéssemos, dada por ti,
a luz da razão!...
Pai Amantíssimo, enriqueceste-nos com os preceitos da justiça; todavia, na disputa de
posições indébitas, estudamos os melhores meios de nos enganarmos reciprocamente, e,
muitas vezes, convertermos as nossas relações em armadilhas nas quais os mais
astuciosos transfiguram os mais simples em vítimas de alucinadoras paixões... Ajuda-nos
e liberta-nos do mal!...
Ó Deus de Infinita Bondade, intervém a nosso favor! Inflamaste-nos os corações com a
chama do gênio, mas habitualmente resvalamos para os despenhadeiros do vício... Em
muitas ocasiões, valemo-nos do raciocínio e da emoção para sugerir a delinqüência ou
envenenar-nos no desperdício de forças, escorregando para as trevas da enfermidade e
da morte!...
Conta-se que o Todo-Misericordioso contemplou os habitantes da Terra, com imensa
tristeza, e exclamou, amorosamente:
Ah! meus filhos!... meus filhos!... Apesar de tudo, eu vos criei livres e livres sereis para
sempre, porque, em nenhum lugar do Universo, aprovarei princípios de escravidão!...
Oh! Senhor – soluçaram os homens -, compadeça-te então de nós e renova-nos o
futuro!... Queremos acertar, queremos ser bons!...
O Todo-Sábio meditou, meditou...
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Depois de alguns minutos, falou comovido:
Não posso modificar as Leis Eternas. Dei-vos o Orbe Terreno e sois independentes para
estabelecer nele a base de vossa ascensão aos Planos Superiores. Tereis,
constantemente e seja onde for, o que fizerdes, em função de vosso próprio livre
arbítrio!... Conceder-vos-ei, porém, um tesouro de vida e renovação, no qual, se
quiserdes, conseguirei engrandecer o progresso e abrilhantar o Planeta... Nesse escrínio
de inteligência e de amor, disporeis de todos os recursos para solidificar a fraternidade,
dignificar a ciência, edificar o bem comum e elevar o direito... De um modo ou de outro,
todos tereis, doravante, esse tesouro vivo, ao vosso lado, em qualquer parte da Terra, a
fim de que possais aperfeiçoar o mundo e santificar o porvir!...
Dito isso, o Senhor Supremo entrou nos Tabernáculos Eternos e voltou de lá trazendo um
ser pequenino nos braços paternais...
Nesse augusto momento, os atormentados filhos da Terra receberam de Deus a primeira
criança.
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19 - JESUS E SIMÃO
Retirava-se Jesus do lar de Jeroboão, filho de Acaz, em Corazim, para atender a um
pedido de socorro em casa próxima, quando quatro velhos publicanos apareceram, de
chofre, buscando-lhe o verbo reconfortante.
Haviam recebido as notícias do Evangelho do Reino, tinham fome de esclarecimento e
tranqüilidade, suplicavam palavras que os auxiliassem na aquisição de paz e esperança.
O Mestre contemplou-lhes a veste distinta e os rostos vincados de funda inquietação, e
compadeceu-se.
Instado, porém, por mensageiros que lhe requisitavam a presença à Excelso Benfeitor
chamou Simão Pedro e pediu-lhe, ante os consulentes amigos:
- Pedro, nossos irmãos chegam à procura de renovação e de afeto... Rogo sejas, junto
deles, o portador do Bem Eterno!... Ampara-os com a verdade, prossigamos em nossa
tarefa de amor...
O apóstolo relanceou o olhar pelos circunstantes e, tão logo se viu a sós com eles, fêz-se
arredio e casmurro, esperando-lhes a manifestação.
Foi Eliúde, o joalheiro e mais velho dos quatro, que se ergueu e solicitou com modéstia:
- Discípulo do Senhor, ouvimos a Nova Revelação e temos o espírito repleto de júbilo!...
Compreendemos que o Messias Nazareno vem da parte do Todo-Poderoso arrancar-nos
da sombra para a luz, da morte para a vida... Que instruções e bênçãos nos dás, oh!
dileto companheiro das Boa Novas? Temos sede do reino de Deus que o Mestre anuncia!
Aclara-nos a inteligência, guia-nos o coração para os caminhos que devemos trilhar!...
Simão, contudo, de olhar coruscante, qual se fora austero zelador de consciências
alheias, brandiu violentamente o punho fechado sobre a mesa, e falou, ríspido:
- Conheço-vos a todos, oh! víboras de Coramim!...
E, apontando o dedo em riste para Eliúde, aquele mesmo que tomara a iniciativa do
entendimento, acusou-o, severamente:
- Que pretendes aqui, ladrão das viúvas e dos órfãos? Sei que ajuntaste imensa fortuna à
custa de aflições alheias. Tuas pedras, teus colares, teus anéis!... que são eles senão as
lágrimas cristalizadas de tuas vítimas? Como consegues pronunciar o nome de Deus?...
Voltando-se para o segundo, na escala das idades, esbravejou:
- Tu, Moabe? A que viestes? Ignoras, porventura, que não te desconheço a miséria
moral? Como te encorajaste a vir até aqui, após extorquir os dois irmãos, de quem
furtaste os bens deixados por teu pai? Esqueces de que um deles morreu consumido de
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penúria e de que o outro enlouqueceu por tua causa, sem qualquer recurso para a própria
manutenção?
Em seguida, dirigiu-se ao terceiro dos circunstantes:
- Que buscas, Zacarias? Não te envergonhas de haver provocado a morte de Zorobatel, o
sapateiro, comprando-lhe as dívidas e atormentando-o, através de execráveis cobranças,
no só intuito de roubar-lhe a mulher? Já tens o fruto de tua caça. Aniquilaste um homem e
tomaste-lhe a viúva... Que mais queres, infeliz?
E, virando-se para o último, gritou:
- Que te posso dizer, Ananias? Há muitos anos, sei que fazes o comércio da fome,
exigindo que a hortaliça e o leite subam constantemente de preço, em louvor de tua
cupidez... Jamais te incomodaste com as desventuradas crianças de teu bairro, que
falecem na indigência, à espera de tua caridade, que nunca apareceu!...
Simão alçou os braços para o teto, como quem se propunha irradiar a própria indignação,
e rugiu:
- Súcia de ladrões, bando de malfeitores!... O Reino de Deus não é para vós!...
Nesse justo momento, Jesus reentrou na sala, acompanhado de alguns amigos, e,
entendendo o que se passava, contemplou, enternecidamente, os quatro publicanos
arrasados de lágrimas, ao mesmo tempo que se abeirou do pescador amigo, indagando:
- Pedro, que fizeste?
Simão, desapontado à frente daqueles olhos cuja linguagem muda tão bem conhecia,
tentou justificar-se:
- Senhor, tu disseste que eu deveria amparar estes homens com a verdade...
- Sim, eu falei “amparar”, nunca te recomendaria aniquilar alguém com ela...
Assim dizendo, Jesus aceitou o convite que Jeroboão lhe fazia para sentar-se à mesa e,
sorrindo, insistiu com Eliúde, Moabe, Zacarias e Ananias para que lhe partilhassem a
ceia.
Organizou-se, para logo, bela reunião, na qual o verbo se mostrou reconfortante e
enobrecido.
Conversando, o Mestre exaltou a Divina Providência de tal modo e se referiu ao Reino de
Deus com tanta beleza, que todos os comensais guardavam a impressão de viver no
futuro, em prodigiosa comunhão de interesse e ideais.
Quando os quatro publicanos se despediram, sentiam-se diferentes, transformados,
felizes...
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Jesus e Simão retiraram-se igualmente e, quando se acharam sozinhos, passo a passo,
ante as estrelas da noite calma, o rude pescador exprobrou o comportamento do Divino
Amigo, formulando perguntas, através de longos arrazoados.
Se era necessário demonstrar tanto carinho para com os maus, como estender auxílio
aos bons? Se os homens errados mereciam tanto amor, que lhes competia fazer, a
benefício dos homens retos?
O Cristo escutou as objurgações em silêncio e, quando o aprendiz calou as derradeiras
reclamações, respondeu numa frase breve:
- Pedro, eu não vim à Terra para curar os sãos.
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20 - ENCONTRO SINGULAR
- Escute, moço... Se é verdade que o senhor escreve para a Terra, conte o meu caso,
amparando alguém...
A observação procedia de um rapaz desencarnado, em deplorável situação num vale de
suicidas.
O seu corpo, que se adensava, pesado e escuro, se retorcia, qual se estivesse fixado em
agitação permanente, e, na garganta, se lhe viam arroxeadas feridas, alentadas decerto
pelos pensamentos de angústia a lhe percutirem, constantes, na forma atormentada.
Percebi-lhe a condição de enforcado e diligenciei colocá-lo à vontade:
- Fale, meu irmão, quero ouví-lo e aprender.
E o jovem, desenfaixado do envoltório físico, desmanchou-se em agoniadas recordações:
- Sabe?... Fui no mundo uma vítima do copo... Tudo começou numa festa... Lembro-me...
Um convite inocente... Brincadeira... Um colega abeirou-se de mim com um frasco de
bebida licorosa... Em seguida, a intimação amiga: um trago, só um trago... Recusei... Não
tinha hábito... Em derredor de nós a roda alegre e expectante... “Então, você – zombeteou
o companheiro sarcástico -, então você é dos tais... Um maricas... Filhinho da mamãe...
Que faz você com as calças?...” Ignorava que aceitar um desafio desses era perigoso
para mim... Os outros bebiam e gargalhavam... Acabei aderindo... Engoli uma talagada,
outra e mais outra... Depois, a cabeça zonza e o prazer esfuziante... No dia seguinte, a
necessidade do aperitivo... E, dos aperitivos, passei à bebedeira inveterada... Alfaiate
bem pago, a breve trecho comecei a deteriorar-me em serviço... Erros, faltas, pileques,
ressacas... Terminadas as tarefas cotidianas, trocava o lar pelo bar... E sempre o quadro
lastimável, noite a noite... Amigos me apoiando até a casa e, na porta, a cansada
mãezinha a esperar-me... Constantemente, a mesma voz doce, insistindo e abençoando...
“Meu filho, não beba! Não beba mais!...” Minha reação negativa nunca falhava...
Esbravejava, ameaçava, premindo-lhe os braços trêmulos... Na manhã imediata, os
remorsos e as promessas de corrigenda e reajuste... Em sobrevindo a noite, porém,
novas carraspanas e disparates... Em várias ocasiões, ao despertar, surpreendia pratos e
copos quebrados e a informação estranha de que fora eu o culpado... Estivera em
pavoroso delírio, perpetrando desatinos e violências... Aborrecia-me, arrependia-me... No
entanto, a sede de álcool sempre mais forte... As ocorrências infelizes se sobrepunham
umas às outras, até que, um dia, acordei no cárcere... Oh! porquê? Porque a prisão?
Horrorizou-me a resposta do guarda... “Você é um assassino”... Eu? Um assassino?... E
ele: “sim, você, “seu bêbado”, você matou”... Solucei, esmagado de sofrimento... O peito
parecia rebentar-me e gritei: “meu Deus, meu Deus, que será de minha mãe?!... Aí, veio a
revelação terrível: “foi ela própria que você destruiu... sua mãe, sua vítima”... Não
acreditei... Pedi provas... Levado à residência sob a custódia de alguns soldados, ainda
pude vê-la cadaverizada na urna... Mostrava na garganta os sinais de estrangulamento...
Em torno de nós, as testemunhas... Os que me haviam visto de perto com os dedos
cravados na carne materna, em momento de insânia... Ajoelhei e gritei debalde...
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Recolhido à cadeia, positivamente dementado, aguardei a noite alta e, aproveitando
algumas tiras de cobertor, enforquei-me... Desde então, sou um farrapo que vive, uma
chaga que pensa... Se minha história triste pode servir a benefício de alguém, fale dela
aos outros, aos que se acham no caminho terrestre, na bica da invigilância ou do
desespero...
Anotei, ali mesmo, o episódio amargoso que alinhavo nesta crônica e deixo o relato, com
as próprias palavras do desventurado protagonista, em nossa apresentação do assunto,
para estudo e reflexão dos amigos reencarnados que porventura nos leiam.
Entretanto, recordando o meu próprio cepticismo no tempo em que estadeava o
enxudioso uniforme carnal, entre os homens do plano físico, não estou muito certo de que
alguém possa realmente acreditar em nós.
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21 - MATERIALISMO E ESPIRITISMO
Conta-se que o Dr. Adolfo Bezerra de Menezes orientava, no Rio, uma reunião de
estudos espíritas, com a palavra livre para todos os circunstantes, quando, após
comentários diversos, perguntou se mais alguém desejava expressar-se nos temas da
noite.
