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sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Renúncia-Parte 3-Francisco Cândido Xavier

 

PARTE1   -  PARTE2  -  PARTE3

Debalde o sacerdote procurara, de inicio, um meio de provocar as

recordações do passado e lê-lo na fisionomia de cada um. Depois das

primeiras impressões, acentuou intencionalmente:

— Pois que estou com um pé na sepultura, folgo em ver que Alcione

ingressa numa casa nobre, que lhe proporcionará o bem-estar que desejo.

— Que é isso, reverendo Damiano? — atalhou Jaques, generoso. — Se,

revigorado, qual o vejo, nos fala em morrer, que não direi eu com os meus

achaques sem remédio? A velhice é uma escola rigorosa de meditação, mas

eu ainda me recuso a pensar na morte.

— Sou, porém, muito mais velho que o senhor.

— Vê-se logo que é gentileza sua; olhe que a bondade é um dom precioso,

mas não pode excluir a verdade.

E mudando o rumo da assertiva, continuava:

— Quanto à sua pupila, pode ficar descansado. Padre Guilherme andou muito

bem inspirado trazendo-nos esta amiguinha para Beatriz e para nós mesmos.

Ela não será aqui uma serva e sim uma filha. Pode estar certo disso.

— Sem dúvida — confirmou Cirilo com um gesto franco.

— O que mais nos impressionou, desde a chegada — continuou

carinhosamente o velhinho —, foi a extraordinária parecença com a primeira

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mulher de meu sobrinho, a quem eu considerava como própria filha. Creio que,

se a senhorita fôsse filha de Madalena, talvez não se parecesse tanto com a

finada. Os caprichos da Natureza são profundos, porque, na verdade, nunca

esquecemos a falecida.

Nesse instante, o olhar do sacerdote de Ávila cruzou casualmente com o

da dona da casa, e teve a impressão de que ela se perturbava, assaltada por

algum pensamento menos digno. O amigo da senhora Vilamil desejou

sinceramente conhecer certos detalhes referentes à presumida morta, mas não

se sentia com ânimo de abordar de chôfre tão delicado assunto. Poderia

parecer imprudente e atrevido aos Davenport, que o recebiam com tanta

cordialidade e aprêço. Nessa altura da palestra, o visitante notou que o velho

Jaques tinha sinais antigos de varíola, nas rugas do rosto. Não esperou outra

inspiração e perguntou, com delicadeza:

— Pelo que estou vendo, Sr. Jaques, a “bexiga” também não o poupou,

noutros tempos...

— Ah! sim, na varíola de 63 nossos padecimentos foram terríveis.

— Eu também muito sofri nessa época, aqui em Paris, onde viera a convite

de alguns colegas. E estive tão mal — acrescentava sorrindo — que quase me

sepultaram vivo, num dos cemitérios improvisados.

A filha de Jaques recordou fortemente o minuto em que livrara a rival de

semelhante destino e fêz um gesto instintivo de espanto.

— Nessa ocasião — explicou o professor — residíamos em Blois, mas

Susana teve oportunidade de observar muita coisa triste, nesta cidade, pois

aqui chegou no dia imediato ao da morte de Madalena.

— Ah! por favor, senhora Davenport — exclamou Damiano, mostrandose

muito impressionado —, conte-nos a sua experiência. Não poderei esquecer

o pavoroso instante em que me ameaçavam com o sepultamento, apesar de

me sentir no gôzo de tôdas as faculdades... Foi um minuto terrível...

— São recordações muito amargas, padre —retrucou Susana

aparentemente tranqüila. — Como não ignora, meu marido era casado em

primeiras núpcias, aqui em Paris, e tendo êle seguido para a América, a família

ficou em dificuldades, quando irrompeu a pavorosa epidemia. Madalena Vilamil

era como se fôsse uma irmã. A carta que escreveu a meu pai, para Blois, era

um apêlo que não podia ficar sem resposta. Logo que pude, vim até cá, por

trazer-lhe os meus préstimos. A pobrezinha, porém, havia sido sepultada na

véspera. Todavia. ainda pude encontrar seu pai com vida, assistindo-lhe os

últimos momentos. D. Inácio, velho fidalgo espanhol, tinha em sua companhia

um sobrinho chamado Antero de Oviedo, que foi um arrimo para todos,

naqueles dias tão amargos! Ajudei-o a providenciar o enterramento do tio ao

lado da sepultura da filha, no cemitério dos Inocentes, e, nos poucos dias de

minha estada em Paris, pude testemunhar a brutalidade dos carregadores

desalmados, que farejavam cadáveres tôdas as manhãs, nas casas

contaminadas.

O sacerdote de Ávila já conhecia o bastante para inferir a conivência de

Susana no drama que negrejava o destino de Madalena, e acrescentou:

— A senhora deve ter sofrido muito.

— Foram dias tormentosos, efetivamente; voltei a Blois tão impressionada

que só melhorei quando me vi no mar, a caminho da colônia. O mesmo deve

ter acontecido a Oviedo Vilamil, que nos escreveu de Versalhes comunicando a

resolução de partir para a América espanhola.

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Damiano não tinha mais dúvidas. A resolução sinistra só poderia caber a

Antero e Susana, enquanto Madalena estava no leito, entre a vida e a morte, O

plano perverso obedecera à complicada urdidura. Dificilmente disfarçando a

emoção, entrou a falar de outros assuntos, a fim de tornar o ambiente menos

pesado.

Regressando ao seu quarto de enfêrmo, em vão excogitava um meio de

aclarar a situação, concluindo, por fim, que tôda tentativa, nesse particular,

acarretaria mais graves problemas. Que adiantaria restabelecer a verdade com

o aniquilamento de tôda uma família? Pensou na pequena Beatriz, na atitude

confiante de Jaques, no semblante grave e triste de Cirilo e firmou o propósito

de não intervir na marcha dos acontecimentos, para só confiar na Providência

divina.

Daí a quatro dias, quando Alcione foi visitá-lo, indagou carinhosamente

das suas impressões.

— Vou bem — disse ela resignada —, estou começando a compreender

que, dia a dia, Deus nos chama a determinada situação para que lhe executemos

a vontade santa.

Damiano sorriu, como que desencantado do mundo, e ponderou:

— Tenho quase certeza de haver descoberto a trama que destruiu a

felicidade de tua mãe, mas julgo que nada se pode fazer por deslindá-la. Como

discípulos do Evangelho, devemos compreender que não se deve abandonar o

combate ao mal, em hipótese alguma; entretanto, neste nosso caso, a batalha

deve desenrolar-se em campo de silencioso sacrifício.

— Compreendo e estou pronta para a batalha, como sempre.

— Não te agastes com o dizer que a senhora Susana participou, a meu

ver, da tragédia que mielicitou tua mãe.

— Posso lamentar, mas devo reconhecer que, se Deus me pôs no seu

caminho, é que tenho de aprender alguma coisa em contacto com ela. Que

será? não sei. De qualquer modo, porém, rogo a Jesus não me abandone.

Reconheço que minha mãe tem provado infinitos martírios, mas os criminosos,

padre, são mais desventurados que os sofredores. Mamãe, no leito da

enfermidade pertinaz, goza de mais tranqüilidade que a senhora Susana no

seu palácio. Enquanto Robbie nos alegra com o seu afeto, Beatriz parece

detestar a genitora, trazendo-a em constante acabrunhamento. Tenho, hoje,

grandiosas lições diante do meu espírito. Antes mil vêzes padecer a calúnia e o

abandono, que tisnar a consciência com a nódoa do crime. Este, padre

Damiano, o quadro permanente que tenho diante dos olhos.

— Lembraste bem — murmurou o sacerdote meneando a cabeça

encanecida.

— Meu pai e a segunda espôsa — prosseguiu a jovem — são

profundamente infelizes na vida conjugal. Por vêzes, longamente altercam

sôbre ninharias da vida social. Não raro, êle se afasta exasperado, enquanto

que ela se desfaz em lágrimas. Tenho a impressão de que Beatriz é o único elo

que os mantém presos aos compromissos contraídos. Tudo isso não será uma

lição bem amarga?

O sacerdote considerou a exposição judiciosa e

Concordou:

— Tens razão. Contudo, minha filha, não fôssem as circunstâncias

imperiosas que nos impõem silêncio, haveria que denunciar o crime, para que

os autores não ficassem impunes.

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— Pode crer, porém — exclamou Alcione, depois de refletir um instante —, que

a senhora Davenport está sendo punida todos os dias. Não poderemos, por

certo, conhecer o grau da sua Conivência no delito, mas tenho podido observar

a sua luta expiatória. As meditações dêstes dias têm-me ensinado que

devemos tratar os pecadores não como criaturas perversas ou indesejáveis,

mas como doentes necessitados de medicação constante. Não foi assim que

Jesus nos tratou em sua missão divina? Tenho, agora, a convicção de que o

Mestre encarou os romanos como pessoas atacadas pela moléstia da ambição

e da tirania; os judeus, como enfermos da vaidade e do egoísmo destruidores;

e, decerto, terá visto em Judas um companheiro dementado, tanto quanto em

Pilatos um irmão perseguido pela doença do mêdo.

O sacerdote estava comovidíssimo. Tais interpretações lhe valiam como

bálsamo confortador. E mal se recobrava do assombro, quando Alcione

continuou:

— Suponho legítima esta presunção, porque a identificamos com a

bondade do Cristo, em todos os atos de sua vida e até nos derradeiros

instantes da cruz. Conduzido ao madeiro entre dois ladrões, nos quais

devemos enxergar dois doentes do mundo, bastou que um dêles mostrasse o

desejo sincero de melhorar-se, recobrando a saúde, e o Senhor lhe prometeu o

paraíso.

— Sim — disse o religioso emocionado; estas idéias devem fluir do Céu

para o teu coração purificado. Deus te proteja nos caminhos longos e

escabrosos, porque as almas nobres, qual a tua, surgem na Terra como

partícipes das aflições do Cristo. O mundo prepara sempre um calvário para as

vidas cristãs, mas o Mestre te reservará a coroa da vida...

— Não diga isso, o senhor me atribui a bondade que lhe pertence. Estou

muito longe de compreender verdadeiramente o Cristo, mas, não obstante,

certa de não ter vindo a êste mundo para descanso e gôzo fictícios. Aliás,

nosso raciocínio deve ser claro: se o Salvador veio à Terra provar os

testemunhos mais ásperos, vertendo sangue e lágrimas, por que darmos tanta

importância a algumas gôtas de suor, vertidas em benefício próprio?

Damiano agradeceu com um olhar de júbilo íntimo.

E, dividindo a mocidade entre o palacete do pai e a humilde casinha

materna, Alcione Vilamil, em árdua tarefa, rogava a Jesus não a abandonasse,

na dolorosa missão.

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Testemunhos de fé

Impressionado com a argumentação do velho Gordon e cedendo à

insistência da família, Cirilo Davenport havia desposado a prima, em segundas

núpcias, entre caridosas alegrias dos amigos e afeiçoados da Nova Irlanda,

passando a residir em companhia de Jaques, que assim o exigira, visando a

alguma consolação no deserto da sua viuvez. Breve, o nascimento de Beatriz

vinha trazer um laço mais forte ao casal, mas o filho de Samuel jamais encontrara

a emoção de ventura haurida no primeiro matrimônio. Parecia-lhe ter a

alma mutilada, que o lugar de Madalena era impreenchível. Fugia

instintivamente do lar, entregando-se a trabalho incessante. Por vêzes, singular

estranheza se apossava dêle, ao atentar nas atitudes afetivas de Susana, sem

eco no seu espírito. O coração palpitava-lhe de sentimentalismo ardente,

reconhecia que nada perdera quanto à possibilidade de amar, e, contudo,

parecia que sômente a primeira espôsa era a dona da chave de penetração no

seu mundo íntimo. O ambiente doméstico, por mais que ela se esforçasse,

reservava-lhe sempre penosas surprêsas. A disposição dos objetos provocava

censuras, os pratos nunca estavam a seu gôsto. Continuamente insaciado,

insatisfeito, de quando em quando impunha-se a intervenção conciliadora de

Jaques, para que os atritos não degenerassem em conflito. Depois de longas e

acrimoniosas altercações, Susana recolhia-se ao quarto, chorosa e

desesperada, enquanto o marido se retirava a um canto da varanda, distraindose

com a fumaça de grande cachimbo, e pensando consigo mesmo: — “No

tempo de Madalena, não era assim... Dada a sua constante aplicação ao

trabalho, conseguira angariar fortuna sólida e invejável situação na colônia; no

entanto, intraduzível tristeza lhe pairava invariàvelmente no semblante. Apenas

a filha, pela profunda afinidade espiritual manifestada, conseguira atenuar os

sofrimentos que o atormentavam. Desde que Beatriz atingira os cinco anos,

estabelecera-se entre pai e filha um apêgo cada vez mais forte. A menina

parecia singularmente distanciada da genitora, que, em vão, se esforçava por

insinuar-se à sua estima. As ansiedades e dedicações de Susana se tornavam

inúteis. A atitude paternal de Cirilo plasmando a alma da filhinha,

absolutamente de acôrdo com os seus pensamentos, dificultava a atuação

materna. Sem jamais conseguir uma harmonia perfeita com a segunda espôsa,

o filho de Samuel parecia vingar-se do destino, subtraindo a pequenina à sua

influência e dando ensejo a que Beatriz se desenvolvesse entre caprichos de

tôda sorte. Em breve tempo Susana não tinha nenhuma autoridade sôbre a

filha, que só obedecia ao pai. No íntimo, a prima de Cirilo sentia-se qual ré,

que, não obstante resguardada da justiça humana, resgatava duramente o

crime praticado. Não encontrara a felicidade esperada em seu criminoso

sonho. Os momentos raros de alegria conjugal eram pagos multiplicadamente

em angústias martirizantes, pelo que costumava comparar sua ventura a uma

gôta de vinho numa taça de fel. Além do mais, os remorsos perseguiam-na,

implacáveis. Se encontrava um doente, recordava-se de Madalena; se entrava

num cemitério, surgia-lhe o espectro da vitima. Quando alguém se referia a

júbilos domésticos, ela sentia o amargor das suas experiências; se as amigas

comentavam as esperanças da prole, lembrava a filha de D. Inácio e sentia

mais vivo o aguilhão da consciência.

Tamanha era a desdita do casal, que um padre da colônia lhe recomendou

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mais atenção para o culto doméstico do Evangelho. Duas vêzes por semana,

reunia-se a pequena família para leitura e comentário das lições do Cristo.

Jaques, porém, era talvez o único que se aproveitava legitimamente dos

ensinos de cada noite. Susana via em cada palavra uma acusação, furtando-se

ao aproveitamento. Cirilo considerava as sentenças evangélicas como simples

fórmulas convencionais da religião, sem sentido lógico para a vida prática, e a

pequena Beatriz ouvia a leitura e interpretação do avô com o devido respeito,

sem nada assimilar ao espírito infantil. O velho professor de Blois, todavia, não

desanimava.

Quando a pequena manifestou os primeiros sintomas da enfermidade

nervosa que a acabrunhava, os pais, como loucos, deliberaram transferir-se

temporàriamente ao Velho Mundo, em busca de recursos médicos. Debalde

Susana insistiu para se fixarem na Inglaterra. Cirilo foi inflexível. Ficariam em

França. Uma vez forçado a viver na Europa, preferia Paris, onde se sentia

identificado com as suas antigas recordações. Aí poderia cuidar da saúde da

filha e orar no túmulo da primeira espôsa. E não houve como demovê-lo dessa

resolução.

Assim, regressou ao Velho Continente o reduzido grupo familiar, sem prazo

prefixado de regresso, sendo que Cirilo, aproveitando a oportunidade, poderia

centralizar a representação de vasta zona do Connecticut, para o comércio do

fumo, florentíssimo então.

Perdurava a mesma angustiosa Situação para os Davenport, em Paris,

quando Alcione lhes entrou em casa. Casa rica de recursos financeiros, mas

pobre de alegria e de paz.

Jaques e o sobrinho exultavam com a chegada da jovem, tão parecida com

a morta inesquecível e pelas suas maneiras carinhosas e catívantes. Beatriz

parecia encontrar em sua companhia o medicamento indispensável. As longas

conversações com a governanta desvelada pouco a pouco lhe modificavam as

atitudes. Susana, entretanto, teve agravado o seu intimo mal-estar com a

presença de Alcione. Não conseguia sofrear a onda de ciúme e egoísmo que a

empolgava. Muitas circunstâncias cooperavam para isso. Não tolerava a

menina simples e amável, pelos seus traços idênticos aos da rival que

eliminara do seu caminho. Além de tudo, aquelas atenções que Cirilo lhe

dispensava, doíam-lhe penosamente no coração inculto. Complicando a

questão, o velho pai, bem como a filhinha, adoravam a jovem serva,

manifestando-lhe extremo carinho. Debalde procurava um pretexto para despedi-

la. A moça estava sempre calma e disposta a ceder aos seus caprichos.

Aquela suave humildade causava-lhe irritação. Por mais que elevasse a voz,

em ordens intempestivas, Alcione tratava-a respeitosamente, em atitude de

nobre serenidade.

A princípio, acrescentou-lhe outras ocupações, além dos deveres de

governanta e preceptora. A jovem era obrigada a tratar de todos os demais

serviços leves da casa, inclusive a costura. Observando, todavia, que a moça a

tudo atendia primorosamente, Susana chamou-a certa vez:

— Alcione!

— Senhora!...

— Hoje é necessário que substituas a lavadeira, que se encontra doente.

— Sim, senhora.

E num momento desdobrava-se em atividades no tanque espaçoso,

esforçando-se por cumprir perfeitamente a tarefa insólita. Entretanto, vendo-a

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entregue a tal mister, não se conformou a pequena Beatriz, que, depois de um

olhar reprovativo à genitora, correu ao pai, pedindo-lhe providências.

Cirilo atendeu de pronto. Vendo a governanta da filhinha azafamada na

lavandaria, começou a altercar com a espôsa, recriminando-a com aspereza.

Beatriz, agarrada a êle, reforçava-lhe a censura. Susana justificava-se. Não

poderia atender ao ritmo doméstico, exautorada nas suas determinações. O

marido, porém, não lhe aceitava as alegações, secundado por Beatriz, que

acusava a genitora de perseguir Alcione com os serviços mais grosseiros. A

filha de Madalena trabalhava, cabisbaixa e humilde, mas, quando viu a dona da

casa em- pranto convulsivo, exasperada com as censuras que lhe eram

dirigidas acremente, adiantou-se com delicadeza e acentuou:

— Sr. Davenport, espero que me desculpe a intromissão na conversa, mas

pode crer que a pequena Beatriz está enganada. D. Susana não me mandou

substituir a lavadeira, fui eu mesma que, sabendo que a lavadeira adoeceu,

ofereci minha cooperação no tanque, para aliviar os muitos serviços

domésticos.

— Ah! sim — disse Cirilo, algo desapontado.

— O senhor não se preocupe — concluiu Alcione —, eu estou bastante

habituada a êstes trabalhos.

Essas palavras eram ditas com tanta sinceridade e boa vontade que o

chefe da família regressou tranqüilamente às suas atividades, enquanto a espôsa

olhava para a governanta sem disfarçar a surprêsa. Beatriz, muito

modificada em sua primeira atitude de revolta contra a decisão materna, aproximou-

se da jovem, tentando ajudá-la. Muito afetuosamente, contemplava

Alcione, seduzida pela sua bondade, como a lhe pedir explicações. A filha de

Madalena percebeu-lhe o desejo e falou:

— Então, Beatriz, consideras a limpeza da roupa como serviço pesado?

Não penses assim. Deve ser muito sagrado, para nós todos, o asseio das

coisas caseiras.

— Mas há criadas para isso, explicou a menina procurando justificar-se.

—No entanto, devemos estar habilitadas para qualquer trabalho digno. Se

tôdas as servas adoecessem, haveríamos de vestir roupa suja? Não admitirás

isso, por certo. Além do mais, cuidar da roupa que nos faz tanto bem, deve

constituir motivo de satisfação sincera.

A menina, muito sensível, estimava deveras a governanta, mas objetou:

— No entanto, sempre ouvi dizer que cada serviçal deve estar no seu

lugar.

— E não erras, pensando assim, mas essa verdade não impede o dever de

ampliarmos nossas experiências em todo e qualquer trabalho honesto. Não

estimas tanto as lições de Jesus? Pois no Cristo encontramos o verdadeiro

ânimo de trabalho, O Mestre Divino nunca se ausentou do lugar sublime que

lhe compete na Criação e, no entanto, carpintejou na modesta oficina de

Nazaré; exegeta da Lei, perante os doutores d€ Jerusalém, serviu o vinho da

amizade nas bodas de Caná; médico da sogra de São Pedro, enfermeiro dos

paralíticos, guia dos cegos, amigo das crianças, mas também lacaio dos

discípulos, quando lhes lavou os pés, no cenáculo. E nada obstante o contraste

e a diversidade de tantas tarefas, Jesus não deixou de ser o nosso Salvador,

em todos os momentos.

A filhinha de Susana, entre admirada e comovida, observou:

— Tudo isso é verdade... Como não pude compreender antes?

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E começou a ajudar no trabalho do tanque.

Esses pequeninos incidentes domésticos começaram a impressionar

profundamente a segunda espôsa de Cirilo. De que fonte poderia Alcione haurir

tanta compreensão e tamanha fôrça? Alcione estava sempre pronta a lhe

atender as menores exigências, sem modificar a atitude de serenidade e

dedicação. Chamada aos próprios misteres da cozinha, desincumbiu-se dos

deveres que lhe eram confiados, a contento geral.

Decorrido quase um ano, Susana adoeceu gravemente. A filha de

Madalena consagrou-lhe o máximo de seus carinhos. Nessa ocasião,

justamente em face dos sofrimentos que a martirizavam, foi que ela se rendeu

à bondade da serva, tornando-se-lhe desvelada amiga. A residência de Cirilo

experimentava profundas transformações. O chefe da família, bem como

Jaques, insistiam para que a jovem se transferisse definitivamente para o

palacete da Cité, mas Alcione alegava que a mãe era paralítica, que tinha um

irmão adotivo necessitado da sua assistência, e um tutor muito amigo que se

abeirava da morte.

Inúmeras vêzes, a filha de Madalena Vilamil era obrigada a desviar,

delicadamente, o desejo de Susana e da filha, de lhe visitarem a genitora enfêrma.

— Mais tarde, senhora Davenport, estaremos preparados para recebê-la;

por enquanto, sou eu quem lhe pede para não ir. Quero ter a satisfação de

apresentá-la à mamãe quando ela puder sentir o prazer de melhoras mais

positivas.

E Susana justificava-lhe a solicitação.

A modificação de Beatriz trouxera grande paz ao coração paterno; Cirilo

não cabia em si de contentamento, em lhe observando a jovialidade e a saúde.

Nunca poderia explicar o fenômeno afetivo que com ele se passava, mas, era

tal a estima e admiração que tinha pela moça, que, no Intimo, não sabia a qual

das duas queria com mais ternura. Jamais confiara a quem quer que fôsse as

suas recônditas impressões, mas desde que Alcione lhe entrou em casa,

começara a sentir uma serenidade desconhecida. Ela lhe parecia assim como

alguma coisa da morta inolvidável. Por vêzes, quando a governanta

acompanhava a família ao cemitério dos Inocentes, tinha ímpetos de afagá-la

paternalmente, enxugando-lhe as lágrimas copiosas. Em tais ocasiões, ela

recordava os sofrimentos de cada uma das personagens do drama doloroso e

desfazia-se em lágrimas. A família Davenport levava tudo à conta de

sentimentalismo, temperamento hipersensível, e as suas atitudes passavam

despercebidas, sem mais comentários.

Às quartas e domingos, praticavam, na intimidade, o culto doméstico do

Evangelho.

Num sábado, à refeição, foi Jaques a lembrar:

— Alcione, amanhã faremos nosso estudo e meditação do Novo

Testamento e receberíamos, com prazer, a sua cooperação.

— Ganharei muito em vos ouvir — acentuou plàcidamente.

O alvitre do amorável velhinho mereceu aplauso geral. Cirilo fêz ver que

seria muito interessante ouvir a governanta de Beatriz no comentário das lições

de Jesus. Alcione esquivava-se às provas de aprêço, com extrema humildade.

Viria, a fim de aprender, exclamava bondosamente.

Na tarde seguinte, reunidos em tôrno da grande mesa aristocrática, o pai

de Susana explicou, atencioso:

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— Há algum tempo, minha filha — dirigia-se a Alcione com muito carinho —

, aconselhados por um sacerdote americano, deliberamos fundar nossa igreja

lareira, por considerar que a família é o nosso primeiro santuário.

— Resolução louvável — disse a filha de Madalena, entre a ternura e o

respeito. — Minha mãe também sempre me disse que o lar é o nosso templo

divino.

Magnetizado pela doçura das suas palavras, Cirilo Davenport, ansioso de

alcançar a fé que lhe suavizasse as lutas da vida, perguntou:

— Não discordo, Alcione, dêsse conceito, mas, já o tenho discutido muitas

vêzes com meu tio. Por que entreter o culto evangélico no lar, quando temos

numerosas igrejas? Só aqui no centro contamos mais de vinte. E os outros

bairros de Paris? E as instituições religiosas? Por que esta diversidade de

cultos se os fins são os mesmos? Não seria mais justo reservar as

possibilidades da devoção para os ofícios religiosos de caráter público?

O filho de Samuel assim se manifestava porque nunca pudera

compreender a utilidade prática da igreja doméstica. A seu ver, os textos

evangélicos constituíam material de análise privativa dos padres, e chegava

quase a considerar inútil a leitura isolada das anotações apostólicas. Alcione,

atenta e prazerosa, respondeu:

— Neste assunto, Sr. Davenport, como não se trata de opinião nossa,

pessoal, mas de ensinos do Mestre, peço-vos relevar a minha franqueza.

Tenho a convicção de que, em tôda parte, estamos na casa de Nosso Pai e

estou certa de que virá o dia em que tomaremos por templo de Deus o mundo

inteiro. Mas, em nossa atual condição, não nos custa reconhecer o proveito das

igrejas e o caráter sagrado do culto doméstico, no que concerne aos ensinos

de Jesus. Também no confôrto de nossas casas há sempre ótima disposição

para atender aos nossos familiares enfermos, mas isso não proscreve a

necessidade dos hospitais. Os pais amorosos ensinam sempre os filhinhos;

mas nem por isso deixam de ser úteis as escolas. Em matéria de fé, nossa

estranheza radica na viciação dos deveres religiosos. Costumamos atribuir ao

sacerdote o que nos compete realizar. Um padre poderá funcionar como

excelente preceptor, indicando os caminhos retos, mas nós transitamos para

Deus e éimprescindível não parar. O ministro da fé atenderá ao conjunto, mas,

para que as alegrias cristãs vibrem perfeitamente em nossa alma, não há que

olvidar a necessidade de estabelecer o culto do Senhor, dentro de nós

mesmos. Assim entrevisto, o lar é o templo mais nobre, porque oferece oportunidade

diária de esfôrço e adoração. Cada criatura de nossa convivência, sob

o mesmo teto, representa um altar para o culto da bondade, do carinho, da

compreensão. Cada borrasca doméstica é um ensejo para a distribuição de

esperança e fé. Cada dia afanoso enseja possibilidades de testemunhar

confiança em Deus. Enquanto isso ocorre na intimidade, as instituições

religiosas podem funcionar como hospitais dos espíritos combalidos, como celeiros

de esfomeados, como fontes de informações sublimes aos ignorantes.

Qualquer doente esperará a volta da saúde, mas colimando reintegrar-se no

plano de esfôrço diuturno; o faminto se alimentará de modo a prosseguir no

seu caminho; e o ignorante será instruído para que se habilite a aplicar o que

aprendeu. Por êsse prisma, podemos aquilatar o valor das pequenas

realizações domésticas. Acredito que o lar seja o ninho onde o espírito humano

cria em si mesmo, com o auxílio do Pai Celestial, as asas da sabedoria e do

amor, com que há de conhecer, mais tarde, as sendas divinas do Universo.

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A reduzida assembléia não podia ocultar a enorme expressão de

assombro. Os Davenport estavam longe de presumir, naquela jovem de

atitudes tão timidas, tais provas de conhecimento espiritual. Pela primeira vez,

Cirilo ouvia um argumento que o satisfazia plenamente. Com estupefação

geral, Beatriz quebrou o silêncio, dirigindo-se ao avô nestes têrmos:

— Não te disse, vovô, que ela sabe muita coisa nova sôbre Jesus?

— Não diga isso, Beatriz — murmurou Alcione tôda humilde —, eu sou

apenas uma curiosa das lições evangélicas. Como tínhamos em Ávila a nossa

pequena igreja doméstica, a funcionar quase tôdas as noites, familiarizei-me

com o assunto.

— Sem dúvida — replicou Cirilo, impressionado — as tuas explicações,

Alcione, falam profundamente à alma. Os negócios materiais da minha vida

sempre me criaram certa atmosfera de incompreensão para as lições do Cristo.

Sempre considerei o lar fortaleza da nossa felicidade na Terra, mas nunca

como base para enriquecimento de dons espirituais.

— Isso é natural — prosseguiu a moça enternecida —, as fôrças que nos

encarceram o coração nas grades de uns tantos problemas temporais,

costumam ser violentas e rudes. Entretanto, Deus não se cansa de nos atrair

aos seus braços misericordiosos. As circunstâncias mínimas da existência

humana induzem a pensar nisso. Logo que abrimos os olhos neste mundo,

encontramos pais carinhosos que nos encaminham para o bem; nossa infância,

quase sempre, está cercada de sábias advertências dos preceptores, que nos

orientam para a verdade. Uma idéia lógica surge, fatalmente, em nosso cérebro:

tantos mensageiros de bondade viriam à nossa estrada, tão só para

informar-nos o coração, sem utilidades práticas para a nossa própria edificação?

Muita gente, nos mais variados credos, depõe nas mãos de seus

ministros o que lhes cumpre fazer, mas isso é um êrro grave. Deus nos chama

pela maneira como Jesus procurou os discípulos. Para realizar a união divina é

preciso marchar, na “terra” de nós mesmos, não obstante os maus dias e as

noites tenebrosas!...

Cirilo não podia disfarçar a admiração. Agora, sentia descortinar-se aos

olhos dalma um mundo deslumbrante, que até então não conseguira surpreender.

As palavras da jovem modificavam-lhe, num minuto, tôdas as

presunções exegéticas. Começava a sentir que a vida, sob qualquer de seus

aspectos, revestia-se da mais profunda significação. No seu conceito, o homem

deixava de ser um exilado em míseras trevas, que se encontraria mais tarde

com Deus, ou com a punição eterna. A Terra figurava-se-lhe escola, onde cada

homem recebia uma divina oportunidade, entre milhões de possibilidades

sublimes e infinitas.

—No templo de pregações públicas — concluía a filha de Madalena, sem

afetação — poderemos receber as inspirações externas, ao passo que no culto

intimo entramos em contato com o próprio eu, recebendo divinas mensagens

na consciência, Os diversos ministros religiosos têm fórmulas convencionais;

nós, como sacerdotes da própria iluminação, temos as expressões

espontâneas da vida.

Jaques engolfara-se em prolongado silêncio, como se estivesse chegando

a um mundo novo de preciosas revelações. E Susana, vendo o companheiro

quase extático, considerou, eminentemente comovida:

— Em verdade, Alcione, teus raciocínios abrem novos horizontes ao nosso

espírito. Sempre estudamos o Evangelho, mas, de minha parte, devo confessar

180

a dificuldade em me adaptar aos ensinamentos... Sinto-me tão pecadora, tão

humana, que cada lição me soa como rigorosa censura. Por que experimento,

assim, as santas narrativas como dilacerantes acusações?

A jovem fitou-a com olhos muito lúcidos e esclareceu:

— Tais impressões devem ser passageiras. O Evangelho é mensagem de

salvação, nunca de tormento. Na realidade, conhecemos a extensão da nossa

indigência e o grau das nossas fraquezas; mas a misericórdia divina restaria

imota sem as nossas quedas e dolorosas necessidades, O Cristianismo jamais

será doutrina de regras implacáveis, mas sim a história e a exemplificação das

almas transformadas com Jesus, para glória de Deus. Se as lições do Mestre

apenas nos oferecessem motivos de condenação, onde estariam as grandes

figuras evangélicas de Maria Madalena, Paulo de Tarso e tantas outras? No

entanto, a pecadora transformada foi a mensageira da ressurreição; o inflexível

e cruel perseguidor convertido recebeu de Jesus a missão de iluminar o

gentilismo.

Susana seguia a exposição, de olhos muito brilhantes. Nunca sentira

tamanha impressão de bem-estar, no trato das leituras santas. Nas confissões,

que nunca chegara a conjugar com a grande falta da sua vida, nada recebia

dos sacerdotes, senão amargas recriminações. Os padres lhe ministravam

penitências, mas nunca lhe ofereciam roteiro seguro. Sempre dera ao altar

valiosas contribuições monetárias, mas agora chegava à conclusão de que era

indispensável cooperar, com tôdas as energias espirituais, para o próprio

aperfeiçoamento.

— Tuas interpretações — asseverou a senhora Davenport — são

altamente consoladoras. De uns tempos para cá, venho refletindo amargurada

na inutilidade de muitos ensinamentos recebidos na infância. Por que terei

aprendido a virtude e não a cultivo a rigor? E, com tais dúvidas íntimas, passo

a analisar as criaturas com profundo pessimismo, chegando a crer que a

humanidade, de modo geral, vive negando Jesus a cada momento.

Alcione, que prestava especial atenção aos conceitos expendidos,

obtemperou:

—Por infelicidade nossa é, de fato, enorme a bagagem das nossas fraquezas

neste mundo; mas, se o Pai não desanimou e nos oferece, diariamente, ensejo

de nos levantarmos para o seu amor, por que haveremos de viver em

descrença contumaz? Viver sem esperança é o pior de todos os males.

Quando nos preocupamos sinceramente com a iluminação espiritual,

compreendemos a significação de tôdaa as coisas. A própria miséria humana

tem o seu lugar e a sua expressão educativa. Antes de tudo, é essencial

refletirmos na extensão da bondade do Mestre. Lembremos que Pedro o negou

três vêzes, na hora mais cruel; que Tomé duvidou da sua sabedoria e

misericordioso poder, e, nem um nem outro foi jamais expulso da sua divina

presença. O mundo tem inúmeros criminosos, exploradores, ociosos e

devassos, mas tudo isso deve ser examinado por um prisma diferente. O pecado

é moléstia do espírito. No excesso da alimentação, na falta de higiene, no

desregramento dos sentidos, o corpo sofre desequilíbrios que podem ser fatais.

