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segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Há 2000 Anos-Parte 2- Francisco Cândido Xavier

 

VOLTAR AO ÍNDICE DO BLOG  - PARTE 1PARTE2

as forças misteriosas da morte. Os médicos não tinham a menor

esperança de cura, considerando o profundo desequilíbrio físico, aliado a

mui forte desorganização do sistema cardíaco. As menores emoções

determinavam alterações no seu estado, ensejando as mais amplas

apreensões da família.

De vez em quando, os olhos serenos e tranqüilos se fixavam

detidamente na porta de entrada, como se esperassem alguém com o

máximo interesse, até que rumores mais fortes, vindos do vestíbulo,

anunciaram ao seu coração que ia cessar uma ausência de quinze anos

consecutivos, entre ele e os amigos sempre lembrados.

Calpúrnia, igualmente muito abatida, abraçou Lívia e Públio,

derramada em lágrimas e apertando Flávia nos braços, como se recebesse

uma filha.

Ali mesmo, no vestíbulo, trocaram impressões e falaram das suas

saudades intensas e das preocupações numerosas, até que Públio

deliberou deixar as duas amigas em franca expansão afetiva e se

encaminhou com Agripa a um dos compartimentos próximos do tablino,

onde abraçou o grande amigo, com lágrimas de alegria.

Flamínio Severus estava magríssimo e suas palavras, por vezes,

eram cortadas pela dispnéia impressionante, dando a perceber que muito

pouco tempo lhe restava de vida.

Sabendo da satisfação do pai na companhia íntima do leal amigo,

Agripa retirou-se do vasto

227

HÁ DOIS MIL ANOS...

aposento, onde as sombras do crepúsculo começavam a penetrar

caprichosamente, como se o fizessem no silêncio sagrado das naves

religiosas.

Públio Lentulus se surpreendeu, encontrando o velho companheiro

em tal estado. Não supunha revê-lo tão depauperado. Agora, certificava-se

de que era a ele, sim, que competia auxiliá-lo com os seus conselhos,

levantando-lhe as forças orgânicas e espirituais, com as suas exortações

amigas e carinhosas.

Uma vez a sós, contemplou o amigo e mentor, como se estivesse a

mirar uma criança enferma.

Flamínio, por sua vez, olhou-o face a face e, olhos rasos dágua,

tomou-lhe as mãos nas suas, dando-lhe a entender que recebia ali,

naquele momento, um filho muito amado.

Num gesto brando e delicado, procurou sentar-se mais

comodamente e, amparando-se nos ombros de Lentulus, murmurou

comovidamente ao seu ouvido:

- Públio, aqui já te não recebe o companheiro enérgico e resoluto

doutros tempos. Sinto que apenas te esperava para poder entregar a alma

aos deuses, tranqüilamente, supondo já cumprida a missão que me

competia na Terra, com a minha consciência retilínea e os meus honestos

pensamentos.

Há mais de um ano pressinto o instante irremediável e fatal, que,

agora, satisfeito o meu ardente desejo, deve estar avizinhando-se com a

velocidade do relâmpago. Não desejava, pois, partir sem te apertar em

meus braços, fazendo-te as últimas confidências neste leito de morte...

- Mas, Flamínio - respondeu-lhe o amigo, com serenidade dolorosa -,

tudo me autoriza a crer nas tuas melhoras imediatas, e todos nós

aguardamos a bênção dos deuses, de maneira que possamos contar com

a tua companhia indispensável, por muito tempo ainda, neste mundo.

- Não, meu bom amigo, não te iludas com essas suposições e

pensamentos. Nossa alma ja228

ROMANCE DE EMMANUEL

mais se engana quando se avizinha das sombras do sepulcro... Não me

demorarei em penetrar o mistério da grande noite, mas acredito,

firmemente, que os deuses me saudarão com as luzes de suas auroras!...

E, deixando o olhar, profundo e sereno, divagar pelo aposento, como

se as paredes marmorizadas se dilatassem ao infinito, Flamínio Severus

concentrou-se um minuto em meditações íntimas, continuando a falar,

como se desejasse imprimir à conversação um novo rumo:

- Lembras-te daquela noite em que me confiaste os pormenores de

um sonho misterioso, no auge da tua emotividade dolorosa?

- Oh! se me lembro!... - revidou Públio Lentulus recordando, de modo

inexplicável, não só a palestra remota que resolvera a viagem à Palestina,

mas também outro sonho, no qual testemunhara os mesmos fenômenos

intraduzíveis, na noite do seu encontro com Jesus de Nazaré. Ao lembrarse

daquela personalidade maravilhosa, estremeceu-lhe o coração, mas

tudo fez por evitar ao amigo uma impressão mais forte e dolorosa,

acrescentando com aparente serenidade: - Mas, a que vem tua pergunta,

se hoje estou mais que convicto, de acordo contigo mesmo, que tudo

aquilo não passava de simples impressões de uma fantasia sem

importância?

- Fantasia? - replicou Flamínio, como se houvesse encontrado uma

nova fórmula da verdade. - Já modifiquei por completo as minhas idéias. A

enfermidade tem, igualmente, os seus belos e grandiosos beneficios.

Retido no leito há muitos meses, habituei-me a invocar a proteção de

Têmis, de modo que não chegasse a ver nos meus padecimentos mais que

o resultado penoso dos meus próprios méritos, perante a incorruptível

justiça dos deuses, até que uma noite tive impressões iguais às tuas.

229

HÁ DOIS MIL ANOS...

Não me recordo de haver guardado qualquer preocupação com a tua

narrativa, mas o certo é que, há cerca de dois meses, me senti levado em

sonho à mesma época da revolução de Catilina, e observei a veracidade de

todos os fatos que me relataste há dezesseis anos, chegando a ver o teu

próprio ascendente, Públio Lentulus Sura, que era como que o teu retrato,

tal a sua profunda semelhança contigo, mormente agora que te encontras

nos teus quarenta e quatro anos, em plena fixação de traços fisionômicos.

Interessante é que me encontrava a teu lado, caminhando contigo na

mesma estrada de clamorosas iniquidades. Lembro-me de nos vermos

assinando sentenças iníquas e impiedosas, determinando o suplício de

muitos dos nossos semelhantes... Todavia, o que mais me atormentava era

observar-te a terrível atitude, determinando a cegueira de muitos dos

nossos adversários políticos e assistindo, pessoalmente, ao desenrolar

das flagelações do ferro em brasa, queimando numerosas pupilas para

todo o sempre, aos gritos dolorosos das vitimas indefesas!...

Públio Lentulus arregalou os olhos, de espanto, participando,

igualmente, daquelas recordações que dormitavam fundo na sua alma

ensombrada, e replicou, por fim:

- Meu bom amigo, tranqüiliza o coração... Semelhantes impressões

parecem reflexos de alguma emoção mais forte que perdurasse no âmago

da tua memória, por minhas narrativas naquela noite de há tantos anos!...

Flamínio Severus esboçou, porém, um leve sorriso, como quem

compreendia a intenção generosa e consoladora, redargüindo com serena

bondade:

- Devo dizer-te, Públio, que esses quadros não me apavoraram e

apenas te falo desse complexo de emoções, porque tenho a certeza de que

vou partir desta vida e ainda ficarás, talvez por muito tempo, na crosta

deste mundo. É possível

230

ROMANCE DE EMMANUEL

que as recordações do teu espírito aflorem novamente e, então, quero que

aceites a verdade religiosa dos gregos e dos egípcios. Acredito, agora, que

temos vidas numerosas, através de corpos diversos. Sinto que meu pobre

organismo está prestes a desfazer-se; entretanto, meu pensamento está

vivaz como nunca e só em tais circunstâncias presumo entender o grande

mistério de nossas existências. Pesa-me, no íntimo, haver praticado o mal

no pretérito tenebroso, embora haja decorrido mais de um século sobre os

tristes acontecimentos de nossas visões espirituais; todavia, aqui estou

diante dos deuses, com a consciência tranqüila.

Públio ouvia-o atentamente, entre penalizado e comovido. Procurava

dirigir-lhe palavras confortadoras, mas a voz parecia morrer-lhe na

garganta, embargada pelas emoções daquele doloroso momento.