Foi então que renomado materialista, seu amigo pessoal, lhe dirigiu veemente
provocação:
- Bezerra, continuo ateu e, não somente por meus colegas mas também por mim, venho
convidá-lo a debate público, a fim provarmos a inexpugnabilidade de Materialismo contra
as pretensões do Espiritismo. E previno a você que o Materialismo já levantou extensa
lista de médiuns fraudulentos; de chamados sensitivos que reconheceram os seus
próprios enganos e desertaram das fileiras espíritas; dos que largaram em tempo o
suposto desenvolvimento das forças psíquicas e fizeram declarações, quanto às mentiras
piedosas de que se viram envoltos; dos ilusionistas que operam em nome de poderes
imaginários da mente; e, com essa relação, apresentaremos outro rol de nomes que o
Materialismo já reuniu, os nomes dos experimentadores que demonstraram a inexistência
da comunicação com os mortos; dos sábios que não puderam verificar as fictícias
ocorrências da mediunidade; dos observadores desencantados de qualquer testemunho
da sobrevivência; e dos estudiosos ludibriados por vasta súcia de espertalhões...
Esperamos que você e os espíritas aceitem o repto.
Bezerra concentrou-se em preces, alguns instantes, e, em seguida, respondeu, aliando
energia e brandura:
- Aceitamos o desafio, mas tragam também ao debate aqueles que o Materialismo tenha
soerguido moralmente no mundo; os malfeitores que ele tenha regenerado para a
dignidade humana; os infelizes aos quais haja devolvido o ânimo de viver; os doentes da
alma que tenha arrebatado às fronteiras da loucura; as vítimas de tentações escabrosas
que haja restituído à paz do coração; as mulheres infortunadas que terá arrancado ao
desequilíbrio; os irmãos desditosos de quem a morte roubou os entes mais caros, a a cujo
sentimento enregelado na dor terá estendido o calor da esperança; as viúvas e os órfãos,
cujas energias terá escorado para os caluniados aos quais terá ensinado o perdão das
afrontas; os que foram prejudicados por atos de selvageria social mascarados de
legalidade, a quem haverá proporcionado sustentação para que olvidem os ultrajes
recebidos; os acusados injustamente, de cujo espírito rebelado terá subtraído o fel da
revolta, substituindo-o pelo bálsamo da tolerância; os companheiros da Humanidade que
vieram do berço cegos ou mutilados, enfermos ou paralíticos, aos quais terá tranqüilizado
com princípios de justiça, para que aceitem pacificamente o quinhão de lágrimas que o
mundo lhes reservou; os pais incompreendidos a quem deu força e compreensão para
abençoarem os filhos ingratos e os filhos abandonados por aqueles mesmos que lhes
deram a existência, aos quais auxiliou para continuarem honrando e amando os pais
insensíveis que os atiraram em desprezo e desvalimento; os tristes que haja imunizado
contra o suicídio; os que foram perseguidos sem causa aparente, cujo pranto terá
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enxugado nas longas noites de solidão e vigília, afastando-os da vingança e da
criminalidade; os caídos de toda as procedências, a cujo martírio tenha ofertado apoio
para que se levantem...
Nesse ponto da resposta, o velho lidador fêz uma pausa, limpou as lágrimas que lhe
deslizavam no rosto e terminou:
- Ah! meu amigo, meu amigo!... Se vocês puderem trazer um só dos desventurados do
mundo, a quem o Materialismo terá dado socorro moral para que se liberte do cipoal do
sofrimento, nós, os espíritas, aceitaremos o repto.
Profundo silêncio caiu na pequena assembléia, e, porque o autor da proposição baixasse
a cabeça, Bezerra, em prece comovente, agradeceu a Deus as bênçãos da fé e encerrou
a sessão.
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22 - CRISTO E VIDA
Meu amigo. Compreendendo a importância do Evangelho na seara espírita, você
pergunta:
- “Já que os amigos espirituais não acreditam na salvação pela fé e sim pelas obras, sem
as quais a fé se revestiria de quase nenhum valor, diga-nos, Irmão X, sem muitas
palavras, que significa a influência de Jesus no mundo?”
Antes de tudo, queremos afirmar que o Cristo de Deus, sob qualquer ângulo em que seja
visto, é e será sempre o Excelso Modelo da Humanidade. Mas, a pouco e pouco, o
homem compreenderá que, se precisamos de Jesus sentido e crido, não podemos
dispensar Jesus compreendido e aplicado. E já que você nos pede uma síntese, dar-lheei
uma série de vinte definições do Senhor na experiência terrestre, por nós recolhidas em
aula rápida de um instrutor da Espiritualidade Maior.
Cristo na Existência: Caridade.
Cristo no Lar: Harmonia.
Cristo no Templo: Discernimento.
Cristo na Escola: Educação.
Cristo na Palavra: Brandura.
Cristo na Justiça: Misericórdia.
Cristo na Inteligência: Proveito.
Cristo no Estudo: Orientação.
Cristo no Sexo: Responsabilidade.
Cristo no Trabalho: Eficiência.
Cristo na Profissão: Idoneidade.
Cristo na Alegria: Continência.
Cristo dna Dor: Resignação.
Cristo nas Relações: Solidariedade.
Cristo na Obrigação: Diligência.
Cristo no Cansaço: Refazimento.
Cristo no Repouso: Disciplina.
Cristo no Compromisso: Lealdade.
Cristo no Tempo: Serviço.
Cristo na Morte: Vida Eterna.
Aqui estão resultados da presença de Jesus em apenas alguns aspectos de nossos
movimentos na Terra.
Você, contudo, provavelmente voltará à carga, indagando se nós, os espíritas
desencarnados e encarnados, já atingimos semelhantes equações, e antecipo a resposta,
informando a você que Jesus em nossa fraqueza é luz de esperança e, por isso mesmo,
confiantes nele – o Mestre e Senhor -, estamos certos de que, um dia, nós todos faremos
do evangelho o que devemos fazer.
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23 - LIÇÃO NUMA CARTA
Ao lado de João Firpo, desencarnado ao impacto do fogo que lhe devorara a casa velha,
numa noite de expiação e de assombro, estava a carta, datada por ele quatro dias antes,
endereçada a um irmão e que o morto evidentemente deitaria ao correio, na primeira
oportunidade.
Enquanto bombeiros improvisados lhe retiravam o corpo inerte e benfeitores da Vida
Maior lhe amparavam o Espírito liberto em doloroso trauma, copiei a curiosa missiva que
revoava nas cinzas da tragédia, a fim de transmiti-la, com objetivos de estudo e
meditação, aos companheiros do mundo.
Eis, assim, na íntegra, o valioso documento:
Meu caro Didito:
Espero que estas linhas encontrem você com saúde e paz, junto dos nossos.
Graças a Deus, estou bem. Você se afligiu à-toa com a notícia de meu resfriado.
Tudo não passou de um defluxo de brincadeira. Estou mais forte que a peroba do
Brejo Grande, comendo por quatro cablocos na roça. Seja velho quem quiser. Com
os meus sessenta e sete janeiros, não passo sem banho no rio e tutu no prato.
Moro sozinho porque não nasci para confusão. Dona Belinha vem diariamente
fazer-me as refeições, assear a casa e isso chega.
Sobre o caso do sonho que você teve comigo, conforme seu conselho fui à reunião
espírita no sítio do Totonho. A mulher dele é médium de verdade. Há muito tempo
eu não assistia a uma incorporação tão perfeita. Realmente, mãe falou por ela. Não
tenho dúvida. Aquela voz boa e cansada que nós dois não esquecemos. Coitada
de mãe! Está preocupada comigo, não sei porquê. Falou muito sobre a morte,
coisa em que não penso. Fiz todos os exames de saúde que o médico
recomendou, no mês passado, e tudo deu certo. Positivo. Por outro lado, não viajo.
Porque será que a velha mostrou medo de que eu venha a bater a pacuera, de um
momento para outro?
Imagine que ela abortou um segredo. Disse coisa séria quanto ao dinheiro que
venho guardando para a formação do nosso lar de velhinhos, compromisso antigo.
Avalie você que mãe conversou, conversou e, depois, me pediu empregar enorme
importância na compra do terreno para a obra, aconselhando-me colocar a parte
restante com amigos responsáveis para o custeio na construção. Considere o meu
aperto. Que é que há? Não é fácil entregar assim de mão beijada quase todas as
minhas economias de trinta anos. Concordo com a providência, pois temos nosso
projeto e promessa há mais de vinte anos. Não negarei os cobres, mas preciso de
um mês para pensar. Terrenos e amigos já estão apalavrados, desde o nosso
encontro aqui, há tempos, mas dinheiro, meu caro!... Não posso aceitar o negócio,
assim do pé para a mão. Você sabe que a velha sempre foi aflita. Quando queria
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uma coisa, queria mesmo. Tenho conservado minhas economias com cautela. Não
confio em bancos e em mãos dos outros, a grana começa prometendo bons juros e
depois cria pernas para correr e cair no buraco. É impossível tratar de problema
assim tão grave, sem prazo para refletir. Disse mãe que já tive muito tempo para
resolver, mas eu não acho. Comunico a você que não recusarei a doação;
entretanto, o assunto não é sangria desatada. No mês que vem, cuidaremos de
tudo.
Sem mais, venha, logo que possa, comer de nosso feijão bravo e receba um
abração do mano.
Firpo
Esta era a carta que o rico desencarnado tinha escrito e aguardava ensejo para mandar.
O Plano Espiritual lhe havia dado, cinco dias antes, em aviso urgente para a felicidade
dele próprio. João, no entanto, exigia prazo a fim de atender. Acontece, porém, que a
provação não conseguira esperar. Acontece, porém, que a provação não conseguira
esperar.
Um incêndio de grandes proporções no madeiramento da pequena moradia lavrara, noite
alta, obrigando-o a largar o corpo sufocado sem remissão.
O dinheiro a que se referira, com tanto carinho, decerto jazeria ali, inteiramente queimado,
porque metal não havia.
De interessante nos escombros, apenas a carta que nos pareceu um recado precioso,
lançado pelo livro da vida, sobre um monte de pó.
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24 - O BURRO MANCO
Antes da reunião mediúnica, o problema de Espíritos e médiuns era o tema na
conversação dos companheiros.
- Não compreendo – dizia a irmã Fortunata – porque os benfeitores da Vida Maior
haveriam de tomar criaturas de má vida para instrumentos de suas manifestações, se a
própria Doutrina Espírita é tão clara em maioria de afinidades...
- Meus amigos – atalhava Sidônio Pires, advogado e diretor do grupo -, se o trabalho
fôsse confiado pelos Céus apenas aos fortes e aos sábios, que restaria aos fracos e aos
ignorantes? A mediunidade não será comparável a uma riqueza de espírito que Deus
distribui entre os bons e os menos bons, tendo em conta o progresso e o aperfeiçoamento
de todos? Nesse sentido, é claramente compreensível que, em mediunidade, como em
qualquer ramo da experiência humana, cada qual receberá pelo que faça...
- De acordo – objetou o irmão Luís de Souza -, mas o problema é muito complexo. Para
ilustrar, pergunto: como acreditar que um Espírito culto venha trazer determinada
mensagem por medianeiro que se expressa em língua exótica?
A irmã Leopoldina fitou o opositor, de frente, e contradisse:
- E se você fôsse, por exemplo, um médico, longe de casa e incapaz de viajar, com
necessidade de transmitir um recado à família, com relação a determinado enfermo?
Vamos que você não encontrasse uma pessoa com os seus conhecimentos e modos e
tão-só dispusesse de um índio domesticado, que falasse imperfeitamente o idioma? que
faria?
- Instruiria o índio, até que ele pudesse reproduzir corretamente as minhas palavras.
- E se o caso estivesse revestido de urgência extrema? – insistiu Dona Leopoldina – um
problema de vida ou morte em criatura profundamente ligada ao seu coração?
- Escreveria um bilhete.
- Mas se não houvesse uma folha de papel ao seu dispor?
Observando que Luís de Souza começava a irritar-se, Dona Catarina interferiu,
conselheiral:
- Efetivamente, a questão não é simples. Que há muita coisa esquisita, em mediunidade,
há mesmo. Por mais se pense no assunto, em toda parte existem problemas sem
solução. Devemos estudar cada vez mais. Cá por mim, não estendo gente má, falando
por Espíritos bons...
O relógio, porém, marcava o início das tarefas e a palestra foi abandonada.
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No transcurso da sessão, os encargos diversos foram atendidos e, no encerramento das
atividades gerais, porque o Irmão Gustavo, mentor espiritual da casa, se preparasse para
as despedidas, o Dr. Sidônio, diretor da equipe, indagou se ele registrara o entrechoque
de opiniões sobre médiuns e Espíritos, ali havido momentos antes, ao que o paciente
orientador respondeu:
- Ouvi tudo, meus filhos.
- E pode, por favor, dar-nos o seu ponto de vista?
