Debalde o sacerdote procurara, de inicio, um meio de provocar as
recordações do passado e lê-lo na fisionomia de cada um. Depois das
primeiras impressões, acentuou intencionalmente:
— Pois que estou com um pé na sepultura, folgo em ver que Alcione
ingressa numa casa nobre, que lhe proporcionará o bem-estar que desejo.
— Que é isso, reverendo Damiano? — atalhou Jaques, generoso. — Se,
revigorado, qual o vejo, nos fala em morrer, que não direi eu com os meus
achaques sem remédio? A velhice é uma escola rigorosa de meditação, mas
eu ainda me recuso a pensar na morte.
— Sou, porém, muito mais velho que o senhor.
— Vê-se logo que é gentileza sua; olhe que a bondade é um dom precioso,
mas não pode excluir a verdade.
E mudando o rumo da assertiva, continuava:
— Quanto à sua pupila, pode ficar descansado. Padre Guilherme andou muito
bem inspirado trazendo-nos esta amiguinha para Beatriz e para nós mesmos.
Ela não será aqui uma serva e sim uma filha. Pode estar certo disso.
— Sem dúvida — confirmou Cirilo com um gesto franco.
— O que mais nos impressionou, desde a chegada — continuou
carinhosamente o velhinho —, foi a extraordinária parecença com a primeira
171
mulher de meu sobrinho, a quem eu considerava como própria filha. Creio que,
se a senhorita fôsse filha de Madalena, talvez não se parecesse tanto com a
finada. Os caprichos da Natureza são profundos, porque, na verdade, nunca
esquecemos a falecida.
Nesse instante, o olhar do sacerdote de Ávila cruzou casualmente com o
da dona da casa, e teve a impressão de que ela se perturbava, assaltada por
algum pensamento menos digno. O amigo da senhora Vilamil desejou
sinceramente conhecer certos detalhes referentes à presumida morta, mas não
se sentia com ânimo de abordar de chôfre tão delicado assunto. Poderia
parecer imprudente e atrevido aos Davenport, que o recebiam com tanta
cordialidade e aprêço. Nessa altura da palestra, o visitante notou que o velho
Jaques tinha sinais antigos de varíola, nas rugas do rosto. Não esperou outra
inspiração e perguntou, com delicadeza:
— Pelo que estou vendo, Sr. Jaques, a “bexiga” também não o poupou,
noutros tempos...
— Ah! sim, na varíola de 63 nossos padecimentos foram terríveis.
— Eu também muito sofri nessa época, aqui em Paris, onde viera a convite
de alguns colegas. E estive tão mal — acrescentava sorrindo — que quase me
sepultaram vivo, num dos cemitérios improvisados.
A filha de Jaques recordou fortemente o minuto em que livrara a rival de
semelhante destino e fêz um gesto instintivo de espanto.
— Nessa ocasião — explicou o professor — residíamos em Blois, mas
Susana teve oportunidade de observar muita coisa triste, nesta cidade, pois
aqui chegou no dia imediato ao da morte de Madalena.
— Ah! por favor, senhora Davenport — exclamou Damiano, mostrandose
muito impressionado —, conte-nos a sua experiência. Não poderei esquecer
o pavoroso instante em que me ameaçavam com o sepultamento, apesar de
me sentir no gôzo de tôdas as faculdades... Foi um minuto terrível...
— São recordações muito amargas, padre —retrucou Susana
aparentemente tranqüila. — Como não ignora, meu marido era casado em
primeiras núpcias, aqui em Paris, e tendo êle seguido para a América, a família
ficou em dificuldades, quando irrompeu a pavorosa epidemia. Madalena Vilamil
era como se fôsse uma irmã. A carta que escreveu a meu pai, para Blois, era
um apêlo que não podia ficar sem resposta. Logo que pude, vim até cá, por
trazer-lhe os meus préstimos. A pobrezinha, porém, havia sido sepultada na
véspera. Todavia. ainda pude encontrar seu pai com vida, assistindo-lhe os
últimos momentos. D. Inácio, velho fidalgo espanhol, tinha em sua companhia
um sobrinho chamado Antero de Oviedo, que foi um arrimo para todos,
naqueles dias tão amargos! Ajudei-o a providenciar o enterramento do tio ao
lado da sepultura da filha, no cemitério dos Inocentes, e, nos poucos dias de
minha estada em Paris, pude testemunhar a brutalidade dos carregadores
desalmados, que farejavam cadáveres tôdas as manhãs, nas casas
contaminadas.
O sacerdote de Ávila já conhecia o bastante para inferir a conivência de
Susana no drama que negrejava o destino de Madalena, e acrescentou:
— A senhora deve ter sofrido muito.
— Foram dias tormentosos, efetivamente; voltei a Blois tão impressionada
que só melhorei quando me vi no mar, a caminho da colônia. O mesmo deve
ter acontecido a Oviedo Vilamil, que nos escreveu de Versalhes comunicando a
resolução de partir para a América espanhola.
172
Damiano não tinha mais dúvidas. A resolução sinistra só poderia caber a
Antero e Susana, enquanto Madalena estava no leito, entre a vida e a morte, O
plano perverso obedecera à complicada urdidura. Dificilmente disfarçando a
emoção, entrou a falar de outros assuntos, a fim de tornar o ambiente menos
pesado.
Regressando ao seu quarto de enfêrmo, em vão excogitava um meio de
aclarar a situação, concluindo, por fim, que tôda tentativa, nesse particular,
acarretaria mais graves problemas. Que adiantaria restabelecer a verdade com
o aniquilamento de tôda uma família? Pensou na pequena Beatriz, na atitude
confiante de Jaques, no semblante grave e triste de Cirilo e firmou o propósito
de não intervir na marcha dos acontecimentos, para só confiar na Providência
divina.
Daí a quatro dias, quando Alcione foi visitá-lo, indagou carinhosamente
das suas impressões.
— Vou bem — disse ela resignada —, estou começando a compreender
que, dia a dia, Deus nos chama a determinada situação para que lhe executemos
a vontade santa.
Damiano sorriu, como que desencantado do mundo, e ponderou:
— Tenho quase certeza de haver descoberto a trama que destruiu a
felicidade de tua mãe, mas julgo que nada se pode fazer por deslindá-la. Como
discípulos do Evangelho, devemos compreender que não se deve abandonar o
combate ao mal, em hipótese alguma; entretanto, neste nosso caso, a batalha
deve desenrolar-se em campo de silencioso sacrifício.
— Compreendo e estou pronta para a batalha, como sempre.
— Não te agastes com o dizer que a senhora Susana participou, a meu
ver, da tragédia que mielicitou tua mãe.
— Posso lamentar, mas devo reconhecer que, se Deus me pôs no seu
caminho, é que tenho de aprender alguma coisa em contacto com ela. Que
será? não sei. De qualquer modo, porém, rogo a Jesus não me abandone.
Reconheço que minha mãe tem provado infinitos martírios, mas os criminosos,
padre, são mais desventurados que os sofredores. Mamãe, no leito da
enfermidade pertinaz, goza de mais tranqüilidade que a senhora Susana no
seu palácio. Enquanto Robbie nos alegra com o seu afeto, Beatriz parece
detestar a genitora, trazendo-a em constante acabrunhamento. Tenho, hoje,
grandiosas lições diante do meu espírito. Antes mil vêzes padecer a calúnia e o
abandono, que tisnar a consciência com a nódoa do crime. Este, padre
Damiano, o quadro permanente que tenho diante dos olhos.
— Lembraste bem — murmurou o sacerdote meneando a cabeça
encanecida.
— Meu pai e a segunda espôsa — prosseguiu a jovem — são
profundamente infelizes na vida conjugal. Por vêzes, longamente altercam
sôbre ninharias da vida social. Não raro, êle se afasta exasperado, enquanto
que ela se desfaz em lágrimas. Tenho a impressão de que Beatriz é o único elo
que os mantém presos aos compromissos contraídos. Tudo isso não será uma
lição bem amarga?
O sacerdote considerou a exposição judiciosa e
Concordou:
— Tens razão. Contudo, minha filha, não fôssem as circunstâncias
imperiosas que nos impõem silêncio, haveria que denunciar o crime, para que
os autores não ficassem impunes.
173
— Pode crer, porém — exclamou Alcione, depois de refletir um instante —, que
a senhora Davenport está sendo punida todos os dias. Não poderemos, por
certo, conhecer o grau da sua Conivência no delito, mas tenho podido observar
a sua luta expiatória. As meditações dêstes dias têm-me ensinado que
devemos tratar os pecadores não como criaturas perversas ou indesejáveis,
mas como doentes necessitados de medicação constante. Não foi assim que
Jesus nos tratou em sua missão divina? Tenho, agora, a convicção de que o
Mestre encarou os romanos como pessoas atacadas pela moléstia da ambição
e da tirania; os judeus, como enfermos da vaidade e do egoísmo destruidores;
e, decerto, terá visto em Judas um companheiro dementado, tanto quanto em
Pilatos um irmão perseguido pela doença do mêdo.
O sacerdote estava comovidíssimo. Tais interpretações lhe valiam como
bálsamo confortador. E mal se recobrava do assombro, quando Alcione
continuou:
— Suponho legítima esta presunção, porque a identificamos com a
bondade do Cristo, em todos os atos de sua vida e até nos derradeiros
instantes da cruz. Conduzido ao madeiro entre dois ladrões, nos quais
devemos enxergar dois doentes do mundo, bastou que um dêles mostrasse o
desejo sincero de melhorar-se, recobrando a saúde, e o Senhor lhe prometeu o
paraíso.
— Sim — disse o religioso emocionado; estas idéias devem fluir do Céu
para o teu coração purificado. Deus te proteja nos caminhos longos e
escabrosos, porque as almas nobres, qual a tua, surgem na Terra como
partícipes das aflições do Cristo. O mundo prepara sempre um calvário para as
vidas cristãs, mas o Mestre te reservará a coroa da vida...
— Não diga isso, o senhor me atribui a bondade que lhe pertence. Estou
muito longe de compreender verdadeiramente o Cristo, mas, não obstante,
certa de não ter vindo a êste mundo para descanso e gôzo fictícios. Aliás,
nosso raciocínio deve ser claro: se o Salvador veio à Terra provar os
testemunhos mais ásperos, vertendo sangue e lágrimas, por que darmos tanta
importância a algumas gôtas de suor, vertidas em benefício próprio?
Damiano agradeceu com um olhar de júbilo íntimo.
E, dividindo a mocidade entre o palacete do pai e a humilde casinha
materna, Alcione Vilamil, em árdua tarefa, rogava a Jesus não a abandonasse,
na dolorosa missão.
174
3
Testemunhos de fé
Impressionado com a argumentação do velho Gordon e cedendo à
insistência da família, Cirilo Davenport havia desposado a prima, em segundas
núpcias, entre caridosas alegrias dos amigos e afeiçoados da Nova Irlanda,
passando a residir em companhia de Jaques, que assim o exigira, visando a
alguma consolação no deserto da sua viuvez. Breve, o nascimento de Beatriz
vinha trazer um laço mais forte ao casal, mas o filho de Samuel jamais encontrara
a emoção de ventura haurida no primeiro matrimônio. Parecia-lhe ter a
alma mutilada, que o lugar de Madalena era impreenchível. Fugia
instintivamente do lar, entregando-se a trabalho incessante. Por vêzes, singular
estranheza se apossava dêle, ao atentar nas atitudes afetivas de Susana, sem
eco no seu espírito. O coração palpitava-lhe de sentimentalismo ardente,
reconhecia que nada perdera quanto à possibilidade de amar, e, contudo,
parecia que sômente a primeira espôsa era a dona da chave de penetração no
seu mundo íntimo. O ambiente doméstico, por mais que ela se esforçasse,
reservava-lhe sempre penosas surprêsas. A disposição dos objetos provocava
censuras, os pratos nunca estavam a seu gôsto. Continuamente insaciado,
insatisfeito, de quando em quando impunha-se a intervenção conciliadora de
Jaques, para que os atritos não degenerassem em conflito. Depois de longas e
acrimoniosas altercações, Susana recolhia-se ao quarto, chorosa e
desesperada, enquanto o marido se retirava a um canto da varanda, distraindose
com a fumaça de grande cachimbo, e pensando consigo mesmo: — “No
tempo de Madalena, não era assim... Dada a sua constante aplicação ao
trabalho, conseguira angariar fortuna sólida e invejável situação na colônia; no
entanto, intraduzível tristeza lhe pairava invariàvelmente no semblante. Apenas
a filha, pela profunda afinidade espiritual manifestada, conseguira atenuar os
sofrimentos que o atormentavam. Desde que Beatriz atingira os cinco anos,
estabelecera-se entre pai e filha um apêgo cada vez mais forte. A menina
parecia singularmente distanciada da genitora, que, em vão, se esforçava por
insinuar-se à sua estima. As ansiedades e dedicações de Susana se tornavam
inúteis. A atitude paternal de Cirilo plasmando a alma da filhinha,
absolutamente de acôrdo com os seus pensamentos, dificultava a atuação
materna. Sem jamais conseguir uma harmonia perfeita com a segunda espôsa,
o filho de Samuel parecia vingar-se do destino, subtraindo a pequenina à sua
influência e dando ensejo a que Beatriz se desenvolvesse entre caprichos de
tôda sorte. Em breve tempo Susana não tinha nenhuma autoridade sôbre a
filha, que só obedecia ao pai. No íntimo, a prima de Cirilo sentia-se qual ré,
que, não obstante resguardada da justiça humana, resgatava duramente o
crime praticado. Não encontrara a felicidade esperada em seu criminoso
sonho. Os momentos raros de alegria conjugal eram pagos multiplicadamente
em angústias martirizantes, pelo que costumava comparar sua ventura a uma
gôta de vinho numa taça de fel. Além do mais, os remorsos perseguiam-na,
implacáveis. Se encontrava um doente, recordava-se de Madalena; se entrava
num cemitério, surgia-lhe o espectro da vitima. Quando alguém se referia a
júbilos domésticos, ela sentia o amargor das suas experiências; se as amigas
comentavam as esperanças da prole, lembrava a filha de D. Inácio e sentia
mais vivo o aguilhão da consciência.
Tamanha era a desdita do casal, que um padre da colônia lhe recomendou
175
mais atenção para o culto doméstico do Evangelho. Duas vêzes por semana,
reunia-se a pequena família para leitura e comentário das lições do Cristo.
Jaques, porém, era talvez o único que se aproveitava legitimamente dos
ensinos de cada noite. Susana via em cada palavra uma acusação, furtando-se
ao aproveitamento. Cirilo considerava as sentenças evangélicas como simples
fórmulas convencionais da religião, sem sentido lógico para a vida prática, e a
pequena Beatriz ouvia a leitura e interpretação do avô com o devido respeito,
sem nada assimilar ao espírito infantil. O velho professor de Blois, todavia, não
desanimava.
Quando a pequena manifestou os primeiros sintomas da enfermidade
nervosa que a acabrunhava, os pais, como loucos, deliberaram transferir-se
temporàriamente ao Velho Mundo, em busca de recursos médicos. Debalde
Susana insistiu para se fixarem na Inglaterra. Cirilo foi inflexível. Ficariam em
França. Uma vez forçado a viver na Europa, preferia Paris, onde se sentia
identificado com as suas antigas recordações. Aí poderia cuidar da saúde da
filha e orar no túmulo da primeira espôsa. E não houve como demovê-lo dessa
resolução.
Assim, regressou ao Velho Continente o reduzido grupo familiar, sem prazo
prefixado de regresso, sendo que Cirilo, aproveitando a oportunidade, poderia
centralizar a representação de vasta zona do Connecticut, para o comércio do
fumo, florentíssimo então.
Perdurava a mesma angustiosa Situação para os Davenport, em Paris,
quando Alcione lhes entrou em casa. Casa rica de recursos financeiros, mas
pobre de alegria e de paz.
Jaques e o sobrinho exultavam com a chegada da jovem, tão parecida com
a morta inesquecível e pelas suas maneiras carinhosas e catívantes. Beatriz
parecia encontrar em sua companhia o medicamento indispensável. As longas
conversações com a governanta desvelada pouco a pouco lhe modificavam as
atitudes. Susana, entretanto, teve agravado o seu intimo mal-estar com a
presença de Alcione. Não conseguia sofrear a onda de ciúme e egoísmo que a
empolgava. Muitas circunstâncias cooperavam para isso. Não tolerava a
menina simples e amável, pelos seus traços idênticos aos da rival que
eliminara do seu caminho. Além de tudo, aquelas atenções que Cirilo lhe
dispensava, doíam-lhe penosamente no coração inculto. Complicando a
questão, o velho pai, bem como a filhinha, adoravam a jovem serva,
manifestando-lhe extremo carinho. Debalde procurava um pretexto para despedi-
la. A moça estava sempre calma e disposta a ceder aos seus caprichos.
Aquela suave humildade causava-lhe irritação. Por mais que elevasse a voz,
em ordens intempestivas, Alcione tratava-a respeitosamente, em atitude de
nobre serenidade.
A princípio, acrescentou-lhe outras ocupações, além dos deveres de
governanta e preceptora. A jovem era obrigada a tratar de todos os demais
serviços leves da casa, inclusive a costura. Observando, todavia, que a moça a
tudo atendia primorosamente, Susana chamou-a certa vez:
— Alcione!
— Senhora!...
— Hoje é necessário que substituas a lavadeira, que se encontra doente.
— Sim, senhora.
E num momento desdobrava-se em atividades no tanque espaçoso,
esforçando-se por cumprir perfeitamente a tarefa insólita. Entretanto, vendo-a
176
entregue a tal mister, não se conformou a pequena Beatriz, que, depois de um
olhar reprovativo à genitora, correu ao pai, pedindo-lhe providências.
Cirilo atendeu de pronto. Vendo a governanta da filhinha azafamada na
lavandaria, começou a altercar com a espôsa, recriminando-a com aspereza.
Beatriz, agarrada a êle, reforçava-lhe a censura. Susana justificava-se. Não
poderia atender ao ritmo doméstico, exautorada nas suas determinações. O
marido, porém, não lhe aceitava as alegações, secundado por Beatriz, que
acusava a genitora de perseguir Alcione com os serviços mais grosseiros. A
filha de Madalena trabalhava, cabisbaixa e humilde, mas, quando viu a dona da
casa em- pranto convulsivo, exasperada com as censuras que lhe eram
dirigidas acremente, adiantou-se com delicadeza e acentuou:
— Sr. Davenport, espero que me desculpe a intromissão na conversa, mas
pode crer que a pequena Beatriz está enganada. D. Susana não me mandou
substituir a lavadeira, fui eu mesma que, sabendo que a lavadeira adoeceu,
ofereci minha cooperação no tanque, para aliviar os muitos serviços
domésticos.
— Ah! sim — disse Cirilo, algo desapontado.
— O senhor não se preocupe — concluiu Alcione —, eu estou bastante
habituada a êstes trabalhos.
Essas palavras eram ditas com tanta sinceridade e boa vontade que o
chefe da família regressou tranqüilamente às suas atividades, enquanto a espôsa
olhava para a governanta sem disfarçar a surprêsa. Beatriz, muito
modificada em sua primeira atitude de revolta contra a decisão materna, aproximou-
se da jovem, tentando ajudá-la. Muito afetuosamente, contemplava
Alcione, seduzida pela sua bondade, como a lhe pedir explicações. A filha de
Madalena percebeu-lhe o desejo e falou:
— Então, Beatriz, consideras a limpeza da roupa como serviço pesado?
Não penses assim. Deve ser muito sagrado, para nós todos, o asseio das
coisas caseiras.
— Mas há criadas para isso, explicou a menina procurando justificar-se.
—No entanto, devemos estar habilitadas para qualquer trabalho digno. Se
tôdas as servas adoecessem, haveríamos de vestir roupa suja? Não admitirás
isso, por certo. Além do mais, cuidar da roupa que nos faz tanto bem, deve
constituir motivo de satisfação sincera.
A menina, muito sensível, estimava deveras a governanta, mas objetou:
— No entanto, sempre ouvi dizer que cada serviçal deve estar no seu
lugar.
— E não erras, pensando assim, mas essa verdade não impede o dever de
ampliarmos nossas experiências em todo e qualquer trabalho honesto. Não
estimas tanto as lições de Jesus? Pois no Cristo encontramos o verdadeiro
ânimo de trabalho, O Mestre Divino nunca se ausentou do lugar sublime que
lhe compete na Criação e, no entanto, carpintejou na modesta oficina de
Nazaré; exegeta da Lei, perante os doutores d€ Jerusalém, serviu o vinho da
amizade nas bodas de Caná; médico da sogra de São Pedro, enfermeiro dos
paralíticos, guia dos cegos, amigo das crianças, mas também lacaio dos
discípulos, quando lhes lavou os pés, no cenáculo. E nada obstante o contraste
e a diversidade de tantas tarefas, Jesus não deixou de ser o nosso Salvador,
em todos os momentos.
A filhinha de Susana, entre admirada e comovida, observou:
— Tudo isso é verdade... Como não pude compreender antes?
177
E começou a ajudar no trabalho do tanque.
Esses pequeninos incidentes domésticos começaram a impressionar
profundamente a segunda espôsa de Cirilo. De que fonte poderia Alcione haurir
tanta compreensão e tamanha fôrça? Alcione estava sempre pronta a lhe
atender as menores exigências, sem modificar a atitude de serenidade e
dedicação. Chamada aos próprios misteres da cozinha, desincumbiu-se dos
deveres que lhe eram confiados, a contento geral.
Decorrido quase um ano, Susana adoeceu gravemente. A filha de
Madalena consagrou-lhe o máximo de seus carinhos. Nessa ocasião,
justamente em face dos sofrimentos que a martirizavam, foi que ela se rendeu
à bondade da serva, tornando-se-lhe desvelada amiga. A residência de Cirilo
experimentava profundas transformações. O chefe da família, bem como
Jaques, insistiam para que a jovem se transferisse definitivamente para o
palacete da Cité, mas Alcione alegava que a mãe era paralítica, que tinha um
irmão adotivo necessitado da sua assistência, e um tutor muito amigo que se
abeirava da morte.
Inúmeras vêzes, a filha de Madalena Vilamil era obrigada a desviar,
delicadamente, o desejo de Susana e da filha, de lhe visitarem a genitora enfêrma.
— Mais tarde, senhora Davenport, estaremos preparados para recebê-la;
por enquanto, sou eu quem lhe pede para não ir. Quero ter a satisfação de
apresentá-la à mamãe quando ela puder sentir o prazer de melhoras mais
positivas.
E Susana justificava-lhe a solicitação.
A modificação de Beatriz trouxera grande paz ao coração paterno; Cirilo
não cabia em si de contentamento, em lhe observando a jovialidade e a saúde.
Nunca poderia explicar o fenômeno afetivo que com ele se passava, mas, era
tal a estima e admiração que tinha pela moça, que, no Intimo, não sabia a qual
das duas queria com mais ternura. Jamais confiara a quem quer que fôsse as
suas recônditas impressões, mas desde que Alcione lhe entrou em casa,
começara a sentir uma serenidade desconhecida. Ela lhe parecia assim como
alguma coisa da morta inolvidável. Por vêzes, quando a governanta
acompanhava a família ao cemitério dos Inocentes, tinha ímpetos de afagá-la
paternalmente, enxugando-lhe as lágrimas copiosas. Em tais ocasiões, ela
recordava os sofrimentos de cada uma das personagens do drama doloroso e
desfazia-se em lágrimas. A família Davenport levava tudo à conta de
sentimentalismo, temperamento hipersensível, e as suas atitudes passavam
despercebidas, sem mais comentários.
Às quartas e domingos, praticavam, na intimidade, o culto doméstico do
Evangelho.
Num sábado, à refeição, foi Jaques a lembrar:
— Alcione, amanhã faremos nosso estudo e meditação do Novo
Testamento e receberíamos, com prazer, a sua cooperação.
— Ganharei muito em vos ouvir — acentuou plàcidamente.
O alvitre do amorável velhinho mereceu aplauso geral. Cirilo fêz ver que
seria muito interessante ouvir a governanta de Beatriz no comentário das lições
de Jesus. Alcione esquivava-se às provas de aprêço, com extrema humildade.
Viria, a fim de aprender, exclamava bondosamente.
Na tarde seguinte, reunidos em tôrno da grande mesa aristocrática, o pai
de Susana explicou, atencioso:
178
— Há algum tempo, minha filha — dirigia-se a Alcione com muito carinho —
, aconselhados por um sacerdote americano, deliberamos fundar nossa igreja
lareira, por considerar que a família é o nosso primeiro santuário.
— Resolução louvável — disse a filha de Madalena, entre a ternura e o
respeito. — Minha mãe também sempre me disse que o lar é o nosso templo
divino.
Magnetizado pela doçura das suas palavras, Cirilo Davenport, ansioso de
alcançar a fé que lhe suavizasse as lutas da vida, perguntou:
— Não discordo, Alcione, dêsse conceito, mas, já o tenho discutido muitas
vêzes com meu tio. Por que entreter o culto evangélico no lar, quando temos
numerosas igrejas? Só aqui no centro contamos mais de vinte. E os outros
bairros de Paris? E as instituições religiosas? Por que esta diversidade de
cultos se os fins são os mesmos? Não seria mais justo reservar as
possibilidades da devoção para os ofícios religiosos de caráter público?
O filho de Samuel assim se manifestava porque nunca pudera
compreender a utilidade prática da igreja doméstica. A seu ver, os textos
evangélicos constituíam material de análise privativa dos padres, e chegava
quase a considerar inútil a leitura isolada das anotações apostólicas. Alcione,
atenta e prazerosa, respondeu:
— Neste assunto, Sr. Davenport, como não se trata de opinião nossa,
pessoal, mas de ensinos do Mestre, peço-vos relevar a minha franqueza.
Tenho a convicção de que, em tôda parte, estamos na casa de Nosso Pai e
estou certa de que virá o dia em que tomaremos por templo de Deus o mundo
inteiro. Mas, em nossa atual condição, não nos custa reconhecer o proveito das
igrejas e o caráter sagrado do culto doméstico, no que concerne aos ensinos
de Jesus. Também no confôrto de nossas casas há sempre ótima disposição
para atender aos nossos familiares enfermos, mas isso não proscreve a
necessidade dos hospitais. Os pais amorosos ensinam sempre os filhinhos;
mas nem por isso deixam de ser úteis as escolas. Em matéria de fé, nossa
estranheza radica na viciação dos deveres religiosos. Costumamos atribuir ao
sacerdote o que nos compete realizar. Um padre poderá funcionar como
excelente preceptor, indicando os caminhos retos, mas nós transitamos para
Deus e éimprescindível não parar. O ministro da fé atenderá ao conjunto, mas,
para que as alegrias cristãs vibrem perfeitamente em nossa alma, não há que
olvidar a necessidade de estabelecer o culto do Senhor, dentro de nós
mesmos. Assim entrevisto, o lar é o templo mais nobre, porque oferece oportunidade
diária de esfôrço e adoração. Cada criatura de nossa convivência, sob
o mesmo teto, representa um altar para o culto da bondade, do carinho, da
compreensão. Cada borrasca doméstica é um ensejo para a distribuição de
esperança e fé. Cada dia afanoso enseja possibilidades de testemunhar
confiança em Deus. Enquanto isso ocorre na intimidade, as instituições
religiosas podem funcionar como hospitais dos espíritos combalidos, como celeiros
de esfomeados, como fontes de informações sublimes aos ignorantes.
Qualquer doente esperará a volta da saúde, mas colimando reintegrar-se no
plano de esfôrço diuturno; o faminto se alimentará de modo a prosseguir no
seu caminho; e o ignorante será instruído para que se habilite a aplicar o que
aprendeu. Por êsse prisma, podemos aquilatar o valor das pequenas
realizações domésticas. Acredito que o lar seja o ninho onde o espírito humano
cria em si mesmo, com o auxílio do Pai Celestial, as asas da sabedoria e do
amor, com que há de conhecer, mais tarde, as sendas divinas do Universo.
179
A reduzida assembléia não podia ocultar a enorme expressão de
assombro. Os Davenport estavam longe de presumir, naquela jovem de
atitudes tão timidas, tais provas de conhecimento espiritual. Pela primeira vez,
Cirilo ouvia um argumento que o satisfazia plenamente. Com estupefação
geral, Beatriz quebrou o silêncio, dirigindo-se ao avô nestes têrmos:
— Não te disse, vovô, que ela sabe muita coisa nova sôbre Jesus?
— Não diga isso, Beatriz — murmurou Alcione tôda humilde —, eu sou
apenas uma curiosa das lições evangélicas. Como tínhamos em Ávila a nossa
pequena igreja doméstica, a funcionar quase tôdas as noites, familiarizei-me
com o assunto.
— Sem dúvida — replicou Cirilo, impressionado — as tuas explicações,
Alcione, falam profundamente à alma. Os negócios materiais da minha vida
sempre me criaram certa atmosfera de incompreensão para as lições do Cristo.
Sempre considerei o lar fortaleza da nossa felicidade na Terra, mas nunca
como base para enriquecimento de dons espirituais.
— Isso é natural — prosseguiu a moça enternecida —, as fôrças que nos
encarceram o coração nas grades de uns tantos problemas temporais,
costumam ser violentas e rudes. Entretanto, Deus não se cansa de nos atrair
aos seus braços misericordiosos. As circunstâncias mínimas da existência
humana induzem a pensar nisso. Logo que abrimos os olhos neste mundo,
encontramos pais carinhosos que nos encaminham para o bem; nossa infância,
quase sempre, está cercada de sábias advertências dos preceptores, que nos
orientam para a verdade. Uma idéia lógica surge, fatalmente, em nosso cérebro:
tantos mensageiros de bondade viriam à nossa estrada, tão só para
informar-nos o coração, sem utilidades práticas para a nossa própria edificação?
Muita gente, nos mais variados credos, depõe nas mãos de seus
ministros o que lhes cumpre fazer, mas isso é um êrro grave. Deus nos chama
pela maneira como Jesus procurou os discípulos. Para realizar a união divina é
preciso marchar, na “terra” de nós mesmos, não obstante os maus dias e as
noites tenebrosas!...
Cirilo não podia disfarçar a admiração. Agora, sentia descortinar-se aos
olhos dalma um mundo deslumbrante, que até então não conseguira surpreender.
As palavras da jovem modificavam-lhe, num minuto, tôdas as
presunções exegéticas. Começava a sentir que a vida, sob qualquer de seus
aspectos, revestia-se da mais profunda significação. No seu conceito, o homem
deixava de ser um exilado em míseras trevas, que se encontraria mais tarde
com Deus, ou com a punição eterna. A Terra figurava-se-lhe escola, onde cada
homem recebia uma divina oportunidade, entre milhões de possibilidades
sublimes e infinitas.
—No templo de pregações públicas — concluía a filha de Madalena, sem
afetação — poderemos receber as inspirações externas, ao passo que no culto
intimo entramos em contato com o próprio eu, recebendo divinas mensagens
na consciência, Os diversos ministros religiosos têm fórmulas convencionais;
nós, como sacerdotes da própria iluminação, temos as expressões
espontâneas da vida.
Jaques engolfara-se em prolongado silêncio, como se estivesse chegando
a um mundo novo de preciosas revelações. E Susana, vendo o companheiro
quase extático, considerou, eminentemente comovida:
— Em verdade, Alcione, teus raciocínios abrem novos horizontes ao nosso
espírito. Sempre estudamos o Evangelho, mas, de minha parte, devo confessar
180
a dificuldade em me adaptar aos ensinamentos... Sinto-me tão pecadora, tão
humana, que cada lição me soa como rigorosa censura. Por que experimento,
assim, as santas narrativas como dilacerantes acusações?
A jovem fitou-a com olhos muito lúcidos e esclareceu:
— Tais impressões devem ser passageiras. O Evangelho é mensagem de
salvação, nunca de tormento. Na realidade, conhecemos a extensão da nossa
indigência e o grau das nossas fraquezas; mas a misericórdia divina restaria
imota sem as nossas quedas e dolorosas necessidades, O Cristianismo jamais
será doutrina de regras implacáveis, mas sim a história e a exemplificação das
almas transformadas com Jesus, para glória de Deus. Se as lições do Mestre
apenas nos oferecessem motivos de condenação, onde estariam as grandes
figuras evangélicas de Maria Madalena, Paulo de Tarso e tantas outras? No
entanto, a pecadora transformada foi a mensageira da ressurreição; o inflexível
e cruel perseguidor convertido recebeu de Jesus a missão de iluminar o
gentilismo.
Susana seguia a exposição, de olhos muito brilhantes. Nunca sentira
tamanha impressão de bem-estar, no trato das leituras santas. Nas confissões,
que nunca chegara a conjugar com a grande falta da sua vida, nada recebia
dos sacerdotes, senão amargas recriminações. Os padres lhe ministravam
penitências, mas nunca lhe ofereciam roteiro seguro. Sempre dera ao altar
valiosas contribuições monetárias, mas agora chegava à conclusão de que era
indispensável cooperar, com tôdas as energias espirituais, para o próprio
aperfeiçoamento.
— Tuas interpretações — asseverou a senhora Davenport — são
altamente consoladoras. De uns tempos para cá, venho refletindo amargurada
na inutilidade de muitos ensinamentos recebidos na infância. Por que terei
aprendido a virtude e não a cultivo a rigor? E, com tais dúvidas íntimas, passo
a analisar as criaturas com profundo pessimismo, chegando a crer que a
humanidade, de modo geral, vive negando Jesus a cada momento.
Alcione, que prestava especial atenção aos conceitos expendidos,
obtemperou:
—Por infelicidade nossa é, de fato, enorme a bagagem das nossas fraquezas
neste mundo; mas, se o Pai não desanimou e nos oferece, diariamente, ensejo
de nos levantarmos para o seu amor, por que haveremos de viver em
descrença contumaz? Viver sem esperança é o pior de todos os males.
Quando nos preocupamos sinceramente com a iluminação espiritual,
compreendemos a significação de tôdaa as coisas. A própria miséria humana
tem o seu lugar e a sua expressão educativa. Antes de tudo, é essencial
refletirmos na extensão da bondade do Mestre. Lembremos que Pedro o negou
três vêzes, na hora mais cruel; que Tomé duvidou da sua sabedoria e
misericordioso poder, e, nem um nem outro foi jamais expulso da sua divina
presença. O mundo tem inúmeros criminosos, exploradores, ociosos e
devassos, mas tudo isso deve ser examinado por um prisma diferente. O pecado
é moléstia do espírito. No excesso da alimentação, na falta de higiene, no
desregramento dos sentidos, o corpo sofre desequilíbrios que podem ser fatais.