O mesmo se dá com a alma, quando não sabemos nortear os desejos,

santificar as aspirações, vigiar os pensamentos. Sempre acreditei que as

enfermidades dessa natureza são as mais perigosas, porque exigem remédio

de mais dolorosa aplicação.

Susana estava eminentemente surpreendida. Aquelas explicações, tão

181

simples, tocavam-lhe o coração nas fibras mais sensíveis. Sômente agora

identificava a sua moléstia espiritual. Nos dias mais tristes da vida conjugal,

entre remorsos e revoltas, muita vez indagara de si mesma os motivos que a

levaram a desventurar a filha de D. Inácio. Nas horas acerbas, chegava à

penosa conclusão de que um verdadeiro amor jamais sacrifica alguém nos

seus impulsos. Em troca da sua violência, nada adquirira senão remorsos para

si e insaciedade para o companheiro. Não teria sido melhor cooperar para a

felicidade inalterável do primo com Madalena? Se lhe não fôsse possível a

edificação do lar, alcançaria, pelo menos, a tranqüilidade de consciência.

Entretanto, como dizia Alcione, deixara-se empolgar pelo desregramento dos

desejos, desviara-se dos sentimentos justos e caíra em terrível enfermidade

espiritual. Enfim, comovera-se em demasia, fora de seus hábitos, tinha os

olhos molhados de pranto.

Cirilo, por sua vez, muitíssimo impressionado com os esclarecimentos,

imitava o velho tio, parecendo mergulhado em profundo cismar.

Rompendo o forçado silêncio, o velho educador de Blois tomou a palavra e

disse com brandura:

— As interpretações da menina são novas e confortadoras para nós. Pelo

visto, muito nos poderá ela auxiliar no referente aos sagrados ensinos. Não

será melhor que todos nós a ouçamos, hoje, no culto? Dessarte, saberemos

como funcionava a sua igreja doméstica, em Ávila, e poderemos enriquecer as

nossas experiências.

Alcione sempre humilde e sincera, tentou esquivar-se, mas Cirilo e Susana

reforçaram a proposta do bondoso ancião e não houve como eximir-se à

delicada incumbência.

Jaques entregou-lhe o volume do Novo Testamento, mas, antes de o abrir,

ela explicou:

—Em nosso grupo familiar de Castela-a-Velha, meu tutor dizia que o estudo

das letras santas é comparável a uma pesca de luzes celestiais, O rio da vida,

afirmava, está sempre correndo e é indispensável energia serena e vontade

ardente, a fim de mergulharmos na coleta dos valores divinos. Enquanto o

homem se mantiver tíbio, desencantado, indiferente ou pessimista, dificilmente

poderá encontrar no Evangelho algo mais que os sublimes apelos do Senhor.

Em tais condições negativas, recebemos os convites do Cristo, mas

freqüentemente ficamos ignorando a tarefa; somos chamados ao banquete da

verdade e da luz, mas comparecemos como comensais bisonhos, mal sabendo

como iniciar o suculento repasto. O ensinamento de Jesus é vibração e vida, e

como o estudo mais simples demanda o esfôrço de comparação, não podemos

versar o Evangelho sem êsse esfôrço. Muitos procuram, nestas páginas,

sômente motivos de consolação, esquecendo a essência do ensino. Mas seria

um contra-senso vir o Mestre a nós, dos espaços gloriosos da imortalidade,

apenas para nos adoçar o coração onusto de perversidades e fraquezas

humanas. Jesus é a fonte do confôrto e da doçura supremos. Isso é inegável.

No entanto, reconhecemos que uma criança, que sômente receba consolações

e mimos paternos, arrisca-se a envenenar o coração para sempre, na sêde

insaciável dos caprichos. Não; não devemos acreditar que o Cristo só haja

trazido ao mundo a palavra revigoradora e afetuosa, senão também um roteiro

de trabalho, que é preciso conhecer e seguir, em que pesem às maiores

dificuldades. Para isso, é indispensável tomar os nossos sentimentos e

raciocínios como campo de observação e experiência, trabalhando diàriamente

182

com Jesus na construção da arca íntima da nossa fé. Naturalmente que essa

edificação não prescinde do material adequado, constituído pelas virtudes e

conhecimentos nobres que adquirimos no curso da vida. São esses os

elementos que procuramos, em nossa pesca das luzes celestiais, para que,

recebendo as consolações de Jesus, sejamos igualmente operosos trabalhadores.

A pequena assembléia entreolhava-se grande-mente surprêsa. Cada qual

parecia mais deslumbrado com o comentário da jovem intérprete.

— Em Ávila — continuou ela com a maior simplicidade — nunca nos

reunimos no culto doméstico sem suplicar o socorro da inspiração divina. Padre

Damiano esclarecia sempre que Deus não poderia ter enviado as “línguas de

fogo” da sua sabedoria apenas aos doze discípulos de Jesus. As chamas do

seu amor infinito aquecem a humanidade inteira. Basta lembrar que se os

sinais do céu foram vistos sômente sôbre os Apóstolos, no dia inolvidável do

Pentecostes, ninguém poderá contestar a extensão dos benefícios à multidão

que os ouvia, exultante de júbilo. A revelação dirigia-se a todos, o

contentamento celestial foi distribuído sem exclusividade. Baseado nisso, meu

tutor asseverava que devemos fazer o estudo evangélico não apenas com as

nossas malícias e necessidades humanas, mas com o auxílio silencioso e

invisível do Céu!...

Após estas considerações, que despertaram fundo enternecimento nos

ouvintes, orou em voz alta, suplicando a Jesus lhes concedesse o benefício de

suas inspirações sacrossantas, para que se integrassem no conhecimento da

sua vontade. Feita a prece comovedora, tomou do livro e perguntou:

— Sr. Jaques, gostaria me dissésseis qual o método aqui adotado para a

leitura.

— Costumamos ler cinco a dez versículos de cada vez, comentando-os em

seguida. Presentemente estamos na segunda epístola de São Paulo a

Timóteo, tendo ficado, na última reunião, no segundo capítulo, versículo 10.

— Lá na Espanha — explicou a jovem delicadamente — líamos apenas

um versículo de cada vez e êsse mesmo, não raro, fornecia cabedal de exame

e iluminação para outras noites de estudo. Chegamos à conclusão de que o

Evangelho, em sua expressão total, é um vasto caminho ascensional, cujo fim

não poderemos atingir, legitimamente, sem conhecimento e aplicação de todos

os detalhes. Muitos estudiosos presumem haver alcançado o têrmo da lição do

Mestre, com uma simples leitura vagamente raciocinada. Isso, contudo, é êrro

grave. A mensagem do Cristo precisa ser conhecida, meditada, sentida e

vivida. Nesta ordem de aquisições, não basta estar informado. Um preceptor do

mundo nos ensinará a ler; o Mestre, porém, nos ensina a proceder, tornandose-

nos, portanto, indispensável a cada passo da existência. Eis por que,

excetuados os versículos de saudação apostólica, qualquer dos demais

conterá ensinamentos grandiosos e imorredouros, que impende conhecer e

empregar, a benefício próprio.

— Será então mais útil — advertiu Cirilo sumamente interessado — assim

também procedermos.

Alcione procurou a epístola indicada e leu o versículo 11 do segundo

capítulo:

- «Palavra fiel é esta: que se morrermos com ele, também com êle

viveremos. »

Franca a palavra, todos, exceto a pequena Beatriz, que se mantinha

183

calada, opinavam que os homens apegados a Jesus, no fim da vida, podiam

morrer em paz, certos de que o Senhor lhes abriria, além-túmulo, as portas

gloriosas da redenção.

Depois de ouvir a opinião de cada um em particular, Alcione explanou:

— Certo, a esperança em Cristo será sempre um refúgio indispensável na

hora da partida, mas a advertência apostólica nos convoca a ilações mais

graves. Lembremos os perversos que aceitam Jesus na hora extrema. Muita

gente, portadora de crimes inomináveis, faz ato de fé no leito de morte. Enquanto

têm saúde e mocidade, vivem ao léu, entre caprichos e

desregramentos; mas tanto que o corpo quebrantado lhes dá idéias de morte,

alarmam-se e desfazem-se em rogativas a Deus. Podem, criaturas que tais,

esperar de pronto, imediata, a glória do Cristo? E os que se sacrificam nas aras

do dever enquanto lhes resta uma partícula de fôrças? Claudicaria a justiça, em

suma, se afinal a virtude se confundisse com o crime, a verdade com a mentira,

o labor com a ociosidade. Certo que será sempre útil recorrer à misericórdia do

Senhor, ainda que manchados até aos cabelos, bem como acreditar que, para

tôda enfermidade, haverá remédio adequado. Penso, porém, que a assertiva

de Paulo não se refere ao têrmo da vida corporal, fenômeno natural e apanágio

de justos e de injustos, de piedosos e de impios. Bafejado pela divina

inspiração, o amigo do gentilismo aludiu, por certo, à morte da “criatura velha”,

que está dentro de todos nós. E’ a personalidade egoística e má, que trazemos

conOScO e precisamos combater a cada dia, para que possamos viver em

Cristo. A existência terrestre é um aprendizado em que nos consumimos

devagarinho, de modo a atingir a plenitude do Mestre. No plano da própria

materialidade, poderemos observar êsse imperativo da lei. A infância, a

mocidade e a decrepitude, em seu aspecto de transitoriedade, não podem

representar a vida. São fases de luta, demonstrações da sagrada oportunidade

concedida por Deus para nos expurgarmos da grosseria dos sentimentos, da

crosta de imperfeição. Costuma-se dizer que a velhice é um ataúde de

fantasias mortas, mas isso apenas se verifica com os que não souberam ou

não quiseram “morrer” com o Cristo para alcançar a fonte eterna da sua vida

gloriosa. Quem se valeu da possibilidade divina tão sômente para cultivar

ilusões balof as, não poderá encontrar mais que o fantasma dos seus enganos

caprichosos. A criatura, porém, que caminhou de olhos fixos em Jesus, em

todos os pormenores da tarefa, essa, naturalmente, conquistou o segrêdo de

viver triunfante acima de quaisquer circunstâncias adversas. Jesus palpita em

seus atos, palavras e pensamentos. Seu coração, na pobreza ou na abastança,

será como flor de luz, aberta ao sol da vida eterna!...

Cada qual dos ouvintes revelava jubiloso interêsse. A explanação de

Alcione lhes tocara o coração. Quando a filha de Madalena fêz uma pausa

mais longa, Cirilo Davenport acentuou:

Agora, sim! Encontrei um modo prático de Compreender o tesouro

evangélico, interpretado desta maneira, dá idéia de preciosa mina de valores

espirituais. Quanto mais nos aprofundamos em meditação, esfôrço e boa

vontade, mais filões auríferos irão surgindo aos nossos olhos.

Alcione sorriu satisfeita. Ninguém, ali, poderia entender a vibração do seu

contentamento; mas a verdade é que, Considerando a Confissão paterna,

transbordava de alegria Íntima.

— O senhor comparou muito bem — disse. —As palavras do Mestre estão

cheias de apelos maravilhosos, de socorros divinos, de mensagens do Céu.

184

Basta que nos esforcemos por lhe ouvir a voz e receber os dons.

Jaques Continuava muito impressionado.

— Senhorita — indagou —‘ vê-se que a sua educação religiosa é muito

diferente da que conhecíamos até agora. Encontro-me a termo de uma

existência Consagrada ao ensino, e, apesar da minha paixão pelos autores

antigos, nunca pude sair do círculo do meu tempo, circunscrevendo o serviço

da fé aos atos de adoração. Jamais pude compreender a igreja como oficina de

trabalho ativo, nem o culto doméstico do Evangelho como escola de

preparação para o esfôrço terrestre; no entanto, por suas observações sinto

que há métodos de interpretação que não conheço, e posso declarar, pelo que

ouvi da sua inteligência moça, que êstes processos de aprendizado são

sedutores. Desejaria saber se isso é comum nas escolas e lares de Espanha.

A jovem sorriu agradecida e esclareceu:

— Estas luzes, Sr. Jaques, eu as recebi do meu tutor, em nossas reuniões

familiares de Ávila; mas devo acrescentar que esta orientação não está

generalizada na pátria de minha mãe, mormente em Castela-a-Velha, onde o

Padre Damiano foi ameaçado duas vêzes pelas perseguições do Santo Oficio,

por haver tentado chamar a atenção do povo para êste sistema de estudo e

exegese.

— Que horror! — exclamou Cirilo num gesto significativo — é quase

inacreditável que a Igreja mantenha tal instituição.

— Não podemos inculpar a Igreja — retificou Alcione, carinhosamente —;

o Cristianismo, em tempo algum, autorizaria institutos dessa natureza.

Devemo-los aos maus padres, cujo coração ainda não pôde compreender a

suprema grandeza do Cristo.

O velho educador, sinceramente impressionado com as definições

ouvidas, tornou a perguntar:

— Onde poderei avistar-me, mais amiúde, com o Padre Damiano?

Alcione esboçou um sorriso melancólico e respondeu:

— Nosso velho amigo está à morte, na paróquia de São Jaques do Passo

Alto. Quase diariamente, à noite, vou recolher seus últimos pensamentos. Não

obstante o combate há muitos meses travado com a terrível enfermidade, vê-se

que êle está nas últimas. Com a sua morte próxima, perderei neste mundo um

segundo pai.

A notícia ecoou lügubremente na sala. Observando a nuvem de tristeza que

sombreava o semblante de Alcione, todos entraram em profundo silêncio. Foi

aí que a jovem lembrou:

— Agora, agradeçamos a Deus o socorro que nos foi enviado através da

inspiração. As mais das vêzes, temos a certeza de que devemos, em grande

parte, o pão material ao próprio esfôrço, mas o mesmo não se dá com relação

ao alimento espiritual. Êste nos vem sempre de Deus, do seu paterno coração,

que nos cumula de infinitos recursos. Temos na Terra a lei da necessidade,

mas o Senhor tem a do suprimento. Agradeçamos a sua misericórdia e

apliquemos as dádivas recebidas, porque novos elementos fluirão, para nossa

alma, dos seus inexauríveis celeiros de sabedoria e abundância.

Encerrada a reunião familiar com uma prece de reconhecimento, Alcione

retirou-se, deixando àfamília Davenport singulares impressões.

Ela parecia fortemente inspirada, quando dizia que Damiano estava às

185

portas da morte. Logo que chegou à casinha do burgo de São Marcelo, encontrou

a notícia alarmante. Um portador ali estivera para comunicar aos Vilamil

que o velho sacerdote agonizava. As freqüentes hemoptises da noite lhe

haviam aniquIlado as últimas fôrças. Madalena, não obstante a atrofia dolorosa

das pernas, suplicou à filha que a levasse em sua companhia, num carro mais

espaçoso, a fim de ver o abnegado amigo, pela última vez. A filha ouviu-a,

angustiada, e dentro de poucos minutos, à bôca da noite, um carro vagaroso

saía de São Marcelo para a residência do padre Amâncio. Alcione

recomendara, muito cuidado ao cocheiro. Chegando ao destino, Madalena

Vilamil conseguiu descer com grande sacrifício. Dois homens trouxeram larga

poltrona para conduzir a enfêrma ao quarto do moribundo. Alcione auxiliava o

transporte da genitora, com infinito carinho.

Lá chegadas, o agonizante pareceu reanimar-se. Robbie e a irmã adotiva

aproximaram-se respeitosos e pediram-lhe a bênção, enquanto a senhora

Vilamil, pedindo que a poltrona fôsse deposta à cabeceira do moribundo,

tomou-lhe a destra, muito pálida, em confortadora saudação fraternal.

Damiano tinha os olhos profundamente lúcidos e brilhantes, mas na feição

cadavérica pairava uma expressão de agonia dolorosa.

— Que é isso, padre?... — murmurou acabrunhada.

Ele fixou nela o olhar enternecido e respondeu, com voz quase sussurrante:

— A moléstia incurável, Madalena, é um escoadouro bendito de nossas

imperfeições. Que seria de minhalma se a moléstia do peito não me ajudasse a

expungir os maus pensamentos? Quantos bens ficarei devendo à solidão e ao

sofrimento? O Senhor, que mos deu, lhes conhece o inestimável valor. Eu, que

não chorava há muitos anos, alcancei novamente o beneficio das lágrimas...

Muitas vêzes ensinei do púlpito, mas o leito me reservava lições muito maiores

que as dos livros...

A filha de D. Inácio quis responder, testemunhar seu reconhecimento

imorredouro, dizer dos votos que fazia a Deus pelo seu restabelecimento, mas,

na sua angústia, não encontrava palavras com que traduzir o seu pesar. Não

conseguia, porém, reter as lágrimas que lhe rolavam, abundantes, dos olhos.

O moribundo prosseguiu após uma pausa mais longa:

— O catre amigo e silencioso me trouxe a recordação de todos os júbilos e

dores que ficaram no passado distante... Sem conseguir adaptar-me a esta

vida de Paris, tenho vivido quase que absolutamente das nossas velhas

lembranças de Espanha. Tenho grande saudade da nossa vida tranqüila, em

Ávila; dos fraternos serões da Chácara; dos colegas da igreja de São Vicente...

mas estou certo, Madalena, de que a vida não acaba com o corpo e

convencido de que Deus nos reunirá, em outra parte, onde não haja prantos

nem morte... Há diversas noites que sou visitado pela sombra dos entes

amados que me antecederam no túmulo... Ainda hoje, depois da última

hemorragia, enxerguei o vulto de minha mãe a dizer-me palavras de

consolação e coragem... Algumas crianças amadas, lá da nossa igreja antiga

de Castela, falecidas há muito tempo, me vieram ver à noite passada e me

abraçaram com carinho... Amâncio pensa que estou sendo vítima de

pesadelos, dado o meu esgotamento físico, mas eu não posso concordar...

A senhora Vilamil, aproveitando uma pausa, fêz um esfôrço e obtemperou

carinhosamente:

— Não deveis pensar nisso. Lembrai-vos de que precisamos do vosso

amparo paternal. Deus vos restituirá a saúde, para que nossa alegria não

186

desapareça para sempre. Recordai nossa viagem à América...

Damiano procurou, a custo, o olhar de Alcione, dando-lhe a entender o

cuidado com que se deviam conduzir naquelas circunstâncias e acentuou:

— Pede a Deus pela minha saúde espiritual, porque seria impossível

restaurar a do corpo, minha filha! A morte não é uma separação eterna. Estou

certo de que Jesus me permitirá voltar a teu lado, se minha vinda fôr útil...

Quanto à viagem ao Novo Continente, não te preocupes. Alcione está muito

jovem e Robbie quase que ainda não passa de um menino... Poderás ser muito

feliz na companhia dêles, aqui mesmo...

Madalena enxugou as lágrimas, murmurando:

— Tendes razão, padre! Também eu estou chumbada ao leito para

meditações necessárias. Minhas pernas paralíticas nunca me permitirão tão

longa viagem!...

— Não te lastimes, porém, pensando nesses obstáculos, certa de que a

misericórdia do Todo Poderoso nunca andou atrasada. Quando nos parece

tarda, é que algum motivo existe, que não podemos compreender de pronto...

A filha de D. Inácio continuava chorando enternecidamente. Em seguida, o

velho sacerdote, dando a perceber que desejava mudar de assunto, fêz um

sinal chamando Robbie à cabeceira. O menino atendeu, compungido.

— Por que não trouxeste o violino? — indagou com interêsse.

— Alcione me disse que o senhor estava mais doente — esclareceu

respeitoso.

— Isso quer dizer, meu filho, que preciso mais de te ouvir.

A irmã adotiva aproximou-se e interrogou com ternura filial:

— Desejáveis ouvir alguma coisa, padre?

— Sim, Alcione. Se fôsse possível, a Ladainha de Nossa Senhora, que

cantaste na primeira missa de Carlos, na igreja de São Vicente. Recordas?

Dêsse modo lembraríamos o amigo distante, bem como o recanto de Castela,

onde fomos tão felizes!...

— Poderei pedir a padre Amâncio que nos empreste o violino do côro de

São Jaques — exclamou a jovem esforçando-se por conter as lágrimas.

— Seria um grande consôlo!

Ouvido um dos três clérigos que se conservavam no quarto, prontificou-se a

buscar o instrumento.

Daí a minutos, a voz cristalina de Alcione enchia o aposento, arrebatando

os ouvintes a um plano de misteriosa luz espiritual. Robbie acompanhava o

canto, com extrema felicidade em cada nota de sublime harmonia. O

moribundo parecia extático. A ladainha, muito antiga, abria-lhe novos

horizontes de claridade maravilhosa. Madalena tinha um lenço colado aos

olhos, enquanto o lacaio e os religiosos choravam comovidos.

Quando terminou, o agonizante chamou a jovem e lhe falou dêbilmente:

— Alcione, Deus te abençoe por esta alegria... Depois, contemplou a

senhora Vilamil demoradamente, e, trocando com a moça significativos

olhares, voltou a dizer:

— Faze pela paz espiritual de tua mãe tudo que possas! E se tiveres,

algum dia, qualquer necessidade mais forte, uma dificuldade mais premente,

lembra-te de Carlos, minha filha! Sei que não te encontras sôzinha no mundo,

mas não posso esquecer que acima de tudo devemos considerá-lo teu irmão!...

Surgindo a dispnéia das horas derradeiras, Damiano não mais podia

conversar senao por monossílabos. Após entendimento com a genitora, a jo187

vem Vilamil acercou-se do moribundo, murmurando:

— Padre, levarei mamãe e Robbie de volta a São Marcelo, mas estarei

novamente aqui, dentro em pouco, para ficar convosco!...

— Não te incomodes, nem deixes Madalena... por minha causa...

Mas, acompanhando os seus ao lar, Alcione regressou sem demora, a fim

de assistir o velho amigo, até ao fim.

As restantes horas da noite êle as passou em coma, assistido pelo afeto da

filha de Cirilo, que lhe enxugava o suor álgido com extrema dedicação.

Quando a aurora se fazia anunciar em clarões muito rubros, o velho

Damiano verteu a última lágrima e entregou a alma ao Criador.

Um emissário chegava, pela manhã, ao palacete da Cité, entregando uma

carta da governanta de Beatriz, endereçada a Susana, em cujas linhas

explicava a sua ausência ao trabalho.

A família Davenport comoveu-se. À tarde, uma carruagem elegante parava

à porta do presbitério de São Jaques do Passo Alto. Dela desceram Jaques e

Cirilo, que iam prestar afetuosa homenagem ao morto.

Impressionados com o abatimento da jovem, ambos se desdobraram em

gentilezas e expressões confortadoras. Cirilo procurou o padre Amâncio e fêz

questão de pagar as despesas do enterramento, acrescentando generosa

dádiva destinada ao lacaio que servira ao tutor de Alcione.

A jovem agradeceu com lágrimas. Depois de uma hora consoladora,

despediram-se atenciosos.

Ao crepúsculo, a filha de Madalena assistiu ao modesto funeral, de coração

confrangido. Por muito tempo deixou-se ficar na silenciosa mansão dos mortos,

em prece comovedora ao Altíssimo, Só tarde da noite, passos vacilantes,

regressou ao lar, experimentando indefinível amargura.

188

4

Reencontro

Um ano depois da morte de Damiano, houve na casa humilde do burgo de

São Marcelo grande e desconcertante surprêsa.

Orientado pela paróquia de São Jaques, Carlos Clenaghan, ansioso e

comovido, bate à porta de Madalena Vilamil. Nos primeiros meses que se

seguiram à morte do tio, resolvera abandonar a batina, apesar do

ressentimento dos colegas. Jamais pudera esquecer Alcione, jamais

conseguira manter um equilíbrio entre o dever e os impulsos da mocidade.

Enquanto recebia as longas cartas de Damiano, a palavra amorosa do tutor lhe

sofreava as preocupações tormentosas; mas, tão logo se viu sem o

preservativo dos seus conselhos, entrou a meditar resoluto na mudança de

situação. Anelava um lar, ardentemente, jamais renunciaria à afeição de

Alcione, não conseguia sopitar o desejo de ser pai e espôso feliz. Após

algumas lutas em Ávila, desprezara o apêlo dos superiores hierárquicos e, sem

dar qualquer satisfação do feito aos parentes irlandeses, desligara-se do voto

sacerdotal, cheio de esperança no futuro. Seu primeiro cuidado foi correr a

Paris, por buscar a noiva amada. Como o receberia ela? Conhecia-lhe a pureza

dos princípios e a formosura do caráter cristão. Suspeitava que lhe não

sancionaria a decisão, atento o conceito que fazia da fé; mas, faria o possível

por demonstrar-lhe o seu amor imenso, convencê-la-ia com instâncias

afetuosas, tanto mais quanto ela, agora, já não poderia contar com a

assistência paternal de Damiano, que a morte arrebatara, e no lar, pelas

notícias que recebia freqüentemente em Castela-a-Velha, arcava com muitas

dificuldades, em vista da moléstia incurável da genitora. Talvez os trabalhos do

mundo lhe houvessem modificado a opinião, relativamente ao enlace para uma

vida tranqüila e risonha. Oferecer-lhe-ia o braço protetor, voltariam à Espanha,

onde pretendia continuar, em Ávila ou Valladolid, dedicando-se ao comércio.

Ébrio de esperanças, Clenaghan erguia castelos maravilhosos na mente

exaltada. Edificariam um lar venturoso, Madalena Vilamil seria também uma

segunda mãe, aprimorariam a educação de Robbie e teriam filhinhos amados.

Impossível que ela relutasse, quando não desejava senão a suprema felicidade

de ambos, diante de Deus e dos homens.

Enlevado nestes sublimes projetos, esperou que alguém viesse atender.

Depois de alguns instantes de espera em que o coração lhe palpitava descompassado,

surgiu a figura de Robbie, que lhe caiu nos braços afetuosamente.

Conduzido ao interior, foi enorme a alegria da filha de D. Inácio ao receber as

carinhosas saudações do amigo, e não menor a surprêsa quando êle falou da

sua renúncia eclesiástica.

Depois de longa troca de idéias e impressões afetuosas, referentes à vida

em Castela e à enfermidade que aniquilara Damiano, o ex-padre aproveitou

certas observações mais íntimas e sentenciou:

— Como bem pode avaliar, D. Madalena, eu nunca poderia esquecer

Alcione, e ciente de que o seu coração de mãe carinhosa compreende e justifica

os meus propósitos, devo dizer que aqui estou para reconduzi-las aos

caros penates... A senhora não gostaria de regressar a Castela para revivermos

nossos tempos mais venturosos....

Aquelas palavras eram pronunciadas com tanto carinho que a senhora

Vilamil sentiu lágrimas de reconhecimento a lhe aflorarem dos olhos.

189

— Não sei se Alcione me perdoará haver procedido em desacôrdo com o

seu ponto de vista, mas tenho para mim que procedi nobremente. Fui lógico,

sincero, coerente, creia. De que me valeria continuar, sem a vocação

imprescindível? Desde que a Senhora saiu de Ávila, debalde procurei repouso

para o espírito atormentado. A ânsia de construir um lar tornou-se-me

obsessão permanente. Às vêzes, quando erguia a hóstia consagrada, assustava-

me com as sugestões da natureza... Enquanto o padre Damiano me

escrevia as suas exortações, eu me sentia fortalecido para prosseguir na

batalha silenciosa; mas verifiquei, depois, que seria inútil combater o

impossível...

A pobre enfêrma recebia a confissão com tristeza inexplicável, e, tendo o

rapaz notado que o coração maternal se encontrava embaraçado para

responder, prosseguiu:

— Se lhe fôr possível, ajude-me neste passo... Quem sabe recuperará a

saúde, regressando comigo? Se lhe prouver, poderemos residir nas cercanias

de Ávila, organizaremos uma chácara como aquela onde a senhora viveu

longos anos e que está sempre em suas recordações!...

Falava como filho afetuoso, pondo no olhar e na voz tôda a ternura do

coração bem formado. Depois de ligeira meditação, a senhora Vilamil ponderou,

com acento triste:

— Sou muito grata à tua lembrança! Ah! quem me dera voltar para esperar

a morte, contemplando o céu da Espanha! A paisagem da Guadarrama nunca

sairá de minhalma...

E depois de enxugar o pranto da evocação amarga, voltava a dizer:

— Esta cidade parece marcar as horas mais terríveis do meu destino. Aqui

em Paris conheci, na mocidade, a pobreza mais dura, experimentei a ironia e a

crueldade de pessoas ingratas, perdi meus pais carinhosos, abracei meu

espôso pela última vez! Agora, neste mesmo lugar, encontrei a paralisia

completa, vi morrer o padre Damiano em situação quase miserável!... Desde

que aqui cheguei, jamais pude arredar-me do leito para uma visita ao túmulo

dos meus inesquecíveis genitores. Não sei se estarei condenada a também

exalar aqui o derradeiro suspiro... Por meu gôsto, devo confessar francamente,

estou ansiosa por voltar à Espanha; entretanto, preciso ouvir Alcione que me

tem sido verdadeiro anjo guardião nos dias amargos, de necessidade e

sofrimento. Como mãe, não me sinto com ânimo para induzi-la a casar-se.

Minha filha, antes de tudo, tem sido para mim uma conselheira respeitável. Não

seria justo obrigá-la a aceitar minhas idéias, mas podes crer que eu receberia o

assentimento dela com o maior contentamento. Voltei à França no propósito de

conseguir recursos para demandar as plagas americanas, mas, logo que o

padre Damiano apresentou os primeiros sintomas da enfermidade do peito,

perdi as esperanças!...

Clenaghan estava mais esperançado. Sentia-se plenamente garantido, no

tocante às concessões maternas, O sincero desabafo de Madalena encorajavalhe

as pretensões. A pobre senhora, extremamente abatida, inspirava-lhe

simpatia e enternecimento filiais. Tal qual acontecera à genitora, a filha de D.

Inácio viu chegar, devagarinho, o mal do coração. Suas noites estavam agora

povoadas de aflições repetidas. Além das pernas inchadas pela continuidade

da mesma posição no leito, sentia-se prêsa de outros sintomas alarmantes.

Debalde, Alcione e Luisa preparavam tisanas e aplicavam fomentações, em

cansativas vigílias. A senhora Vilamil piorava sempre. Esse o motivo pelo qual

190

as observações de Carlos lhe falavam tão fortemente ao coração.

— Pois bem — acrescentou o sobrinho de Damiano, mais animado —,

Deus há de permitir que a senhora encontre a meu lado a tranqüilidade merecida.

— Alcione decidirá — acentuou a enfêrma resignada. — Até que minha

filha se pronuncie, nada poderei dizer em caráter definitivo.

A conversação continuou afetuosa, permanecendo Clenaghan em São

Marcelo, à espera de Alcione, que regressava habitualmente à noitinha.

Mal começavam a brilhar no céu os primeiros astros, a filha de Cirilo voltou

da sua faina diária.

A surprêsa foi demasiado chocante para sua alma sensível. Cumprimentou

o rapaz, muito pálida, na atitude de íntima e penosa expectativa. Naquela hora,

o pupilo de Damiano, entestando com a sua superioridade moral, sentia-se

acovardado para as explicações indispensáveis. A princípio, a moça julgou que

ele tivesse vindo a Paris no só intuito de visitar o sepulcro do tio querido,

prestando-lhe a derradeira homenagem e valendo-se de alguma autorização

especial para levar a efeito tão longa excursão, sem a batina comum. Mas, em

breves minutos, Carlos, não sem enleio, notificava-lhe a verdade. Estupefata,

Alcione indagou:

— Como pudeste cometer semelhante desvario?

O rapaz, algo confuso, tentava esclarecer:

— Supus que seria melhor assim... Era impossível continuar, O coração

inquieto, desde que vieste, nunca me permitiu reaver a paz interior. Pedi a

Deus me inspirasse a melhor solução, supliquei ardentemente do céu um

recurso, até que o propósito de renunciar ao compromisso eclesiástico de todo

me empolgou.

No íntimo, a filha de Cirilo estava profundamente comovida com aquela

espontânea confissão de fraqueza, mas, certa de que o dever espiritual deve

ser cumprido até ao fim, alcançou energias para observar:

— Pediste, mas não oraste. Como te sentiste forte para esquecer as

obrigações assumidas, sem considerar a questão do proveito próprio? Será

isso a renúncia cristã? Não creio. Declaras que imploraste uma inspiração do

Céu e resolveste o problema distanciando-te do compromisso; mas eu não

posso admitir, em nenhuma hipótese, que Deus nos dispense dos seus

trabalhos; nós é que por vêzes ouvimos o apêlo da natureza inferior e abandonamos

o serviço divino, em prejuízo de nós mesmos...

— Não desconheço, Alcione — aventou humilde — que minha atitude

inesperada desagradaria muito ao teu bondoso coração. Entretanto, o que

aconteceu é humano e peço me perdoes pelo muito bem que te desejo...

Esquece esta falta, dize que me compreendes e serei feliz!...

A nobre criatura, pelo tom carinhoso com que Clenaghan falava,

compreendeu que êle desejava reatar os antigos laços afetivos. Experimentou

sincero desejo de lhe tomar as mãos, ternamente, confessando os seus

anseios e saudades. Ele agora estava livre. Observando-o, naquela atitude

amorosa, recordou as jovens da sua idade, que se apresentavam a cada

passo, em Paris, exibindo os seus eleitos. Muitas vêzes, quando acompanhava

Susana a certas festividades públicas, vinha-lhe à mente Clenaghan, ao

contemplar os pares venturosos que perambulavam nas praças e jardins. E

sentia, então, frio no coração. A própria Beatriz, aos quinze anos, começava a

receber as visitas afetuosas do noivo. A filha de Madalena fitou o rapaz,

191

demoradamente, e teve ímpetos de ceder ao primeiro impulso, mas a

consciência lhe dizia que resistisse, que era indispensável atender a Deus

acima de quaisquer contingências mundanas, e que ainda não havia cumprido

todos os deveres, para que pudesse pensar na sua felicidade pessoal.

Muito sensibilizada pela atitude humilde, penitencial do bem-amado,

retrucou:

— Não me suponhas capaz de condenar-te por coisa alguma desta vida.

Apenas lamento o que sucedeu, porque é razoável te deseje no caminho da

fidelidade a Jesus, até ao fim.

Sinceramente embaraçado, o ex-eclesiástico não sabia como reatar a

explanação dos seus projetos. A senhora Vilamil, no entanto, acudiu a socorrêlo,

advertindo:

— Carlos, minha filha, faculta-nos o ensejo de regressarmos à Espanha.

— Sim — prosseguiu o rapaz —, agora estou liberto e apto para

reorganizar a vida, mas nada quero fazer sem te ouvir. Desde que nos vimos,

compreendi que Deus não me poderia destinar outro coração feminino, além do

teu. Tomo, portanto, tua mãe, como testemunha da minha afeição pura e devo

dizer que vim a Paris só para buscar-te. Estou certo de que acreditas no meu

devotamento e de que nos uniremos para sempre, eternamente felizes sob as

bênçãos de Deus.