O guia sorriu pelo rosto do médium e considerou:
- Antes de tudo, todos estamos na escola da vida e cada qual, no setor de aprendizado
em que se encontre, deve doar o máximo pelo autoburilamento. Vocês não podem perder
a vocação do melhor e precisam intensificar lições e purificar ensinamentos. Aperfeiçoar
tudo e elevar sempre. Quanto à prática do bem, honorifiquemos cada trabalhador na
sinceridade e no proveito que demonstrem. Vocês falam em instrumentos mediúnicos
deficitários, mas não ignoram que os talentos psíquicos são comuns a todos. Não seria
justo que vocês, meus filhos, cada qual na pauta dos próprios recursos, tentassem
oferecer alguma colaboração aos desencarnados amigos? Que pusessem de lado
escrúpulos tolos e diligenciassem servir como intermediários, entre o Socorro Divino e a
necessidade humana?
E ante o grupo atento, o Irmão Gustavo narrou, com graça:
- Com respeito a Espíritos e médiuns, quero contar a vocês um episódio simples de minha
própria experiência. Eu era médico em São Joaquim da Barra, no interior de S. Paulo,
quando fui chamado para assistir um doente, num sítio a vinte e seis quilômetros. Nesse
tempo, as viagens de carro eram muito raras e o animal de sela era o nosso melhor
veículo. Acontece que, no terceiro dia de minha vigília profissional no referido sítio, o meu
cavalo adoeceu, justamente quando recebi por mensageiro que seguia de São Joaquim
para Ribeirão Preto o recado de um amigo, solicitando minha presença à cabeceira da
esposa, prestes a dar à luz. Conhecia o caso e sabia que minha cliente arrostaria com
embaraços que lhe poderiam ser fatais. O enfermo a que prestava concurso acusava
melhoras e, por isso, afobei-me. Dei-me pressa e procurei o Coronel Cândido, proprietário
de excelentes animais; entretanto, o estimado amigo informou-me que só possuía cavalos
árabes, de imenso valor, garanhões de fama, e não podia concordar em colocá-los na
estrada com a obrigação de suar para cavaleiros. Busquei o sitiante João Pedro, mas
João Pedro alegou que apenas dispunha de Manga-largas puros, de alto preço, e não
estava inclinado a prejudicá-los. Corri até à vivenda de Amaro Silva, dono de grande
haras; no entanto, ainda aí, somente existiam animais nobres e selecionados, que não me
podiam ajudar em coisa alguma. Fui, então, à tapera de Tonico Jenipapo, um pobre
cliente nosso, expondo-lhe o meu problema. Tonico não teve dúvida. Desceu ao quintal e
trouxe de lá um asno arrepiado, e apresentou: “Doutor, este burro é manso e lerdo, mas,
se serve...” Não houve mais conversa. Arreamos o animal e, agüentando espora e taça,
tropeçando e manquitolando, o burro me colocou nas ruas de São Joaquim, para o
desempenho de meu dever, a que atendi com absoluto êxito.
Depois de expressiva pausa, o guia rematou:
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- Vocês estudem sempre. Passem a limpo quaisquer fenômenos e exercícios de
mediunidade nos cadernos de lições da nossa Renovadora Doutrina; no entanto, em
matéria de serviço aos outros, respeitemos cada obreiro no lugar que lhe é próprio.
Pensem nisso, porquanto, apesar da era do automóvel e do avião, em que vocês se
acham, é possível surja um dia em que venham a precisar de um burro manso, capaz de
ser a solução de muita necessidade e amparo de muita gente.
O mentor afastou-se e, terminada a tarefa, a equipe dispersou-se com a promessa de
examinar a comunicação e debatê-la na sessão seguinte.
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25 - A CURA
Encontraram-se, um dia, o Mensageiro do Evangelho e o Fornecedor de Milagres, ao pé
do Homem Doente que rogava socorro, e travou-se entre eles curioso debate.
O HOMEM DOENTE – Aí de mim! A enfermidade me devora e, além disso, inteligências
transviadas me atormentam a vida!... Amparai-me, por amor de Deus!...
O MENSAGEIRO DO EVANGELHO – Antes de tudo, tem paciência, meu filho!... A passo
e passo, Jesus refará tuas forças... Não olvides que te achavas no mundo espiritual, antes
de tua reencarnação, agoniado qual te vês, e que, por este motivo, antes da tranqüilidade
para o corpo, importa a segurança da alma... Sofrimento é caminho para a verdadeira
restauração.
O FORNECEDOR DE MILAGRES – Ninguém precisa solenizar o desequilíbrio, dar-te-ei
cura rápida...
O HOMEM DOENTE – Necessito viver, trabalhar...
O MENSAGEIRO DO EVANGELHO – Desfrutarás os dons da existência, com alegria e
respeitabilidade, agindo e elevando-te, em meio de teus próprios impedimentos. A dor
ser-te-á mestra bendita e, quando se afaste de tí, deixar-te-á precioso certificado de
experiência.
O FORNECEDOR DE MILAGRES – Velharia!... Qualquer um pode instruir-se sem dor...
O MENSAGEIRO DO EVANGELHO – Unicamente quando haja construído a harmonia
divina no mundo de si mesmo.
O HOMEM DOENTE – Dizei-me!... quanto tempo tenho a dispor neste corpo?
O MENSAGEIRO DO EVANGELHO – Nada menos de oitenta anos; entretanto, nem
sempre serás doente assim... A pouco e pouco, recuperar-te-ás com o apoio do Cristo
para encerrares dignamente a tua atual romagem terrestre.
O FORNECEDOR DE MILAGRES – Porque não buscar a imediata libertação da
dificuldade para melhor proveito do tempo?
O MENSAGEIRO DO EVANGELHO – O corpo é reflexo do espírito e, muitas vezes,
aquilo que interpretamos por exoneração da prova é desamparo moral.
O HOMEM DOENTE – Que fazer?
O FORNECEDOR DE MILAGRES – Aceitar o prodígio que te oferto... Lógico!...
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O MENSAGEIRO DO EVANGELHO – Que adianta restaurar brilhantemente o traje
externo, sem extinguir a ferida que a roupa cobre? Ensinou-nos Jesus que o Reino de
Deus não vem com aparências exteriores...
O FORNECEDOR DE MILAGRES – Teorias!... Cada qual deve cuidar do próprio bemestar
com a ligeireza possível...
O MENSAGEIRO DO EVANGELHO – Só existe o bem-estar que a consciência autoriza.
O HOMEM DOENTE – Apesar dos vossos desacordos, estou enfermo e quero sarar...
O MENSAGEIRO DO EVANGELHO – Curar-te-ás; todavia, deves fazê-lo, com a bênção
de Jesus, para sempre. A cura vem das entranhas do ser, como a árvore procede do
âmago da semente...
O FORNECEDOR DE MILAGRES – Lirismo de pregadores!... Garanto-te a saúde perfeita
em poucas horas...
O MENSAGEIRO DO EVANGELHO – A saúde ilusória da carne.
O FORNECEDOR DE MILAGRES – De que outra necessitará um homem no mundo?!...
O HOMEM DOENTE – Anseio por melhoras... Estou arrasado de corpo e cercado de
inimigos!
O FORNECEDOR DE MILAGRES – Porei teus adversários na cadeia para que te
devolvam a paz...
O MENSAGEIRO DO EVANGELHO – Deus usa o tempo e não a violência. Inimigos, não
transformados em amigos, um dia voltarão...
O FORNECEDOR DE MILAGRES – Bobagem!... Por que razões estará uma pessoa
condenada à presença de desafetos, quando pode arredá-los?
O MENSAGEIRO DO EVANGELHO – Adversários são instrutores. Habituando-nos a
suportá-los na convivência, seguiremos, por fim, na estrada de luz que o Senhor nos
traçou ao recomendar-nos; “amai-vos uns aos outros como eu vos amei...”
O HOMEM DOENTE – Meus padecimentos são enormes...
O MENSAGEIRO DO EVANGELHO – Eleva-te à cura verdadeira, aprendendo com a dor
e com o trabalho a imunizar-te contra a ilusão que te faria cair em provações maiores.
O FORNECEDOR DE MILAGRES – Porque não conseguirá este homem escalar o monte
do próprio equilíbrio, sem aflição e enfermidades?
O MENSAGEIRO DO EVANGELHO – Ninguém consegue medir a própria resistência.
Mutilados existem que reclamam escoras, a fim de se movimentarem... Doença e
dificuldades são, algumas vezes, as muletas de que carecemos em longos períodos de
reajuste.
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O FORNECEDOR DE MILAGRES – Não aprovo, dou vantagens imediatas.
O HOMEM DOENTE – Não me concederia Deus uma ordem direta?
O MENSAGEIRO DO EVANGELHO – Repito que a violência não consta da Didática
Divina. Deus nos ama como pai, considera-nos seus filhos, não escravos...
O FORNECEDOR DE MILAGRES – Se tens o direito de optar, é inútil que hesites. Muito
melhor que eu te liberte hoje, que persistires em sofrimento até não sei quando...
O HOMEM DOENTE – Como agir?
O MENSAGEIRO DO EVANGELHO – És sempre livre na escolha...
O Homem Doente aceitou, decidido, a mão que o Fornecedor de Milagres lhe estendia e,
para logo, se viu restabelecido, eufórico.
Em seis meses, impressionado pelas aparências físicas dominantes, realizou matrimônio
com riquíssima herdeira e senhoreou vasta fortuna com destacada posição nos galarins
sociais... Entretanto, o ambiente mais elevado – clima natural e adequado para os
homens de espírito sadio -, para ele, o Homem Doente da alma, se converteu em trapézio
para queda infeliz.
Foi assim que, em seis meses, atingiu culminâncias; em doze, complicou-se em
aventuras delituosas; em quinze, confiou-se ao abuso do álcool; em vinte, largou-se à
morfina; e, passados precisamente dois anos, antes dos trinta e seis de idade, desceu
para novos precipícios de sombra, num suicídio mascarado de acidente espetacular.
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26 - PESQUISAS
Os dois brasileiros, em grande cidade do exterior, rumavam para importante instituto de
pesquisas sobre as ciências do Espírito, e comentavam assuntos de mediunidade, em
expressivo diálogo.
- Espero colhermos excelentes boas novas, em matéria de sobrevivência...
- Imagine você! O intercâmbio, entre os dois mundos, positivamente demonstrado...
- É a Terra Melhor à vista, a mensagem do mundo espiritual proclamada aos quatro
ventos!
- Será o Evangelho de Jesus finalmente cumprido pelos homens... Com apoio na
inteligência e na técnica, é impossível que as criaturas não se rendam à verdade.
- Estou realmente comovido, de vez que vamos auscultar realizações de alta ciência.
- Ouvi dizer que os experimentos prosseguem adiantados...
- Muita coisa já feita, patenteando, de modo insofismável, a existência do Espírito.
- Observe que é isso o de que mais precisamos. Dizem os benfeitores desencarnados
que as manifestações mediúnicas devem ser livres, correr como fontes, para que se
evitem certas determinações do poder humano sobre os desígnios da Espiritualidade
Superior, no entanto.
- Lá em nosso grupo dizem o mesmo, afirmam que o Reino de Deus será edificado sem
violência, que a mediunidade em si não pode ser controlada, sem graves prejuízos, pelos
recursos políticos, que os valores da Vida Maior precisam alcançar a esfera de todas a
criaturas, afim de serem passados pelo crivo de rigoroso discernimento...
- Qualquer Espírito fala à vontade, qualquer médium faz-se ouvido... Isso, sem dúvida, é
tolerância, mas é qualquer coisa de bagunça também...
- Liberdade para todos os instrumentos e, com isso, o atraso das edificações corretas e
duradouras...
- E o tempo lá se vai... Quem agüenta?
- Os amigos desencarnados asseveram que todos somos filhos de Deus, que
necessitamos estender-nos as mãos, acolhendo as manifestações da Espiritualidade por
ensinamentos de escola incessante, esquivando-nos à pressão e ao descontentamento;
que, se o capricho dos homens entrar no assunto, teremos perturbações insanáveis por
muitos e muitos anos... Sabe o que disse o Irmão Batuíra, numa de nossas reuniões?
Comparou a revelação espiritual à luz do Sol, declarou que a maioria das criaturas
humanas ainda não é capaz de distribuir nem mesmo parcelas da força do grande astro, a
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benefício de todos, porque, se isso acorresse, surgiriam tremendas paixões, tiranizando a
vida terrestre. A inspiração do Alto deve estar no Alto, tanto quanto o sol que nos garante
a estabilidade do Alto... Compreendeu?
- Entender, entendo... Mas você não ignora... Vivemos em muita obscuridade, recolhendo
interpretações mediúnicas de várias procedências. Basta que um instrumento mediúnico
diga isso ou aquilo, para que outro se refira ao mesmo assunto de maneira diversa... Com
a alta ciência, porém, comandando as situações, a verdade não sofrerá tantas alterações
e o domínio de Jesus se estabelecerá sobre as almas... Então, com apoio nas
demonstrações positivas da sobrevivência, conquistaremos, enfim, a paz na Terra e a
felicidade perfeita entre as nações...
No entanto, a conversação foi interrompida, de chofre.
Os dois forasteiros chegaram ao grande instituto.