Flamínio, porém, apertou-o de encontro ao coração, com os olhos

rasos de pranto, sussurrando-lhe ao ouvido:

- Meu amigo, não tenhas dúvidas sobre as minhas palavras... Quero

crer que estas horas sejam as últimas... No meu escritório estão todos os

teus documentos e o memorial dos negócios de ordem material que

movimentei em teu nome, na tua ausência e no concernente aos nossos

problemas de ordem política e financeira. Não encontrarás dificuldade para

catalogar, convenientemente, todos os papéis a que me refiro...

- Mas, Flamínio - replicou Públio, com enérgica serenidade -, acredito

que teremos muito tempo para cuidar disso.

Nesse momento, Lívia e a filha, Calpúrnia e os rapazes, acercaramse

do nobre enfermo, trazendo-lhe sorriso amigo e palavras consoladoras.

O doente deu mostras de ânimo e alegria para cada um deles,

encarecendo o abatimento de Lívia e a beleza exuberante de Flávia, com

palavras meigas e quentes.

231

HÁ DOIS MIL ANOS...

Ficando a sós, novamente, o generoso senador que a moléstia

desfigurara, entre os linhos claros do leito, exclamou com bondade:

- Eis, meu amigo, as borboletas risonhas do amor e da mocidade,

que o tempo faz desaparecer, célere, no seu torvelinho de impiedades.

E baixando a voz, como se quisesse transmitir ao amigo uma

delicada confidência dalma, continuou a falar pausadamente:

- Levo comigo, para o túmulo, numerosas preocupações pelos meus

pobres filhos. Dei-lhes tudo que me era possível, em matéria educativa, e,

embora reconhecendo que ambos possuem sentimentos generosos e

sinceros, noto que os seus corações são vítimas das penosas transições

dos tempos que passam, nos quais temos o desgosto de observar os mais

aviltantes rebaixamentos da dignidade do lar e da família.

Agripa vem fazendo o possível por se adaptar aos meus conselhos,

entregando-se aos labores do Estado; mas Plínio teve a pouca sorte de se

deixar seduzir por amigos pérfidos e desleais, que não desejam senão a

sua ruína e o arrastam aos maiores desregramentos, nos ambientes

suspeitos de nossas mais altas camadas sociais, levando muito longe o

seu espírito de aventuras.

Ambos me proporcionam os maiores dissabores com os atos que

praticam, testemunhando reduzidas noções de responsabilidade

individual. Esbanjando grande parte da nossa fortuna própria, não sei que

futuro será o da minha pobre Calpúrnia se os deuses não me permitirem a

graça de buscá-la, em breve, no exílio de sua saudade e da sua amargura,

depois da minha morte!...

- Mas a mim - respondeu com interesse o interpelado - eles se me

afiguram dignos do pai que os deuses lhes concederam, com a sua

gentileza generosa e com a fidalguia de suas atitudes.

- Em todo caso, meu amigo, não podes esquecer que tua ausência

de Roma foi muito longa

232

ROMANCE DE EMMANUEL

e que muitas inovações se processaram nesse período.

Parecemos caminhar vertiginosamente para um nível de absoluta

decadência dos nossos costumes familiares, bem como os nossos

processos educativos, a meu ver, desmantelados em dolorosa falência!...

E como se desejasse trazer de novo a conversação para os assuntos

de ordem imediata, da vida prática, acentuou

- Agora que vejo tua filha esplendente de mocidade e de energia,

renovo, intimamente, meus antigos projetos de trazê-la para o círculo da

nossa comunidade familiar.

Era meu desejo que Plínio a desposasse, mas meu filho mais moço

parece inclinado a comprometer-se com a filha de Sálvio, não obstante a

oposição de Calpúrnia a esse projeto; não por teu tio, sempre digno e

respeitável aos nossos olhos, mas por sua mulher que não parece

disposta a abandonar as antigas idéias e iniciativas do passado. Devo,

porém, considerar que me resta ainda Agripa, a fim de concretizarmos as

minhas futurosas esperanças.

Se puderes, algum dia, não te esqueças desta minha recomendação

in extremis!...

- Está bem, Flamínio, mas não te canses. Dá tempo ao tempo, porque

não faltará ocasião para discutir o assunto - replicou Públio Lentulus,

comovido.

Neste comenos, Agripa entrou na alcova, dirigindo-se ao pai,

afetuosamente:

- Meu pai, o mensageiro enviado a Massília (1) acaba de chegar,

trazendo as desejadas informações a respeito de Saul.

- E ele nada nos manda dizer sobre a sua vinda? - perguntou o

enfermo, com bondoso interesse.

__________

(1) Nota da Editora: atualmente, Marselha.

233

HÁ DOIS MIL ANOS...

- Não. O portador apenas comunica que Saul partiu para a Palestina,

logo depois de alcançar a consolidação da sua fortuna com os últimos

lucros comerciais, acrescentando haver deliberado ir à Judeia, para rever

o pai que reside nas cercanias de Jerusalém.

- Pois sim - disse o enfermo, resignado -, a vista disso, recompensa

o mensageiro e não te preocupes mais com os meus anteriores desejos.

Ao ouvi-los, Públio deu tratos ao cérebro para se recordar de alguma

coisa que não podia definir com precisão. O nome de Saul não lhe era

estranho. Com a circunstância de se localizar a residência do pai nas

proximidades de Jerusalém, lembrou-se, finalmente, das personagens de

suas recordações, com fidelidade absoluta. Rememorou o incidente em

que fôra obrigado a castigar um jovem judeu desse nome, nas cercanias

da cidade, remetendo-o às galeras como punição do seu ato irrefletido, e

recordando, igualmente, o instante em que um agricultor israelita fôra

reclamar a liberdade do prisioneiro, dando-o como seu filho.

Experimentando um anseio vago no coração, exclamou intencionalmente:

- Saul? Não é um nome característico da Judeia?

- Sim - respondeu Flamínio com serenidade -, trata-se de um escravo

liberto de minha casa. Era um cativo judeu, ainda jovem, adquirido por

Valério, no mercado, para as bigas dos meninos, ao ínfimo preço de quatro

mil sestércios. Tão bem se houve, entretanto, nos afazeres que lhe eram

comumente designados, que, após levantar vários prêmios com as suas

proezas no Campo de Marte, destinados aos meus filhos, resolvi concederlhe

a liberdade, dotando-o com os recursos necessários para viver e

promover empreendimentos de sua própria conta. E parece que a mão dos

deuses o abençoou no momento preciso, porque Saul é hoje senhor de

uma fortuna sólida, como resultado do seu esforço e trabalho.

234

ROMANCE DE EMMANUEL

Públio Lentulus silenciou, intimamente aliviado, pois o seu

prisioneiro, segundo notícias recebidas pelos prepostos do governo

provincial, se havia evadido para o lar paterno, fugindo, desse modo, à

escravidão humilhante.

As horas da noite iam já avançadas.

O visitante lembrou-se, então, de que esperava avistar-se com

Flamínio para uma palestra substanciosa e longa, a respeito de múltiplos

assuntos, como, por exemplo, a sua penosa situação conjugal, o

desaparecimento misterioso do filhinho, o seu encontro com Jesus de

Nazaré. Mas, observava que Flamínio estava exausto, sendo justo e

necessário adiar suas confidências amargas e penosas.

Foi então que se retirou do aposento para aguardar o dia seguinte,

cheio de esperanças consoladoras.

Os dois amigos trocaram longo e significativo olhar no instante

daquelas despedidas, que agora pareciam comuns, como as afetuosas

saudações diárias doutros tempos.

Confortadoras exortações e promessas amigas foram trocadas,

entre expressões de fraternidade e carinho, antes que Calpúrnia

reconduzisse as visitas ao vestíbulo, com a sua bondade generosa e

acolhedora.

Todavia, nas primeiras horas da manhã seguinte, um mensageiro

apressado parava à porta do palacete dos Lentulus, com a notícia

alarmante e dolorosa.

Flamínio Sevérus piorava inesperadamente, sem que os médicos

dessem aos seus familiares a menor esperança. Todas as melhoras

fictícias haviam desaparecido. Uma força inexplicável lhe desequilibrara a

harmonia orgânica, sem que remédio algum lhe paralisasse as aflições

angustiosas.

Dentro de poucas horas, Públio Lentulus e os seus se encontravam

de novo na vivenda confortável dos amigos.

235

HÁ DOIS MIL ANOS...

Enquanto penetra ele, ansioso, no quarto do velho companheiro de

lutas terrestres, Lívia, na intimidade de um apartamento, dirige-se a

Calpúrnia nestes termos:

- Minha amiga, já ouviste falar em Jesus de Nazaré?