A jovem contemplou-o ofegante, e como se sentisse em hora das mais

difíceis de tôda a sua vida, implorou a inspiração de Jesus e silabou:

— É impossível!...

Clenaghan empalidecera. Adivinhava nos olhos da escolhida que a sentença

não lhe provinha do coração.

— Por quê? — indagou exaltado — o que poderá impedir nossa ventura na

Terra? Serei assim tão detestável? Desde que te ausentaste tenho vivido como

louco. A saudade e a inquietação começaram a nevar-me os cabelos. Voltemos

a Castela, Alcione! Levaremos tua mãezinha por dar-lhe uma vida tranqüila e

feliz!...

Tais palavras ecoavam nos ouvidos da jovem como doce harmonia de uma

felicidade inatingível. Contemplou a genitora, que parecia aguardar sua

decisão, ansiosamente, mas recordou também o palacete da Cité, onde seu pai

não era menos doente da alma, arrostando absconsos pesares. Lembrou as

reuniões evangélicas em que Cirilo Davenport ouvia as lições de Jesus e as

suas explicações como se estivesse a receber suaves mensagens do Céu;

considerou as transformações de Susana, a mudança de Beatriz, o enternecido

carinho do velho Jaques... Seu coração estava sufocado. Fitou o escolhido,

longamente, e esclareceu em voz pausada:

— Não posso, Carlos! A felicidade tem base no dever cumprido. Ainda não

terminei minha tarefa de filha, como queres que assuma novas obrigações?...

Isto, ela o dizia desfeita em lágrimas, O pupilo de Damiano, todavia, longe

de conhecer tôdas as angústias e sacrifícios daquela alma heróica, tomou as

suas palavras alusivas ao dever cumprido como acusatórias da sua renúncia

eclesiástica e objurgou:

— Queres dizer que ainda não concluí minhas tarefas sacerdotais e desejo

assaltar novo plano de obrigações?

Acabrunhada por se ver incompreendida, Alcione reviu mentalmente a

figura do padre Damiano, relembrou a sua franqueza, que chegava a ser quase

áspera, e certificou-se de que necessitava de muita energia para defender-se

192

dignamente naquele lance. Recobrando a serenidade íntima, em virtude da

poderosa confiança em Cristo, explicou-se com bondade sincera:

— Que não terminaste o serviço começado, éinegável; mas semelhante

circunstância, Carlos, já entrou no domínio de minha compreensão. Somos

agora como duas criaturas às quais se reservou uma herança de ventura

imortal, sob a condição de executarem determinadas tarefas. Infelizmente, não

pudeste chegar à conclusão da tua. Tôda vez que fugimos ao desígnio sagrado

de Deus, erramos no labirinto da indecisão e da amargura. Não te doerá o

coração arrebatar-me aos deveres que o Pai me destinou? Consideras, então,

o amor como coisa tão frágil que se despedace num momento, apenas porque

não nos foi dada a satisfação passageira de um capricho sentimental? Onde

colocas a divina união das almas? Nossa concepção deve ir muito além da

alucinada impressão dos sentidos...

O sobrinho de Damiano e a enfêrma ouviam-na, profundamente admirados.

Alcione fizera-se de uma palidez transfiguradora, parecendo haurir as palavras

em fonte estranha à esfera material. Ouvindo tantas alusões a compromissos,

o ex-padre supôs que suas obrigações espirituais não ultrapassavam o

acanhado círculo familiar do burgo de São Marcelo e objetou humildemente:

—Curvo-me às tuas exortações, mas, podes crer que não abandonei a batina

tão só pela inquietude dos desejos humanos. É verdade que sou um homem

carregado de fraquezas, mas também tenho um coração. Se é inegável que

encareço ardentemente a tua companhia, não é menos certo que te desejo

tomar sob os meus cuidados afetuosos. Que te prenderá em Paris, se te vejo

sobrecarregada de trabalhos mortificantes? De um lado, vejo D. Madalena

prêsa a um leito de dor, de ti segregada durante o dia e, ao demais, carecida

de outros ares; de outro lado, o nosso Robbie necessitando educação. Entre os

dois, tu, abatida e inquieta para dar conta exata dos teus encargos. Não será

mais justo atenderes aos meus apelos? Tua genitora confugiria aos teus

constantes e diretos cuidados e Robbie tomaria o lugar de primeiro filho em

nosso lar. É impossível que Jesus nos negue a bênção a propósitos tão

elevados. Sairias então do labirinto de vicissitudes e responsabilidades de

governanta, não precisarias pensar nas viagens diárias a Cité nos dias de

chuva, nem te atribulares em casa alheia por tua mãe distante, quando a

tempestade se forma no céu! Se puderes, esquece o meu passado de

sacerdote e pensa, ao invés, que, com tua inspiração permanente, alcançarei

novas fôrças para ser um homem digno nas lutas da vida. Esquece o mal que

eu tenha praticado pelo muito de bem que poderei fazer com o teu auxílio constante.

Medita na tranqüilidade futura de D. Madalena, que está definhando a

olhos vistos!... Será que nenhum dos meus argumentos te poderá convencer?

Tocada novamente pela doce humildade do querido postulante, Alcione

chorava. Ele jamais poderia aquilatar a intensidade da sua angústia. Ela não

poderia afastar-se de Paris sem lacerar a consciência. Jesus não a conduziria,

sem uma finalidade, à casa paterna, onde era tratada como filha, não obstante

o título de serva com que se apresentava. Em profundas reflexões, lobrigou no

olhar da genitora sincero desejo de se afastar de Paris para sempre.

Adivinhava-lhe os pensamentos mais secretos. Longos instantes passaram, em

que se sentia atormentada por terríveis indecisões. Reportou-se às últimas

palavras de Damiano, quando lhe recomendara procurasse o socorro de

Clenaghan nos transes mais difíceis. Firme, porém, no propósito de manter

ilibada a consciência até ao fim das lutas humanas, enxugou as lágrimas e rea193

firmou:

— Não posso... Sei o que mamãe tem sofrido em tão longos anos de

martírio, físico e moral, e espero que Deus nos estenda a mão, para que suas

dores sejam aliviadas; no entanto, agora, não me é possível deixar Paris...

A filha de D. Inácio esboçou um gesto de resignação, respeitando, sem

discutir, a decisão da filha. Não assim, o pupilo de Damiano, que deixou

transparecer no olhar uma profunda desconfiança.

— Ah! compreendo agora — disse desapontado —, não podes sair de

Paris! Louco que fui, presumindo que a vida aqui seria a mesma de Ávila. As

atrações parisienses modificam as criaturas...

Notando-lhe a profunda tristeza, a jovem Vilamil experimentou indefinível

aflição por se declarar abertamente, revelar a natureza dos sagrados deveres

que a escravizavam prisioneira, mas a verdade dolorosa lhe morria no coração.

Ferida nos mais nobres sentimentos, encontrou fôrças para murmurar.

— Não deves fazer semelhante juízo a meu respeito...

E muito enleada sob o olhar indagador do rapaz, que a envolvia em

atmosfera de humilhação, concluía:

— Ouve. Carlos! Quando houver cumprido meus deveres, quando minha

consciência permitir que pense em mim, irei procurar-te onde estiveres!

Guardaremos, eu e mamãe, tôda a nossa gratidão e confiança em ti. Não

importa hajas renunciado ao ministério sacerdotal, porque, então, quando me

sinta livre, poderemos iniciar nova e venturosa tarefa.

Clenaghan, entretanto, ouviu-a quase friamente, com o ciúme que lhe

envenenava o coração. Conturbado pelas sugestões inferiores, cada afirmativa

de Alcione, agora, lhe parecia diferente. Teve a impressão de que ela se

deixara levar em Paris pelas promessas de algum homem criminoso e

inconsciente. As palavras “quando me sinta livre” toavam-lhe dolorosamente.

Sentia-se estranho a tudo e não pôde murmurar senão evasivas ligeiras, até ao

momento em que se despediu para voltar ao hotel.

Alcione compreendeu o que se passava com êle, mas, ainda que

amargurada, chamou Luísa para os serviços de cada noite, relativos ao

tratamento de sua mãe e cumpriu, rigorosamente, o programa do lar. Madalena

Vilamil se envolvera num véu de tristeza silenciosa. Então, fazendo o possível

por dissimular as amarguras íntimas, a jovem procurou desfazer o ambiente

pesado, pedindo a Rohbie para tocar alguma coisa, enquanto lia à enfêrma

certas páginas de sua predileção.

No dia seguinte, pela manhã, saiu de casa como de costume, a fim de

esperar o carro do Sr. Davenport, na pequena praça, defronte da igreja mais

próxima. Um carro ia-lhe no encalço, discretamente, sem que ela o

suspeitasse. Era Carlos que, informado na véspera por Madalena, das regalias

e atenções que a filha desfrutava na casa onde servia, resolvera não deixar

Paris sem uma prova da singular transformação que injustamente atribuía à

criatura eleita. Cada pormenor da conversa com a senhora Vilamil, no dia

anterior, gravara-se-lhe indelével no coração. Por que motivo ela não esperava

o carro à porta de casa? Não havia necessidade de caminhar quase um

quilômetro para encontrar a viatura. Preocupado com essa primeira

observação, reparou a carruagem garbosa que Alcione tomou, a breve trecho.

A suntuosidade do veículo pareceu-lhe excessivamente inadequada para a

jovem humilde dos idos tempos de Ávila. Seguiu-a, mais ou menos de perto,

até que chegou ao destino. Viu-a descer e receber com evidentes mostras de

194

satisfação o abraço acolhedor de um homem que a esperava junto do rico

portão de acesso ao jardim. Considerou o palacete de linhas nobres, poucos

passos distante do seu carro de aluguel e, dando ouvidos ao despeito

venenoso, concluiu que Alcione não era mais aquela criança meiga e carinhosa

que entregava costuras nas ruas empedradas da cidade onde se haviam

encontrado e embebido de sublime e santo idealismo. Perplexo, alimentando

mil idéias errôneas, deliberou fugir no mesmo dia, da capital francesa,

demandando o Havre, onde não lhe seria difícil o retôrno à Espanha.

Mandando tocar de volta ao burgo de São Marcelo, procurou despedir-se

de Madalena.

Quando anunciou a intenção de regressar, a pobre senhora não ocultou a

surprêsa amarga:

— Não posso crer que volte tão depressa —afirmou com bondade.

— Não se preocupe por isso — exclamou o rapaz fingindo-se tranqüilo —,

não vim com a intenção de demorar-me. Tenho alguns amigos que me

esperam no Havre, por estes dias.

A resignação da enfêrma, aliada ao seu profundo abatimento, inspiravamlhe

sincera preocupação, mas não podia suportar o ludíbrio de que se julgava

Vítima.

— Alcione vai sentir muito a tua partida súbita.

Carlos sentiu que o coração se lhe descompassara no peito e respondeu:

— Pode ser que não. De qualquer modo, porém, vejo-a satisfeita e isto me

conforta o espírito. Muito desejava reconduzi-las à nossa terra distante, mas

reconheci que a providência não é mais possível, por importuna.

Madalena esboçou um gesto triste, murmurando:

— Tenho desejado, ardentemente, sair de Paris, mas minha filha discorda

e eu creio que terá razões ponderosas para isso.

— Mas, que razões seriam essas? — perguntou Clenaghan exaltado.

— Desconfio que o meu médico desaconselha a medida, porqüanto, há

muito, venho apresentando sintomas de grave afecção cardíaca... Vejo que

Alcione me oculta êsse detalhe, carinhosamente, mas, devo dizer, isso nada

me assusta. Tenho sofrido demais para disputar uma longevidade improdutiva.

Carlos não concordou, intimamente atribuindo as palavras da pobre senhora

a simples fruto do carinho maternal. Depois de longa pausa, desejando reforçar

a nociva atitude mental, perguntou:

— Alcione foi sempre bem tratada na casa onde trabalha?

— Sim — confirmou Madalena, convicta. —Lutamos terrivelmente, nos

primeiros dias de Paris, visto haver adoecido o padre Damiano, mas, desde

que minha filha se empregou na Cité, nunca mais sofremos qualquer

necessidade. Com o seu salário, não sômente foram atendidas as despesas

domésticos, como também tivemos a alegria de saber que nada faltou ao

nosso velho amigo.

— E a senhora está informada a respeito dessa família que lhe contratou

os serviços de governanta.

— Trata-se de um rico negociante de fumo —informou a interpelada,

atenciosa. (1)

— E a senhora nunca visitou essa gente? -

— Nunca, até agora. De há muito venho desejando visitar a casa que

acolheu Alcione como filha; entretanto, estou à espera de melhoras que me

permitam fazê-lo.

195

O rapaz calou-se. Quis manifestar à enfêrma a venenosa desconfiança

que o consumia, exteriorizar todo o rancor que lhe afluia ao espírito despeitado,

mas a doce resignação de Madalena Vilamil, prêsa ao leito naquele estado,

inspirava-lhe respeito sagrado. Era preciso ter um coração bem cruel para tirar

a derradeira partícula de esperança e tranqüilidade daquela alma sofredora de

mãe sacrificada.

Com estranho brilho nos olhos o sobrinho de Damiano voltou a dizer:

— Onde está Robbie? Quero abraçá-lo antes de partir.

A filha de D. Inácio percebeu nessas palavras a funda contrariedade que

absorvia o interlocutor, compreendeu quanto lhe magoava a atitude firme de

Alcione, com relação ao desejado regresso à Espanha, e esclareceu

conformada:

— A esta hora Robbie deve estar na igreja de São Jaques de Passo Alto,

em trabalhos de limpeza que padre Amâncio lhe confiou.

E como notasse que Clenaghan se dispunha a partir em deplorável estado

de espírito, a pobre senhora aduziu:

(1) Compelida pelas circunstâncias, a jovem Vilamil nunca forneceu à

genitora o nome exato da família a que servia. — Nota de Emmanuel.

— Não te vás querendo mal a Alcione. Carlos! Podes crer que minha filha

nunca te esqueceu a bondade fraternal e a sublime afeição. É bem possível

que, intimamente, ela deseje partir em busca da felicidade, junto do teu

coração, mas, talvez por minha causa sacrificasse os mais caros desejos.

Conheço-lhe o espírito de sacrifício. Sou testemunha silenciosa das suas lutas

nesta casa, onde sua dedicação é o nosso manancial de bênçãos!...

O ex-sacerdote, porém, estava obcecado pelo ciúme. Trazia óculos negros

nos olhos exacerbados da imaginação e não prestou atenção maior ao que lhe

fora dito, continuando inalteradas as próprias suspeitas. O olhar fixo, como que

alheio ao ambiente, despediu-se de Madalena, que o recomendou à proteção

divina. Horas depois, abraçava Robbie, pela última vez, tomando rumo norte,

de regresso a Ávila, profundamente desditoso.

Á noite, Alcione foi informada da precipitada deliberação do rapaz.

— Carlos pareceu-me bastante abatido e desesperado — afirmava a

genitora — e lastimei sinceramente vê-lo em tão penosa conjuntura.

A jovem, com expressão de indefinível tristeza, acentuou:

— Jesus há de proporcionar-lhe ao coração aquilo que presentemente não

lhe podemos dar.

— Qual será o motivo — perguntou a enfêrma com interêsse — que leva o

pobre Clenaghan a sofrer tanto? Ele é moço, talentoso, cheio de possibilidades

e, no entanto, daqui saiu como’ se fôra um pária da sorte!...

— A senhora não presume — aventou Alcione com um gesto significativo

— seja isso a primeira conseqüência da sua renúncia ao voto contraído?

Clenaghan, para nós, é criatura muito amada, mas, nem por isso, podemos

isentá-lo da rêde de amarguras e tentações que constringe a criatura quando

se evade ao mais sagrado dos deveres. Continuo a o derradeiro socorro da

religião. Desfeita em lágrimas, seguida de Robbie que não sabia como

disfarçar a imensa dor, Alcione pediu a assistência do padre Amàncio, dadas

as relações de amizade. Madalena Vilamil confessou-se, recebeu religiosamente

as bênçãos da extrema-unção. O velho pároco de São Jaques do Passo

196

Alto dirigiu-lhe palavras de fé e consolação, que a nobre senhora recebeu com

serenidade.

Mas, nada obstante a firmeza dos seus princípios religiosos, não conseguia

eximir-se à mágoa da separação da filha e de Robbie, as duas afeições que lhe

haviam sustentado a alma sofredora, por longos anos de provações atrozes.

Naquela noite que se seguira às últimas providências religiosas, a agonizante

parecia mais lúcida. Seus olhos haviam adquirido brilho diferente. Dizia

entrever paisagens extraterrestres, que a criada tomava à conta de

alucinações.

Enquanto Robbie soluçava baixinho, no quintal, Alcione aproximou-se do

leito e perguntou, como costumava fazer tôdas as noites:

— Mamãe, a senhora prefere agora a leitura?

A agonizante tinha as faces banhadas de suor. E enquanto a filha lhe

enxugava a fronte, respondeu na sua aflição:

— Hoje, minha filha, gostaria que lesses o Novo Testamento, o capítulo da

Paixão.

Sufocando as impressões dolorosas, a jovem tomou o livro e leu

vagarosamente, observando o profundo interêsse maternal pela triste narrativa

da passagem de Jesus pelo Hôrto.

Nessa noite, por mais que se esforçasse, Alcione não conseguiu fazer o

comentário. Com maudita dificuldade, continha as lágrimas que lhe bailavam à

flor dos olhos. A enfêrma interrogou-a com o olhar muito lúcido, e ela

respondeu beijando-a:

— A senhora hoje está fatigada. Minhas palavras poderiam incomodá-la... Além

disso, quero pensar que uma consciência pura é o melhor tesouro do mundo.

Nas melhores posições terrenas o homem será positivamente um

desventurado, sem o refúgio dêsse santuário interior, onde Deus nos fala,

consolando e esclarecendo, em sua infinita misericórdia!...

A doente pôs-se a meditar nessas verdades sublimes, enquanto a filha,

adivinhando a onda de preocupações acerbas que afogava o ser amado,

retirava-se para orar em silêncio, de modo a diminuir as próprias amarguras.

Dentro das vibrações poderosas da sua fé, Alcione pareceu consolada,

buscando nas tarefas ingentes de cada dia o olvido das penas amargas.

Não se haviam passado muitos dias do incidente, quando Madalena Vilamil

começou a apresentar sintomas de acentuada fraqueza. A moléstia do coração

não se limitava, agora, a sintomas vagos e intermitentes. Surgiram as dispnéias

noturnas, que lhe reavivavam a lembrança dos derradeiros dias de sua mãe, na

velha casa de Santo Honorato. Face macilenta, angustiada, contemplava

demorada-mente a filha, como a lhe anunciar o fim próximo. Passava as noites

a falar das experiências da vida, das necessidades de Robbie, da gratidão

devida àboa serva, dando a entender que se preparava corajosamente para a

grande jornada. Alcione tudo ouvia recalcando as lágrimas de amor filial. Compreendia

a gravidade do mal e dissimulava o prognóstico médico, revelando-se

confiante em melhoras futuras. Ainda assim, não conseguia arrebatar a

carinhosa genitora à invariável tristeza que lhe ensombrava a fronte.

Uma noite em que as tisanas caseiras não atenuavam a aflição dolorosa,

Madalena chamou a filha e falou francamente:

— Alcione, algo me diz ao coração que me reunirei a teu pai, muito breve...

— Ora, mamãe — exclamou a jovem, solícita —, combatamos a tristeza!

Sejamos confiantes, Deus ouvirá nossas preces.

197

E dosando cada palavra com o mel das consolações carinhosas,

continuava:

— Logo que a senhora puder viajar, voltaremos à Espanha. Notei que a

senhora entristeceu-se quando recusei a proposta de Carlos; mas, tratando-se

da sua saúde, a coisa é outra. Pense que teremos novamente um clima

restaurador e não se preocupe com os desgostos que aqui passou. A mão de

Jesus nos traçará o roteiro.

Em lhe ouvindo tais palavras de confôrto e piedade filial, tomou a mimosa

mão da filha e selou-a com um beijo, acrescentando:

— Não te mortifiques, filhinha! Jamais duvidarei ou perderei a confiança em

Deus; antes continuarei tudo esperando do Pai misericordioso que nos

acompanha lá dos Céus; mas julgo, também, que a resistência física, após

mais de vinte anos de enfermidade, vai chegando a têrmo... Estas dispnéias

não podem enganar.

Depois, fixando o olhar enternecido nos olhos da filha afetuosa, prosseguia,

melancólica:

— Não ficarás zangada comigo se te disser que estou muito saudosa.

Desde que Cirilo se foi, nunca mais senti o prazer da vida... Reconheço,

contudo, que o Senhor tem sido magnânimo, concedendo-me socorros

inesperados. Basta lembrar que meu pobre espôso morreu no mar, enquanto

eu me via socorrida num oceano de lágrimas, por teu amor. Tua afeição tem

sido meu santo consôlo, iluminado refúgio sôbre a Terra... Jesus te concederá

tudo o que te não pude dar na minha pobreza de mãe!...

A moça ouvia-lhe os conceitos carinhosos, de coração sufocado. Nunca

sua mãe lhe parecera tão triste, jamais se queixara assim, em qualquer outra

circunstância passada. Então, começou a soluçar, mas a enfêrma, afagando-a

com ternura, prosseguiu:

— Não chores... Para esta hora nos temos preparado desde a tua

infância... Não sei em que dia o relógio da eternidade terá marcado meu derradeiro

alento neste corpo; mas nós ambas estamos cientes de que a veste

carnal é também uma ilusão. Estou certa de que Jesus me restituirá a companhia

de Cirilo, para sempre. Cercar-te-emos, então, do nosso afeto e te

esperaremos num mundo mais feliz, onde não haja lágrimas, nem morte. Se

pudesse, ficaria contigo, a fim de partirmos juntas; mas, algo me diz que não

poderei realizar êste desejo. Não fôssem tua afeição e as necessidades de

Robbie, creio que partiria sem qualquer outro laço... Tenho, no entanto, a

consciência tranqüila, embora não me possa furtar a estas preocupações! Se

morrer de um instante para outro, confio o nosso Robbie aos teus cuidados!...

Ele é uma criatura caprichosa, difícil de educar, mas não cabe repetir

recomendações que bem conheces.

Diante de tanta resignação, Alcione sentia certa dificuldade para iludir a

triste realidade, no intuito de confortar o coração materno, mas, ainda assim,

lidando por mostrar-se esperançada, falou com brandura:

— Confiemos em Deus, acima de tudo! A senhora, mamãe, tem estado

muito sozinha, tem-se entregado em excesso aos pensamentos de morte. Sinto

que nossa casa necessita de alegria. Reanime-se para nós. Vou pedir uma

licença temporária para ficar a seu lado, e com um saldo de vencimentos do

que tenho a receber, vamos comprar um cravo. Quem sabe a música, que a

senhora sempre cultivou, não virá melhorar nosso ambiente?

A senhora Vilamil tentou um sorriso apagado, obtemperando:

198

— Teus sacrifícios já são muitos.

— Amanhã mesmo, pedirei aos pais de Beatriz que me ajudem na

aquisição. Não há de ser difícil. Recordaremos nosso antigo repertório

espanhol e creio que irá sentir muita satisfação em reviver essas lembranças.

— Sim, certamente que nos sentiremos transportadas a Castela, onde,

tantas vêzes, encontramos a felicidade nas coisas mais simples...

Observando a consolação que o assunto produzia, a cândida Alcione

prosseguiu:

— Ah! como estou satisfeita por vê-la confortada com êste projeto.

Teremos muitas vantagens com essa compra. A senhora vai experimentar

novo ânimo e Robbie, por sua vez, poderá ter minha cooperação, novamente,

nos seus estudos domésticos. E depois, quando as suas melhoras se

positivarem, pensaremos, seriamente, na mudança, à procura de melhor clima,

onde a senhora possa ficar boa.

A enfêrma mostrou-se mais consolada com as palavras carinhosas da filha

e considerou:

— Teu plano me reconforta pela ternura que traduz e rogo a Deus te

abençoe tanta bondade. Agora, porém, quero fazer-te dois pedidos, dado as

minhas preocupações.

A filha demorou nela o olhar inteligente e respondeu comovida:

— A senhora não deve pedir-me coisa alguma e sim mandar sempre.

— Pois desejaria — disse algo hesitante —que me conduzisses ao

cemitério, a fim de orar no túmulo de meus pais, assim satisfazendo uma velha

aspiração de minhalma. Não poderei ajoelhar-me junto dos sepulcros, mas

talvez consiga chegar até lá, carregada na poltrona, tal como quando visitei o

padre Damiano pela última vez...

A moça não conseguia ocultar a impressão de penosa surprêsa.

— A outra coisa que desejo — continuou confiante — é que tragas até aqui

a senhora a quem serves e que tem sido tão generosa contigo, isso para que

lhe peça maternal amparo à tua mocidade, caso eu morra mais cedo, como

aliás pressinto.

Alcione procurou não trair na face a estranha emoção que experimentava.

Madalena pleiteava duas coisas inadmissíveis. Mas, longe de quebrar o padrão

de tranqüilidade da querida enfêrma, concordou nestes têrmos:

— Tão logo se encontre mais forte para viajar de carro, iremos ao túmulo

de meus avós, mas, penso que mamãe não deve afligir-se por isso. Que é

mamãe, a sepultura senão um monte de cinzas? Quanto à genitora de Beatriz,

hei de trazê-la a São Marcelo na primeira oportunidade. Espero, porém, que a

senhora esteja descansada na fé em Deus. Repousemos a mente na

inesgotável bondade divina. É certo que temos muitas e grandes necessidades.

mas o Altíssimo tem tudo para nos dar e sômente espera saibamos

compreender a sua misericórdia.

A enfêrma calou-se, conformada. A moça, no entanto, confiava-se a Jesus

em preces fervorosas. Como solucionar o delicado problema? Não encontrava

recursos para atender mentalmente à questão obscura, mas contava com o

socorro do Cristo no momento oportuno.

No dia seguinte, um tanto acanhada, dirigiu-se a Cirilo, falando-lhe

receosa:

— Sr. Davenport, espero não me leve a mal se lhe pedir um grande

obséquio...

199

— Dize, confiante, minha filha! — respondeu o chefe da casa com inflexão

afetuosa — Poderá dispor de mim em qualquer circunstância.

Ela esboçou um gesto de reconhecimento e continuou:

— É que minha mãe, apesar de doente, gosta muitíssimo de música e, de

tempos a esta parte, noto-a excessivamente tristonha. Pensei, então, em pedirlhe

um adiantamento sôbre os meus ordenados, a fim de comprar um cravo de

segunda mão. Creio que isso reavivará o ânimo da pobre enfêrma.

Cirilo Davenport ouviu-a comovidíssimo.

— Com muito prazer — respondeu, solícito — e se quiseres eu próprio me

incumbirei da compra.

— Não, não — atalhou a jovem, temendo a informação do enderêço —, o

senhor não precisará ter êsse incômodo. Padre Amâncio, em São Jaques, me

fará êsse favor. É pessoa entendida e não fará uma aquisição muito cara.

Cirilo contemplou-a edificado com aquelas reiteradas provas de humildade

e concluiu:

— Esperarei, então, a conta das despesas e podes estar certa de que

tenho nisso grande satisfação.

Ela ia referir-se ao plano do resgate, mas o interlocutor antecipou-se

dizendo:

— Não penses em pagamento. Há muito que Beatriz me pediu um

instrumento dêsses para que o guardasses em penhor de nossa amizade. Não

será esta a ocasião de satisfazê-la?

Alcione rejubilava-se de encontrar tamanha generosidade.

Não se passaram muitos dias e a casinha pobre, de São Marcelo, tôdas as

noites se impregnava de melodias maravilhosas. A doente amada submergiase

em ondas de sonoridade divina, encontrando ternas consolações às penas

diuturnas. Robbie também percebeu que sua mãe adotiva não estava longe do

têrmo fatal. Nessa angustiosa perspectiva, imprimia ao violino acordes de

profunda beleza, traduzindo saudade e sofrimento indefiníveis. Alcione, a seu

turno, mostrava-se incansável no carinho dispensado à enfêrma idolatrada.

Cada noite eram recordadas velhas árias castelhanas, antigas músicas da

juventude de sua mãe, que a filha de D. Inácio escutava entre lágrimas de

profunda emoção. Para Madalena, a ternura dos filhos era uma gloriosa

compensação do mundo aos seus martírios inomináveis de espôsa e mãe.

— Tenho a impressão, minha filha — dizia com um sorriso de sincera

conformação — que nossa casinha se transformou num templo. Estou quase

convencida de que disponho, agora, da estação religiosa, da qual poderei partir

para a vida espiritual.

A filha multiplicava as expressões confortadoras e as melodias cariciosas

vibravam no ar, transportando a enfêrma a sublimes estâncias de puro gôzo

espiritual.

Semanas se passaram assim, contemporizadoras, até que um dia

Madalena acusou astenia geral. Grandemente assustada, Luisa esperava por

Alcione com angustiosa ansiedade. Robbie, porém, logo que chegou do

trabalho, resolveu procurar o socorro do médico assistente. A enfêrma estivera

desacordada alguns minutos e, em seguida, sucessivas aflições lhe causavam

verdadeiro tormento.

À tarde, como de costume, Alcione voltou ao lar, experimentando dolorosa

surprêsa com a gravidade do caso. Abraçou a mãezinha, mal podendo conter

as lágrimas.

200

— Que foi isso, mamãe?

Percebendo a aflição que lhe transparecia do olhar afetuoso, a doente

buscou tranqüilizá-la:

— Creio que não estou pior!... Talvez seja alguma perturbação do

estômago. Aliás, nunca me senti tão bem como nas últimas semanas.

O coração filial, porém, adivinhava naqueles olhos úmidos um esfôrço

supremo para tranqüilizá-lo. Ambas estavam convictas de que o fim se

avizinhava. A jovem fêz o possível para renovar-lhe as fôrças com palavras

encorajadoras, murmurando em seguida:

— Suponho que, por êstes dias, poderemos ir ao cemitério visitar o túmulo

dos nossos entes caros, como a senhora deseja. Reanime-se, mamãe! Pense

nos passeios que gostaria de fazer, pense na saúde e verá que as dores

desaparecem.

Entretanto, naquele momento, era a genitora quem se esforçava por

consolar a filha ansiosa.

— Ora, filhinha — objetava com um sorriso forçado —, que iria fazer ao

cemitério? Não sei onde tinha a cabeça, quando pensei e desejei conhecer a

sepultura de papai, visitando igualmente a de mamãe!... Com o correr dos dias,

fui ponderando melhor e acabei compreendendo que era mesmo um capricho

extravagante. Nossos amados não devem mesmo lá estar, envoltos em montes

de lôdo. Cheguei mesmo a sonhar com mamãe a elucidar-me da

impropriedade do meu desejo, afirmando que seu coração está comigo, junto

de mim, fortalecendo-me nas provações em curso...

Alcione ouvia confortada e surpreendida. A senhora Vilamil fêz uma pausa

mais longa, devido à dispnéia, e prosseguiu ofegante:

— Espero, porém, que Deus me ajude a realizar o outro desejo. Quando

pensas que vamos ter a visita dos teus patrões?

Alcione esboçou um gesto indefinível e asseverou:

— Os pais de Beatriz, segundo creio, não tardarão a vir...

— Ainda bem que assim é, pois quero agradecer-lhes o bem que nos têm

feito, no desdobramento de nossas lutas em Paris.

A chegada do médico, em companhia de Robbie, interrompeu o diálogo.

O facultativo examinou a doente com minuciosa atenção, formulando

conceitos otimistas que Madalena acolhia com melancólico sorriso, mas, ao

retirar-se, chamou Alcione em particular, afiançando-lhe gravemente:

— Apesar de nossos esforços e da tua valiosa dedicação, minha boa

menina, tua mãe está chegando a têrmo de vida.

A moça não conseguia articular palavra, sufocada pela dolorosa surprêsa,

enquanto o velho esculápio prosseguia:

— Qualquer medicação não passará de paliativo destinado a manter-lhe

uns restos de vitalidade. Pelos meus conhecimentos e longa prática, digo que

ela poderá expirar de um momento para outro; mas, na melhor das hipóteses,

não irá além de um mês...

Enquanto a desolada Alcione enxugava as lágrimas discretamente, o

médico procurava confortá-la, exclamando:

— Procura entregar o caso a Deus. Não te martirizes com a idéia de perdêla,

porque a paralisia de tua mãe é um dos casos mais angustiosos que

conheço, de há muitos anos, na minha clínica.

D. Madalena tem sofrido herôicamente, não seria justo perturbar-lhe o

coração nestes dias em que se prenuncia o têrmo de longos padecimentos...

201

Alcione fitou-o reconhecidamente, murmurando:

— O senhor tem razão.

No dia seguinte, a jovem Vilamil chegou ao palacete da Cité, assomada de

profunda tristeza. Olhos encovados, muito pálida, esperou que Susana se

levantasse, e, quando a atividade doméstica entrou no ritmo habitual, chamoua

por obséquio, em particular, assim falando:

— Senhora Davenport, infelizmente a situação em que me encontro obrigame

a importuná-la com um pedido de licença por alguns dias. Creio que minha

mãe não terá mais que um mês de vida... Ontem sofreu a primeira crise

cardíaca mais grave, e o médico me declarou que suas horas estão contadas...

A filha de Jaques condoeu-se sinceramente da governanta de Beatriz, pela

comoção e humildade com que lhe confiava a amargura do seu lar, e

respondeu com interêsse amistoso:

— Sem dúvida. Faço questão que permaneças ao lado de tua mãe, pelo

tempo que fôr preciso. Não tens sômente um irmão adotivo?

— Sim — disse a moça, desejando conhecer a intenção da pergunta.

— Neste caso, poderei combinar com Círio, e tua mãezinha, se julgares

conveniente e útil, virá para nossa casa. Como sabes, temos muitas dependências

desocupadas. Com isto não estou considerando a pausa das tuas

obrigações, mesmo porque, há muito, pretendia oferecer-te alguma

oportunidade de repouso no que concerne ao tratamento da enfêrma. De

antemão, estou convencida de que a providência daria a Cirilo muito prazer.

Aqui, na Cité, os recursos são mais fáceis e tua mãe seria uma doente também

nossa...

A filha de Madalena confortou-se com tamanha afabilidade, verificando o

poder regenerador do Evangelho sôbre aquela alma, e respondeu comovida:

— Pode crer, senhora Davenport, que minha mãe e eu lhe seremos

eternamente reconhecidas pela lembrança amável; no entanto minha genitora

não poderia deixar nossa casinha. Seria impossível transportá-la...