Recebidos afavelmente por um dos diretores, com quem haviam marcado encontro,
passaram a admirar o instrumental eletrônico vastíssimo, destinado a observações
múltiplas.
Falou-se em experimentadores antigos e modernos, em sensitivos de muitos países.
Comentaram-se os fenômenos parapsiquicos, as possibilidades de comunicação com
outros mundos, as ocorrências da hipnose, os poderes ocultos da mente...
A certa altura, um dos visitantes perguntou:
- Meu amigo, decerto que estamos à frente de uma nova era... Que me diz o senhor do
futuro de tantas e tão maravilhosas investigações?
E o distinto pesquisador, imperturbável:
- Sim, temos urgência máxima nos resultados. As faculdades profundas da alma devem
ser mobilizadas na descoberta de segredos militares, no incremento de recursos bélicos,
na localização das jazidas de urânio e outros minérios importantes na economia de
guerra, nas comunicações a distância...
E de que servirão as pesquisas – insistiu o interlocutor -, na construção da paz e da
fraternidade que Jesus nos ensinou?
- Bem – respondeu o autorizado informante -, isso é assunto de religião...
O brasileiro fitou o outro brasileiro e indagou:
- E agora, José?
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27 - NO DIA DAS TAREFAS
Quem descreveria o encanto daquele grupo de corações entusiastas na fé? O Irmão
Celestino edificara-o, a pouco e pouco. Cinco anos consecutivos de trabalho e
devotamento.
Campeão da bondade no Plano Espiritual, Celestino encontrara na médium Dona Silene
uma companheira de ação, extremamente dedicada ao serviço do bem. Viúva, desde
muito jovem, consagrara-se ao amparo dos semelhantes e, por sua vez, granjeara em
Celestino um amigo fiel. Ambos haviam levantado aquela doce equipe de obreiros da
oração com inexcedível carinho. Reuniões de prece e auxílio espiritual nas noites de
segundas e sextas-feiras. Consultas afetivas a Celestino e respostas abençoadas, criando
esperança e reconforto. E, depois dos contactos terrestres, eis o denodado irmão a
diligenciar obter, aqui e além, determinadas concessões, a benefício dos companheiros
encarnados. A atenção de algum médico amigo para suprimir as enxaquecas de Dona
Alice; cooperação de zeladores desencarnados, em socorro dos meninos de Dona Zizinha
em dificuldades na escola; apoio de benfeitores para a solução dos problemas freqüentes
de João Colussi, o alfaiate; vigilância de enfermeiros devotados para a filha doente de
Dona Cacilda, e providências outras, diferentes e múltiplas, de semana em semana, a
favor do pessoal. E o pessoal do agrupamento não lhe regateava admiração:
- Espírito amigo como poucos!... – enunciava Sisenando, o contador muitas vezes por ele
beneficiado.
- Devo a Irmão Celestino o que jamais pagarei!... – acentuava Armando Ribeiro, o
tipógrafo.
- Protetor extraordinário!... – afirmava Dona Maristela, que a generosidade do amigo
espiritual soerguera de fundo abatimento, - para mim, é um pai que não posso esquecer...
- Creio que não teremos neste mundo um credor tão importante assim!... – aduzia Dona
Raimunda Peres, a quem o samaritano desencarnado restituíra a alegria de viver.
Em clima de trabalho incessante para Celestino, no Plano Espiritual, e de incessante para
Celestino, no Plano Espiritual, e de incessante louvação para ele, no conjunto humano,
transcorreram sessenta meses... Por isso, na noite do quinto aniversário das reuniões, a
sala de Dona Silene mostrava belo aspecto festivo.
Flores, legendas, panos caprichosamente bordados, músicas para meditação...
Chegado o momento do intercâmbio espiritual, depois de preços e saudações efusivas,
Celestino controlou o aparelho mediúnico e falou sensibilizado. Reportou-se aos dias do
começo, aos favores obtidos do Alto, às oportunidades de trabalho, às alegrias da
solidariedade, e, finalizando a preleção comovente, apelou:
- Agora, meus irmãos, estamos na época da distribuição das tarefas. Nossa doutrina
revive o ensinamento de Jesus, e o ensinamento de Jesus, acima de tudo, se baseia no
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serviço ao próximo. Estamos cercados de irmãos sofredores que, desde muito tempo,
aspiram à comunhão conosco... Aqui, são doentes que esperam por uma frase de
coragem; ali, são desesperados que suplicam o benefício de uma prece; mais além, são
necessitados de recursos materiais que anseiam por migalha da cooperação que lhes
podemos prestar: mais adiante, vemos crianças requisitando cuidados para não
tombarem na desencarnação prematura... E a evangelização? muita gente de todas as
idades conta conosco, a fim de saber o porquê do sofrimento, das aparentes
desigualdades da vida!... Convidamos, assim, a todos os nossos amigos aqui
congregados para formarmos uma equipe de tarefeiros, com responsabilidades definidas,
no serviço aos semelhantes... Cada um se encarregará de um setor de trabalho, na
esfera dos recursos que lhe sejam próprios. Seremos um grupo legalmente constituído,
do ponto de vista terrestre, com dirigentes e dirigidos, cada qual, porém, servindo à causa
da Humanidade, em horários previamente estabelecidos. Decerto, precisaremos
disciplina, porquanto as nossas obrigações serão muitas. Recém-nascidos indigentes,
enfermos abandonados, obsessos, mendigos, velhinhos sem ninguém, todos os nossos
irmãos ao desamparo acharão o socorro possível em nossa casa. Com o Amparo divino,
trabalharemos...
Ao término, o devotado mentor, em júbilo manifesto, marcou a semana próxima para a
discriminação dos encargos com que todo o conjunto seria honrosamente distinguido, a
meio de promessas comovedoras e votos brilhantes.
Sobrevindo a reunião assinalada para a distribuição de tarefas, irmão Celestino chegou
entusiasmado e confiante ao templo doméstico, notando, porém, que ao lado de Dona
Silene, em prece, não havia ninguém.
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28 - O PODER DO BEM
Armando Pires efetuava os últimos arranjos no carro, para conduzir seu amigo Jorge
Bretas à estância de repouso que distava quarenta quilômetros.
Nesse justo momento, o diálogo entre eles, em torno da lei de causa e efeito, se detinha
em curioso ápice.
- Mas você não acredita mesmo que a justiça possa ser modificada pela misericórdia?
- Não.
- Acaso, não admite que o destino, assim como é reparável a toda hora, é suscetível de
ser renovado todos os dias?
- Não.
- Não crê que as ações do amor desfazem as cadeias do ódio?
- Não.
- Você não aceita a possibilidade de transformar os problemas de alguém que chora,
dando a esse alguém uma parcela de alegria ou de esperança?
- Não.
- Não reconhece você que se um irmão em prova é intimado pelas leis do Universo ao
sofrimento, para ressarcir as faltas que haja cometido em outras existências, nós,
igualmente, somos levados a conhecer-lhe a dor, pelas mesmas Leis Divinas, de maneira
a prestar-lhe o auxílio possível, em resgate das nossas?
- Não.
- Não tem você por certo o princípio de que o bem dissolve o mal, assim como o
reequilíbrio extingue a perturbação? não concorda que um ato nobre redundará sempre
na justiça, em favor de quem o pratica?
- Não.
- Porquê?
- Porque a justiça deve ser a justiça e cada qual de nós pagará pelos próprios erros.
- Céus! Mas você não aceita a idéia de que migalhas de amor são capazes de funcionar
em lugar da dor, ante os Foros Celestes, assim como as pequenas prestações, na base
da equidade e diligencia, podem evitar que uma dívida venha a ser cobrada pela força de
um tribunal?
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- Não.
Em seguida, os dois se aboletaram no automóvel e o carro chispou.
Tarde chuvosa, cinzenta...
Alguns quilômetros, para além da arrancada, um buraco no asfalto, sobre alta rampa, e
forte sacudidela agitou os viajores.
Bretas lembrou, assustado:
Lance perigoso! Convém parar... Tapemos o buraco ou coloquemos aqui algum sinal de
alarme, pelo menos alguns ramos de arvoredo que advirtam quem passe...
- Nada disso! – protestou Armando, decidido – a obrigação é da turma de conserva... Os
outros motoristas que se danem. Não somos empregados de ninguém.
Atingidos o local de destino, Bretas recolheu-se ao hotel, agradecendo o obséquio, e
Armando regressou pelo mesmo caminho.
Entretanto, justamente no ponto da rodovia onde o amigo desejara auxiliar outros
motoristas com socorro oportuno, Pires, em grande velocidade, dentro da noite, encontrou
a cova profundamente alargada pelo aguaceiro e o carro capotou, de modo espetacular,
projetando-se barranco abaixo...
Depois do acidente, em companhia de alguns amigos fui visitá-lo num hospital de
emergência... Achamo-lo de rosto enfaixado, sob a atenciosa assistência de abnegado
ortopedista, que lhe engessava a perna esquerda em frangalhos.
Pires não falava, mas pensava... E pensava exatamente nos delicados meandros da lei
de causa e efeito, chegando à conclusão de que o mal não precisa ser resgatado pelo
mal, onde o bem chega antes...
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29 - O DEVOTO DESILUDIDO
O fato parece anedota, mas um amigo nos contou a pequena história que passamos para
a frente, assegurando que o relato se baseia na mais viva realidade.
Hemetério Rezende era um tipo de crente esquisito, fixado à idéia de paraíso. Admitia
piamente que a prece dispensava a boas obras, e que a oração ainda era o melhor meio
de se forrar a qualquer esforço.
“Descansar, descansar!...” Na cabeça dele, isso era um refrão mental incessante. O
cumprimento de mínimo dever lhe surgia à vista por atividade sacrificial e, nas poucas
obrigações que exercia, acusava-se por penitente desventurado, a lamentar-se por
bagatelas. Por isso mesmo, fantasiava o “doce fazer nada” para depois da morte do corpo
físico. O reino celeste, a seu ver, constituir-se-ia de espetáculos fascinantes de permeio
com manjares deliciosos... Fontes de leite e mel, frutos e flores, a s e revelarem por
milagres constantes, enxameariam aqui e ali, no éden dos justos...
Nessa expectativa, Rezende largou o corpo em idade provecta, a prelibar prazeres e mais
prazeres.
Com efeito, espírito desencarnado, logo após o grande transe foi atraído, de imediato,
para uma colônia de criaturas desocupadas e gozadoras que lhe eram afins, e aí
encontrou o padrão de vida com que sonhara: preguiça louvaminheira, a coroar-se de
festas sem sentido e a empanturrar-se de pratos feitos.
Nada a construir, ninguém a auxiliar...
As semanas se sobrepunham às semanas, quando, Rezende, que se supunha o céu,
passou a sentir-se castigado por terrível desencanto. Suspirava por renovar-se e concluía
que para isso lhe seria indispensável trabalhar...
Tomado de tédio e desilusão, não achava em si mesmo senão o anseio de mudança.
À face disso, esperou e esperou, e, quando se viu à frente de um dos comandantes do
estranho burgo espiritual, arriscou, súplice:
- Meu amigo, meu amigo!... Quero agir, fazer algo, melhorar-me, esquecer-me!... Peço
transformação, transformação!...
- Para onde deseja ir? – indagou o interpelado, um tanto sarcástico.
- Aspiro a servir, em favor de alguém... Nada encontro aqui para ser útil... Por piedade,
deixe-me seguir para o inferno, onde espero movimentar-me e ser diferente...
Foi então que o enigmático chefe sorriu e falou, claro:
- Hemetério, você pede para descer ao inferno, mas escute, meu caro!... Sem
responsabilidade, sem disciplina, sem trabalho, sem qualquer necessidade de
praticar a abnegação, como vive agora, onde pensa você que já está?
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30 - NO CORREIO AFETIVO
Você, meu caro, assevera que se vê fatigado consigo mesmo.
As imperfeições, as nossas velhas imperfeições!...
Diz você que acaba de ler um volume edificante e articula promessas de melhoria, ouve
uma preleção nobre e reafirma votos de elevação... Horas depois da expectativa brilhante,
ei-lo que se estira no erro ou na negação de tudo o que assegurou a si próprio em matéria
de burilamento moral. Em seguida, a exagerada noção de inferioridade pessoal, as idéias
de culpa e, com isso, os sofrimentos íntimos e as aflições vazias.
O tempo que poderia despender em atividades úteis se lhe foge das mãos, inaproveitado.
E você pergunta o porquê de semelhante antagonismo. De um lado, a santidade do
intento; de outro, a impossibilidade da execução.
Entretanto, meu amigo, esse conflito nos pertence a todos, a todos nós, os espíritos em
evolução e acrisolamento no regaço maternal da Terra, - desde milênios.
Contra o pingo de esforço que sustentamos a favor do auto-aperfeiçoamento,
surpreendemos o caudaloso rio de nossos impulsos instintivos que nos arrastam para a
animalidade de que somos egressos.