A orgulhosa matrona, que não perdia a linha de suas vaidades em

família, ainda nos momentos das mais angustiosas preocupações,

arregalou os olhos, exclamando:

- Porque mo perguntas?

- Porque Jesus - respondeu Lívia, humildemente - é a misericórdia

de todos os que sofrem e não posso esquecer-me da sua bondade, agora

que nos vemos em provações tão ásperas e tão dolorosas.

- Suponho, querida Lívia - redargüiu Calpúrnia, gravemente -, que

esqueceste todas as recomendações que te fiz antes de partires para a

Palestina, porque, pelas tuas advertências, estou deduzindo que aceitaste

de boa fé as teorias absurdas da igualdade e da humildade, incompatíveis

com as nossas tradições mais vulgares, deixando-te levar nas águas

enganosas das crenças errôneas dos escravos.

- Mas, não é isso. Refiro-me à fé cristã, que nos anima nas lutas da

existência e consola o coração atormentado nas provações mais ríspidas e

mais amargosas...

- Essa crença está chegando agora à sede do Império e por sinal tem

encontrado a repulsa geral dos nossos homens mais sensatos e ilustres.

- Eu, porém, conheci Jesus de perto e a sua doutrina é de amor, de

fraternidade e de perdão... Conhecendo os teus justos receios por

Flamínio, lembrei-me de apelar para o profeta de Nazaré, que, na Galileia,

era a providência de todos os aflitos e de todos os sofredores!

- Ora, minha filha, sabes que a fraternidade e o perdão das faltas não

se compadecem, de modo

236

ROMANCE DE EMMANUEL

algum, com as nossas idéias de honra, de pátria e de família, e o que mais

me admira é a facilidade com que Públio te permitiu tão íntimo contacto

com as concepções errôneas da Judeia, a ponto de modificares tua

personalidade moral, segundo me deixas entrever.

- Todavia...

Ia Lívia esclarecer, da melhor maneira, os seus pontos de vista, com

respeito ao assunto, quando Agripa entrou inopinadamente no gabinete,

exclamando com a mais forte emoção:

Minha mãe, venha depressa, muito depressa!... Meu pai parece

agonizante!...

Num átimo, ambas penetraram no aposento do moribundo, que tinha

os olhos parados como se fôra acometido, inesperadamente, de um

delíquio irrefreável.

Públio Lentulus guardava, entre as suas, as mãos do moribundo,

mirando-lhe ansiosamente o fundo das pupilas.

Aos poucos, porém, o tórax de Flamínio parecia mover-se de novo

aos impulsos de uma respiração profunda e dolorosa. Em seguida, os

olhos revelaram forte clarão de vida e consciência, como se a lâmpada do

cérebro se houvesse reacendido num movimento derradeiro. Contemplou,

em torno, os familiares e amigos bem-amados, que se debruçavam sobre

ele, inquietos e ansiosos. Um médico muito amigo, que o assistia

invariavelmente, compreendendo a gravidade do momento, retirara-se para

o átrio, enquanto em volta do agonizante somente se ouvia a respiração

opressa dos nossos conhecidos destas páginas.

Flamínio passeou o olhar brilhante e indefinível por todos os rostos,

como se procurasse, mais detidamente, a esposa e os filhos, exclamando

em frases entrecortadas:

- Calpúrnia, estou... na hora extrema... e dou graças aos deuses...

por sentir a consciência... desanuviada e tranqüila... Esperar-te-ei na

237

HÁ DOIS MIL ANOS...

eternidade... um dia... quando Júpiter... houver por bem... chamar-te para

meu lado...

A veneranda senhora ocultou o rosto nas mãos, dando expansão às

lágrimas, sem conseguir articular palavra.

- Não chores... - continuou ele, como a aproveitar os momentos

derradeiros -, a morte... é uma solução... quando a vida... já não tem mais

remédio... para as nossas dores...

E olhando ambos os filhos, que o contemplavam com ansiedade, de

olhos lacrimejantes, tomou a mão do mais moço, murmurando:

- Desejaria... meu Plínio... ver-te feliz... muito feliz... É intenção tua...

desposares a filha de Sálvio?...

Plínio compreendeu as alusões paternas naquele momento grave e

decisivo, fazendo um leve sinal negativo com a cabeça, ao mesmo tempo

que fixava os olhos grandes e ardentes em Flávia Lentúlia, como a indicar

ao pai a sua preferência.

O moribundo, por sua vez, com a profunda lucidez espiritual dos que

se aproximam da morte, com plena consciência da situação e dos seus

deveres, entendeu a atitude silenciosa do filho estremecido e, tomando a

mão da jovem, que se inclinava afetuosamente sobre o seu peito, apertou

as mãos de ambos de encontro ao coração, murmurando com íntima

alegria:

- Isso é mais... uma razão... para que eu parta... tranqüilo... Tu,

Agripa... hás-de ser também... muito feliz... e tu... meu caro... Públio... junto

de Lívia... haverás de viver...

Todavia, um soluço mais forte escapara-se-lhe inopinadamente e a

sucessão dos singultos violentos e dolorosos obrigou-o a calar-se,

enquanto Calpúrnia se ajoelhava e lhe cobria as mãos de beijos...

Lívia, também genuflexa, olhava para o alto como se desejasse

descobrir os seus arcanos. A seus olhos, apresentava-se aquela câmara

mortuária repleta de vultos luminosos e de outras sombras

238

ROMANCE DE EMMANUEL

indefiníveis, que deslizavam tranqüilamente em torno do moribundo. Orou

no imo dalma, rogando a Jesus força e paz, luz e misericórdia para o

grande amigo que partia. Nesse instante, lobrigou a radiosa figura de

Simeão, rodeada de claridade azulina e resplandecente.

Flamínio agonizava...

À medida que transcorriam os minutos, os olhos se lhe tornavam

vítreos e descoloridos. Todo o corpo transudava um suor abundante, que

alagava o linho alvíssimo das cobertas.

Lívia notou que todas as sombras presentes se haviam também

ajoelhado e somente o vulto imponente de Simeão ficara de pé, como se

fôra uma sentinela divina, colocando as mãos radiosas na fronte abatida

do moribundo. Notou, então, que seus lábios se entreabriam para a oração,

ao mesmo tempo que doces palavras lhe chegavam, nítidas, aos ouvidos

espirituais:

- Pai Nosso que estais no céu, santificado seja o vosso

nome, venha a nós o vosso reino de misericórdia e seja feita a

vossa vontade, assim na Terra como nos céus!...

Nesse instante, Flamínio Severus deixava escapar o último suspiro.

Marmórea palidez lhe cobriu os traços fisionômicos, ao mesmo tempo que

uma infinita serenidade se estampava na sua máscara cadavérica, como se

a alma generosa houvesse partido para a mansão dos bem-aventurados e

dos justos.

Somente Lívia, com a sua crença e a sua fé, pôde conservar-se de

ânimo sereno, entre quantos a rodeavam no doloroso transe. Públio

Lentulus, entre lágrimas comovedoras, certificava-se de haver perdido o

melhor e o maior dos amigos. Nunca mais a voz de Flamínio lhe falaria das

mais belas equações filosóficas, sobre os problemas grandiosos do

destino e da dor, nas correntes intermináveis da vida. E, enquanto se

abriam as portas do palácio para as homenagens da sociedade ro239

HÁ DOIS MIL ANOS...

mana; e enquanto se celebravam solenes exéquias implorando a proteção

dos manes do morto, seu coração de amigo considerava a realidade

dolorosa de se haver rasgado, para sempre, uma das mais belas páginas

afetivas, no livro da sua vida, dentro da escuridão espessa e impenetrável

dos segredos de um túmulo.

240

II

Sombras e núpcias

Às exéquias de Flamínio compareceram numerosos afeiçoados do

extinto, além das muitas representações sociais e políticas de todas as

organizações a que radicara o seu nome digno e ilustre.

Entre tantos elementos, não podia faltar a figura do pretor Sálvio

Lentulus que, nas homenagens póstumas, se fez acompanhar da mulher e

da filha, que fizeram o possível por bem representar a comédia de suas

fingidas mágoas pela morte do grande senador, junto de Calpúrnia que se

debulhava nas lágrimas dos seus mais dolorosos sentimentos.

Ali mesmo, no palácio dos Severus, encontraram-se os membros da

família Lentulus, com a evidente aversão de Públio pela presença da

esposa do tio, enquanto as senhoras trocavam impressões dolorosas, na

afetada etiqueta das trivialidades sociais.