— Já que assim é — explicou Susana atenciosa —, levarás contigo uma de

nossas criadas para ajudar no trabalho necessàriamente aumentado nestes

transes.

— Agradeço muito, senhora, mas nós temos uma velha criada de

confiança, que se incumbe de todos os serviços. A senhora pode estar descansada.

Susana, porém, desejando externar, de qualquer modo, o desejo de ser

útil, buscou uma centena de escudos, colocando-os nas mãos da governanta, a

murmurar:

— Então, leve êste dinheiro. Talvez sobre-venha alguma despesa

imprevista.

Alcione aceitou, emocionada, e, quando pretendia retirar-se, a dona da

casa perguntou solicita:

— E o teu enderêço? Antes que te vás, desejo sabê-lo, para que Beatriz lá

chegue de vez em quando e nos traga notícias.

— Nossa casinha — esclareceu a filha de Madalena dissimulando o

embaraço — não tem uma característica com que se possa identificar, mas a

senhora pode ficar tranqUila que eu aqui virei sempre que fôr possível e, no

caso de qualquer ocorrência mais grave, não deixarei de mandar um portador.

Mais uma vez, Susana preocupou-se com as evasivas da moça, nesse

particular, mas não fêz qualquer objeção. Todos os familiares se interessaram

202

pelo caso e procuraram expressar votos sinceros de solidariedade e feliz

desfecho.

Alcione afastou-se apressadamente para o arrabalde de São Marcelo, tôda

entregue a penosaS cogitações. Observara em Susana sincero desejo de

aproximar-se. Que aconteceria se os Davenport lhe descobrissem a

residência? Infelizmente, o estado da genitora não lhe permitia ponderar a possibilidade

de se retirarem para alguma aldeia distante. Rogava a Deus o

socorro divino de sua bondade nas inquietantes expectativas que lhe assaltavam

o espírito. Prometia a si própria voltar sempre à Cité, para desviar da

segunda espôsa de seu pai a idéia de uma visita a São Marcelo, cujas

conseqüências seriam demasiadamente dolorosas para todos. De volta ao lar,

verificara que a doente querida não obtivera qualquer melhora. Fêz o possível

para dissipar os pensamentos que a torturavam, entregando-se à tarefa de

enfermeira carinhosa, com todos os desvelos do coração.

Os dias escoavam-se com expectativas atrozes. A senhora Vilamil

alcançava apenas rápidos minutos de repouso, para voltar logo às dispnéias

angustiantes. De quando em quando, vinha o médico e esperançava a enfêrma

com palavras amigas, meneando, porém, tristonhamente a cabeça, tão logo se

via a sós com a filha, a comentar a situação.

A pobre moça não sabia como atender à complexidade dos problemas

torturantes. De três em três dias, corria à Cité, onde, exibindo olhos fundos e

considerável abatimento, procurava tranqüilizar os Davenport. Ante as

interrogações afetuosas de Cirilo, ou de Susana, alegava que a enfêrma estava

melhor e mais forte, ansiosa por lhes desvanecer a intenção da visita.

A situação, porém, era outra. A filha de D. Inácio, ao fim de três semanas,

apresentou os sintomas inequívocos da morte. O facultativo recomendou

preparar-lhe umas gôtas calmantes para o sono necessário.

A agonizante pareceu confaanar-se e perguntou:

— Onde está Robbie?

A jovem foi buscá-lo imediatamente. Instado por ela, o rapazinho enxugou o

pranto, compôs a fisionomia como pôde e acorreu à cabeceira da mãezinha

adotiva. Madalena deu-lhe a destra muito branca, que êle beijou enternecido;

mas, notando-lhe o abatimento extremo, o nariz afilado pela dor da agonia, as

unhas roxeadas, os olhos fulgurantes dos últimos lampejos, não pôde atender

aos rogos da irmã e rojou-se de joelhos, a soluçar convulsivo. A senhora

Vilamil deitou à filha um olhar de quem roga cooperação e, passando a mão

descarnada e trêmula pela sua cabeça, perguntou:

— Por que choras assim, meu filho?

Alcione procurava erguê-lo com delicadeza, mas Robbie, como que desejando

desabafar com a enfêrma, que sempre o tratara com ternuras de mãe,

murmurou em pranto:

— Ah! que será de mim se a senhora morrer?

— Que é isso, Robbie? — falou Alcione com afetuosa energia — pois

mamãe está doente e cansada e tu não tens pena de vê-la com tanta necessidade

de dormir .....

Madalena sorriu tristemente, mostrando que desejava consolá-lo, e disse

com esfôrço:

— Deus é Pai, meu filho, e nunca nos separará em espírito... A morte

aniquila o corpo, mas a alma é indestrutível... Não chores assim, porque essa

atitude demonstra falta de confiança no Todo Poderoso...

203

— Sei que a senhora não me esquecerá — disse o rapaz

comovedoramente — e que, se partir, pedirá por mim, lá no céu... mas por que

não morro em seu lugar, se vivo tão escarnecido neste mundo? Sem a

senhora, como suportarei as ironias da rua e as sátiras ferinas daqueles

próprios meninos confiados aos meus cuidados para os serviços da música, na

igreja?

E vendo que Madalena olhava para a filha, como a inculcá-la sua

substituta, para o futuro, Robbie reclamava em tom de lástima:

— Alcione trabalha fora o dia inteiro, nunca terá tempo de ouvir-me!... Luisa

não me pode compreender. Se a senhora se fôr, a casa para mim

fica vazia, sem ninguém...

A filha de D. Inácio deixou escapar uma lágrima.

— Se Deus me chamar, Robbie, lembra que aqui estarei guardando-te em

espírito... Seguirei teus trabalhos com o mesmo interêsse, cuidarei da tua

saúde, dar-te-ei fôrças para ouvir os ditos ingratos do mundo, enquanto o Todo

Poderoso fôr servido...

Alcione avaliou a angústia materna e, abraçando-se com o irmão adotivo,

observou:

— Vamos, Robbie! Estás muito nervoso. Luisa te levará um cordial, logo

que te deites. Quem te disse que mamãe vai morrer? Não achas que

éingratidão atormentá-la com êstes pensamentos lúgubres?

O rapaz atendeu e retirou-se amparado pela irmã, a esfregar

nervosamente os olhos.

Alcione regressou ao quarto da enfêrma para desmanchar-se em carinhos.

De minuto a minuto, passava-lhe na fronte um fino lenço, enxugando o suor

abundante. Em dado instante, Madalena Vilamil pareceu sossegar. À dispnéia

sucedia uma relativa serenidade. Em preces fervorosas, a filha observou,

porém, que os olhos estavam demudados, qual se apresentam nas febres

intensivas. A agonizante parecia delirar de alegria. Começara um período de

perturbação, natural em muitos casos de desprendimento, no qual a senhora

Vilamil não sabia se estava na Terra ou noutra região.

— Por que vos demorastes tanto, padre? —insistia em perguntar, dando a

entender que falava a uma sombra.

— A quem se refere, mamãe? — inquiriu Alcione impressionada.

— Padre Damiano aqui está... Não o vês?

E olhando, ansiosa, para um canto do aposento, a agonizante perguntava:

— Ah! quem sois vós?

Mas, quase no mesmo instante, olhos desmesuradamente abertos,

rematava:

— Minha mãe!.., minha mãe!...

Alcione acompanhava-lhe o pranto natural, rogando a Jesus lhes enviasse

o socorro divino da sua misericórdia.

Depois de um minuto, a filha de D. Inácio voltava a dizer:

— Minha mãe veio interpretar, para nós, a leitura evangélica... Sim, todos

nós temos um hôrto de agonias, que atravessaremos a sós, no esfôrço

valoroso da fé... todos teremos um caminho doloroso e um calvário... mas,

além de tudo isso... a criatura de Deus encontrará a ressurreição e a vida

eterna...

A moça, que a ouvia entre lágrimas, não duvidou da visita espiritual de que

era testemunha. Decorridos alguns instantes, sempre dando a entender que

204

recebia a voz do invisível, a agonizante voltou a interpelar as sombras:

— E Cirilo, minha mãe? — por que não veio em sua companhia?

Os traços de Madalena iluminaram-se de contentamento.

— Amanhã? — bradou a enfêrma desvairada de júbilo.

Em seguida, misturando as impressões espirituais com as do plano fisico,

dizia à filha, surprêsa:

— Teu pai chegará amanhã! Como me sinto melhor, minha filha!... Nosso

quarto está cheio de luzes! Minha mãe diz que chegou o tempo da minha cura

e que partirei com ela, amanhã, ao entardecer...

A moça estremeceu. Seu pai viria no dia seguinte? Como interpretar

semelhante afirmativa? Tratar-se-ia de uma expressão confortadora ou de

promessa justa do plano espiritual? Fundamente espantada, pedia a Deus lhe

iluminasse a razão para o entendimento de sua divina vontade.

Desde essa hora, Madalena, semi-inconsciente, dava a impressão de

preparar-se para o amanhã jubiloso.

— Vai, minha filha — dizia inquieta —, abre a grande mala e traze os dois

grandes cadernos de anotações de teu pai, a velha Bíblia, o livro de orações...

Alcione sentia-se compelida a obedecer maquinalmente. Minutos depois, as

pequenas lembranças de Cirilo estavam alinhadas sôbre a mesa rústica, ao

lado das drogas medicamentosas. Só então, quando as viu a tôdas,

envolvendo uma a uma em delicioso olhar, conseguiu entrar em branda

sonolência, como quem repousa após cumprir um sagrado dever. Alcione,

porém, continuou vigilante, certa de que a mãezinha amada vivia na Terra os

minutos derradeiros. Pela madrugada, voltaram as crises. Madalena

abandonava o corpo, devagarinho, entre dispnéias dolorosas e visões do

mundo espiritual, que lhe deixavam o espírito meio confuso. Pela manhã, duas

vizinhas solícitas vieram ajudar nos afazeres domésticos. Alcione, sempre

colada à cabeceira da mãe, que continuava a falar em voz alta, prosseguia em

oração silenciosa, imprecando a intervenção de Jesus no lutuoso transe.

Voltemos agora ao palacete da Cité, onde, não obstante as informações

tranqüilizadoras da governanta de Beatriz, reinava certa inquietude pela sua

ausência prolongada. Todos sentiam a sua falta, não no trabalho prôpriamente

dito, mas na assistência que seu coração dedicado sabia proporcionar a cada

um. O culto doméstico, sem a sua presença, parecia desprovido das luzes

ardentes que caíam sôbre os textos aparentemente obscuros, dilatando

confortadoras e divinas inspirações.

Na véspera daquele mesmo dia em que a jovem aguardava o traspasse da

genitora, os Davenport comentavam, durante o almôço, a sua demora, quando

Susana obtemperou:

— Alcione cá esteve há cinco dias. Tranqüilizou-nos sôbre o estado da

enfêrma, mas eu tenho necessidade de visitá-la, de qualquer modo.

— Muito bem — respondeu Cirilo com atenção —, também acordei hoje

com a idéia de fazer o mesmo. Poderemos então fazê-lo amanhã.

— E o enderêço? — objetou a senhora — até hoje, por mais que me

esforçasse, não consegui obtê-lo. Quando o solicito, Alcione perturba-se e há

muito, por isso, deixei de lhe exprimir o sincero desejo de me aproximar dos

seus.

— É o acanhamento natural — justificou o chefe da casa, com bonomia.

O velho professor de Blois interveio, murmurando:

205

— O enderêço? É muito fácil. Sabemos que Alcione tem relações afetivas

com o pessoal da igreja de São Jaques do Passo Alto. Basta recordar que ali

visitamos os despojos do seu tutor...

— É verdade — concordou Cirilo —, como não me havia lembrado antes?

Mandaremos o cocheiro tomar informações ainda hoje.

Susana, que se interessara vivamente pela lembrança paterna, tomou as

primeiras providências, chamando o servo para a incumbência.

— Então, Cirilo — disse a dona da casa —, podemos ir amanhã cedo a

São Marcelo, caso tenhas tempo disponível.

— Eu também vou — disse Beatriz, resoluta-mente.

Observando a atitude da neta, o velho Jaques lembrou:

— Será melhor irmos todos. Além de atender a uma obrigação agradável,

creio que faremos belo passeio, em arrabalde que pouco conhecemos.

O chefe da família concordou alegremente, apesar da objeção que a

espôsa fazia com o olhar.

No dia imediato, por volta das dez horas, elegante carruagem entrava na

ruazinha modesta, em que Madalena curtia a sua pobreza. Muitos moradores

entreolhavam-se espantados.

Arrancada por Luisa da cabeceira da enfêrma, cuja agonia se prolongava

dolorosamente, Alcione foi à porta atender a quem a chamava com tanta

insistência. Reconhecendo que os Davenport se aproximavam sorridentes, seu

primeiro impulso foi recuar, tal o assombro. Nunca encontrara na vida momento

tão amargo. Quis caminhar, sorrir, mostrar-se calma e, no entanto, seus lábios

se prenderam, enquanto estranho palor lhe cobria a face num ricto de espanto.

O coração batia-lhe descompassado. Que iria suceder em tais circunstâncias?

A agonizante, desde a madrugada, falava em voz alta, da chegada do espôso.

Impossível evitar que os Davenport a ouvissem. Num ápice, porém, lembrou-se

do seu contato com as lições de Jesus e procurou dominar-se. Certo, o

Evangelho não seria apenas um roteiro para os momentos fáceis. Era

indispensável provar-lhe o valimento em tôdas as situações da vida. Olhou

instintivamente o céu e disse consigo mesma: — “Senhor, ajudai-me a

compreender vossa divina vontade !“

Seu desfalecimento durara um instante. Energias cariciosas balsamizavamlhe

o coração dorido e ansioso. Não lhes podia determinar a fonte, mas estava

certa de que Jesus lhe enviava sua bênção.

Nesse comenos, os visitantes já estavam junto dela, menos risonhos, por

haverem percebido na sua atitude algo de grave, que não podiam prever.

— Que foi, Alcione? — perguntou Susana preocupada, abraçando-a. - —

Assim tão pálida? A doente piorou?

Mais calma, a jovem teve fôrças para murmurar:

— Mamãe está expirando.

Cirilo e Jaques, sinceramente compadecidos, abraçaram-na,

comovidamente. Beatriz, como se desejasse prestar serviço imediato,

adiantou-se ao grupo, varando casa a dentro. Alcione acompanhou-os à

pequena sala de visitas, que dava justamente para o quarto da agonizante,

convidando-os a sentar-se, com a gentileza que lhe era inata. Percebendo o

empenho que tinham em socorrê-la naquele transe, seu primeiro desejo era

correr ao quarto de sua mãe e esconder as lembranças paternas, que lá

estavam em cima da mesa; mas Susana e Cirilo, poderosamente atraidos para

o quarto da agonizante, levantaram-se procurando lá entrar, no intuito de

206

prestar qualquer auxílio.

A moça empalideceu e exclamou:

— Por favor, não entrem agora!...

A voz timbrava um mundo de aflições, que ninguém poderia perceber.

Cirilo, porém, afagando-lhe a cabeça num gesto afetuoso, tentava dissipar-lhe

a inquietude:

— Não te acanhes, minha filha! Tuas dores são nossas também!...

Ela os acompanhou, quase cambaleante.

Nesse momento, Madalena deu um grande grito, misto de emoção e júbilo.

— Cirilo!... Cirilo!... — bradou, julgando-se visitada por uma sombra — por

que demoraste tanto? Ai! que longos anos de separação, que noites de

angústia! Mas, agora, me levarás contigo para o mundo onde não existem nem

sorvedouros, nem mar!...

O casal dava mostras de profundo terror. Magnetizado por estranha fôrça,

o filho de Samuel colou-se à cabeceira do leito. Não podia enganar-se. Era

Madalena, sim, envelhecida e semimorta.

As mãos de cera, as rugas do rosto, a cabeleira maltratada de moribunda,

não revelavam a carinhosa e bela companheira da mocidade; mas aquêles

olhos profundos e lúcidos, a voz inesquecível, não podiam deixar qualquer

dúvida.

— Que vejo? Que vejo eu? — murmurava o negociante de fumo,

terrivelmente surpreendido.

Madalena como que alucinada de alegria e de dor, estendia-lhe as mãos

cadavéricas, exclamando:

— Vê como Alcione cresceu. Moça e bela!... Nunca contemplamos juntos a

nossa filha!... Ela foi o meu consôlo na viuvez, o meu refúgio nos dias de

saudade... Vê nossa casa como está pobrezinha! Mas Deus habita conosco em

santa paz! Antes que a notícia da tua partida para o Céu me chegasse aos

ouvidos, eu já havia perdido tudo da nossa felicidade de outros tempos... Fiquei

só, Cirilo, mas Jesus começou a restituir-me a ventura que desaparecera... Não

haverá no mundo hora mais feliz do que esta em que nos reunimos, para sempre,

depois de tão longa separação...

Alcione, revelando poderosa energia moral, aproximou-se da genitora,

enxugou-lhe o suor e afagou-a murmurando:

— É preciso acalmar-se, mamãe...

- Não estou alucinada, filhinha — retrucava Madalena de olhos fulgentes

—, não vês o que vejo no limiar da morte... Ainda não podes divisar as feições

de teu pai, que voltou do sepulcro para me levar com ele...

— Minha mãe tem experimentado longos delírios — exclamava Alcione

timidamente...

Mas, voltando-se para os dois circunstantes, observou que Susana, lívida

de mármore, ajoelhara-se, enquanto o genitor fixava a agonizante com ares de

alucinado.

— Tua lembrança — continuou a dizer Madalena, dirigindo-se ao espôso —

sempre andou conosco, em tudo e em cada dia. Ali estão os teus cadernos de

anotações, tua Bíblia, o livro de contos irlandeses...

Cirilo Davenport esboçou um gesto de profundo espanto, como a registrar

a confirmação da tremenda surprêsa.

— Estão limpos e intactos... — prosseguia a agonizante, dando satisfações

do seu cuidadoso dever — tôdas as semanas, repetíamos o trabalho de

207

conservação e limpeza, com o pensamento em ti, para que nos visses lá do

Céu!...

O filho de Samuel, mudo e trêmulo, aproximou-se da mesa. Sua palidez

aumentava à medida que ia reconhecendo antigas notas de trabalho na

Sorbone.

Susana, a seu turno, jamais poderia definir a angústia que lhe oprimia o

coração. Via o que nunca poderia prever, na sua perversidade de outrora.

Madalena Vilamil ali estava à sua frente, desafiando-lhe a consciência onusta

de acerados remorsos. Anos de angustiosa expiação íntima haviam passado.

Quantas vêzes procurara, à sombra dos altares, um bálsamo para as torturas

do coração? Tudo inútil! Apenas, naqueles últimos tempos, conseguira um

farrapo de esperança com o culto doméstico em que Alcione esclarecia tão

bem o problema das fraquezas humanas e da bondade de Deus. Agora,

entretanto, sentia-se convocada ao testemunho pungente. Sômente agora

compreendia a primeira impressão de repulsa, quando Alcione lhe entrara em

casa, simpatizada por todos. Era impossível que ela ignorasse o segrêdo

terrível. Contudo, pelas palavras da agonizante, pela situação geral,

compreendera que a filha de Madalena dispusera-se a um sacrifício quase

sôbre-humano. Filha de Cirilo, suportara o papel de serva em sua casa e vítima

do seu crime, nunca levantara a voz para fazer a mínima acusação... Quem

teria dado fôrças àquela criatura tão simples, para tolerar tamanho opróbrio do

destino, sem um gesto de indignação e desespêro? A filha de Jaques lembrou

as magníficas inspirações no culto doméstico do Evangelho. Alcione sempre se

referira a Jesus como divino hóspede do seu coração. Do Mestre é que devia

escorrer o manancial de tantas energias. E foi assim, ali, defrontando sua

vítima nas vascas da morte, que a infeliz criatura experimentou sincera e

dolorosa contrição. Os sofrimentos de Madalena e os heroísmos de Alcione

falavam-lhe muito alto daquele Cristo, que tantas vêzes lutara por compreender,

sem resultados apreciáveis. Entendia, afinal, que um exemplo, às

vêzes, podia substituir um milhão de palavras. Naquele momento, por certo,

Jesus lhe impunha a confissão do crime nefando. Angustiosa batalha travavase-

lhe no íntimo atormentado. Onde estaria Antero de Oviedo, o comparsa da

trama sombria? Não seria melhor atribuir-lhe a culpa do feito execrável? A

família Davenport estava certa de que ela apenas assistira à morte de D.

Inácio. Sempre afirmara ter chegado a Paris no dia seguinte ao sepultamento

da rival e para comprová-lo tinha o documento do cemitério. Seu velho pai era

testemunha da sua saída de Blois e podia conferir mentalmente a data da sua

chegada a Paris. Ela também já havia lutado muito. O consórcio, não obstante

a vida de fausto que levavam, nunca lhe dera a felicidade ardentemente

esperada. Alguns fios brancos já lhe riscavam a cabeleira, traduzindo o

cansaço da vida. Não seria, também, mais acertado preservar a ventura de

Beatriz, isentando-a da venenosa recordação de uma mãe ignóbil? E seu

venerando pai? Como receberia a confissão dolorosa? Nessa terrível batalha

em que os impulsos inferiores propendiam para exibir uma falsa inocência,

para que o sobrinho de D. Inácio fôsse o único culpado, Susana Davenport

sentia-se morrer. Daria mil vêzes a vida para tomar o leito da agonizante e

entregar-se à morte, em seu lugar. Quando o mal estava a pique de triunfar

concretizado em ato extremo, ela relembrou o vulto de Alcione nos seus

sacrifícios diários. Quanto não teria sofrido a pobre menina para suportar o

serviço a que fôra conduzida, talvez ignorante de que, ao procurar a

208

subsistência, batia à porta do próprio pai? E Madalena? Quantas privações

duras e amargosas não deveria ter experimentado? Acerbo sentimento de pejo

empolgou-a inteiramente. Sentiu-se, depois, envolvida nas alocuções

evangélicas do culto familiar. Jesus estava sempre pronto a acolher os

desamparados, os falidos, os criminosos e impemtentes do mundo; mas não

era lícito recalcitrar. O Mestre fornecia recursos à retificação dos erros;

entretanto, o maior dos crimes deveria ser o reincidir no mal, perante o Mestre,

tendo a noção de seus ensinamentos. Um vulcão de lavas ardentes rompia-lhe

do peito, devorava-lhe o cérebro em cachoar de brasas vivas. Em meio de

tanta desolação Intima, dúlcida voz lhe falava à consciência dilacerada: —

“Confessa! Confessa e acharás o caminho para Deus...

Nesse instante, Cirilo Davenport, aterrado com os documentos que revirava

nas mãos, voltou-se para Alcione, buscando esclarecimentos, mas, vendo-a

tão calma e transparente de candura, desistiu de lhe magoar o coração tão

cedo sacrificado e dirigiu-se automàticamente a Susana, que se mantinha

muda e genuflexa.

Alcione percebeu que se iniciava o penoso processo de reparação e

aclaramento, e sentou-se ao lado de sua mãezinha, murmurando com carinho:

— Quem sabe, mamãe, a senhora desejará um pouco d’água?...

— Não... não... — dizia a agonizante, parecendo interessada em não

perder de vista a silhueta de Cirilo — onde está Robbie? Quero apresentá-lo a

Círilo como nosso filho de criação...

Cirilo, porém, profundamente acabrunhado, retirara-se a um canto do

quarto, onde Susana continuava ajoelhada.

— Que pensa de tudo isso? — inquiriu êle extremamente pálido.

Ela teve a impressão de que aquela voz era um libelo terrível. Como se

despertasse de medonho pesadelo, respondeu confusa:

— É ela!...

— Mas... explica-te — insistiu transfigurado pelo sofrimento.

A filha do professor de Blois, no último esfôrço para vencer-se a si mesma,

olhou para Alcione como a buscar na sua efígie a energia precisa àconfissão

dolorosa, afirmando em seguida:

— Foi o maior crime da minha vida!

Cirilo fêz um esfôrço inaudito para não baquear aturdido.

— Que diz? — perguntou aterrado.

Mas Susana enterrara novamente a cabeça nas mãos; e o marido,

cambaleante, deu alguns passos, abriu a porta e chamou o velho Jaques. O

venerando ancião, pela fisionomia estuporada do sobrinho, compreendeu de

relance que algo havia de muito grave. Beatriz ficou só, folheando um livro.

— Meu tio — exclamou Cirilo amargamente, designando a agonizante —‘

esta é Madalena e Alcione é minha filha!...

O velho Jaques estuporou-se também. Era ela, sim! Não obstante o

abatimento físico da extrema hora, identificava a filha de D. Inácio Vilamil,

detalhe por detalhe. E sentia-se estrangulado pela surprêsa angustiosa. Dava a

impressão de se haver petrificado pelo sofrimento. Queria amparar Cirilo, mas

todo o corpo lhe tremia ao impulso da violenta comoção. Foi o próprio sobrinho

quem lhe deu a mão, impedindo-o de tombar, ali mesmo, diante da agonizante.

Nesse instante, porém, Jaques orou com fervor jamais sentido em tôda a vida,

exorando fôrças para atender a amarga conjuntura do momento. Passado o

primeiro choque, teve fôrças para interrogar:

209

— Como se explica isso?

A filha levantou-se, em pranto convulsivo, emocionada com o testemunho

inelutável, e, arrostando a angústia paterna, abraçou-se ao velho genitor, como

a procurar o perdão de um espírito sempre generoso.

— Meu pai!... meu pai! — clamava entre lágrimas.

Foi aí que Cirilo, respondendo à pergunta do tio, exclamou quase sufocado:

— Susana deve saber tudo!... Já me afirmou que êsse foi o maior crime de

sua vida!...

O velhinho, estupefato, recordou maquinal-mente a remota noite de Blois,

quando a filha se agastara com a sua adesão ao projeto do sobrinho de

esposar a senhorita Vilamil. Parecia-lhe ter diante dos olhos o quadro que o

tempo não conseguira esfumar, ouvindo a confissão de Susana, de que

também amava o rapaz. Relembrou as suas atitudes no lar, a ojeriza constante

à Madalena, a insistência em desposar o primo viúvo, lá nas plagas

americanas.

De pronto repassou a tela das reminiscências vivas, par a fixar depois o olhar

na agonizante e na filha, considerando a dolorosa jornada de ambas. De que

paragens de dor chegava Madalena Vilamil até ali, com as rugas lavadas de

lágrimas e coberta de cãs prematuras? Pelas informações de Alcione, deveria

ter vivido muito tempo na Espanha... Quem a teria conduzido a regiões tão

distantes? A exemplificação da filha constituía, naquele momento, um atestado

de glória espiritual. Sômente agora compreendia o suave e irresistível magnetismo

que ela exercia sôbre todos os de casa. Era preciso, entretanto, ter um

coração perpêtuamente unido a Deus para praticar o amor qual o fazia a jovem

humilde, que ali se encontrava em atitude confiante, no cumprimento de um

dever tão sagrado quão doloroso, O quadro o impressionava para sempre.

Ponderando tudo isso, Jaques Davenport convocou as suas possibilidades

morais para conservar a serenidade imprescindível e obtemperou, com afetuosa

energia:

— Avalio que ação negra se mascara por detrás da nossa angústia!...

E observando que os dois se achavam incapacitados de dominar a própria

emoção, lembrou sensatamente:

— Deus nos está mostrando o ígneo bulcão de amarguras em que

Madalena consumiu as energias de espôsa e mãe! Podemos imaginar que

espécie de infâmia lhe argamassou o infortúnio. Mas, penso que se a

pobrezinha foi reduzida a tamanha expressão de sofrimento, em tôda a vida,

não devemos perturbar-lhe o sono da extrema hora. É preciso defender a paz

dos mortos!...

Ditas essas palavras, dirigiu-se à filha, exclamando:

— Vai-te para casa com a Beatriz. Depois falaremos.

E voltando o olhar para o sobrinho, murmurava comovido:

— Quanto a ti, meu filho, que Deus te dê fôrças!.

Susana contemplou, pela última vez, Madalena no seu leito de morte e

encaminhou-se para a porta, vacilante. Beatriz, que esperava calmamente na

sala, não dissimulou o espanto ao ver a transfiguração da genitora.

— Que foi, mamãe? — interrogou ansiosa.

— Não te assustes — esclareceu a infeliz com dificuldade —, a mãe de

Alcione está expirando... Vamos. Teu pai e teu avô ficam até mais tarde...

— Pobre Alcione! — murmurou a mocinha ingenuamente.

Enquanto a carruagem regressava, depois do meio dia, no quarto modesto

210

de Madalena Vilamil a cena dolorosa continuava. Jaques identificou um por um

dos papéis que estavam sôbre a mesa. Depois de muito lagrimar, sentou-se

contemplando a agonizante, com grande amargura. Sufocado de dor, o esposo

apoiava-se no leito mortuário, como querendo galvanizar as últimas

manifestações da agonizante com indomável ansiedade. Jamais Cirilo

conhecera pranto tão acerbo. Obedecendo às reclamações insistentes da

genitora, Alcione trouxe Robbie ao aposento.

— Este, Cirilo — dizia a agonizante, exânime —, é também nosso filho pelo

coração... Criei-o amorosamente desde o dia em que nasceu... Ajudar-me-ás a

pedir por êle aos pés de Jesus! Nunca o deixaremos só!...

E dando a impressão de querer consolar o rapazinho, acrescentava:

— Estás vendo, Robbie? Por que temer os padecimentos do mundo, se

temos outra vida? Não dês importância aos que te escarneçam, meu filho!...

Tudo passa na Terra!... Por que haverás de permanecer em tristeza no mundo,

quando sabes que te esperamos no Céu?

Fêz uma longa pausa, que ninguém se sentia com coragem de

interromper. Ao cabo de alguns instantes, acentuava com placidez

inconcebível, dirigindo-se ao filho adotivo:

— Toma a bênção a teu pai, Robbie!... Pede-a também ao amigo que o.

acompanha!... (1)

Então, verificou-se a cena tocante, que provocava novo contingente de

lágrimas copiosas. Com sincera humildade, o pequenote atendeu, beijando a

mão dos dois homens para êle desconhecidos.

O filho de Samuel contemplou-o, comovido. Jamais poderia dizer porque o

pequeno descendente de escravos o atraía tão fortemente. Num gesto

espontâneo, abraçou-o com ternura e murmurou:

— Serás também meu filho!...

Decorreram longas horas, pesadas, tristes.

(1) Madalena Vilamil permanecia entre as impressões de dois mundos,

como acontece à maioria dos moribundos. — Nota de Emmanuel.

À tarde, Madalena Vilamil pareceu mais serena e mais lúcida. Em dado

instante chamou a filha e declarou:

— Minha mãe e padre Damiano também chegaram... é o momento de

partir...

Alcione recordou a revelação da véspera e ajoelhou-se. Em preces silenciosas,

rogou a Jesus recebesse a genitora em seu reino de verdade e de amor, que

lhe atenuasse as últimas amarguras A agonizante manifestou desejos de

Confortar a filhinha, formulando carinhosas promessas de amor maternal;

contudo, seus lábios apenas denunciavam o esfôrço supremo. Em profundo

desespêro intimo, Cirilo estendeulhe a mão, que ela apertou fortemente, como

a selar uma eterna aliança e, aos poucos, entregava-se ao grande Sono.

Belos tons de crepúsculo invadiam a natureza, quando Madalena partiu.

Pesada angústia desabara sôbre a casa de São Marcelo, onde se ouvia a voz

de Robbie em dolorosos lamentos de criança inconsolável

O velório teve a presença de numerosos vizinhos, tão pobres quanto os Vilamil.

No entanto, Cirilo Davenport, embora taciturno e desesperado tomou tôdas

as providências que a situação exigia. A modesta vivenda encheu-se de servas

improvisadas, proporcionando à Alcione e à velha Luisa o repouso de que

211

necessitavam. o cadáver foi amortalhado regiamente. As pessoas presentes,

que tinham relações com a morta, surpreendiam-se em face de tamanha

generosidade.

O espôso de Madalena Vilamil não saberia explicar o seu estado íntimo. Mil

pensamentos lhe turbilhonavam no cérebro incandescido. Tinha ânsias de

conhecer todos os informes de Susana, para avaliar a natureza da sua falta e

Puni-la sem quartel. Procurava recordar as lições do culto doméstico,

concernentes à confiança em Cristo e ao perdão, mas os ensinamentos

evangélicos pareciam-lhe agora envolvidos em nuvem distante. A idéia de uma

reparação à espôsa, ofendida e sacrificada, era a nota dominante no seu

espírito. Procuraria conhecer tôda a extensão do crime que reduzira a companheira

a situação tão amarga, castigaria severa-mente os algozes. Desejava

aproximar-se das recordações filiais, sentando-se junto de Alcione com a

poesia do seu coração de pai; mas, era indispensável resolver primeiramente o

caso da espôsa traida. Depois de tranqüilizar a consciência, então elevaria

Alcione ao merecido altar. Aquilatava-lhe o valor moral, a grandeza dos

sentimentos. Quanto não teria sofrido antes de fazer-se simples cantora da rua,

qual a encontrara pela primeira vez? Ele ainda não sabia entregar a Jesus as

situações sem remédio no mundo, desejava dar uma satisfação plena ao seu

amor próprio ofendido. A seu ver, impunha-se, antes de tudo, restabelecer a

honra pessoal. Submerso em amargura sombria, passou a noite vígil sem um

momento de tréguas à mente incendiada por idéias quase sinistras. Que fizera

Madalena durante tantos anos na Espanha? Quem havia forjado a burla da sua

morte? Como vivera em separação tão amarga? As conjeturas atropelavam-selhe

no cérebro, sem resposta. Depois de uma consulta ao cemitério dos

Inocentes, recebia na manhã seguinte a notícia de que era impossível abrir um

túmulo na mesma zona onde se haviam sepultado os variolosos de 63. Embora

não pudesse satisfazer o desejo de inumar a morta inesquecível ao lado dos

despojos do fidalgo espanhol, ordenou que o funeral se fizesse com o destaque

possível. Alcione acatou-lhe os mínimos desejos, com humildade. Padre

Amâncio, solicito, cuidou de todos os pormenores, sem disfarçar a surprêsa

que a atitude dos Davenport lhe suscitava.

Quase à noitinha, grande carro estacionou junto ao palacete da Cité. Dêle

apeavam-se Jaques e Cirilo, acompanhados de Robbie e Alcione. Na antiga

casinha de São Marcelo, apenas ficara a velha serva, aguardando solução

definitiva a seu respeito.

Cirilo demandou o ambiente doméstico, assomado de poderosa

inquietação. Susana recebeu-o desfigurada, abatida, parecendo haver

envelhecido vertiginosamente.