O mesmo se dá com a alma, quando não sabemos nortear os desejos,
santificar as aspirações, vigiar os pensamentos. Sempre acreditei que as
enfermidades dessa natureza são as mais perigosas, porque exigem remédio
de mais dolorosa aplicação.
Susana estava eminentemente surpreendida. Aquelas explicações, tão
181
simples, tocavam-lhe o coração nas fibras mais sensíveis. Sômente agora
identificava a sua moléstia espiritual. Nos dias mais tristes da vida conjugal,
entre remorsos e revoltas, muita vez indagara de si mesma os motivos que a
levaram a desventurar a filha de D. Inácio. Nas horas acerbas, chegava à
penosa conclusão de que um verdadeiro amor jamais sacrifica alguém nos
seus impulsos. Em troca da sua violência, nada adquirira senão remorsos para
si e insaciedade para o companheiro. Não teria sido melhor cooperar para a
felicidade inalterável do primo com Madalena? Se lhe não fôsse possível a
edificação do lar, alcançaria, pelo menos, a tranqüilidade de consciência.
Entretanto, como dizia Alcione, deixara-se empolgar pelo desregramento dos
desejos, desviara-se dos sentimentos justos e caíra em terrível enfermidade
espiritual. Enfim, comovera-se em demasia, fora de seus hábitos, tinha os
olhos molhados de pranto.
Cirilo, por sua vez, muitíssimo impressionado com os esclarecimentos,
imitava o velho tio, parecendo mergulhado em profundo cismar.
Rompendo o forçado silêncio, o velho educador de Blois tomou a palavra e
disse com brandura:
— As interpretações da menina são novas e confortadoras para nós. Pelo
visto, muito nos poderá ela auxiliar no referente aos sagrados ensinos. Não
será melhor que todos nós a ouçamos, hoje, no culto? Dessarte, saberemos
como funcionava a sua igreja doméstica, em Ávila, e poderemos enriquecer as
nossas experiências.
Alcione sempre humilde e sincera, tentou esquivar-se, mas Cirilo e Susana
reforçaram a proposta do bondoso ancião e não houve como eximir-se à
delicada incumbência.
Jaques entregou-lhe o volume do Novo Testamento, mas, antes de o abrir,
ela explicou:
—Em nosso grupo familiar de Castela-a-Velha, meu tutor dizia que o estudo
das letras santas é comparável a uma pesca de luzes celestiais, O rio da vida,
afirmava, está sempre correndo e é indispensável energia serena e vontade
ardente, a fim de mergulharmos na coleta dos valores divinos. Enquanto o
homem se mantiver tíbio, desencantado, indiferente ou pessimista, dificilmente
poderá encontrar no Evangelho algo mais que os sublimes apelos do Senhor.
Em tais condições negativas, recebemos os convites do Cristo, mas
freqüentemente ficamos ignorando a tarefa; somos chamados ao banquete da
verdade e da luz, mas comparecemos como comensais bisonhos, mal sabendo
como iniciar o suculento repasto. O ensinamento de Jesus é vibração e vida, e
como o estudo mais simples demanda o esfôrço de comparação, não podemos
versar o Evangelho sem êsse esfôrço. Muitos procuram, nestas páginas,
sômente motivos de consolação, esquecendo a essência do ensino. Mas seria
um contra-senso vir o Mestre a nós, dos espaços gloriosos da imortalidade,
apenas para nos adoçar o coração onusto de perversidades e fraquezas
humanas. Jesus é a fonte do confôrto e da doçura supremos. Isso é inegável.
No entanto, reconhecemos que uma criança, que sômente receba consolações
e mimos paternos, arrisca-se a envenenar o coração para sempre, na sêde
insaciável dos caprichos. Não; não devemos acreditar que o Cristo só haja
trazido ao mundo a palavra revigoradora e afetuosa, senão também um roteiro
de trabalho, que é preciso conhecer e seguir, em que pesem às maiores
dificuldades. Para isso, é indispensável tomar os nossos sentimentos e
raciocínios como campo de observação e experiência, trabalhando diàriamente
182
com Jesus na construção da arca íntima da nossa fé. Naturalmente que essa
edificação não prescinde do material adequado, constituído pelas virtudes e
conhecimentos nobres que adquirimos no curso da vida. São esses os
elementos que procuramos, em nossa pesca das luzes celestiais, para que,
recebendo as consolações de Jesus, sejamos igualmente operosos trabalhadores.
A pequena assembléia entreolhava-se grande-mente surprêsa. Cada qual
parecia mais deslumbrado com o comentário da jovem intérprete.
— Em Ávila — continuou ela com a maior simplicidade — nunca nos
reunimos no culto doméstico sem suplicar o socorro da inspiração divina. Padre
Damiano esclarecia sempre que Deus não poderia ter enviado as “línguas de
fogo” da sua sabedoria apenas aos doze discípulos de Jesus. As chamas do
seu amor infinito aquecem a humanidade inteira. Basta lembrar que se os
sinais do céu foram vistos sômente sôbre os Apóstolos, no dia inolvidável do
Pentecostes, ninguém poderá contestar a extensão dos benefícios à multidão
que os ouvia, exultante de júbilo. A revelação dirigia-se a todos, o
contentamento celestial foi distribuído sem exclusividade. Baseado nisso, meu
tutor asseverava que devemos fazer o estudo evangélico não apenas com as
nossas malícias e necessidades humanas, mas com o auxílio silencioso e
invisível do Céu!...
Após estas considerações, que despertaram fundo enternecimento nos
ouvintes, orou em voz alta, suplicando a Jesus lhes concedesse o benefício de
suas inspirações sacrossantas, para que se integrassem no conhecimento da
sua vontade. Feita a prece comovedora, tomou do livro e perguntou:
— Sr. Jaques, gostaria me dissésseis qual o método aqui adotado para a
leitura.
— Costumamos ler cinco a dez versículos de cada vez, comentando-os em
seguida. Presentemente estamos na segunda epístola de São Paulo a
Timóteo, tendo ficado, na última reunião, no segundo capítulo, versículo 10.
— Lá na Espanha — explicou a jovem delicadamente — líamos apenas
um versículo de cada vez e êsse mesmo, não raro, fornecia cabedal de exame
e iluminação para outras noites de estudo. Chegamos à conclusão de que o
Evangelho, em sua expressão total, é um vasto caminho ascensional, cujo fim
não poderemos atingir, legitimamente, sem conhecimento e aplicação de todos
os detalhes. Muitos estudiosos presumem haver alcançado o têrmo da lição do
Mestre, com uma simples leitura vagamente raciocinada. Isso, contudo, é êrro
grave. A mensagem do Cristo precisa ser conhecida, meditada, sentida e
vivida. Nesta ordem de aquisições, não basta estar informado. Um preceptor do
mundo nos ensinará a ler; o Mestre, porém, nos ensina a proceder, tornandose-
nos, portanto, indispensável a cada passo da existência. Eis por que,
excetuados os versículos de saudação apostólica, qualquer dos demais
conterá ensinamentos grandiosos e imorredouros, que impende conhecer e
empregar, a benefício próprio.
— Será então mais útil — advertiu Cirilo sumamente interessado — assim
também procedermos.
Alcione procurou a epístola indicada e leu o versículo 11 do segundo
capítulo:
- «Palavra fiel é esta: que se morrermos com ele, também com êle
viveremos. »
Franca a palavra, todos, exceto a pequena Beatriz, que se mantinha
183
calada, opinavam que os homens apegados a Jesus, no fim da vida, podiam
morrer em paz, certos de que o Senhor lhes abriria, além-túmulo, as portas
gloriosas da redenção.
Depois de ouvir a opinião de cada um em particular, Alcione explanou:
— Certo, a esperança em Cristo será sempre um refúgio indispensável na
hora da partida, mas a advertência apostólica nos convoca a ilações mais
graves. Lembremos os perversos que aceitam Jesus na hora extrema. Muita
gente, portadora de crimes inomináveis, faz ato de fé no leito de morte. Enquanto
têm saúde e mocidade, vivem ao léu, entre caprichos e
desregramentos; mas tanto que o corpo quebrantado lhes dá idéias de morte,
alarmam-se e desfazem-se em rogativas a Deus. Podem, criaturas que tais,
esperar de pronto, imediata, a glória do Cristo? E os que se sacrificam nas aras
do dever enquanto lhes resta uma partícula de fôrças? Claudicaria a justiça, em
suma, se afinal a virtude se confundisse com o crime, a verdade com a mentira,
o labor com a ociosidade. Certo que será sempre útil recorrer à misericórdia do
Senhor, ainda que manchados até aos cabelos, bem como acreditar que, para
tôda enfermidade, haverá remédio adequado. Penso, porém, que a assertiva
de Paulo não se refere ao têrmo da vida corporal, fenômeno natural e apanágio
de justos e de injustos, de piedosos e de impios. Bafejado pela divina
inspiração, o amigo do gentilismo aludiu, por certo, à morte da “criatura velha”,
que está dentro de todos nós. E’ a personalidade egoística e má, que trazemos
conOScO e precisamos combater a cada dia, para que possamos viver em
Cristo. A existência terrestre é um aprendizado em que nos consumimos
devagarinho, de modo a atingir a plenitude do Mestre. No plano da própria
materialidade, poderemos observar êsse imperativo da lei. A infância, a
mocidade e a decrepitude, em seu aspecto de transitoriedade, não podem
representar a vida. São fases de luta, demonstrações da sagrada oportunidade
concedida por Deus para nos expurgarmos da grosseria dos sentimentos, da
crosta de imperfeição. Costuma-se dizer que a velhice é um ataúde de
fantasias mortas, mas isso apenas se verifica com os que não souberam ou
não quiseram “morrer” com o Cristo para alcançar a fonte eterna da sua vida
gloriosa. Quem se valeu da possibilidade divina tão sômente para cultivar
ilusões balof as, não poderá encontrar mais que o fantasma dos seus enganos
caprichosos. A criatura, porém, que caminhou de olhos fixos em Jesus, em
todos os pormenores da tarefa, essa, naturalmente, conquistou o segrêdo de
viver triunfante acima de quaisquer circunstâncias adversas. Jesus palpita em
seus atos, palavras e pensamentos. Seu coração, na pobreza ou na abastança,
será como flor de luz, aberta ao sol da vida eterna!...
Cada qual dos ouvintes revelava jubiloso interêsse. A explanação de
Alcione lhes tocara o coração. Quando a filha de Madalena fêz uma pausa
mais longa, Cirilo Davenport acentuou:
Agora, sim! Encontrei um modo prático de Compreender o tesouro
evangélico, interpretado desta maneira, dá idéia de preciosa mina de valores
espirituais. Quanto mais nos aprofundamos em meditação, esfôrço e boa
vontade, mais filões auríferos irão surgindo aos nossos olhos.
Alcione sorriu satisfeita. Ninguém, ali, poderia entender a vibração do seu
contentamento; mas a verdade é que, Considerando a Confissão paterna,
transbordava de alegria Íntima.
— O senhor comparou muito bem — disse. —As palavras do Mestre estão
cheias de apelos maravilhosos, de socorros divinos, de mensagens do Céu.
184
Basta que nos esforcemos por lhe ouvir a voz e receber os dons.
Jaques Continuava muito impressionado.
— Senhorita — indagou —‘ vê-se que a sua educação religiosa é muito
diferente da que conhecíamos até agora. Encontro-me a termo de uma
existência Consagrada ao ensino, e, apesar da minha paixão pelos autores
antigos, nunca pude sair do círculo do meu tempo, circunscrevendo o serviço
da fé aos atos de adoração. Jamais pude compreender a igreja como oficina de
trabalho ativo, nem o culto doméstico do Evangelho como escola de
preparação para o esfôrço terrestre; no entanto, por suas observações sinto
que há métodos de interpretação que não conheço, e posso declarar, pelo que
ouvi da sua inteligência moça, que êstes processos de aprendizado são
sedutores. Desejaria saber se isso é comum nas escolas e lares de Espanha.
A jovem sorriu agradecida e esclareceu:
— Estas luzes, Sr. Jaques, eu as recebi do meu tutor, em nossas reuniões
familiares de Ávila; mas devo acrescentar que esta orientação não está
generalizada na pátria de minha mãe, mormente em Castela-a-Velha, onde o
Padre Damiano foi ameaçado duas vêzes pelas perseguições do Santo Oficio,
por haver tentado chamar a atenção do povo para êste sistema de estudo e
exegese.
— Que horror! — exclamou Cirilo num gesto significativo — é quase
inacreditável que a Igreja mantenha tal instituição.
— Não podemos inculpar a Igreja — retificou Alcione, carinhosamente —;
o Cristianismo, em tempo algum, autorizaria institutos dessa natureza.
Devemo-los aos maus padres, cujo coração ainda não pôde compreender a
suprema grandeza do Cristo.
O velho educador, sinceramente impressionado com as definições
ouvidas, tornou a perguntar:
— Onde poderei avistar-me, mais amiúde, com o Padre Damiano?
Alcione esboçou um sorriso melancólico e respondeu:
— Nosso velho amigo está à morte, na paróquia de São Jaques do Passo
Alto. Quase diariamente, à noite, vou recolher seus últimos pensamentos. Não
obstante o combate há muitos meses travado com a terrível enfermidade, vê-se
que êle está nas últimas. Com a sua morte próxima, perderei neste mundo um
segundo pai.
A notícia ecoou lügubremente na sala. Observando a nuvem de tristeza que
sombreava o semblante de Alcione, todos entraram em profundo silêncio. Foi
aí que a jovem lembrou:
— Agora, agradeçamos a Deus o socorro que nos foi enviado através da
inspiração. As mais das vêzes, temos a certeza de que devemos, em grande
parte, o pão material ao próprio esfôrço, mas o mesmo não se dá com relação
ao alimento espiritual. Êste nos vem sempre de Deus, do seu paterno coração,
que nos cumula de infinitos recursos. Temos na Terra a lei da necessidade,
mas o Senhor tem a do suprimento. Agradeçamos a sua misericórdia e
apliquemos as dádivas recebidas, porque novos elementos fluirão, para nossa
alma, dos seus inexauríveis celeiros de sabedoria e abundância.
Encerrada a reunião familiar com uma prece de reconhecimento, Alcione
retirou-se, deixando àfamília Davenport singulares impressões.
Ela parecia fortemente inspirada, quando dizia que Damiano estava às
185
portas da morte. Logo que chegou à casinha do burgo de São Marcelo, encontrou
a notícia alarmante. Um portador ali estivera para comunicar aos Vilamil
que o velho sacerdote agonizava. As freqüentes hemoptises da noite lhe
haviam aniquIlado as últimas fôrças. Madalena, não obstante a atrofia dolorosa
das pernas, suplicou à filha que a levasse em sua companhia, num carro mais
espaçoso, a fim de ver o abnegado amigo, pela última vez. A filha ouviu-a,
angustiada, e dentro de poucos minutos, à bôca da noite, um carro vagaroso
saía de São Marcelo para a residência do padre Amâncio. Alcione
recomendara, muito cuidado ao cocheiro. Chegando ao destino, Madalena
Vilamil conseguiu descer com grande sacrifício. Dois homens trouxeram larga
poltrona para conduzir a enfêrma ao quarto do moribundo. Alcione auxiliava o
transporte da genitora, com infinito carinho.
Lá chegadas, o agonizante pareceu reanimar-se. Robbie e a irmã adotiva
aproximaram-se respeitosos e pediram-lhe a bênção, enquanto a senhora
Vilamil, pedindo que a poltrona fôsse deposta à cabeceira do moribundo,
tomou-lhe a destra, muito pálida, em confortadora saudação fraternal.
Damiano tinha os olhos profundamente lúcidos e brilhantes, mas na feição
cadavérica pairava uma expressão de agonia dolorosa.
— Que é isso, padre?... — murmurou acabrunhada.
Ele fixou nela o olhar enternecido e respondeu, com voz quase sussurrante:
— A moléstia incurável, Madalena, é um escoadouro bendito de nossas
imperfeições. Que seria de minhalma se a moléstia do peito não me ajudasse a
expungir os maus pensamentos? Quantos bens ficarei devendo à solidão e ao
sofrimento? O Senhor, que mos deu, lhes conhece o inestimável valor. Eu, que
não chorava há muitos anos, alcancei novamente o beneficio das lágrimas...
Muitas vêzes ensinei do púlpito, mas o leito me reservava lições muito maiores
que as dos livros...
A filha de D. Inácio quis responder, testemunhar seu reconhecimento
imorredouro, dizer dos votos que fazia a Deus pelo seu restabelecimento, mas,
na sua angústia, não encontrava palavras com que traduzir o seu pesar. Não
conseguia, porém, reter as lágrimas que lhe rolavam, abundantes, dos olhos.
O moribundo prosseguiu após uma pausa mais longa:
— O catre amigo e silencioso me trouxe a recordação de todos os júbilos e
dores que ficaram no passado distante... Sem conseguir adaptar-me a esta
vida de Paris, tenho vivido quase que absolutamente das nossas velhas
lembranças de Espanha. Tenho grande saudade da nossa vida tranqüila, em
Ávila; dos fraternos serões da Chácara; dos colegas da igreja de São Vicente...
mas estou certo, Madalena, de que a vida não acaba com o corpo e
convencido de que Deus nos reunirá, em outra parte, onde não haja prantos
nem morte... Há diversas noites que sou visitado pela sombra dos entes
amados que me antecederam no túmulo... Ainda hoje, depois da última
hemorragia, enxerguei o vulto de minha mãe a dizer-me palavras de
consolação e coragem... Algumas crianças amadas, lá da nossa igreja antiga
de Castela, falecidas há muito tempo, me vieram ver à noite passada e me
abraçaram com carinho... Amâncio pensa que estou sendo vítima de
pesadelos, dado o meu esgotamento físico, mas eu não posso concordar...
A senhora Vilamil, aproveitando uma pausa, fêz um esfôrço e obtemperou
carinhosamente:
— Não deveis pensar nisso. Lembrai-vos de que precisamos do vosso
amparo paternal. Deus vos restituirá a saúde, para que nossa alegria não
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desapareça para sempre. Recordai nossa viagem à América...
Damiano procurou, a custo, o olhar de Alcione, dando-lhe a entender o
cuidado com que se deviam conduzir naquelas circunstâncias e acentuou:
— Pede a Deus pela minha saúde espiritual, porque seria impossível
restaurar a do corpo, minha filha! A morte não é uma separação eterna. Estou
certo de que Jesus me permitirá voltar a teu lado, se minha vinda fôr útil...
Quanto à viagem ao Novo Continente, não te preocupes. Alcione está muito
jovem e Robbie quase que ainda não passa de um menino... Poderás ser muito
feliz na companhia dêles, aqui mesmo...
Madalena enxugou as lágrimas, murmurando:
— Tendes razão, padre! Também eu estou chumbada ao leito para
meditações necessárias. Minhas pernas paralíticas nunca me permitirão tão
longa viagem!...
— Não te lastimes, porém, pensando nesses obstáculos, certa de que a
misericórdia do Todo Poderoso nunca andou atrasada. Quando nos parece
tarda, é que algum motivo existe, que não podemos compreender de pronto...
A filha de D. Inácio continuava chorando enternecidamente. Em seguida, o
velho sacerdote, dando a perceber que desejava mudar de assunto, fêz um
sinal chamando Robbie à cabeceira. O menino atendeu, compungido.
— Por que não trouxeste o violino? — indagou com interêsse.
— Alcione me disse que o senhor estava mais doente — esclareceu
respeitoso.
— Isso quer dizer, meu filho, que preciso mais de te ouvir.
A irmã adotiva aproximou-se e interrogou com ternura filial:
— Desejáveis ouvir alguma coisa, padre?
— Sim, Alcione. Se fôsse possível, a Ladainha de Nossa Senhora, que
cantaste na primeira missa de Carlos, na igreja de São Vicente. Recordas?
Dêsse modo lembraríamos o amigo distante, bem como o recanto de Castela,
onde fomos tão felizes!...
— Poderei pedir a padre Amâncio que nos empreste o violino do côro de
São Jaques — exclamou a jovem esforçando-se por conter as lágrimas.
— Seria um grande consôlo!
Ouvido um dos três clérigos que se conservavam no quarto, prontificou-se a
buscar o instrumento.
Daí a minutos, a voz cristalina de Alcione enchia o aposento, arrebatando
os ouvintes a um plano de misteriosa luz espiritual. Robbie acompanhava o
canto, com extrema felicidade em cada nota de sublime harmonia. O
moribundo parecia extático. A ladainha, muito antiga, abria-lhe novos
horizontes de claridade maravilhosa. Madalena tinha um lenço colado aos
olhos, enquanto o lacaio e os religiosos choravam comovidos.
Quando terminou, o agonizante chamou a jovem e lhe falou dêbilmente:
— Alcione, Deus te abençoe por esta alegria... Depois, contemplou a
senhora Vilamil demoradamente, e, trocando com a moça significativos
olhares, voltou a dizer:
— Faze pela paz espiritual de tua mãe tudo que possas! E se tiveres,
algum dia, qualquer necessidade mais forte, uma dificuldade mais premente,
lembra-te de Carlos, minha filha! Sei que não te encontras sôzinha no mundo,
mas não posso esquecer que acima de tudo devemos considerá-lo teu irmão!...
Surgindo a dispnéia das horas derradeiras, Damiano não mais podia
conversar senao por monossílabos. Após entendimento com a genitora, a jo187
vem Vilamil acercou-se do moribundo, murmurando:
— Padre, levarei mamãe e Robbie de volta a São Marcelo, mas estarei
novamente aqui, dentro em pouco, para ficar convosco!...
— Não te incomodes, nem deixes Madalena... por minha causa...
Mas, acompanhando os seus ao lar, Alcione regressou sem demora, a fim
de assistir o velho amigo, até ao fim.
As restantes horas da noite êle as passou em coma, assistido pelo afeto da
filha de Cirilo, que lhe enxugava o suor álgido com extrema dedicação.
Quando a aurora se fazia anunciar em clarões muito rubros, o velho
Damiano verteu a última lágrima e entregou a alma ao Criador.
Um emissário chegava, pela manhã, ao palacete da Cité, entregando uma
carta da governanta de Beatriz, endereçada a Susana, em cujas linhas
explicava a sua ausência ao trabalho.
A família Davenport comoveu-se. À tarde, uma carruagem elegante parava
à porta do presbitério de São Jaques do Passo Alto. Dela desceram Jaques e
Cirilo, que iam prestar afetuosa homenagem ao morto.
Impressionados com o abatimento da jovem, ambos se desdobraram em
gentilezas e expressões confortadoras. Cirilo procurou o padre Amâncio e fêz
questão de pagar as despesas do enterramento, acrescentando generosa
dádiva destinada ao lacaio que servira ao tutor de Alcione.
A jovem agradeceu com lágrimas. Depois de uma hora consoladora,
despediram-se atenciosos.
Ao crepúsculo, a filha de Madalena assistiu ao modesto funeral, de coração
confrangido. Por muito tempo deixou-se ficar na silenciosa mansão dos mortos,
em prece comovedora ao Altíssimo, Só tarde da noite, passos vacilantes,
regressou ao lar, experimentando indefinível amargura.
188
4
Reencontro
Um ano depois da morte de Damiano, houve na casa humilde do burgo de
São Marcelo grande e desconcertante surprêsa.
Orientado pela paróquia de São Jaques, Carlos Clenaghan, ansioso e
comovido, bate à porta de Madalena Vilamil. Nos primeiros meses que se
seguiram à morte do tio, resolvera abandonar a batina, apesar do
ressentimento dos colegas. Jamais pudera esquecer Alcione, jamais
conseguira manter um equilíbrio entre o dever e os impulsos da mocidade.
Enquanto recebia as longas cartas de Damiano, a palavra amorosa do tutor lhe
sofreava as preocupações tormentosas; mas, tão logo se viu sem o
preservativo dos seus conselhos, entrou a meditar resoluto na mudança de
situação. Anelava um lar, ardentemente, jamais renunciaria à afeição de
Alcione, não conseguia sopitar o desejo de ser pai e espôso feliz. Após
algumas lutas em Ávila, desprezara o apêlo dos superiores hierárquicos e, sem
dar qualquer satisfação do feito aos parentes irlandeses, desligara-se do voto
sacerdotal, cheio de esperança no futuro. Seu primeiro cuidado foi correr a
Paris, por buscar a noiva amada. Como o receberia ela? Conhecia-lhe a pureza
dos princípios e a formosura do caráter cristão. Suspeitava que lhe não
sancionaria a decisão, atento o conceito que fazia da fé; mas, faria o possível
por demonstrar-lhe o seu amor imenso, convencê-la-ia com instâncias
afetuosas, tanto mais quanto ela, agora, já não poderia contar com a
assistência paternal de Damiano, que a morte arrebatara, e no lar, pelas
notícias que recebia freqüentemente em Castela-a-Velha, arcava com muitas
dificuldades, em vista da moléstia incurável da genitora. Talvez os trabalhos do
mundo lhe houvessem modificado a opinião, relativamente ao enlace para uma
vida tranqüila e risonha. Oferecer-lhe-ia o braço protetor, voltariam à Espanha,
onde pretendia continuar, em Ávila ou Valladolid, dedicando-se ao comércio.
Ébrio de esperanças, Clenaghan erguia castelos maravilhosos na mente
exaltada. Edificariam um lar venturoso, Madalena Vilamil seria também uma
segunda mãe, aprimorariam a educação de Robbie e teriam filhinhos amados.
Impossível que ela relutasse, quando não desejava senão a suprema felicidade
de ambos, diante de Deus e dos homens.
Enlevado nestes sublimes projetos, esperou que alguém viesse atender.
Depois de alguns instantes de espera em que o coração lhe palpitava descompassado,
surgiu a figura de Robbie, que lhe caiu nos braços afetuosamente.
Conduzido ao interior, foi enorme a alegria da filha de D. Inácio ao receber as
carinhosas saudações do amigo, e não menor a surprêsa quando êle falou da
sua renúncia eclesiástica.
Depois de longa troca de idéias e impressões afetuosas, referentes à vida
em Castela e à enfermidade que aniquilara Damiano, o ex-padre aproveitou
certas observações mais íntimas e sentenciou:
— Como bem pode avaliar, D. Madalena, eu nunca poderia esquecer
Alcione, e ciente de que o seu coração de mãe carinhosa compreende e justifica
os meus propósitos, devo dizer que aqui estou para reconduzi-las aos
caros penates... A senhora não gostaria de regressar a Castela para revivermos
nossos tempos mais venturosos....
Aquelas palavras eram pronunciadas com tanto carinho que a senhora
Vilamil sentiu lágrimas de reconhecimento a lhe aflorarem dos olhos.
189
— Não sei se Alcione me perdoará haver procedido em desacôrdo com o
seu ponto de vista, mas tenho para mim que procedi nobremente. Fui lógico,
sincero, coerente, creia. De que me valeria continuar, sem a vocação
imprescindível? Desde que a Senhora saiu de Ávila, debalde procurei repouso
para o espírito atormentado. A ânsia de construir um lar tornou-se-me
obsessão permanente. Às vêzes, quando erguia a hóstia consagrada, assustava-
me com as sugestões da natureza... Enquanto o padre Damiano me
escrevia as suas exortações, eu me sentia fortalecido para prosseguir na
batalha silenciosa; mas verifiquei, depois, que seria inútil combater o
impossível...
A pobre enfêrma recebia a confissão com tristeza inexplicável, e, tendo o
rapaz notado que o coração maternal se encontrava embaraçado para
responder, prosseguiu:
— Se lhe fôr possível, ajude-me neste passo... Quem sabe recuperará a
saúde, regressando comigo? Se lhe prouver, poderemos residir nas cercanias
de Ávila, organizaremos uma chácara como aquela onde a senhora viveu
longos anos e que está sempre em suas recordações!...
Falava como filho afetuoso, pondo no olhar e na voz tôda a ternura do
coração bem formado. Depois de ligeira meditação, a senhora Vilamil ponderou,
com acento triste:
— Sou muito grata à tua lembrança! Ah! quem me dera voltar para esperar
a morte, contemplando o céu da Espanha! A paisagem da Guadarrama nunca
sairá de minhalma...
E depois de enxugar o pranto da evocação amarga, voltava a dizer:
— Esta cidade parece marcar as horas mais terríveis do meu destino. Aqui
em Paris conheci, na mocidade, a pobreza mais dura, experimentei a ironia e a
crueldade de pessoas ingratas, perdi meus pais carinhosos, abracei meu
espôso pela última vez! Agora, neste mesmo lugar, encontrei a paralisia
completa, vi morrer o padre Damiano em situação quase miserável!... Desde
que aqui cheguei, jamais pude arredar-me do leito para uma visita ao túmulo
dos meus inesquecíveis genitores. Não sei se estarei condenada a também
exalar aqui o derradeiro suspiro... Por meu gôsto, devo confessar francamente,
estou ansiosa por voltar à Espanha; entretanto, preciso ouvir Alcione que me
tem sido verdadeiro anjo guardião nos dias amargos, de necessidade e
sofrimento. Como mãe, não me sinto com ânimo para induzi-la a casar-se.
Minha filha, antes de tudo, tem sido para mim uma conselheira respeitável. Não
seria justo obrigá-la a aceitar minhas idéias, mas podes crer que eu receberia o
assentimento dela com o maior contentamento. Voltei à França no propósito de
conseguir recursos para demandar as plagas americanas, mas, logo que o
padre Damiano apresentou os primeiros sintomas da enfermidade do peito,
perdi as esperanças!...
Clenaghan estava mais esperançado. Sentia-se plenamente garantido, no
tocante às concessões maternas, O sincero desabafo de Madalena encorajavalhe
as pretensões. A pobre senhora, extremamente abatida, inspirava-lhe
simpatia e enternecimento filiais. Tal qual acontecera à genitora, a filha de D.
Inácio viu chegar, devagarinho, o mal do coração. Suas noites estavam agora
povoadas de aflições repetidas. Além das pernas inchadas pela continuidade
da mesma posição no leito, sentia-se prêsa de outros sintomas alarmantes.
Debalde, Alcione e Luisa preparavam tisanas e aplicavam fomentações, em
cansativas vigílias. A senhora Vilamil piorava sempre. Esse o motivo pelo qual
190
as observações de Carlos lhe falavam tão fortemente ao coração.
— Pois bem — acrescentou o sobrinho de Damiano, mais animado —,
Deus há de permitir que a senhora encontre a meu lado a tranqüilidade merecida.
— Alcione decidirá — acentuou a enfêrma resignada. — Até que minha
filha se pronuncie, nada poderei dizer em caráter definitivo.
A conversação continuou afetuosa, permanecendo Clenaghan em São
Marcelo, à espera de Alcione, que regressava habitualmente à noitinha.
Mal começavam a brilhar no céu os primeiros astros, a filha de Cirilo voltou
da sua faina diária.
A surprêsa foi demasiado chocante para sua alma sensível. Cumprimentou
o rapaz, muito pálida, na atitude de íntima e penosa expectativa. Naquela hora,
o pupilo de Damiano, entestando com a sua superioridade moral, sentia-se
acovardado para as explicações indispensáveis. A princípio, a moça julgou que
ele tivesse vindo a Paris no só intuito de visitar o sepulcro do tio querido,
prestando-lhe a derradeira homenagem e valendo-se de alguma autorização
especial para levar a efeito tão longa excursão, sem a batina comum. Mas, em
breves minutos, Carlos, não sem enleio, notificava-lhe a verdade. Estupefata,
Alcione indagou:
— Como pudeste cometer semelhante desvario?
O rapaz, algo confuso, tentava esclarecer:
— Supus que seria melhor assim... Era impossível continuar, O coração
inquieto, desde que vieste, nunca me permitiu reaver a paz interior. Pedi a
Deus me inspirasse a melhor solução, supliquei ardentemente do céu um
recurso, até que o propósito de renunciar ao compromisso eclesiástico de todo
me empolgou.
No íntimo, a filha de Cirilo estava profundamente comovida com aquela
espontânea confissão de fraqueza, mas, certa de que o dever espiritual deve
ser cumprido até ao fim, alcançou energias para observar:
— Pediste, mas não oraste. Como te sentiste forte para esquecer as
obrigações assumidas, sem considerar a questão do proveito próprio? Será
isso a renúncia cristã? Não creio. Declaras que imploraste uma inspiração do
Céu e resolveste o problema distanciando-te do compromisso; mas eu não
posso admitir, em nenhuma hipótese, que Deus nos dispense dos seus
trabalhos; nós é que por vêzes ouvimos o apêlo da natureza inferior e abandonamos
o serviço divino, em prejuízo de nós mesmos...
— Não desconheço, Alcione — aventou humilde — que minha atitude
inesperada desagradaria muito ao teu bondoso coração. Entretanto, o que
aconteceu é humano e peço me perdoes pelo muito bem que te desejo...
Esquece esta falta, dize que me compreendes e serei feliz!...
A nobre criatura, pelo tom carinhoso com que Clenaghan falava,
compreendeu que êle desejava reatar os antigos laços afetivos. Experimentou
sincero desejo de lhe tomar as mãos, ternamente, confessando os seus
anseios e saudades. Ele agora estava livre. Observando-o, naquela atitude
amorosa, recordou as jovens da sua idade, que se apresentavam a cada
passo, em Paris, exibindo os seus eleitos. Muitas vêzes, quando acompanhava
Susana a certas festividades públicas, vinha-lhe à mente Clenaghan, ao
contemplar os pares venturosos que perambulavam nas praças e jardins. E
sentia, então, frio no coração. A própria Beatriz, aos quinze anos, começava a
receber as visitas afetuosas do noivo. A filha de Madalena fitou o rapaz,
191
demoradamente, e teve ímpetos de ceder ao primeiro impulso, mas a
consciência lhe dizia que resistisse, que era indispensável atender a Deus
acima de quaisquer contingências mundanas, e que ainda não havia cumprido
todos os deveres, para que pudesse pensar na sua felicidade pessoal.
Muito sensibilizada pela atitude humilde, penitencial do bem-amado,
retrucou:
— Não me suponhas capaz de condenar-te por coisa alguma desta vida.
Apenas lamento o que sucedeu, porque é razoável te deseje no caminho da
fidelidade a Jesus, até ao fim.
Sinceramente embaraçado, o ex-eclesiástico não sabia como reatar a
explanação dos seus projetos. A senhora Vilamil, no entanto, acudiu a socorrêlo,
advertindo:
— Carlos, minha filha, faculta-nos o ensejo de regressarmos à Espanha.
— Sim — prosseguiu o rapaz —, agora estou liberto e apto para
reorganizar a vida, mas nada quero fazer sem te ouvir. Desde que nos vimos,
compreendi que Deus não me poderia destinar outro coração feminino, além do
teu. Tomo, portanto, tua mãe, como testemunha da minha afeição pura e devo
dizer que vim a Paris só para buscar-te. Estou certo de que acreditas no meu
devotamento e de que nos uniremos para sempre, eternamente felizes sob as
bênçãos de Deus.