Fúlvia e Aurélia notaram, com profundo desagrado, a expressão

carinhosa de Plínio Severus para com Flávia Lentúlia, a quem distinguia

com especial atenção, nas solenidades fúnebres, como a demonstrar as

preferências do seu coração.

241

HÁ DOIS MIL ANOS...

Eis porque, daí a algum tempo, vamos encontrar mãe e filha em

palestra animada sobre o assunto, na intimidade do lar, dando a entender a

mesquinhez de seus sentimentos, embora os cabelos brancos infundissem

veneração na fronte materna, que, apesar disso, não se deixava vencer

pelos argumentos da experiência e da idade.

- Eu também - exclamava Fúlvia, maliciosamente, respondendo a

uma interpelação da filha - muito me surpreendi com as atitudes de Plínio,

por julgá-lo um rapaz cioso do cumprimento de seus deveres; mas não me

interessei pelos modos de Flávia, porquanto sempre achei que os filhos

têm de herdar fatalmente as qualidades dos pais e, mais particularmente

no caso presente, quando a herança é materna, com mais bases de certeza

irrefutável para o nosso julgamento.

- Oh! mãe, queres dizer, então, que conheces a conduta de Lívia a

esse ponto? - perguntou Aurélia, com bastante interesse.

- Nem duvides que seja de outra forma...

E a imaginação caluniosa de Fúlvia passou a satisfazer a

curiosidade da filha, com os fatos mais inverossímeis e terríveis, sobre a

esposa do senador, quando de sua permanência na Palestina, glosados

pelas expressões de ironia e desprezo da jovem, dominada pelos mais

acerbos ciúmes, terminando a narrativa nestes termos:

- Somente tua tia Cláudia poderia contar-te, literalmente, o que

sofremos, em face do perjúrio dessa mulher que hoje vemos tão simples e

tão retraída, como se não conhecesse as experiências mais fortes deste

mundo. Não podemos esquecer que nos encontramos diante de pessoas

tão poderosas na política, como na astúcia. O sobrinho de teu pai, além de

marido profundamente infeliz, é um homem público orgulhoso e

malvado!...

Não me consta houvesse ele corrigido a esposa descriteriosa e

infiel, depois de haver verificado, com os próprios olhos, a sua traição

conjugal; mas,

242

ROMANCE DE EMMANUEL

bastou que ela o fizesse sofrer com as suas deslealdades para que todos

nós, os romanos que nos encontrávamos na Judeia, pagássemos o fato

com os mais horríveis tributos de sofrimentos...

Possuíamos um grande amigo na pessoa do lictor Sulpício

Tarquinius, que foi assassinado barbaramente em Samaria, em trágicas

circunstâncias, sem que alguém, até hoje, pudesse identificar seus

matadores, para o merecido castigo... Nossa família, que tinha interesses

vultosos em Jerusalém, foi obrigada a voltar precipitadamente para Roma,

com graves prejuízos financeiros de teu pai e, por último - prosseguia a

palavra venenosa da caluniadora -, o grande coração do meu cunhado

Pôncio sucumbiu sob as provações mais injuriosas e mais rudes...

Destituído do governo provincial e atormentado pelas mais duras

humilhações, foi banido para as Gálias, suicidando-se em Viena, em

penosas circunstâncias, acarretando-nos inextinguível desgosto!...

Em face dos martírios suportados por Cláudia, em virtude da nefasta

influência dessa mulher, não me surpreendo, portanto, com as atitudes da

filha, procurando roubar-te o noivo futuroso!...

- Urge trabalharmos para que tal não aconteça, minha mãe - replicou

a moça sob a forte impressão dos seus nervos vibráteis. - Já não posso

viver sem ele, sem a sua companhia... Seus beijos me ajudam a viver no

torvelinho das nossas preocupações de cada dia...

Fúlvia ergueu, então, os olhos, como a examinar melhor a ansiedade

que se estampara na fisionomia da filha, redargüindo com ar inteligente e

malicioso:

- Mas tu te vens entregando a Plínio, dessa maneira?

A jovem, todavia, tremendo de cólera, recebeu a indireta dentro dos

infelizes princípios educativos a que obedecia desde o berço, exclamando

em fúria:

243

HÁ DOIS MIL ANOS...

- Que pensas, então, que fazemos indo às festas e aos circos?

Porventura, serei eu diferente das outras moças do meu tempo?

E, alteando a voz como alguém que necessitasse defender-se

pronunciando um libelo contra o acusador, desatou em considerações

inconvenientes, através de termos asquerosos, rematando:

- E tu, mãe, não tens igualmente...

Fúlvia, porém, de um salto, colou-se ao corpo da filha numa atitude

acrimoniosa e severa, exclamando com fria serenidade:

- Cala-te! Nem mais uma palavra, pois que não era meu propósito

acalentar uma víbora no próprio seio!...

Compreendendo, porém, que a situação podia tornar-se mais penosa

em virtude das suas grandes culpas, como mãe, como esposa e na

qualidade de mulher, exclamou com voz quase melíflua, como a dar uma

triste lição à própria filha:

- Ora esta, Aurélia! Não te aborreças!... Se falei desse modo foi para

te insinuar que não podemos cativar um homem, para as nossas garantias

femininas no matrimônio, dando-lhe tudo de uma só vez. Um homem

nervoso e galanteador, qual o filho de Flamínio, conquista-se por etapas,

fazendo-lhe poucas concessões e muitos carinhos.

Bem sabes que o primeiro problema da vida de uma mulher da

nossa época se resume, antes de tudo, na obtenção de um marido, porque

os tempos são maus e não podemos dispensar a sombra de uma árvore

que nos abrigue de surpresas penosas, entre as asperezas do caminho...

- É verdade, mãe - respondeu a jovem totalmente modificada, mercê

daquelas astuciosas ponderações -; o que me dizes é a realidade e já que

são tão grandes as tuas experiências, que me sugeres para a realização

dos meus desejos?

- Antes de tudo - retornou Fúlvia, perversamente - devemos recorrer

aos argumentos do ciúme, que são sempre mais fortes, quando existe

244

ROMANCE DE EMMANUEL

um interesse mais ou menos sincero, de conseguir alguma coisa em

assuntos de amor. E já que te entregaste tanto ao filho de Flamínio, vê se

aproveitas as primeiras festas do circo, provocando-lhe impulsos de inveja

e despeito.

Não tens sido cortejada pelo protegido do questor Britanicus?

- Emiliano? - perguntou a moça, interessada.

- Sim, Emiliano. Trata-se igualmente de um bom partido, pois o seu

futuro nas classes militares parece de ótimas perspectivas. Procura

seduzir-lhe a atenção, diante de Plínio, de modo a fazermos todo o

possível por conseguir-te o descendente dos Severus, que, afinal, é o

partido mais vantajoso de quantos apareçam.

- Mas se o plano falhar, para nosso desgosto?

- Resta-nos recorrer às ciências de Araxes, com os seus ungüentos

e artes mágicas...

Pesado silêncio fizera-se entre ambas, no exame daquela

perspectiva de recorrer, mais tarde, às forças tenebrosas de um dos mais

célebres feiticeiros da sociedade de então.

Dias se passaram sobre dias, porém o filho mais moço de Flamínio

não voltou a cortejar a filha do pretor Sálvio Lentulus, e quando, daí a

algum tempo, voltou a freqüentar os circos festivos e ruidosos, não teve

grande surpresa encontrando, na intimidade de Emiliano, aquela a quem

se sentia ligado tão somente pelos laços frágeis e artificiais da lascívia e

dos hábitos viciosos do tempo.

Aurélia, todavia, não se conformava, intimamente, com o abandono a

que fôra votada, planejando a melhor maneira de exercer, oportunamente,

sua vingança, porque Plínio, ante as vibrações cariciosas do amor de

Flávia Lentúlia, parecia um homem inteiramente modificado. Afastara-se

espontaneamente das bacanais comuns da época, fugindo, igualmente,

dos companheiros antigos que o arrastavam no torvelinho de todos os

vícios e levianda245

HÁ DOIS MIL ANOS...

des. Parecia, mesmo, que uma força nova o guiava agora para a vida,

talhando-lhe de novo o coração para os ambientes caridosos e lúcidos da

família.

No palácio dos Lentulus, a vida transcorria com relativa

tranqüilidade.