A necessidade de paciência até mesmo conosco se nos patenteia, no clima da vivência
comum, em qualquer parte. Paciência de repetir pequeninos gestos de tolerância e
diminutas renunciações, hora por hora, dia por dia, manejando incessantemente o buril da
disciplina sobre a pedra de nossas qualidades virtuais, de modo a nela esculpir a
individualidade que aspiramos a ser.
Creia que isso ocorre à maioria das criaturas em estágio educativo no Planeta, estejam ou
não vinculadas à carteira do corpo físico. Escalamos o monte da sublimação, a passo e
passo, muita vez de coração agoniado e pés sangrentos.
A nosso ver, não padecem guerra íntima unicamente aqueles que se anestesiam, de
maneira temporária, em superioridade falsa, acreditando-se realizadas em paraísos de
ilusão, copiando a convicção das crianças que se admitem habitando castelos em suas
construções de papel ou de areia.
Essa terrível disparidade entre o que ainda somos e o que devemos ser é peculiar a todas
as criaturas que despertam para as exigências da ascensão espiritual. O próprio Paulo de
Tarso, refletindo sobre semelhante problema, declara no versículo 19 do capítulo 7, de
sua Epístola aos Romanos: “Não faço o bem que desejo; contudo, o mal que não quero,
esse faço”.
A propósito, no entanto, confortemo-nos com a certeza de que, apalpando as nossas
chagas morais, formamos mais seguro conhecimento de nós mesmos, o que é muito
importante.
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Conta-se que Israel ben Eliezer, apelidado por Baal Shem-Toy, nome comumente
abreviado por Besht, renomado pensador judaico do século XVIII, foi procurado por certo
devoto, que a ele se queixou, amargamente confessando:
- Mestre, que será de mim? Entreguei-me fervorosamente ao serviço do Senhor, por
longos anos, e, depois de tanto tempo, reconheço hoje que não melhorei... Continuo a ser
um homem imperfeito e ignorante...
O Besht, porém, sorriu e respondeu, compassivo:
- Se chegaste, meu filho, a compreender que és imperfeito e ignorante, isto representa,
por sí só, um progresso admirável.
Reflitamos, desse modo, em nossas fraquezas, sem autocondenação. Não adianta cobrirnos
de cinzas, ao verificar nossas faltas. Vale enfrentá-las e corrigi-las à custa de nossa
própria retificação.
Que somos espíritos endividados, perante as Leis Divinas, é uma realidade, e que
precisamos servir ao próximo com esquecimento de nós mesmos, para dissipar as trevas
do egoísmo que ainda nos envolvem a alma, é nossa obrigação. Observando, assim, com
o escalpelo do raciocínio próprio, as deficiências e desequilíbrios que ainda nos pesam no
ser, estamos naturalmente curando nossa multimilenária cegueira de espírito e, com isso,
meu caro, já nos cabe render graças a Deus.
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31 - SEMENTEIRA E COLHEITA
Certo homem, enredado no vício da embriaguez, era freqüentemente visitado por
generoso amigo espiritual que lhe amparava a existência.
- Arrepende-te e recorre à Bondade Divina! – rogava o benfeitores quando o alcoólatra se
desprendia parcialmente do campo físico, nas asas do sono. – Vale-te do tempo e não
adies a própria renovação! Um corpo terrestre é ferramenta preciosa com que a alma
deve servir na oficina do progresso. Não menosprezes as próprias forças!...
O infeliz acordava, impressionado. Rememorava as palavras ouvidas, tentava mentalizar
a formosura do enviado sublime e, intimamente, formulava o propósito de regenerar-se.
Todavia, sobrevindo a noite, sucumbia de novo à tentação.
Embebedando-se, arrojava-se a longo período de inconsciência, tornando ao relaxamento
e à preguiça.
Borracho, empenhava-se tão-somente em afogar as melhores oportunidades da vida em
copinho sobre copinho.
Entretanto, logo surgia alguma faixa de consciência naquela cabeça conturbada, o
mensageiro requisitava-o, solícito, recomendando:
- Atende! Não fujas à responsabilidade. A passagem pela Terra é valioso recurso para a
ascensão de espírito... O tempo é um crédito de que daremos conta! Apela para a
compaixão do senhor! Modifica-te! modifica-te!...
O mísero despertava na carne, lembrava a confortadora entrevista e dispunha-se ao
reajustamento preciso: no entanto, depois de algumas horas, engodado pelos próprios
desejos, caía novamente na zona escura.
Ébrio, demorava-se meses e meses na volúpia do auto-esquecimento.
Contudo, sempre aparecia um instante de lucidez em que o companheiro vigilante
interferia.
Novo socorro do Céu, novas promessas de transformação e nova queda espetacular.
Anos e anos foram desfiados no milagroso novelo do tempo, quando o infortunado, de
corpo gasto, se reconheceu enfermo e abatido.
A moléstia instalara-se, desapiedada, na fortaleza orgânica, inclinando-lhe os passo para
o desfiladeiro da morte.
Incapaz de soerguer-se, o doente orou, modificado.
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Queria viver no mundo e, para isso, faria tudo por recuperar-se.
Em breves segundos de afastamento do estragado veículo, encontrou o divino
mensageiro e, ajoelhando-se, comunicou:
- Anjo abnegado, transformei-me! sou outro homem... Estou arrependido! Reconheço
meus erros e tudo farei para redimir-me... Recorro à piedade de nosso Pai Todo-
Compassivo, de vez que pretendo alcançar o futuro na feição do servidor desperto para
as elevadas obrigações que a vida nos conferiu...
O protetor abraçou-o, comovidamente, e, enxugando-lhe as lágrimas, rejubilou-se,
exclamando:
- Bem-aventurado sejas! Doravante, estarás liberto da perniciosa influência que até agora
te obscureceu a visão. Abençoado porvir sorrirá ao teu destino. Rendamos graças a
Deus!
O doente retomou o corpo, de coração aliviado, com a luz da esperança a clarear-lhe a
alma.
Mas os padecimentos orgânicos recrudesciam.
A assistência médica, aliada aos melhores recursos de enfermagem, revelava
insuficiência para subtrair-lhe o mal-estar.
Findos vários dias de angustiosa dor, entregou-se à prece com sentida compunção e,
amparado pelo benfeitor invisível, achou-se fora da carne, em ligeiro momento de alívio.
- Anjo amigo – implorou -, acaso o Todo-Bondoso não se compadece de mim? estou
renovado!... alterei meus rumos! porque tamanhas provas?
O guardião afagou-o, benevolente, e esclareceu:
- Acalma-te! o sincero reconhecimento de nossas faltas é força de limitação do mal em
nós e fora de nós, qual medida que circunscreve o raio de um incêndio, para extinguí-lo
pouco a pouco, mas não opera reviravoltas na Lei. O amor infinito de Deus nos descerra
fulgurantes caminhos à própria elevação; todavia, a justiça d’Ele determina venhamos a
receber, invariavelmente, segundo as nossas obras. Vale-te do perdão divino que, por
resposta do Senhor às tuas rogativas, é agora em tua alma anseio de reajuste e com
renovador, mas não olvides o dever de destruir os espinhos que ajuntaste. O
arrependimento não cura as afecções do fígado, assim como o remorso edificante do
homicida não remedeia a chaga aberta pelo golpe da lâmina insensata!... Aproveita a
enfermidade que te purifica o sentimento e usa a tolerância do Céu como novo
compromisso de trabalho em favor de ti mesmo!...
O doente desejou continuar ouvindo a palavra balsamizante do amigo celeste... A carne
enfermiça, porém, exigiu-lhe a volta.
Contudo, recompondo-se mentalmente no corpo fatigado, embora gemesse sob a
flagelação regeneradora, chorava e ria, feliz.
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32 – DOENTES E DOENÇAS
O respeito aos doentes é dever inatacável, mas vale descrever a ligeira experiência para
a nossa própria orientação.
Penetramos o nosocômio, acompanhando um assistente espiritual que ingressava na
serviço pela primeira vez, e por isso mesmo era, ali, tão adventício em matéria de
enfermagem quanto eu próprio.
Atender a quatro irmãos encarnados sofredores, o nosso encargo inicial nas tarefas do
magnetismo curativo. Designá-los-emos por números.
Em arejado aposento, abeiramo-nos deles, depois de curta oração.
O amigo número um arfava em constrangedora dispnéia, suplicando em voz baixa:
- Valei-me Senhor! ... Ai Jesus! ... Ai Jesus! ... Socorrei-me ! Ó divino salvado! ... curai-me
e já não desejarei no mundo outra coisa senão servir-nos! ...
segundo implorava, sob as dores abdominais em que se contorcia:
- Ó meu Deus, meu Deus! ... Tende misericórdia de mim! ... Concedei-me a saúde e
procurarei exclusivamente a vossa vontade...
Aproximando-nos do terceiro, que, mal agüentado tremenda cólica renal em recidiva,
tartamudeava ao impacto de pesado suor.
- Piedade, Jesus! ... Salvai-me! ... Tenho mulher e quatro filhos ... Salvai-me e prometo
ser-vos fiel até a morte! ...
Por fim, clamava o de número quatro, carregando severa crise de artrite reumatóide;
- Jesus! Jesus! ... Ó Divino Médico! ... Atendei-me! ...
Nosso orientador enterneceu-se. Comovia-se, deverás, ouvir tão carinhosas referencias a
Deus, ao Cristo, tantos apelos com inflexão de confiança e ternura.
Sensibilizados, pusemo-nos em ação.
Exímio conhecedor de ondas e fluidos, consertou vísceras, sanou disfunções ali, renovou
vísceras, sanou disfunções ali, renovou células mais além e o resultado não se fez
esperar. Recuperação quase integral para todos. Entramos em prece, agradecendo ao
Senhor a possibilidade de veicular-lhe as bênçãos.
No dia imediato, quando voltamos ao hospital, pela manhã, o quadro era diverso.
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Melhorados com segurança, os doentes pela manhã já nem se lembravam do nome de
Jesus.
O enfermo de número um se reportava, exasperado, ao irmão que faltara ao
compromisso de visitá-lo na véspera:
- Aquele malandro pagará! ... Já estou suficientemente forte para desancá-lo ... Não veio
como prometeu, porque me deve dinheiro e naturalmente ficará satisfeito em saber-me
esquecido e morto ...
O segundo esbravejava:
- Ora essa! ... por que me vieram perguntar se eu queria orações? Já estou farto de
rezar ...
Quero alta hoje! ... Hoje mesmo! ... E se a situação em casa não estiver segundo penso,
vai haver barulho grosso!
O terceiro reclamava:
- Quem falou aqui em religião? Não quero saber disso ... Chamem o médico ...
E gritando para a enfermeira que assomara a porta:
- Moça, se minha mulher telefonar, diga que sarei e que não estou ...
O doente de número quatro vociferava para a jovem que trouxera o lanche matinal!
- Saia da minha frente com seu café requentado, antes que eu lhe dê com este bule na
cara! ...
Atônitos, diante da mudança havida, recorremos à prece, e o superior espiritual da
instituição veio até nós, diligenciando consolar-nos e socorrer-nos.
Após ouvir a exposição do mentor que se responsabilizara pelas bênçãos recebidas,
esclareceu, bem humorado:
- Sim, vocês cometeram pequeno engano. Nosso irmãos ainda não se acham habilitados
para o retorno à saúde, com o êxito desejável ... Imprescindível baixar a taxa das
melhoras efetuadas ...
E sem qualquer delonga, o superior podou energias aqui, diminui recursos ali, interferiu
em determinados centros orgânicos mais além, e, com grande surpresa para o nosso
grupo socorrista, os irmãos enfermos, com ligeiras alterações para melhoria, foram
restituídos ao estado anterior, para que não lhes viesse a ocorrer coisas piores.
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33 - MISSIVA FRATERNA
Meu amigo. Alega você dificuldades para prosseguir nas atividades do seu trabalho.
Médium interessado em servir à Doutrina Consoladora, você começou a tarefa, tomado
de amor pela causa que hoje nos irmana, à frente do combate contra as sombras da
morte.
O calor com que seu coração abraçou os compromissos assumidos encorajou
companheiros abnegados, deste mundo e do outro, à colaboração no roteiro que
orientadores de Mais Alto nos traçaram ao espírito.
Os dias correram sobre os dias.
Desdobraram-se os anos.
Tolerou você a curiosidade de investigadores agressivos e a aflição dos necessitados
diferentes que lhe bateram à porta.
Entre as exigências da vida material e as requisições da espiritualidade, compreendeu
que o trabalho, por mais rude, é sua bênção, e aceitou-o, feliz. Quando você pode atender
aos que lhe procuram as faculdades, é interpretado por santo; e quando não lhe é
possível satisfazer as reclamações particulares, é designado por demônio orgulhoso. No
íntimo, porém, você sempre reconheceu que não é anjo, nem diabo. Sabe que é
personalidade comum, com obrigações de enfrentar o padeiro e o farmacêutico, no fim do
mês, de cédulas na mão, a fim de resgatar as próprias contas. Compelido a medicar os
pulmões e os olhos, o fígado e o rins, freqüentemente você está informado de que não é
nenhum privilegiado da Graça de Divina. Se você pular do terceiro andar de um prédio,
arrebentará o crânio, na certa, e, se ingerir demasiada porção de molho apimentado ao
almoço, não ignora que a cistite o visitará, sem perda de tempo.