A jovem contemplou-o ofegante, e como se sentisse em hora das mais
difíceis de tôda a sua vida, implorou a inspiração de Jesus e silabou:
— É impossível!...
Clenaghan empalidecera. Adivinhava nos olhos da escolhida que a sentença
não lhe provinha do coração.
— Por quê? — indagou exaltado — o que poderá impedir nossa ventura na
Terra? Serei assim tão detestável? Desde que te ausentaste tenho vivido como
louco. A saudade e a inquietação começaram a nevar-me os cabelos. Voltemos
a Castela, Alcione! Levaremos tua mãezinha por dar-lhe uma vida tranqüila e
feliz!...
Tais palavras ecoavam nos ouvidos da jovem como doce harmonia de uma
felicidade inatingível. Contemplou a genitora, que parecia aguardar sua
decisão, ansiosamente, mas recordou também o palacete da Cité, onde seu pai
não era menos doente da alma, arrostando absconsos pesares. Lembrou as
reuniões evangélicas em que Cirilo Davenport ouvia as lições de Jesus e as
suas explicações como se estivesse a receber suaves mensagens do Céu;
considerou as transformações de Susana, a mudança de Beatriz, o enternecido
carinho do velho Jaques... Seu coração estava sufocado. Fitou o escolhido,
longamente, e esclareceu em voz pausada:
— Não posso, Carlos! A felicidade tem base no dever cumprido. Ainda não
terminei minha tarefa de filha, como queres que assuma novas obrigações?...
Isto, ela o dizia desfeita em lágrimas, O pupilo de Damiano, todavia, longe
de conhecer tôdas as angústias e sacrifícios daquela alma heróica, tomou as
suas palavras alusivas ao dever cumprido como acusatórias da sua renúncia
eclesiástica e objurgou:
— Queres dizer que ainda não concluí minhas tarefas sacerdotais e desejo
assaltar novo plano de obrigações?
Acabrunhada por se ver incompreendida, Alcione reviu mentalmente a
figura do padre Damiano, relembrou a sua franqueza, que chegava a ser quase
áspera, e certificou-se de que necessitava de muita energia para defender-se
192
dignamente naquele lance. Recobrando a serenidade íntima, em virtude da
poderosa confiança em Cristo, explicou-se com bondade sincera:
— Que não terminaste o serviço começado, éinegável; mas semelhante
circunstância, Carlos, já entrou no domínio de minha compreensão. Somos
agora como duas criaturas às quais se reservou uma herança de ventura
imortal, sob a condição de executarem determinadas tarefas. Infelizmente, não
pudeste chegar à conclusão da tua. Tôda vez que fugimos ao desígnio sagrado
de Deus, erramos no labirinto da indecisão e da amargura. Não te doerá o
coração arrebatar-me aos deveres que o Pai me destinou? Consideras, então,
o amor como coisa tão frágil que se despedace num momento, apenas porque
não nos foi dada a satisfação passageira de um capricho sentimental? Onde
colocas a divina união das almas? Nossa concepção deve ir muito além da
alucinada impressão dos sentidos...
O sobrinho de Damiano e a enfêrma ouviam-na, profundamente admirados.
Alcione fizera-se de uma palidez transfiguradora, parecendo haurir as palavras
em fonte estranha à esfera material. Ouvindo tantas alusões a compromissos,
o ex-padre supôs que suas obrigações espirituais não ultrapassavam o
acanhado círculo familiar do burgo de São Marcelo e objetou humildemente:
—Curvo-me às tuas exortações, mas, podes crer que não abandonei a batina
tão só pela inquietude dos desejos humanos. É verdade que sou um homem
carregado de fraquezas, mas também tenho um coração. Se é inegável que
encareço ardentemente a tua companhia, não é menos certo que te desejo
tomar sob os meus cuidados afetuosos. Que te prenderá em Paris, se te vejo
sobrecarregada de trabalhos mortificantes? De um lado, vejo D. Madalena
prêsa a um leito de dor, de ti segregada durante o dia e, ao demais, carecida
de outros ares; de outro lado, o nosso Robbie necessitando educação. Entre os
dois, tu, abatida e inquieta para dar conta exata dos teus encargos. Não será
mais justo atenderes aos meus apelos? Tua genitora confugiria aos teus
constantes e diretos cuidados e Robbie tomaria o lugar de primeiro filho em
nosso lar. É impossível que Jesus nos negue a bênção a propósitos tão
elevados. Sairias então do labirinto de vicissitudes e responsabilidades de
governanta, não precisarias pensar nas viagens diárias a Cité nos dias de
chuva, nem te atribulares em casa alheia por tua mãe distante, quando a
tempestade se forma no céu! Se puderes, esquece o meu passado de
sacerdote e pensa, ao invés, que, com tua inspiração permanente, alcançarei
novas fôrças para ser um homem digno nas lutas da vida. Esquece o mal que
eu tenha praticado pelo muito de bem que poderei fazer com o teu auxílio constante.
Medita na tranqüilidade futura de D. Madalena, que está definhando a
olhos vistos!... Será que nenhum dos meus argumentos te poderá convencer?
Tocada novamente pela doce humildade do querido postulante, Alcione
chorava. Ele jamais poderia aquilatar a intensidade da sua angústia. Ela não
poderia afastar-se de Paris sem lacerar a consciência. Jesus não a conduziria,
sem uma finalidade, à casa paterna, onde era tratada como filha, não obstante
o título de serva com que se apresentava. Em profundas reflexões, lobrigou no
olhar da genitora sincero desejo de se afastar de Paris para sempre.
Adivinhava-lhe os pensamentos mais secretos. Longos instantes passaram, em
que se sentia atormentada por terríveis indecisões. Reportou-se às últimas
palavras de Damiano, quando lhe recomendara procurasse o socorro de
Clenaghan nos transes mais difíceis. Firme, porém, no propósito de manter
ilibada a consciência até ao fim das lutas humanas, enxugou as lágrimas e rea193
firmou:
— Não posso... Sei o que mamãe tem sofrido em tão longos anos de
martírio, físico e moral, e espero que Deus nos estenda a mão, para que suas
dores sejam aliviadas; no entanto, agora, não me é possível deixar Paris...
A filha de D. Inácio esboçou um gesto de resignação, respeitando, sem
discutir, a decisão da filha. Não assim, o pupilo de Damiano, que deixou
transparecer no olhar uma profunda desconfiança.
— Ah! compreendo agora — disse desapontado —, não podes sair de
Paris! Louco que fui, presumindo que a vida aqui seria a mesma de Ávila. As
atrações parisienses modificam as criaturas...
Notando-lhe a profunda tristeza, a jovem Vilamil experimentou indefinível
aflição por se declarar abertamente, revelar a natureza dos sagrados deveres
que a escravizavam prisioneira, mas a verdade dolorosa lhe morria no coração.
Ferida nos mais nobres sentimentos, encontrou fôrças para murmurar.
— Não deves fazer semelhante juízo a meu respeito...
E muito enleada sob o olhar indagador do rapaz, que a envolvia em
atmosfera de humilhação, concluía:
— Ouve. Carlos! Quando houver cumprido meus deveres, quando minha
consciência permitir que pense em mim, irei procurar-te onde estiveres!
Guardaremos, eu e mamãe, tôda a nossa gratidão e confiança em ti. Não
importa hajas renunciado ao ministério sacerdotal, porque, então, quando me
sinta livre, poderemos iniciar nova e venturosa tarefa.
Clenaghan, entretanto, ouviu-a quase friamente, com o ciúme que lhe
envenenava o coração. Conturbado pelas sugestões inferiores, cada afirmativa
de Alcione, agora, lhe parecia diferente. Teve a impressão de que ela se
deixara levar em Paris pelas promessas de algum homem criminoso e
inconsciente. As palavras “quando me sinta livre” toavam-lhe dolorosamente.
Sentia-se estranho a tudo e não pôde murmurar senão evasivas ligeiras, até ao
momento em que se despediu para voltar ao hotel.
Alcione compreendeu o que se passava com êle, mas, ainda que
amargurada, chamou Luísa para os serviços de cada noite, relativos ao
tratamento de sua mãe e cumpriu, rigorosamente, o programa do lar. Madalena
Vilamil se envolvera num véu de tristeza silenciosa. Então, fazendo o possível
por dissimular as amarguras íntimas, a jovem procurou desfazer o ambiente
pesado, pedindo a Rohbie para tocar alguma coisa, enquanto lia à enfêrma
certas páginas de sua predileção.
No dia seguinte, pela manhã, saiu de casa como de costume, a fim de
esperar o carro do Sr. Davenport, na pequena praça, defronte da igreja mais
próxima. Um carro ia-lhe no encalço, discretamente, sem que ela o
suspeitasse. Era Carlos que, informado na véspera por Madalena, das regalias
e atenções que a filha desfrutava na casa onde servia, resolvera não deixar
Paris sem uma prova da singular transformação que injustamente atribuía à
criatura eleita. Cada pormenor da conversa com a senhora Vilamil, no dia
anterior, gravara-se-lhe indelével no coração. Por que motivo ela não esperava
o carro à porta de casa? Não havia necessidade de caminhar quase um
quilômetro para encontrar a viatura. Preocupado com essa primeira
observação, reparou a carruagem garbosa que Alcione tomou, a breve trecho.
A suntuosidade do veículo pareceu-lhe excessivamente inadequada para a
jovem humilde dos idos tempos de Ávila. Seguiu-a, mais ou menos de perto,
até que chegou ao destino. Viu-a descer e receber com evidentes mostras de
194
satisfação o abraço acolhedor de um homem que a esperava junto do rico
portão de acesso ao jardim. Considerou o palacete de linhas nobres, poucos
passos distante do seu carro de aluguel e, dando ouvidos ao despeito
venenoso, concluiu que Alcione não era mais aquela criança meiga e carinhosa
que entregava costuras nas ruas empedradas da cidade onde se haviam
encontrado e embebido de sublime e santo idealismo. Perplexo, alimentando
mil idéias errôneas, deliberou fugir no mesmo dia, da capital francesa,
demandando o Havre, onde não lhe seria difícil o retôrno à Espanha.
Mandando tocar de volta ao burgo de São Marcelo, procurou despedir-se
de Madalena.
Quando anunciou a intenção de regressar, a pobre senhora não ocultou a
surprêsa amarga:
— Não posso crer que volte tão depressa —afirmou com bondade.
— Não se preocupe por isso — exclamou o rapaz fingindo-se tranqüilo —,
não vim com a intenção de demorar-me. Tenho alguns amigos que me
esperam no Havre, por estes dias.
A resignação da enfêrma, aliada ao seu profundo abatimento, inspiravamlhe
sincera preocupação, mas não podia suportar o ludíbrio de que se julgava
Vítima.
— Alcione vai sentir muito a tua partida súbita.
Carlos sentiu que o coração se lhe descompassara no peito e respondeu:
— Pode ser que não. De qualquer modo, porém, vejo-a satisfeita e isto me
conforta o espírito. Muito desejava reconduzi-las à nossa terra distante, mas
reconheci que a providência não é mais possível, por importuna.
Madalena esboçou um gesto triste, murmurando:
— Tenho desejado, ardentemente, sair de Paris, mas minha filha discorda
e eu creio que terá razões ponderosas para isso.
— Mas, que razões seriam essas? — perguntou Clenaghan exaltado.
— Desconfio que o meu médico desaconselha a medida, porqüanto, há
muito, venho apresentando sintomas de grave afecção cardíaca... Vejo que
Alcione me oculta êsse detalhe, carinhosamente, mas, devo dizer, isso nada
me assusta. Tenho sofrido demais para disputar uma longevidade improdutiva.
Carlos não concordou, intimamente atribuindo as palavras da pobre senhora
a simples fruto do carinho maternal. Depois de longa pausa, desejando reforçar
a nociva atitude mental, perguntou:
— Alcione foi sempre bem tratada na casa onde trabalha?
— Sim — confirmou Madalena, convicta. —Lutamos terrivelmente, nos
primeiros dias de Paris, visto haver adoecido o padre Damiano, mas, desde
que minha filha se empregou na Cité, nunca mais sofremos qualquer
necessidade. Com o seu salário, não sômente foram atendidas as despesas
domésticos, como também tivemos a alegria de saber que nada faltou ao
nosso velho amigo.
— E a senhora está informada a respeito dessa família que lhe contratou
os serviços de governanta.
— Trata-se de um rico negociante de fumo —informou a interpelada,
atenciosa. (1)
— E a senhora nunca visitou essa gente? -
— Nunca, até agora. De há muito venho desejando visitar a casa que
acolheu Alcione como filha; entretanto, estou à espera de melhoras que me
permitam fazê-lo.
195
O rapaz calou-se. Quis manifestar à enfêrma a venenosa desconfiança
que o consumia, exteriorizar todo o rancor que lhe afluia ao espírito despeitado,
mas a doce resignação de Madalena Vilamil, prêsa ao leito naquele estado,
inspirava-lhe respeito sagrado. Era preciso ter um coração bem cruel para tirar
a derradeira partícula de esperança e tranqüilidade daquela alma sofredora de
mãe sacrificada.
Com estranho brilho nos olhos o sobrinho de Damiano voltou a dizer:
— Onde está Robbie? Quero abraçá-lo antes de partir.
A filha de D. Inácio percebeu nessas palavras a funda contrariedade que
absorvia o interlocutor, compreendeu quanto lhe magoava a atitude firme de
Alcione, com relação ao desejado regresso à Espanha, e esclareceu
conformada:
— A esta hora Robbie deve estar na igreja de São Jaques de Passo Alto,
em trabalhos de limpeza que padre Amâncio lhe confiou.
E como notasse que Clenaghan se dispunha a partir em deplorável estado
de espírito, a pobre senhora aduziu:
(1) Compelida pelas circunstâncias, a jovem Vilamil nunca forneceu à
genitora o nome exato da família a que servia. — Nota de Emmanuel.
— Não te vás querendo mal a Alcione. Carlos! Podes crer que minha filha
nunca te esqueceu a bondade fraternal e a sublime afeição. É bem possível
que, intimamente, ela deseje partir em busca da felicidade, junto do teu
coração, mas, talvez por minha causa sacrificasse os mais caros desejos.
Conheço-lhe o espírito de sacrifício. Sou testemunha silenciosa das suas lutas
nesta casa, onde sua dedicação é o nosso manancial de bênçãos!...
O ex-sacerdote, porém, estava obcecado pelo ciúme. Trazia óculos negros
nos olhos exacerbados da imaginação e não prestou atenção maior ao que lhe
fora dito, continuando inalteradas as próprias suspeitas. O olhar fixo, como que
alheio ao ambiente, despediu-se de Madalena, que o recomendou à proteção
divina. Horas depois, abraçava Robbie, pela última vez, tomando rumo norte,
de regresso a Ávila, profundamente desditoso.
Á noite, Alcione foi informada da precipitada deliberação do rapaz.
— Carlos pareceu-me bastante abatido e desesperado — afirmava a
genitora — e lastimei sinceramente vê-lo em tão penosa conjuntura.
A jovem, com expressão de indefinível tristeza, acentuou:
— Jesus há de proporcionar-lhe ao coração aquilo que presentemente não
lhe podemos dar.
— Qual será o motivo — perguntou a enfêrma com interêsse — que leva o
pobre Clenaghan a sofrer tanto? Ele é moço, talentoso, cheio de possibilidades
e, no entanto, daqui saiu como’ se fôra um pária da sorte!...
— A senhora não presume — aventou Alcione com um gesto significativo
— seja isso a primeira conseqüência da sua renúncia ao voto contraído?
Clenaghan, para nós, é criatura muito amada, mas, nem por isso, podemos
isentá-lo da rêde de amarguras e tentações que constringe a criatura quando
se evade ao mais sagrado dos deveres. Continuo a o derradeiro socorro da
religião. Desfeita em lágrimas, seguida de Robbie que não sabia como
disfarçar a imensa dor, Alcione pediu a assistência do padre Amàncio, dadas
as relações de amizade. Madalena Vilamil confessou-se, recebeu religiosamente
as bênçãos da extrema-unção. O velho pároco de São Jaques do Passo
196
Alto dirigiu-lhe palavras de fé e consolação, que a nobre senhora recebeu com
serenidade.
Mas, nada obstante a firmeza dos seus princípios religiosos, não conseguia
eximir-se à mágoa da separação da filha e de Robbie, as duas afeições que lhe
haviam sustentado a alma sofredora, por longos anos de provações atrozes.
Naquela noite que se seguira às últimas providências religiosas, a agonizante
parecia mais lúcida. Seus olhos haviam adquirido brilho diferente. Dizia
entrever paisagens extraterrestres, que a criada tomava à conta de
alucinações.
Enquanto Robbie soluçava baixinho, no quintal, Alcione aproximou-se do
leito e perguntou, como costumava fazer tôdas as noites:
— Mamãe, a senhora prefere agora a leitura?
A agonizante tinha as faces banhadas de suor. E enquanto a filha lhe
enxugava a fronte, respondeu na sua aflição:
— Hoje, minha filha, gostaria que lesses o Novo Testamento, o capítulo da
Paixão.
Sufocando as impressões dolorosas, a jovem tomou o livro e leu
vagarosamente, observando o profundo interêsse maternal pela triste narrativa
da passagem de Jesus pelo Hôrto.
Nessa noite, por mais que se esforçasse, Alcione não conseguiu fazer o
comentário. Com maudita dificuldade, continha as lágrimas que lhe bailavam à
flor dos olhos. A enfêrma interrogou-a com o olhar muito lúcido, e ela
respondeu beijando-a:
— A senhora hoje está fatigada. Minhas palavras poderiam incomodá-la... Além
disso, quero pensar que uma consciência pura é o melhor tesouro do mundo.
Nas melhores posições terrenas o homem será positivamente um
desventurado, sem o refúgio dêsse santuário interior, onde Deus nos fala,
consolando e esclarecendo, em sua infinita misericórdia!...
A doente pôs-se a meditar nessas verdades sublimes, enquanto a filha,
adivinhando a onda de preocupações acerbas que afogava o ser amado,
retirava-se para orar em silêncio, de modo a diminuir as próprias amarguras.
Dentro das vibrações poderosas da sua fé, Alcione pareceu consolada,
buscando nas tarefas ingentes de cada dia o olvido das penas amargas.
Não se haviam passado muitos dias do incidente, quando Madalena Vilamil
começou a apresentar sintomas de acentuada fraqueza. A moléstia do coração
não se limitava, agora, a sintomas vagos e intermitentes. Surgiram as dispnéias
noturnas, que lhe reavivavam a lembrança dos derradeiros dias de sua mãe, na
velha casa de Santo Honorato. Face macilenta, angustiada, contemplava
demorada-mente a filha, como a lhe anunciar o fim próximo. Passava as noites
a falar das experiências da vida, das necessidades de Robbie, da gratidão
devida àboa serva, dando a entender que se preparava corajosamente para a
grande jornada. Alcione tudo ouvia recalcando as lágrimas de amor filial. Compreendia
a gravidade do mal e dissimulava o prognóstico médico, revelando-se
confiante em melhoras futuras. Ainda assim, não conseguia arrebatar a
carinhosa genitora à invariável tristeza que lhe ensombrava a fronte.
Uma noite em que as tisanas caseiras não atenuavam a aflição dolorosa,
Madalena chamou a filha e falou francamente:
— Alcione, algo me diz ao coração que me reunirei a teu pai, muito breve...
— Ora, mamãe — exclamou a jovem, solícita —, combatamos a tristeza!
Sejamos confiantes, Deus ouvirá nossas preces.
197
E dosando cada palavra com o mel das consolações carinhosas,
continuava:
— Logo que a senhora puder viajar, voltaremos à Espanha. Notei que a
senhora entristeceu-se quando recusei a proposta de Carlos; mas, tratando-se
da sua saúde, a coisa é outra. Pense que teremos novamente um clima
restaurador e não se preocupe com os desgostos que aqui passou. A mão de
Jesus nos traçará o roteiro.
Em lhe ouvindo tais palavras de confôrto e piedade filial, tomou a mimosa
mão da filha e selou-a com um beijo, acrescentando:
— Não te mortifiques, filhinha! Jamais duvidarei ou perderei a confiança em
Deus; antes continuarei tudo esperando do Pai misericordioso que nos
acompanha lá dos Céus; mas julgo, também, que a resistência física, após
mais de vinte anos de enfermidade, vai chegando a têrmo... Estas dispnéias
não podem enganar.
Depois, fixando o olhar enternecido nos olhos da filha afetuosa, prosseguia,
melancólica:
— Não ficarás zangada comigo se te disser que estou muito saudosa.
Desde que Cirilo se foi, nunca mais senti o prazer da vida... Reconheço,
contudo, que o Senhor tem sido magnânimo, concedendo-me socorros
inesperados. Basta lembrar que meu pobre espôso morreu no mar, enquanto
eu me via socorrida num oceano de lágrimas, por teu amor. Tua afeição tem
sido meu santo consôlo, iluminado refúgio sôbre a Terra... Jesus te concederá
tudo o que te não pude dar na minha pobreza de mãe!...
A moça ouvia-lhe os conceitos carinhosos, de coração sufocado. Nunca
sua mãe lhe parecera tão triste, jamais se queixara assim, em qualquer outra
circunstância passada. Então, começou a soluçar, mas a enfêrma, afagando-a
com ternura, prosseguiu:
— Não chores... Para esta hora nos temos preparado desde a tua
infância... Não sei em que dia o relógio da eternidade terá marcado meu derradeiro
alento neste corpo; mas nós ambas estamos cientes de que a veste
carnal é também uma ilusão. Estou certa de que Jesus me restituirá a companhia
de Cirilo, para sempre. Cercar-te-emos, então, do nosso afeto e te
esperaremos num mundo mais feliz, onde não haja lágrimas, nem morte. Se
pudesse, ficaria contigo, a fim de partirmos juntas; mas, algo me diz que não
poderei realizar êste desejo. Não fôssem tua afeição e as necessidades de
Robbie, creio que partiria sem qualquer outro laço... Tenho, no entanto, a
consciência tranqüila, embora não me possa furtar a estas preocupações! Se
morrer de um instante para outro, confio o nosso Robbie aos teus cuidados!...
Ele é uma criatura caprichosa, difícil de educar, mas não cabe repetir
recomendações que bem conheces.
Diante de tanta resignação, Alcione sentia certa dificuldade para iludir a
triste realidade, no intuito de confortar o coração materno, mas, ainda assim,
lidando por mostrar-se esperançada, falou com brandura:
— Confiemos em Deus, acima de tudo! A senhora, mamãe, tem estado
muito sozinha, tem-se entregado em excesso aos pensamentos de morte. Sinto
que nossa casa necessita de alegria. Reanime-se para nós. Vou pedir uma
licença temporária para ficar a seu lado, e com um saldo de vencimentos do
que tenho a receber, vamos comprar um cravo. Quem sabe a música, que a
senhora sempre cultivou, não virá melhorar nosso ambiente?
A senhora Vilamil tentou um sorriso apagado, obtemperando:
198
— Teus sacrifícios já são muitos.
— Amanhã mesmo, pedirei aos pais de Beatriz que me ajudem na
aquisição. Não há de ser difícil. Recordaremos nosso antigo repertório
espanhol e creio que irá sentir muita satisfação em reviver essas lembranças.
— Sim, certamente que nos sentiremos transportadas a Castela, onde,
tantas vêzes, encontramos a felicidade nas coisas mais simples...
Observando a consolação que o assunto produzia, a cândida Alcione
prosseguiu:
— Ah! como estou satisfeita por vê-la confortada com êste projeto.
Teremos muitas vantagens com essa compra. A senhora vai experimentar
novo ânimo e Robbie, por sua vez, poderá ter minha cooperação, novamente,
nos seus estudos domésticos. E depois, quando as suas melhoras se
positivarem, pensaremos, seriamente, na mudança, à procura de melhor clima,
onde a senhora possa ficar boa.
A enfêrma mostrou-se mais consolada com as palavras carinhosas da filha
e considerou:
— Teu plano me reconforta pela ternura que traduz e rogo a Deus te
abençoe tanta bondade. Agora, porém, quero fazer-te dois pedidos, dado as
minhas preocupações.
A filha demorou nela o olhar inteligente e respondeu comovida:
— A senhora não deve pedir-me coisa alguma e sim mandar sempre.
— Pois desejaria — disse algo hesitante —que me conduzisses ao
cemitério, a fim de orar no túmulo de meus pais, assim satisfazendo uma velha
aspiração de minhalma. Não poderei ajoelhar-me junto dos sepulcros, mas
talvez consiga chegar até lá, carregada na poltrona, tal como quando visitei o
padre Damiano pela última vez...
A moça não conseguia ocultar a impressão de penosa surprêsa.
— A outra coisa que desejo — continuou confiante — é que tragas até aqui
a senhora a quem serves e que tem sido tão generosa contigo, isso para que
lhe peça maternal amparo à tua mocidade, caso eu morra mais cedo, como
aliás pressinto.
Alcione procurou não trair na face a estranha emoção que experimentava.
Madalena pleiteava duas coisas inadmissíveis. Mas, longe de quebrar o padrão
de tranqüilidade da querida enfêrma, concordou nestes têrmos:
— Tão logo se encontre mais forte para viajar de carro, iremos ao túmulo
de meus avós, mas, penso que mamãe não deve afligir-se por isso. Que é
mamãe, a sepultura senão um monte de cinzas? Quanto à genitora de Beatriz,
hei de trazê-la a São Marcelo na primeira oportunidade. Espero, porém, que a
senhora esteja descansada na fé em Deus. Repousemos a mente na
inesgotável bondade divina. É certo que temos muitas e grandes necessidades.
mas o Altíssimo tem tudo para nos dar e sômente espera saibamos
compreender a sua misericórdia.
A enfêrma calou-se, conformada. A moça, no entanto, confiava-se a Jesus
em preces fervorosas. Como solucionar o delicado problema? Não encontrava
recursos para atender mentalmente à questão obscura, mas contava com o
socorro do Cristo no momento oportuno.
No dia seguinte, um tanto acanhada, dirigiu-se a Cirilo, falando-lhe
receosa:
— Sr. Davenport, espero não me leve a mal se lhe pedir um grande
obséquio...
199
— Dize, confiante, minha filha! — respondeu o chefe da casa com inflexão
afetuosa — Poderá dispor de mim em qualquer circunstância.
Ela esboçou um gesto de reconhecimento e continuou:
— É que minha mãe, apesar de doente, gosta muitíssimo de música e, de
tempos a esta parte, noto-a excessivamente tristonha. Pensei, então, em pedirlhe
um adiantamento sôbre os meus ordenados, a fim de comprar um cravo de
segunda mão. Creio que isso reavivará o ânimo da pobre enfêrma.
Cirilo Davenport ouviu-a comovidíssimo.
— Com muito prazer — respondeu, solícito — e se quiseres eu próprio me
incumbirei da compra.
— Não, não — atalhou a jovem, temendo a informação do enderêço —, o
senhor não precisará ter êsse incômodo. Padre Amâncio, em São Jaques, me
fará êsse favor. É pessoa entendida e não fará uma aquisição muito cara.
Cirilo contemplou-a edificado com aquelas reiteradas provas de humildade
e concluiu:
— Esperarei, então, a conta das despesas e podes estar certa de que
tenho nisso grande satisfação.
Ela ia referir-se ao plano do resgate, mas o interlocutor antecipou-se
dizendo:
— Não penses em pagamento. Há muito que Beatriz me pediu um
instrumento dêsses para que o guardasses em penhor de nossa amizade. Não
será esta a ocasião de satisfazê-la?
Alcione rejubilava-se de encontrar tamanha generosidade.
Não se passaram muitos dias e a casinha pobre, de São Marcelo, tôdas as
noites se impregnava de melodias maravilhosas. A doente amada submergiase
em ondas de sonoridade divina, encontrando ternas consolações às penas
diuturnas. Robbie também percebeu que sua mãe adotiva não estava longe do
têrmo fatal. Nessa angustiosa perspectiva, imprimia ao violino acordes de
profunda beleza, traduzindo saudade e sofrimento indefiníveis. Alcione, a seu
turno, mostrava-se incansável no carinho dispensado à enfêrma idolatrada.
Cada noite eram recordadas velhas árias castelhanas, antigas músicas da
juventude de sua mãe, que a filha de D. Inácio escutava entre lágrimas de
profunda emoção. Para Madalena, a ternura dos filhos era uma gloriosa
compensação do mundo aos seus martírios inomináveis de espôsa e mãe.
— Tenho a impressão, minha filha — dizia com um sorriso de sincera
conformação — que nossa casinha se transformou num templo. Estou quase
convencida de que disponho, agora, da estação religiosa, da qual poderei partir
para a vida espiritual.
A filha multiplicava as expressões confortadoras e as melodias cariciosas
vibravam no ar, transportando a enfêrma a sublimes estâncias de puro gôzo
espiritual.
Semanas se passaram assim, contemporizadoras, até que um dia
Madalena acusou astenia geral. Grandemente assustada, Luisa esperava por
Alcione com angustiosa ansiedade. Robbie, porém, logo que chegou do
trabalho, resolveu procurar o socorro do médico assistente. A enfêrma estivera
desacordada alguns minutos e, em seguida, sucessivas aflições lhe causavam
verdadeiro tormento.
À tarde, como de costume, Alcione voltou ao lar, experimentando dolorosa
surprêsa com a gravidade do caso. Abraçou a mãezinha, mal podendo conter
as lágrimas.
200
— Que foi isso, mamãe?
Percebendo a aflição que lhe transparecia do olhar afetuoso, a doente
buscou tranqüilizá-la:
— Creio que não estou pior!... Talvez seja alguma perturbação do
estômago. Aliás, nunca me senti tão bem como nas últimas semanas.
O coração filial, porém, adivinhava naqueles olhos úmidos um esfôrço
supremo para tranqüilizá-lo. Ambas estavam convictas de que o fim se
avizinhava. A jovem fêz o possível para renovar-lhe as fôrças com palavras
encorajadoras, murmurando em seguida:
— Suponho que, por êstes dias, poderemos ir ao cemitério visitar o túmulo
dos nossos entes caros, como a senhora deseja. Reanime-se, mamãe! Pense
nos passeios que gostaria de fazer, pense na saúde e verá que as dores
desaparecem.
Entretanto, naquele momento, era a genitora quem se esforçava por
consolar a filha ansiosa.
— Ora, filhinha — objetava com um sorriso forçado —, que iria fazer ao
cemitério? Não sei onde tinha a cabeça, quando pensei e desejei conhecer a
sepultura de papai, visitando igualmente a de mamãe!... Com o correr dos dias,
fui ponderando melhor e acabei compreendendo que era mesmo um capricho
extravagante. Nossos amados não devem mesmo lá estar, envoltos em montes
de lôdo. Cheguei mesmo a sonhar com mamãe a elucidar-me da
impropriedade do meu desejo, afirmando que seu coração está comigo, junto
de mim, fortalecendo-me nas provações em curso...
Alcione ouvia confortada e surpreendida. A senhora Vilamil fêz uma pausa
mais longa, devido à dispnéia, e prosseguiu ofegante:
— Espero, porém, que Deus me ajude a realizar o outro desejo. Quando
pensas que vamos ter a visita dos teus patrões?
Alcione esboçou um gesto indefinível e asseverou:
— Os pais de Beatriz, segundo creio, não tardarão a vir...
— Ainda bem que assim é, pois quero agradecer-lhes o bem que nos têm
feito, no desdobramento de nossas lutas em Paris.
A chegada do médico, em companhia de Robbie, interrompeu o diálogo.
O facultativo examinou a doente com minuciosa atenção, formulando
conceitos otimistas que Madalena acolhia com melancólico sorriso, mas, ao
retirar-se, chamou Alcione em particular, afiançando-lhe gravemente:
— Apesar de nossos esforços e da tua valiosa dedicação, minha boa
menina, tua mãe está chegando a têrmo de vida.
A moça não conseguia articular palavra, sufocada pela dolorosa surprêsa,
enquanto o velho esculápio prosseguia:
— Qualquer medicação não passará de paliativo destinado a manter-lhe
uns restos de vitalidade. Pelos meus conhecimentos e longa prática, digo que
ela poderá expirar de um momento para outro; mas, na melhor das hipóteses,
não irá além de um mês...
Enquanto a desolada Alcione enxugava as lágrimas discretamente, o
médico procurava confortá-la, exclamando:
— Procura entregar o caso a Deus. Não te martirizes com a idéia de perdêla,
porque a paralisia de tua mãe é um dos casos mais angustiosos que
conheço, de há muitos anos, na minha clínica.
D. Madalena tem sofrido herôicamente, não seria justo perturbar-lhe o
coração nestes dias em que se prenuncia o têrmo de longos padecimentos...
201
Alcione fitou-o reconhecidamente, murmurando:
— O senhor tem razão.
No dia seguinte, a jovem Vilamil chegou ao palacete da Cité, assomada de
profunda tristeza. Olhos encovados, muito pálida, esperou que Susana se
levantasse, e, quando a atividade doméstica entrou no ritmo habitual, chamoua
por obséquio, em particular, assim falando:
— Senhora Davenport, infelizmente a situação em que me encontro obrigame
a importuná-la com um pedido de licença por alguns dias. Creio que minha
mãe não terá mais que um mês de vida... Ontem sofreu a primeira crise
cardíaca mais grave, e o médico me declarou que suas horas estão contadas...
A filha de Jaques condoeu-se sinceramente da governanta de Beatriz, pela
comoção e humildade com que lhe confiava a amargura do seu lar, e
respondeu com interêsse amistoso:
— Sem dúvida. Faço questão que permaneças ao lado de tua mãe, pelo
tempo que fôr preciso. Não tens sômente um irmão adotivo?
— Sim — disse a moça, desejando conhecer a intenção da pergunta.
— Neste caso, poderei combinar com Círio, e tua mãezinha, se julgares
conveniente e útil, virá para nossa casa. Como sabes, temos muitas dependências
desocupadas. Com isto não estou considerando a pausa das tuas
obrigações, mesmo porque, há muito, pretendia oferecer-te alguma
oportunidade de repouso no que concerne ao tratamento da enfêrma. De
antemão, estou convencida de que a providência daria a Cirilo muito prazer.
Aqui, na Cité, os recursos são mais fáceis e tua mãe seria uma doente também
nossa...
A filha de Madalena confortou-se com tamanha afabilidade, verificando o
poder regenerador do Evangelho sôbre aquela alma, e respondeu comovida:
— Pode crer, senhora Davenport, que minha mãe e eu lhe seremos
eternamente reconhecidas pela lembrança amável; no entanto minha genitora
não poderia deixar nossa casinha. Seria impossível transportá-la...