Calpúrnia passava ali os primeiros meses, depois do falecimento do

marido, em companhia dos filhos, enquanto Plínio e Flávia teciam o seu

romance de esperança e de amor, nas luzes da mocidade, sob a bênção

dos deuses, de quem não se esqueciam, na culminância radiosa da sua

doce afeição.

Alheando-se das inquietações da época, Plínio recolhia-se, sempre

que possível, aos seus aposentos no palácio do Aventino, entregando-se à

pintura, ou à escultura, em que era exímio, modelando em preciosos

mármores belos exemplares de Vênus e de Apolo, que eram dados a Flávia

como recordação do seu intenso amor. Ela, por sua vez, compunha

delicadas jóias poéticas. musicadas na lira por suas próprias mãos,

oferecendo as flores dalma ao noivo idolatrado, em cujo espírito generoso

colocara os mais belos sonhos do coração.

Apenas uma pessoa não tolerava aquele formoso encontro de duas

almas gêmeas. Essa pessoa era Agripa. Desde o instante em que vira a

filha do senador, no porto de Óstia, pensou haver encontrado a futura

esposa. Supunha-se o único candidato ao coração daquela jovem romana,

enigmática e inteligente, em cujas faces coradas brincava sempre um

sorriso de bondade superior, como se a Palestina lhe houvesse imposto

uma beleza nova, cheia de misteriosos e singulares atrativos.

Mas, à vista dos projetos de casamento do irmão com Flávia, seus

planos haviam fracassado totalmente. Debalde, presumira haver

encontrado a mulher dos seus sonhos, porque a ternura, os caprichos dela

pertenciam ao irmão, unicamente. Foi por esse motivo que, de par com o

retraimento de Plínio

246

ROMANCE DE EMMANUEL

Severus, dentro do lar, para a organização de seus projetos futuros, Agripa

se desviara para uma longa série de atos impensados, acentuando, cada

vez mais, a feição extravagante da sua personalidade, preferindo as

companhias mais nocivas e os ambientes mais viciosos.

No curso dos seus desvios numerosos, adoecera gravemente,

inspirando cuidados à sua mãe, que se desvelava pelos filhos com o

mesmo carinho de sempre.

Vamos encontrá-lo, desse modo, por uma bela tarde romana, no

mesmo terraço onde vimos Públio Lentulus em amargas meditações, nas

primeiras páginas deste livro.

Virações caridosas refrescavam o crepúsculo, ainda saturado dos

clarões de sol formoso e quente.

A seu lado, Calpúrnia examina algumas peças de lã, deitando-lhe

olhares afetuosos. Em dado momento, a veneranda senhora dirige-lhe a

palavra neste termos:

- Então, meu filho, rendamos graças aos deuses, porque agora te

vejo muito melhor e a caminho do mais franco restabelecimento.

- Sim, mãe - murmurou o moço convalescente -, estou bem melhor e

mais forte; todavia, espero que nos transfiramos para nossa casa dentro

de dois dias, a fim de poder consolidar minha cura, procurando esquecer...

- Esquecer o quê? - perguntou Calpúrnia, surpreendida.

- Minha mãe - respondeu o jovem, enigmaticamente -, a saúde não

pode voltar ao corpo quando o espírito contínua enfermo!...

- Ora, filho, deves abrir-me o coração com mais sinceridade e mais

franqueza. Confia-me as tuas mágoas mais íntimas, pois é possível que te

possa dar algum consolo!...

- Não, mãe, não devo fazê-lo!

247

HÁ DOIS MIL ANOS...

E, assim falando, Agripa Severus, fosse pelo estado de abatimento

em que ainda se encontrava, fosse pela necessidade de um desabafo mais

intenso, desatou em pranto, surpreendendo amargamente o coração

materno com a sua inesperada atitude.

- Mas que é isso, filho? Que se passa em teu íntimo, para sofreres

dessa forma? - perguntou-lhe Calpúrnia, extremamente penalizada,

enlaçando-o nos braços carinhosos. - Dize-me tudo!... - prosseguiu aflita. -

Não me ocultes tuas mágoas, Agripa, porque eu saberei remediar a

situação de qualquer modo!

- Mãe, minha mãe!... - disse ele, então, num longo desabafo - eu

sofro desde o dia em que Plínio me arrebatou a mulher desejada... Sinto

nalma uma atração misteriosa por Flávia e não posso conformar-me com a

dolorosa realidade desse casamento que se aproxima.

Acredito que, se meu pai ainda vivesse, procuraria salvar minha

situação, conquistando para mim esse matrimônio, com as resoluções

providenciais que lhe conhecíamos...

Esperei sempre, através de todas as venturas da mocidade, que me

surgisse no caminho a criatura idealizada em meus sonhos, para organizar

um lar e constituir uma família e, quando aparece a mulher de minhas

aspirações, eis que ma arrebatam, e quem?!... Porque a verdade é que, se

Plínio não fôra meu irmão, não vacilaria em usar e abusar dos mais

violentos processos para atingir a consecução dos meus desejos!...

Calpúrnia ouvia-o em silêncio, compartilhando das suas angústias e

das suas lágrimas. Ignorava aquele duelo silencioso de sentimentos e

somente agora podia compreender a moléstia indefinida que lhe devorava

o filho mais velho, avassaladoramente.

Seu coração possuía, porém, bastante experiência da vida e dos

costumes do tempo, para ajuizar com o máximo acerto a situação e,

transformando

248

ROMANCE DE EMMANUEL

a sensibilidade feminina e os receios maternais em rígida fortaleza,

respondeu-lhe comovida, acariciando-lhe os cabelos numa doce atitude:

- Meu Agripa, eu te compreendo o coração e sei avaliar a intensidade

dos teus padecimentos morais; precisas, porém, compreender que há na

vida fatalidades dolorosas, cujos problemas angustiantes devemos

resolver com o máximo de coragem e paciência... Nem foi para outra coisa

que os deuses nos colocaram nas culminâncias sociais, de modo a

ensinarmos aos mais ignorantes e mais fracos as tradições da nossa

superioridade espiritual, em face de todas as penosas eventualidades da

vida e do destino.

Sufoca no teu íntimo essa paixão injustificável, mesmo porque, sinto

que Flávia e teu irmão nasceram neste mundo com os seus destinos

entrelaçados... Plínio ainda era uma criança de colo, quando teu pai já

projetava esse matrimônio, agora prestes a consumar-se.

Sê forte - continuava a nobre matrona enxugando-lhe as lágrimas

silenciosas e tristes -, porque a existência exige de nós, algumas vezes,

esses gestos de renúncia ilimitada!...

Ergamos, todavia, nossas súplicas aos deuses! De Júpiter há-de

chegar, para a tua alma ulcerada, o necessário conforto.

Agripa, depois de ouvir a voz materna, sentia-se mais ou menos

aliviado, como se o seu íntimo houvesse serenado após uma tempestade

dos mais antagônicos sentimentos.

Considerou que as ponderações maternas representavam a verdade

e preparava-se, intimamente, ainda com a penosa impressão psíquica que

o atormentava, para se resignar, infinitamente, com a situação dolorosa e

irremediável.

Calpúrnia deixou passar alguns minutos, antes de lhe dirigir a

palavra novamente, como se aguar

249

HÁ DOIS MIL ANOS...

dasse o efeito salutar das suas primeiras ponderações, continuando:

- Não te interessaria, agora, uma viagem à nossa propriedade do

Avênio? Bem sei que, pela força da tua vocação e pelo imperativo das

circunstâncias, teu lugar é aqui, como sucessor de teu pai; mas, essa

viagem representaria a solução de vários problemas urgentes, inclusive o

teu caso íntimo.

Agripa ouviu a sugestão com o máximo interesse, replicando afinal:

- Minha mãe, tuas palavras carinhosas me confortaram e aceito a

sugestão, a ver se consigo encontrar o maravilhoso elixir do

esquecimento; contudo, desejava partir com atribuições de Estado,

porque, desse modo, poderia demorar-me em Massília, lá permanecendo

com a autoridade que me será necessária em tais circunstâncias...

- E não poderias conseguir facilmente esse propósito?

- Acredito que não. Para demandar essa viagem com atribuições

oficiais, apenas conseguiria os meus intentos, em caráter militar.