— Não temos tempo a perder — disse êle com expressão rancorosa —,

precisamos ouvir-te na sala de leitura. Onde está Beatriz?

— Por piedade! — exclamou ela desesperada — poupa-me a vergonha de

apresentar-me à nossa filha como criminosa!

— Não posso — respondeu Cirilo inflexível —, Ignoro que providências terei

de tomar para desobrigar-me com a minha consciência e não quero que Beatriz

mais tarde possa julgar-me injustamente.

Muito pálida, Susana encaminhou-se ao local indicado. Nesse momento, a

pedido de Alcione, Robbie era recolhido ao leito por um velho criado.

Daí a minutos, a filha de Madalena, muito constrangida, figurava ao lado

dos Davenport para as investigações amargas. Depois de sentados, Cirilo

212

dirigiu-se a Beatriz nestes têrmos:

— Minha filha, ontem tivemos a revelação de que Alcione não é tua

governanta e sim irmã mais velha. A agonizante que fomos visitar, e que o

túmulo recebeu hoje à tarde, era minha primeira espôsa — Madalena Vilamil!

Nunca pude saber o drama cruel que se formou no meu caminho, mas tua

mãe, que deve ter lembranças bem nítidas do passado, vai expor certos fatos

que nos poderão esclarecer.

A jovem Davenport tornou-se lívida. Jamais pudera imaginar que, por trás

da felicidade doméstica, dormissem angústias como a daquela hora

inesquecível.

Susana, que se assentara um tanto afastada, afigurava-se antes uma ré

acabrunhada e aflita, sem saber como iniciar a confissão do seu crime.

O velho Jaques, referto das experiências da vida, contemplava a filha num

misto de dor e de vergonha. Círilo tinha os olhos fuzilantes de ansiedade.

Alcione recolhia-se em preces fervorosas no santuário do coração.

A infeliz criatura começou, dificilmente, a revelar, detalhe por detalhe, a

enorme culpa da sua vida. De vez em quando, um soluço abafado a interrompia.

A confissão prolongava-se por mais de uma hora, e, como se

obedecesse a poderosos imperativos da consciência, Susana não omitiu a

menor particularidade. Emocionadíssima, pintava os seus estados dalma na

época em que estudava tôdas as possibilidades do plano criminoso, para

conquistar definitivamente o homem amado. Minudenciou as atitudes de Antero

Oviedo, descrevendo os antecedentes de suas relações com êle, os passeios

que faziam e nos quais o sobrinho do fidalgo espanhol dava-lhe a conhecer a

imensa paixão pela prima. Por fim, em frases comovedoras, narrou as cenas

da varíola, de 63, a visita ao cemitério dos Inocentes, as sugestões sinistras

que um nome lido ao acaso, no velho registro de notas fúnebres, lhe suscitara.

Quando terminou, sob o olhar aterrado do genitor e do companheiro, e com

os soluços abafados das duas jovens, ajoelhou-se e suplicou:

— Conheço a vileza do meu crime e Jesus, que me preparou a alma para

fazer esta confissão dolorosa e horrível, é testemunha dos longos sofrimentos

que tenho amargado. A paixão me levou ao desvario de comprometer para

sempre a paz de minhalma. Realizei o louco intento, vali-me de todos os

recursos, meus e de meus amigos, para esposar Cirilo, crente de que,

aparceirada com Antero, poderia corrigir um êrro do destino. Mas a verdade é

que nunca encontrei um ceitil da felicidade ardentemente desejada... Os

criminosos não podem lograr, nunca, a realidade do seu ideal. Aprendi

cruelmente que não pode haver paz fora do dever cumprido; que não há alegria

sem aprovação da consciência tranqüila. É verdade que infelicitei Madalena

com a minha insânia de amor, mas não o é menos que lhe invejo agora a

calma espiritual, a fé sincera e confiante com que se entregou a Deus no último

transe! Ai de mim! O confôrto material que o mundo me concedeu é uma ironia

da sorte. Para mim, que atravesso a vida taganteada pelo remorso impiedoso,

os palácios são túmulos dourados, tudo se resume em punhados de sombra e

de miséria! Sei que perante Beatriz sou mãe desnaturada e alma mesquinha;

que perante meu pai sou a imagem da ingratidão imperdoável; que perante

Alcione sou mulher sem coração! Para Cirilo não passarei de malvada e

diabólica; mas, se puderem, peço de joelhos que me ajudem o espírito

cansado, com o perdão da imensa falta! Não sei quantos anos me restam de

vida neste mundo, mas prometo-lhes humilhar-me a todo instante, penitenciar213

me como serva de todos, a fim de trabalhar pela minha salvação... Jesus, que

me deu a coragem de confessar o crime, não me há de faltar com as energias

necessárias ao esfôrço regenerador!...

Nesse momento, fêz uma pausa mais longa. Jaques, estático, permanecia

calado, Alcione e Beatriz choravam amargamente. O marido infelicitado,

porém, parecia dementado pela dor. Olhos arregalados como a fitar o passado

de sombras, Cirilo Davenport transportara-se em espírito ao ano de 63,

esquecera momentâneamente todos os trabalhos e deveres das segundas

núpcias. À sua frente via Madalena ultrajada, humilhada, perseguida. Sentia-se

rodeado de inimigos implacáveis, que se haviam alojado em seu próprio

coração. A idéia de vingança se lhe embutira no cérebro com vigor incoercível.

Apesar dos conhecimentos evangélicos, não podia libertar-se da velha

concepção que impunha lavar com sangue a dignidade ferida. Pela primeira

vez, experimentava o supremo ultraje ao nome, à honra pessoal, ao amor

próprio ofendido.

Enquanto se perdia em dolorosas reflexões, Susana fixou nêle o olhar e

exclamou compungidamente:

— Perdoa-me e terei fôrças para me transformar!...

Soluços amargos acompanharam o apêlo. Mas o filho de Samuel, com

feições de louco sacou de um punhal e, cambaleando e rugindo, ameaçadoramente,

acercou-se da postulante, bradando:

— Não há perdão para o teu crime, Susana! As víboras hediondas devem

ser esmagadas.

Entretanto, num ápice, Alcione colocou-se entre êle e a infeliz. Observando

a atitude impulsiva e resoluta do genitor, abraçou-se à filha de Jaques e,

quando viu que a mão armada ia desferir o golpe, exclamou com acento

inesquecível:

— E Jesus, meu pai?

O braço ultriz pendeu inerte. Era preciso recordar Aquêle que não

desdenhara o madeiro infamante. Cirilo sentiu-se apossado de estranhas e

novas sensações. Pela primeira vez, Alcione lhe chamava “meu pai”. Por que

não lhe seguir a exemplificação de sofrimento e sacrifício? Madalena havia

partido em paz. Quem sabe poderia acompanhá-la na mesma tranqüilidade de

coração? Por que arruinar o porvir com uma ação execrável? Recordava, agora

que as lágrimas lhe manavam dos olhos doridos, as lições evangélicas do culto

doméstico. Ninguém poderia sanar um mal com outro mal, resgatar um crime

com outro crime. O pranto corria-lhe em onda volumosa, quis andar livremente,

mas uma sensação de súbito mal-estar lhe anulava as fôrças. Não conseguiu

senão arrastar-se com dificuldade e, apoiando-se em Alcione, que acabava de

acomodar Susana no divã, entregou-lhe a arma perigosa, como a dizer que

renunciava a toda idéia de vingança por suas próprias mãos. Jaques e Beatriz

perceberam que Cirilo sentia algo de grave e correram a ampará-lo.

— Meu pai, meu pai — dizia a filha de Susana em tom angustiado —, não

te entregues assim ao sofrimento!.

Ele, porém, não mais respondeu ao chamado dos circunstantes e foi

conduzido ao leito, desfalecido, em deplorável situação.

Cirilo Davenport não resistira ao sofrimento que lhe causara a revelação

tenebrosa. Alguns vasos cerebrais se romperam em penhor de morte. Mais de

um médico foi convocado, a salvar o rico negociante de fumo, mas não houve

meios de o seqüestrar ao coma.

214

Beatriz estava inconsolável. Enquanto Jaques e Susana atendiam à

situação angustiosa, no quarto do enfêrmo, Alcione, considerando que a

mocidade é sempre mais inquieta e inconformada, dirigiu-se ao aposento da

irmã, no intuito de lhe preparar o espírito em tão graves circunstâncias. Era

indispensável manter-se acima do próprio sofrimento, por corrigir o que fôsse

possível.

— Ah! Alcione — exclamava a mocinha soluçando —, como detesto minha

mãe!...

— Não diga isso! revidava a interlocutora emocionada — então, Beatriz, em

tão poucos momentos de provação e testemunho, já esqueceste o perdão que

Jesus nos ensinou? Recorda os deveres filiais que devem ser sagrados em

nossa vida!...

A filha de Susana, contudo, dando expansão a velhos sentimentos, não

concordava, murmurando:

— Mas a mãe que Deus me deu é desleal e criminosa!...

— Por que não dizer antes que D. Susana foi doente do espírito quando

lhe despontaraxn os primeiros sonhos da mocidade? Não seria mais nobre

julgar assim? Por que, Beatriz, ver tão sômente o mal, quando Jesus sempre

nos inclina a ver as qualidades mais preciosas da criatura? Nesta casa, há

velhas servas trazidas da América, que abençoam tua mãe todos os dias, pelos

benefícios dela recebidos... Nada se perde no caminho da vida... Quem

encontra fôrças para julgar os próprios erros já recebeu do Senhor alguma luz.

E vendo que Beatriz se lhe conchegava ao peito, com lágrimas

angustiosas, continuava:

— Não te penalizou vê-la soluçante, em confissão que nos foi

particularmente dolorosa? Não lhe notaste a expressão de vergonha e

padecimento quando se ajoelhou a exorar perdão? Cala as tuas mágoas e

procuremos compreender a mensagem que Jesus nos destinou.

— Mas, quanto haverá sofrido tua mãe em conseqüência dêsse crime?

— Sim, sofreu e lutou muito, mas hoje descansa das fadigas terrenas,

abençoando, talvez, as lágrimas vertidas neste mundo. E, porque tenhamos

chorado muito, será justo atormentar a mãe que Deus te concedeu...

— Ouço as tuas observações carinhosas, quero guardá-las no espírito,

mas não posso! A lembrança da confissão desta noite destrói minha felicidade,

alguma coisa me turva o pensamento... desejo raciocinar, esquecendo o mal, e

não posso.

— É porque ousas enfrentar as penas do mundo sem o Cristo. Estamos na

Terra para adquirir ou provar alguma virtude. Na realização dêsse escopo não

podemos desafiar a luta sozinhas! É imprescindível buscar a companhia do

Divino Amigo, para sermos esclarecidas a tempo! Jesus tem uma palavra

luminosa para cada situação, uma energia inspiradora a cada momento mais

amargo, desde que lhe busquemos o socorro divino!...

A jovem Davenport sentiu profundamente o alcance sublime da advertência

e acalmou-se. Daí a instantes, voltou a dizer:

— Compreendo, sim, a elevação de teus conselhos fraternos; entretanto,

não me furto ao receio de que papai não resista a esta tragédia que nos aperta

o coração... Esperarei que Henrique chegue para contar-lhe o que se passa.

Muitas vêzes tem êle falado da possibilidade de nos casarmos breve. Se o

papai não escapar da morte, concordarei, pois assim, pelo menos, poderei

deixar a companhia de mamãe e oferecer ao vovô tranqüilidade para o resto

215

dos seus dias.

— Não penses tal. Não poderemos desamparar tua mãe. Quanto ao mais,

nada dirás ao Sr. de Saint-Pierre. Não temos o direito de confiar a ninguém a

dolorosa revelação do nosso caso. É preciso lançar a rega do silêncio e da paz

à fogueira das lucubrações tormentosas, para que nossa existência não se

transforme em voraginoso inferno.

Beatriz concordou.

Dentro de poucas horas o noivo aparecia cheio de interêsse familiar.

Outras visitas se sucederam durante a noite. Fatigadíssima, Alcione mantevese

no seu papel de serva, em que todos a conheciam. A alvorada encontrara

Círilo moribundo. Decorridas vinte e quatro horas do tremendo choque, o filho

de Samuel desprendia-se do mundo para a vida espiritual.

O palacete da Cité logo se cobriu de crepes negros. Pesada atmosfera se

espalhou no solar do abastado comerciante de fumo.

No dia seguinte o velho Jaques teve fôrças para providenciar o

enterramento do sobrinho, ao lado do túmulo de Madalena Vilamil. O amoroso

casal, que vivera separado pela astúcia maliciosa do mundo, reunia-se agora

para sempre.

O funeral realizou-se com muita pompa, na tarde imediata à do falecimento.

Numerosos eclesiásticos acompanharam o féretro com luxuosas exéquias. A

viúva, com ares de alucinada, seguiu o cortejo amparada por Alcione, que lhe

dava o braço com zelos filiais. Mas, quando os padres disseram as últimas

palavras do ritual para que o corpo baixasse à campa, ouviu-se estranha

gargalhada no ambiente silencioso e triste.

A assistência numerosa entreolhou-se atônita e curiosa!

Susana Davenport havia enlouquecido...

216

5

Provas redentoras

A vida familiar no palacete da Cité tornara-se bem amarga. A viúva

Davenport perambulava pelos aposentos, dementada e combalida. O velho

Jaques, dominado pelos dissabores acerbos, vivia entre o leito da decrepitude

e as lágrimas sem consolação. Beatriz, na sua mocidade cheia de sonhos,

ainda não saíra da penosa estupefação, dando mostras de singular abatimento.

Foi aí que Alcione fêz valer as virtudes da sua fé, por maneira a satisfazer

plenamente os novos deveres. Nunca abandonava Susana, de quem se fizera

enfermeira dedicada e afetuosa. Robbie continuava trabalhando em São

Jaques, vindo sômente três vêzes na semana visitar a irmã adotiva, sempre

mergulhado em profunda melancolia.

Certa ocasião em que o velho professor entabulou com o rapaz uma

palestra mais longa, Alcione foi chamada pelo generoso velhinho, que a interpelou

carinhosamente:

— Não posso consentir que o nosso Robbie continue ausente desta casa,

por motivos de serviço. Considero mais acertado que deixe a igreja de São

Jaques do Passo Alto, vindo morar conosco. Não podemos esquecer que êle é

teu irmão, isto é, filho adotivo da nossa querida morta.

— Sim — respondeu a jovem, solícita —, nada tenho a opor, mas olhe que

seria uma falta grave o privar meu irmão dos benefícios do trabalho.

— Mas Robbie, Alcione, é muito doente para desdobrar-se em tantas

ocupações.

— Mas o senhor não está de acordo comigo, relativamente às vantagens

de uma vida laboriosa? Não quero parecer cruel, antes quero reconhecer a

magnanimidade do seu coração, com semelhante lembrança; mas o amor ao

trabalho é uma das mais nobres heranças que mamãe nos deixou. Basta

lembrar que, embora paralítica, ela costurou por muitos anos para nos criar e

manter. Além do mais, é sempre útil ao enfêrmo entreter-se com alguma coisa.

A inatividade costuma induzir-nos a falsas apreciações dos desígnios de Deus,

a impaciências, a desesperações e rebeldias...

Percebendo que o amoroso ancião anotava-lhe mentalmente as palavras

com sincera atenção, acrescentava, dirigindo-se ao rapaz:

— Não é verdade que sempre ganhaste muito com a dedicação ao

trabalho, Robbie?

— Sim, isso é incontestável.

Mas, deixando perceber que desejava umas tantas alterações de regime,

acrescentava:

— Entretanto, se possível, gostaria de transferir-me de São Jaques para

outra parte. As recordações de São Marcelo me acabrunham e, depois,

aquelas crianças irônicas muito me atormentam com os dichotes e indiretas.

Ora, Robbie — disse Alcione com bondosa austeridade —, ainda te

preocupas com as tolices de meninos ignorantes?

— Estão sempre a tecer comentários dos meus aleijões..

— E que tem isso? Quando cumprimos nosso dever perante Deus e a

consciência, a grosseria ou a ingratidão dos outros são relegadas ao baixo

plano a que pertencem.

O bondoso ancião acompanhava a neta admirado de ver como conseguia

aliar tão fàcilmente a energia à meiguice.

217

— Se invocas as lembranças de São Marcelo prosseguiu a moça

ternamente —, dando-me a entender tua saudade de mamãe, recorda que ela

cumpriu o seu dever até ao fim, nunca nos pediu uma casa mais confortável,

nunca reclamou contra as águas da chuva que invadiam nosso quarto, conservou-

se de agulha na mão enquanto Deus lhe permitiu a graça de trabalhar,

enriquecendo o nosso esfôrço... Os aleijões do corpo, Robbie, são melhores

que os da alma...

O rapaz experimentou certo abalo ao ouvir as últimas palavras.

Reconhecendo-lhe a estranheza, Jaques procurou intervir carinhosamente:

— Alcione tem razão — exclamou atencioso —, o trabalho é uma bênção

de Deus. Não te deves agastar, meu caro Robbie, com os obstáculos encontrados.

Todos nós temos uma dificuldade a vencer na vida. O próprio Jesus

não caminhou sôbre flores.

E dirigindo à neta um olhar significativo, murmurava:

— Apesar disso, minha filha, espero não te aborreças se eu pedir a

Henrique a colocação do rapaz mais próximo de nós. Poderá, por exemplo,

empregar-se nos serviços de São Landry.

O filho adotivo de Madalena agradecia com a expressão satisfeita,

enquanto a jovem concordava:

— Não tenho objeção a fazer, desde que Robbie continue a descobrir,

cada dia, a grandeza do espírito de serviço.

Daí a alguns dias, Henrique de Saint-Pierre, o noivo de Beatriz, conseguia a

mudança desejada, com grande júbilo para o rapaz, que se transferiu

definitivamente para a Cité, podendo assim ficar em contato diário com a irmã

adotiva.

A dedicação de Alcione à viúva Davenport era um exemplo vivo de amor, a

calar fundo no coração dos familiares. A própria Beatriz parecia mais concentrada

nos problemas graves da vida. Aquêle ar de despreocupação, que lhe

caracterizava a juventude, desaparecera. Tornara-se mais acessível aos

criados, ouvia com interêsse as advertências do avô, que não se sentia muito

encorajado a prosseguir enfrentando as borrascas fortes do mundo, O noivo

notara, satisfeitíssimo aquela transformação. A jovem Davenport aliava, agora,

beleza juvenil, larga dose de reflexão ao cogitar dos problemas do destino e do

sofrimento. A dor abrira-lhe novas POSsibilidades de inspiração religiosa. A

perturbação mental da genitora impedia o culto doméstico, tais as condições

precárias do seu organismo, mas, sempre que lhe era possível, lia e meditava

longa e atentamente O Evangelho de Jesus. Sua conversação tornara-se mais

rica e substanciosa. Alcione tinha com isso grande consolo.

Havia um mês que morrera Madalena Vilamil.

O estado mental da viúva apenas se agravara. Noites inteiras passava ela,

era gritos alarmantes, em sinistras visões. Alquebrado pelos anos, cheio de

achaques e mais pelos desgostos profundos que lhe golpearam o coração, o

tio de Cirilo esperava a morte resignado, Beatriz atendia aos múltiplos

encargos domésticos e apenas Alcione velava pela doente, com as suas

infinitas reservas de amor cristão.

Às vêzes, alta noite, a demente sacudia-se com gestos de pavor:

— Vês, Alcione? Satã vem chegando com as suas sentinelas perversas!

Ah! que desejam de mim? Já confessei tudo... Esta casa não é lugar de

demônios! Voltem para os infernos!... (1)

E rojava-se de joelhos, exclamando:

218

- Deus me livrará das fúrias do Maligno. Porque confessei a verdade,

Satanás persegue minhalma! Não a levarás, bandido!

— Não se exalte, senhora Susana — observava a moça com doçura. —

Vamos orar pedindo a Deus calma e resignação. Tranqüilizes! O poder

(1) Tôdas as manifestações de Espíritos obsessores, no tempo antigo,

eram tomadas à conta de aproximação de Satanás - Nota de Emmanuel.

das trevas se anula ante a luz divina. Vamos fugir para os braços de Deus,

como as crianças que buscam o colo materno quando uma fera se aproxima!...

Suplicava a proteção de Deus, em voz alta, no que era seguida, palavra por

palavra, pela infeliz demente.

Terminada a rogativa, Susana mostrava-se mais calma, agradecia com

sorrisos infantis e ponderava:

— Só o teu coração compreende as minhas necessidades! Todos me

dizem que estou alucinada, que não vejo senão perturbações do meu próprio

espírito! Meu pai me manda reagir sem que eu possa fazê-lo; minha filha crê

que eu esteja sendo vítima de ilusões! Entretanto, Alcione, o demônio vem

sempre ao meu quarto tripudiar do meu remorso intraduzível! Quando oras

comigo, êle se prontifica a sair, mas faz um sinal dando a entender que voltará

no primeiro ensejo!...

— Acalme-se, senhora — procure pensar na magnanimidade da

Providência Divina. Quando se aproximarem os maus Espíritos, ofereça-lhes

um pensamento de sincera confiança no Altíssimo. Peçamos-lhes perdão pelo

mal que acaso lhes tenhamos feito em outras eras, humilhemo-nos recordando

Jesus, que era imaculado e aceitou a cruz imposta pelos algozes...

A enfêrma escutava-lhe as exortações carinhosas, de olhar desvairado e

respondia:

— Teus conselhos são justos... Sabes que meu estado não é apenas uma

alucinação...

— Sim, a senhora não mente.

Ao ouvi-la, Susana Davenport, em pleno desequilíbrio das faculdades

mentais, exibia olhares mais estranhos e replicava, com os seus remorsos

pungentes:

— Já menti quando sacrifiquei tua mãe, mas agora desejo só a verdade...

Porque deixei a falsidade, Satanás me atormenta...

— Tudo isso, porém, passará depressa. — esclarecia a jovem

pacientemente.

— Sim, passará.. passará. — concluía a enfêrma atenuando a exaltação.

Em seguida, a filha de Madalena vigiava, em prece, até que a mãe de

Beatriz conseguisse adormecer.

O ambiente doméstico continuava carregadíssimo.

Numa noite de grandes perturbações, Susana dirigiu-se à carinhosa

enfermeira em pranto convulsivo:

— Não me deixes ir para o cárcere! Já estou sendo castigada rudemente,

minha santa menina! Não será melhor que a morte me colha aqui mesmo,

como lição para todo o mundo? Muita gente na Cité há de evitar o pecado,

quando souber que estou morrendo atormentada, no seio das coisas que pertenciam

a tua mãe!...

— Não pense nisso! dizia a interlocutora generosa, tranqüilizando-a. —

219

Ninguém a levará daqui. Esta casa é sua e pessoa alguma poderá atentar

contra os seus direitos.

— Hoje — voltava a exclamar a louca de olhos esgazeados — vi o infame

Padeiro (1) aproximar-se de meu pai e soprar-lhe alguma coisa aos ouvidos...

Daí a momentos, êle e Beatriz declaravam-se resolvidos a me afastar de casa.

— A senhora ficará comigo — murmurou a jovem Vilamil consolando-a —,

não precisa inquiear-se porque, antes de tudo, Deus nunca nos abandonara.

Com efeito, no dia imediato, ao almôço, dando a impressão de que houvera

pensado muitíssimo, antes de apresentar a proposta, Jaques falou, muito

trêmulo:

(1) O povo de Paris dava ao Espírito das trevas a designação de Padeiro a

fim de não pronunciar a palavra” Diabo” — Nota de Emmanuel.

— Minha querida Alcione, Beatriz e eu estivemos pensando na dilação dos

teus sacrifícios e no melhor meio de atender à situação da nossa doente. Como

talvez não ignores, temos estabelecimentos em Paris onde a enfêrma pode ser

bem tratada, sem exigir tanto da tua proverbial dedicação.

Pensam, assim, em afastá-la do convivio doméstico? — perguntou a

filha de Madalena surpreendida.

— Efetivamente; as prolongadas vigílias te consomem a saúde. Por minha

vez, não te posso ajudar, dado o meu grande esgotamento físico.

— Não, não — retrucou Alcione firmemente, não concordo. D. Susana não

deve, não pode sair daqui. Estou habituada a vigílias e, além disso, a

pobrezinha haveria de sofrer muito.

— Mas estaria a salvo de qualquer necessidade no estabelecimento onde

tencionamos interná-la.

— Mas isso não lhe garantiria a tranqüilidade nem melhoras quaisquer,

pois o de que ela mais necessita é de carinho, no transe doloroso por que

passa. Estou certa de que não lhe faltariam enfermeiras dedicadas, mas, ainda

assim, sempre se consideraria abandonada por nós, no meio de doentes de

tôda espécie, quando pode perfeitamente tratar-se ao nosso lado, sem que lhe

falte o confôrto da ternura familiar.

Beatriz, que prestava grande atenção aos argumentos da irmã, objetou:

— Tua atitude é nobilíssima, porém nós não podemos pôr de lado a tua

saúde. Além disso, as observações de minha mãe, no estado de loucura em

que se encontra, são muito impressionantes para quantos nos visitam.

— Pois eu me comprometo a tê-la sob a minha guarda exclusiva. Não se

preocupem comigo. Sinto-me forte. Os cuidados com a doente vêm constituindo

para mim um grande consôlo. A ausência de deveres imediatos nos

inclina, por vêzes, a reflexões indevidas. Eis por que a companhia de D.

Susana tem sido de imensa utilidade para mim. Desde a partida de mamãe,

sinto certo vazio na alma... Ao tocar o cravo para a enfêrma, recordo-me que

seu espírito deve estar satisfeito. Será possível que desejem suprimir

semelhante satisfação ao meu trabalho diário?

Beatriz lembrou a realização das suas aspirações de moça, sua infância

confortada e a juventude feliz; comparou-a com a exemplificação de Alcione e

sentiu os olhos rasos d’água. Nem ela nem o avô se atreveram a falar mais na

remoção da enfêrma.

Nesse ínterim, quando se levantaram da mesa, o velho Jaques valeu-se da

220

oportunidade de estarem a sós os três e chamou a atenção da filha de

Madalena para certo problema que o preocupava:

— Alcione — dísse afávelmente —, aproveitando êste momento de calma,

devo dizer-te que mandei buscar, por pessoa de confiança, tua certidão de

batismo, em Versalhes; mas, quero crer que fôsses batizada na Espanha, por

iniciativa de Ântero de Oviedo, porqüanto em Versalhes nada se encontrou.

— Ah! sim... — murmurou a moça hesitante posso saber o motivo da

providência?

— É a necessidade de regularizarmos a questão da herança paterna.

Beatriz e eu precisamos atender a essa parte.

A. jovem Vilamil fêz um gesto de grande admiração e exclamou:

— Por favor! Não façam isso!... Renuncio voluntariamente em favor de

Beatriz. Sua felicidade, seus bens, são os meus.

— É impossível, minha filha — respondeu o avô atenciosamente —; é justo

pensarmos no teu futuro. O destino dá muitas voltas e não seria razoável

descuidar da tua situação, quando te assiste um direito sagrado!...

— Agradeço tanta dedicação — acentuou a moça com firmeza e ternura —

, mas a minha renúncia à herança material de meu pai é decisão que não

posso modificar.

— Por quê? — interrogou Beatriz ansiosa de repartir com a irmã o copioso

quinhão de sua fortuna.

— Já que me perguntam, devo esclarecer. Minha irmã se casará muito

breve e não temos o direito de degradar D. Susana no conceito do genro, que,

afinal de contas, será também seu filho... Henrique de Saint-Pierre sempre

enxergou na futura sogra uma desvelada amiga. Neste amargo período de

enfermidade, tem-na tratado com especial carinho. Seria justo desfazer uma

atitude tão nobre, tão só por uma razão de possibilidades financeiras, que

passam com o tempo? Creio que não. Beatriz, por certo, receberá das mãos do

Altíssimo alguns filhinhos que lhe enriqueçam o coração feminino. Que seria

das pobres crianças, quando se recordassem da avó, entre observações

descaridosas e pouco dignas? Naturalmente que Saint-Pierre éincapaz de

desfazer o noivado pela revelação do pretérito, mas nunca poderia subtrair do

lar futuro o mau pensamento, acêrca da genitora de sua companheira. Com o

tempo, semelhante recordação poderia tornar-se para a querida Beatriz um

fardo bastante pesado... Nem todo o dinheiro do mundo bastaria para lhe

restituir a tranqüilidade. Isso pôsto, que motivo nos poderia induzir a tornar D.

Susana mais desventurada do que é? Descermos a certas explicações num

processo de herança, seria enlamear sua memória para sempre. Seria um ato

muito indigno de nós. Creio que meus pais, na vida espiritual em que se

acham, aprovam plenamente esta conduta.

O bondoso ancião e a neta estavam profundamente surpreendidos. Nunca

poderiam pensar que o desprendimento da filha de Madalena atingisse tamanha

renúncia. Beatriz permanecia emocionada, sem saber manifestar a

gratidão que lhe vibrava na alma. Foi o amoroso velhinho quem rompeu o silêncio,

considerando:

— Gostaríamos de restabelecer a verdade, apesar de bastante dolorosa.

Estou certo de que Henrique se conformaria, de bom grado, e que Beatriz não

sofreria qualquer dissabor de futuro, satisfeita e feliz por se edificar no teu

exemplo. Quem sabe poderias ponderar o assunto com mais vagar e modificar

tuas idéias neste particular?

221

— Não, não creiam, minha resolução é irrevogável.

— Essa resolução, Alcione — prosseguiu o velho educador —, não poderia

parecer menosprezo a um esfôrço de teu pai? Se Cirilo pudesse ver-te e falarte,

certamente que te argüiria por isso.

A interpelada compreendeu que tal argumento era lançado, de maneira

mais peremptória, ao seu coração afetivo, no intuito de lhe modificar as disposições

íntimas, e retrucou com argumento ainda mais forte:

— A consciência me diz que o nosso amado ausente me abençoa as

intenções. Além de tudo, meu genitor deixou-me uma herança muito sublime,

para que eu viesse a preocupar-me com dinheiro. Deu-me um avô generoso e

uma irmã devotada... E acaso deixei de receber êsse legado Santo?

Jaques experimentou alguma coisa no coração cansado, como nunca

sucedera em todo o curso de sua longa existência. Reconhecido e feliz,

exclamou:

Deus abençoe todos os teus caminhos...

— Suas bênçãos, meu avô, são para mim uma riqueza eterna...

Beatriz, sensibilizada ao extremo, beijou-a e retirou-se, enxugando uma

lágrima.

E, dada a desistência completa de Alcione, a situação no palacete dos

Davenport continuou sem modificações apreciáveis.

A enferma, atendida em suas mínimas necessidades pela enfermeira

afetuosa, continuava gozando a consideração de suas prestigiosas relações

parisienses. Não raro, nobres damas da Côrte visitavam-na, testemunhandolhe

carinhosa atenção. Retiravam-se, muitas vêzes, fortemente impressionadas

pelo que ouviam da pobre demente.

— Acreditas, Marcelina — dizia a enfêrma a uma colega da juventude —,

que o demo não nos persiga diàriamente? Vejo-o em luta constante, trabalhando

por aniquilar minhalma... Será que tu também tens algum crime a

confessar? Se cometeste alguma falta grave, liberta-te do remorso quanto

antes! Satanás nos está espreitando!...

E, rematando as considerações com gargalhadas sibilantes, gritava:

— Ah! Ah! Ah!... Vamos tirar as máscaras, vamos tirar as máscaras!...

As visitas, quase sempre se retiravam impressionadas e admiradas com a

paciência da enfermeira.

Um ano fazia que Cirilo e Madalena haviam falecido, quando o velho

Jaques apresentou sintomas alarmantes, O velho médico da família recomendou

o máximo cuidado, porque o enfêrmo tinha a existência por um fio,

podendo morrer de um momento para outro. Enquanto Beatriz se desfazia em

lágrimas, Alcione duplicava a coragem, de modo a atender os doentes, como

se fazia necessário. Um portador foi enviado ao Norte, a fim de solicitar a

presença de Carolina e dos seus.

Quando a senhora de Nemours chegou com os dois filhos, o genitor estava

a despedir-se.

A irmã de Susana mui raramente vinha a Paris e, por ocasião da morte do

cunhado e da enfermidade da irmã, limitara-se a escrever, enviando à viúva

condolências e votos de pronto restabelecimento. Mas, percebendo que o

velho pai estava prestes a deixar o mundo, dera-se pressa em se abeirar do

seu leito, em vista da pequena fortuna do antigo educador de Blois.

Carolina encontrou a irmã em lamentável estado. Não obstante as

preocupações egoísticas de um temperamento somítico, não abraçou Susana

222

sem chorar. A desventurada viúva dirigiu-lhe comovedoras exortações, que lhe

calavam fundo no espírito.

— Talvez não saibas, Carolina — dizia exaltada —, que me tornei

criminosa aos olhos dos homens e diante de Deus... Condenei Madalena

Vilamil ao destêrro e à miséria, para desposar Cirilo, na América... Fiz tudo

quanto quis, mas Deus deixa agora que o diabo me peça contas de meus atos

condenáveis!...

— Acalme-se... - exclamava Alcione em atitude de serva devotada. — A

senhora está se entregando a emoções muito fortes com a chegada de sua

irmã.

— Quem é esta enfermeira tão adequada às nossas necessidades? —

perguntava Carolina à Beatriz, com interêsse.

Vendo, porém, que a irmã encontrava certa dificuldade em se explicar, a

própria Alcione esclareceu:

— Sou empregada da senhora Davenport, ainda ao tempo em que ela

gozava saúde.

— Pois bem, minha menina — replicava a visitante como quem se sente

bem ao reconhecer que outros tomam para si o trabalho ou a dificuldade que

lhe pertencem —, Deus há de ajudá-la pelo devotamento com que cumpre os

seus deveres.

Carolina permanecia ali, sob forte impressão.

— A loucura de Susana é bem singular —disse espantada. — Por que se

referirá a crimes que absolutamente não praticou?

— Diz o médico — esclareceu a enfermeira com serenidade — que essa

perturbação é comum à maioria dos que têm o cérebro transtornado – Em vista

de D. Susana haver-se casado com o primo que a ela se unia, em segundas

núpcias, parece sempre preocupada com o assunto, alegando situações

imaginárias.

— A explicação do facultativo é muito plausível — acrescentava a tia de

Beatriz. —; minha irmã era muito amiga de Madalena Vilamil e, possivelmente,

lembrar-se-á muito da extinta, nos delírios de sua demência.

— Acresce notar — ajuntava a filha de Madalena — que meu nome é

Alcione Vilamil e esta circunstância não deixará de influir no ânimo da enfêrma,

sempre em minha companhia...