— Já que assim é — explicou Susana atenciosa —, levarás contigo uma de
nossas criadas para ajudar no trabalho necessàriamente aumentado nestes
transes.
— Agradeço muito, senhora, mas nós temos uma velha criada de
confiança, que se incumbe de todos os serviços. A senhora pode estar descansada.
Susana, porém, desejando externar, de qualquer modo, o desejo de ser
útil, buscou uma centena de escudos, colocando-os nas mãos da governanta, a
murmurar:
— Então, leve êste dinheiro. Talvez sobre-venha alguma despesa
imprevista.
Alcione aceitou, emocionada, e, quando pretendia retirar-se, a dona da
casa perguntou solicita:
— E o teu enderêço? Antes que te vás, desejo sabê-lo, para que Beatriz lá
chegue de vez em quando e nos traga notícias.
— Nossa casinha — esclareceu a filha de Madalena dissimulando o
embaraço — não tem uma característica com que se possa identificar, mas a
senhora pode ficar tranqUila que eu aqui virei sempre que fôr possível e, no
caso de qualquer ocorrência mais grave, não deixarei de mandar um portador.
Mais uma vez, Susana preocupou-se com as evasivas da moça, nesse
particular, mas não fêz qualquer objeção. Todos os familiares se interessaram
202
pelo caso e procuraram expressar votos sinceros de solidariedade e feliz
desfecho.
Alcione afastou-se apressadamente para o arrabalde de São Marcelo, tôda
entregue a penosaS cogitações. Observara em Susana sincero desejo de
aproximar-se. Que aconteceria se os Davenport lhe descobrissem a
residência? Infelizmente, o estado da genitora não lhe permitia ponderar a possibilidade
de se retirarem para alguma aldeia distante. Rogava a Deus o
socorro divino de sua bondade nas inquietantes expectativas que lhe assaltavam
o espírito. Prometia a si própria voltar sempre à Cité, para desviar da
segunda espôsa de seu pai a idéia de uma visita a São Marcelo, cujas
conseqüências seriam demasiadamente dolorosas para todos. De volta ao lar,
verificara que a doente querida não obtivera qualquer melhora. Fêz o possível
para dissipar os pensamentos que a torturavam, entregando-se à tarefa de
enfermeira carinhosa, com todos os desvelos do coração.
Os dias escoavam-se com expectativas atrozes. A senhora Vilamil
alcançava apenas rápidos minutos de repouso, para voltar logo às dispnéias
angustiantes. De quando em quando, vinha o médico e esperançava a enfêrma
com palavras amigas, meneando, porém, tristonhamente a cabeça, tão logo se
via a sós com a filha, a comentar a situação.
A pobre moça não sabia como atender à complexidade dos problemas
torturantes. De três em três dias, corria à Cité, onde, exibindo olhos fundos e
considerável abatimento, procurava tranqüilizar os Davenport. Ante as
interrogações afetuosas de Cirilo, ou de Susana, alegava que a enfêrma estava
melhor e mais forte, ansiosa por lhes desvanecer a intenção da visita.
A situação, porém, era outra. A filha de D. Inácio, ao fim de três semanas,
apresentou os sintomas inequívocos da morte. O facultativo recomendou
preparar-lhe umas gôtas calmantes para o sono necessário.
A agonizante pareceu confaanar-se e perguntou:
— Onde está Robbie?
A jovem foi buscá-lo imediatamente. Instado por ela, o rapazinho enxugou o
pranto, compôs a fisionomia como pôde e acorreu à cabeceira da mãezinha
adotiva. Madalena deu-lhe a destra muito branca, que êle beijou enternecido;
mas, notando-lhe o abatimento extremo, o nariz afilado pela dor da agonia, as
unhas roxeadas, os olhos fulgurantes dos últimos lampejos, não pôde atender
aos rogos da irmã e rojou-se de joelhos, a soluçar convulsivo. A senhora
Vilamil deitou à filha um olhar de quem roga cooperação e, passando a mão
descarnada e trêmula pela sua cabeça, perguntou:
— Por que choras assim, meu filho?
Alcione procurava erguê-lo com delicadeza, mas Robbie, como que desejando
desabafar com a enfêrma, que sempre o tratara com ternuras de mãe,
murmurou em pranto:
— Ah! que será de mim se a senhora morrer?
— Que é isso, Robbie? — falou Alcione com afetuosa energia — pois
mamãe está doente e cansada e tu não tens pena de vê-la com tanta necessidade
de dormir .....
Madalena sorriu tristemente, mostrando que desejava consolá-lo, e disse
com esfôrço:
— Deus é Pai, meu filho, e nunca nos separará em espírito... A morte
aniquila o corpo, mas a alma é indestrutível... Não chores assim, porque essa
atitude demonstra falta de confiança no Todo Poderoso...
203
— Sei que a senhora não me esquecerá — disse o rapaz
comovedoramente — e que, se partir, pedirá por mim, lá no céu... mas por que
não morro em seu lugar, se vivo tão escarnecido neste mundo? Sem a
senhora, como suportarei as ironias da rua e as sátiras ferinas daqueles
próprios meninos confiados aos meus cuidados para os serviços da música, na
igreja?
E vendo que Madalena olhava para a filha, como a inculcá-la sua
substituta, para o futuro, Robbie reclamava em tom de lástima:
— Alcione trabalha fora o dia inteiro, nunca terá tempo de ouvir-me!... Luisa
não me pode compreender. Se a senhora se fôr, a casa para mim
fica vazia, sem ninguém...
A filha de D. Inácio deixou escapar uma lágrima.
— Se Deus me chamar, Robbie, lembra que aqui estarei guardando-te em
espírito... Seguirei teus trabalhos com o mesmo interêsse, cuidarei da tua
saúde, dar-te-ei fôrças para ouvir os ditos ingratos do mundo, enquanto o Todo
Poderoso fôr servido...
Alcione avaliou a angústia materna e, abraçando-se com o irmão adotivo,
observou:
— Vamos, Robbie! Estás muito nervoso. Luisa te levará um cordial, logo
que te deites. Quem te disse que mamãe vai morrer? Não achas que
éingratidão atormentá-la com êstes pensamentos lúgubres?
O rapaz atendeu e retirou-se amparado pela irmã, a esfregar
nervosamente os olhos.
Alcione regressou ao quarto da enfêrma para desmanchar-se em carinhos.
De minuto a minuto, passava-lhe na fronte um fino lenço, enxugando o suor
abundante. Em dado instante, Madalena Vilamil pareceu sossegar. À dispnéia
sucedia uma relativa serenidade. Em preces fervorosas, a filha observou,
porém, que os olhos estavam demudados, qual se apresentam nas febres
intensivas. A agonizante parecia delirar de alegria. Começara um período de
perturbação, natural em muitos casos de desprendimento, no qual a senhora
Vilamil não sabia se estava na Terra ou noutra região.
— Por que vos demorastes tanto, padre? —insistia em perguntar, dando a
entender que falava a uma sombra.
— A quem se refere, mamãe? — inquiriu Alcione impressionada.
— Padre Damiano aqui está... Não o vês?
E olhando, ansiosa, para um canto do aposento, a agonizante perguntava:
— Ah! quem sois vós?
Mas, quase no mesmo instante, olhos desmesuradamente abertos,
rematava:
— Minha mãe!.., minha mãe!...
Alcione acompanhava-lhe o pranto natural, rogando a Jesus lhes enviasse
o socorro divino da sua misericórdia.
Depois de um minuto, a filha de D. Inácio voltava a dizer:
— Minha mãe veio interpretar, para nós, a leitura evangélica... Sim, todos
nós temos um hôrto de agonias, que atravessaremos a sós, no esfôrço
valoroso da fé... todos teremos um caminho doloroso e um calvário... mas,
além de tudo isso... a criatura de Deus encontrará a ressurreição e a vida
eterna...
A moça, que a ouvia entre lágrimas, não duvidou da visita espiritual de que
era testemunha. Decorridos alguns instantes, sempre dando a entender que
204
recebia a voz do invisível, a agonizante voltou a interpelar as sombras:
— E Cirilo, minha mãe? — por que não veio em sua companhia?
Os traços de Madalena iluminaram-se de contentamento.
— Amanhã? — bradou a enfêrma desvairada de júbilo.
Em seguida, misturando as impressões espirituais com as do plano fisico,
dizia à filha, surprêsa:
— Teu pai chegará amanhã! Como me sinto melhor, minha filha!... Nosso
quarto está cheio de luzes! Minha mãe diz que chegou o tempo da minha cura
e que partirei com ela, amanhã, ao entardecer...
A moça estremeceu. Seu pai viria no dia seguinte? Como interpretar
semelhante afirmativa? Tratar-se-ia de uma expressão confortadora ou de
promessa justa do plano espiritual? Fundamente espantada, pedia a Deus lhe
iluminasse a razão para o entendimento de sua divina vontade.
Desde essa hora, Madalena, semi-inconsciente, dava a impressão de
preparar-se para o amanhã jubiloso.
— Vai, minha filha — dizia inquieta —, abre a grande mala e traze os dois
grandes cadernos de anotações de teu pai, a velha Bíblia, o livro de orações...
Alcione sentia-se compelida a obedecer maquinalmente. Minutos depois, as
pequenas lembranças de Cirilo estavam alinhadas sôbre a mesa rústica, ao
lado das drogas medicamentosas. Só então, quando as viu a tôdas,
envolvendo uma a uma em delicioso olhar, conseguiu entrar em branda
sonolência, como quem repousa após cumprir um sagrado dever. Alcione,
porém, continuou vigilante, certa de que a mãezinha amada vivia na Terra os
minutos derradeiros. Pela madrugada, voltaram as crises. Madalena
abandonava o corpo, devagarinho, entre dispnéias dolorosas e visões do
mundo espiritual, que lhe deixavam o espírito meio confuso. Pela manhã, duas
vizinhas solícitas vieram ajudar nos afazeres domésticos. Alcione, sempre
colada à cabeceira da mãe, que continuava a falar em voz alta, prosseguia em
oração silenciosa, imprecando a intervenção de Jesus no lutuoso transe.
Voltemos agora ao palacete da Cité, onde, não obstante as informações
tranqüilizadoras da governanta de Beatriz, reinava certa inquietude pela sua
ausência prolongada. Todos sentiam a sua falta, não no trabalho prôpriamente
dito, mas na assistência que seu coração dedicado sabia proporcionar a cada
um. O culto doméstico, sem a sua presença, parecia desprovido das luzes
ardentes que caíam sôbre os textos aparentemente obscuros, dilatando
confortadoras e divinas inspirações.
Na véspera daquele mesmo dia em que a jovem aguardava o traspasse da
genitora, os Davenport comentavam, durante o almôço, a sua demora, quando
Susana obtemperou:
— Alcione cá esteve há cinco dias. Tranqüilizou-nos sôbre o estado da
enfêrma, mas eu tenho necessidade de visitá-la, de qualquer modo.
— Muito bem — respondeu Cirilo com atenção —, também acordei hoje
com a idéia de fazer o mesmo. Poderemos então fazê-lo amanhã.
— E o enderêço? — objetou a senhora — até hoje, por mais que me
esforçasse, não consegui obtê-lo. Quando o solicito, Alcione perturba-se e há
muito, por isso, deixei de lhe exprimir o sincero desejo de me aproximar dos
seus.
— É o acanhamento natural — justificou o chefe da casa, com bonomia.
O velho professor de Blois interveio, murmurando:
205
— O enderêço? É muito fácil. Sabemos que Alcione tem relações afetivas
com o pessoal da igreja de São Jaques do Passo Alto. Basta recordar que ali
visitamos os despojos do seu tutor...
— É verdade — concordou Cirilo —, como não me havia lembrado antes?
Mandaremos o cocheiro tomar informações ainda hoje.
Susana, que se interessara vivamente pela lembrança paterna, tomou as
primeiras providências, chamando o servo para a incumbência.
— Então, Cirilo — disse a dona da casa —, podemos ir amanhã cedo a
São Marcelo, caso tenhas tempo disponível.
— Eu também vou — disse Beatriz, resoluta-mente.
Observando a atitude da neta, o velho Jaques lembrou:
— Será melhor irmos todos. Além de atender a uma obrigação agradável,
creio que faremos belo passeio, em arrabalde que pouco conhecemos.
O chefe da família concordou alegremente, apesar da objeção que a
espôsa fazia com o olhar.
No dia imediato, por volta das dez horas, elegante carruagem entrava na
ruazinha modesta, em que Madalena curtia a sua pobreza. Muitos moradores
entreolhavam-se espantados.
Arrancada por Luisa da cabeceira da enfêrma, cuja agonia se prolongava
dolorosamente, Alcione foi à porta atender a quem a chamava com tanta
insistência. Reconhecendo que os Davenport se aproximavam sorridentes, seu
primeiro impulso foi recuar, tal o assombro. Nunca encontrara na vida momento
tão amargo. Quis caminhar, sorrir, mostrar-se calma e, no entanto, seus lábios
se prenderam, enquanto estranho palor lhe cobria a face num ricto de espanto.
O coração batia-lhe descompassado. Que iria suceder em tais circunstâncias?
A agonizante, desde a madrugada, falava em voz alta, da chegada do espôso.
Impossível evitar que os Davenport a ouvissem. Num ápice, porém, lembrou-se
do seu contato com as lições de Jesus e procurou dominar-se. Certo, o
Evangelho não seria apenas um roteiro para os momentos fáceis. Era
indispensável provar-lhe o valimento em tôdas as situações da vida. Olhou
instintivamente o céu e disse consigo mesma: — “Senhor, ajudai-me a
compreender vossa divina vontade !“
Seu desfalecimento durara um instante. Energias cariciosas balsamizavamlhe
o coração dorido e ansioso. Não lhes podia determinar a fonte, mas estava
certa de que Jesus lhe enviava sua bênção.
Nesse comenos, os visitantes já estavam junto dela, menos risonhos, por
haverem percebido na sua atitude algo de grave, que não podiam prever.
— Que foi, Alcione? — perguntou Susana preocupada, abraçando-a. - —
Assim tão pálida? A doente piorou?
Mais calma, a jovem teve fôrças para murmurar:
— Mamãe está expirando.
Cirilo e Jaques, sinceramente compadecidos, abraçaram-na,
comovidamente. Beatriz, como se desejasse prestar serviço imediato,
adiantou-se ao grupo, varando casa a dentro. Alcione acompanhou-os à
pequena sala de visitas, que dava justamente para o quarto da agonizante,
convidando-os a sentar-se, com a gentileza que lhe era inata. Percebendo o
empenho que tinham em socorrê-la naquele transe, seu primeiro desejo era
correr ao quarto de sua mãe e esconder as lembranças paternas, que lá
estavam em cima da mesa; mas Susana e Cirilo, poderosamente atraidos para
o quarto da agonizante, levantaram-se procurando lá entrar, no intuito de
206
prestar qualquer auxílio.
A moça empalideceu e exclamou:
— Por favor, não entrem agora!...
A voz timbrava um mundo de aflições, que ninguém poderia perceber.
Cirilo, porém, afagando-lhe a cabeça num gesto afetuoso, tentava dissipar-lhe
a inquietude:
— Não te acanhes, minha filha! Tuas dores são nossas também!...
Ela os acompanhou, quase cambaleante.
Nesse momento, Madalena deu um grande grito, misto de emoção e júbilo.
— Cirilo!... Cirilo!... — bradou, julgando-se visitada por uma sombra — por
que demoraste tanto? Ai! que longos anos de separação, que noites de
angústia! Mas, agora, me levarás contigo para o mundo onde não existem nem
sorvedouros, nem mar!...
O casal dava mostras de profundo terror. Magnetizado por estranha fôrça,
o filho de Samuel colou-se à cabeceira do leito. Não podia enganar-se. Era
Madalena, sim, envelhecida e semimorta.
As mãos de cera, as rugas do rosto, a cabeleira maltratada de moribunda,
não revelavam a carinhosa e bela companheira da mocidade; mas aquêles
olhos profundos e lúcidos, a voz inesquecível, não podiam deixar qualquer
dúvida.
— Que vejo? Que vejo eu? — murmurava o negociante de fumo,
terrivelmente surpreendido.
Madalena como que alucinada de alegria e de dor, estendia-lhe as mãos
cadavéricas, exclamando:
— Vê como Alcione cresceu. Moça e bela!... Nunca contemplamos juntos a
nossa filha!... Ela foi o meu consôlo na viuvez, o meu refúgio nos dias de
saudade... Vê nossa casa como está pobrezinha! Mas Deus habita conosco em
santa paz! Antes que a notícia da tua partida para o Céu me chegasse aos
ouvidos, eu já havia perdido tudo da nossa felicidade de outros tempos... Fiquei
só, Cirilo, mas Jesus começou a restituir-me a ventura que desaparecera... Não
haverá no mundo hora mais feliz do que esta em que nos reunimos, para sempre,
depois de tão longa separação...
Alcione, revelando poderosa energia moral, aproximou-se da genitora,
enxugou-lhe o suor e afagou-a murmurando:
— É preciso acalmar-se, mamãe...
- Não estou alucinada, filhinha — retrucava Madalena de olhos fulgentes
—, não vês o que vejo no limiar da morte... Ainda não podes divisar as feições
de teu pai, que voltou do sepulcro para me levar com ele...
— Minha mãe tem experimentado longos delírios — exclamava Alcione
timidamente...
Mas, voltando-se para os dois circunstantes, observou que Susana, lívida
de mármore, ajoelhara-se, enquanto o genitor fixava a agonizante com ares de
alucinado.
— Tua lembrança — continuou a dizer Madalena, dirigindo-se ao espôso —
sempre andou conosco, em tudo e em cada dia. Ali estão os teus cadernos de
anotações, tua Bíblia, o livro de contos irlandeses...
Cirilo Davenport esboçou um gesto de profundo espanto, como a registrar
a confirmação da tremenda surprêsa.
— Estão limpos e intactos... — prosseguia a agonizante, dando satisfações
do seu cuidadoso dever — tôdas as semanas, repetíamos o trabalho de
207
conservação e limpeza, com o pensamento em ti, para que nos visses lá do
Céu!...
O filho de Samuel, mudo e trêmulo, aproximou-se da mesa. Sua palidez
aumentava à medida que ia reconhecendo antigas notas de trabalho na
Sorbone.
Susana, a seu turno, jamais poderia definir a angústia que lhe oprimia o
coração. Via o que nunca poderia prever, na sua perversidade de outrora.
Madalena Vilamil ali estava à sua frente, desafiando-lhe a consciência onusta
de acerados remorsos. Anos de angustiosa expiação íntima haviam passado.
Quantas vêzes procurara, à sombra dos altares, um bálsamo para as torturas
do coração? Tudo inútil! Apenas, naqueles últimos tempos, conseguira um
farrapo de esperança com o culto doméstico em que Alcione esclarecia tão
bem o problema das fraquezas humanas e da bondade de Deus. Agora,
entretanto, sentia-se convocada ao testemunho pungente. Sômente agora
compreendia a primeira impressão de repulsa, quando Alcione lhe entrara em
casa, simpatizada por todos. Era impossível que ela ignorasse o segrêdo
terrível. Contudo, pelas palavras da agonizante, pela situação geral,
compreendera que a filha de Madalena dispusera-se a um sacrifício quase
sôbre-humano. Filha de Cirilo, suportara o papel de serva em sua casa e vítima
do seu crime, nunca levantara a voz para fazer a mínima acusação... Quem
teria dado fôrças àquela criatura tão simples, para tolerar tamanho opróbrio do
destino, sem um gesto de indignação e desespêro? A filha de Jaques lembrou
as magníficas inspirações no culto doméstico do Evangelho. Alcione sempre se
referira a Jesus como divino hóspede do seu coração. Do Mestre é que devia
escorrer o manancial de tantas energias. E foi assim, ali, defrontando sua
vítima nas vascas da morte, que a infeliz criatura experimentou sincera e
dolorosa contrição. Os sofrimentos de Madalena e os heroísmos de Alcione
falavam-lhe muito alto daquele Cristo, que tantas vêzes lutara por compreender,
sem resultados apreciáveis. Entendia, afinal, que um exemplo, às
vêzes, podia substituir um milhão de palavras. Naquele momento, por certo,
Jesus lhe impunha a confissão do crime nefando. Angustiosa batalha travavase-
lhe no íntimo atormentado. Onde estaria Antero de Oviedo, o comparsa da
trama sombria? Não seria melhor atribuir-lhe a culpa do feito execrável? A
família Davenport estava certa de que ela apenas assistira à morte de D.
Inácio. Sempre afirmara ter chegado a Paris no dia seguinte ao sepultamento
da rival e para comprová-lo tinha o documento do cemitério. Seu velho pai era
testemunha da sua saída de Blois e podia conferir mentalmente a data da sua
chegada a Paris. Ela também já havia lutado muito. O consórcio, não obstante
a vida de fausto que levavam, nunca lhe dera a felicidade ardentemente
esperada. Alguns fios brancos já lhe riscavam a cabeleira, traduzindo o
cansaço da vida. Não seria, também, mais acertado preservar a ventura de
Beatriz, isentando-a da venenosa recordação de uma mãe ignóbil? E seu
venerando pai? Como receberia a confissão dolorosa? Nessa terrível batalha
em que os impulsos inferiores propendiam para exibir uma falsa inocência,
para que o sobrinho de D. Inácio fôsse o único culpado, Susana Davenport
sentia-se morrer. Daria mil vêzes a vida para tomar o leito da agonizante e
entregar-se à morte, em seu lugar. Quando o mal estava a pique de triunfar
concretizado em ato extremo, ela relembrou o vulto de Alcione nos seus
sacrifícios diários. Quanto não teria sofrido a pobre menina para suportar o
serviço a que fôra conduzida, talvez ignorante de que, ao procurar a
208
subsistência, batia à porta do próprio pai? E Madalena? Quantas privações
duras e amargosas não deveria ter experimentado? Acerbo sentimento de pejo
empolgou-a inteiramente. Sentiu-se, depois, envolvida nas alocuções
evangélicas do culto familiar. Jesus estava sempre pronto a acolher os
desamparados, os falidos, os criminosos e impemtentes do mundo; mas não
era lícito recalcitrar. O Mestre fornecia recursos à retificação dos erros;
entretanto, o maior dos crimes deveria ser o reincidir no mal, perante o Mestre,
tendo a noção de seus ensinamentos. Um vulcão de lavas ardentes rompia-lhe
do peito, devorava-lhe o cérebro em cachoar de brasas vivas. Em meio de
tanta desolação Intima, dúlcida voz lhe falava à consciência dilacerada: —
“Confessa! Confessa e acharás o caminho para Deus...
Nesse instante, Cirilo Davenport, aterrado com os documentos que revirava
nas mãos, voltou-se para Alcione, buscando esclarecimentos, mas, vendo-a
tão calma e transparente de candura, desistiu de lhe magoar o coração tão
cedo sacrificado e dirigiu-se automàticamente a Susana, que se mantinha
muda e genuflexa.
Alcione percebeu que se iniciava o penoso processo de reparação e
aclaramento, e sentou-se ao lado de sua mãezinha, murmurando com carinho:
— Quem sabe, mamãe, a senhora desejará um pouco d’água?...
— Não... não... — dizia a agonizante, parecendo interessada em não
perder de vista a silhueta de Cirilo — onde está Robbie? Quero apresentá-lo a
Círilo como nosso filho de criação...
Cirilo, porém, profundamente acabrunhado, retirara-se a um canto do
quarto, onde Susana continuava ajoelhada.
— Que pensa de tudo isso? — inquiriu êle extremamente pálido.
Ela teve a impressão de que aquela voz era um libelo terrível. Como se
despertasse de medonho pesadelo, respondeu confusa:
— É ela!...
— Mas... explica-te — insistiu transfigurado pelo sofrimento.
A filha do professor de Blois, no último esfôrço para vencer-se a si mesma,
olhou para Alcione como a buscar na sua efígie a energia precisa àconfissão
dolorosa, afirmando em seguida:
— Foi o maior crime da minha vida!
Cirilo fêz um esfôrço inaudito para não baquear aturdido.
— Que diz? — perguntou aterrado.
Mas Susana enterrara novamente a cabeça nas mãos; e o marido,
cambaleante, deu alguns passos, abriu a porta e chamou o velho Jaques. O
venerando ancião, pela fisionomia estuporada do sobrinho, compreendeu de
relance que algo havia de muito grave. Beatriz ficou só, folheando um livro.
— Meu tio — exclamou Cirilo amargamente, designando a agonizante —‘
esta é Madalena e Alcione é minha filha!...
O velho Jaques estuporou-se também. Era ela, sim! Não obstante o
abatimento físico da extrema hora, identificava a filha de D. Inácio Vilamil,
detalhe por detalhe. E sentia-se estrangulado pela surprêsa angustiosa. Dava a
impressão de se haver petrificado pelo sofrimento. Queria amparar Cirilo, mas
todo o corpo lhe tremia ao impulso da violenta comoção. Foi o próprio sobrinho
quem lhe deu a mão, impedindo-o de tombar, ali mesmo, diante da agonizante.
Nesse instante, porém, Jaques orou com fervor jamais sentido em tôda a vida,
exorando fôrças para atender a amarga conjuntura do momento. Passado o
primeiro choque, teve fôrças para interrogar:
209
— Como se explica isso?
A filha levantou-se, em pranto convulsivo, emocionada com o testemunho
inelutável, e, arrostando a angústia paterna, abraçou-se ao velho genitor, como
a procurar o perdão de um espírito sempre generoso.
— Meu pai!... meu pai! — clamava entre lágrimas.
Foi aí que Cirilo, respondendo à pergunta do tio, exclamou quase sufocado:
— Susana deve saber tudo!... Já me afirmou que êsse foi o maior crime de
sua vida!...
O velhinho, estupefato, recordou maquinal-mente a remota noite de Blois,
quando a filha se agastara com a sua adesão ao projeto do sobrinho de
esposar a senhorita Vilamil. Parecia-lhe ter diante dos olhos o quadro que o
tempo não conseguira esfumar, ouvindo a confissão de Susana, de que
também amava o rapaz. Relembrou as suas atitudes no lar, a ojeriza constante
à Madalena, a insistência em desposar o primo viúvo, lá nas plagas
americanas.
De pronto repassou a tela das reminiscências vivas, par a fixar depois o olhar
na agonizante e na filha, considerando a dolorosa jornada de ambas. De que
paragens de dor chegava Madalena Vilamil até ali, com as rugas lavadas de
lágrimas e coberta de cãs prematuras? Pelas informações de Alcione, deveria
ter vivido muito tempo na Espanha... Quem a teria conduzido a regiões tão
distantes? A exemplificação da filha constituía, naquele momento, um atestado
de glória espiritual. Sômente agora compreendia o suave e irresistível magnetismo
que ela exercia sôbre todos os de casa. Era preciso, entretanto, ter um
coração perpêtuamente unido a Deus para praticar o amor qual o fazia a jovem
humilde, que ali se encontrava em atitude confiante, no cumprimento de um
dever tão sagrado quão doloroso, O quadro o impressionava para sempre.
Ponderando tudo isso, Jaques Davenport convocou as suas possibilidades
morais para conservar a serenidade imprescindível e obtemperou, com afetuosa
energia:
— Avalio que ação negra se mascara por detrás da nossa angústia!...
E observando que os dois se achavam incapacitados de dominar a própria
emoção, lembrou sensatamente:
— Deus nos está mostrando o ígneo bulcão de amarguras em que
Madalena consumiu as energias de espôsa e mãe! Podemos imaginar que
espécie de infâmia lhe argamassou o infortúnio. Mas, penso que se a
pobrezinha foi reduzida a tamanha expressão de sofrimento, em tôda a vida,
não devemos perturbar-lhe o sono da extrema hora. É preciso defender a paz
dos mortos!...
Ditas essas palavras, dirigiu-se à filha, exclamando:
— Vai-te para casa com a Beatriz. Depois falaremos.
E voltando o olhar para o sobrinho, murmurava comovido:
— Quanto a ti, meu filho, que Deus te dê fôrças!.
Susana contemplou, pela última vez, Madalena no seu leito de morte e
encaminhou-se para a porta, vacilante. Beatriz, que esperava calmamente na
sala, não dissimulou o espanto ao ver a transfiguração da genitora.
— Que foi, mamãe? — interrogou ansiosa.
— Não te assustes — esclareceu a infeliz com dificuldade —, a mãe de
Alcione está expirando... Vamos. Teu pai e teu avô ficam até mais tarde...
— Pobre Alcione! — murmurou a mocinha ingenuamente.
Enquanto a carruagem regressava, depois do meio dia, no quarto modesto
210
de Madalena Vilamil a cena dolorosa continuava. Jaques identificou um por um
dos papéis que estavam sôbre a mesa. Depois de muito lagrimar, sentou-se
contemplando a agonizante, com grande amargura. Sufocado de dor, o esposo
apoiava-se no leito mortuário, como querendo galvanizar as últimas
manifestações da agonizante com indomável ansiedade. Jamais Cirilo
conhecera pranto tão acerbo. Obedecendo às reclamações insistentes da
genitora, Alcione trouxe Robbie ao aposento.
— Este, Cirilo — dizia a agonizante, exânime —, é também nosso filho pelo
coração... Criei-o amorosamente desde o dia em que nasceu... Ajudar-me-ás a
pedir por êle aos pés de Jesus! Nunca o deixaremos só!...
E dando a impressão de querer consolar o rapazinho, acrescentava:
— Estás vendo, Robbie? Por que temer os padecimentos do mundo, se
temos outra vida? Não dês importância aos que te escarneçam, meu filho!...
Tudo passa na Terra!... Por que haverás de permanecer em tristeza no mundo,
quando sabes que te esperamos no Céu?
Fêz uma longa pausa, que ninguém se sentia com coragem de
interromper. Ao cabo de alguns instantes, acentuava com placidez
inconcebível, dirigindo-se ao filho adotivo:
— Toma a bênção a teu pai, Robbie!... Pede-a também ao amigo que o.
acompanha!... (1)
Então, verificou-se a cena tocante, que provocava novo contingente de
lágrimas copiosas. Com sincera humildade, o pequenote atendeu, beijando a
mão dos dois homens para êle desconhecidos.
O filho de Samuel contemplou-o, comovido. Jamais poderia dizer porque o
pequeno descendente de escravos o atraía tão fortemente. Num gesto
espontâneo, abraçou-o com ternura e murmurou:
— Serás também meu filho!...
Decorreram longas horas, pesadas, tristes.
(1) Madalena Vilamil permanecia entre as impressões de dois mundos,
como acontece à maioria dos moribundos. — Nota de Emmanuel.
À tarde, Madalena Vilamil pareceu mais serena e mais lúcida. Em dado
instante chamou a filha e declarou:
— Minha mãe e padre Damiano também chegaram... é o momento de
partir...
Alcione recordou a revelação da véspera e ajoelhou-se. Em preces silenciosas,
rogou a Jesus recebesse a genitora em seu reino de verdade e de amor, que
lhe atenuasse as últimas amarguras A agonizante manifestou desejos de
Confortar a filhinha, formulando carinhosas promessas de amor maternal;
contudo, seus lábios apenas denunciavam o esfôrço supremo. Em profundo
desespêro intimo, Cirilo estendeulhe a mão, que ela apertou fortemente, como
a selar uma eterna aliança e, aos poucos, entregava-se ao grande Sono.
Belos tons de crepúsculo invadiam a natureza, quando Madalena partiu.
Pesada angústia desabara sôbre a casa de São Marcelo, onde se ouvia a voz
de Robbie em dolorosos lamentos de criança inconsolável
O velório teve a presença de numerosos vizinhos, tão pobres quanto os Vilamil.
No entanto, Cirilo Davenport, embora taciturno e desesperado tomou tôdas
as providências que a situação exigia. A modesta vivenda encheu-se de servas
improvisadas, proporcionando à Alcione e à velha Luisa o repouso de que
211
necessitavam. o cadáver foi amortalhado regiamente. As pessoas presentes,
que tinham relações com a morta, surpreendiam-se em face de tamanha
generosidade.
O espôso de Madalena Vilamil não saberia explicar o seu estado íntimo. Mil
pensamentos lhe turbilhonavam no cérebro incandescido. Tinha ânsias de
conhecer todos os informes de Susana, para avaliar a natureza da sua falta e
Puni-la sem quartel. Procurava recordar as lições do culto doméstico,
concernentes à confiança em Cristo e ao perdão, mas os ensinamentos
evangélicos pareciam-lhe agora envolvidos em nuvem distante. A idéia de uma
reparação à espôsa, ofendida e sacrificada, era a nota dominante no seu
espírito. Procuraria conhecer tôda a extensão do crime que reduzira a companheira
a situação tão amarga, castigaria severa-mente os algozes. Desejava
aproximar-se das recordações filiais, sentando-se junto de Alcione com a
poesia do seu coração de pai; mas, era indispensável resolver primeiramente o
caso da espôsa traida. Depois de tranqüilizar a consciência, então elevaria
Alcione ao merecido altar. Aquilatava-lhe o valor moral, a grandeza dos
sentimentos. Quanto não teria sofrido antes de fazer-se simples cantora da rua,
qual a encontrara pela primeira vez? Ele ainda não sabia entregar a Jesus as
situações sem remédio no mundo, desejava dar uma satisfação plena ao seu
amor próprio ofendido. A seu ver, impunha-se, antes de tudo, restabelecer a
honra pessoal. Submerso em amargura sombria, passou a noite vígil sem um
momento de tréguas à mente incendiada por idéias quase sinistras. Que fizera
Madalena durante tantos anos na Espanha? Quem havia forjado a burla da sua
morte? Como vivera em separação tão amarga? As conjeturas atropelavam-selhe
no cérebro, sem resposta. Depois de uma consulta ao cemitério dos
Inocentes, recebia na manhã seguinte a notícia de que era impossível abrir um
túmulo na mesma zona onde se haviam sepultado os variolosos de 63. Embora
não pudesse satisfazer o desejo de inumar a morta inesquecível ao lado dos
despojos do fidalgo espanhol, ordenou que o funeral se fizesse com o destaque
possível. Alcione acatou-lhe os mínimos desejos, com humildade. Padre
Amâncio, solicito, cuidou de todos os pormenores, sem disfarçar a surprêsa
que a atitude dos Davenport lhe suscitava.
Quase à noitinha, grande carro estacionou junto ao palacete da Cité. Dêle
apeavam-se Jaques e Cirilo, acompanhados de Robbie e Alcione. Na antiga
casinha de São Marcelo, apenas ficara a velha serva, aguardando solução
definitiva a seu respeito.
Cirilo demandou o ambiente doméstico, assomado de poderosa
inquietação. Susana recebeu-o desfigurada, abatida, parecendo haver
envelhecido vertiginosamente.