Você sabe disso, mas quantos companheiros lhe traduziam o esforço por santidade?
Muitos vivem consertando os óculos, duas vezes por semana, mas admitem que você,
materializado na Crosta da Terra, em condições idênticas às deles, de conformidade com
as mesmas leis, jamais experimentará modificações na máquina orgânica, não obstante
os anos de serviço intensivo das possibilidades mediúnicas, colocadas na prática do bem.
Naturalmente, embrenham-se em tais concepções, por entusiasmo da fé vibrante que
lhes renova o peito, mas você não é nenhum general prussiano que pretenda ocultar a
enxaqueca para manter o estado de guerra na juventude.
Assumindo o serviço proporções assustadoras e ouvindo repetidas referências dos
companheiros, relativamente aos deveres que lhe competem, você treme, com razão,
diante das perspectivas que o trabalho desdobra.
Como enfrentar o público necessitado e exigente se suas energias reclamam
refazimento? como atender a todos, satisfazendo as múltiplas requisições da vida
particular? como pairar no plano absolutamente idealístico, se você precisa escovar os
dentes, aparar as unhas e comprar comprimidos para a dor de barriga dos sobrinhos?
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Sussurram-lhe aos ouvidos que você guarda responsabilidades mais vastas, que você é
obrigado a revelar-se em esfera superior à de seus irmãos do caminho, que você... que
mais? Há quem o procure, acreditando buscar um plenipotenciário celeste, fazendo
questão de ignorar a provações benfeitoras que lhe seguem a existência tão comum
como a de qualquer alma encarnada, que chora, suarenta, na Terra...
Não acredite, contudo, nas afirmativas ou nas suposições dos companheiros
desprevenidos de maior entendimento. De outro modo, seria alimentar a vaidade
injustificável no coração.
Você é um trabalhador tão falível, quanto os demais, e, quando admitir o contrário, estará
contra a Lei que nos rege os destinos.
Quem preferir a idolatria barata, cultive-a pela estrada do mundo, até que a experiência
lhe esfacele os ídolos de barro.
Não se julgue detentor de responsabilidades especiais.
O dever é patrimônio comum a nós todos, porque a bênção divina não felicitou
exclusivamente a sua cabeça. A obrigação de compreender a Lei do Supremo Senhor e
servi-la constitui imperativo tão amplo como é infinita a dádiva da luz solar que envolve
justos e injustos, gratos e ingratos.
Pense nisso e descanse o crânio atormentado. Não aceite qualquer título de orientador
dos outros, quando é obrigado a fazer prodígios para não desorientar-se.
Trabalhe, sirva ao próximo, colabore na extensão do bem, quanto estiver ao alcance de
seus recursos limitados, mas reerga suas forças orgânicas, melhore as suas condições
físicas e não se acredite embaixador extraordinário do Cristo.
Quando o Mestre enviou os discípulos aos trabalhos terrestres, não individualizou as
recomendações.
“Eis que vos mando”. “Ide”. Semelhantes determinações foram pronunciadas por Ele
A construção do Reino de Deus, no aprimoramento espiritual, é obra de cada um, mas o
trabalho da coletividade pertence a todos.
Não monopolize, pois, os serviços de doutrinação e fuja dos pedestais. Lembre-se de que
se você furar um pântano, por despreocupação ou necessidade, chegará ao outro lado,
tão imundo, como qualquer empregado municipal.
Você é humano e não deve esquecer sua condição. Trate de garantir, quanto lhe for
possível, os elementos vitais do corpo de carne, sua vestimenta provisória.
Atenda ao equilíbrio, com serenidade e perseverança.
Não lhe faltarão recursos e providências às dificuldades naturais.
Quanto a mim, servo inútil embora, repetirei aos seus ouvidos aquele trecho de certa
música popular brasileira: - “eu vou ver o que posso fazer por você”.
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34 – O ANJO SOLITÁRIO
Enquanto o Mestre agonizava na cruz, rasgou-se o céu em Jerusalém e entidades
angélicas, em grupos extensos, desceram sobre o Calvário doloroso...
Na poeira escura do chão, a maldade e a ignorância expeliam trevas demasiadamente
compactas para que alguém pudesse divisar as manifestações sublimes.
Fios de claridade indefinível passaram a ligar o madeiro ao firmamento, embora a
tempestade se anunciasse a distância...
O Cristo, de alma sedenta e opressa, contemplava a celeste paisagem, aureolado pela
glória que lhe bafejava a fronte de herói, e os emissários do Paraíso chegavam, em
bandos, a entoaram cânticos de amor e reconhecimento que os tímpanos humanos
jamais poderiam perceber.
Os Anjos da Ternura rodearam-lhe o peito ferido como a lhe insufladores energias novas.
Os portadores da Consolação ungiram-lhe os pés sangrentos com suave bálsamo.
Os Embaixadores da Harmonia, sobraçando instrumentos delicados, formaram coroa
viva, ao redor de sua atribulada cabeça, desferindo comovedoras melodias a se
espalharem por bênçãos de perdão sobre a turba amotinada.
Os Emissários da Beleza teceram guirlandas de rosas e lírios sutis, adornando a cruz
ingrata.
Os Distribuidores de Justiça, depois de lhe oscularem as mãos quase hirtas, iniciaram a
catalogação dos culpados para chamá-los a esclarecimento a reajuste em tempo devido.
Os Doadores de Carinho, em assembléia encantadora, postaram-se à frente dele e
acariciavam-lhe os cabelos empastados de sangue.
Os Enviados da Luz acenderam focos brilhante nas chagas doloridas, fazendo-lhe olvidar
o sofrimento.
Trabalhavam os mensageiros do Céu, em torno do Sublime Condutor dos Homens,
aliviando-o e exaltando-o, como a lhe prepararem o banquete da ressurreição, quando um
anjo aureolado de intraduzível esplendor apareceu, solitário, descendo do império
magnificente da Altura.
Não trazia seguidores e, em se abeirando do Senhor, beijou-lhe os pés, entre respeitoso e
enternecido. Não se deteve na ociosa contemplação da tarefa que, naturalmente, cabia
aos companheiros, mas procurou os olhos de Jesus, dentro de uma ansiedade que não
se observara em nenhum dos outros.
Dir-se-ia que o novo representante do Pai Compassivo desejava conhecer a vontade do
Mestre, antes de tudo. E, em êxtase, elevou-se do solo em que pousara, aos braços do
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madeiro afrontoso. Enlaçou o busto do Inesquecível Supliciado, com inexcedível carinho,
e colocou, por um instante, o ouvido atento em seus lábios que balbuciavam de leve.
Jesus pronunciou algo que os demais não escutaram distintamente.
O mensageiro solitário desprendeu-se, então, do lenho duro, revelando olhos serenos e
úmidos e, de imediato, desceu do monte ensolarado para as sombras que começavam a
invadir Jerusalém, procurando Judas, a fim de socorrê-lo e ampará-lo.
Se os homens lhe não viram a expressão de grandeza e misericórdia, os querubins em
serviço também lhe não notaram a ausência. Mas, suspenso no martírio, Jesus
contemplava-o, confiante, acompanhando-lhe a excelsa missão, em silêncio.
Esse, era o anjo divino da Caridade.
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35 - SUBLIME RENOVAÇÃO
Conta-se que Tiago, filho de Alfeu, o discípulo de Jesus extremamente ligado à Lei
Antiga, alguns meses depois da crucificação tomou-se de profunda saudade do Redentor
e, suspirando por receber-lhe a visita divina, afastou-se dos companheiros de apostolado,
demandando deleitoso retiro, nas adjacências de Nazaré.
Ele, que pretendia conciliar os princípios do Cristo com os ensinamentos de Moisés, não
tolerava os distúrbios da multidão.
Não seria mais justo – pensava – aguardar o Senhor na quietude do campo e na bênção
da prece?
Porque misturar-se com os gentios irreverentes?
Simão e os demais cooperadores haviam permanecido em Jerusalém, confundindo-se
com meretrizes e malfeitores.
Vira-lhes o sacrifício em favor dos leprosos e dos loucos, das mães desditosas e das
crianças abandonadas, mas não desconhecia que, entre os sofredores que os cercavam,
surgiam oportunidades e ladrões.
Conhecera, de perto, os que iam orar em nome da Boa Nova, com o intuito de roubar e
matar. Acompanhara o martírio de muitas jovens da família apostólica miseravelmente
traídas por homens de má fé que lhes sufocavam os sonhos, copiando textos do
Evangelho renovador. Observara bocas numerosas glorificando o Santo Nome para, em
seguida, extorquirem dinheiro aos necessitados, sem que ninguém lhes punisse a
desfaçatez.
Na grande casa em que se propunha continuar a obra do Cristo, entravam alimentos
condenados e pipas de vinho com que se intoxicavam doentes, tanto quanto bêbados e
vagabundos que fomentavam a balbúrdia e a perturbação.
Desgostoso, queixara-se a Pedro, mas o rijo pescador que lutava na chefia do santuário
nascente rogara-lhe serenidade e abnegação.
Poderia, contudo, sustentar excessos de tolerância, quando o Senhor lhes recomendara
pureza? Em razão disso, crendo guardar-se isento da corrupção, abandonara a grande
cidade e confinara-se em ninho agreste na deliciosa planura que se eleva acima do burgo
alegre em que Jesus passou a infância.
Ali, contemplando a paisagem que se desdobra em perspectiva surpreendente,
consolava-se com a visão dos lugares santos a lhe recordarem as tradições patriarcais.
Diante dele destacavam-se as linhas notáveis do Carmelo, as montanhas do país de
Siquém, o monte Gelboé e a figura dominante do Tabor...
Tiago, habituado ao jejum, comprazia-se em prece constante.
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Envergando a veste limpa, erguia-se de leito alpestre, cada dia, para meditar as
revelações divinas e louvar o Celeste Orientador, aguardando-Lhe a vinda.
Extasiava-se, ouvindo as aves canoras que lhe secundavam as orações, e acariciava,
contente, as flores silvestres que lhe balsamizavam o calmoso refúgio.
Por mais de duzentos dias demorava-se em semelhante adoração, ansiando ouvir o
Salvador, quando, em certo crepúsculo doce e longo, reparou que um ponto minúsculo
crescia, em pleno céu.
De joelhos, interrompeu a oração e acompanhou a pequenina esfera luminosa, até que a
viu transformada na figura de um homem, que avançava em sua direção...
Daí a minutos, mal sopitando a emotividade, reconheceu-se à frente do Mestre.
Oh! era Ele! A mesma túnica simples, os mesmos cabelos fartos a se Lhe derramarem
nos ombros, o mesmo semblante marcado de amor e melancolia...
Tiago esperou, mas Jesus, como se lhe não assinalasse a presença, caminhou adiante,
deixando-o à retarguada...
O discípulo solitário não suportou semelhante silêncio e, erguendo-se, presto, correu até o
Divino Amigo e interpelou-o:
- Senhor, Senhor! aonde vais?
O Messias voltou-se e respondeu, generoso:
- Devo estar ainda hoje em Jerusalém, onde os nossos companheiros necessitam de meu
concurso para o trabalho...
- E eu, Mestre? – perguntou o apóstolo, aflito – acaso não precisarei de Ti no carinho que
Te consagro à memória?
- Tiago – disse Jesus, abençoando-o com o olhar -, o soldado que se retia
deliberadamente do combate não precisa do suprimento indispensável à extensão da
luta... Deixei aos meus discípulos os infortunados da Terra como herança. O Evangelho é
a construção sublime da alegria e do amor... E enquanto houver no mundo um só coração
desfalecente, o descanso ser-me-á de todo impraticável...
- Mas, Senhor, disseste que devíamos conservar a elevação e a pureza.
- Sim – tornou o Excelso Amigo -, e não te recrimino por guardá-las. Devo apenas dizer-te
que é fácil ser santo, à distância dos pecadores.
- Não nos classificaste também como sendo a luz do mundo?
O Visitante Divino sorriu triste e falou:
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- Entretanto, onde estará o mérito da luz que foge da sombra? Nas trevas da crueldade e
da calúnia, da mistificação e da ignorância, do sofrimento e do crime, acenderemos a
Glória de Deus, na exaltação do Bem Eterno.
Tiago desejaria continuar a sublime conversação, mas a voz extinguiu-se-lhe na garganta,
asfixiada de lágrimas; e como quem tinha pressa de chegar ao destino, Jesus afastou-se,
após afagar-lhe o rosto em pranto.