- E porque não movimentarmos nossas prestigiosas relações de

amizade para obter o que desejas? Bem sabes que, com o auxílio de

Públio e do senador Cornélio Docus, Plínio aguarda promoção a oficial em

breves dias, com amplas perspectivas de progresso e novas realizações

futuras, no quadro das nossas classes armadas. Dizem mesmo que o

Imperador Cláudio, consolidando a centralização de poderes com a nova

administração, se mostra satisfeito quando transforma as regalias

políticas em regalias militares.

A mim só me causaria orgulho e satisfação oferecer meus dois filhos

ao Império, para a consolidação de suas conquistas soberanas.

- Assim o farei - replicou Agripa, já de olhos enxutos, como se as

sugestões maternas cons250

ROMANCE DE EMMANUEL

tituíssem brando remédio para as suas penosas preocupações.

Aos poucos, escoavam-se no horizonte os derradeiros clarões

rubros da tarde, que davam lugar a uma formosa noite cheia de estrelas.

Amparado pelos braços maternos, o moço patrício recolheu-se mais

confortado aos aposentos, esperando o ensejo de providenciar quanto aos

seus novos planos.

Após acomodá-lo convenientemente, voltou Calpúrnia ao terraço,

onde procurou repousar das intensas fadigas morais. Suplicando a

piedade dos deuses, fixou nos céus constelados os olhos lacrimosos.

Parecia que o coração lhe havia parado no peito para assistir ao

desfile das recordações mais cariciosas e mais doces, embora com a

mente torturada por pensamentos amargos e dolorosos.

Mais de seis meses haviam decorrido após a morte do esposo e a

nobre matrona sentia-se já completamente estranha na sociedade e no

mundo. Fazia prodígios mentais para enfrentar dignamente a sua situação

social, porquanto sentia, na sua velhice resignada, que o curso do tempo

vai insulando determinadas criaturas à margem do rio infinito da vida.

Sentia, no ambiente e nos corações que a rodeavam, uma diferença

singular, como se faltasse uma peça do mecanismo do seu raciocínio, para

completar um preciso julgamento das coisas e dos acontecimentos. Essa

peça era a presença do esposo, que a morte arrebatara; era a sua palavra

ponderada e amorosa, meiga e sábia.

Desde os primeiros dias de permanência na casa dos amigos,

recebera de Lívia e Públio, em separado, as mais dolorosas confidências

sobre os fatos da Palestina, que lhes comprometeram para sempre a

ventura e tranqüilidade conjugal. Mobilizando, porém, todas as suas

faculdades de observação e análise, não conseguira pronunciar-se em

251

HÁ DOIS MIL ANOS...

definitivo quanto aos acontecimentos em favor da inocência da sua

bondosa e leal amiga. Se, aos seus olhos, Públio Lentulus era o mesmo

homem integrado no conhecimento de seus nobilíssimos deveres junto do

Estado e das mais caras tradições da família patrícia, Lívia pareceu-lhe

excessivamente modificada nos seus modos de crer e de sentir.

Na sua concepção de orgulho e vaidade raciais, não podia admitir

aqueles princípios de humildade, aquela fraternidade e aquela fé ativa de

que Lívia dava pleno testemunho junto dos próprios escravos, dentro dos

postulados da nova doutrina que invadia todos os departamentos da

sociedade.

Quanto desejava ela ter ainda o esposo a seu lado, de modo a poder

submeter-lhe aqueles assuntos íntimos, a fim de lhe adotar a opinião

sempre cheia de ponderações e sabedoria... Mas, agora, estava sozinha

para raciocinar e agir, com plena emancipação de consciência, e por mais

que buscasse no íntimo uma solução para o doloroso problema conjugal

dos amigos, nada podia dizer, nas suas observações e no exame das

tradições familiares, cultivadas, pelo seu espírito, com o máximo de

orgulho e de cuidado.

No céu brilhavam miríades de constelações, dentro da noite,

acentuando o mistério de suas penosas divagações, quando a seus

ouvidos chegaram alguns rumores de passos que se aproximavam.

Era Públio que, terminada a refeição, vinha igualmente ao terraço,

descansar o pensamento.

- Por aqui? - perguntou a matrona com bondade.

- Sim, minha amiga, apraz-me voltar, em espírito, aos dias que já se

foram... Por vezes, aprecio o repouso neste terraço, a fim de contemplar o

céu. Para mim, é de lá, dessa cúpula imensa e estrelada, que recebemos

luz e vida; é lá que deve estar o nosso inesquecível Flamínio, embalado

pelo carinho dos deuses generosos!...

252

ROMANCE DE EMMANUEL

E, de fato, nobre Calpúrnia - prosseguiu o senador, atencioso -, era

este um dos lugares prediletos de nossas palestras e divagações, quando

o sempre lembrado amigo me dava a honra de suas visitas a esta casa. Foi

ainda aqui que, muitas vezes, trocamos idéias e impressões sobre a minha

partida para a Judeia, nas vésperas de minha prolongada ausência de

Roma, há mais de dezesseis anos!...

Longa pausa sobreveio, parecendo que os dois aproveitavam as

claridades suaves da noite, com idêntica vibração espiritual, para

descerem ao túmulo do coração, exumando as lembranças mais queridas,

em resignado e doloroso silêncio.

Após alguns minutos, como se desejasse modificar o curso de suas

recordações, exclamou a veneranda matrona:

- Lembrando-nos de tua viagem, no passado, preciso avisar-te de

que Agripa deve partir para Avênio, tão logo se sinta restabelecido.

Mas, que motiva essa novidade? perguntou Públio, com grande

interesse.

- Há muitos dias venho refletindo na necessidade de examinarmos,

ali, os numerosos interesses de nossas propriedades, mesmo porque,

antes de morrer, era intenção do meu morto cuidar pessoalmente deste

assunto.

- A solução do problema, porém, é tão urgente assim? E o

casamento de Plínio? Agripa não estará presente, porventura?

- Acredito que não; todavia, na hipótese de sua ausência, ele será

representado por Saul, antigo liberto de nossa casa, que já nos mandou

um mensageiro de Massília, comunicando sua presença às cerimônias.

- É pena!... - murmurou o senador, sensibilizado.

- Devo dizer-te, ainda mais - continuou a matrona, com serenidade -,

que espero o prestigio253

HÁ DOIS MIL ANOS...

so favor da tua amizade, junto de Cornélio Docus, a fim de que consigas

do Imperador Cláudio uma boa situação para o nosso viajante, que deseja

partir com atribuições oficiais, necessitando para tanto que sejam

transformados em regalias militares os direitos políticos que lhe

competem pelo nascimento.

- Não será difícil consegui-lo. A atual administração interessa-se

muito mais pela valorização das classes armadas.

Novo silêncio verificou-se na conversação, voltando o senador a

exclamar, depois de longa pausa, como se desejasse aproveitar a

oportunidade para a solução decisiva do seu amargo problema:

- Calpúrnia - disse ansiosamente -, ao falar de minha excursão no

passado, informaste-me da viagem forçada do nosso Agripa, no presente.

E eu continuo a relembrar minha ventura desfeita, a felicidade perdida, que

nunca mais voltou!...

O senador observava todas as atitudes psicológicas da sua

venerável amiga, ansioso por surpreender-lhe um gesto de conforto

supremo. Desejava que ela, como conselheira de Lívia, quase como a

própria mãe desta, pelos laços eternos e sacrossantos do espírito, lhe

dissipasse todas as dúvidas, falasse da inocência da esposa,

proporcionando-lhe uma certeza de que o seu coração caprichoso e

egoísta de homem estava enganado; mas, em vão aguardou essa defesa

espontânea, que não apareceu no instante necessário e decisivo. A

respeitável viúva de Flamínio deixara no ar o mesmo ponto de dolorosa

interrogação, murmurando com voz triste, enquanto uma réstia de luar lhe

coroava os cabelos brancos:

- Sim, meu amigo, os deuses podem dar-nos a felicidade e podem

retomá-la... Somos duas almas chorando sobre o sepulcro dos sonhos

mais gratos do coração!...

Aquelas palavras desalentadoras penetravam no peito sensível e

orgulhoso do senador, como sabre afiado que o rasgasse vagarosamente.

254

ROMANCE DE EMMANUEL

- Mas, afinal, minha nobre amiga - exclamou ele quase enérgico,

como se esperasse resposta decisiva para a angustiosa indecisão da sua

alma -, que pensas atualmente de Lívia?

- Públio - respondeu Calpúrnia com serenidade -, não sei se a

franqueza seria um mal em certas circunstâncias, mas prefiro ser sincera.