— Não temos tempo a perder — disse êle com expressão rancorosa —,
precisamos ouvir-te na sala de leitura. Onde está Beatriz?
— Por piedade! — exclamou ela desesperada — poupa-me a vergonha de
apresentar-me à nossa filha como criminosa!
— Não posso — respondeu Cirilo inflexível —, Ignoro que providências terei
de tomar para desobrigar-me com a minha consciência e não quero que Beatriz
mais tarde possa julgar-me injustamente.
Muito pálida, Susana encaminhou-se ao local indicado. Nesse momento, a
pedido de Alcione, Robbie era recolhido ao leito por um velho criado.
Daí a minutos, a filha de Madalena, muito constrangida, figurava ao lado
dos Davenport para as investigações amargas. Depois de sentados, Cirilo
212
dirigiu-se a Beatriz nestes têrmos:
— Minha filha, ontem tivemos a revelação de que Alcione não é tua
governanta e sim irmã mais velha. A agonizante que fomos visitar, e que o
túmulo recebeu hoje à tarde, era minha primeira espôsa — Madalena Vilamil!
Nunca pude saber o drama cruel que se formou no meu caminho, mas tua
mãe, que deve ter lembranças bem nítidas do passado, vai expor certos fatos
que nos poderão esclarecer.
A jovem Davenport tornou-se lívida. Jamais pudera imaginar que, por trás
da felicidade doméstica, dormissem angústias como a daquela hora
inesquecível.
Susana, que se assentara um tanto afastada, afigurava-se antes uma ré
acabrunhada e aflita, sem saber como iniciar a confissão do seu crime.
O velho Jaques, referto das experiências da vida, contemplava a filha num
misto de dor e de vergonha. Círilo tinha os olhos fuzilantes de ansiedade.
Alcione recolhia-se em preces fervorosas no santuário do coração.
A infeliz criatura começou, dificilmente, a revelar, detalhe por detalhe, a
enorme culpa da sua vida. De vez em quando, um soluço abafado a interrompia.
A confissão prolongava-se por mais de uma hora, e, como se
obedecesse a poderosos imperativos da consciência, Susana não omitiu a
menor particularidade. Emocionadíssima, pintava os seus estados dalma na
época em que estudava tôdas as possibilidades do plano criminoso, para
conquistar definitivamente o homem amado. Minudenciou as atitudes de Antero
Oviedo, descrevendo os antecedentes de suas relações com êle, os passeios
que faziam e nos quais o sobrinho do fidalgo espanhol dava-lhe a conhecer a
imensa paixão pela prima. Por fim, em frases comovedoras, narrou as cenas
da varíola, de 63, a visita ao cemitério dos Inocentes, as sugestões sinistras
que um nome lido ao acaso, no velho registro de notas fúnebres, lhe suscitara.
Quando terminou, sob o olhar aterrado do genitor e do companheiro, e com
os soluços abafados das duas jovens, ajoelhou-se e suplicou:
— Conheço a vileza do meu crime e Jesus, que me preparou a alma para
fazer esta confissão dolorosa e horrível, é testemunha dos longos sofrimentos
que tenho amargado. A paixão me levou ao desvario de comprometer para
sempre a paz de minhalma. Realizei o louco intento, vali-me de todos os
recursos, meus e de meus amigos, para esposar Cirilo, crente de que,
aparceirada com Antero, poderia corrigir um êrro do destino. Mas a verdade é
que nunca encontrei um ceitil da felicidade ardentemente desejada... Os
criminosos não podem lograr, nunca, a realidade do seu ideal. Aprendi
cruelmente que não pode haver paz fora do dever cumprido; que não há alegria
sem aprovação da consciência tranqüila. É verdade que infelicitei Madalena
com a minha insânia de amor, mas não o é menos que lhe invejo agora a
calma espiritual, a fé sincera e confiante com que se entregou a Deus no último
transe! Ai de mim! O confôrto material que o mundo me concedeu é uma ironia
da sorte. Para mim, que atravesso a vida taganteada pelo remorso impiedoso,
os palácios são túmulos dourados, tudo se resume em punhados de sombra e
de miséria! Sei que perante Beatriz sou mãe desnaturada e alma mesquinha;
que perante meu pai sou a imagem da ingratidão imperdoável; que perante
Alcione sou mulher sem coração! Para Cirilo não passarei de malvada e
diabólica; mas, se puderem, peço de joelhos que me ajudem o espírito
cansado, com o perdão da imensa falta! Não sei quantos anos me restam de
vida neste mundo, mas prometo-lhes humilhar-me a todo instante, penitenciar213
me como serva de todos, a fim de trabalhar pela minha salvação... Jesus, que
me deu a coragem de confessar o crime, não me há de faltar com as energias
necessárias ao esfôrço regenerador!...
Nesse momento, fêz uma pausa mais longa. Jaques, estático, permanecia
calado, Alcione e Beatriz choravam amargamente. O marido infelicitado,
porém, parecia dementado pela dor. Olhos arregalados como a fitar o passado
de sombras, Cirilo Davenport transportara-se em espírito ao ano de 63,
esquecera momentâneamente todos os trabalhos e deveres das segundas
núpcias. À sua frente via Madalena ultrajada, humilhada, perseguida. Sentia-se
rodeado de inimigos implacáveis, que se haviam alojado em seu próprio
coração. A idéia de vingança se lhe embutira no cérebro com vigor incoercível.
Apesar dos conhecimentos evangélicos, não podia libertar-se da velha
concepção que impunha lavar com sangue a dignidade ferida. Pela primeira
vez, experimentava o supremo ultraje ao nome, à honra pessoal, ao amor
próprio ofendido.
Enquanto se perdia em dolorosas reflexões, Susana fixou nêle o olhar e
exclamou compungidamente:
— Perdoa-me e terei fôrças para me transformar!...
Soluços amargos acompanharam o apêlo. Mas o filho de Samuel, com
feições de louco sacou de um punhal e, cambaleando e rugindo, ameaçadoramente,
acercou-se da postulante, bradando:
— Não há perdão para o teu crime, Susana! As víboras hediondas devem
ser esmagadas.
Entretanto, num ápice, Alcione colocou-se entre êle e a infeliz. Observando
a atitude impulsiva e resoluta do genitor, abraçou-se à filha de Jaques e,
quando viu que a mão armada ia desferir o golpe, exclamou com acento
inesquecível:
— E Jesus, meu pai?
O braço ultriz pendeu inerte. Era preciso recordar Aquêle que não
desdenhara o madeiro infamante. Cirilo sentiu-se apossado de estranhas e
novas sensações. Pela primeira vez, Alcione lhe chamava “meu pai”. Por que
não lhe seguir a exemplificação de sofrimento e sacrifício? Madalena havia
partido em paz. Quem sabe poderia acompanhá-la na mesma tranqüilidade de
coração? Por que arruinar o porvir com uma ação execrável? Recordava, agora
que as lágrimas lhe manavam dos olhos doridos, as lições evangélicas do culto
doméstico. Ninguém poderia sanar um mal com outro mal, resgatar um crime
com outro crime. O pranto corria-lhe em onda volumosa, quis andar livremente,
mas uma sensação de súbito mal-estar lhe anulava as fôrças. Não conseguiu
senão arrastar-se com dificuldade e, apoiando-se em Alcione, que acabava de
acomodar Susana no divã, entregou-lhe a arma perigosa, como a dizer que
renunciava a toda idéia de vingança por suas próprias mãos. Jaques e Beatriz
perceberam que Cirilo sentia algo de grave e correram a ampará-lo.
— Meu pai, meu pai — dizia a filha de Susana em tom angustiado —, não
te entregues assim ao sofrimento!.
Ele, porém, não mais respondeu ao chamado dos circunstantes e foi
conduzido ao leito, desfalecido, em deplorável situação.
Cirilo Davenport não resistira ao sofrimento que lhe causara a revelação
tenebrosa. Alguns vasos cerebrais se romperam em penhor de morte. Mais de
um médico foi convocado, a salvar o rico negociante de fumo, mas não houve
meios de o seqüestrar ao coma.
214
Beatriz estava inconsolável. Enquanto Jaques e Susana atendiam à
situação angustiosa, no quarto do enfêrmo, Alcione, considerando que a
mocidade é sempre mais inquieta e inconformada, dirigiu-se ao aposento da
irmã, no intuito de lhe preparar o espírito em tão graves circunstâncias. Era
indispensável manter-se acima do próprio sofrimento, por corrigir o que fôsse
possível.
— Ah! Alcione — exclamava a mocinha soluçando —, como detesto minha
mãe!...
— Não diga isso! revidava a interlocutora emocionada — então, Beatriz, em
tão poucos momentos de provação e testemunho, já esqueceste o perdão que
Jesus nos ensinou? Recorda os deveres filiais que devem ser sagrados em
nossa vida!...
A filha de Susana, contudo, dando expansão a velhos sentimentos, não
concordava, murmurando:
— Mas a mãe que Deus me deu é desleal e criminosa!...
— Por que não dizer antes que D. Susana foi doente do espírito quando
lhe despontaraxn os primeiros sonhos da mocidade? Não seria mais nobre
julgar assim? Por que, Beatriz, ver tão sômente o mal, quando Jesus sempre
nos inclina a ver as qualidades mais preciosas da criatura? Nesta casa, há
velhas servas trazidas da América, que abençoam tua mãe todos os dias, pelos
benefícios dela recebidos... Nada se perde no caminho da vida... Quem
encontra fôrças para julgar os próprios erros já recebeu do Senhor alguma luz.
E vendo que Beatriz se lhe conchegava ao peito, com lágrimas
angustiosas, continuava:
— Não te penalizou vê-la soluçante, em confissão que nos foi
particularmente dolorosa? Não lhe notaste a expressão de vergonha e
padecimento quando se ajoelhou a exorar perdão? Cala as tuas mágoas e
procuremos compreender a mensagem que Jesus nos destinou.
— Mas, quanto haverá sofrido tua mãe em conseqüência dêsse crime?
— Sim, sofreu e lutou muito, mas hoje descansa das fadigas terrenas,
abençoando, talvez, as lágrimas vertidas neste mundo. E, porque tenhamos
chorado muito, será justo atormentar a mãe que Deus te concedeu...
— Ouço as tuas observações carinhosas, quero guardá-las no espírito,
mas não posso! A lembrança da confissão desta noite destrói minha felicidade,
alguma coisa me turva o pensamento... desejo raciocinar, esquecendo o mal, e
não posso.
— É porque ousas enfrentar as penas do mundo sem o Cristo. Estamos na
Terra para adquirir ou provar alguma virtude. Na realização dêsse escopo não
podemos desafiar a luta sozinhas! É imprescindível buscar a companhia do
Divino Amigo, para sermos esclarecidas a tempo! Jesus tem uma palavra
luminosa para cada situação, uma energia inspiradora a cada momento mais
amargo, desde que lhe busquemos o socorro divino!...
A jovem Davenport sentiu profundamente o alcance sublime da advertência
e acalmou-se. Daí a instantes, voltou a dizer:
— Compreendo, sim, a elevação de teus conselhos fraternos; entretanto,
não me furto ao receio de que papai não resista a esta tragédia que nos aperta
o coração... Esperarei que Henrique chegue para contar-lhe o que se passa.
Muitas vêzes tem êle falado da possibilidade de nos casarmos breve. Se o
papai não escapar da morte, concordarei, pois assim, pelo menos, poderei
deixar a companhia de mamãe e oferecer ao vovô tranqüilidade para o resto
215
dos seus dias.
— Não penses tal. Não poderemos desamparar tua mãe. Quanto ao mais,
nada dirás ao Sr. de Saint-Pierre. Não temos o direito de confiar a ninguém a
dolorosa revelação do nosso caso. É preciso lançar a rega do silêncio e da paz
à fogueira das lucubrações tormentosas, para que nossa existência não se
transforme em voraginoso inferno.
Beatriz concordou.
Dentro de poucas horas o noivo aparecia cheio de interêsse familiar.
Outras visitas se sucederam durante a noite. Fatigadíssima, Alcione mantevese
no seu papel de serva, em que todos a conheciam. A alvorada encontrara
Círilo moribundo. Decorridas vinte e quatro horas do tremendo choque, o filho
de Samuel desprendia-se do mundo para a vida espiritual.
O palacete da Cité logo se cobriu de crepes negros. Pesada atmosfera se
espalhou no solar do abastado comerciante de fumo.
No dia seguinte o velho Jaques teve fôrças para providenciar o
enterramento do sobrinho, ao lado do túmulo de Madalena Vilamil. O amoroso
casal, que vivera separado pela astúcia maliciosa do mundo, reunia-se agora
para sempre.
O funeral realizou-se com muita pompa, na tarde imediata à do falecimento.
Numerosos eclesiásticos acompanharam o féretro com luxuosas exéquias. A
viúva, com ares de alucinada, seguiu o cortejo amparada por Alcione, que lhe
dava o braço com zelos filiais. Mas, quando os padres disseram as últimas
palavras do ritual para que o corpo baixasse à campa, ouviu-se estranha
gargalhada no ambiente silencioso e triste.
A assistência numerosa entreolhou-se atônita e curiosa!
Susana Davenport havia enlouquecido...
216
5
Provas redentoras
A vida familiar no palacete da Cité tornara-se bem amarga. A viúva
Davenport perambulava pelos aposentos, dementada e combalida. O velho
Jaques, dominado pelos dissabores acerbos, vivia entre o leito da decrepitude
e as lágrimas sem consolação. Beatriz, na sua mocidade cheia de sonhos,
ainda não saíra da penosa estupefação, dando mostras de singular abatimento.
Foi aí que Alcione fêz valer as virtudes da sua fé, por maneira a satisfazer
plenamente os novos deveres. Nunca abandonava Susana, de quem se fizera
enfermeira dedicada e afetuosa. Robbie continuava trabalhando em São
Jaques, vindo sômente três vêzes na semana visitar a irmã adotiva, sempre
mergulhado em profunda melancolia.
Certa ocasião em que o velho professor entabulou com o rapaz uma
palestra mais longa, Alcione foi chamada pelo generoso velhinho, que a interpelou
carinhosamente:
— Não posso consentir que o nosso Robbie continue ausente desta casa,
por motivos de serviço. Considero mais acertado que deixe a igreja de São
Jaques do Passo Alto, vindo morar conosco. Não podemos esquecer que êle é
teu irmão, isto é, filho adotivo da nossa querida morta.
— Sim — respondeu a jovem, solícita —, nada tenho a opor, mas olhe que
seria uma falta grave o privar meu irmão dos benefícios do trabalho.
— Mas Robbie, Alcione, é muito doente para desdobrar-se em tantas
ocupações.
— Mas o senhor não está de acordo comigo, relativamente às vantagens
de uma vida laboriosa? Não quero parecer cruel, antes quero reconhecer a
magnanimidade do seu coração, com semelhante lembrança; mas o amor ao
trabalho é uma das mais nobres heranças que mamãe nos deixou. Basta
lembrar que, embora paralítica, ela costurou por muitos anos para nos criar e
manter. Além do mais, é sempre útil ao enfêrmo entreter-se com alguma coisa.
A inatividade costuma induzir-nos a falsas apreciações dos desígnios de Deus,
a impaciências, a desesperações e rebeldias...
Percebendo que o amoroso ancião anotava-lhe mentalmente as palavras
com sincera atenção, acrescentava, dirigindo-se ao rapaz:
— Não é verdade que sempre ganhaste muito com a dedicação ao
trabalho, Robbie?
— Sim, isso é incontestável.
Mas, deixando perceber que desejava umas tantas alterações de regime,
acrescentava:
— Entretanto, se possível, gostaria de transferir-me de São Jaques para
outra parte. As recordações de São Marcelo me acabrunham e, depois,
aquelas crianças irônicas muito me atormentam com os dichotes e indiretas.
Ora, Robbie — disse Alcione com bondosa austeridade —, ainda te
preocupas com as tolices de meninos ignorantes?
— Estão sempre a tecer comentários dos meus aleijões..
— E que tem isso? Quando cumprimos nosso dever perante Deus e a
consciência, a grosseria ou a ingratidão dos outros são relegadas ao baixo
plano a que pertencem.
O bondoso ancião acompanhava a neta admirado de ver como conseguia
aliar tão fàcilmente a energia à meiguice.
217
— Se invocas as lembranças de São Marcelo prosseguiu a moça
ternamente —, dando-me a entender tua saudade de mamãe, recorda que ela
cumpriu o seu dever até ao fim, nunca nos pediu uma casa mais confortável,
nunca reclamou contra as águas da chuva que invadiam nosso quarto, conservou-
se de agulha na mão enquanto Deus lhe permitiu a graça de trabalhar,
enriquecendo o nosso esfôrço... Os aleijões do corpo, Robbie, são melhores
que os da alma...
O rapaz experimentou certo abalo ao ouvir as últimas palavras.
Reconhecendo-lhe a estranheza, Jaques procurou intervir carinhosamente:
— Alcione tem razão — exclamou atencioso —, o trabalho é uma bênção
de Deus. Não te deves agastar, meu caro Robbie, com os obstáculos encontrados.
Todos nós temos uma dificuldade a vencer na vida. O próprio Jesus
não caminhou sôbre flores.
E dirigindo à neta um olhar significativo, murmurava:
— Apesar disso, minha filha, espero não te aborreças se eu pedir a
Henrique a colocação do rapaz mais próximo de nós. Poderá, por exemplo,
empregar-se nos serviços de São Landry.
O filho adotivo de Madalena agradecia com a expressão satisfeita,
enquanto a jovem concordava:
— Não tenho objeção a fazer, desde que Robbie continue a descobrir,
cada dia, a grandeza do espírito de serviço.
Daí a alguns dias, Henrique de Saint-Pierre, o noivo de Beatriz, conseguia a
mudança desejada, com grande júbilo para o rapaz, que se transferiu
definitivamente para a Cité, podendo assim ficar em contato diário com a irmã
adotiva.
A dedicação de Alcione à viúva Davenport era um exemplo vivo de amor, a
calar fundo no coração dos familiares. A própria Beatriz parecia mais concentrada
nos problemas graves da vida. Aquêle ar de despreocupação, que lhe
caracterizava a juventude, desaparecera. Tornara-se mais acessível aos
criados, ouvia com interêsse as advertências do avô, que não se sentia muito
encorajado a prosseguir enfrentando as borrascas fortes do mundo, O noivo
notara, satisfeitíssimo aquela transformação. A jovem Davenport aliava, agora,
beleza juvenil, larga dose de reflexão ao cogitar dos problemas do destino e do
sofrimento. A dor abrira-lhe novas POSsibilidades de inspiração religiosa. A
perturbação mental da genitora impedia o culto doméstico, tais as condições
precárias do seu organismo, mas, sempre que lhe era possível, lia e meditava
longa e atentamente O Evangelho de Jesus. Sua conversação tornara-se mais
rica e substanciosa. Alcione tinha com isso grande consolo.
Havia um mês que morrera Madalena Vilamil.
O estado mental da viúva apenas se agravara. Noites inteiras passava ela,
era gritos alarmantes, em sinistras visões. Alquebrado pelos anos, cheio de
achaques e mais pelos desgostos profundos que lhe golpearam o coração, o
tio de Cirilo esperava a morte resignado, Beatriz atendia aos múltiplos
encargos domésticos e apenas Alcione velava pela doente, com as suas
infinitas reservas de amor cristão.
Às vêzes, alta noite, a demente sacudia-se com gestos de pavor:
— Vês, Alcione? Satã vem chegando com as suas sentinelas perversas!
Ah! que desejam de mim? Já confessei tudo... Esta casa não é lugar de
demônios! Voltem para os infernos!... (1)
E rojava-se de joelhos, exclamando:
218
- Deus me livrará das fúrias do Maligno. Porque confessei a verdade,
Satanás persegue minhalma! Não a levarás, bandido!
— Não se exalte, senhora Susana — observava a moça com doçura. —
Vamos orar pedindo a Deus calma e resignação. Tranqüilizes! O poder
(1) Tôdas as manifestações de Espíritos obsessores, no tempo antigo,
eram tomadas à conta de aproximação de Satanás - Nota de Emmanuel.
das trevas se anula ante a luz divina. Vamos fugir para os braços de Deus,
como as crianças que buscam o colo materno quando uma fera se aproxima!...
Suplicava a proteção de Deus, em voz alta, no que era seguida, palavra por
palavra, pela infeliz demente.
Terminada a rogativa, Susana mostrava-se mais calma, agradecia com
sorrisos infantis e ponderava:
— Só o teu coração compreende as minhas necessidades! Todos me
dizem que estou alucinada, que não vejo senão perturbações do meu próprio
espírito! Meu pai me manda reagir sem que eu possa fazê-lo; minha filha crê
que eu esteja sendo vítima de ilusões! Entretanto, Alcione, o demônio vem
sempre ao meu quarto tripudiar do meu remorso intraduzível! Quando oras
comigo, êle se prontifica a sair, mas faz um sinal dando a entender que voltará
no primeiro ensejo!...
— Acalme-se, senhora — procure pensar na magnanimidade da
Providência Divina. Quando se aproximarem os maus Espíritos, ofereça-lhes
um pensamento de sincera confiança no Altíssimo. Peçamos-lhes perdão pelo
mal que acaso lhes tenhamos feito em outras eras, humilhemo-nos recordando
Jesus, que era imaculado e aceitou a cruz imposta pelos algozes...
A enfêrma escutava-lhe as exortações carinhosas, de olhar desvairado e
respondia:
— Teus conselhos são justos... Sabes que meu estado não é apenas uma
alucinação...
— Sim, a senhora não mente.
Ao ouvi-la, Susana Davenport, em pleno desequilíbrio das faculdades
mentais, exibia olhares mais estranhos e replicava, com os seus remorsos
pungentes:
— Já menti quando sacrifiquei tua mãe, mas agora desejo só a verdade...
Porque deixei a falsidade, Satanás me atormenta...
— Tudo isso, porém, passará depressa. — esclarecia a jovem
pacientemente.
— Sim, passará.. passará. — concluía a enfêrma atenuando a exaltação.
Em seguida, a filha de Madalena vigiava, em prece, até que a mãe de
Beatriz conseguisse adormecer.
O ambiente doméstico continuava carregadíssimo.
Numa noite de grandes perturbações, Susana dirigiu-se à carinhosa
enfermeira em pranto convulsivo:
— Não me deixes ir para o cárcere! Já estou sendo castigada rudemente,
minha santa menina! Não será melhor que a morte me colha aqui mesmo,
como lição para todo o mundo? Muita gente na Cité há de evitar o pecado,
quando souber que estou morrendo atormentada, no seio das coisas que pertenciam
a tua mãe!...
— Não pense nisso! dizia a interlocutora generosa, tranqüilizando-a. —
219
Ninguém a levará daqui. Esta casa é sua e pessoa alguma poderá atentar
contra os seus direitos.
— Hoje — voltava a exclamar a louca de olhos esgazeados — vi o infame
Padeiro (1) aproximar-se de meu pai e soprar-lhe alguma coisa aos ouvidos...
Daí a momentos, êle e Beatriz declaravam-se resolvidos a me afastar de casa.
— A senhora ficará comigo — murmurou a jovem Vilamil consolando-a —,
não precisa inquiear-se porque, antes de tudo, Deus nunca nos abandonara.
Com efeito, no dia imediato, ao almôço, dando a impressão de que houvera
pensado muitíssimo, antes de apresentar a proposta, Jaques falou, muito
trêmulo:
(1) O povo de Paris dava ao Espírito das trevas a designação de Padeiro a
fim de não pronunciar a palavra” Diabo” — Nota de Emmanuel.
— Minha querida Alcione, Beatriz e eu estivemos pensando na dilação dos
teus sacrifícios e no melhor meio de atender à situação da nossa doente. Como
talvez não ignores, temos estabelecimentos em Paris onde a enfêrma pode ser
bem tratada, sem exigir tanto da tua proverbial dedicação.
Pensam, assim, em afastá-la do convivio doméstico? — perguntou a
filha de Madalena surpreendida.
— Efetivamente; as prolongadas vigílias te consomem a saúde. Por minha
vez, não te posso ajudar, dado o meu grande esgotamento físico.
— Não, não — retrucou Alcione firmemente, não concordo. D. Susana não
deve, não pode sair daqui. Estou habituada a vigílias e, além disso, a
pobrezinha haveria de sofrer muito.
— Mas estaria a salvo de qualquer necessidade no estabelecimento onde
tencionamos interná-la.
— Mas isso não lhe garantiria a tranqüilidade nem melhoras quaisquer,
pois o de que ela mais necessita é de carinho, no transe doloroso por que
passa. Estou certa de que não lhe faltariam enfermeiras dedicadas, mas, ainda
assim, sempre se consideraria abandonada por nós, no meio de doentes de
tôda espécie, quando pode perfeitamente tratar-se ao nosso lado, sem que lhe
falte o confôrto da ternura familiar.
Beatriz, que prestava grande atenção aos argumentos da irmã, objetou:
— Tua atitude é nobilíssima, porém nós não podemos pôr de lado a tua
saúde. Além disso, as observações de minha mãe, no estado de loucura em
que se encontra, são muito impressionantes para quantos nos visitam.
— Pois eu me comprometo a tê-la sob a minha guarda exclusiva. Não se
preocupem comigo. Sinto-me forte. Os cuidados com a doente vêm constituindo
para mim um grande consôlo. A ausência de deveres imediatos nos
inclina, por vêzes, a reflexões indevidas. Eis por que a companhia de D.
Susana tem sido de imensa utilidade para mim. Desde a partida de mamãe,
sinto certo vazio na alma... Ao tocar o cravo para a enfêrma, recordo-me que
seu espírito deve estar satisfeito. Será possível que desejem suprimir
semelhante satisfação ao meu trabalho diário?
Beatriz lembrou a realização das suas aspirações de moça, sua infância
confortada e a juventude feliz; comparou-a com a exemplificação de Alcione e
sentiu os olhos rasos d’água. Nem ela nem o avô se atreveram a falar mais na
remoção da enfêrma.
Nesse ínterim, quando se levantaram da mesa, o velho Jaques valeu-se da
220
oportunidade de estarem a sós os três e chamou a atenção da filha de
Madalena para certo problema que o preocupava:
— Alcione — dísse afávelmente —, aproveitando êste momento de calma,
devo dizer-te que mandei buscar, por pessoa de confiança, tua certidão de
batismo, em Versalhes; mas, quero crer que fôsses batizada na Espanha, por
iniciativa de Ântero de Oviedo, porqüanto em Versalhes nada se encontrou.
— Ah! sim... — murmurou a moça hesitante posso saber o motivo da
providência?
— É a necessidade de regularizarmos a questão da herança paterna.
Beatriz e eu precisamos atender a essa parte.
A. jovem Vilamil fêz um gesto de grande admiração e exclamou:
— Por favor! Não façam isso!... Renuncio voluntariamente em favor de
Beatriz. Sua felicidade, seus bens, são os meus.
— É impossível, minha filha — respondeu o avô atenciosamente —; é justo
pensarmos no teu futuro. O destino dá muitas voltas e não seria razoável
descuidar da tua situação, quando te assiste um direito sagrado!...
— Agradeço tanta dedicação — acentuou a moça com firmeza e ternura —
, mas a minha renúncia à herança material de meu pai é decisão que não
posso modificar.
— Por quê? — interrogou Beatriz ansiosa de repartir com a irmã o copioso
quinhão de sua fortuna.
— Já que me perguntam, devo esclarecer. Minha irmã se casará muito
breve e não temos o direito de degradar D. Susana no conceito do genro, que,
afinal de contas, será também seu filho... Henrique de Saint-Pierre sempre
enxergou na futura sogra uma desvelada amiga. Neste amargo período de
enfermidade, tem-na tratado com especial carinho. Seria justo desfazer uma
atitude tão nobre, tão só por uma razão de possibilidades financeiras, que
passam com o tempo? Creio que não. Beatriz, por certo, receberá das mãos do
Altíssimo alguns filhinhos que lhe enriqueçam o coração feminino. Que seria
das pobres crianças, quando se recordassem da avó, entre observações
descaridosas e pouco dignas? Naturalmente que Saint-Pierre éincapaz de
desfazer o noivado pela revelação do pretérito, mas nunca poderia subtrair do
lar futuro o mau pensamento, acêrca da genitora de sua companheira. Com o
tempo, semelhante recordação poderia tornar-se para a querida Beatriz um
fardo bastante pesado... Nem todo o dinheiro do mundo bastaria para lhe
restituir a tranqüilidade. Isso pôsto, que motivo nos poderia induzir a tornar D.
Susana mais desventurada do que é? Descermos a certas explicações num
processo de herança, seria enlamear sua memória para sempre. Seria um ato
muito indigno de nós. Creio que meus pais, na vida espiritual em que se
acham, aprovam plenamente esta conduta.
O bondoso ancião e a neta estavam profundamente surpreendidos. Nunca
poderiam pensar que o desprendimento da filha de Madalena atingisse tamanha
renúncia. Beatriz permanecia emocionada, sem saber manifestar a
gratidão que lhe vibrava na alma. Foi o amoroso velhinho quem rompeu o silêncio,
considerando:
— Gostaríamos de restabelecer a verdade, apesar de bastante dolorosa.
Estou certo de que Henrique se conformaria, de bom grado, e que Beatriz não
sofreria qualquer dissabor de futuro, satisfeita e feliz por se edificar no teu
exemplo. Quem sabe poderias ponderar o assunto com mais vagar e modificar
tuas idéias neste particular?
221
— Não, não creiam, minha resolução é irrevogável.
— Essa resolução, Alcione — prosseguiu o velho educador —, não poderia
parecer menosprezo a um esfôrço de teu pai? Se Cirilo pudesse ver-te e falarte,
certamente que te argüiria por isso.
A interpelada compreendeu que tal argumento era lançado, de maneira
mais peremptória, ao seu coração afetivo, no intuito de lhe modificar as disposições
íntimas, e retrucou com argumento ainda mais forte:
— A consciência me diz que o nosso amado ausente me abençoa as
intenções. Além de tudo, meu genitor deixou-me uma herança muito sublime,
para que eu viesse a preocupar-me com dinheiro. Deu-me um avô generoso e
uma irmã devotada... E acaso deixei de receber êsse legado Santo?
Jaques experimentou alguma coisa no coração cansado, como nunca
sucedera em todo o curso de sua longa existência. Reconhecido e feliz,
exclamou:
Deus abençoe todos os teus caminhos...
— Suas bênçãos, meu avô, são para mim uma riqueza eterna...
Beatriz, sensibilizada ao extremo, beijou-a e retirou-se, enxugando uma
lágrima.
E, dada a desistência completa de Alcione, a situação no palacete dos
Davenport continuou sem modificações apreciáveis.
A enferma, atendida em suas mínimas necessidades pela enfermeira
afetuosa, continuava gozando a consideração de suas prestigiosas relações
parisienses. Não raro, nobres damas da Côrte visitavam-na, testemunhandolhe
carinhosa atenção. Retiravam-se, muitas vêzes, fortemente impressionadas
pelo que ouviam da pobre demente.
— Acreditas, Marcelina — dizia a enfêrma a uma colega da juventude —,
que o demo não nos persiga diàriamente? Vejo-o em luta constante, trabalhando
por aniquilar minhalma... Será que tu também tens algum crime a
confessar? Se cometeste alguma falta grave, liberta-te do remorso quanto
antes! Satanás nos está espreitando!...
E, rematando as considerações com gargalhadas sibilantes, gritava:
— Ah! Ah! Ah!... Vamos tirar as máscaras, vamos tirar as máscaras!...
As visitas, quase sempre se retiravam impressionadas e admiradas com a
paciência da enfermeira.
Um ano fazia que Cirilo e Madalena haviam falecido, quando o velho
Jaques apresentou sintomas alarmantes, O velho médico da família recomendou
o máximo cuidado, porque o enfêrmo tinha a existência por um fio,
podendo morrer de um momento para outro. Enquanto Beatriz se desfazia em
lágrimas, Alcione duplicava a coragem, de modo a atender os doentes, como
se fazia necessário. Um portador foi enviado ao Norte, a fim de solicitar a
presença de Carolina e dos seus.
Quando a senhora de Nemours chegou com os dois filhos, o genitor estava
a despedir-se.
A irmã de Susana mui raramente vinha a Paris e, por ocasião da morte do
cunhado e da enfermidade da irmã, limitara-se a escrever, enviando à viúva
condolências e votos de pronto restabelecimento. Mas, percebendo que o
velho pai estava prestes a deixar o mundo, dera-se pressa em se abeirar do
seu leito, em vista da pequena fortuna do antigo educador de Blois.
Carolina encontrou a irmã em lamentável estado. Não obstante as
preocupações egoísticas de um temperamento somítico, não abraçou Susana
222
sem chorar. A desventurada viúva dirigiu-lhe comovedoras exortações, que lhe
calavam fundo no espírito.
— Talvez não saibas, Carolina — dizia exaltada —, que me tornei
criminosa aos olhos dos homens e diante de Deus... Condenei Madalena
Vilamil ao destêrro e à miséria, para desposar Cirilo, na América... Fiz tudo
quanto quis, mas Deus deixa agora que o diabo me peça contas de meus atos
condenáveis!...
— Acalme-se... - exclamava Alcione em atitude de serva devotada. — A
senhora está se entregando a emoções muito fortes com a chegada de sua
irmã.
— Quem é esta enfermeira tão adequada às nossas necessidades? —
perguntava Carolina à Beatriz, com interêsse.
Vendo, porém, que a irmã encontrava certa dificuldade em se explicar, a
própria Alcione esclareceu:
— Sou empregada da senhora Davenport, ainda ao tempo em que ela
gozava saúde.
— Pois bem, minha menina — replicava a visitante como quem se sente
bem ao reconhecer que outros tomam para si o trabalho ou a dificuldade que
lhe pertencem —, Deus há de ajudá-la pelo devotamento com que cumpre os
seus deveres.
Carolina permanecia ali, sob forte impressão.
— A loucura de Susana é bem singular —disse espantada. — Por que se
referirá a crimes que absolutamente não praticou?
— Diz o médico — esclareceu a enfermeira com serenidade — que essa
perturbação é comum à maioria dos que têm o cérebro transtornado – Em vista
de D. Susana haver-se casado com o primo que a ela se unia, em segundas
núpcias, parece sempre preocupada com o assunto, alegando situações
imaginárias.
— A explicação do facultativo é muito plausível — acrescentava a tia de
Beatriz. —; minha irmã era muito amiga de Madalena Vilamil e, possivelmente,
lembrar-se-á muito da extinta, nos delírios de sua demência.
— Acresce notar — ajuntava a filha de Madalena — que meu nome é
Alcione Vilamil e esta circunstância não deixará de influir no ânimo da enfêrma,
sempre em minha companhia...
— Isso é muito curioso — explicava a inter-locutora —, mesmo porque
suas feições são muito semelhantes às da primeira espôsa de Cirilo, quando
moça.