Na mesma noite, porém, o apóstolo renovado desceu para Nazaré e, durante longas
horas, avançou devagar para Jerusalém, parando aqui e ali para essa ou aquela tarefa de
caridade e de reconforto. E na ensolarada manhã do sétimo dia da jornada de volta,
quando Simão Pedro veio à sala modesta de socorro aos enfermos encontrou Tiago, filho
de Alfeu, debruçado sobre velha bacia de barro, lavando um feridento e conversando,
bondoso, ao pé dos infelizes.
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36 - PARÁBOLA DO SERVO
Na linha divisória em que encontram as regiões da Terra e do Céu, nobre Espírito,
exibindo alva túnica, solicitava passagem, suspirando pela Divina Ascensão.
Guardava a pureza exterior de um lírio sublime, falava docemente como se harpa
melodiosa lhe habitasse as entranhas e mostrava nos olhos a ansiedade e a timidez da
andorinha sequiosa de primavera.
O Anjo do Pórtico ouviu-lhe o requerimento com atenção e, admirando-lhe a brancura da
veste, conduziu-o à balança de precisão para observar-lhe o peso vibratório.
Contudo, o valioso instrumento foi contra ele. O clima interno do candidato não lhe
correspondia à indumentária brilhante.
À frente das lágrimas tristes que lhe vertiam dos olhos, o funcionário divino exortou-o,
otimista:
- Desce à Terra e planta o amor cada dia. A colheita da caridade dar-te-á íntima luz,
assegurando-te a elevação.
O Espírito faminto de glória celestial renasceu entre os homens e, sempre cauteloso na
própria apresentação, muniu-se de casa enorme, adquirida ao preço de inteligência e
trabalho, e começou a fazer o bem por intermédio das mãos que o serviam.
Criados numerosos eram mobilizados por ele, na extensão da bondade aqui e ali...
Espalhava alimentação e agasalho, alívio e remédio, através de largas faixas de solo,
explorando com felicidade os negócios materiais que lhe garantiam preciosa receita.
Depois de quase um século, tornou à justiceira aduana.
Trazia a roupa mais alva, mais linda.
Ansiava subir às Esferas Superiores, mas, ajustando à balança, com tristeza verificou que
o peso não se alterava.
O Anjo abraçou-o e explicou:
- Pelo teu louvável comportamento, junto à posses humanas, conquistaste a posição de
Provedor e, por isso, a tua forma é hoje mais bela; no entanto, para que adquiras o clima
necessário à vida no Céu, é indispensável regresses ao mundo, nele plantando as
bênçãos do amor.
O Espírito, embora desencantado, voltou ao círculo terreno. Todavia, preocupado com a
opinião dos contemporâneos, fêz-se hábil político, estendendo o bem, por todos os canais
e recursos ao seu alcance.
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Movimentou verbas imensas construindo estradas e escolas, estimulando artes e
indústrias, ajudando a milhares de pessoas necessitadas.
Quase um século se esgotou sobre as novas atividades, quando a morte o reconduziu à
conhecida fronteira.
Trazia ele uma túnica de beleza admirável, mas, levado a exame, a mesma balança
revelou-se desfavorável.
O fiscal amigo endereçou-lhe um olhar de simpatia e disse. bondoso:
- Trouxeste agora o título de Administrador e, em razão disso, a tua fronte aureolou-se de
vigorosa imponência... Para que ascendas, porém, é imprescindível retornes à carne para
a lavoura do amor.
Não obstante torturado, o amigo do Céu reencarnou no plano físico, e, fundamente
interessado em preservar-se, ajuntou milhões de moedas para fazer o bem.
Extensamente rico de cabedais transitórios, assalariou empregados diverso que o
representavam junto dos infelizes, distribuindo a mancheias socorro e consolação.
Abençoado de muitos, após quase um século de trabalho voltou à larga barreira.
O aferidor saudou-lhe a presença venerável, porque da roupagem augusta surgiam novas
cintilações.
Apesar de tudo, ainda aí, depois de longa perquirição, os resultados lhe foram adversos.
Não conseguira as condições necessárias ao santo cometimento.
Debulhado em lágrimas, ouviu o abnegado companheiro, que informou prestimoso:
- Adquiriste o galardão de Benfeitor, que te assegura a insígnia dos grandes
trabalhadores da Terra, mas, para que te eleves ao Céu, é imperioso voltes ao plano
carnal e semeies o amor.
Banhado em pranto, o aspirante à Morada Divina ressurgiu no corpo denso, e,
despreocupado de qualquer proteção a si mesmo, colocou as próprias mãos no serviço
aos semelhantes... Capaz de possuir, renunciou às vantagens da posse; induzido a
guardar consigo as rédeas do poder, preferiu a obediência para ser útil, e, embora muita
vez bafejado pela fortuna, dela se desprendeu a benefício dos outros, sem atrelá-la aos
anseios do coração... Exemplificou o bem puro, sossegou aflições e lavou chagas
atrozes... Entrou em contacto com os seres mais infelizes da Terra. Iluminou caminhos
obscuros, levantou caídos da estrada, curvou-se sobre o mal, socorrendo-lhe as vítimas,
em nome da virtude... Paralisou os impulsos do crime, apagando as discórdias e
dissipando as trevas... Mas a calúnia cobriu-o de pó e cinza, e a perversidade, investindo
contra ele, rasgou-lhe a carne com o estilete da ingratidão.
Depois de muito tempo, ei-lo de volta ao sítio divino.
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Não passava, porém, de miserável mendigo, a encharcar-se de lodo e sangue, amargura
e desilusão.
- Ai de mim! – soluçou junto ao vigilante da Grande Porta – se de outras vezes,
envergando veste nobre não consegui favorável resposta ao meu sonho, que será de
mim, agora, coberto de barro vil?
O guarda afagou-o, enternecido, e conduziu-o à sondagem habitual.
Entretanto, oh! surpresa maravilhosa!...
A velha balança, movimentando o fiel com brandura, revelou-lhe a sublime leveza.
Extático, em riso e pranto, o recém-chegado da Esfera Humana sentiu-se tomado nos
braços pelo Anjo Amigo, que lhe dizia, feliz:
- Bem-aventurado sejas tu, meu irmão! Conquistaste o título de Servo. Podes agora
atravessar o limite, demandando a Vida Superior.
Imundo e cambaleante, o interpelado caminhou para a frente, mas, atingindo o preciso
lugar em que começava a claridade celeste, desapareceu a lama que o recobria,
desagradável, e caíram-lhe da epiderme equimosada as pústulas dolorosas... Como por
encanto, surgiu vestido numa túnica de estrelas e, obedecendo ao apelo íntimo, elevou-se
à glória do firmamento, coroado de luz.
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37 - A LENDA DA GUERRA
Quando o primeiro pastor de almas se elevou da Terra, no carro da morte, o Senhor
esperou-o no Trono de Justiça e Misericórdia, de modo a ouvir-lhe o relatório alusivo às
ovelhas do mundo.
Nos céus, aves felizes entoavam cânticos à paz, enquanto serafins tangiam harmoniosas
citaras ao longe...
Tudo era esperança e júbilo no paraíso; no entanto, o pastor, que fora também no Planeta
Terrestre o primeiro homem bom, trazia consigo dolorosa expressão de amargura. Os
cabelos brancos caíam-lhe em desalinho, seus pés e mãos tinham marcas sangrentas e
de seus olhos fluíam lágrimas abundantes.
O Todo-Poderoso recebeu-o, surpreendido.
O ancião inclinou-se, reverente; saudou-o, respeitoso, e manteve-se em profundo silêncio.
As interrogações paternais, todavia, explodiram afetuosas.
Como seguia o rebanho da Terra? observa-se o regulamento da Natureza? atendia-se ao
caminho traçado? havia suficiente respeito na vida de todos? bastante compreensão no
serviço individual? – Conforme o desdobramento dos negócios terrestres, abriria novos
horizontes ao progresso dos homens. O dever bem vivido conferiria mais extenso direito
às criaturas.
O velhinho, contudo, ouvia e chorava.
Mais austeramente inquirido, respondeu, soluçando:
- Ai de mim, Senhor! As ovelhas que me confiastes, segundo me parece, trazem corações
de animais cruéis. A maioria tem gestos de lobos, algumas revelam a dureza do tigre e
outros a peçonha de víboras ingratas...
- Oh!... Oh!...
Gritos de admiração partiam de todos os lados.
De fisionomia severa, embora serena, o Senhor perguntou:
- Não têm a ovelhas a dádiva do corpo para o sublime aprendizado na escola terrestre?
- Sim – suspirou o ancião -, mas desprezam-no e insultam-no, todos os dias, através do
relaxamento e da viciação.
- Não possuem a casa, o ninho doce que lhes dei?
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- Mas fazem do campo doméstico verdadeiro reduto de hostilidades cordiais, no qual se
combatem mutuamente, a distância do entendimento e do perdão.
- Não guardam a bênção do parentesco entre si?
- Transformam os elos consangüíneos em telas grossas de egoísmo, dentro das quais se
escarneceram.
- E os filhinhos? não conservam o sorriso das crianças?
- Convertem as ovelhinhas em pequenos demônios de vaidade, que perturbam todo o
rebanho no curso do tempo.
- A pátria? não lhes concedi o grande lar para a expansão coletiva?
- Cristalizam a idéia de pátria em absurdo propósito de dominação, espalhando em seu
nome a miséria e a morte.
- E o amor? determinei que o amor lhes constituísse sagrada lâmpada no caminho da
vida...
- Perfeitamente – prosseguiu o pastor, desalentado -; entretanto, o amor para eles
representa máquina de gozar na esfera física; quando levemente contrariados em seus
jogos de ilusão, odeiam e ferem...
- A verdade? – tornou o Senhor, compassivo.
- Somente acreditam nela e aceitam-na, se os seus interesses imediatos, mesmo quando
criminosos, não são prejudicados.
- E não te ouvem os ensinos, inspirados por meu coração?
O velhinho sorriu pela primeira vez, em meio da infinita amargura a lhe transparecer do
rosto, e acentuou:
- De modo algum. Recebem-me com indisfarçável sarcasmo. Preferem aprender em
queda espetacular no despenhadeiro, que ouvir minha voz.
- Mas, não combinam entre si, quanto aos interesses de todos?
- Não. Muita vez se mordem uns aos outros.
- Não estabelecem acordos pacíficos com os vizinhos?
- Intensificam as discórdias, atiram pedras ao próximo e o crime costuma ser o juiz de
suas disputas.
- Todavia – continuou o Misericordioso -, e a Natureza que os cerca? Porventura, não lhes
falam ao coração a claridade do Sol, a bênção do ar, a bondade da água, a carícia do
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vento, a cooperação dos animais, a proteção do arvoredo, o perfume da flores, a
sabedoria da semente e a dádiva dos frutos?!...
- Infelizmente – esclareceu o ancião -, vagueiam como cegos e surdos, ante o concerto
harmonioso de vossas graças, e oprimem a Natureza simbolizando gênios do mal,
destruidores e despóticos.
- E a morte? – indagou o Altíssimo – não temem a justiça do fim?
- Parecem ignorá-la; peregrinam na Crosta do Planeta como duendes loucos,
embriagados de ilusão, indiferentes ao vosso amor, endurecidos para com vossa
orientação, despreocupados de vossa justiça...
Nesse momento, o Senhor Todo-Poderoso mostrou-se igualmente entristecido. Após
meditar alguns minutos, falou ao pastor em pranto:
- Não chores, nem te desespere. Volta à Terra e retoma o teu trabalho. Outros
companheiros contribuirão em teu ministério, encaminhando, corrigindo, refazendo e
amando em meu nome... Alguém, contudo, estará presente no mundo, colaborando
contigo e com os demais para que as minhas ovelhas infelizes compreendam a estrada
do aprisco pela dor.
Em seguida, cumprindo ordens divinas, alguns anjos desceram aos infernos e libertaram
perigoso monstro sem olhos e sem ouvidos, mas com milhões de garras e bocas.
Foi então que, desde esse dia, o monstro cego e surdo da guerra acompanha os pastores
do bem, a fim de exterminar, em tormentas de suor e lágrimas, tudo o que, na Terra,
constitua obra de vaidade e orgulho, egoísmo e tirania dos homens, contrários aos
sublimes desígnios de Deus.
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38 - A ARTE DE ELEVAR-SE
Delfim Mendes era estudante aplicado, na escola do Espiritualismo cristão, sempre
atencioso nas discussões filosóficas, a cujo brilho emprestava diligente cooperação;
entretanto, fugindo aos testemunhos pessoais no trabalho renovador, vivia em regime de
perenes reclamações. Interpretava os ricos por gênios malditos do desregramento e os
pobres por fantasmas do desespero.
A cada passo, asseverava sob escura revolta:
- A Terra é um despenhadeiro de sombras sem fim... Como nos livraremos deste horrível
sorvedouro?
Tanto se habituou às queixas infindáveis que, certa noite, quando Fabiano, o Espíritodiretor
da reunião que freqüentava, expunha conclusões evangélicas de alto sentido,
desfechou-lhe vasta dose de extemporâneas indagações:
- Benfeitor amado, como conquistar o desligamento do purgatório do mundo? Por todos
os lugares da Terra, vejo a maldade dominante. Nas pessoas incultas reparo a preguiça
sistemática. De todos os ângulos da existência, no plano selvagem em que nos
encarnamos, surgem aguilhões...