— Isso é muito curioso — explicava a inter-locutora —, mesmo porque

suas feições são muito semelhantes às da primeira espôsa de Cirilo, quando

moça.

— Muitoa dizem isso — confirmava a moça, com humildade.

A senhora de Nemours não ocultou a simpatia que a enfermeira lhe

inspirava, tecendo-lhe francos elogios, junto de Beatriz.

No dia imediato ao de sua chegada, eis que o velhinho generoso, depois de

longos padecimentos físicos, despede-se do mundo com grande serenidade.

Alcione resistiu a todos os embates, herôicamente, transformando-se num anjo

de socorro para cada um, em particular.

Depois do funeral, foi debalde que um dos jovens, filho de Carolina, insistiu

para regressarem ao Norte. A espôsa do Sr. de Nemours alegava,

confidencialmente, precisar conhecer o testamento paterno, O genitor deixara

regular quantia em dinheiro de contado, e Carolina queria tomar conhecimento

das suas últimas disposições.

O documento, no entanto, aberto daí a três dias, reservava grande surprêsa

223

ao seu coração egoísta. Jaques Davenport deixava a pequena fortuna para

Alcione Vilamil, declarando que sua resolução obedecia ao fato de que as filhas

e os netos se encontravam devidamente amparados por vastas possibilidades

financeiras, e que a sua deliberação testamentária nada mais representava que

um ato de gratidão para com a enfermeira amada, a cujo carinho se sentia

ligado por eterno reconhecimento.

Alcione chorou, comovidamente, ouvindo a leitura, e, enquanto Beatriz não

conseguia dissimular a satisfação que lhe vagava nalma, a tia mergulhava-se

em contrariedade intraduzível.

Reconhecida a última vontade do morto, Carolina Davenport entrou a

pensar sêriamente na possibilidade de uma destituição. À noitinha, aproximouse

da filha de Susana, falando-lhe do assunto com gravidade.

— Beatriz — começou a dizer a senhora de Nemours algo irritada —, não

posso calar a estranheza que me causou a disposição testamentária de papai.

Francamente, estou decepcionada.

— Pois eu, titia, muito pelo contrário, penso de outro modo. Acho que vovô

praticou um ato de grande justiça.

— Como assim? Não vejo razões que justifiquem êsse ato. Nunca acreditei

que meu pai olvidasse a prole para valorizar apenas os serviços de uma criada.

Estou disposta a pleitear a anulação do testamento. Meu velho pai deve ter

sido lamentàvelmente enganado...

— Não diga isso! — tornou a sobrinha revelando nobre preocupação. —

Alcione, em nossa casa, desempenha o papel de uma filha. Sou testemunha da

sua extrema dedicação. Aliás, até ontem, a senhora não lhe negou os maiores

elogios...

— Sim, como serva. Não podia, porém, supor que papai houvesse atingido

êsses extremos de consideração.

— A senhora, minha tia — esclareceu Beatriz com a delicadeza firme de

quem não está disposto a ceder —, é porque tem vivido ausente, anos consecutivos.

Naturalmente, não pode aquilatar as elevadas qualidades de que

Alcione é portadora. Ainda é bastante feliz neste mundo, para conseguir enxergar

as almas que desempenham a tarefa dos anjos. Desde que se casou, vive

tranqüilamente em sua propriedade, ao lado do espôso abastado e dos filhos

que participam do seu bem-estar, inalterado até hoje. Aliás, devo dizer que esta

opinião era a de vovô, sempre queixoso da sua ausência. Nós, porém, não

podemos partilhar com a senhora a mesma apreciação. O falecimento de meu

pai nos trouxe lições muito amargas, que Alcione nos tem ensinado a

compreender com a sua bondade sem limites... Em todo o curso da moléstia de

minha mãe, seu devotamento tem tocado ao heroismo.

A interlocutora parecia ouvir superficialmente os argumentos da jovem,

respondendo com certa secura:

— Não posso aceitar a opinião da tua mocidade inexperiente. A meu ver,

Alcione é criatura com muitos predicados excelentes, mas não lhe vejo outros

títulos que os de serva.

E mostrando o ciúme que lhe envenenava o espírito, em virtude da

predileção paterna, rematava:

— Susana está demente, mas eu ainda não perdi a razão. Não concordo

com a decisão testamentária e recorrerei à justiça.

A sobrinha, contudo, endereçando-lhe um olhar autoritário, sentenciou:

— Jamais supus que a senhora descesse a tal deliberação apenas por

224

alguns milhares de francos, concedidos por um coração generoso a uma órfã.

Saiba, porém, minha tia, que não ficarei inativa ante os juizes de Paris. Sua

reclamação poderá vingar, mas eu darei à Alcione, püblicamente, um legado

que possa equivaler à pequena herança deixada por vovô... Assim, nossos

amigos terão ciência de que a reclamação não parte desta casa, e sim de um

espírito inconformado e mesquinho.

Ante a nobre atitude de resistência, a senhora de Nemours fêz um gesto

de forte irritação e murmurou desolada:

— Insultas-me? És muito nova para discutir comigo. Estou a ver que tu e a

serva transtornaram a cabeça do velhinho doente, induzindo-o a testamento

tão singular...

— Poderá julgar como lhe ditam os sentimentos próprios.

Carolina corou, fortemente excitada e resmungou:

— Volto hoje mesmo para casa. E ficas ciente, Beatriz, que não precisamos

do dinheiro do papai, nem do teu. Tratei do assunto da herança, porque todos

somos obrigados a honrar a justiça, mas nunca precisarei dessa miséria de

alguns escudos. E que Deus te proteja, para que a serva intrusa não te cause

sérias decepções.

A sobrinha lançou-lhe um olhar altivo e murmurou muito calma:

— Agradeço a sua decisão de partir. É melhor que o escândalo fique só

entre nós e que a senhora renuncie à primeira disposição que me levaria

também a público, como sua adversária.

Não obstante a preocupação de abandonar o palacete da Cité, naquela

mesma noite, Carolina Davenport, contida pelos filhos, esperou pela manhã,

quando se retirou de Paris, despedindo-se da sobrinha sêcamente.

Por essa época, Henrique de Saint-Pierre começou a cooperar mais

assiduamente na solução dos negócios que envolviam a antiga residência de

Cirilo. No círculo de tantas dores e preocupações, sômente a perspectiva do

casamento próximo de Beatriz oferecia ensejo a determinadas esperanças de

paz. A noiva aguardava as melhoras da genitora para marcar a data do

consórcio. Desde há muito, o rapaz manifestava desejos de não adiar o enlace

por mais tempo; no entanto, Beatriz não se sentia bem, entregando à Alcione o

pêso de todos os encargos, relativamente à enfêrma. Susana, logo após o

falecimento do velho professor, atingira um estado especial de inércia, piorando

sempre, a olhos vistos. As duas filhas de Cirilo revezavam-se devotadamente

no sentido de amparar a doente com todos os recursos ao seu alcance. Alcione

andava abatida. No entanto, as lutas agravavam-se, cada vez mais.

Certa noite, Robbie, já quase homem feito, demorou-se mais que de

costume. A filha de Madalena inquietou-se, sentindo que algo de grave sucedera,

amargurando-lhe o coração. De fato, enquanto confiava à irmã os

pensamentos que a atormentavam, um portador do abade Durville, clérigo de

São Landry, pedia sua presença urgente.

— Senhorita — exclamou respeitosamente, dirigindo-se à moça, que o

ouvia surpreendida —, o Sr. Robbie há duas horas foi vítima de um desastre,

quando mal havia saído da igreja...

— Que foi? — inquiriu Alcione sem disfarçar a enorme aflição.

— O rapaz ia distraído quando um carro o colheu, brutalmente! Os cavalos

espantaram-se e o cocheiro não teve tempo de evitar o desastre lamentável.

— E como está êle?

— Muito mal. As feridas do peito sangram com abundância, mal pode falar

225

e pediu ao Abade Durville que a prevenissem com urgência.

— Não há tempo a perder — murmurou Beatriz.

Daí a minutos, o carro dos Davenport saía à pressa, conduzindo as duas

irmãs.

Em um recanto da igreja de São Landry, o filho adotivo de Madalena

experimentava o esgotamento rápido de suas fôrças. O sangue borbulhava,

incessante, das feridas abertas. Debalde um médico aplicava os recursos

limitados da sua ciência, O afluxo de sangue cedera em determinadas regiões,

mas a incisão profunda, ao longo do peito, era uma fonte inestancável. Não

havia mais esperanças. Durville e alguns companheiros assistiam-no, certos de

que o músico estava perdido.

Percebendo a seu lado a irmã muito querida, o rapaz pareceu concentrar

as energias supremas, no desejo de lhe transmitir os últimos pensamentos. A

voz era-lhe como um sôpro. Alcione inclinou-se, esforçando-se para não

chorar; beijou-o com enternecimento fraterno e sentou-se, ali mesmo, para que

a fronte dilacerada lhe repousasse no regaço fraterno. O ferido esboçou um

sorriso leve que sensibilizou os assistentes.

— Então, Robbie? como foi isso? — perguntou a irmã, quase colando os

lábios aos seus ouvidos.

— Deve ser... a vontade de Deus.., que se cumpriu...

Alcione, muito comovida com a doce resignação do moribundo, voltou a

dizer:

— Levar-te-ei comigo para casa. Haveremos de tratar das feridas, com

atenção, O carro nos espera à porta.

O ferido tentou fazer um gesto que significasse a sua impossibilidade

absoluta, chegando tão sómente a murmurar:

— Não posso mais...

Beatriz procurou o facultativo, que tirava o avental tinto de sangue e pediu

licença para remover o rapaz. O doutor, entretanto, não concordou,

exclamando:

É inútil! A providência apenas agravaria os padecimentos do infeliz.

Seus minutos estão contados, O grande ferimento do peito, produzido pela

pata do animal, é irremediável.

— O caso é assim tão grave? — indagou a filha de Susana, alarmada.

— A morte é uma questão de momentos —respondeu o médico, um tanto

displicente.

Alcione, que compreendia a situação, inclinara-se para o moribundo, como

se estivesse acariciando um filhinho.

— No instante em que se verificou o desastre — esclarecia o Abade

Durville em voz alta —, quis prender o cocheiro culpado, a fim de puni-lo, como

de justiça, mas Robbie não consentiu, dizendo-se o único culpado do incidente.

O rapaz olhou a irmã, longamente, ansioso de ler no seu rosto a

aprovação de sua atitude. A filha de Madalena entendeu a sua linguagem silenciosa

e disse:

— Fizeste muito bem, Robbie. É preciso não disputarmos com o mundo, a

fim de encontrarmos o caminho que conduz a Deus.

O agonizante teve uma expressão de grande confôrto íntimo e, reunindo

as suas reduzidas possibilidades orgânicas, falou entrecortando as palavras:

— Desde que mandei os gendarmes libertar o cocheiro, por entender que

me cabia a culpa... sinto que não tenho mais a pele negra, que tenho a mão e a

226

perna... curadas... veja Alcione...

E fazendo um esfôrço ao qual não podia corresponder a mão quase hirta,

continuava, murmurando:

— Minha mão tem agora cinco dedos... e tenho a impressão de que me

curei dos olhos para sempre... Sômente não posso levantar-me e acompanharte..

Mas depois que dormir... penso que ficarei bom.

A irmã adotiva acentuou vertendo algumas lágrimas:

— São estas as provas redentoras, meu querido Robbie! Deus te restitui a

saúde da alma, por te considerar novamente digno -

Mas o médico que conversava com Beatriz e o abade. Durville, a distância

de dois passos, acrescentava:

— Creio que a pobre rapariga não conhece o delírio da morte. O

agonizante começa a desvairar. Deve ser o fim.

Longe de ouvir a opinião descriteriosa do mundo, Alcione conchegava o

irmão de encontro ao peito, elevando-se a Jesus em preces fervorosas.

— Sinto... muito sono... — disse Robbie num sôpro débil.

A filha de Madalena afagou-o com mais ternura e o músico adormeceu

para sempre, no mundo, para despertar numa vida mais alta.

*

O doloroso incidente, que arrebatara o irmão adotivo para a esfera

espiritual, deixara Alcione muito mais abatida do que fôra de prever. Saint-

Pierre cuidou do funeral com a maior solicitude. Terminada, porém, a cerimônia

fúnebre, que se havia revestido de tocante simplicidade, a jovem Vilamil

começou a experimentar penosa angústia no coração. Nunca sentira tamanha

sensação de soledade no mundo. Robbie era o último traço da sua infância e

da sua juventude. Amargurosa saudade empolgou-lhe o coração. A antiga

chácara de Ávila ficara muito distanciada no tempo. Dolores e João de Deus,

os bons amigos da meninice, jamais haviam dado sinal de vida, do seu

longínquo recanto; padre Damiano e sua mãe haviam partido, seu pai e o avô

lhes haviam seguido os passos no caminho da morte, Carlos afastara-se pela

incompreensão, Robbie descera à sepultura.

Dominada pela tristeza dos espíritos solitários, a filha de Madalena

recolheu-se ao aposento particular. Aí chegando, chorou convulsivamente, em

atitude contrária a todos os seus hábitos. Abraçando o velho crucifixo, junto do

qual tantas vezes D. Margarida e Madalena haviam chorado, dizia

sentidamente:

— Ah! meu Jesus, não me desampares!...

Foi aí que a pobre louca, dando pela sua falta, aproximou-se, depois de

abrir a porta levemente cerrada, exclamando de olhos inexpressivos, num

impulso maquinal:

— Alcione!... Alcione!.

A interpelada enxugou o pranto, recolocou o crucifixo no lugar primitivo,

levantou-se solícita e foi ao encontro da enfêrma, com ternura:

— Ah! como me esqueci da senhora!...

E abraçando a pobre demente, conduziu-a com muito carinho ao quarto de

dormir.

227

6

Solidão amarga

Susana Davenport ainda viveu pouco mais de dois anos, após a morte de

Robhie. A filha de Madalena passou todo êsse tempo em largos sacrifícios

domésticos, exemplificando o amor mais puro. A genitora de Beatriz teve

agonia prolongada, recuperando a razão nas derradeiras horas. Olhos fixos na

filha, tomou-lhe a mão e colocou-a nas mãos de Alcione, dando a entender que

a filhinha, em tempo algum, deveria esquecer de tomar a irmã como um

símbolo.

Alcione descansava agora de uma luta imensa, mas, afeita ao trabalho

desde os mais tenros anos, chegava a estranhar o repouso.

O próximo casamento de Beatriz, com os numerosos trabalhos conseqüentes,

foi por ela encarado como um alívio à solidão que começava a experimentar.

Tôdas as horas do dia, em carinhosa dedicação, eram consagradas ao

bordado e à costura, surpreendendo a irmã pelo gôsto artístico e habilidade,

em cada detalhe do serviço. Beatriz não conseguia eximir-se ao pêso das

recordações dolorosas, mas o consórcio com o homem amado revigorava-lhe

as esperanças. O palacete da Cité, sempre envolvido num manto de saudades,

dava a impressão de jardim abandonado que começasse a reflorir. Os servos

evitavam referências à morte dos antigos senhores, para que os rebentos de

alegria nova não fôssem arrancados. Se acaso via a irmã entristecida, Alcione

fazia questão de tanger as teclas de assunto confortador, para que a moça não

se entregasse à tristeza e ao mal-estar. O culto doméstico do Evangelho foi

restaurado. O próprio Henrique de Saint-Pierre associou-se ao movimento,

partilhando das reflexões religiosas com muita satisfação. A inspiração da filha

de Madalena causava-lhe surprêsa cariciosa. Sua palavra penetrava problemas

complexos da existência, como se já tivesse vivido numerosos séculos em

contato com os homens. Para Henrique, tais reuniões tinham caráter providencial.

Indiretamente, a irmã de sua noiva, sem qualquer intenção, preparava-lhe

o espírito para as tarefas sagradas do lar, para os benefícios do casamento. O

rapaz começou por abandonar as companhias perigosas que, não raro,

tendiam a comprometer-lhe o nome e a saúde; a vida revelou-lhe profundos

segredos, seu coração parecia agora aberto para o orvalho divino do

sentimento superior. Incansável no trabalho, Alcione estendeu o culto dominical

aos serviçais numerosos. Todos puderam participar das bênçãos de Jesus, no

vasto salão que Beatriz mandou preparar jubilosamente. O movimento familiar

continuava em santas vibrações de fraternidade e alegria. A moça Vilamil organizou

hinos de carinhosa devoção a Deus, que as crianças dos servidores

entoavam, com encanto singular. O cravo parecia falar harmoniosamente da fé,

sob a pressão dos seus dedos. A filha de Susana não cabia em si de contente.

A grande residência de Cirilo perdeu o aspecto sombrio, adquirido em todo o

curso da moléstia da viúva Davenport. Júbilo sadio estabelecera-se entre

todos. Quando alguém demonstrava indisposições súbitas, recordava-se o

ensinamento do Cristo e o culto doméstico ia ganhando todos os corações.

O enlace de Beatriz e Saint-Pierre realizou-se com muita simplicidade, e

concorrência, apenas, das relações mais íntimas.

Alcione acompanhou satisfeita todos os trâmites do auspicioso evento,

mas, em seguida, entrou num período de grande abatimento, do qual apenas

saía nas horas rápidas do culto familiar.

228

A filha de Madalena não conseguia furtar-se à saudade dos seus

inesquecíveis ausentes e, simultâneamente, experimentava a falta do trabalho

ativo, que se tornara a incessante religião dos seus braços fraternos.

A Irmã impressionou-se Que fazer para arrancá-la daquela melancolia que

a empolgava devagarinho? Ela esquivava-se às festas sociais, não tinha

inclinação para os prazeres do seu tempo. Tendo passado dos trinta anos,

seus traços fisionômicos conservavam a beleza da primeira juventude,

revelando, ao mesmo tempo, a madureza do espírito. Beatriz começou a

pensar, sêriamente, em inclinar-lhe a alma sensível e afetuosa para um

casamento feliz. Dominada por êsses pensamentos. a espôsa de Saint-Pierre

aproximou-se certo dia da irmã e lhe disse, com bondade:

— Tenho andado bastante cuidadosa de ti e preciso cooperar para que a

tristeza seja banida do teu coração e dos teus olhos!...

— Por que te afligires, minha querida? O repouso involuntário de nossas

mãos costuma agravar o esfôrço dos pensamentos. Não estou acabrunhada,

podes crer. Tenho meditado um pouco mais e essa circunstância te induz a

perceber mágoas imaginárias em meu espírito.

Beatriz abraçou-a com enternecimento e falou:

— O coração me diz que não estou enganada. Consomes-te a olhos

vistos. Por vêzes, Alcione, quando em passeio com Henrique, não posso evitar

que meu júbilo se misture ao remorso...

— Mas, como assim, querida?

— Não me conformo em ser feliz só por mim, quando mereces as bênçãos

do Céu, muito mais que eu.

Depois de ligeira pausa, a filha de Susana continuava:

— Quem sabe desejarias fazer alguma viagem que te distraísse? Essa

providência seria mais que justa, após tantos anos de luta e sacrifício. Quando

não quisesses ir a país estrangeiro, poderias descansar em alguma praia e

fortalecer-te em contacto direto com a Natureza.

— Mas, se eu estou muito bem e nada me falta?

Beatriz contemplou-a, com mais carinho, e, quase suplicante, tornou a

dizer:

— Alcione, desejava lembrar uma possibilidade, pelo que espero me

perdoes com a tua generosidade fraternal...

A irmã comoveu-se com o acento caricioso daquelas palavras e

obtemperou:

— Dize sem receio. De que se trata?

— Tenho pedido a Deus, ansiosamente, me conceda a alegria de ver-te

formando igualmente um lar, onde um espôso fiel ilumine a tua estrada com as

bênçãos de uma ventura sem fim. Se te pudesse ver amada por um homem

leal e puro, cercada pela ventura de filhinhos carinhosos, como seria feliz!...

Dá-me a satisfação de te auxiliar a refletir nesse particular.

Beatriz notou que a irmã fazia enorme esfôrço para reter as lágrimas.

Adivinhando o seu embaraço para responder, a espôsa de Henrique ganhava

ânimo para prosseguir:

— Eu e meu marido vimos pensando na colônia distante, onde os nossos

bens materiais são consideráveis. Henrique vem ultimando alguns negócios e

creio que, daqui a alguns meses, tomaremos a nova decisão. Meus tios

insistem pelo meu regresso e, além dêles, temos na América velhos amigos de

meu pai a nos esperarem de braços abertos. Claro que não dispensamos tua

229

companhia e peço-te permissão para ir meditando, desde já, na tua felicidade

futura. Na minha terra natal, encontrarás relações carinhosas e devotadas, e —

quem sabe? — talvez Jesus te reserve por lá um espôso fiel e cristão, que faça

por ti tudo que te desejamos de coração.

Alcione comoveu-se profundamente. O terno respeito de Beatriz, a

delicadeza da sua exposição, penetraram-lhe o espírito como um bálsamo

celestial. Demonstrando o interêsse de sua dedicação fraterna, respondeu

reconhecidamente:

— E se te dissesse que tenho meu coração prisioneiro, desde a primeira

mocidade?

A espôsa de Saint-Pierre, com um franco sorriso, revelava o prazer que a

declaração lhe causava. Se a filha de Madalena Vilamil já havia elegido o

homem do seu afeto, não lhe seria difícil contribuir eficazmente para a sua

ventura. Ansiosa e confortada, Beatriz insistia de olhos muito brilhantes:

Ah! conta-me tudo! Certo, o feliz eleito de tua alma não estará aqui em

Paris. Quem sabe é algum gentil-homem espanhol, a esperar tua resolução há

longo tempo?

Reconhecendo a sinceridade da irmã, Alcione passou a historiar a sua

juventude, recordando a figura de Clenaghan com a vivacidade dos seus

imensos tesouros afetivos. Longas horas estiveram ambas no divã, desfiando o

rosário das lembranças queridas. A filha de Susana seguia as palavras da irmã,

demonstrando enorme estupefação, pela sua capacidade de sacrifício. Alcione

crescia espiritualmente, cada vez mais, no seu conceito. Ao terminar o relato

de suas agridoces reminiscências, a jovem esclarecia:

— Quando nos encontramos pela última vez, aqui em Paris, notei que êle

não podia compreender os meus deveres filiais. Estava taciturno, talvez irritado

com as lutas da sorte. Não podia ver em mim senão a noiva que lhe atendesse

ao ideal humano, mas eu ainda retinha comigo deveres sagrados para com

meus pais, e não pude acompanhá-lo de volta a Castela. Ele não se despediu

de mim, mas o fêz de mamãe, antes de se pôr a caminho do Havre; e mamãe

sempre dizia que o notara bastante transformado, suspeitoso e desesperado.

Sofri com isso muito mais do que se pode imaginar, mas entreguei a Jesus as

minhas mágoas íntimas. Lembro-me, perfeitamente, de que, impossibilitada de

lhe revelar o que ocorria entre minha mãe e meu pai, que o destino havia

separado, prometi que o procuraria a qualquer tempo que as circunstâncias

permitissem...

— E não terá soado essa hora de conciliação? — interrogou Beatriz

ansiosa por lhe renovar o bom ânimo.

— Tenho pensado nisso, sinceramente, nestas últimas semanas —

confessou a filha de Madalena, prazerosa por sentir-se compreendida. — Estou

certa de que Carlos confia na minha sinceridade e não terá desposado outra

mulher. Nesta fase de minha vida, talvez lhe possa ser útil, poderia concorrer

para seu retôrno à vida religiosa, embora sem esperança de reintegrá-lo no

ministério sacerdotal.

— Que dizes? — murmurou a espôsa de Saint-Pierre com infinito carinho.

— Não penses obrigá-lo a retomar um serviço contrário à sua vocação. Teu

coração e o do homem amado têm direito ao banquete da vida. Hás de casarte

e conhecer a felicidade que parecia remota e irrealizável. Quero beijar teus

filhinhos, num futuro risonho.

O semblante de Alcione iluminou-se, mostrando a beleza do seu mais

230

secreto ideal de mulher. Ruborizada e quase feliz, perguntou:

— Supões, acaso, Beatriz, que Deus ainda me concederá semelhante

felicidade?

— Por que não? — voltou a dizer a interlocutora com sereno otimismo. —

Estás moça e bela, como aos vinte anos. É preciso cuidarmos imediatamente

do contato com Ávila.

A filha de Madalena dirigiu à irmã um olhar significativo e indagou:

— Estarias de acôrdo que eu fôsse até lá? Tenho desejado surpreender

Carlos com o exato cumprimento de minha palavra.

— Sem dúvida — respondeu Beatriz bem humorada, ao perceber que

novas esperanças brotavam daquela alma generosa e santificada —; se fôsse

possível, acompanhar-te-ia. Creio não ser possível, mas tudo se arranjará de

maneira a visitares Castela-a-Velha, na primeira oportunidade.

— Irei sozinha — esclareceu Alcione, de olhos vivazes.

No dia seguinte, ao almôço, Henrique de Saint-Pierre partilhava do

entusiasmo de ambas.

— Beatriz me fêz ciente de tuas intenções —disse-lhe em tom fraternal —

e podes crer que já estou à espera de Clenaghan, com justa ansiedade.

Preciso de um companheiro para o desdobramento de nossos negócios. Claro

que não necessitamos de capital, mas sim de um auxiliar operoso e leal, que

nos ajude a zelar o patrimônio adquirido. Sinto que teu futuro espôso

solucionará o nosso problema.

— Ah! sim — respondeu Alcione risonha — Carlos é um homem honesto e

trabalhador. É verdade que faltou ao compromisso sacerdotal, falta essa que

não pude aprovar, desde os primeiros tempos em que a decisão não passava

de projeto; mas nada se poderá dizer contra a sua lealdade. É portador de

caráter nobre e de valorosos sentimentos.

— Para nós, será um irmão — disse Beatriz satisfeita.

— Certamente — continuou Saint-Pierre atencioso — já se entenderam

sôbre a nossa transferência para o Novo Mundo?

— Sim — acentuou a filha de Madalena, confortada.

— Pois bem — prosseguiu o novo chefe da casa —, Clenaghan irá

conosco, como pessoa da família. Quanto a ti, Alcione, conheço o plano de

viagem à Espanha, onde cuidarás da agradável surprêsa ao teu escolhido.

Quisera seguir-te e mais a Beatriz, mas negócios urgentes impedem fazê-lo.

Poderei, no entanto, mandar um empregado ao Havre, a fim de conhecermos o

movimento das embarcações mais seguras. Se queres, poderei designar

alguém que te acompanhe na viagem tão longa...

Sinceramente reconhecida, a moça obtemperou:

— Não há necessidade, Henrique. Poderei seguir só, visto conhecer o

caminho. Além disso, Ávila é como se fôsse minha segunda pátria. Tenho lá

inúmeras amizades.

— Não temos qualquer objeção a fazer. Apenas formulo votos ao Céu para

que a tua ventura se processe ràpidamente. Dirás a Carlos Clenaghan que o

esperamos nesta casa, com interêsse e simpatia. Para mim, Alcione —

acrescentava Saint-Pierre comovidamente —, nunca fôste a governanta de

Beatriz, mas nossa irmã muito amada, pelos laços sacrossantos do espírito. O

companheiro de tua escolha será pessoa sagrada aos nossos olhos. Em

chegando a Ávila, anima-o a vir em tua companhia, com presteza.

Esperaremos tua volta, para então marcar a viagem para a colônia.

231

Alcione não sabia como traduzir sua gratidão. Em frases carinhosas,

manifestou o sincero agradecimento dalma, ficando ali mesmo aprazada a viagem

à Espanha.

Precisamente daí a um mês, Beatriz e o espôso acompanhavam a irmã até

o Havre, onde Alcione, corajosamente, tomou a embarcação que a levaria ao

pôrto de Vigo.

Após as despedidas, quando o navio se afastava da costa francesa, levado por

ventos favoráveis, a filha de Madalena encontrou-se à sós com as suas

profundas recordações. As figuras da genitora, de Robbie e padre Damiano

apresentavam-se-lhe àmente, mais vivas que nunca. Era necessário muita

energia para não cair em pranto, em face da saudade que lhe pungia o

coração. Aqui, era um detalhe do mar, que havia impressionado o irmão

adotivo; acolá, um aspecto da costa que provocara certas explicações do velho

sacerdote. Recolhida em sentimentos carinhosos, a filha de Cirilo desembarcou

em terra espanhola, com o peito oprimido de infinitas esperanças. Nunca mais

tivera noticias de Clenaghan, era bem possível que não mais estivesse em

Castela-a-Velha; no entanto, suas relações de Ávila não faltariam com os

informes precisos.

A condução para a cidade da sua meninice não foi difícil. Em poucos dias,

chegava ao seu destino. Embora provocasse a estranheza de muitos o fato de

encontrar-se desacompanhada, Alcione mostrava uma atitude superior aos

olhares curiosos que pareciam interrogá-la. Não encontrou qualquer diferença

na paisagem. O berço de Teresa de Jesus repousava na terra pobre, cioso de

suas velhas tradições.

Às dez horas do dia, dava entrada em humilde hotel, naturalmente fatigada,

e deliberou não procurar as amizades antigas, até que se alojasse

convenientemente. de maneira a não se tornar pesada a ninguém, pela sua

chegada imprevista. Identificou, de pronto, velhos conhecidos da mocidade, a

quem, entretanto, não se revelou por não haver bastante intimidade. Depois de

refeita da fadiga imensa, chamou um pequeno servidor da hospedaria,

perguntando-lhe um tanto acanhada:

— Meu amiguinho, você poderá informar-me se reside aqui, em Ávila, um

senhor chamado Carlos Clenaghan?

Após refletir um momento, o rapazote esclarecia:

— Sim, senhorita, conheço.

A viajante verificou que o coração lhe palpitava com mais fôrça.

— Sabe se é de origem irlandesa, domiciliado em Castela há alguns anos?

— voltou a interrogar atenciosamente.

— Sim, é isso mesmo e sei mais que foi padre, noutro tempo. Hoje é

comerciante abastado.

Alcione ouviu-o comovida. Não podia enganar-se. Pensou, então, em

surpreender o espírito do amado em intimidade cariciosa. Convidá-lo-ia, por um

bilhete, a comparecer, à tarde, junto à nave da igreja de São Vicente.

Encontrar-se-iam na casa consagrada a Deus, onde tantas vêzes haviam

tecido muitas rêdes de sonhos e esperanças, sempre desfeitos pelo vendaval

das realidades dolorosas. Agora, porém, era lícito tratar do seu porvir

venturoso. Escrever-lhe-ia sem se dar a conhecer no bilhete, declarando-se

chegada de Paris, com notícias alviçareiras para o seu coração. Quando

chegasse ao velho templo, vê-la-ia então, compreenderia a sua fidelidade e

devotamento. Logo após o reencontro, visitariam juntos as antigas relações

232

afetuosas, buscariam rever o sítio de sua infância, bem como a casa modesta

em que sua mãe trabalhara tantos anos, curtindo as maiores privações.

Assim procedeu embalada por santas expectativas do amor desvelado e

confiante.

O rapaz que a esclarecera, longe de adivinhar o romance da nova hóspede, foi

emissário da breve notícia ao ex-religioso, que leu o bilhete assaz intrigado.

Carlos identificaria aquela letra, entre mil manuscritos diversos. Mas era

impossível, em seu modo de ver, que Alcione estivesse na cidade. A autora da

grafia, por mera coincidência, deveria ter o mesmo tipo de letra, que jamais

conseguira esquecer, no círculo das experiências pessoais. Não conseguia

concatenar outras explicações. Curiosidade febril avassalava-lhe a alma. Que

notícias de Paris poderiam ser enviadas ao seu coração? De há muito

considerava Alcione perdida, no capítulo das suas aspirações mais sagradas.

Dela não deveria esperar qualquer mensagem. Todavia, dilatando as ponderações,

começou a imaginar que se tratasse de algum recado de Madalena

Vilamil ou de Robbie, amigos dos quais não tinha notícias, desde que regressara

da França, onde fôra na suposição de encontrar a noiva conformada

aos seus caprichos de homem apaixonado. Prêsa de intensa sofreguidão,

aguardou o crepúsculo ansiosamente.

Antes do entardecer, Alcione dirigiu-se ao velho templo que constituía um

centro de lembranças sagradas ao seu espírito sensível. Ajoelhou-se e orou à

frente dos nichos, recordando, a cada passo, o velho sacerdote a quem

consagrara o devotamento de filha afetuosa.

Olhar indagador, de quando em quando perscrutava o caminho, a ver se

Clenaghan atendia ao convite.

Por fim, quando o céu desmaiava aos derradeiros clarões crepusculares,

um homem surgiu no adro, fazendo-lhe o coração vibrar em ritmo acelerado.

O sobrinho do padre Damiano aproximava-se. Alcione notou-o um tanto

abatido, parecendo cansado das lutas da vida. Intenso desejo de proporcionarlhe

consolação e confôrto aflorou-lhe nalma sensível.

Prestes a atravessar a portaria primorosa, o ex-religioso viu que alguém

avançava ao seu encontro.

— Carlos!... Carlos... — disse a filha de Madalena com infinita emoção.

O recém-chegado estacou tomado de assombro. Enorme palidez cobriulhe

a fisionomia, quis prosseguir, mas as pernas trêmulas paralisavam-lhe o

impulso. A inesperada presença de Alcione enchia-o de profunda admiração.

Debalde procurava palavras com que pintasse o estado de espírito, em que o

júbilo se confundia com a dor. A filha de Cirilo tomou-lhe a mão e falou com

meiguice:

— Não me reconheces? Venho cumprir minha promessa.

— Alcione!... — conseguiu dizer o interlocutor num misto de sentimentos

indefiníveis.

Um abraço carinhoso seguiu-se a essas palavras. Compreendendo-lhe a

perturbação natural, a moça procurou confortá-lo:

— Ah! se eu soubesse, antes, que te causaria êste forte abalo, não teria

feito esta surprêsa!... Perdoa-me...

Carlos se debatia intimamente entre idéias antagônicas. Diante dêle estava

a mulher amada, que as lutas ia existência não fizeram esquecer. Alcione era

sempre o seu maravilhoso e único ideal. As experiências vividas, longe da sua

dedicação e dos seus conselhos, eram provas amargas que, aos poucos, lhe

233

atassalhavam o coração repleto de santas esperanças. Mas, simultâneamente,

recordava com estranheza a atitude da jovem em Paris, quando não pudera

apreender todo o motivo das suas elevadas preocupações filiais. No seu

conceito, a eleita trocara o seu amor pelos atrativos do mundo. Jamais

conseguira olvidar aquêle palacete da Cité, onde a moça havia penetrado

intimamente apoiada ao braço de um homem.