— Muitoa dizem isso — confirmava a moça, com humildade.
A senhora de Nemours não ocultou a simpatia que a enfermeira lhe
inspirava, tecendo-lhe francos elogios, junto de Beatriz.
No dia imediato ao de sua chegada, eis que o velhinho generoso, depois de
longos padecimentos físicos, despede-se do mundo com grande serenidade.
Alcione resistiu a todos os embates, herôicamente, transformando-se num anjo
de socorro para cada um, em particular.
Depois do funeral, foi debalde que um dos jovens, filho de Carolina, insistiu
para regressarem ao Norte. A espôsa do Sr. de Nemours alegava,
confidencialmente, precisar conhecer o testamento paterno, O genitor deixara
regular quantia em dinheiro de contado, e Carolina queria tomar conhecimento
das suas últimas disposições.
O documento, no entanto, aberto daí a três dias, reservava grande surprêsa
223
ao seu coração egoísta. Jaques Davenport deixava a pequena fortuna para
Alcione Vilamil, declarando que sua resolução obedecia ao fato de que as filhas
e os netos se encontravam devidamente amparados por vastas possibilidades
financeiras, e que a sua deliberação testamentária nada mais representava que
um ato de gratidão para com a enfermeira amada, a cujo carinho se sentia
ligado por eterno reconhecimento.
Alcione chorou, comovidamente, ouvindo a leitura, e, enquanto Beatriz não
conseguia dissimular a satisfação que lhe vagava nalma, a tia mergulhava-se
em contrariedade intraduzível.
Reconhecida a última vontade do morto, Carolina Davenport entrou a
pensar sêriamente na possibilidade de uma destituição. À noitinha, aproximouse
da filha de Susana, falando-lhe do assunto com gravidade.
— Beatriz — começou a dizer a senhora de Nemours algo irritada —, não
posso calar a estranheza que me causou a disposição testamentária de papai.
Francamente, estou decepcionada.
— Pois eu, titia, muito pelo contrário, penso de outro modo. Acho que vovô
praticou um ato de grande justiça.
— Como assim? Não vejo razões que justifiquem êsse ato. Nunca acreditei
que meu pai olvidasse a prole para valorizar apenas os serviços de uma criada.
Estou disposta a pleitear a anulação do testamento. Meu velho pai deve ter
sido lamentàvelmente enganado...
— Não diga isso! — tornou a sobrinha revelando nobre preocupação. —
Alcione, em nossa casa, desempenha o papel de uma filha. Sou testemunha da
sua extrema dedicação. Aliás, até ontem, a senhora não lhe negou os maiores
elogios...
— Sim, como serva. Não podia, porém, supor que papai houvesse atingido
êsses extremos de consideração.
— A senhora, minha tia — esclareceu Beatriz com a delicadeza firme de
quem não está disposto a ceder —, é porque tem vivido ausente, anos consecutivos.
Naturalmente, não pode aquilatar as elevadas qualidades de que
Alcione é portadora. Ainda é bastante feliz neste mundo, para conseguir enxergar
as almas que desempenham a tarefa dos anjos. Desde que se casou, vive
tranqüilamente em sua propriedade, ao lado do espôso abastado e dos filhos
que participam do seu bem-estar, inalterado até hoje. Aliás, devo dizer que esta
opinião era a de vovô, sempre queixoso da sua ausência. Nós, porém, não
podemos partilhar com a senhora a mesma apreciação. O falecimento de meu
pai nos trouxe lições muito amargas, que Alcione nos tem ensinado a
compreender com a sua bondade sem limites... Em todo o curso da moléstia de
minha mãe, seu devotamento tem tocado ao heroismo.
A interlocutora parecia ouvir superficialmente os argumentos da jovem,
respondendo com certa secura:
— Não posso aceitar a opinião da tua mocidade inexperiente. A meu ver,
Alcione é criatura com muitos predicados excelentes, mas não lhe vejo outros
títulos que os de serva.
E mostrando o ciúme que lhe envenenava o espírito, em virtude da
predileção paterna, rematava:
— Susana está demente, mas eu ainda não perdi a razão. Não concordo
com a decisão testamentária e recorrerei à justiça.
A sobrinha, contudo, endereçando-lhe um olhar autoritário, sentenciou:
— Jamais supus que a senhora descesse a tal deliberação apenas por
224
alguns milhares de francos, concedidos por um coração generoso a uma órfã.
Saiba, porém, minha tia, que não ficarei inativa ante os juizes de Paris. Sua
reclamação poderá vingar, mas eu darei à Alcione, püblicamente, um legado
que possa equivaler à pequena herança deixada por vovô... Assim, nossos
amigos terão ciência de que a reclamação não parte desta casa, e sim de um
espírito inconformado e mesquinho.
Ante a nobre atitude de resistência, a senhora de Nemours fêz um gesto
de forte irritação e murmurou desolada:
— Insultas-me? És muito nova para discutir comigo. Estou a ver que tu e a
serva transtornaram a cabeça do velhinho doente, induzindo-o a testamento
tão singular...
— Poderá julgar como lhe ditam os sentimentos próprios.
Carolina corou, fortemente excitada e resmungou:
— Volto hoje mesmo para casa. E ficas ciente, Beatriz, que não precisamos
do dinheiro do papai, nem do teu. Tratei do assunto da herança, porque todos
somos obrigados a honrar a justiça, mas nunca precisarei dessa miséria de
alguns escudos. E que Deus te proteja, para que a serva intrusa não te cause
sérias decepções.
A sobrinha lançou-lhe um olhar altivo e murmurou muito calma:
— Agradeço a sua decisão de partir. É melhor que o escândalo fique só
entre nós e que a senhora renuncie à primeira disposição que me levaria
também a público, como sua adversária.
Não obstante a preocupação de abandonar o palacete da Cité, naquela
mesma noite, Carolina Davenport, contida pelos filhos, esperou pela manhã,
quando se retirou de Paris, despedindo-se da sobrinha sêcamente.
Por essa época, Henrique de Saint-Pierre começou a cooperar mais
assiduamente na solução dos negócios que envolviam a antiga residência de
Cirilo. No círculo de tantas dores e preocupações, sômente a perspectiva do
casamento próximo de Beatriz oferecia ensejo a determinadas esperanças de
paz. A noiva aguardava as melhoras da genitora para marcar a data do
consórcio. Desde há muito, o rapaz manifestava desejos de não adiar o enlace
por mais tempo; no entanto, Beatriz não se sentia bem, entregando à Alcione o
pêso de todos os encargos, relativamente à enfêrma. Susana, logo após o
falecimento do velho professor, atingira um estado especial de inércia, piorando
sempre, a olhos vistos. As duas filhas de Cirilo revezavam-se devotadamente
no sentido de amparar a doente com todos os recursos ao seu alcance. Alcione
andava abatida. No entanto, as lutas agravavam-se, cada vez mais.
Certa noite, Robbie, já quase homem feito, demorou-se mais que de
costume. A filha de Madalena inquietou-se, sentindo que algo de grave sucedera,
amargurando-lhe o coração. De fato, enquanto confiava à irmã os
pensamentos que a atormentavam, um portador do abade Durville, clérigo de
São Landry, pedia sua presença urgente.
— Senhorita — exclamou respeitosamente, dirigindo-se à moça, que o
ouvia surpreendida —, o Sr. Robbie há duas horas foi vítima de um desastre,
quando mal havia saído da igreja...
— Que foi? — inquiriu Alcione sem disfarçar a enorme aflição.
— O rapaz ia distraído quando um carro o colheu, brutalmente! Os cavalos
espantaram-se e o cocheiro não teve tempo de evitar o desastre lamentável.
— E como está êle?
— Muito mal. As feridas do peito sangram com abundância, mal pode falar
225
e pediu ao Abade Durville que a prevenissem com urgência.
— Não há tempo a perder — murmurou Beatriz.
Daí a minutos, o carro dos Davenport saía à pressa, conduzindo as duas
irmãs.
Em um recanto da igreja de São Landry, o filho adotivo de Madalena
experimentava o esgotamento rápido de suas fôrças. O sangue borbulhava,
incessante, das feridas abertas. Debalde um médico aplicava os recursos
limitados da sua ciência, O afluxo de sangue cedera em determinadas regiões,
mas a incisão profunda, ao longo do peito, era uma fonte inestancável. Não
havia mais esperanças. Durville e alguns companheiros assistiam-no, certos de
que o músico estava perdido.
Percebendo a seu lado a irmã muito querida, o rapaz pareceu concentrar
as energias supremas, no desejo de lhe transmitir os últimos pensamentos. A
voz era-lhe como um sôpro. Alcione inclinou-se, esforçando-se para não
chorar; beijou-o com enternecimento fraterno e sentou-se, ali mesmo, para que
a fronte dilacerada lhe repousasse no regaço fraterno. O ferido esboçou um
sorriso leve que sensibilizou os assistentes.
— Então, Robbie? como foi isso? — perguntou a irmã, quase colando os
lábios aos seus ouvidos.
— Deve ser... a vontade de Deus.., que se cumpriu...
Alcione, muito comovida com a doce resignação do moribundo, voltou a
dizer:
— Levar-te-ei comigo para casa. Haveremos de tratar das feridas, com
atenção, O carro nos espera à porta.
O ferido tentou fazer um gesto que significasse a sua impossibilidade
absoluta, chegando tão sómente a murmurar:
— Não posso mais...
Beatriz procurou o facultativo, que tirava o avental tinto de sangue e pediu
licença para remover o rapaz. O doutor, entretanto, não concordou,
exclamando:
É inútil! A providência apenas agravaria os padecimentos do infeliz.
Seus minutos estão contados, O grande ferimento do peito, produzido pela
pata do animal, é irremediável.
— O caso é assim tão grave? — indagou a filha de Susana, alarmada.
— A morte é uma questão de momentos —respondeu o médico, um tanto
displicente.
Alcione, que compreendia a situação, inclinara-se para o moribundo, como
se estivesse acariciando um filhinho.
— No instante em que se verificou o desastre — esclarecia o Abade
Durville em voz alta —, quis prender o cocheiro culpado, a fim de puni-lo, como
de justiça, mas Robbie não consentiu, dizendo-se o único culpado do incidente.
O rapaz olhou a irmã, longamente, ansioso de ler no seu rosto a
aprovação de sua atitude. A filha de Madalena entendeu a sua linguagem silenciosa
e disse:
— Fizeste muito bem, Robbie. É preciso não disputarmos com o mundo, a
fim de encontrarmos o caminho que conduz a Deus.
O agonizante teve uma expressão de grande confôrto íntimo e, reunindo
as suas reduzidas possibilidades orgânicas, falou entrecortando as palavras:
— Desde que mandei os gendarmes libertar o cocheiro, por entender que
me cabia a culpa... sinto que não tenho mais a pele negra, que tenho a mão e a
226
perna... curadas... veja Alcione...
E fazendo um esfôrço ao qual não podia corresponder a mão quase hirta,
continuava, murmurando:
— Minha mão tem agora cinco dedos... e tenho a impressão de que me
curei dos olhos para sempre... Sômente não posso levantar-me e acompanharte..
Mas depois que dormir... penso que ficarei bom.
A irmã adotiva acentuou vertendo algumas lágrimas:
— São estas as provas redentoras, meu querido Robbie! Deus te restitui a
saúde da alma, por te considerar novamente digno -
Mas o médico que conversava com Beatriz e o abade. Durville, a distância
de dois passos, acrescentava:
— Creio que a pobre rapariga não conhece o delírio da morte. O
agonizante começa a desvairar. Deve ser o fim.
Longe de ouvir a opinião descriteriosa do mundo, Alcione conchegava o
irmão de encontro ao peito, elevando-se a Jesus em preces fervorosas.
— Sinto... muito sono... — disse Robbie num sôpro débil.
A filha de Madalena afagou-o com mais ternura e o músico adormeceu
para sempre, no mundo, para despertar numa vida mais alta.
*
O doloroso incidente, que arrebatara o irmão adotivo para a esfera
espiritual, deixara Alcione muito mais abatida do que fôra de prever. Saint-
Pierre cuidou do funeral com a maior solicitude. Terminada, porém, a cerimônia
fúnebre, que se havia revestido de tocante simplicidade, a jovem Vilamil
começou a experimentar penosa angústia no coração. Nunca sentira tamanha
sensação de soledade no mundo. Robbie era o último traço da sua infância e
da sua juventude. Amargurosa saudade empolgou-lhe o coração. A antiga
chácara de Ávila ficara muito distanciada no tempo. Dolores e João de Deus,
os bons amigos da meninice, jamais haviam dado sinal de vida, do seu
longínquo recanto; padre Damiano e sua mãe haviam partido, seu pai e o avô
lhes haviam seguido os passos no caminho da morte, Carlos afastara-se pela
incompreensão, Robbie descera à sepultura.
Dominada pela tristeza dos espíritos solitários, a filha de Madalena
recolheu-se ao aposento particular. Aí chegando, chorou convulsivamente, em
atitude contrária a todos os seus hábitos. Abraçando o velho crucifixo, junto do
qual tantas vezes D. Margarida e Madalena haviam chorado, dizia
sentidamente:
— Ah! meu Jesus, não me desampares!...
Foi aí que a pobre louca, dando pela sua falta, aproximou-se, depois de
abrir a porta levemente cerrada, exclamando de olhos inexpressivos, num
impulso maquinal:
— Alcione!... Alcione!.
A interpelada enxugou o pranto, recolocou o crucifixo no lugar primitivo,
levantou-se solícita e foi ao encontro da enfêrma, com ternura:
— Ah! como me esqueci da senhora!...
E abraçando a pobre demente, conduziu-a com muito carinho ao quarto de
dormir.
227
6
Solidão amarga
Susana Davenport ainda viveu pouco mais de dois anos, após a morte de
Robhie. A filha de Madalena passou todo êsse tempo em largos sacrifícios
domésticos, exemplificando o amor mais puro. A genitora de Beatriz teve
agonia prolongada, recuperando a razão nas derradeiras horas. Olhos fixos na
filha, tomou-lhe a mão e colocou-a nas mãos de Alcione, dando a entender que
a filhinha, em tempo algum, deveria esquecer de tomar a irmã como um
símbolo.
Alcione descansava agora de uma luta imensa, mas, afeita ao trabalho
desde os mais tenros anos, chegava a estranhar o repouso.
O próximo casamento de Beatriz, com os numerosos trabalhos conseqüentes,
foi por ela encarado como um alívio à solidão que começava a experimentar.
Tôdas as horas do dia, em carinhosa dedicação, eram consagradas ao
bordado e à costura, surpreendendo a irmã pelo gôsto artístico e habilidade,
em cada detalhe do serviço. Beatriz não conseguia eximir-se ao pêso das
recordações dolorosas, mas o consórcio com o homem amado revigorava-lhe
as esperanças. O palacete da Cité, sempre envolvido num manto de saudades,
dava a impressão de jardim abandonado que começasse a reflorir. Os servos
evitavam referências à morte dos antigos senhores, para que os rebentos de
alegria nova não fôssem arrancados. Se acaso via a irmã entristecida, Alcione
fazia questão de tanger as teclas de assunto confortador, para que a moça não
se entregasse à tristeza e ao mal-estar. O culto doméstico do Evangelho foi
restaurado. O próprio Henrique de Saint-Pierre associou-se ao movimento,
partilhando das reflexões religiosas com muita satisfação. A inspiração da filha
de Madalena causava-lhe surprêsa cariciosa. Sua palavra penetrava problemas
complexos da existência, como se já tivesse vivido numerosos séculos em
contato com os homens. Para Henrique, tais reuniões tinham caráter providencial.
Indiretamente, a irmã de sua noiva, sem qualquer intenção, preparava-lhe
o espírito para as tarefas sagradas do lar, para os benefícios do casamento. O
rapaz começou por abandonar as companhias perigosas que, não raro,
tendiam a comprometer-lhe o nome e a saúde; a vida revelou-lhe profundos
segredos, seu coração parecia agora aberto para o orvalho divino do
sentimento superior. Incansável no trabalho, Alcione estendeu o culto dominical
aos serviçais numerosos. Todos puderam participar das bênçãos de Jesus, no
vasto salão que Beatriz mandou preparar jubilosamente. O movimento familiar
continuava em santas vibrações de fraternidade e alegria. A moça Vilamil organizou
hinos de carinhosa devoção a Deus, que as crianças dos servidores
entoavam, com encanto singular. O cravo parecia falar harmoniosamente da fé,
sob a pressão dos seus dedos. A filha de Susana não cabia em si de contente.
A grande residência de Cirilo perdeu o aspecto sombrio, adquirido em todo o
curso da moléstia da viúva Davenport. Júbilo sadio estabelecera-se entre
todos. Quando alguém demonstrava indisposições súbitas, recordava-se o
ensinamento do Cristo e o culto doméstico ia ganhando todos os corações.
O enlace de Beatriz e Saint-Pierre realizou-se com muita simplicidade, e
concorrência, apenas, das relações mais íntimas.
Alcione acompanhou satisfeita todos os trâmites do auspicioso evento,
mas, em seguida, entrou num período de grande abatimento, do qual apenas
saía nas horas rápidas do culto familiar.
228
A filha de Madalena não conseguia furtar-se à saudade dos seus
inesquecíveis ausentes e, simultâneamente, experimentava a falta do trabalho
ativo, que se tornara a incessante religião dos seus braços fraternos.
A Irmã impressionou-se Que fazer para arrancá-la daquela melancolia que
a empolgava devagarinho? Ela esquivava-se às festas sociais, não tinha
inclinação para os prazeres do seu tempo. Tendo passado dos trinta anos,
seus traços fisionômicos conservavam a beleza da primeira juventude,
revelando, ao mesmo tempo, a madureza do espírito. Beatriz começou a
pensar, sêriamente, em inclinar-lhe a alma sensível e afetuosa para um
casamento feliz. Dominada por êsses pensamentos. a espôsa de Saint-Pierre
aproximou-se certo dia da irmã e lhe disse, com bondade:
— Tenho andado bastante cuidadosa de ti e preciso cooperar para que a
tristeza seja banida do teu coração e dos teus olhos!...
— Por que te afligires, minha querida? O repouso involuntário de nossas
mãos costuma agravar o esfôrço dos pensamentos. Não estou acabrunhada,
podes crer. Tenho meditado um pouco mais e essa circunstância te induz a
perceber mágoas imaginárias em meu espírito.
Beatriz abraçou-a com enternecimento e falou:
— O coração me diz que não estou enganada. Consomes-te a olhos
vistos. Por vêzes, Alcione, quando em passeio com Henrique, não posso evitar
que meu júbilo se misture ao remorso...
— Mas, como assim, querida?
— Não me conformo em ser feliz só por mim, quando mereces as bênçãos
do Céu, muito mais que eu.
Depois de ligeira pausa, a filha de Susana continuava:
— Quem sabe desejarias fazer alguma viagem que te distraísse? Essa
providência seria mais que justa, após tantos anos de luta e sacrifício. Quando
não quisesses ir a país estrangeiro, poderias descansar em alguma praia e
fortalecer-te em contacto direto com a Natureza.
— Mas, se eu estou muito bem e nada me falta?
Beatriz contemplou-a, com mais carinho, e, quase suplicante, tornou a
dizer:
— Alcione, desejava lembrar uma possibilidade, pelo que espero me
perdoes com a tua generosidade fraternal...
A irmã comoveu-se com o acento caricioso daquelas palavras e
obtemperou:
— Dize sem receio. De que se trata?
— Tenho pedido a Deus, ansiosamente, me conceda a alegria de ver-te
formando igualmente um lar, onde um espôso fiel ilumine a tua estrada com as
bênçãos de uma ventura sem fim. Se te pudesse ver amada por um homem
leal e puro, cercada pela ventura de filhinhos carinhosos, como seria feliz!...
Dá-me a satisfação de te auxiliar a refletir nesse particular.
Beatriz notou que a irmã fazia enorme esfôrço para reter as lágrimas.
Adivinhando o seu embaraço para responder, a espôsa de Henrique ganhava
ânimo para prosseguir:
— Eu e meu marido vimos pensando na colônia distante, onde os nossos
bens materiais são consideráveis. Henrique vem ultimando alguns negócios e
creio que, daqui a alguns meses, tomaremos a nova decisão. Meus tios
insistem pelo meu regresso e, além dêles, temos na América velhos amigos de
meu pai a nos esperarem de braços abertos. Claro que não dispensamos tua
229
companhia e peço-te permissão para ir meditando, desde já, na tua felicidade
futura. Na minha terra natal, encontrarás relações carinhosas e devotadas, e —
quem sabe? — talvez Jesus te reserve por lá um espôso fiel e cristão, que faça
por ti tudo que te desejamos de coração.
Alcione comoveu-se profundamente. O terno respeito de Beatriz, a
delicadeza da sua exposição, penetraram-lhe o espírito como um bálsamo
celestial. Demonstrando o interêsse de sua dedicação fraterna, respondeu
reconhecidamente:
— E se te dissesse que tenho meu coração prisioneiro, desde a primeira
mocidade?
A espôsa de Saint-Pierre, com um franco sorriso, revelava o prazer que a
declaração lhe causava. Se a filha de Madalena Vilamil já havia elegido o
homem do seu afeto, não lhe seria difícil contribuir eficazmente para a sua
ventura. Ansiosa e confortada, Beatriz insistia de olhos muito brilhantes:
Ah! conta-me tudo! Certo, o feliz eleito de tua alma não estará aqui em
Paris. Quem sabe é algum gentil-homem espanhol, a esperar tua resolução há
longo tempo?
Reconhecendo a sinceridade da irmã, Alcione passou a historiar a sua
juventude, recordando a figura de Clenaghan com a vivacidade dos seus
imensos tesouros afetivos. Longas horas estiveram ambas no divã, desfiando o
rosário das lembranças queridas. A filha de Susana seguia as palavras da irmã,
demonstrando enorme estupefação, pela sua capacidade de sacrifício. Alcione
crescia espiritualmente, cada vez mais, no seu conceito. Ao terminar o relato
de suas agridoces reminiscências, a jovem esclarecia:
— Quando nos encontramos pela última vez, aqui em Paris, notei que êle
não podia compreender os meus deveres filiais. Estava taciturno, talvez irritado
com as lutas da sorte. Não podia ver em mim senão a noiva que lhe atendesse
ao ideal humano, mas eu ainda retinha comigo deveres sagrados para com
meus pais, e não pude acompanhá-lo de volta a Castela. Ele não se despediu
de mim, mas o fêz de mamãe, antes de se pôr a caminho do Havre; e mamãe
sempre dizia que o notara bastante transformado, suspeitoso e desesperado.
Sofri com isso muito mais do que se pode imaginar, mas entreguei a Jesus as
minhas mágoas íntimas. Lembro-me, perfeitamente, de que, impossibilitada de
lhe revelar o que ocorria entre minha mãe e meu pai, que o destino havia
separado, prometi que o procuraria a qualquer tempo que as circunstâncias
permitissem...
— E não terá soado essa hora de conciliação? — interrogou Beatriz
ansiosa por lhe renovar o bom ânimo.
— Tenho pensado nisso, sinceramente, nestas últimas semanas —
confessou a filha de Madalena, prazerosa por sentir-se compreendida. — Estou
certa de que Carlos confia na minha sinceridade e não terá desposado outra
mulher. Nesta fase de minha vida, talvez lhe possa ser útil, poderia concorrer
para seu retôrno à vida religiosa, embora sem esperança de reintegrá-lo no
ministério sacerdotal.
— Que dizes? — murmurou a espôsa de Saint-Pierre com infinito carinho.
— Não penses obrigá-lo a retomar um serviço contrário à sua vocação. Teu
coração e o do homem amado têm direito ao banquete da vida. Hás de casarte
e conhecer a felicidade que parecia remota e irrealizável. Quero beijar teus
filhinhos, num futuro risonho.
O semblante de Alcione iluminou-se, mostrando a beleza do seu mais
230
secreto ideal de mulher. Ruborizada e quase feliz, perguntou:
— Supões, acaso, Beatriz, que Deus ainda me concederá semelhante
felicidade?
— Por que não? — voltou a dizer a interlocutora com sereno otimismo. —
Estás moça e bela, como aos vinte anos. É preciso cuidarmos imediatamente
do contato com Ávila.
A filha de Madalena dirigiu à irmã um olhar significativo e indagou:
— Estarias de acôrdo que eu fôsse até lá? Tenho desejado surpreender
Carlos com o exato cumprimento de minha palavra.
— Sem dúvida — respondeu Beatriz bem humorada, ao perceber que
novas esperanças brotavam daquela alma generosa e santificada —; se fôsse
possível, acompanhar-te-ia. Creio não ser possível, mas tudo se arranjará de
maneira a visitares Castela-a-Velha, na primeira oportunidade.
— Irei sozinha — esclareceu Alcione, de olhos vivazes.
No dia seguinte, ao almôço, Henrique de Saint-Pierre partilhava do
entusiasmo de ambas.
— Beatriz me fêz ciente de tuas intenções —disse-lhe em tom fraternal —
e podes crer que já estou à espera de Clenaghan, com justa ansiedade.
Preciso de um companheiro para o desdobramento de nossos negócios. Claro
que não necessitamos de capital, mas sim de um auxiliar operoso e leal, que
nos ajude a zelar o patrimônio adquirido. Sinto que teu futuro espôso
solucionará o nosso problema.
— Ah! sim — respondeu Alcione risonha — Carlos é um homem honesto e
trabalhador. É verdade que faltou ao compromisso sacerdotal, falta essa que
não pude aprovar, desde os primeiros tempos em que a decisão não passava
de projeto; mas nada se poderá dizer contra a sua lealdade. É portador de
caráter nobre e de valorosos sentimentos.
— Para nós, será um irmão — disse Beatriz satisfeita.
— Certamente — continuou Saint-Pierre atencioso — já se entenderam
sôbre a nossa transferência para o Novo Mundo?
— Sim — acentuou a filha de Madalena, confortada.
— Pois bem — prosseguiu o novo chefe da casa —, Clenaghan irá
conosco, como pessoa da família. Quanto a ti, Alcione, conheço o plano de
viagem à Espanha, onde cuidarás da agradável surprêsa ao teu escolhido.
Quisera seguir-te e mais a Beatriz, mas negócios urgentes impedem fazê-lo.
Poderei, no entanto, mandar um empregado ao Havre, a fim de conhecermos o
movimento das embarcações mais seguras. Se queres, poderei designar
alguém que te acompanhe na viagem tão longa...
Sinceramente reconhecida, a moça obtemperou:
— Não há necessidade, Henrique. Poderei seguir só, visto conhecer o
caminho. Além disso, Ávila é como se fôsse minha segunda pátria. Tenho lá
inúmeras amizades.
— Não temos qualquer objeção a fazer. Apenas formulo votos ao Céu para
que a tua ventura se processe ràpidamente. Dirás a Carlos Clenaghan que o
esperamos nesta casa, com interêsse e simpatia. Para mim, Alcione —
acrescentava Saint-Pierre comovidamente —, nunca fôste a governanta de
Beatriz, mas nossa irmã muito amada, pelos laços sacrossantos do espírito. O
companheiro de tua escolha será pessoa sagrada aos nossos olhos. Em
chegando a Ávila, anima-o a vir em tua companhia, com presteza.
Esperaremos tua volta, para então marcar a viagem para a colônia.
231
Alcione não sabia como traduzir sua gratidão. Em frases carinhosas,
manifestou o sincero agradecimento dalma, ficando ali mesmo aprazada a viagem
à Espanha.
Precisamente daí a um mês, Beatriz e o espôso acompanhavam a irmã até
o Havre, onde Alcione, corajosamente, tomou a embarcação que a levaria ao
pôrto de Vigo.
Após as despedidas, quando o navio se afastava da costa francesa, levado por
ventos favoráveis, a filha de Madalena encontrou-se à sós com as suas
profundas recordações. As figuras da genitora, de Robbie e padre Damiano
apresentavam-se-lhe àmente, mais vivas que nunca. Era necessário muita
energia para não cair em pranto, em face da saudade que lhe pungia o
coração. Aqui, era um detalhe do mar, que havia impressionado o irmão
adotivo; acolá, um aspecto da costa que provocara certas explicações do velho
sacerdote. Recolhida em sentimentos carinhosos, a filha de Cirilo desembarcou
em terra espanhola, com o peito oprimido de infinitas esperanças. Nunca mais
tivera noticias de Clenaghan, era bem possível que não mais estivesse em
Castela-a-Velha; no entanto, suas relações de Ávila não faltariam com os
informes precisos.
A condução para a cidade da sua meninice não foi difícil. Em poucos dias,
chegava ao seu destino. Embora provocasse a estranheza de muitos o fato de
encontrar-se desacompanhada, Alcione mostrava uma atitude superior aos
olhares curiosos que pareciam interrogá-la. Não encontrou qualquer diferença
na paisagem. O berço de Teresa de Jesus repousava na terra pobre, cioso de
suas velhas tradições.
Às dez horas do dia, dava entrada em humilde hotel, naturalmente fatigada,
e deliberou não procurar as amizades antigas, até que se alojasse
convenientemente. de maneira a não se tornar pesada a ninguém, pela sua
chegada imprevista. Identificou, de pronto, velhos conhecidos da mocidade, a
quem, entretanto, não se revelou por não haver bastante intimidade. Depois de
refeita da fadiga imensa, chamou um pequeno servidor da hospedaria,
perguntando-lhe um tanto acanhada:
— Meu amiguinho, você poderá informar-me se reside aqui, em Ávila, um
senhor chamado Carlos Clenaghan?
Após refletir um momento, o rapazote esclarecia:
— Sim, senhorita, conheço.
A viajante verificou que o coração lhe palpitava com mais fôrça.
— Sabe se é de origem irlandesa, domiciliado em Castela há alguns anos?
— voltou a interrogar atenciosamente.
— Sim, é isso mesmo e sei mais que foi padre, noutro tempo. Hoje é
comerciante abastado.
Alcione ouviu-o comovida. Não podia enganar-se. Pensou, então, em
surpreender o espírito do amado em intimidade cariciosa. Convidá-lo-ia, por um
bilhete, a comparecer, à tarde, junto à nave da igreja de São Vicente.
Encontrar-se-iam na casa consagrada a Deus, onde tantas vêzes haviam
tecido muitas rêdes de sonhos e esperanças, sempre desfeitos pelo vendaval
das realidades dolorosas. Agora, porém, era lícito tratar do seu porvir
venturoso. Escrever-lhe-ia sem se dar a conhecer no bilhete, declarando-se
chegada de Paris, com notícias alviçareiras para o seu coração. Quando
chegasse ao velho templo, vê-la-ia então, compreenderia a sua fidelidade e
devotamento. Logo após o reencontro, visitariam juntos as antigas relações
232
afetuosas, buscariam rever o sítio de sua infância, bem como a casa modesta
em que sua mãe trabalhara tantos anos, curtindo as maiores privações.
Assim procedeu embalada por santas expectativas do amor desvelado e
confiante.
O rapaz que a esclarecera, longe de adivinhar o romance da nova hóspede, foi
emissário da breve notícia ao ex-religioso, que leu o bilhete assaz intrigado.
Carlos identificaria aquela letra, entre mil manuscritos diversos. Mas era
impossível, em seu modo de ver, que Alcione estivesse na cidade. A autora da
grafia, por mera coincidência, deveria ter o mesmo tipo de letra, que jamais
conseguira esquecer, no círculo das experiências pessoais. Não conseguia
concatenar outras explicações. Curiosidade febril avassalava-lhe a alma. Que
notícias de Paris poderiam ser enviadas ao seu coração? De há muito
considerava Alcione perdida, no capítulo das suas aspirações mais sagradas.
Dela não deveria esperar qualquer mensagem. Todavia, dilatando as ponderações,
começou a imaginar que se tratasse de algum recado de Madalena
Vilamil ou de Robbie, amigos dos quais não tinha notícias, desde que regressara
da França, onde fôra na suposição de encontrar a noiva conformada
aos seus caprichos de homem apaixonado. Prêsa de intensa sofreguidão,
aguardou o crepúsculo ansiosamente.
Antes do entardecer, Alcione dirigiu-se ao velho templo que constituía um
centro de lembranças sagradas ao seu espírito sensível. Ajoelhou-se e orou à
frente dos nichos, recordando, a cada passo, o velho sacerdote a quem
consagrara o devotamento de filha afetuosa.
Olhar indagador, de quando em quando perscrutava o caminho, a ver se
Clenaghan atendia ao convite.
Por fim, quando o céu desmaiava aos derradeiros clarões crepusculares,
um homem surgiu no adro, fazendo-lhe o coração vibrar em ritmo acelerado.
O sobrinho do padre Damiano aproximava-se. Alcione notou-o um tanto
abatido, parecendo cansado das lutas da vida. Intenso desejo de proporcionarlhe
consolação e confôrto aflorou-lhe nalma sensível.
Prestes a atravessar a portaria primorosa, o ex-religioso viu que alguém
avançava ao seu encontro.
— Carlos!... Carlos... — disse a filha de Madalena com infinita emoção.
O recém-chegado estacou tomado de assombro. Enorme palidez cobriulhe
a fisionomia, quis prosseguir, mas as pernas trêmulas paralisavam-lhe o
impulso. A inesperada presença de Alcione enchia-o de profunda admiração.
Debalde procurava palavras com que pintasse o estado de espírito, em que o
júbilo se confundia com a dor. A filha de Cirilo tomou-lhe a mão e falou com
meiguice:
— Não me reconheces? Venho cumprir minha promessa.
— Alcione!... — conseguiu dizer o interlocutor num misto de sentimentos
indefiníveis.
Um abraço carinhoso seguiu-se a essas palavras. Compreendendo-lhe a
perturbação natural, a moça procurou confortá-lo:
— Ah! se eu soubesse, antes, que te causaria êste forte abalo, não teria
feito esta surprêsa!... Perdoa-me...
Carlos se debatia intimamente entre idéias antagônicas. Diante dêle estava
a mulher amada, que as lutas ia existência não fizeram esquecer. Alcione era
sempre o seu maravilhoso e único ideal. As experiências vividas, longe da sua
dedicação e dos seus conselhos, eram provas amargas que, aos poucos, lhe
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atassalhavam o coração repleto de santas esperanças. Mas, simultâneamente,
recordava com estranheza a atitude da jovem em Paris, quando não pudera
apreender todo o motivo das suas elevadas preocupações filiais. No seu
conceito, a eleita trocara o seu amor pelos atrativos do mundo. Jamais
conseguira olvidar aquêle palacete da Cité, onde a moça havia penetrado
intimamente apoiada ao braço de um homem.