Desde as penosas confidências que me fizeste, sobre os fatos que

se desenrolaram na Palestina, venho observando nossa amiga de modo a

poder advogar a causa da sua inocência perante o teu coração, mas,

infelizmente, noto em Lívia as mais singulares e imprevistas diferenças de

ordem espiritual. E humilde, meiga, inteligente e generosa, como sempre,

mas parece menosprezar todas as nossas tradições familiares e as nossas

crenças mais caras.

Em nossas discussões e palestras íntimas, não me revela mais

aquela timidez encantadora que lhe conheci noutros tempos,

demonstrando, pelo contrário, demasiada desenvoltura de opinião a

respeito dos problemas sociais, que ela julga haver resolvido ao contacto

duma nova fé. Suas idéias me escandalizam com as mais injustificáveis

concepções de igualdade; não hesita em classificar nossos deuses como

ilusões nocivas da sociedade, para a qual tem, em todas as palavras, as

mais severas recriminações, revelando singulares modificações em

pensamento, indo ao extremo de confraternizar com as próprias servas de

sua casa, como se fôra uma simples plebéia...

Seria uma perturbação mental, depois de alguma queda em que a

sua dignidade individual fosse chamada a uma rígida reação? Seriam,

talvez, influências do meio ou mesmo das escravas com quem se habituou

a conviver nessa prolongada ausência de Roma? Não sei... A realidade é

que, em consciência, não posso manifestar-me, por enquanto, em

definitivo, sobre as tuas amarguras conjugais, acon255

HÁ DOIS MIL ANOS...

selhando-te a esperar melhor as demonstrações do tempo.

Depois de ligeira pausa, terminou a velha matrona as suas

observações, inquirindo, com interesse:

- Porque permitiste o ingresso de Lívia nessas idéias novas,

deixando-a à mercê desse reformador judeu, conhecido como Jesus de

Nazaré?

- Tens razão - murmurou Públio Lentulus, extremamente desalentado

-, mas, o motivo baseou-se em circunstâncias imperiosas, porque Lívia

acreditou que o profeta Nazareno nos havia curado a filhinha!...

- Foste ingênuo, porque não podias admitir essa hipótese, em face

da evolução dos nossos conhecimentos, salvando, dessas perigosas

influências espirituais, o espírito maleável de tua mulher. Está comprovado

que esse novo credo preconiza atitudes mentais humilhantes, subvertendo

as mais íntimas disposições das criaturas que o aceitam. Homens ricos e

de ciência, que se submetem a esses odiosos princípios dentro do

Império, em favor de um reino imaginário, parecem tresvariados por

terrível narcótico, que os faz esquecer e desprezar a fortuna, o nome, as

tradições e a própria família!...

Colaborarei contigo, afastando Flávia desses prejuízos morais,

levando-a para a minha companhia, tão logo se realize o casamento de

nossos queridos filhos, porque a verdade é que, quanto a Lívia, tudo já fiz

para convencê-la, inutilmente.

- Entretanto, minha boa amiga - murmurou o senador, sensibilizado,

como a defender-se perante a nobre patrícia -, observo que Lívia continua

a ser uma criatura simples e modesta, sem exigir de mim coisa alguma que

atinja o terreno do exorbitante ou do supérfluo. Nestes quase dezessete

anos de íntima separação dentro do lar, somente me solicitou a licença

precisa para prosseguir em suas práticas cristãs junto de uma antiga serva

de nossa casa, permissão essa que fui obrigado a conceder,

256

ROMANCE DE EMMANUEL

considerando a continuidade de sua renúncia silenciosa e triste, no

ambiente familiar.

- Também considero que é pedir muito pouco, mormente agora que

todas as mulheres da cidade, segundo o costume, exigem dos maridos as

maiores extravagâncias em luxo do Oriente; contudo, cumpre-me

aconselhar-te, a ti que conservas intactas as nossas tradições mais

queridas, esperares mais algum tempo antes de esqueceres as

eventualidades dolorosas do passado, de modo a observarmos se Lívia

virá a beneficiar-se com a continuidade de nossas atitudes, voltando,

finalmente, ao seio de nossas tradições e de nossas crenças!...

Doloroso silêncio se fez então sentir, entre ambos, após essas

palavras.

Calpúrnia supôs haver cumprido o seu dever e Públio recolheu-se,

naquela noite, desalentado como nunca.

Em breves dias, conseguidos seus intentos, partia Agripa em

demanda do Avênio, não obstante as rogativas do irmão e de Flávia para

que esperasse as solenidades do matrimônio. Sua resolução era, porém,

inabalável e o filho mais velho de FIamínio, enfraquecido sob o peso das

suas desilusões, ia ausentar-se de Roma, por espaço de alguns anos,

prolongados e dolorosos.

Passavam-se os dias celeremente e, como somos obrigados a

caminhar em nossa história na companhia de todas as personagens,

devemos registrar que, em se vendo completamente abandonada pelo

homem de suas preferências, Aurélia, ralada de venenoso despeito,

resolvera aceitar a mão abnegada e afetuosa que o jovem Emiliano Lúcios

lhe oferecia.

Fúlvia, que acompanhara a luta silenciosa, intoxicada pelos seus

sentimentos inferiores, deliberou aguardar o tempo, para exercer as suas

sinistras represálias.

E, em tempo breve, o casamento de Plínio e Flávia realizava-se com

suntuosidade discreta, no

257

HÁ DOIS MIL ANOS...

palácio do Aventino. O noivo, cheio de galardões militares e títulos

honoríficos, bem como a futura companheira, tocada de formosura

indefinível e de adorável simplicidade, sentiam-se venturosos como se a

felicidade perfeita se resumisse tão somente na eterna fusão de seus

corações e de suas almas. Aquele dia, indubitavelmente, assinalava a hora

mais sagrada e mais formosa dos seus destinos.

Na assistência reduzidíssima, que se compunha de relações da

maior intimidade, notava-se a presença de um homem ainda jovem, que

representava uma figura saliente naquele quadro, caracterizado,

essencialmente, de acordo com a época.

Seus olhos impetuosos e ardentes haviam pousado sobre a noiva

com misterioso e estranho interesse.

Esse homem era Saul de Gioras, que, abandonando o sobrenome

paterno, exibia agora uma nova denominação romana, segundo antiga

autorização de Flamínio, de modo a valorizar, cada vez mais, a expressão

social da sua fortuna.

Debalde, o senador fez o possível para identificar aquele judeu, que

se lhe figurava um velho conhecido pessoal. Saul, porém, reconhecera o

seu verdugo de outrora; reconheceu e guardou silêncio, serenando as

grandes emoções do seu foro íntimo, porque, qual o pai, tinha o coração

mergulhado nos propósitos tenebrosos de uma vindita cruel.

258

III

Planos da treva

Depois das solenidades do casamento de Plínio, contrariamente ao

que se podia esperar, o liberto judeu não regressou a Massília, pretextando

numerosos negócios que o retinham na Capital do Império.

Instalado no palacete dos Severus, para onde se haviam transferido

os jovens nubentes, junto de Calpúrnia, Saul teve oportunidades

numerosas de se avistar com o senador Públio Lentulus, mantendo ambos

várias palestras sobre a Judeia e as suas regiões importantes.

Intrigado com aquele olhar ardente e aqueles traços fisionômicos,

que lhe não eram totalmente estranhos, e lembrando-se perfeitamente

daquele pai que o procurara ansioso e aflito, em Jerusalém,

acompanhemos o senador em uma de suas palestras íntimas com o

interessante desconhecido, na qual o abordou com esta pergunta

inesperada:

- Senhor Saul, já que sois filho das cercanias de Jerusalém, vosso

pai, porventura, não se chamaria André de Gioras?

259

HÁ DOIS MIL ANOS...

O liberto mordeu os lábios, diante daquele ataque direto ao assunto

mais delicado da sua existência, respondendo dissimuladamente:

Não, senador. Meu pai não tem esse nome. Ao tempo em que fui

escravizado por mãos impiedosas e cruéis, porquanto eu não era senão

uma criança mal educada e irresponsável - acentuou com profunda ironia -

, meu pai era um agricultor miserável que não possuía outra coisa além

dos seus braços para o trabalho de cada dia... Tive, contudo, a felicidade

de encontrar as mãos generosas de Flamínio Severus, que me guiaram

para a liberdade e para a fortuna e, hoje, o meu genitor, com o pouco que

lhe forneci, aumentou as suas possibilidades de trabalho, desfrutando não

somente certa importância social em Jerusalém, como também funções

superiores no Templo.