Mal se desembaraçava no meandro dessas reflexões, quando a

interlocutora voltou a dizer:

— Vamos respirar o ar fresco da noite que desce. Deus me concede a dita

de reatar os inefáveis colóquios de outros tempos, neste mesmo ambiente das

nossas primeiras emoções.

O ex-sacerdote acompanhou-a màquinalmente. Antigo banco de pedra

parecia esperá-los para a revivescência dos mesmos idílios.

Clenaghan perguntou pelos amigos, recebendo com dolorosa surprêsa a

notícia da morte de Madalena e Robbie, impressionando-se vivamente com a

descrição do desastre que vitimara o músico. Alcione o embevecia com os

comentários criteriosos quanto emotivos. Tudo, na sua elocução vibrante,

ressumava amor e devotamento. Êle a contemplava com paixão, dando

mostras de que esperava, ansiosamente, aquêle bálsamo divino que lhe

manava dos lábios. Em dado instante, respondendo a uma observação que ela

lhe fazia com mais carinho o ex-sacerdote acentuou:

— Nunca pude forrar-me à mágoa que a tua atitude me causou. Senti que

me tratavas friamente.

— Naquela ocasião, Carlos, Jesus me pedia testemunhos de filha, aos

quais não poderia fugir senão pelos atalhos escusos da crueldade.

Ignorando ainda tôda a extensão dos sacrifícios da eleita de sua alma, o

pupilo de Damiano objetou:

— Mas, se me oferecia para trazer tua mãe e Robbie em nossa

companhia? Poderíamos ter sido infinitamente felizes se a isso não te

opusesses...

A tonalidade impressa a essas palavras fêz que a interlocutora

enrubescesse, calando-se.

— Que fazias, naquele palacete da Cité? Por que saías de casa a pé e ias

tomar um carro discretamente? Ignoras que te segui os passos sem que me

visses e que observei o homem que te abraçou, no portão, quando lá chegavas

sorridente? Ah! Alcione, não podes compreender todo o veneno que me

lançaste nalma confiante. Jamais poderia imaginar que Paris te transformasse

o espírito, a ponto de olvidar nossos compromissos e contrariar tua mãe

enfêrma, cuja evidente preocupação era abandonar a capital francesa para

voltar à vida simples de Ávila, onde havíamos afagado tantas esperanças e

sido tão felizes!...

A moça, depois de prestar muita atenção aos seus gestos e palavras,

sentenciou:

— Não devias ter ido tão longe no teu julgamento. Agora que nos

reencontramos para nos compreendermos de uma vez para sempre, devo tudo

dizer com franqueza. Sabes quem era aquêle homem que me recebeu de

braços abertos, naquela manhã?

Deteve-se ante a muda expectação do companheiro e prosseguiu:

— Aquêle homem era meu pai!...

— Teu pai! — exclamou Clenaghan aterrado.

234

E ela pausadamente começou a relatar todos os acontecimentos de Paris, a

partir do instante em que a enfermidade do padre Damiano lhe impusera

desdobrar-se em tarefas mais práticas. À medida que se desdobravam as

revelações, o rosto de Carlos mais se anuviava, O ex-sacerdote sempre reconhecera

na jovem as qualidades mais primorosas, mas não e nunca a

supusera capaz de tamanha renúncia. Extremamente comovida com a

evocação de suas reminiscências dolorosas, Alcione rematava:

— Não acreditas que tenha cumprido meu dever sagrado? Não admitas

que meu coração pudesse haver esquecido a tua dedicação e o teu amor.

Desde o nosso primeiro encontro, venho arquitetando um meio de enriquecerte

a alma de idealismo e confiança. Sempre sonhei, para o teu caminho, um

mundo de felicidades nobilitantes. Antigamente, tuas obrigações sacerdotais.

impuseram-nos a separação; mesmo assim, porém, vibrava na ansiedade

ardente de embelezar teu roteiro de nobres aspirações. Lutei para que não

abandonasses o que sempre considerei uma sublime tarefa; entretanto, hoje

busco harmonizar minhas idéias com a tua decisão e sinto que a consciência

pura é o melhor dote que te posso trazer para a nossa eterna aliança...

Ouvindo-a, generosa e confiante, Carlos Clenaghan sentia-se pequenino e

miserável.

— Perdoa-me!... — disse, banhado em lágrimas de sincera compunção.

— Compreender-te-ei agora por tôda a vida —esclarecia Alcione de olhar

muito lúcido —, mas... por que choras? Temos ainda numerosas oportunidades

de servir a Deus e a nós mesmos. Prometi que te procuraria logo que Jesus me

permitisse o júbilo do dever cumprido e aqui estou para cuidar da tua, da nossa

felicidade. Creio que não tens qualquer necessidade material, mas o marido de

minha irmã, que, aliás, desconhece o passado que te confiei em caráter

confidencial, põe à tua disposição bastos recursos para grande prosperidade

na América. Se quisesses, poderíamos partir talvez no ano próximo,

recomeçando o destino numa terra nova. Lembro que minha mãe sempre

suspirou pelo Novo Mundo... Quem sabe sua alma bondosa me inspira, agora,

o caminho mais certo, acenando-nos com a possibilidade de partir?... Henrique

de Saint-Pierre espera-te como a um irmão. Além disso, tenho também regular

pecúlio que deposito em tuas mãos. Não tenho outra preocupação direta,

presentemente, a não ser tu mesmo!...

E observando que o moço mantinha-se calado, em pranto, prosseguia com

solicitude:

— Releva-me se te falo assim abertamente. A confiança de um coração

não pode morrer. Dize-me, pois, se queres partir, para tentar vida nova sob as

bênçãos de Deus. Estou certa de que viveremos felizes, em perpétua e santa

união...

— Não posso! — sussurrou Clenaghan lastimosamente.

— Por quê? — indagou Alcione plenamente confiante.

Ele esboçou um gesto timido, revelando a vergonha que o assomava e

explicou com indizível tristeza:

— Estou casado há mais de dois anos.

A moça sentiu que o sangue lhe gelava nas veias. Jamais pudera admitir

que o dileto do seu coração fôsse capaz de olvidar antigos juramentos. O

inopinado da revelação esmagava-lhe a alma tôda. Lágrimas ardentes,

arrancadas do íntimo, afloravam-lhe aos olhos, mas, na meia sombra da noite,

buscava dissimulá-las cuidadosamente.

235

Vendo que tardava em manifestar-se, Clenaghan apertou-lhe a mão e

perguntou com a delicadeza de uma criança:

— Poderás perdoar-me outra vez?

A filha de Madalena recuperou as energias intimas e falou com serenidade:

— Não te preocupes comigo, Carlos. Reconheço, agora, que a vontade de

Deus é outra, a nosso respeito. Não chores nem sofras.

Extremamente comovido com aquela prova de humildade e renúncia, o exsacerdote

ponderou:

— Sou casado, Alcione, mas não feliz... Nunca pude esquecer-te.

Certamente, Deus nos criou para a união eterna. Cada coisa do lar, cada pormenor

da vida doméstica lembra-me teus sentimentos nobres, porqüanto

minha mulher não pode substituir-te.

— Sim — disse a moça com desvelado carinho —, também creio que há

um casamento de almas, que nada poderá destruir. Este deve ser o nosso

caso. O mundo nos separa, mas o Altíssimo nos reservará a aliança eterna do

céu.

O pupilo de Damiano tinha o peito oprimido por indefinivel angústia.

Coração prisioneiro das indecisões de quantos se afastam do dever divino,

voltou a dizer:

— Quem sabe, Alcione, poderíamos repudiar as algemas terrestres e

construir nossa felicidade longe daqui?... Minha mulher e eu vivemos em rixas

constantes, atravesso a vida sem paz, sem uma dedicação verdadeiramente

sincera. Estou pronto a seguir-te, desde que aproves êste recurso extremo, em

detrimento de meus compromissos atuais.

— Isso nunca! — exclamou a filha de Madalena com bondade enérgica —

amemos os trabalhos de nossa estrada, por mais duros que nos pareçam.

Jamais construiríamos um ninho de ventura e de paz, na árvore do crime. Deus

nos dará coragem nesta fase difícil. A existência na Terra não constitui a vida

em sua expressão de eternidade. Quando o Senhor desatar os laços a que te

prendeste num impulso muito natural e humano, encontrarás de novo meu

coração... A esperança é invencível, Carlos. Tôda inquietação, tôda amargura,

chegam e passam. A alegria e a confiança no porvir eterno permanecem. São

bens do patrimônio divino no plano universal...

Ouvindo-lhe os conceitos profundos, oriundos da fé poderosa que lhe

caracterizava o espírito, Clenaghan chorava num labirinto de remorso e sofrimento.

— Se fôr possível — prosseguia a moça com generosidade — desejaria

conhecer tua companheira de lutas. Talvez pudesse incliná-la a melhor compreensão

das tuas necessidades. Ás vêzes, basta uma simples conversação

para renovar a opinião de uma criatura. Não crês que eu possa contribuir, de

algum modo, em teu favor, com semelhante aproximação?

O infortunoso Carlos sentia-se comovido nas fibras mais íntimas, com o

delicado oferecimento, redargüindo em tom melancólico:

— Quitéria não é digna dessa esmola da tua bondade. Basta dizer-te que,

conhecendo a ligação afetiva existente entre nós, pelas minhas sucessivas

referências e por informações de antigas amizades nossas, em Ávila, sempre

alude à tua pessoa com laivos de ironia e rancor.

A filha de Cirilo entrou em silenciosa meditação. O destino não lhe permitia

nem mesmo aproximar-se do lar edificado pelo eleito de sua alma. Sua

afetividade, bem como o espírito de renúncia não poderiam ser compreendidos.

236

Restava-lhe regressar à casa de Beatriz, conformar-se com a nova situação e

esperar por Clenaghan num outro mundo, aonde fôsse conduzida pela mão da

morte. Longa pausa estabelecera-se entre ambos. Foi ai que lhe nasceu a idéia

de consagrar-se à solidão da vida religiosa, no intuito de trabalhar no seu

elevado idealismo.

— Não ficas magoada pelas minhas confissões? — perguntou o exsacerdote

angustiado.

— De modo algum — respondeu, esforçando-se por lhe parecer satisfeita

—, tua espôsa tem razão. Depois de visitar o velho sítio de minha infância e a

casinha tôsca onde minha mãe, tantas vêzes, me exemplificou a resignação,

voltarei à França sem perda de tempo.

— Quando nos veremos novamente? — interrogou êle inquieto.

— A vontade de Deus nô-lo dirá mais tarde. Até lá, meu querido Carlos,

não esqueçamos a dedicação aos nossos deveres e a obediência aos divinos

desígnios.

— Deixas-me em Castela, amargurado para sempre. Creio que jamais

poderei apagar o remorso que tisnará minhalma doravante. Aprenderei,

duramente, a não atender aos primeiros impulsos do coração. Se fôsse menos

precipitado no julgar, poderia oferecer-te, agora, a minha fidelidade perene.

Esqueci, porém, a prudência salvadora e mergulhei num mar de angústias

torturantes. Andarei, na Terra, como náufrago sem pôrto.

E terminando amargamente as suas considerações, rematava:

— Pede a Jesus por mim, para que o desespêro não me faça mais infeliz.

— Não te percas em semelhantes idéias — exclamou a filha de Madalena,

completamente senhora de si —, estamos neste mundo, de passagem para

uma esfera melhor. Por certo que a nossa felicidade não se resumiria em

atender, por algum tempo, aos nossos desejos, com o olvido das mais nobres

obrigações. É indispensável encarar as dificuldades com ânimo decidido. Luta

contra a indecisão, pela certeza de que Deus é nosso Pai, misericordioso e

justo... Se nos vemos novamente separados, é que há trabalhos convocandonos

a testemunhos mais decisivos, até que nos possamos reunir nas claridades

eternas.

Clenaghan prestava acurada atenção a cada uma de suas palavras sábias

e carinhosas. Em seguida a uma pausa, Alcione prosseguia cheia de amor e

compreensão:

— Não maltrates tua mulher, sempre que o seu coração não te possa entender

integralmente. Quando assim fôr, fase por ver nela uma filha. Quando não filha

de tua carne, filha de Deus, seu e nosso Pai. A bondade liberta o ódio e a

desesperação agrava os laços mesquinhos. A confiança em que o Pai Celestial

nos ajudará, nos testemunhos diários, transforma nosso espírito para uma vida

mais alta, ao passo que a revolta e a dureza nos prendem espiritualmente ao

lôdo das mais baixas provações. Ainda que tua companheira seja ingrata,

perdoa-lhe como amigo compassivo. Nenhum de nós está sem pecado, Carlos.

Por que condenar alguém ou agir precipitadamente, quando também somos

necessitados de amor e de perdão? Vive no otimismo de quem trabalha com

alegria, confiante no Divino Poder. À nossa frente desdobra-se a eternidade

luminosa!... Embora separados no plano material, nenhuma fôrça da Terra nos

desligará os corações. Muitas obrigações poderão encarcerar-nos

transitoriamente na Terra, mas o elo do amor espiritual vem de Deus, e contra

êle não prevalecem as injunções humanas...

237

Ante as observações judiciosas de Alcione, Carlos pôde reconfortar-se, de

algum modo, para retomar a luta purificadora. Só muito tarde, separaram-se

em penosas despedidas.

A filha de Madalena, disfarçando a dor que a empolgava, cumpriu

rigorosamente a promessa. Depois de beber na taça da saudade, revendo os

antigos sítios das primeiras esperanças, sem mesmo se dar a conhecer às

relações de outros tempos, regressou a Vigo, onde se demorou quase um mês

em meditações silenciosas e doridas. Sua permanência em Ávila poderia

acarretar complicações à vida doméstica do homem escolhido. A jovem espôsa

de Clenaghan, possivelmente, criaria pesadelos de ciúme, sem justificativa.

Diàriamente, à tardinha, Alcione aproximava-se da praia, contemplando as

velas pandas que se afastavam no estendal das águas movediças. Profunda

saudade dominava-lhe o coração. Após longos dias, nos quais procurava

rememorar, uma a uma, as velhas advertências do Padre Damiano, quando na

vida religiosa, resolveu retirar-se do mundo para a soledade dos grandes

pensamentos. Não desejava, de nenhum modo, atirar-se ao repouso

permanente da sombra, mas, sentindo-se na plenitude de suas energias

orgânicas, refletia que não era lícito pensar na morte do corpo e sim no melhor

meio de atender ao trabalho, de coração voltado para Jesus. Se partisse em

companhia de Beatriz, naturalmente não lhe faltariam as bênçãos da vida

familiar, mas, o coração não se conformava com a idéia de repouso constante,

O ‘destino não lhe dera um lar próprio, onde lhe fôsse possível consagrar-se

inteiramente ao homem amado e aos filhinhos do seu amor. Seus pais já

haviam partido para uma vida melhor, o irmão adotivo lhes fôra no encalço. Na

condição de mulher, tomaria, então, o hábito religioso, a fim de atender aos trabalhos

do Cristo. Não faltariam os deserdados, os doentes, os enjeitados, para

quem Jesus continuava passando sempre, nas estradas do mundo, distribuindo

energias e consolações. Consagrar-se-ia ao serviço de socorro às criaturas,

em benefício dos que necessitassem. Iria ao encontro do Mestre, pelo

aproveitamento mais nobre do tempo de sua vida.

Nessa disposição espiritual, regressou a Paris, onde a irmã a esperava

ansiosa e saudosa.

Apesar de serena e confortada na fé, não podia mascarar o abatimento e a

tristeza que lhe pairavam na alma sensível, e foi com lágrimas que relatou à

Beatriz o resultado da longa excursão. A espôsa de Saint-Pierre, visivelmente

emocionada, buscava confortá-la:

— Tudo isso passará com o tempo. Na América hás de achar lenitivo ao

coração sofredor.

Mas a filha de Madalena comunicou-lhe a resolução de tomar outro rumo.

Vestiria o hábito religioso, dedicar-se-ia ao coração de Jesus, enquanto lhe

restassem fôrças no mundo. A irmã tentou dissuadi-la.

— E nosso lar? — perguntava a filha de Susana, ansiosa por lhe modificar

a decisão. — Como nos seria dolorosa a falta de tua companhia.

Alcione quis dizer que se sentia quase só, distanciada das afeições

primitivas, mas, para não suscetibilizar a irmã devotada, objetou solícita:

— Pedirei, mais tarde, para visitar a América e passarei contigo o tempo

que fôr possível, mesmo porque não é justo olvidar que teus futuros filhinhos

serão também meus.

E não houve como lhe modificar o intento.

De nada valeram as exortações de Henrique, os rogos da irmã, os

238

carinbosos pedidos dos servos.

A filha de Cirilo tinha uma palavra amável e um sincero agradecimento para

todos, mas justificava o caráter sagrado de suas intenções.

A mudança de Henrique de Saint-Pierre para o Novo Mundo já estava

definitivamente aprazada, quando Alcione assentou a data do seu ingresso

num modesto recolhimento de freiras carmelitas.

Na véspera, sem que alguém o soubesse, visitou o túmulo da genitora,

levando-lhe a homenagem do seu respeito filial, naquele instante grave da sua

vida. Defronte do sepulcro, de alma colada às recordações afetivas, pôs-se de

joelhos e monologou baixinho:

— Ah! vós que experimentastes largos anos de reclusão e sacrifício; vós,

minha mãe, que fôstes tão devotada e carinhosa, ajudai-me a levar a Jesus o

voto silencioso de fidelidade até ao fim dos meus dias! Não me desampareis

nas horas escuras, quando a saudade se fizer mais amarga ao meu coração.

Inspirai-me pensamentos de fé, paciência e compreensão das coisas divinas.

Auxiliai-me nos trabalhos, abençoai-me nos testemunhos. Não esqueçais, no

céu, da filha a quem tanto amastes na Terra!...

Em seguida à prolongada meditação, voltou ao palacete da Cité, despediuse

afetuosamente de todos os servos e, já na manhã imediata, Saint-Pierre e

sua mulher abraçavam-na, compungidos, à porta do mosteiro.

Um ano de noviciado passou, no qual a filha de Madalena deu provas

exuberantes de coração puro e de consciência ilibada.

No dia que precedeu a resolução definitiva, a superiora chamou-a com

austeridade, num gabinete particular, e sentenciou:

— Minha filha, estás francamente decidida a abandonar o mundo e os seus

gozos?

Sim, madre — respondeu, humildemente.

— Deves saber que coisa alguma do passado te poderá acompanhar até

aqui.

A moça fêz um gesto expressivo e rogou:

— Compreendo-vos; entretanto, pediria permissão de levar para minha cela

um objeto muito caro.

— Que é?

— Um velho crucifixo que pertenceu a minha mãe.

— De acôrdo.

Depois de uma pausa, a madre abadessa voltou a perguntar:

— Que outros pedidos tens a fazer?

A nova professanda lembrou-se de Carlos, que não poderia excluir do

coração e de Beatriz, a quem se sentia ligada por santo reconhecimento, e indagou:

— Desejava saber se poderei participar de algum trabalho na América,

mais tarde, e se poderei futuramente pleitear minha transferência para algum

convento de Espanha.

— Tudo isso é possível — esclareceu a superiora.

E os teus bens?

— Assinarei amanhã o título de doação do que possuo, a benefício da

nossa Ordem.

— No momento crítico de tua resolução, Alcione Vilamil deve estar morta

para o mundo profano. Que nome desejas adotar na suprema união com

239

Cristo?

— Maria de Jesus Crucificado — disse, cândida e naturalmente.

Terminou o interrogatório.

No dia seguinte, pela manhã, em solene ritual, cercada pela admiração das

companheiras e de numerosos clérigos, a filha de Madalena ajoelhou-se ante o

altar de Jesus coroado de espinhos, e fitando o maravilhoso símbolo da cruz,

de olhos brilhantes e confiantes, repetiu enternecida a frase sacramental:

“Eis aqui a serva do Senhor. Faça-se em mim segundo a sua palavra.”

240

7

A despedida

Estamos nos primeiros anos do século 15III. Alcione Vilamil, agora Irmã do

Carmelo, é um exemplo vivo de amor cristão. Tendo passado dos quarenta

anos, a fisionomia conservava a beleza da madona esculturada pela virtude.

Muitas vêzes, na solidão de si mesma, nos primeiros dias de reclusão, refletiu

se não teria sido melhor acompanhar Beatriz à América. O amor de Carlos,

porém, lhe falava mais alto à consciência. Tal como outrora a genitora, em

seus padecimentos, absolutamente prêsa à lembrança do marido, a filha de

Cirilo sentia-se em perene viuvez de coração. A seu ver, não poderia seguir

para a América, onde seria naturalmente convocada ao espírito de novidade,

quando sabia o eleito de sua alma ligado ao solo de Espanha. Em sua

luminosa compreensão da vida, via em Clenaghan um fraco, não um criminoso;

e no recôndito dalma alimentava a esperança de aproximar-se um dia do seu

lar, de maneira a lhe ser útil. Quando êle a visse envergando o hábito religioso,

certo que a espôsa lhe respeitaria a condição, abstendo-se de qualquer

sentimento menos digno a seu respeito. Inconcebível, então, a tentativa de

novas atividades na América, quando entrevia possibilidades de auxiliar o

pupilo de Damiano em suas necessidades do coração.

Não obstante êsse poderoso magnetismo do amor, também nutria o

sincero propósito de visitar a irmã, no Connecticut, plano êsse que ainda não

fôra possível realizar, dado o nobre serviço a que se afeiçoara, para maior

júbilo das companheiras.

Depois de pronunciar o voto definitivo, não esteve em França mais que um

ano e transferiu-se para a Espanha, onde trabalhou primeiramente em

Granada, por mais de um lustro, em favor das crianças desvalidas e dos

desventurados da sorte. Por sua dedicação e humildade, convertera-se numa

orientação viva para as irmãs de apostolado. Geralmente, não faltavam as

intrigas, o esfôrço ingrato da inveja e da maledicência, tão comuns nos

conventos da época; ela, porém, sem exorbitar da sua conduta evangélica,

desconhecia tôdas as atividades da sombra, para cogitar sômente da sua

tarefa espiritual com o Cristo. Por Isso mesmo, sua exemplificação constituía

um símbolo precioso para a comunidade. Ao seu contato, inúmeras companheiras

renovavam as concepções próprias. Sua dedicação ao serviço

contagiava outros corações, que se sentiam seduzidos pela grandeza dos seus

atos e ideais, dentro do Evangelho. Jamais conseguira efetivar o velho desejo

de visitar Beatriz, mas, em compensação, criava, em tôrno da sua personalidade

simples e poderosa, um verdadeiro colégio de irmãs pelo coração,

que a admiravam e seguiam devotadamente. Depois de longo tempo,

conseguiu fixar-se na comunidade carmelitana de Medina Del Campo. Antes,

porém, obedecendo a secreta ansiedade do coração, visitou Ávila, lá se

demorando mais de uma quinzena. No entanto, com grande surprêsa, não

mais encontrou Clenaghan, sendo informada de que o comerciante irlandês,

após enorme infortúnio doméstico, retirara-se para a França, deixando a

mulher, que lhe havia conspurcado o lar e o nome. Alguns amigos chegavam a

declarar que o sobrinho de Damiano estava resolvido a retomar a batina, se

conseguisse permissão das autoridades eclesiásticas. Outros opinavam que o

ex-padre pretendia insular-se nalgum remoto convento, onde pudesse

consagrar o tempo às meditações divinas.

241

Alcione tudo ouviu, lamentando profundamente, mas, abstendo-se de

qualquer comentário, com aquela discrição que lhe assinalava as atitudes.

Entretanto. intimamente, examinava o assunto sem eximir-se a grande

estranheza. Com que intenção viajaria Carlos para a França? Pretenderia revêla?

Essa hipótese não era plausível, pois êle estava mais que informado do seu

plano de mudança para o Novo Mundo. Dolorosas considerações lhe vieram ao

espírito sensível, mas, atendendo às advertências santas da fé, buscava

entregar a Jesus as penas e anseios de cada dia, invocando-lhe o socorro

divino.

Recolhida em Medina Del Campo, não nas sombras do claustro, mas nos

trabalhos nobres do coração que se consagra a Jesus, nunca mais teve notícia

de Carlos, embora os anos perpassantes lhe trouxessem renovadas

esperanças em cada dia.

Na época em que nos encontramos, Maria de Jesus Crucificado

desempenha no convento a tarefa de subpriora, por fôrça da enfermidade

rebelde e dolorosa que, de há muito, prende ao leito a madre-superiora. A

instituição de Medina é realçada pelo seu espírito de atividade. Extensa porção

de terra é aproveitada em trabalhos fecundos, que aproveitam aos desvalidos.

A infância desamparada ali encontra escola ativa para a educação em seus

prismas essenciais. Mães sofredoras recebem esforçada cooperação das

Filhas do Carmelo. Alcione é a alma de tôdas as tarefas, mas, por isso mesmo,

começou a ser alvo do despeito e da perseguição gratuitos. Enquanto a velha

superiora repousa em tratamento, sua atividade transformadora converte a

casa num templo de trabalho e de alegria.

Quando sua ação benemérita começa a dilatar o círculo de trabalhos, eis

que o Padre Geral da Ordem, falsamente informado, designa um capelão de

Madrid para substituir o probo religioso que cooperava com a filha de Madalena

em suas obras renovadoras, e a situação se modifica inteiramente.

Frei Osório chega a Medina Del Campo com a secreta recomendação de

averiguar o que existe sôbre a vigorosa atuação da carmelitana humilde. Seu

ingresso na casa dá motivo a fortes preocupações. E com efeito, no curto

espaço de dois meses, algumas companheiras de Alcione levavam-lhe queixas

bem amargas, a respeito da conduta do novo sacerdote. Osório ainda não

havia atingido os cinqüenta anos; mas, por suas atitudes exteriores, dir-se-ia

um homem profundamente amadurecido nas experiências do mundo. Isso,

porém, resultava tão só do velho hábito de afivelar ao rosto a máscara da

santimônia. No íntimo, não passava de um ser viciado e perverso, para quem o

prestígio da autoridade era válvula de escapamento para os próprios desvarios.

A princípio, esforçou-se por obter algum testemunho menos digno, comprometedor

da subpriora; todavia, em cada coração, Alcione estava entronizada como

em altar de amizade e gratidão puras. A instituição, porém, ao contrário de

suas congêneres, dava-lhe a impressão de uma casa generosa do mundo, sem

as características de monastério impenetrável, destinado ao recolhimento da

piedade preguiçosa, O capelão inspetor começou a manifestar profundo

desagrado por tudo quanto via. Aquêle intercâmbio constante, com o mundo

secular, tirava ao núcleo carmelita a feição freirática dos demais conventos da

ordem. As religiosas eram mais ativas e por isso mais habilitadas para

conhecer as fraquezas humanas e dar combate às tentações. Frei Osório

achava-se num ambiente para êle desconhecido, até então. Outras visitas dessa

natureza sempre lhe facultavam ensejo de numerosos regalos. A pobre

242

freira afastada do mundo era, invariàvelmente, um campo vasto de mesquinha

exploração para os seus sentimentos lúbricos. Ali, no entanto, a coisa mudava

de figura. A subpriora, nas reuniões internas, comentava os ensinamentos de

Jesus, em desacôrdo com os teólogos; prodigallzava oportunidades de serviço

a cada companheira, como lhe parecia melhor, distribuía eqüitativamente o

trabalho, de acôrdo com as vocações. Era impossível desconhecer o caráter

inteligente e precioso da comunidade, mas Frei Osório, não encontrando a

esperada vasa para as suas aventuras indignas, prometeu a si próprio

modificar o espírito fundamental da instituição.

Seu esfôrço caviloso começou no confessionário, onde empregou os mais

baixos ardis para convencer uma que outra religiosa a lhe aceitar as

indecorosas propostas. As pobres criaturas, aturdidas com as maquinações

diabólicas do conquistador, procuravam a nobre amiga, ansiosas dos seus

conselhos. Alcione sentia-se amargurada. Não podia conservar, sem perigo,

um lôbo entre as ovelhas; por outro lado, qualquer reclamação aos superiores

da Ordem poderia ser interpretada como rebeldia. Depois de longas semanas

de meditação, resolveu submeter o caso ao critério da venerável madre-superiora.

A bondosa velhinha, no seu leito de sofrimento e resignação, ouviu

alarmada a confidência penosa da filha de Madalena.

— Que nos aconselhais? — dizia Alcione comovida. — A vossa

experiência, minha boa madre, é para nós outras um seguro roteiro!

A anciã doente endereçou-lhe um olhar triste e sentenciou:

— Ah! minha filha, por desejar o caminho reto, muito sofri neste mundo,

desde os primeiros tempos de noviciado. O flagelo da Igreja continua sendo os

sacerdotes indignos. Quem sabe poderemos chamar Frei Osório à senda do

Cristo?

— Não considerais razoável pedir ao Geral que nos mande outro capelão?

— Não — respondeu a enfêrma —, se o fizéssemos, despertaríamos

suspeita imerecida e, então, talvez tivéssemos êste mau religioso em nossa

companhia por muitos anos... Será preferível que o chames, em particular, e

lhe peças, em nome de Jesus, que não minta aos compromissos assumidos.

A filha de Cirilo quis responder que não se sentia com autoridade para

admoestar a ninguém, mas a noção de obediência fê-la calar-se, humilde. A

priore, todavia, parecendo adivinhar-lhe os pensamentos secretos, acentuou:

— Naturalmente, minha filha, não vais exortar um sacerdote que deveria

saber, muito bem, cumprir a rigor os seus deveres, mas apelar para um irmão,

a fim de que nossa casa não seja perturbada. Sinto que as circunstâncias me

indicam semelhante tarefa, mas, encontro-me bastante debilitada para

argumentar como convém. Além disso, tôdas reconhecemos que o Senhor te

favorece com luminosas inspirações nos ensinos evangélicos. Compreendo

quanto esta prova te custa, mas não vejo outra irmã que possa substituir-te.

Maria de Jesus Crucificado calou-se, sem mais dizer.

Uma semana se passou, entre reclamações das freiras assustadas e

preces fervorosas com que Alcione rogava a Jesus o poderoso socorro de sua

assistência, de molde a desempenhar a incumbência que lhe fôra cometida.

Depois disso, valendo-se de um momento em que o sacerdote se

encontrava só, na Capela, a filha de Madalena revestiu-se de coragem e lhe

pediu licença para algumas palavras, em particular.

— Frei Osório — começou humildemente —, sei, de antemão, que não

tenho capacidade para advertir a ninguém; sou fraca e pecadora; entretanto,

243

ouso vir à vossa presença, a fim de apelar para os vossos sentimentos de

irmão.

— De que se trata? — perguntou o padre abruptamente.

Ela o fixou num olhar muito significativo e acrescentou:

— Venho pedir a vossa cooperação a favor das muitas jovens que aqui se

encontram sob a nossa responsabilidade.

Percebendo a natureza do caso, o interlocutor assumiu uma atitude

hipócrita, como soía fazer, e replicou:

— Sou acusado de alguma falta? Desejaria conhecer a caluniadora.

— Ninguém vos acusa — esclareceu a religiosa, nobremente —, temos

bastante consciência de nossas próprias fraquezas, para nos arvorarmos, impensadamente,

em censoras de nossos irmãos. Apenas solicitamos ao vosso

coração, em nome de Jesus, que nos auxilie com o entendimento de um pai.

— Devo dizer-lhe, irmã, que considero a sua atitude como um atrevimento.

— Talvez seja — murmurou Alcione, humilde —, mas sou a primeira a

pedir-vos perdão, esperando me releveis pela intenção com que cometo esta

ousadia.

— Este apêlo deixa subentender graves injúrias — disse Osório,

hipocritamente — e estranho muito que tivesse coragem para tanto.

— Já vos disse, padre, que não tenho autoridade para admoestar a

ninguém. A vós me dirijo como irmã.

Contrariado em seus propósitos inferiores, o sacerdote contemplou-a irado

e redargüiu:

— Não a reconheço como irmã do Carmelo, sim como inovadora, passível

de severa punição. Suas interpretações do Evangelho constituem um atestado

de desobediência. Esta casa mais se assemelha a um albergue mundano e

creio que tôda perturbação se deve à sua influência anárquica. Esta instituição,

de há muito, não vive de conformidade com as regras, mas ao sabor de seus

caprichos.

A interlocutora permanecia em silêncio, amargamente emocionada.

Interpretando essa atitude como sinal de pusilanimidade, o sacerdote continuou:

— Onde já se viu semelhante liberdade, qual a vemos a dentro dêstes

muros? Ainda não ouvi qualquer expressão de acatamento aos nossos

teólogos; a comunidade, sempre interessada em atender ao mundo, não

encontra tempo adequado ao serviço de adoração. O nosso compromisso é de

obediência absoluta à autoridade!...

As observações eram feitas com tanta acrimônia que Alcione se viu

constrangida a tomar a defesa do Evangelho, pelo muito amor que consagrava

ao seu conteúdo divino. Por si mesma, experimentava tôda a extensão da

fragilidade humana e jamais se animaria a discutir; entretanto, à luz da verdade

cristã, outra deveria ser a sua atitude. Não podia considerar virtude a

complacência com o mal. Osório invocava o próprio Cristo, no sentido de

acobertar ações mesquinhas, e ela precisava defender a lição pura e simples

do Mestre, sem perder a expressão de amor que lhe vibrava nalma. Como

tantas vêzes lhe acontecera noutros tempos, Alcione procurou encará-lo, como

a um doente e necessitado de luz. Depois de o envolver num olhar quase

maternal, falou serenamente:

— Tôda autoridade humana, quando inspirada na justiça, deve ser

venerável a nossos olhos; todavia, padre, é preciso não esquecer que o nosso

244

primeiro compromisso é com Jesus.

O capelão inspetor experimentou grande surprêsa com aquela nova atitude

da interlocutora. Falando de si mesma, a religiosa apagava-se nas afirmações

humildes, mas, tratando do Cristo, parecia tocada de misterioso poder.

Preparando-se para ser ainda mais cruel, asseverou com certa dose de ironia:

— Obrigações com Jesus? Não me parece que a senhora as preze tanto

assim. Noto aqui muito maior preocupação com o mundo. As filhas do Carmelo,

em Medina, sob a sua atuação prejudicial, não encontram tempo para tratar da

alma. O dia inteiro, grande confusão se verifica às portas desta casa. Uma

falsa piedade vai estabelecendo a desordem. Será isso obrigação com Jesus?

Fitando-o com nobreza de ânimo, ela respondeu:

— Não nos consta que o Mestre se afastasse do mundo para servi-lo, O

Evangelho não o apresenta enclausurado ou recolhido à ociosidade da sombra.