Mal se desembaraçava no meandro dessas reflexões, quando a
interlocutora voltou a dizer:
— Vamos respirar o ar fresco da noite que desce. Deus me concede a dita
de reatar os inefáveis colóquios de outros tempos, neste mesmo ambiente das
nossas primeiras emoções.
O ex-sacerdote acompanhou-a màquinalmente. Antigo banco de pedra
parecia esperá-los para a revivescência dos mesmos idílios.
Clenaghan perguntou pelos amigos, recebendo com dolorosa surprêsa a
notícia da morte de Madalena e Robbie, impressionando-se vivamente com a
descrição do desastre que vitimara o músico. Alcione o embevecia com os
comentários criteriosos quanto emotivos. Tudo, na sua elocução vibrante,
ressumava amor e devotamento. Êle a contemplava com paixão, dando
mostras de que esperava, ansiosamente, aquêle bálsamo divino que lhe
manava dos lábios. Em dado instante, respondendo a uma observação que ela
lhe fazia com mais carinho o ex-sacerdote acentuou:
— Nunca pude forrar-me à mágoa que a tua atitude me causou. Senti que
me tratavas friamente.
— Naquela ocasião, Carlos, Jesus me pedia testemunhos de filha, aos
quais não poderia fugir senão pelos atalhos escusos da crueldade.
Ignorando ainda tôda a extensão dos sacrifícios da eleita de sua alma, o
pupilo de Damiano objetou:
— Mas, se me oferecia para trazer tua mãe e Robbie em nossa
companhia? Poderíamos ter sido infinitamente felizes se a isso não te
opusesses...
A tonalidade impressa a essas palavras fêz que a interlocutora
enrubescesse, calando-se.
— Que fazias, naquele palacete da Cité? Por que saías de casa a pé e ias
tomar um carro discretamente? Ignoras que te segui os passos sem que me
visses e que observei o homem que te abraçou, no portão, quando lá chegavas
sorridente? Ah! Alcione, não podes compreender todo o veneno que me
lançaste nalma confiante. Jamais poderia imaginar que Paris te transformasse
o espírito, a ponto de olvidar nossos compromissos e contrariar tua mãe
enfêrma, cuja evidente preocupação era abandonar a capital francesa para
voltar à vida simples de Ávila, onde havíamos afagado tantas esperanças e
sido tão felizes!...
A moça, depois de prestar muita atenção aos seus gestos e palavras,
sentenciou:
— Não devias ter ido tão longe no teu julgamento. Agora que nos
reencontramos para nos compreendermos de uma vez para sempre, devo tudo
dizer com franqueza. Sabes quem era aquêle homem que me recebeu de
braços abertos, naquela manhã?
Deteve-se ante a muda expectação do companheiro e prosseguiu:
— Aquêle homem era meu pai!...
— Teu pai! — exclamou Clenaghan aterrado.
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E ela pausadamente começou a relatar todos os acontecimentos de Paris, a
partir do instante em que a enfermidade do padre Damiano lhe impusera
desdobrar-se em tarefas mais práticas. À medida que se desdobravam as
revelações, o rosto de Carlos mais se anuviava, O ex-sacerdote sempre reconhecera
na jovem as qualidades mais primorosas, mas não e nunca a
supusera capaz de tamanha renúncia. Extremamente comovida com a
evocação de suas reminiscências dolorosas, Alcione rematava:
— Não acreditas que tenha cumprido meu dever sagrado? Não admitas
que meu coração pudesse haver esquecido a tua dedicação e o teu amor.
Desde o nosso primeiro encontro, venho arquitetando um meio de enriquecerte
a alma de idealismo e confiança. Sempre sonhei, para o teu caminho, um
mundo de felicidades nobilitantes. Antigamente, tuas obrigações sacerdotais.
impuseram-nos a separação; mesmo assim, porém, vibrava na ansiedade
ardente de embelezar teu roteiro de nobres aspirações. Lutei para que não
abandonasses o que sempre considerei uma sublime tarefa; entretanto, hoje
busco harmonizar minhas idéias com a tua decisão e sinto que a consciência
pura é o melhor dote que te posso trazer para a nossa eterna aliança...
Ouvindo-a, generosa e confiante, Carlos Clenaghan sentia-se pequenino e
miserável.
— Perdoa-me!... — disse, banhado em lágrimas de sincera compunção.
— Compreender-te-ei agora por tôda a vida —esclarecia Alcione de olhar
muito lúcido —, mas... por que choras? Temos ainda numerosas oportunidades
de servir a Deus e a nós mesmos. Prometi que te procuraria logo que Jesus me
permitisse o júbilo do dever cumprido e aqui estou para cuidar da tua, da nossa
felicidade. Creio que não tens qualquer necessidade material, mas o marido de
minha irmã, que, aliás, desconhece o passado que te confiei em caráter
confidencial, põe à tua disposição bastos recursos para grande prosperidade
na América. Se quisesses, poderíamos partir talvez no ano próximo,
recomeçando o destino numa terra nova. Lembro que minha mãe sempre
suspirou pelo Novo Mundo... Quem sabe sua alma bondosa me inspira, agora,
o caminho mais certo, acenando-nos com a possibilidade de partir?... Henrique
de Saint-Pierre espera-te como a um irmão. Além disso, tenho também regular
pecúlio que deposito em tuas mãos. Não tenho outra preocupação direta,
presentemente, a não ser tu mesmo!...
E observando que o moço mantinha-se calado, em pranto, prosseguia com
solicitude:
— Releva-me se te falo assim abertamente. A confiança de um coração
não pode morrer. Dize-me, pois, se queres partir, para tentar vida nova sob as
bênçãos de Deus. Estou certa de que viveremos felizes, em perpétua e santa
união...
— Não posso! — sussurrou Clenaghan lastimosamente.
— Por quê? — indagou Alcione plenamente confiante.
Ele esboçou um gesto timido, revelando a vergonha que o assomava e
explicou com indizível tristeza:
— Estou casado há mais de dois anos.
A moça sentiu que o sangue lhe gelava nas veias. Jamais pudera admitir
que o dileto do seu coração fôsse capaz de olvidar antigos juramentos. O
inopinado da revelação esmagava-lhe a alma tôda. Lágrimas ardentes,
arrancadas do íntimo, afloravam-lhe aos olhos, mas, na meia sombra da noite,
buscava dissimulá-las cuidadosamente.
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Vendo que tardava em manifestar-se, Clenaghan apertou-lhe a mão e
perguntou com a delicadeza de uma criança:
— Poderás perdoar-me outra vez?
A filha de Madalena recuperou as energias intimas e falou com serenidade:
— Não te preocupes comigo, Carlos. Reconheço, agora, que a vontade de
Deus é outra, a nosso respeito. Não chores nem sofras.
Extremamente comovido com aquela prova de humildade e renúncia, o exsacerdote
ponderou:
— Sou casado, Alcione, mas não feliz... Nunca pude esquecer-te.
Certamente, Deus nos criou para a união eterna. Cada coisa do lar, cada pormenor
da vida doméstica lembra-me teus sentimentos nobres, porqüanto
minha mulher não pode substituir-te.
— Sim — disse a moça com desvelado carinho —, também creio que há
um casamento de almas, que nada poderá destruir. Este deve ser o nosso
caso. O mundo nos separa, mas o Altíssimo nos reservará a aliança eterna do
céu.
O pupilo de Damiano tinha o peito oprimido por indefinivel angústia.
Coração prisioneiro das indecisões de quantos se afastam do dever divino,
voltou a dizer:
— Quem sabe, Alcione, poderíamos repudiar as algemas terrestres e
construir nossa felicidade longe daqui?... Minha mulher e eu vivemos em rixas
constantes, atravesso a vida sem paz, sem uma dedicação verdadeiramente
sincera. Estou pronto a seguir-te, desde que aproves êste recurso extremo, em
detrimento de meus compromissos atuais.
— Isso nunca! — exclamou a filha de Madalena com bondade enérgica —
amemos os trabalhos de nossa estrada, por mais duros que nos pareçam.
Jamais construiríamos um ninho de ventura e de paz, na árvore do crime. Deus
nos dará coragem nesta fase difícil. A existência na Terra não constitui a vida
em sua expressão de eternidade. Quando o Senhor desatar os laços a que te
prendeste num impulso muito natural e humano, encontrarás de novo meu
coração... A esperança é invencível, Carlos. Tôda inquietação, tôda amargura,
chegam e passam. A alegria e a confiança no porvir eterno permanecem. São
bens do patrimônio divino no plano universal...
Ouvindo-lhe os conceitos profundos, oriundos da fé poderosa que lhe
caracterizava o espírito, Clenaghan chorava num labirinto de remorso e sofrimento.
— Se fôr possível — prosseguia a moça com generosidade — desejaria
conhecer tua companheira de lutas. Talvez pudesse incliná-la a melhor compreensão
das tuas necessidades. Ás vêzes, basta uma simples conversação
para renovar a opinião de uma criatura. Não crês que eu possa contribuir, de
algum modo, em teu favor, com semelhante aproximação?
O infortunoso Carlos sentia-se comovido nas fibras mais íntimas, com o
delicado oferecimento, redargüindo em tom melancólico:
— Quitéria não é digna dessa esmola da tua bondade. Basta dizer-te que,
conhecendo a ligação afetiva existente entre nós, pelas minhas sucessivas
referências e por informações de antigas amizades nossas, em Ávila, sempre
alude à tua pessoa com laivos de ironia e rancor.
A filha de Cirilo entrou em silenciosa meditação. O destino não lhe permitia
nem mesmo aproximar-se do lar edificado pelo eleito de sua alma. Sua
afetividade, bem como o espírito de renúncia não poderiam ser compreendidos.
236
Restava-lhe regressar à casa de Beatriz, conformar-se com a nova situação e
esperar por Clenaghan num outro mundo, aonde fôsse conduzida pela mão da
morte. Longa pausa estabelecera-se entre ambos. Foi ai que lhe nasceu a idéia
de consagrar-se à solidão da vida religiosa, no intuito de trabalhar no seu
elevado idealismo.
— Não ficas magoada pelas minhas confissões? — perguntou o exsacerdote
angustiado.
— De modo algum — respondeu, esforçando-se por lhe parecer satisfeita
—, tua espôsa tem razão. Depois de visitar o velho sítio de minha infância e a
casinha tôsca onde minha mãe, tantas vêzes, me exemplificou a resignação,
voltarei à França sem perda de tempo.
— Quando nos veremos novamente? — interrogou êle inquieto.
— A vontade de Deus nô-lo dirá mais tarde. Até lá, meu querido Carlos,
não esqueçamos a dedicação aos nossos deveres e a obediência aos divinos
desígnios.
— Deixas-me em Castela, amargurado para sempre. Creio que jamais
poderei apagar o remorso que tisnará minhalma doravante. Aprenderei,
duramente, a não atender aos primeiros impulsos do coração. Se fôsse menos
precipitado no julgar, poderia oferecer-te, agora, a minha fidelidade perene.
Esqueci, porém, a prudência salvadora e mergulhei num mar de angústias
torturantes. Andarei, na Terra, como náufrago sem pôrto.
E terminando amargamente as suas considerações, rematava:
— Pede a Jesus por mim, para que o desespêro não me faça mais infeliz.
— Não te percas em semelhantes idéias — exclamou a filha de Madalena,
completamente senhora de si —, estamos neste mundo, de passagem para
uma esfera melhor. Por certo que a nossa felicidade não se resumiria em
atender, por algum tempo, aos nossos desejos, com o olvido das mais nobres
obrigações. É indispensável encarar as dificuldades com ânimo decidido. Luta
contra a indecisão, pela certeza de que Deus é nosso Pai, misericordioso e
justo... Se nos vemos novamente separados, é que há trabalhos convocandonos
a testemunhos mais decisivos, até que nos possamos reunir nas claridades
eternas.
Clenaghan prestava acurada atenção a cada uma de suas palavras sábias
e carinhosas. Em seguida a uma pausa, Alcione prosseguia cheia de amor e
compreensão:
— Não maltrates tua mulher, sempre que o seu coração não te possa entender
integralmente. Quando assim fôr, fase por ver nela uma filha. Quando não filha
de tua carne, filha de Deus, seu e nosso Pai. A bondade liberta o ódio e a
desesperação agrava os laços mesquinhos. A confiança em que o Pai Celestial
nos ajudará, nos testemunhos diários, transforma nosso espírito para uma vida
mais alta, ao passo que a revolta e a dureza nos prendem espiritualmente ao
lôdo das mais baixas provações. Ainda que tua companheira seja ingrata,
perdoa-lhe como amigo compassivo. Nenhum de nós está sem pecado, Carlos.
Por que condenar alguém ou agir precipitadamente, quando também somos
necessitados de amor e de perdão? Vive no otimismo de quem trabalha com
alegria, confiante no Divino Poder. À nossa frente desdobra-se a eternidade
luminosa!... Embora separados no plano material, nenhuma fôrça da Terra nos
desligará os corações. Muitas obrigações poderão encarcerar-nos
transitoriamente na Terra, mas o elo do amor espiritual vem de Deus, e contra
êle não prevalecem as injunções humanas...
237
Ante as observações judiciosas de Alcione, Carlos pôde reconfortar-se, de
algum modo, para retomar a luta purificadora. Só muito tarde, separaram-se
em penosas despedidas.
A filha de Madalena, disfarçando a dor que a empolgava, cumpriu
rigorosamente a promessa. Depois de beber na taça da saudade, revendo os
antigos sítios das primeiras esperanças, sem mesmo se dar a conhecer às
relações de outros tempos, regressou a Vigo, onde se demorou quase um mês
em meditações silenciosas e doridas. Sua permanência em Ávila poderia
acarretar complicações à vida doméstica do homem escolhido. A jovem espôsa
de Clenaghan, possivelmente, criaria pesadelos de ciúme, sem justificativa.
Diàriamente, à tardinha, Alcione aproximava-se da praia, contemplando as
velas pandas que se afastavam no estendal das águas movediças. Profunda
saudade dominava-lhe o coração. Após longos dias, nos quais procurava
rememorar, uma a uma, as velhas advertências do Padre Damiano, quando na
vida religiosa, resolveu retirar-se do mundo para a soledade dos grandes
pensamentos. Não desejava, de nenhum modo, atirar-se ao repouso
permanente da sombra, mas, sentindo-se na plenitude de suas energias
orgânicas, refletia que não era lícito pensar na morte do corpo e sim no melhor
meio de atender ao trabalho, de coração voltado para Jesus. Se partisse em
companhia de Beatriz, naturalmente não lhe faltariam as bênçãos da vida
familiar, mas, o coração não se conformava com a idéia de repouso constante,
O ‘destino não lhe dera um lar próprio, onde lhe fôsse possível consagrar-se
inteiramente ao homem amado e aos filhinhos do seu amor. Seus pais já
haviam partido para uma vida melhor, o irmão adotivo lhes fôra no encalço. Na
condição de mulher, tomaria, então, o hábito religioso, a fim de atender aos trabalhos
do Cristo. Não faltariam os deserdados, os doentes, os enjeitados, para
quem Jesus continuava passando sempre, nas estradas do mundo, distribuindo
energias e consolações. Consagrar-se-ia ao serviço de socorro às criaturas,
em benefício dos que necessitassem. Iria ao encontro do Mestre, pelo
aproveitamento mais nobre do tempo de sua vida.
Nessa disposição espiritual, regressou a Paris, onde a irmã a esperava
ansiosa e saudosa.
Apesar de serena e confortada na fé, não podia mascarar o abatimento e a
tristeza que lhe pairavam na alma sensível, e foi com lágrimas que relatou à
Beatriz o resultado da longa excursão. A espôsa de Saint-Pierre, visivelmente
emocionada, buscava confortá-la:
— Tudo isso passará com o tempo. Na América hás de achar lenitivo ao
coração sofredor.
Mas a filha de Madalena comunicou-lhe a resolução de tomar outro rumo.
Vestiria o hábito religioso, dedicar-se-ia ao coração de Jesus, enquanto lhe
restassem fôrças no mundo. A irmã tentou dissuadi-la.
— E nosso lar? — perguntava a filha de Susana, ansiosa por lhe modificar
a decisão. — Como nos seria dolorosa a falta de tua companhia.
Alcione quis dizer que se sentia quase só, distanciada das afeições
primitivas, mas, para não suscetibilizar a irmã devotada, objetou solícita:
— Pedirei, mais tarde, para visitar a América e passarei contigo o tempo
que fôr possível, mesmo porque não é justo olvidar que teus futuros filhinhos
serão também meus.
E não houve como lhe modificar o intento.
De nada valeram as exortações de Henrique, os rogos da irmã, os
238
carinbosos pedidos dos servos.
A filha de Cirilo tinha uma palavra amável e um sincero agradecimento para
todos, mas justificava o caráter sagrado de suas intenções.
A mudança de Henrique de Saint-Pierre para o Novo Mundo já estava
definitivamente aprazada, quando Alcione assentou a data do seu ingresso
num modesto recolhimento de freiras carmelitas.
Na véspera, sem que alguém o soubesse, visitou o túmulo da genitora,
levando-lhe a homenagem do seu respeito filial, naquele instante grave da sua
vida. Defronte do sepulcro, de alma colada às recordações afetivas, pôs-se de
joelhos e monologou baixinho:
— Ah! vós que experimentastes largos anos de reclusão e sacrifício; vós,
minha mãe, que fôstes tão devotada e carinhosa, ajudai-me a levar a Jesus o
voto silencioso de fidelidade até ao fim dos meus dias! Não me desampareis
nas horas escuras, quando a saudade se fizer mais amarga ao meu coração.
Inspirai-me pensamentos de fé, paciência e compreensão das coisas divinas.
Auxiliai-me nos trabalhos, abençoai-me nos testemunhos. Não esqueçais, no
céu, da filha a quem tanto amastes na Terra!...
Em seguida à prolongada meditação, voltou ao palacete da Cité, despediuse
afetuosamente de todos os servos e, já na manhã imediata, Saint-Pierre e
sua mulher abraçavam-na, compungidos, à porta do mosteiro.
Um ano de noviciado passou, no qual a filha de Madalena deu provas
exuberantes de coração puro e de consciência ilibada.
No dia que precedeu a resolução definitiva, a superiora chamou-a com
austeridade, num gabinete particular, e sentenciou:
— Minha filha, estás francamente decidida a abandonar o mundo e os seus
gozos?
Sim, madre — respondeu, humildemente.
— Deves saber que coisa alguma do passado te poderá acompanhar até
aqui.
A moça fêz um gesto expressivo e rogou:
— Compreendo-vos; entretanto, pediria permissão de levar para minha cela
um objeto muito caro.
— Que é?
— Um velho crucifixo que pertenceu a minha mãe.
— De acôrdo.
Depois de uma pausa, a madre abadessa voltou a perguntar:
— Que outros pedidos tens a fazer?
A nova professanda lembrou-se de Carlos, que não poderia excluir do
coração e de Beatriz, a quem se sentia ligada por santo reconhecimento, e indagou:
— Desejava saber se poderei participar de algum trabalho na América,
mais tarde, e se poderei futuramente pleitear minha transferência para algum
convento de Espanha.
— Tudo isso é possível — esclareceu a superiora.
E os teus bens?
— Assinarei amanhã o título de doação do que possuo, a benefício da
nossa Ordem.
— No momento crítico de tua resolução, Alcione Vilamil deve estar morta
para o mundo profano. Que nome desejas adotar na suprema união com
239
Cristo?
— Maria de Jesus Crucificado — disse, cândida e naturalmente.
Terminou o interrogatório.
No dia seguinte, pela manhã, em solene ritual, cercada pela admiração das
companheiras e de numerosos clérigos, a filha de Madalena ajoelhou-se ante o
altar de Jesus coroado de espinhos, e fitando o maravilhoso símbolo da cruz,
de olhos brilhantes e confiantes, repetiu enternecida a frase sacramental:
“Eis aqui a serva do Senhor. Faça-se em mim segundo a sua palavra.”
240
7
A despedida
Estamos nos primeiros anos do século 15III. Alcione Vilamil, agora Irmã do
Carmelo, é um exemplo vivo de amor cristão. Tendo passado dos quarenta
anos, a fisionomia conservava a beleza da madona esculturada pela virtude.
Muitas vêzes, na solidão de si mesma, nos primeiros dias de reclusão, refletiu
se não teria sido melhor acompanhar Beatriz à América. O amor de Carlos,
porém, lhe falava mais alto à consciência. Tal como outrora a genitora, em
seus padecimentos, absolutamente prêsa à lembrança do marido, a filha de
Cirilo sentia-se em perene viuvez de coração. A seu ver, não poderia seguir
para a América, onde seria naturalmente convocada ao espírito de novidade,
quando sabia o eleito de sua alma ligado ao solo de Espanha. Em sua
luminosa compreensão da vida, via em Clenaghan um fraco, não um criminoso;
e no recôndito dalma alimentava a esperança de aproximar-se um dia do seu
lar, de maneira a lhe ser útil. Quando êle a visse envergando o hábito religioso,
certo que a espôsa lhe respeitaria a condição, abstendo-se de qualquer
sentimento menos digno a seu respeito. Inconcebível, então, a tentativa de
novas atividades na América, quando entrevia possibilidades de auxiliar o
pupilo de Damiano em suas necessidades do coração.
Não obstante êsse poderoso magnetismo do amor, também nutria o
sincero propósito de visitar a irmã, no Connecticut, plano êsse que ainda não
fôra possível realizar, dado o nobre serviço a que se afeiçoara, para maior
júbilo das companheiras.
Depois de pronunciar o voto definitivo, não esteve em França mais que um
ano e transferiu-se para a Espanha, onde trabalhou primeiramente em
Granada, por mais de um lustro, em favor das crianças desvalidas e dos
desventurados da sorte. Por sua dedicação e humildade, convertera-se numa
orientação viva para as irmãs de apostolado. Geralmente, não faltavam as
intrigas, o esfôrço ingrato da inveja e da maledicência, tão comuns nos
conventos da época; ela, porém, sem exorbitar da sua conduta evangélica,
desconhecia tôdas as atividades da sombra, para cogitar sômente da sua
tarefa espiritual com o Cristo. Por Isso mesmo, sua exemplificação constituía
um símbolo precioso para a comunidade. Ao seu contato, inúmeras companheiras
renovavam as concepções próprias. Sua dedicação ao serviço
contagiava outros corações, que se sentiam seduzidos pela grandeza dos seus
atos e ideais, dentro do Evangelho. Jamais conseguira efetivar o velho desejo
de visitar Beatriz, mas, em compensação, criava, em tôrno da sua personalidade
simples e poderosa, um verdadeiro colégio de irmãs pelo coração,
que a admiravam e seguiam devotadamente. Depois de longo tempo,
conseguiu fixar-se na comunidade carmelitana de Medina Del Campo. Antes,
porém, obedecendo a secreta ansiedade do coração, visitou Ávila, lá se
demorando mais de uma quinzena. No entanto, com grande surprêsa, não
mais encontrou Clenaghan, sendo informada de que o comerciante irlandês,
após enorme infortúnio doméstico, retirara-se para a França, deixando a
mulher, que lhe havia conspurcado o lar e o nome. Alguns amigos chegavam a
declarar que o sobrinho de Damiano estava resolvido a retomar a batina, se
conseguisse permissão das autoridades eclesiásticas. Outros opinavam que o
ex-padre pretendia insular-se nalgum remoto convento, onde pudesse
consagrar o tempo às meditações divinas.
241
Alcione tudo ouviu, lamentando profundamente, mas, abstendo-se de
qualquer comentário, com aquela discrição que lhe assinalava as atitudes.
Entretanto. intimamente, examinava o assunto sem eximir-se a grande
estranheza. Com que intenção viajaria Carlos para a França? Pretenderia revêla?
Essa hipótese não era plausível, pois êle estava mais que informado do seu
plano de mudança para o Novo Mundo. Dolorosas considerações lhe vieram ao
espírito sensível, mas, atendendo às advertências santas da fé, buscava
entregar a Jesus as penas e anseios de cada dia, invocando-lhe o socorro
divino.
Recolhida em Medina Del Campo, não nas sombras do claustro, mas nos
trabalhos nobres do coração que se consagra a Jesus, nunca mais teve notícia
de Carlos, embora os anos perpassantes lhe trouxessem renovadas
esperanças em cada dia.
Na época em que nos encontramos, Maria de Jesus Crucificado
desempenha no convento a tarefa de subpriora, por fôrça da enfermidade
rebelde e dolorosa que, de há muito, prende ao leito a madre-superiora. A
instituição de Medina é realçada pelo seu espírito de atividade. Extensa porção
de terra é aproveitada em trabalhos fecundos, que aproveitam aos desvalidos.
A infância desamparada ali encontra escola ativa para a educação em seus
prismas essenciais. Mães sofredoras recebem esforçada cooperação das
Filhas do Carmelo. Alcione é a alma de tôdas as tarefas, mas, por isso mesmo,
começou a ser alvo do despeito e da perseguição gratuitos. Enquanto a velha
superiora repousa em tratamento, sua atividade transformadora converte a
casa num templo de trabalho e de alegria.
Quando sua ação benemérita começa a dilatar o círculo de trabalhos, eis
que o Padre Geral da Ordem, falsamente informado, designa um capelão de
Madrid para substituir o probo religioso que cooperava com a filha de Madalena
em suas obras renovadoras, e a situação se modifica inteiramente.
Frei Osório chega a Medina Del Campo com a secreta recomendação de
averiguar o que existe sôbre a vigorosa atuação da carmelitana humilde. Seu
ingresso na casa dá motivo a fortes preocupações. E com efeito, no curto
espaço de dois meses, algumas companheiras de Alcione levavam-lhe queixas
bem amargas, a respeito da conduta do novo sacerdote. Osório ainda não
havia atingido os cinqüenta anos; mas, por suas atitudes exteriores, dir-se-ia
um homem profundamente amadurecido nas experiências do mundo. Isso,
porém, resultava tão só do velho hábito de afivelar ao rosto a máscara da
santimônia. No íntimo, não passava de um ser viciado e perverso, para quem o
prestígio da autoridade era válvula de escapamento para os próprios desvarios.
A princípio, esforçou-se por obter algum testemunho menos digno, comprometedor
da subpriora; todavia, em cada coração, Alcione estava entronizada como
em altar de amizade e gratidão puras. A instituição, porém, ao contrário de
suas congêneres, dava-lhe a impressão de uma casa generosa do mundo, sem
as características de monastério impenetrável, destinado ao recolhimento da
piedade preguiçosa, O capelão inspetor começou a manifestar profundo
desagrado por tudo quanto via. Aquêle intercâmbio constante, com o mundo
secular, tirava ao núcleo carmelita a feição freirática dos demais conventos da
ordem. As religiosas eram mais ativas e por isso mais habilitadas para
conhecer as fraquezas humanas e dar combate às tentações. Frei Osório
achava-se num ambiente para êle desconhecido, até então. Outras visitas dessa
natureza sempre lhe facultavam ensejo de numerosos regalos. A pobre
242
freira afastada do mundo era, invariàvelmente, um campo vasto de mesquinha
exploração para os seus sentimentos lúbricos. Ali, no entanto, a coisa mudava
de figura. A subpriora, nas reuniões internas, comentava os ensinamentos de
Jesus, em desacôrdo com os teólogos; prodigallzava oportunidades de serviço
a cada companheira, como lhe parecia melhor, distribuía eqüitativamente o
trabalho, de acôrdo com as vocações. Era impossível desconhecer o caráter
inteligente e precioso da comunidade, mas Frei Osório, não encontrando a
esperada vasa para as suas aventuras indignas, prometeu a si próprio
modificar o espírito fundamental da instituição.
Seu esfôrço caviloso começou no confessionário, onde empregou os mais
baixos ardis para convencer uma que outra religiosa a lhe aceitar as
indecorosas propostas. As pobres criaturas, aturdidas com as maquinações
diabólicas do conquistador, procuravam a nobre amiga, ansiosas dos seus
conselhos. Alcione sentia-se amargurada. Não podia conservar, sem perigo,
um lôbo entre as ovelhas; por outro lado, qualquer reclamação aos superiores
da Ordem poderia ser interpretada como rebeldia. Depois de longas semanas
de meditação, resolveu submeter o caso ao critério da venerável madre-superiora.
A bondosa velhinha, no seu leito de sofrimento e resignação, ouviu
alarmada a confidência penosa da filha de Madalena.
— Que nos aconselhais? — dizia Alcione comovida. — A vossa
experiência, minha boa madre, é para nós outras um seguro roteiro!
A anciã doente endereçou-lhe um olhar triste e sentenciou:
— Ah! minha filha, por desejar o caminho reto, muito sofri neste mundo,
desde os primeiros tempos de noviciado. O flagelo da Igreja continua sendo os
sacerdotes indignos. Quem sabe poderemos chamar Frei Osório à senda do
Cristo?
— Não considerais razoável pedir ao Geral que nos mande outro capelão?
— Não — respondeu a enfêrma —, se o fizéssemos, despertaríamos
suspeita imerecida e, então, talvez tivéssemos êste mau religioso em nossa
companhia por muitos anos... Será preferível que o chames, em particular, e
lhe peças, em nome de Jesus, que não minta aos compromissos assumidos.
A filha de Cirilo quis responder que não se sentia com autoridade para
admoestar a ninguém, mas a noção de obediência fê-la calar-se, humilde. A
priore, todavia, parecendo adivinhar-lhe os pensamentos secretos, acentuou:
— Naturalmente, minha filha, não vais exortar um sacerdote que deveria
saber, muito bem, cumprir a rigor os seus deveres, mas apelar para um irmão,
a fim de que nossa casa não seja perturbada. Sinto que as circunstâncias me
indicam semelhante tarefa, mas, encontro-me bastante debilitada para
argumentar como convém. Além disso, tôdas reconhecemos que o Senhor te
favorece com luminosas inspirações nos ensinos evangélicos. Compreendo
quanto esta prova te custa, mas não vejo outra irmã que possa substituir-te.
Maria de Jesus Crucificado calou-se, sem mais dizer.
Uma semana se passou, entre reclamações das freiras assustadas e
preces fervorosas com que Alcione rogava a Jesus o poderoso socorro de sua
assistência, de molde a desempenhar a incumbência que lhe fôra cometida.
Depois disso, valendo-se de um momento em que o sacerdote se
encontrava só, na Capela, a filha de Madalena revestiu-se de coragem e lhe
pediu licença para algumas palavras, em particular.
— Frei Osório — começou humildemente —, sei, de antemão, que não
tenho capacidade para advertir a ninguém; sou fraca e pecadora; entretanto,
243
ouso vir à vossa presença, a fim de apelar para os vossos sentimentos de
irmão.
— De que se trata? — perguntou o padre abruptamente.
Ela o fixou num olhar muito significativo e acrescentou:
— Venho pedir a vossa cooperação a favor das muitas jovens que aqui se
encontram sob a nossa responsabilidade.
Percebendo a natureza do caso, o interlocutor assumiu uma atitude
hipócrita, como soía fazer, e replicou:
— Sou acusado de alguma falta? Desejaria conhecer a caluniadora.
— Ninguém vos acusa — esclareceu a religiosa, nobremente —, temos
bastante consciência de nossas próprias fraquezas, para nos arvorarmos, impensadamente,
em censoras de nossos irmãos. Apenas solicitamos ao vosso
coração, em nome de Jesus, que nos auxilie com o entendimento de um pai.
— Devo dizer-lhe, irmã, que considero a sua atitude como um atrevimento.
— Talvez seja — murmurou Alcione, humilde —, mas sou a primeira a
pedir-vos perdão, esperando me releveis pela intenção com que cometo esta
ousadia.
— Este apêlo deixa subentender graves injúrias — disse Osório,
hipocritamente — e estranho muito que tivesse coragem para tanto.
— Já vos disse, padre, que não tenho autoridade para admoestar a
ninguém. A vós me dirijo como irmã.
Contrariado em seus propósitos inferiores, o sacerdote contemplou-a irado
e redargüiu:
— Não a reconheço como irmã do Carmelo, sim como inovadora, passível
de severa punição. Suas interpretações do Evangelho constituem um atestado
de desobediência. Esta casa mais se assemelha a um albergue mundano e
creio que tôda perturbação se deve à sua influência anárquica. Esta instituição,
de há muito, não vive de conformidade com as regras, mas ao sabor de seus
caprichos.
A interlocutora permanecia em silêncio, amargamente emocionada.
Interpretando essa atitude como sinal de pusilanimidade, o sacerdote continuou:
— Onde já se viu semelhante liberdade, qual a vemos a dentro dêstes
muros? Ainda não ouvi qualquer expressão de acatamento aos nossos
teólogos; a comunidade, sempre interessada em atender ao mundo, não
encontra tempo adequado ao serviço de adoração. O nosso compromisso é de
obediência absoluta à autoridade!...
As observações eram feitas com tanta acrimônia que Alcione se viu
constrangida a tomar a defesa do Evangelho, pelo muito amor que consagrava
ao seu conteúdo divino. Por si mesma, experimentava tôda a extensão da
fragilidade humana e jamais se animaria a discutir; entretanto, à luz da verdade
cristã, outra deveria ser a sua atitude. Não podia considerar virtude a
complacência com o mal. Osório invocava o próprio Cristo, no sentido de
acobertar ações mesquinhas, e ela precisava defender a lição pura e simples
do Mestre, sem perder a expressão de amor que lhe vibrava nalma. Como
tantas vêzes lhe acontecera noutros tempos, Alcione procurou encará-lo, como
a um doente e necessitado de luz. Depois de o envolver num olhar quase
maternal, falou serenamente:
— Tôda autoridade humana, quando inspirada na justiça, deve ser
venerável a nossos olhos; todavia, padre, é preciso não esquecer que o nosso
244
primeiro compromisso é com Jesus.
O capelão inspetor experimentou grande surprêsa com aquela nova atitude
da interlocutora. Falando de si mesma, a religiosa apagava-se nas afirmações
humildes, mas, tratando do Cristo, parecia tocada de misterioso poder.
Preparando-se para ser ainda mais cruel, asseverou com certa dose de ironia:
— Obrigações com Jesus? Não me parece que a senhora as preze tanto
assim. Noto aqui muito maior preocupação com o mundo. As filhas do Carmelo,
em Medina, sob a sua atuação prejudicial, não encontram tempo para tratar da
alma. O dia inteiro, grande confusão se verifica às portas desta casa. Uma
falsa piedade vai estabelecendo a desordem. Será isso obrigação com Jesus?
Fitando-o com nobreza de ânimo, ela respondeu:
— Não nos consta que o Mestre se afastasse do mundo para servi-lo, O
Evangelho não o apresenta enclausurado ou recolhido à ociosidade da sombra.