E, quase lacrimejante, rematara:
- Que fazer para fugir desta moradia tenebrosa da expiação?
O Espírito amigo escutou, benevolamente, e quando o silêncio voltou a pesar na
assembléia, comentou, bondoso:
- Um homem trabalhador, depois da morte, em razão de certo relaxamento espiritual, foi
colhido pelas redes de Satanás e desceu aos infernos, ralado de espanto e dor. Lá
dentro, passou a ver as figuras monstruosas que povoavam o abismo e, por muitos dias
consecutivos, gemeu nos tanques móveis de lava comburente. Acostumado, porém, ao
esforço ativo, pouco a pouco se esqueceu dos poços vulcânicos que o cercavam e sentiu
fome de trabalho benéfico. Arrastou-se, dificilmente, para fora da cratera em que jazia
atolado até à cintura e, depois de perambular pelas margens, à maneira dum réptil,
encontrou um diabo menor, com o braço desconjuntado, e deu-se pressa em socorrê-lo.
Esforçou-se, ganhou posição sobre uma trípode, que se destinava ao arquivo de velhas
tridentes esfogueadas, e agiu, tecnicamente, restituindo-lhe o equilíbrio. O perseguidor,
algo comovido, incumbiu-se de melhorar-lhe a ficha. Daí a momentos, uma sereia
perversa passou, exibindo defeituosa túnica, como quem se dirigia a zonas festivas. O
prestimoso internado pediu permissão para ajudá-la, afirmando haver trabalhado num
instituto de beleza terrestre, e tantos laçarotes lhe aplicou à vestimenta que a criatura
diabólica se afastou, reconhecida. Continuando a arrastar-se, encontrou um grupo de
condenados a cavar profunda cisterna, e, conhecedor que era do problema, forneceu-lhes
valiosas instruções. Encorajado pelos elogios de todos, seguiu caminho para diante, no
pavoroso domínio de que era prisioneiro, encontrando um gigante do mal, caído por terra,
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a vomitar lodo e sangue, depois de conflito feroz com poderoso inimigo, mais vigoroso em
brutalidade. O dedicado colaborador do bem apiedou-se dele e guardou-lhe a horrenda
cabeça entre as mãos. Como não possuísse adequado material de socorro, soprou-lhe ao
coração, com o desejo ardente de infundir-lhe novo ânimo e, com efeito, o gênio maléfico
despertou, sensibilizado, e contemplou-o com o enternecimento que lhe era possível. A
fama do piedoso sentenciado espalhou-se e um dos grandes representantes de Satanás
chegou a solicitar-lhe os serviços num caso melindroso, em que se fazia imperiosa a
colaboração de uma pessoa competente, humilde e discreta. Com tamanho acerto agiu o
encarcerado que a direção do abismo conferiu-lhe o direito da palavra. E o trabalhador,
lembrando o ensinamento do Mestre que determina seja dado a César o que é de César e
a Deus o que é de Deus, não afiançou, de público, que os demônios deviam ser
multiplicados, mas começou a dizer que os gênios das sombras eram grandes senhores,
naturalmente por Vontade do Eterno, e que deviam ser respeitados em seus tronos de
borralho luminescente, acrescentando, mais, que tanto quanto o buril que aperfeiçoa a
pedra é honrado pelo ingrato labor que desempenha, assim também os diabos deviam ser
reverenciados por benfeitores das almas, lapidando-as para a espiritualidade superior.
Multiplicando pregações de amor, obediência e esperança, fêz-se querido de todo o povo
das trevas, imperando nas almas das vítimas e dos verdugos. Desde então, com
assombro comum, o padrão de sofrimento no inferno começou a baixar. As almas
atormentadas adquiriram vasta paciência, as imprecações e blasfêmias foram atenuadas,
os gemidos quase desapareceram e os próprios algozes multisseculares se comoviam,
inesperadamente, aos primeiros vagidos da piedade que lhes nascia no peito. Alterou-se
a situação de tal maneira que Satanás, em pessoa, veio observar a mudança e, depois de
informado quanto aos estranhos acontecimentos, ordenou que o trabalhador fôsse
expulso. Naturalmente aquele homem estaria no inferno, em razão de algum equívoco, e
a permanência dele, no trevoso país de que era soberano, perturbava-lhe os projetos.
Desse momento em diante, o servidor do trabalho digno fêz-se livre, colocando-se na
direção do Reino da Paz...
Nesse ponto, o guia espiritual interrompeu a narrativa e, talvez porque Delfim Mendes o
contemplasse, expectante, riu-se, bondoso, e concluiu:
- Você, Delfim, sente-se na Terra como se estivesse no inferno, Pense, fale e procure
agir, como se fôsse no Céu, e o próprio mundo restituirá você ao Paraíso, compreende?
O irrequieto companheiro enterrou a cabeça nas mãos alongadas, mas não respondeu.
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39 - O CONQUISTADOR INVENCÍVEL
Sem nos referirmos aos guerreiros e tiranos do Nilo e do Eufrates, outros grandes
conquistadores haviam passado, antes d’Ele...
Cambises, rei dos persas, à feição de louco, após assassinar o irmão e a esposa,
dominou o Egito, incendiando lares, destruindo santuários, trucidando mulheres e
crianças, acabando a existência vitimado pela própria agressividade.
Alexandre Magno, rei da Macedônia, alçado à História por valoroso comandante da
civilização, impôs-se aos trácios, aos gregos, aos ilírios, aos sírios, aos judeus, aos
egípcios, aos persas, marcando a sua passagem com os sinais da humilhação e da
morte, e, ainda moço, veio a perecer, melancolicamente, de febre, na Babilônia.
Aníbal, o chefe cartaginês, em seu ódio a Roma, senhoreou terras e populações da
Espanha e da Itália, espalhando maldição e miséria, aflições e ruínas, envenenando-se,
mais tarde, na Bitínia, para não entregar aos inimigos a própria cabeça.
Cipião, o famoso general romano, submeteu a África, emoldurando a sua carreira com o
pavor e o sangue dos vencidos, sucumbindo, depois, no exílio da Campânia, entre
desesperos e amarguras.
Todos passaram, empertigados nos seus carros triunfais, com luzidas armaduras e gritos
selvagens de dominação, temidos e odiados, para descerem dos pináculos de triunfo aos
vales escuros de cinza e esquecimento.
Ele, porém, chega e fica.
Seu berço é a manjedoura singela que uma estrela assinala.
Não traz carruagens de ouro, nem se serve com baixelas de prata.
Não possui legionários, nem escravos.
Não dispõe de alianças com os poderosos da Terra, nem conta com o apoio de juízes do
mundo.
Ergue, porém, diante de todos, o coração inflamado de amor e chama a si os fraco e os
tristes, os pobres e os desamparados, os vencidos e os doentes, os velhos e as
crianças...
Descortinada à inteligência do povo a visão do Reino da Luz, cujas portas devem ser
descerradas com as chaves da bondade e do trabalho, do entendimento e do perdão...
Caminha para diante, ajudando e servindo, e para que o ódio e a crueldade, a ignorância
e a violência não se entronizem nas almas, submete-se, Ele mesmo, ao sacrifício na cruz,
legando à Humanidade a revelação da vida eterna sobre o túmulo vazio.
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Reaviva-se a fé, amplia-se a esperança e a caridade brilha, imorredoura...
Desde e não, o poder de Invencível Conquistador cresce com os dias...
E sempre que o mundo recorda o Rei Divino, descido do trono celestial às palhas da
manjedoura, o pensamento humano, por suas forças mais representativas, associa-se
aos cânticos das milícias celestiais e acrescenta, deslumbrado:
- Glória a ti, ó Cristo! A esperança da Terra te saúda e glorifica para sempre!...
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40 - PORQUE, SENHOR ?
... E Nicodemos, o grande Nicodemos dos dias primeiros do Evangelho, passou a contarnos;
- Depois da aparição do Senhor aos quinhentos da Galiléia, certo dia, ao entardecer,
detive-me à beira do lago de suas pregações, rogando a Ele me dissipasse as dívidas.
Ante os ensinamentos divinos, eu experimentava o entrechoque em torno das idéias de
justiça e misericórdia, responsabilidade e perdão... De que maneira conciliar o bem e o
mal? como estabelecer a diferença entre prêmio e castigo? Atormentado, perante as
exigências da Lei de que eu era intérprete, supliquei-lhe a palavra e eis que, de súbito, o
Excelso Benfeitor apareceu junto de mim... Prostrei-me na areia e Jesus, aproximando-se,
tocou-me, de leve, a cabeça fatigada, e inquiriu:
- Nicodemos, que pretendes de mim?
- Senhor – explique -, tenho o pensamento em fogo, tentando discernir sobre retidão e
delinqüência, bondade e correção... Porque te banqueteaste com pecadores e tanta vez
te referiste, quase rudemente, aos fariseus, leais seguidores de Moisés? Acaso, estão
certas as pessoas de vida impura, e erradas aquelas outras que se mostram fiéis à Lei?
Jesus respondeu com inflexão de brandura inesquecível:
- Nunca disse que os pecadores estão no caminho justo, mas afirmei que não vim ao
mundo socorrer os sãos, e sim os enfermos. Quanto aos princípios de santidade, que
dizer dos bons que detestam os maus, dos felizes que desprezam os infelizes, se todos
somos filhos de Deus? de que serve o tesouro enterrado ou o livro escondido no deserto?
- Messias – prosseguiu -, porque dispensaste tanta atenção a Zaqueu, o rico, a ponto de
lhe compartilhares a mesa, sem visitar os lares pobres que lhe circundam a moradia?
- Estive com a multidão, desde as notícias iniciais do novo Reino!... Relativamente a
Zaqueu, é ele um rico que desejava instruir-se, e furtar a lição, àqueles amigos a quem o
mundo apelida de avaros, é o mesmo que recusar remédio ao doente...
- E as meretrizes, Senhor? porque as defendeste?
- Nicodemos, na hora do Juízo Divino, muitas dessas mesmas desventuradas mulheres,
que censuras, ressurgirão do lodo da angústia, limpas e brilhantes, lavadas pelo pranto e
pelo suor que derramarem, enquanto que aparecerão pejados de sobra e lama aquelas
que lhes prostituíram a existência, depois de lhes abusarem da confiança, lançando-as à
condenação e à enfermidades.
- Senhor, ouvi dizer que deste a Pedro o papel de condutor dos teus discípulos... Porquê?
não é ele o colaborador que te negou três vezes?!
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- Exatamente por isso... Na dor do remorso pelas próprias fraquezas, Simão ganhará
mais força para ser fiel... Mais que os outros companheiros, ele sabe agora quanto custa
o sofrimento da deserção...
- Mestre, e os ladrões do último dia? porque te deixaste imolar entre dois malfeitores? e
porque asseguraste a um deles o ingresso no paraíso, junto de ti?
- Como podes julgar apressadamente a tragédia de criaturas cuja história não conheces
desde o princípio? Não acoberto os que praticam o mal; no entanto, é preciso saber até
que ponto terá alguém resistido à tentação e ao infortúnio para que se transformam em
vítimas do próprio desequilíbrio e há empreiteiros da fome que responderão pela
crueldade com que sonegam o pão... Com referência ao amigo a quem prometi a entrada
imediata na Vida Superior, é verdade que assim o fiz, mas não disse para quê... Ele
realmente foi conduzido ao Mundo Maior para ser reeducado e atendido em suas
necessidades de erguimento e transformação!...
- Senhor – insistiu -, e a responsabilidade com que nos cabe tratar da justiça? porque
pediste perdão ao Todo-Poderoso para os próprios carrascos, quando dependurado na
crus do martírio, inocentando os que te espancavam?
- Não anulei a responsabilidade em tempo algum... Roguei, algemado à cruz: “Pai,
perdoa-lhes porque não sabem o que fazem...” Com isso, não asseverei que os nossos
adversários gratuitos estivessem fazendo o que deviam fazer... Esclareci, tão-só, que eles
não sabiam o que estavam fazendo e, por isso mesmo, se revelavam dignos da maior
compaixão!...
Ante as palavras do Senhor – concluiu o antigo mestre de Israel -, as lágrimas me
subiram das entranhas da lama para os olhos... Nada mais vi que não fosse o véu diáfano
do pranto, a refletir as sombras que anunciavam a noite... Ainda assim, ouvi, como se o
Senhor me falasse longe, muito de longe:
- Misericórdia quero, não sacrifício...
Nesse ponto da narrativa, Nicodemos calou-se. A emoção sufoca a voz do grande
instrutor, cuja presença nos honrava a mansão espiritual. E, quanto a nós, velhos
julgadores do mundo, que o ouvíramos atentos, entramos todos em meditação e silêncio, de vez que ninguém apareceu em nossa tertúlia íntima com bastante disposição para acrescentar palavra.