Pelo contrário, Jesus atravessou a pé grandes extensões da Palestina,

ensinando e praticando o bem. João Batista, nas anotações de Lucas (1) nô-lo

revela como o trabalhador que tem a pá nas mãos. Seu apostolado foi

integralmente de realização e movimento. Era impossível atender à salvação

do mundo, afastando-se de suas necessidades. Por essa razão, vemos o

Messias entre fariseus e publicanos, nas festividades domésticas e nos ajuntamentos

da praça pública, dando cumprimento à sua missão de amor. Como

poderemos servir à sua causa divina, inclinando-nos à preguiça, sob o pretexto

de uma falsa adoração? Muitas de nós, religiosas, deixamos os afetos

familiares para consagrar tôdas as energias ao serviço do Cristo. Mas, de que

natureza serão êsses trabalhos? Acreditais, frei Osório, que Jesus necessite de

mulheres ociosas? Não admitais semelhante absurdo. A atividade do Mestre, a

que fomos chamadas, é a de colaboração com o seu devotamento na causa da

paz e da felicidade humana. Em tôrno de nossos conventos, há mães que

choram sob o guante de necessidades cruéis, criancinhas abandonadas que

requisitam socorros urgentes, velhos respeitáveis totalmente desamparados.

Seria razoável a continuação das atitudes convencionais de falsa devoção,

quando Jesus prossegue, pelos caminhos, animando e consolando? Por vêzes,

padre, em nossas missas solenes, quando o luxo dos altares impressiona os

nossos olhos, julgo que o Mestre está às portas do Templo, confortando as

viúvas descalças e rôtas, que não puderam penetrar no santuário, pela deficiência

das vestes. Por que manter o rigor das regras humanas, quando o

ensinamento da caridade

(1) Lucas, 3:17. — Nota de Emmanuel.

cristã é tão simples e tão puro? Por que repetirmos uma prece mil vêzes, nas

festas de Santa Cruz, e negarmos dois minutos de palestra carinhosa ao

infortunado? Não seria essa nossa estranha atitude a perfeita personificação

daquele sacerdote indiferente, da parábola do Bom Samaritano? Não considero

a fé um meio de obter favores do Céu, ao sabor do nosso alvedrio pessoal, e,

sim, um tesouro do Céu, que a Terra está esperando, por nosso intermédio.

Profundamente despeitado e surpreendido, Osório aproveitou pequena

pausa e objetou:

— Suas idéias denotam exaltação doentia. No desempenho de deveres

inerentes ao meu cargo, condeno-as em bloco.

— E que entendeis por vosso cargo? — perguntou Alcione com intenso

245

brilho no olhar. —Todos os homens dignos têm tarefas respeitáveis, por mais

simples que pareçam; um sacerdote, porém, recebeu do Céu missão divina.

Um padre deveria ser um pai. Entretanto, vêde, os discípulos sinceros

escasseiam em tôdas as comunidades, O mundo está cheio de eclesiásticos,

mas só pode contar com raríssimos missionários.

— Isto é um insulto à autoridade da Igreja — acrescentou o interlocutor

irritado.

— Estais enganado. Minhas afirmativas podem ser uma apreciação de

nossa miserabilidade neste mundo, mas não podemos esquecer que a Igreja

do Cristo é inviolável. Nossas fraquezas não a atingem.

— Vejo que sua opinião é a dos que trabalham atualmente pela destruição

da fé.

— Grande é o vosso equívoco, frei Osório. Ninguém destruirá, na Terra, a

Igreja de Jesus. Ainda que todos os homens se conluiassem contra ela, o

instituto cristão continuaria puro e intangível. Devemos considerar, contudo,

que todos os elementos humanos, colocados a seu serviço sôbre a Terra, hão

de ser necessàriamente modificados. Nossos templos frios e impassíveis serão

transformados mais tarde em casas de amor, como lares de Deus, onde as

criaturas possam encontrar o verdadeiro culto da sua inspiração e do seu amor

sublime, Os conventos deixarão de ser âmbitos de sombra, para que o Mestre

nêles identifique tabernáculos da fé e caridade puras. Nós, monjas, teremos

interpretado o serviço divino de outro modo, escalonando pelos hospitais,

creches, asilos, escolas.

O capelão contemplou-a assombrado e exclamou com ironia:

— Com tôda essa veia profética, que nos prediz a nós outros, os

sacerdotes?

A filha de Madalena fitou-o com serenidade e sem hesitação redargüiu:

— Vós, por certo, compreendereis, afinal, que os interêsses pecuniários

deverão desaparecer das casas consagradas ao Cristo. Por essa época,

talvez, vós, os padres, sereis como Paulo de Tarso repartindo a tarefa entre o

tear e a pregação, para que a Igreja não seja acusada por nossos irmãos de

humanidade!... Sereis, talvez, como Simão Pedro, fiel até ao fim, depois do

período de negação!

Longe de esperar resposta decisiva e profunda como essa, o delegado do

Geral arregalou os olhos e disse colérico:

— A senhora é uma herética!

— Se a sinceridade e a verdade são heresias, para o vosso critério

pessoal, honro-me em servir ao Senhor com a minha consciência.

Tomando atitude terrível, qual se maquinasse odiosa vingança, Osório

acentuou:

— Ignora que poderei processá-la e punir-lhe o atrevimento?

Sem qualquer vislumbre de receio, a filha de Cirilo respondeu:

— Estou certa de que poderão cair sôbre mim todos os males do mundo;

não o estou menos de que Jesus tem todos os bens para me dar.

E, como se iniciasse o sumário dos pontos essenciais da futura sentença,

frei Osório continuou:

— Pela sua desconsideração aos nossos teólogos mais eminentes, poderá

ser acusada como rebelde e traidora aos princípios da fé, partidária dos

diabólicos luteranos, passíveis das mais fortes represálias.

— Deus conhece o meu íntimo e isso me basta — murmurou a filha de

246

Madalena, com sincera humildade.

— Por suas interpretações audaciosas do Novo Testamento, a ponto de

seduzir diversas companheiras para o seu cisma, a senhora deverá conhecer,

naturalmente, uns tantos segredos da velha magia.

— O Mestre, por muito amar — acentuou Alcione tranqüila —, foi tido em

conta de feiticeiro, por muitos religiosos do judaísmo.

O capelão inspetor dissimulava a grande surprêsa que o invadia, de minuto

a minuto, pela inesperada resistência, e prosseguiu:

— A senhora tem desviado, na qualidade de subpriora, inúmeras e

preciosas dádivas feitas ao estabelecimento, graças a um serviço desordenado

de falsa piedade pelo próximo, com descaso completo dos interêsses de Deus.

— Não creio que os interêsses de Nosso Pai Celestial — esclareceu a

interlocutora — se adstrinjam e se agitem entre algumas paredes de pedra; e

enquanto estiver a meu cargo qualquer função religiosa, o dinheiro recebido

atenderá não sõmente às nossas necessidades, mas, também, às de quantos

possam receber os benefícios desta instituição, convicta como estou de não

haver obras sem fé, nem fé sem obras.

— Mas poderá pagar muito caro essa maneira de ver. Não são raros os

religiosos condenados por latrocínio.

— Compreendo até onde desejais chegar com semelhantes alegações,

mas a verdade é que nada possuo, além do meu hábito.

— Isso não impede que tenha comparsas fora dêstes muros.

Alcione fixou nêle um significativo olhar e acrescentou:

— Não posso impedir o vosso julgamento; todavia, posso afirmar que

estou satisfeita com o juízo de Deus, em Consciência.

Reconhecendo-lhe a inquebrantável firmeza, Osório acentuou

rancorosamente:

— Denunciá-la-ei ao Santo Ofício. Disponho de poderoso amigo junto do

Inquisidor-Mor de Madrid, que pode fazê-la expiar tão grandes delitos.

A religiosa manteve-se impassível diante da raivosa e grave ameaça,

murmurando muito tranqüila:

Podeis proceder como quiserdes. Quanto a mim, intercederei por vós em

minhas orações e tenho em Jesus um amigo forte, que pode absolver-vos.

Em seguida, retirava-se para os serviços internos, deixando o capelão

inspetor rilhando os dentes.

No dia seguinte ao incidente, que ficara ignorado para a própria superiora,

em virtude do silêncio a que se recolhera a filha de Cirilo, frei Osório viajou

para Madrid, arquitetando os planos mais perversos. Depois de apresentar

capcioso relatório ao Geral da Ordem, procurou o seu amigo frei José do

Santíssimo, um dos auxiliares do Inquisidor-Mor, a quem denunciou a religiosa

de Medina Del Campo, solicitando, com empenho, o emprêgo de sua influência

para que Maria de Jesus Crucificado fôsse punida por suas tendências

luteranas, recebendo aprovação aos seus propósitos sinistros.

Frei José do Santíssimo era Carlos Clenaghan, transformado em jesuíta.

Depois da tragédia conjugal em que sentira espezinhados os seus brios de

homem, o pupilo de Damiano voltara à vida religiosa, como um derrotado da

sorte, em supremo desespêro. A princípio, lutara com certa dificuldade para

conseguir seu intento, mas, a doação de todos os seus bens à Companhia de

Jesus lhe abrira as portas da famigerada comunidade dos inquisidores.

Acreditava que Alcione estivesse feliz na América, talvez casada com um

247

homem digno de suas qualidades de santa e, deixando-se levar pela desesperação,

procurou instalar-se no Santo Oficio, a fim de perseguir os que lhe

haviam infelicitado o lar honesto. Coração amoroso embora, Clenaghan estava

agora completamente enceguecido pelo ódio. Sentindo-se um náufrago nos

planos da vida, não encontrava em sua fé fôrças para confiar plenamente em

Cristo e dava pasto às mais venenosas disposições de vingança. Depois de

alguns anos em que demonstrara hostilidade franca à sociedade humana, foi

admitido à posição de relêvo pelo Inquisidor-Mor da capital espanhola, num

cargo de confiança, em cujo desempenho conseguira realizar seu intento,

perseguindo o sedutor da mulher, fazendo-o recolher a sombrio cárcere em

Córdova. Pouco a pouco, esquecia os nobres ideais do pretérito. As antigas

palestras de Ávila, as observações do tutor, os conselhos e a exemplificação

de Alcione dormiam-lhe no coração, meio esquecidos. Por vezes, interpelava a

si mesmo se não teria sido demasiadamente sentimental no passado distante.

A atmosfera pesada e sufocante dos interêsses mesquinhos do mundo

entorpecia-lhe o espírito.

Recebendo a queixa de frei Osório, um de seus colaboradores fiéis na

perseguição movida aos desafetos de Castela-a-Velha, o auxiliar do Inquisidor

prometeu-lhe integral apoio sem nenhuma hesitação.

E, por isso mesmo, o capelão inspetor, apossando-se de alguns

documentos, voltou a Medina acompanhado por dois guardas incumbidos de

efetuar a prisão da religiosa denunciada. Osório, entretanto, conhecendo o

grau de estima que a filha de Cirilo desfrutava entre as companheiras, abstevese

de falar em medida tão grave, deliberando comunicar que a irmã do

Carmelo seria levada a Madrid para algumas admoestações necessárias.

Para êsse fim, determinou se realizasse uma assembléia interna, à feição

das que se verificavam no Capítulo, e, logo que reuniu a congregação, começou

a falar com acrimônia:

- Solicitei a reunião das dedicadas servas do Cristo, que se abrigam nesta

casa, para comunicar que o nosso muito digno Padre Geral, de comum acôrdo

com outras autoridades das virtuosas filhas do Carmelo, deliberou convidar a

Subpriora Maria de Jesus Crucificado a comparecer a Madrid, para receber

algumas instruções indispensáveis à administração dêste convento. Como

capelão inspetor, fui obrigado a expor perante os sapientíssimos diretores da

Ordem as deficiências desta instituição, onde os serviços da fé têm sido

grandemente sacrificados pelo contato quase incessante com o mundo

profano. A longa enfermidade da superiora deu azo a que sua substituta

ameaçasse esta obra por excesso de idealismo. O intercâmbio com os profanos

resulta sempre em escândalo e nas cruéis tentações de contato com os

impenitentes. Assumindo o compromisso de orientar as vossas atividades,

tenho de agir com a prudência de um pai, a fim de que não percais a graça do

Senhor. Nossa irmã, portanto, será devidamente admoestada e receberá, em

breve tempo, as novas normas de serviço da instituição, esperando eu que

compreendais a excelência desta medida, com o espírito de humildade que

sempre foi o luminoso apanágio das servas do Carmelo. No entanto, sem trair

a caridade da Igreja, a Subpriora tem a palavra para qualquer explicação que

considere oportuna, perante esta assembléia.

Alcione percebeu o véu da hipocrisia a ocultar a hediondez daquela atitude.

As companheiras contemplavam-na, ansiosas. A maioria, conhecedora do

condenável procedimento do sacerdote, aguardava com interêsse a sua reação

248

justa. Mas, num minuto, a filha de Madalena compreendeu que, abrir luta, seria

atirar a comunidade de moças frágeis contra inimigos perversos e poderosos. A

seu ver, devia caminhar sôzinha para o sacrifício. Enquanto ouvia os conceitos

fingidos do inspetor, lembrava o velho padre Damiano. À frente dos olhos da

imaginação, rememorou as reuniões carinhosas do ambiente doméstico de

Ávila e pareceu ouvir as respostas do religioso às suas perguntas infantis,

quando lhe dissera que o circo do martírio para os cristãos sinceros era agora o

mundo, e que as feras seriam os próprios homens. Deparava-se-lhe o ensejo

de verificar a exatidão daquele asserto. Frei Osório, que dissimulava tão bem o

verdadeiro móvel da sua animosidade mesquinha, certamente disfarçava, em

admoestação, alguma pena mais dolorosa e mais cruel. Não desdenharia,

porém, o testemunho que o Senhor lhe oferecia. Longe de envolver as amigas

e irmãs num movimento geral de confusionismo religioso, levantou-se

dignamente depois de interpelada, e murmurou:

— Para mim, frei Osório, tôdas as humilhações serão poucas, como todos

os nossos testemunhos de amor e reconhecimento a Jesus nunca serão

devidamente dilatados. Estou pronta a atender vossas ordens. Nada mais

tenho a dizer.

Amarga expressão de desânimo abateu-se sobre as companheiras. Com ar

de triunfo, o capelão voltou a dizer:

— Deverá, então, a Subpriora estar preparada para seguir amanhã, ao

romper dalva.

A assembléia dissolveu-se sob penosas impressões. Mais tarde, Alcione

dirigiu-se à cela da veneranda superiora e, confidencialmente, cientificou-a de

todos os fatos. A velha amiga abanou a cabeça, desconsolada, e sentenciou:

— Prepara-te, filha minha, para testemunhos amargurados! Assim te falo,

não com o fim de intimidar teu espírito carinhoso e sensível. Falo-te na

qualidade de mãe espiritual, prestes a partir dêste mundo e cansada de

espetáculos atrozes e de experiências ingratas...

— Ajudai-me, então, minha boa Madre — respondeu a filha de Cirilo com

grande serenidade esclarecei-me para que corresponda à confiança do Senhor

nos transes iminentes.

A respeitável religiosa contemplou-a enternecida, abraçou-a e beijou-a com

afeto, suscitando-lhe profundas reminiscências da mãezinha inesquecível, e

continuou:

— Quando os capelães inspetores falam de admoestação, isso significa

fome no cárcere ou suplício nas escuras salas de tormento. É possível que

Jesus te poupe o martírio perante os inquisidores cruéis. Para isso, filha,

rogarei incessante-mente a proteção de sua misericórdia, em favor da tua alma

generosa, mas não creio que te possas eximir da prisão infamante. Todavia,

morrer ao abandono nas celas imundas do Santo Ofício é mil vêzes melhor que

suportar os olhos despudorados dos maus eclesiásticos que infligem pesadas

torturas às mulheres indefesas. Sei de irmãs nossas que morreram no segundo

ou no terceiro grau de tormento, em completa nudez, por imposição de homens

impiedosos.

A filha de Madalena não pôde dissimular sua admiração.

— Geralmente — prosseguiu a interlocutora veneranda — é muito difícil

arranjarem um processo regular contra nós, as religiosas, por considerar a

Inquisição que a nossa atitude representaria, no conceito público, um atestado

de rebeldia tendente a desmoralizar os princípios da fé. Quase sempre, por

249

essa razão, os religiosos presos apodrecem no fundo dos cárceres, sem que

sejam visitados pela pretensa justiça da nefanda instituição, que mancha

nossos caminhos neste mundo.

Alcione meditou um momento e murmurou:

— Estou convencida de que Jesus não me abandonará, seja qual fôr o

testemunho que me esteja reservado.

— Sim, minha boa filha — afiançou a superiora osculando-lhe as mãos com

carinho —, Êle está conosco, segue-nos de perto, tal como nos primeiros dias

de perseguição nas catacumbas. Lembremos as virgens que morreram nos

circos, despojadas de suas afeições, espostejadas pelas feras sanhudas;

recordemos as crucificadas entre as fogueiras, servindo de pasto aos infames

festins cesarianos. Tenhamos confôrto em tais angústias, relembrando que o

próprio Messias foi conduzido, seminu, ao madeiro de nossas crueldades.

Lastimo que meu corpo alquebrado não me permita seguir-te no testemunho.

Mas o Senhor me concederá fôrças para quebrar as algemas que me prendem

ao leito da velhice e da enfermidade, a fim de louvar tua glória!...

A Subpriora, muitíssimo comovida com aquelas palavras sinceras e

carinhosas, murmurou, enxugando os olhos:

— Não deveis falar assim, querida Madre! Sou uma simples pecadora e,

nessa condição, todos os sofrimentos serão escassos às minhas necessidades

de aperfeiçoamento espiritual.

A bondosa enfêrma abraçou-a com mais ternura, dizendo em seguida:

— Lembra sempre que deixas nesta casa uma velha amiga que te

consagra maternal afeição!...

Alcione Vilamil engolfou-se em graves pensamentos, e, após alguns

minutos, sem trair a serenidade de sempre, pediu à interlocutora:

— Madre, caso não volte a Medina, como devo esperar, cientifico-vos,

desde já, de que é possível chegue até aqui algum pedido de informações a

meu respeito. Tenho ainda duas amizades muito fortes no mundo. Trata-se de

minha irmã, residente na América e de um ex-sacerdote, a quem me sinto

ligada por sacrossantos laços espirituais. Caso isso aconteça, peço-vos dar

noticias minhas.

A bondosa superiora fêz um gesto, como quem anotava mentalmente a

solicitação afetuosa, e a filha de Madalena deu-lhe o último beijo.

No dia seguinte, pela manhã, a Subpriora, entre os dois emissários, punhase

a caminho de Madrid, levando tão sômente o velho crucifixo da genitora e

um volume do Novo Testamento. Era tôda a sua bagagem. A viagem não foi

muito fácil, atentos os percalços da época; entretanto, terminou sem incidente

digno de menção. A religiosa de Medina Del Campo foi recolhida, sem mais

nem menos, a uma cela escura e úmida dos cárceres da Inquisição, na capital

espanhola.

No momento de ser deixada a sós, um dos verdugos que a conduziram ao

interior seqüestrou-lhe o Evangelho, explicando:

— A senhora pode ficar com o crucifixo, mas não pode aqui ficar com o

Novo Testamento, de vez que é acusada de herética e luterana.

Ela apenas esboçou um gesto de conformação.

— Frei José do Santíssimo, digno assessor de nossas autoridades —

continuou o algoz com acento hipócrita —, recomendou que a trouxéssemos

até aqui, onde receberá diariamente as rações de pão, até que êle tenha tempo

de ouvi-la.

250

Ela quis indagar o dia da audiência, mas, temendo reprimendas injustas,

calou-se. O frade, porém, continuou loquaz:

— Naturalmente que lhe será concedido o tempo necessário para despertar

a memória para a confissão geral de suas faltas. O Santo Ofício nunca faz

admoestações sem caridade.

Ao clarão da lanterna, a prisioneira nada mais identificou no compartimento

estreito e subterrâneo, além de um mísero colchão no solo úmido. E em

seguida a fastidiosas considerações do verdugo, relativamente ao espírito de

generosidade dos inquisidores, achou-se absolutamente só, em pesada

escuridão, ajoelhada, conchegando o crucifixo ao peito opresso.

Desde então, nunca mais pôde saber quando começava o dia ou a noite, a

não ser presumindo pelo canto de galos distantes. Envolvia-a uma atmosfera

de sombras invariáveis. De quando em quando, o irmão carcereiro renovava,

em silêncio, a provisão de pão e água, e mais nada. Algumas vêzes,

chegavam-lhe aos ouvidos os ecos amortecidos de gritos ou gemidos

lancinantes. Não podia duvidar de que provinham das salas de tormento.

Entre a resignação e a humildade, passou a primeira semana, um, dois,

seis meses.

Suas vestes estavam rôtas, o corpo enfêrmo e mirrado. Dadas a deficiência

de alimentação e a atmosfera úmida, a saúde não resistira às longas semanas

de reclusão. A religiosa de Medina sentia-se rudemente atacada pela moléstia

do peito. Relembrando os padecimentos de padre Damiano, reconheceu que a

tísica vinha partilhar das sombras da cela. Quando seria julgada? Agora, mais

que nunca, recordava as palavras da carinhosa Madre, sôbre a crueldade que

a Inquisição reservava às religiosas denunciadas como heréticas. Por certo,

jamais seria ouvida. Sua atitude poderia ser levada à conta de desmoralização

da Igreja, e o Santo Ofício preferia recolher o seu cadáver a exibi-la num autode-

fé. Contudo, de outras vêzes, a irmã do Carmelo experimentava

amargurosos pesadelos, nos leves momentos de sono, entre as rudes vigílias,

vendo-se à frente de algozes crudelíssimos, que a despojavam do hábito

infligindo-lhe duras sevícias. Despertava aflita, banhada de álgido suor, abraçando-

se à única recordação de sua mãe, em preces fervorosas. Febre alta

começou a minar-lhe o organismo.

Dez meses correram sôbre a crueldade de frei Osório. Entre preces cariciosas

e árduas meditações, a filha de Cirilo definhava devagarinho, surpreendendo

os próprios frades que montavam guarda ao cárcere, os quais, por vêzes,

contemplavam-na casualmente, nas visitas eventuais à sua gaiola de sombras.

Por essa época, a religiosa de Medina Del Campo experimentou o

esgotamento quase total das energias orgânicas e, compreendendo que o fim

deveria estar próximo, encomendava-se a Deus em sentidas orações. Longos

dias passaram, dando-lhe a impressão de uma noite invariável... Depois da

primeira grande hemoptise, Alcione sentiu-se num plano diverso, O aposento,

ordinariamente escuro, pareceu-lhe banhado de clarões cariciosos. Tanta era a

luminosidade, que enxergou o colchão e o crucifixo amado, tomando-se de

profunda admiração. Seu assombro não ficou aí. Em poucos instantes, divisou

no fundo da cela três figuras distintas. Eram seus pais e o velho Damiano, que

voltavam das regiões da morte por confortá-la. A enfêrma, em estado préagônico,

concluiu que estava prestes a partir. Emocionada, lembrou, na

delicadeza de seus sentimentos, que lhe competia apresentar aos visitantes

queridos uma atitude de carinhoso respeito e, não obstante a fraqueza,

251

ajoelhou-se e ergueu as mãos, sentindo-se cumulada por bênçãos inefáveis.

Jubilosa, observou que sua mãe estava bela como nunca, coroada por um halo

de radiosa luz. Enquanto Cirilo e Damiano permaneciam a distância de alguns

passos, Madalena Vilamil aproximou-se da filha, sorrindo ternamente e,

pousando-lhe a destra na fronte de alabastro, murmurou:

— Alcione, minha querida, depois do calvário doloroso, gloriosa será a

ressurreição!...

A interpelada inclinou-se osculando-lhe os pés e exclamando entre

lágrimas:

— Não sou digna!... não sou digna!...

A entidade amorosa beijou-a num transporte de imensa ternura. Foi aí que a

prisioneira, alongando os braços e, sob a forte impressão dos sofrimentos que

percebia em tôrno do seu cárcere, implorou em tom angustiado:

— Minha mãe, sei que nada mereço de Deus, mas, se é possível, não me

deixes morrer sob o desrespeito dos algozes impiedosos.

Em pranto convulsivo, notou que sua mãe enxugava uma lágrima. Todavia,

Madalena enlaçou-a nos braços, ternamente, e asseverou:

— Não temas, minha filha! Partirás com o amparo dos anjos!...

Nesse instante, contudo, o frade carcereiro abriu sübitamente a porta, a fim

de ver com quem conversava a religiosa, em voz tão alta. Ao clarão

avermelhado da lanterna, desfez-se a sublime visão. O vigilante fitou-a

espantado. Genuflexa, mostrando impressionante olhar a perquirir o desconhecido,

a irmã do Carmelo tinha no hábito rôto largas manchas rubras. “A

perda de sangue fê-la desvairar”, pensou o vigilante de si para si. E,

assombrado com o que via, levou a notícia ao superior hierárquico, dizendo

parecer-lhe que a prisioneira começava a experimentar os delírios da morte.

O Santo Ofício, por ironia, mantinha certo número de médicos a seu

serviço, os quais muïtas vêzes opinavam sôbre a natureza e grau de tortura a

infligir aos condenados, a pretexto de que os réus deveriam ser punidos com

muita caridade. Um médico foi chamado, incontinenti, para examinar e informar

o estado geral da religiosa de Medina. Após o exame, o facultativo, de

autoridade a autoridade, chegou até ao gabinete de frei José do Santíssimo.

Feitas as saudações de praxe, afirmava solícito:

— A ré está irremediàvelmente perdida.

— Não suportará, sequer, as disciplinas preliminares do potro? — indagou

o representante do Inquisidor-Mor. — Trata-se de um caso ligado a

reclamações de um amigo, a cuja bondade muito devo.

— Aquêle corpo já não resiste à menor tortura. Creio que ela está nas

últimas.

O interlocutor fêz um gesto de contrariedade e voltou a dizer:

— É um processo que espera por mim há mais de dez meses; entretanto,

tenho tido necessidade de atender a repressões de maior importância.

— Afirmo-vos — esclareceu o facultativo atencioso — que qualquer

providência de ordem espiritual deve ser imediata, visto que amanhã talvez

seja tarde.

— Hoje estou cheio de compromissos para a noite — explicou o assessor.

— Irei amanhã muito cedo tomar-lhe as declarações.

Com efeito, logo que amanheceu, José do Santíssimo, acolitado por dois

outros religiosos, desceu às celas subterrâneas, a fim de estabelecer o primeiro

e último contato com a freira carmelita de Medina Del Campo. Ao clarão da

252

lanterna, aproximou-se da condenada que jazia na sórdida enxêrga, abraçada

ao crucifixo singular. Moribunda, apenas os olhos nela falavam, vivazes. Os

membros e os traços fisionômicos estavam aniquilados, num conjunto de

intraduzível abatimento. O eclesiástico experimentou estranha sensação e teve

ímpetos de recuar, mas procurou manter-se firme e perguntou:

— Maria de Jesus Crucificado, porventura já estará resolvida a confessar o

crime de heresia, para que possa receber os sacramentos da extrema-unção?

A interpelada demonstrou no olhar impressionante uma atitude mental de

júbilo e murmurou:

— Carlos!... Carlos!...

O jesuíta cambaleou, num ricto de terror, o livro escapou-se-lhe das mãos

trêmulas, e caiu, maquinalmente, de joelhos. Aproximou a lanterna do rosto da

agonizante, exclamando com indefinível angústia:

— Alcione! Alcione!... tu? Sonho? Ou enlouqueço?

A agonizante pareceu concentrar tôdas as energias para o esfôrço

daqueles supremos momentos e retrucou:

— Sim... O Pai Celestial atendeu aos meus rogos e eu não partirei sem o

conforto do teu olhar...

— Que fazias em Medina? Que quer isso dizer, Deus meu?

— Não podendo aproximar-me do teu coração com os meus sentimentos

de mulher, buscava-te com os pensamentos do Cristo... Nunca pude esquecerte!...

Tomei o hábito religioso, desejosa de te reencontrar, para ser irmã

desvelada de tua mulher e segunda mãe de teus filhinhos... Em vão te busquei

nos sítios prediletos... no entanto, tenho esperado confiantemente esta hora

divina!... Agora, morrerei tranqüila e feliz...

Sem qualquer preocupação pela atitude de espanto dos companheiros

presentes, o eclesiástico entre soluços convulsivos falou amargurado:

— Sou um réprobo! Não tenho espôsa, nem filhos, nem ninguém. Tudo

perdi em te perdendo. Sou hoje um condenado a perambular numa estrada

ignominiosa. Tua lembrança ainda é o meu único raio de luz. A espôsa traiume,

os falsos amigos conspurcaram meu lar e busquei os poderes do mundo

para exercer a vingança cruel! Ah! Alcione, mal poderia supor que te

assassinaria, também, nestas masmorras infectas! Por que haveria de cair

sôbre mim êste tremendo golpe da sorte? Sou, doravante, um miserável, um

bandido execrando!...

A agonizante revelou no olhar, muito lúcido, grande e amorosa

preocupação e perguntou:

— Que fizeste de Jesus?

— Sou réu que não merece perdão — redargüiu o jesuíta fora de si.

— Não te julgues assim — murmurou Alcione, com esfôrço —, conheço tua

alma, cheia de tesouros ocultos... Sômente o desespêro pôde cegar-te os

olhos...

— Tudo me foi adverso na vida, o destino sempre me escarneceu! —

soluçava Clenaghan, prêsa de intraduzível martírio.

— Esqueceste nossas crenças preciosas, meu querido Carlos, não mais te

lembraste dos rostos pálidos daqueles meninos que nos procuravam na igreja

de Ávila... Olvidaste nossos doentes, não mais refletiste na dor dos

desamparados da sorte... Nunca mais atentaste para a nossa família de amigos

simples e necessitados, a serviço de quem colocávamos, outrora, todo o

nosso idealismo com Jesus!...

253

— Sinto que perdi, desgraçadamente, o meu sagrado ensejo de união com

Deus! Tanto fizeste por mim, e, no entanto, esqueci os menores deveres de

fraternidade, sem me lembrar de que nas trevas do ódio poderia aniquilar-te

também a ti, que tudo me deste! Que tremenda lição!

— Tranqüiliza-te — disse a agonizante com profunda expressão de ternura

—, confia no Senhor que nos renova as oportunidades de redenção... Sua

misericórdia nos aproximará novamente, seremos felizes na observância do

“amai-vos uns aos outros”! Fortaleçamos o espírito, sem desalento

injustificável. Não nos cansemos de recordar que o Mestre foi à cruz do martírio

por amor a nós, e está à nossa espera de há longos séculos!... É preciso não

desanimar no bem...

O sobrinho de Damiano chorava amargamente, incapaz de responder.

Mas, depois de longa pausa, Alcione prosseguia:

— Saí dos círculos de revolta e vingança!... Jesus nos oferece irmãos e

tutelados em tôda parte... Não permaneças nos lugares onde haja

perseguições ou separatividades em seu nome... Volta, Carlos!... Volta à

pobreza, à simplicidade, ao esfôrço laborioso! Se fôr preciso, pede, de porta

em porta, o pão do corpo, mas não odeies a ninguém... A desesperação te

conservará algemado no lodaçal do mundo! Desperta novamente para o amor

que o Mestre nos trouxe e perdoa o passado pelas dores que te deu...

O jesuíta não sabia como definir as emoções penosas.

— Mas sou culpado de tuas flagelações no cárcere! Sou vítima infeliz de

mim próprio!...

— Não te acuses! Tu fôste, com o Cristo, meu hóspede efetivo aqui, nesta

casa, cem todos os outros lugares em que vivi depois de nossa separação... A

confiança em teu amor ajudou-me a dissipar as sombras de cada dia,

proporcionou-me bom ânimo nas situações mais difíceis!... Nunca te amei tanto

como agora, ao nos separarmos novamente... Mas, eu creio, Carlos, que os

mortos podem voltar aos trabalhos humanos... Logo que Deus me permita êsse

júbilo, voltarei outra vez... para ser-te fiel... Sofre com resignação, ama as tuas

tarefas de redenção com desvêlo, e então (quem sabe?) nos reencontraremos

breve, para construir nosso lar de felicidade infinita, na Terra ou noutros planos

da Eternidade!...

Enquanto o eclesiástico tremia soluçante, a agonizante continuava com

visível esfôrço:

— Nunca te esquecerei... Jesus abençoará nosso ideal de sublime união...

Não pôde continuar. As sagradas emoções daqueles momentos

inesquecíveis lhe haviam aniquilado as últimas energias. Gelado suor caía-lhe

em bagas da fronte palidíssima. A respiração tornara-se angustiosa e abafada.

Clenaghan percebeu a aproximação do minuto derradeiro e exclamou:

— Dize, Alcione, dize ainda uma vez que me perdoas!

A sublime criatura fêz uma tentativa suprema, mas os lábios, quase imóveis,

nada mais fizeram que um movimento inexpressivo. Foi aí que a filha de

Madalena, no estertor da morte, alçou o crucifixo e cravou nêle os olhos

lúcidos, dando a entender que chamava a atenção de Carlos para a cena

longínqua da igreja de Ávila; em seguida, beijou longamente a imagem do

Crucificado, e, num gesto inesquecível, levou-a aos lábios do homem amado,

como a dizer-lhe que nunca lhe negaria o beijo do eterno amor e da eterna

aliança.

Frei José do Santíssimo debruçou-se, a soluçar, sôbre os despojos

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sagrados, com a dor inexcedível do coração afogado nos remorsos extremos.

E ninguém da Terra, naquele compartimento úmido e escuro, poderia

contemplar o quadro celeste a se desenrolar, como tributo de veneração à

discípula do Cristo, que soubera vencer em seu nome tôdas as dificuldades,

vicissitudes e penas da vida humana. Hinos de beleza angélica vibravam nos

ares, mensageiros generosos iam e vinham com expressão de júbilo infinito.

Cirilo, Damiano e outros amigos de Alcione, conservavam-se em atitudes de

prece. Numerosos beneficiários de sua dedicação fraternal ali se prosternavam,

ansiosos por lhe manifestar carinho e gratidão. Dai a instantes, sob a direção

de Antênio, chegavam resplandecentes entidades do Grande Lar Celeste.

Madalena Vilamil, guardando a filha ao colo, beijava-a com enternecimento. As

orações dos redimidos uniram-se aos sublimes pensamentos da alma santificada

que partia da Terra. E, enquanto melodias suavíssimas fluíam do plano

espiritual, o bondoso Antênio unia sua voz aos harpejos do Céu, repetindo as

sagradas palavras do Sermão da Montanha.

— Bem-aventurados os que choram, porque serão consolados! Bemaventurados

os humildes, porque herdarão a Terra! Bem-aventurados os que

sofrem perseguição por amor à justiça, porque dêles é o Reino dos Céus!... -

Fim

 

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