Pelo contrário, Jesus atravessou a pé grandes extensões da Palestina,
ensinando e praticando o bem. João Batista, nas anotações de Lucas (1) nô-lo
revela como o trabalhador que tem a pá nas mãos. Seu apostolado foi
integralmente de realização e movimento. Era impossível atender à salvação
do mundo, afastando-se de suas necessidades. Por essa razão, vemos o
Messias entre fariseus e publicanos, nas festividades domésticas e nos ajuntamentos
da praça pública, dando cumprimento à sua missão de amor. Como
poderemos servir à sua causa divina, inclinando-nos à preguiça, sob o pretexto
de uma falsa adoração? Muitas de nós, religiosas, deixamos os afetos
familiares para consagrar tôdas as energias ao serviço do Cristo. Mas, de que
natureza serão êsses trabalhos? Acreditais, frei Osório, que Jesus necessite de
mulheres ociosas? Não admitais semelhante absurdo. A atividade do Mestre, a
que fomos chamadas, é a de colaboração com o seu devotamento na causa da
paz e da felicidade humana. Em tôrno de nossos conventos, há mães que
choram sob o guante de necessidades cruéis, criancinhas abandonadas que
requisitam socorros urgentes, velhos respeitáveis totalmente desamparados.
Seria razoável a continuação das atitudes convencionais de falsa devoção,
quando Jesus prossegue, pelos caminhos, animando e consolando? Por vêzes,
padre, em nossas missas solenes, quando o luxo dos altares impressiona os
nossos olhos, julgo que o Mestre está às portas do Templo, confortando as
viúvas descalças e rôtas, que não puderam penetrar no santuário, pela deficiência
das vestes. Por que manter o rigor das regras humanas, quando o
ensinamento da caridade
(1) Lucas, 3:17. — Nota de Emmanuel.
cristã é tão simples e tão puro? Por que repetirmos uma prece mil vêzes, nas
festas de Santa Cruz, e negarmos dois minutos de palestra carinhosa ao
infortunado? Não seria essa nossa estranha atitude a perfeita personificação
daquele sacerdote indiferente, da parábola do Bom Samaritano? Não considero
a fé um meio de obter favores do Céu, ao sabor do nosso alvedrio pessoal, e,
sim, um tesouro do Céu, que a Terra está esperando, por nosso intermédio.
Profundamente despeitado e surpreendido, Osório aproveitou pequena
pausa e objetou:
— Suas idéias denotam exaltação doentia. No desempenho de deveres
inerentes ao meu cargo, condeno-as em bloco.
— E que entendeis por vosso cargo? — perguntou Alcione com intenso
245
brilho no olhar. —Todos os homens dignos têm tarefas respeitáveis, por mais
simples que pareçam; um sacerdote, porém, recebeu do Céu missão divina.
Um padre deveria ser um pai. Entretanto, vêde, os discípulos sinceros
escasseiam em tôdas as comunidades, O mundo está cheio de eclesiásticos,
mas só pode contar com raríssimos missionários.
— Isto é um insulto à autoridade da Igreja — acrescentou o interlocutor
irritado.
— Estais enganado. Minhas afirmativas podem ser uma apreciação de
nossa miserabilidade neste mundo, mas não podemos esquecer que a Igreja
do Cristo é inviolável. Nossas fraquezas não a atingem.
— Vejo que sua opinião é a dos que trabalham atualmente pela destruição
da fé.
— Grande é o vosso equívoco, frei Osório. Ninguém destruirá, na Terra, a
Igreja de Jesus. Ainda que todos os homens se conluiassem contra ela, o
instituto cristão continuaria puro e intangível. Devemos considerar, contudo,
que todos os elementos humanos, colocados a seu serviço sôbre a Terra, hão
de ser necessàriamente modificados. Nossos templos frios e impassíveis serão
transformados mais tarde em casas de amor, como lares de Deus, onde as
criaturas possam encontrar o verdadeiro culto da sua inspiração e do seu amor
sublime, Os conventos deixarão de ser âmbitos de sombra, para que o Mestre
nêles identifique tabernáculos da fé e caridade puras. Nós, monjas, teremos
interpretado o serviço divino de outro modo, escalonando pelos hospitais,
creches, asilos, escolas.
O capelão contemplou-a assombrado e exclamou com ironia:
— Com tôda essa veia profética, que nos prediz a nós outros, os
sacerdotes?
A filha de Madalena fitou-o com serenidade e sem hesitação redargüiu:
— Vós, por certo, compreendereis, afinal, que os interêsses pecuniários
deverão desaparecer das casas consagradas ao Cristo. Por essa época,
talvez, vós, os padres, sereis como Paulo de Tarso repartindo a tarefa entre o
tear e a pregação, para que a Igreja não seja acusada por nossos irmãos de
humanidade!... Sereis, talvez, como Simão Pedro, fiel até ao fim, depois do
período de negação!
Longe de esperar resposta decisiva e profunda como essa, o delegado do
Geral arregalou os olhos e disse colérico:
— A senhora é uma herética!
— Se a sinceridade e a verdade são heresias, para o vosso critério
pessoal, honro-me em servir ao Senhor com a minha consciência.
Tomando atitude terrível, qual se maquinasse odiosa vingança, Osório
acentuou:
— Ignora que poderei processá-la e punir-lhe o atrevimento?
Sem qualquer vislumbre de receio, a filha de Cirilo respondeu:
— Estou certa de que poderão cair sôbre mim todos os males do mundo;
não o estou menos de que Jesus tem todos os bens para me dar.
E, como se iniciasse o sumário dos pontos essenciais da futura sentença,
frei Osório continuou:
— Pela sua desconsideração aos nossos teólogos mais eminentes, poderá
ser acusada como rebelde e traidora aos princípios da fé, partidária dos
diabólicos luteranos, passíveis das mais fortes represálias.
— Deus conhece o meu íntimo e isso me basta — murmurou a filha de
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Madalena, com sincera humildade.
— Por suas interpretações audaciosas do Novo Testamento, a ponto de
seduzir diversas companheiras para o seu cisma, a senhora deverá conhecer,
naturalmente, uns tantos segredos da velha magia.
— O Mestre, por muito amar — acentuou Alcione tranqüila —, foi tido em
conta de feiticeiro, por muitos religiosos do judaísmo.
O capelão inspetor dissimulava a grande surprêsa que o invadia, de minuto
a minuto, pela inesperada resistência, e prosseguiu:
— A senhora tem desviado, na qualidade de subpriora, inúmeras e
preciosas dádivas feitas ao estabelecimento, graças a um serviço desordenado
de falsa piedade pelo próximo, com descaso completo dos interêsses de Deus.
— Não creio que os interêsses de Nosso Pai Celestial — esclareceu a
interlocutora — se adstrinjam e se agitem entre algumas paredes de pedra; e
enquanto estiver a meu cargo qualquer função religiosa, o dinheiro recebido
atenderá não sõmente às nossas necessidades, mas, também, às de quantos
possam receber os benefícios desta instituição, convicta como estou de não
haver obras sem fé, nem fé sem obras.
— Mas poderá pagar muito caro essa maneira de ver. Não são raros os
religiosos condenados por latrocínio.
— Compreendo até onde desejais chegar com semelhantes alegações,
mas a verdade é que nada possuo, além do meu hábito.
— Isso não impede que tenha comparsas fora dêstes muros.
Alcione fixou nêle um significativo olhar e acrescentou:
— Não posso impedir o vosso julgamento; todavia, posso afirmar que
estou satisfeita com o juízo de Deus, em Consciência.
Reconhecendo-lhe a inquebrantável firmeza, Osório acentuou
rancorosamente:
— Denunciá-la-ei ao Santo Ofício. Disponho de poderoso amigo junto do
Inquisidor-Mor de Madrid, que pode fazê-la expiar tão grandes delitos.
A religiosa manteve-se impassível diante da raivosa e grave ameaça,
murmurando muito tranqüila:
Podeis proceder como quiserdes. Quanto a mim, intercederei por vós em
minhas orações e tenho em Jesus um amigo forte, que pode absolver-vos.
Em seguida, retirava-se para os serviços internos, deixando o capelão
inspetor rilhando os dentes.
No dia seguinte ao incidente, que ficara ignorado para a própria superiora,
em virtude do silêncio a que se recolhera a filha de Cirilo, frei Osório viajou
para Madrid, arquitetando os planos mais perversos. Depois de apresentar
capcioso relatório ao Geral da Ordem, procurou o seu amigo frei José do
Santíssimo, um dos auxiliares do Inquisidor-Mor, a quem denunciou a religiosa
de Medina Del Campo, solicitando, com empenho, o emprêgo de sua influência
para que Maria de Jesus Crucificado fôsse punida por suas tendências
luteranas, recebendo aprovação aos seus propósitos sinistros.
Frei José do Santíssimo era Carlos Clenaghan, transformado em jesuíta.
Depois da tragédia conjugal em que sentira espezinhados os seus brios de
homem, o pupilo de Damiano voltara à vida religiosa, como um derrotado da
sorte, em supremo desespêro. A princípio, lutara com certa dificuldade para
conseguir seu intento, mas, a doação de todos os seus bens à Companhia de
Jesus lhe abrira as portas da famigerada comunidade dos inquisidores.
Acreditava que Alcione estivesse feliz na América, talvez casada com um
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homem digno de suas qualidades de santa e, deixando-se levar pela desesperação,
procurou instalar-se no Santo Oficio, a fim de perseguir os que lhe
haviam infelicitado o lar honesto. Coração amoroso embora, Clenaghan estava
agora completamente enceguecido pelo ódio. Sentindo-se um náufrago nos
planos da vida, não encontrava em sua fé fôrças para confiar plenamente em
Cristo e dava pasto às mais venenosas disposições de vingança. Depois de
alguns anos em que demonstrara hostilidade franca à sociedade humana, foi
admitido à posição de relêvo pelo Inquisidor-Mor da capital espanhola, num
cargo de confiança, em cujo desempenho conseguira realizar seu intento,
perseguindo o sedutor da mulher, fazendo-o recolher a sombrio cárcere em
Córdova. Pouco a pouco, esquecia os nobres ideais do pretérito. As antigas
palestras de Ávila, as observações do tutor, os conselhos e a exemplificação
de Alcione dormiam-lhe no coração, meio esquecidos. Por vezes, interpelava a
si mesmo se não teria sido demasiadamente sentimental no passado distante.
A atmosfera pesada e sufocante dos interêsses mesquinhos do mundo
entorpecia-lhe o espírito.
Recebendo a queixa de frei Osório, um de seus colaboradores fiéis na
perseguição movida aos desafetos de Castela-a-Velha, o auxiliar do Inquisidor
prometeu-lhe integral apoio sem nenhuma hesitação.
E, por isso mesmo, o capelão inspetor, apossando-se de alguns
documentos, voltou a Medina acompanhado por dois guardas incumbidos de
efetuar a prisão da religiosa denunciada. Osório, entretanto, conhecendo o
grau de estima que a filha de Cirilo desfrutava entre as companheiras, abstevese
de falar em medida tão grave, deliberando comunicar que a irmã do
Carmelo seria levada a Madrid para algumas admoestações necessárias.
Para êsse fim, determinou se realizasse uma assembléia interna, à feição
das que se verificavam no Capítulo, e, logo que reuniu a congregação, começou
a falar com acrimônia:
- Solicitei a reunião das dedicadas servas do Cristo, que se abrigam nesta
casa, para comunicar que o nosso muito digno Padre Geral, de comum acôrdo
com outras autoridades das virtuosas filhas do Carmelo, deliberou convidar a
Subpriora Maria de Jesus Crucificado a comparecer a Madrid, para receber
algumas instruções indispensáveis à administração dêste convento. Como
capelão inspetor, fui obrigado a expor perante os sapientíssimos diretores da
Ordem as deficiências desta instituição, onde os serviços da fé têm sido
grandemente sacrificados pelo contato quase incessante com o mundo
profano. A longa enfermidade da superiora deu azo a que sua substituta
ameaçasse esta obra por excesso de idealismo. O intercâmbio com os profanos
resulta sempre em escândalo e nas cruéis tentações de contato com os
impenitentes. Assumindo o compromisso de orientar as vossas atividades,
tenho de agir com a prudência de um pai, a fim de que não percais a graça do
Senhor. Nossa irmã, portanto, será devidamente admoestada e receberá, em
breve tempo, as novas normas de serviço da instituição, esperando eu que
compreendais a excelência desta medida, com o espírito de humildade que
sempre foi o luminoso apanágio das servas do Carmelo. No entanto, sem trair
a caridade da Igreja, a Subpriora tem a palavra para qualquer explicação que
considere oportuna, perante esta assembléia.
Alcione percebeu o véu da hipocrisia a ocultar a hediondez daquela atitude.
As companheiras contemplavam-na, ansiosas. A maioria, conhecedora do
condenável procedimento do sacerdote, aguardava com interêsse a sua reação
248
justa. Mas, num minuto, a filha de Madalena compreendeu que, abrir luta, seria
atirar a comunidade de moças frágeis contra inimigos perversos e poderosos. A
seu ver, devia caminhar sôzinha para o sacrifício. Enquanto ouvia os conceitos
fingidos do inspetor, lembrava o velho padre Damiano. À frente dos olhos da
imaginação, rememorou as reuniões carinhosas do ambiente doméstico de
Ávila e pareceu ouvir as respostas do religioso às suas perguntas infantis,
quando lhe dissera que o circo do martírio para os cristãos sinceros era agora o
mundo, e que as feras seriam os próprios homens. Deparava-se-lhe o ensejo
de verificar a exatidão daquele asserto. Frei Osório, que dissimulava tão bem o
verdadeiro móvel da sua animosidade mesquinha, certamente disfarçava, em
admoestação, alguma pena mais dolorosa e mais cruel. Não desdenharia,
porém, o testemunho que o Senhor lhe oferecia. Longe de envolver as amigas
e irmãs num movimento geral de confusionismo religioso, levantou-se
dignamente depois de interpelada, e murmurou:
— Para mim, frei Osório, tôdas as humilhações serão poucas, como todos
os nossos testemunhos de amor e reconhecimento a Jesus nunca serão
devidamente dilatados. Estou pronta a atender vossas ordens. Nada mais
tenho a dizer.
Amarga expressão de desânimo abateu-se sobre as companheiras. Com ar
de triunfo, o capelão voltou a dizer:
— Deverá, então, a Subpriora estar preparada para seguir amanhã, ao
romper dalva.
A assembléia dissolveu-se sob penosas impressões. Mais tarde, Alcione
dirigiu-se à cela da veneranda superiora e, confidencialmente, cientificou-a de
todos os fatos. A velha amiga abanou a cabeça, desconsolada, e sentenciou:
— Prepara-te, filha minha, para testemunhos amargurados! Assim te falo,
não com o fim de intimidar teu espírito carinhoso e sensível. Falo-te na
qualidade de mãe espiritual, prestes a partir dêste mundo e cansada de
espetáculos atrozes e de experiências ingratas...
— Ajudai-me, então, minha boa Madre — respondeu a filha de Cirilo com
grande serenidade esclarecei-me para que corresponda à confiança do Senhor
nos transes iminentes.
A respeitável religiosa contemplou-a enternecida, abraçou-a e beijou-a com
afeto, suscitando-lhe profundas reminiscências da mãezinha inesquecível, e
continuou:
— Quando os capelães inspetores falam de admoestação, isso significa
fome no cárcere ou suplício nas escuras salas de tormento. É possível que
Jesus te poupe o martírio perante os inquisidores cruéis. Para isso, filha,
rogarei incessante-mente a proteção de sua misericórdia, em favor da tua alma
generosa, mas não creio que te possas eximir da prisão infamante. Todavia,
morrer ao abandono nas celas imundas do Santo Ofício é mil vêzes melhor que
suportar os olhos despudorados dos maus eclesiásticos que infligem pesadas
torturas às mulheres indefesas. Sei de irmãs nossas que morreram no segundo
ou no terceiro grau de tormento, em completa nudez, por imposição de homens
impiedosos.
A filha de Madalena não pôde dissimular sua admiração.
— Geralmente — prosseguiu a interlocutora veneranda — é muito difícil
arranjarem um processo regular contra nós, as religiosas, por considerar a
Inquisição que a nossa atitude representaria, no conceito público, um atestado
de rebeldia tendente a desmoralizar os princípios da fé. Quase sempre, por
249
essa razão, os religiosos presos apodrecem no fundo dos cárceres, sem que
sejam visitados pela pretensa justiça da nefanda instituição, que mancha
nossos caminhos neste mundo.
Alcione meditou um momento e murmurou:
— Estou convencida de que Jesus não me abandonará, seja qual fôr o
testemunho que me esteja reservado.
— Sim, minha boa filha — afiançou a superiora osculando-lhe as mãos com
carinho —, Êle está conosco, segue-nos de perto, tal como nos primeiros dias
de perseguição nas catacumbas. Lembremos as virgens que morreram nos
circos, despojadas de suas afeições, espostejadas pelas feras sanhudas;
recordemos as crucificadas entre as fogueiras, servindo de pasto aos infames
festins cesarianos. Tenhamos confôrto em tais angústias, relembrando que o
próprio Messias foi conduzido, seminu, ao madeiro de nossas crueldades.
Lastimo que meu corpo alquebrado não me permita seguir-te no testemunho.
Mas o Senhor me concederá fôrças para quebrar as algemas que me prendem
ao leito da velhice e da enfermidade, a fim de louvar tua glória!...
A Subpriora, muitíssimo comovida com aquelas palavras sinceras e
carinhosas, murmurou, enxugando os olhos:
— Não deveis falar assim, querida Madre! Sou uma simples pecadora e,
nessa condição, todos os sofrimentos serão escassos às minhas necessidades
de aperfeiçoamento espiritual.
A bondosa enfêrma abraçou-a com mais ternura, dizendo em seguida:
— Lembra sempre que deixas nesta casa uma velha amiga que te
consagra maternal afeição!...
Alcione Vilamil engolfou-se em graves pensamentos, e, após alguns
minutos, sem trair a serenidade de sempre, pediu à interlocutora:
— Madre, caso não volte a Medina, como devo esperar, cientifico-vos,
desde já, de que é possível chegue até aqui algum pedido de informações a
meu respeito. Tenho ainda duas amizades muito fortes no mundo. Trata-se de
minha irmã, residente na América e de um ex-sacerdote, a quem me sinto
ligada por sacrossantos laços espirituais. Caso isso aconteça, peço-vos dar
noticias minhas.
A bondosa superiora fêz um gesto, como quem anotava mentalmente a
solicitação afetuosa, e a filha de Madalena deu-lhe o último beijo.
No dia seguinte, pela manhã, a Subpriora, entre os dois emissários, punhase
a caminho de Madrid, levando tão sômente o velho crucifixo da genitora e
um volume do Novo Testamento. Era tôda a sua bagagem. A viagem não foi
muito fácil, atentos os percalços da época; entretanto, terminou sem incidente
digno de menção. A religiosa de Medina Del Campo foi recolhida, sem mais
nem menos, a uma cela escura e úmida dos cárceres da Inquisição, na capital
espanhola.
No momento de ser deixada a sós, um dos verdugos que a conduziram ao
interior seqüestrou-lhe o Evangelho, explicando:
— A senhora pode ficar com o crucifixo, mas não pode aqui ficar com o
Novo Testamento, de vez que é acusada de herética e luterana.
Ela apenas esboçou um gesto de conformação.
— Frei José do Santíssimo, digno assessor de nossas autoridades —
continuou o algoz com acento hipócrita —, recomendou que a trouxéssemos
até aqui, onde receberá diariamente as rações de pão, até que êle tenha tempo
de ouvi-la.
250
Ela quis indagar o dia da audiência, mas, temendo reprimendas injustas,
calou-se. O frade, porém, continuou loquaz:
— Naturalmente que lhe será concedido o tempo necessário para despertar
a memória para a confissão geral de suas faltas. O Santo Ofício nunca faz
admoestações sem caridade.
Ao clarão da lanterna, a prisioneira nada mais identificou no compartimento
estreito e subterrâneo, além de um mísero colchão no solo úmido. E em
seguida a fastidiosas considerações do verdugo, relativamente ao espírito de
generosidade dos inquisidores, achou-se absolutamente só, em pesada
escuridão, ajoelhada, conchegando o crucifixo ao peito opresso.
Desde então, nunca mais pôde saber quando começava o dia ou a noite, a
não ser presumindo pelo canto de galos distantes. Envolvia-a uma atmosfera
de sombras invariáveis. De quando em quando, o irmão carcereiro renovava,
em silêncio, a provisão de pão e água, e mais nada. Algumas vêzes,
chegavam-lhe aos ouvidos os ecos amortecidos de gritos ou gemidos
lancinantes. Não podia duvidar de que provinham das salas de tormento.
Entre a resignação e a humildade, passou a primeira semana, um, dois,
seis meses.
Suas vestes estavam rôtas, o corpo enfêrmo e mirrado. Dadas a deficiência
de alimentação e a atmosfera úmida, a saúde não resistira às longas semanas
de reclusão. A religiosa de Medina sentia-se rudemente atacada pela moléstia
do peito. Relembrando os padecimentos de padre Damiano, reconheceu que a
tísica vinha partilhar das sombras da cela. Quando seria julgada? Agora, mais
que nunca, recordava as palavras da carinhosa Madre, sôbre a crueldade que
a Inquisição reservava às religiosas denunciadas como heréticas. Por certo,
jamais seria ouvida. Sua atitude poderia ser levada à conta de desmoralização
da Igreja, e o Santo Ofício preferia recolher o seu cadáver a exibi-la num autode-
fé. Contudo, de outras vêzes, a irmã do Carmelo experimentava
amargurosos pesadelos, nos leves momentos de sono, entre as rudes vigílias,
vendo-se à frente de algozes crudelíssimos, que a despojavam do hábito
infligindo-lhe duras sevícias. Despertava aflita, banhada de álgido suor, abraçando-
se à única recordação de sua mãe, em preces fervorosas. Febre alta
começou a minar-lhe o organismo.
Dez meses correram sôbre a crueldade de frei Osório. Entre preces cariciosas
e árduas meditações, a filha de Cirilo definhava devagarinho, surpreendendo
os próprios frades que montavam guarda ao cárcere, os quais, por vêzes,
contemplavam-na casualmente, nas visitas eventuais à sua gaiola de sombras.
Por essa época, a religiosa de Medina Del Campo experimentou o
esgotamento quase total das energias orgânicas e, compreendendo que o fim
deveria estar próximo, encomendava-se a Deus em sentidas orações. Longos
dias passaram, dando-lhe a impressão de uma noite invariável... Depois da
primeira grande hemoptise, Alcione sentiu-se num plano diverso, O aposento,
ordinariamente escuro, pareceu-lhe banhado de clarões cariciosos. Tanta era a
luminosidade, que enxergou o colchão e o crucifixo amado, tomando-se de
profunda admiração. Seu assombro não ficou aí. Em poucos instantes, divisou
no fundo da cela três figuras distintas. Eram seus pais e o velho Damiano, que
voltavam das regiões da morte por confortá-la. A enfêrma, em estado préagônico,
concluiu que estava prestes a partir. Emocionada, lembrou, na
delicadeza de seus sentimentos, que lhe competia apresentar aos visitantes
queridos uma atitude de carinhoso respeito e, não obstante a fraqueza,
251
ajoelhou-se e ergueu as mãos, sentindo-se cumulada por bênçãos inefáveis.
Jubilosa, observou que sua mãe estava bela como nunca, coroada por um halo
de radiosa luz. Enquanto Cirilo e Damiano permaneciam a distância de alguns
passos, Madalena Vilamil aproximou-se da filha, sorrindo ternamente e,
pousando-lhe a destra na fronte de alabastro, murmurou:
— Alcione, minha querida, depois do calvário doloroso, gloriosa será a
ressurreição!...
A interpelada inclinou-se osculando-lhe os pés e exclamando entre
lágrimas:
— Não sou digna!... não sou digna!...
A entidade amorosa beijou-a num transporte de imensa ternura. Foi aí que a
prisioneira, alongando os braços e, sob a forte impressão dos sofrimentos que
percebia em tôrno do seu cárcere, implorou em tom angustiado:
— Minha mãe, sei que nada mereço de Deus, mas, se é possível, não me
deixes morrer sob o desrespeito dos algozes impiedosos.
Em pranto convulsivo, notou que sua mãe enxugava uma lágrima. Todavia,
Madalena enlaçou-a nos braços, ternamente, e asseverou:
— Não temas, minha filha! Partirás com o amparo dos anjos!...
Nesse instante, contudo, o frade carcereiro abriu sübitamente a porta, a fim
de ver com quem conversava a religiosa, em voz tão alta. Ao clarão
avermelhado da lanterna, desfez-se a sublime visão. O vigilante fitou-a
espantado. Genuflexa, mostrando impressionante olhar a perquirir o desconhecido,
a irmã do Carmelo tinha no hábito rôto largas manchas rubras. “A
perda de sangue fê-la desvairar”, pensou o vigilante de si para si. E,
assombrado com o que via, levou a notícia ao superior hierárquico, dizendo
parecer-lhe que a prisioneira começava a experimentar os delírios da morte.
O Santo Ofício, por ironia, mantinha certo número de médicos a seu
serviço, os quais muïtas vêzes opinavam sôbre a natureza e grau de tortura a
infligir aos condenados, a pretexto de que os réus deveriam ser punidos com
muita caridade. Um médico foi chamado, incontinenti, para examinar e informar
o estado geral da religiosa de Medina. Após o exame, o facultativo, de
autoridade a autoridade, chegou até ao gabinete de frei José do Santíssimo.
Feitas as saudações de praxe, afirmava solícito:
— A ré está irremediàvelmente perdida.
— Não suportará, sequer, as disciplinas preliminares do potro? — indagou
o representante do Inquisidor-Mor. — Trata-se de um caso ligado a
reclamações de um amigo, a cuja bondade muito devo.
— Aquêle corpo já não resiste à menor tortura. Creio que ela está nas
últimas.
O interlocutor fêz um gesto de contrariedade e voltou a dizer:
— É um processo que espera por mim há mais de dez meses; entretanto,
tenho tido necessidade de atender a repressões de maior importância.
— Afirmo-vos — esclareceu o facultativo atencioso — que qualquer
providência de ordem espiritual deve ser imediata, visto que amanhã talvez
seja tarde.
— Hoje estou cheio de compromissos para a noite — explicou o assessor.
— Irei amanhã muito cedo tomar-lhe as declarações.
Com efeito, logo que amanheceu, José do Santíssimo, acolitado por dois
outros religiosos, desceu às celas subterrâneas, a fim de estabelecer o primeiro
e último contato com a freira carmelita de Medina Del Campo. Ao clarão da
252
lanterna, aproximou-se da condenada que jazia na sórdida enxêrga, abraçada
ao crucifixo singular. Moribunda, apenas os olhos nela falavam, vivazes. Os
membros e os traços fisionômicos estavam aniquilados, num conjunto de
intraduzível abatimento. O eclesiástico experimentou estranha sensação e teve
ímpetos de recuar, mas procurou manter-se firme e perguntou:
— Maria de Jesus Crucificado, porventura já estará resolvida a confessar o
crime de heresia, para que possa receber os sacramentos da extrema-unção?
A interpelada demonstrou no olhar impressionante uma atitude mental de
júbilo e murmurou:
— Carlos!... Carlos!...
O jesuíta cambaleou, num ricto de terror, o livro escapou-se-lhe das mãos
trêmulas, e caiu, maquinalmente, de joelhos. Aproximou a lanterna do rosto da
agonizante, exclamando com indefinível angústia:
— Alcione! Alcione!... tu? Sonho? Ou enlouqueço?
A agonizante pareceu concentrar tôdas as energias para o esfôrço
daqueles supremos momentos e retrucou:
— Sim... O Pai Celestial atendeu aos meus rogos e eu não partirei sem o
conforto do teu olhar...
— Que fazias em Medina? Que quer isso dizer, Deus meu?
— Não podendo aproximar-me do teu coração com os meus sentimentos
de mulher, buscava-te com os pensamentos do Cristo... Nunca pude esquecerte!...
Tomei o hábito religioso, desejosa de te reencontrar, para ser irmã
desvelada de tua mulher e segunda mãe de teus filhinhos... Em vão te busquei
nos sítios prediletos... no entanto, tenho esperado confiantemente esta hora
divina!... Agora, morrerei tranqüila e feliz...
Sem qualquer preocupação pela atitude de espanto dos companheiros
presentes, o eclesiástico entre soluços convulsivos falou amargurado:
— Sou um réprobo! Não tenho espôsa, nem filhos, nem ninguém. Tudo
perdi em te perdendo. Sou hoje um condenado a perambular numa estrada
ignominiosa. Tua lembrança ainda é o meu único raio de luz. A espôsa traiume,
os falsos amigos conspurcaram meu lar e busquei os poderes do mundo
para exercer a vingança cruel! Ah! Alcione, mal poderia supor que te
assassinaria, também, nestas masmorras infectas! Por que haveria de cair
sôbre mim êste tremendo golpe da sorte? Sou, doravante, um miserável, um
bandido execrando!...
A agonizante revelou no olhar, muito lúcido, grande e amorosa
preocupação e perguntou:
— Que fizeste de Jesus?
— Sou réu que não merece perdão — redargüiu o jesuíta fora de si.
— Não te julgues assim — murmurou Alcione, com esfôrço —, conheço tua
alma, cheia de tesouros ocultos... Sômente o desespêro pôde cegar-te os
olhos...
— Tudo me foi adverso na vida, o destino sempre me escarneceu! —
soluçava Clenaghan, prêsa de intraduzível martírio.
— Esqueceste nossas crenças preciosas, meu querido Carlos, não mais te
lembraste dos rostos pálidos daqueles meninos que nos procuravam na igreja
de Ávila... Olvidaste nossos doentes, não mais refletiste na dor dos
desamparados da sorte... Nunca mais atentaste para a nossa família de amigos
simples e necessitados, a serviço de quem colocávamos, outrora, todo o
nosso idealismo com Jesus!...
253
— Sinto que perdi, desgraçadamente, o meu sagrado ensejo de união com
Deus! Tanto fizeste por mim, e, no entanto, esqueci os menores deveres de
fraternidade, sem me lembrar de que nas trevas do ódio poderia aniquilar-te
também a ti, que tudo me deste! Que tremenda lição!
— Tranqüiliza-te — disse a agonizante com profunda expressão de ternura
—, confia no Senhor que nos renova as oportunidades de redenção... Sua
misericórdia nos aproximará novamente, seremos felizes na observância do
“amai-vos uns aos outros”! Fortaleçamos o espírito, sem desalento
injustificável. Não nos cansemos de recordar que o Mestre foi à cruz do martírio
por amor a nós, e está à nossa espera de há longos séculos!... É preciso não
desanimar no bem...
O sobrinho de Damiano chorava amargamente, incapaz de responder.
Mas, depois de longa pausa, Alcione prosseguia:
— Saí dos círculos de revolta e vingança!... Jesus nos oferece irmãos e
tutelados em tôda parte... Não permaneças nos lugares onde haja
perseguições ou separatividades em seu nome... Volta, Carlos!... Volta à
pobreza, à simplicidade, ao esfôrço laborioso! Se fôr preciso, pede, de porta
em porta, o pão do corpo, mas não odeies a ninguém... A desesperação te
conservará algemado no lodaçal do mundo! Desperta novamente para o amor
que o Mestre nos trouxe e perdoa o passado pelas dores que te deu...
O jesuíta não sabia como definir as emoções penosas.
— Mas sou culpado de tuas flagelações no cárcere! Sou vítima infeliz de
mim próprio!...
— Não te acuses! Tu fôste, com o Cristo, meu hóspede efetivo aqui, nesta
casa, cem todos os outros lugares em que vivi depois de nossa separação... A
confiança em teu amor ajudou-me a dissipar as sombras de cada dia,
proporcionou-me bom ânimo nas situações mais difíceis!... Nunca te amei tanto
como agora, ao nos separarmos novamente... Mas, eu creio, Carlos, que os
mortos podem voltar aos trabalhos humanos... Logo que Deus me permita êsse
júbilo, voltarei outra vez... para ser-te fiel... Sofre com resignação, ama as tuas
tarefas de redenção com desvêlo, e então (quem sabe?) nos reencontraremos
breve, para construir nosso lar de felicidade infinita, na Terra ou noutros planos
da Eternidade!...
Enquanto o eclesiástico tremia soluçante, a agonizante continuava com
visível esfôrço:
— Nunca te esquecerei... Jesus abençoará nosso ideal de sublime união...
Não pôde continuar. As sagradas emoções daqueles momentos
inesquecíveis lhe haviam aniquilado as últimas energias. Gelado suor caía-lhe
em bagas da fronte palidíssima. A respiração tornara-se angustiosa e abafada.
Clenaghan percebeu a aproximação do minuto derradeiro e exclamou:
— Dize, Alcione, dize ainda uma vez que me perdoas!
A sublime criatura fêz uma tentativa suprema, mas os lábios, quase imóveis,
nada mais fizeram que um movimento inexpressivo. Foi aí que a filha de
Madalena, no estertor da morte, alçou o crucifixo e cravou nêle os olhos
lúcidos, dando a entender que chamava a atenção de Carlos para a cena
longínqua da igreja de Ávila; em seguida, beijou longamente a imagem do
Crucificado, e, num gesto inesquecível, levou-a aos lábios do homem amado,
como a dizer-lhe que nunca lhe negaria o beijo do eterno amor e da eterna
aliança.
Frei José do Santíssimo debruçou-se, a soluçar, sôbre os despojos
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sagrados, com a dor inexcedível do coração afogado nos remorsos extremos.
E ninguém da Terra, naquele compartimento úmido e escuro, poderia
contemplar o quadro celeste a se desenrolar, como tributo de veneração à
discípula do Cristo, que soubera vencer em seu nome tôdas as dificuldades,
vicissitudes e penas da vida humana. Hinos de beleza angélica vibravam nos
ares, mensageiros generosos iam e vinham com expressão de júbilo infinito.
Cirilo, Damiano e outros amigos de Alcione, conservavam-se em atitudes de
prece. Numerosos beneficiários de sua dedicação fraternal ali se prosternavam,
ansiosos por lhe manifestar carinho e gratidão. Dai a instantes, sob a direção
de Antênio, chegavam resplandecentes entidades do Grande Lar Celeste.
Madalena Vilamil, guardando a filha ao colo, beijava-a com enternecimento. As
orações dos redimidos uniram-se aos sublimes pensamentos da alma santificada
que partia da Terra. E, enquanto melodias suavíssimas fluíam do plano
espiritual, o bondoso Antênio unia sua voz aos harpejos do Céu, repetindo as
sagradas palavras do Sermão da Montanha.
— Bem-aventurados os que choram, porque serão consolados! Bemaventurados
os humildes, porque herdarão a Terra! Bem-aventurados os que
sofrem perseguição por amor à justiça, porque dêles é o Reino dos Céus!... -
Fim