Mas, porque mo perguntais?

O senador franziu o sobrolho, em face de tanta desenvoltura na

resposta, mas, sentindo-se aliviado, por lhe parecer que não se tratava, de

fato, do Saul de suas penosas lembranças, respondeu com mais desafogo

de consciência:

- É que eu conheci, ligeiramente, um agricultor israelita, por nome

André de Gioras, cujos traços fisionômicos não eram muito diversos dos

vossos...

E a conversação seguia o ritmo normal das conversações sem

importância nos ambientes de convencionalismo da vida social.

Saul, entretanto, deixava transparecer fulgor estranho no olhar,

como quem se encontrava extremamente satisfeito com o destino, à

espera de um ensejo para executar seus tenebrosos planos de vingança.

Um móvel oculto e inconfessável o retinha em Roma, quando

numerosas operações comerciais requeriam sua presença em Massília,

onde seu nome se radicara a grandes interesses de ordem financeira e

material. Esse móvel era o intenso desejo

260

ROMANCE DE EMMANUEL

de se fazer notado pela jovem esposa de Plínio, cujo olhar parecia atrai-lo

para um abismo de amor violento e irreprimível.

Desde o instante em que a vira com os adornos do noivado, no dia

venturoso de seu enlace, parecia haver lobrigado a criatura ideal dos seus

sonhos mais íntimos e remotos.

Na realidade, os filhos de seus antigos senhores mereciam o seu

respeito e o maior acatamento; todavia, uma força maior que todos os

seus sentimentos de gratidão o levava a desejar a posse de Flávia Lentúlia,

a qualquer preço, ainda que fosse o da própria vida.

Aqueles olhos formosos e cismadores, a graça amorosa e

espontânea, a inteligência lúcida e delicada, todos os seus predicados

físicos e espirituais, que observara agudamente, nos poucos dias de

permanência na cidade, o autorizavam a crer que aquela mulher era bem o

tipo das suas idealizações.

E foi engolfado nesse turbilhão de pensamentos sombrios que dois

meses se passaram, de expectativas inconfessáveis e angustiosas, sem

que perdesse a mais ligeira oportunidade para demonstrar a Flávia o grau

do seu afeto, da sua admiração e estima, sob as vistas amigas e confiantes

de Plínio.

Na soledade de suas preocupações íntimas, considerava Saul que,

se ela o amasse, se correspondesse à afeição violenta do seu espírito

impetuoso e egoísta, jamais se lembraria de exercer a planejada vingança

sobre o coração de seu pai, indo buscar o jovem Marcus Lentulus para o

lar paterno e liquidando o pretérito de visões tenebrosas; contudo, se

acontecesse o contrário, executaria os seus diabólicos projetos, deixandose

embriagar pelo vinho odiento da morte.

Nessa época, corria já o ano de 47, e sem nos esquecermos de

Fúlvia e sua filha, vamos encontrá-las, de novo, sob o domínio dos

mesmos sentimentos cruéis e tenebrosos.

261

HÁ DOIS MIL ANOS...

Em vão desposara Aurélia a Emiliano Lúcios, que, para ela, não

representava de modo algum o tipo do homem que o seu temperamento

supunha haver encontrado no filho mais moço de Flamínio.

E foi assim que, depois dos primeiros desencantos e atritos no

ambiente doméstico, a conselho da mãe e na sua própria companhia,

procurou recorrer às ciências estranhas de Araxes, célebre feiticeiro

egípcio, que tinha uma loja de mercadorias exóticas nas proximidades do

Esquilino.

Araxes, cujo comércio criminoso todos conheciam como fonte

inesgotável de filtros milagrosos do amor, da enfermidade e da morte, era

um iniciado do antigo Egito, desviado, porém, da missão sacrossanta da

caridade e da paz, na sua violenta paixão pelo dinheiro da numerosa

clientela romana, então em pletora de vícios clamorosos e na dissolução

dos mais belos costumes do sagrado instituto da família.

Explorando-lhe as paixões inferiores e os hábitos viciosos, o mago

egípcio empregava quase toda a sua ciência espiritual na execução de

todos os malefícios e crimes, motivando enormes danos com as suas

drogas venenosas e seus estranhos conselhos.

Procurado, discretamente, por Fúlvia e a filha, inteirou-se dos fins da

visita e ali mesmo, entre grandes retortas e pacotes de plantas e

substâncias diversas. mergulhou a cabeça nas mãos, como se o seu

espírito estivesse devassando os menores segredos do mundo invisível,

ante uma trípode e outros petrechos de ciências ocultas, com que ele,

psicólogo profundo, buscava impressionar a mente sugestionável dos

consulentes numerosos que lhe solicitavam a solução dos problemas da

vida.

Ao cabo de longos minutos de concentração, com os olhos a brilhar

estranhamente, o mago egípcio dirigiu-se a Aurélia, afirmando-lhe em

palavras impressionantes:

262

ROMANCE DE EMMANUEL

- Senhora, vejo à minha frente dolorosos quadros da sua vida

espiritual, no passado longínquo!... Vejo Delfos, nos dias gloriosos do seu

oráculo e contemplo a sua personalidade buscando seduzir um homem

que lhe não pertencia... Esse homem é o mesmo da atualidade... As

mesmas almas perambulam agora em outros corpos e a senhora deve

pensar na realidade dos dias que se passam, conformando-se com a nítida

separação das linhas do destino!...

Aurélia ouvia, entre surpresa e assombrada, enquanto a alma arguta

de sua mãe acompanhava a palestra, tocada de impressão indefinível.

- Que me dizeis? - replicou a jovem senhora, no auge da sua

sensibilidade ferida. - Outras vidas? Um homem que não me pertencia?...

Que vem a ser tudo isso?

- Sim, nosso espírito, neste mundo - redargüiu o feiticeiro, com

imperturbável serenidade -, tem longa série de existências, que

enriquecem o nosso íntimo com o máximo de conhecimento sobre os

deveres que nos competem na vida!

A senhora já viveu em Atenas e em Delfos, numa grande fase de

profundas irreflexões em matéria de amor, e, sentindo-se hoje próxima do

objeto de suas ardentes e pecaminosas paixões de outrora, julga-se com

as mesmas possibilidades de satisfazer seus desejos violentos e

indignos!...

Por aqui, hão passado inúmeras criaturas. A muitas aconselhei

perseverança nos propósitos, por vezes injustificáveis e inferiores; mas,

para o seu caso, há uma voz que fala mais alto à minha consciência. Se a

sua irreflexão for ao ponto de provocar esse homem, em consciência

honesto até agora, é possível que o seu coração também inquieto venha a

corresponder aos seus caprichos; contudo, busque não se entregar ao

desvario dessa provocação, porque o destino o reuniu, agora, à alma

gêmea da sua e um caminho áspero de provações amargas os espera no

futuro, para a consolidação da sua con263

HÁ DOIS MIL ANOS...

fiança mútua, da sua afeição e da sua grandeza espiritual!... Não se

interponha no caminho dessa mulher considerada pelo seu espírito como

poderosa rival!... Interpor-se entre ela e o esposo seria agravar a senhora

as suas próprias penas, porque a verdade é que o seu coração não se

encontra preparado para as grandes renúncias santificantes, e aquilo que

supõe ser profundo e sublimado amor, nada mais é que capricho

prejudicial do seu coração de mulher voluntariosa e pouco disposta a

sacrificar-se pelo carinho de companheiro amoroso e leal, mas, sim, a

multiplicar os amantes pelo número de suas vontades artificiais...

Aurélia estava lívida, ouvindo essas palavras, que considerava

atrevidas e injuriosas.

Desejava defender-se, mas uma força poderosa parecia comprimirlhe

a garganta, anulando-lhe o esforço das cordas vocais.

Fúlvia, porém, tomada de rancor pelas expressões insultuosas

daquele homem, tomou a defesa da filha, argüindo-o com energia:

- Araxes, feiticeiro impudico, que queres dizer com estas palavras?

Insultas-nos? Poderemos fazer cair sobre tua cabeça o peso da justiça do

Império, conduzindo-te ao cárcere e revelando à sociedade os teus

sinistros segredos!.

- E porventura não os tereis também, nobre senhora? - revidou ele

imperturbavelmente -; estaríeis, assim, tão sem culpa, para não vacilar em

condenar-me?

Fúlvia mordeu os lábios, tremendo de ódio e exclamando com fúria:

- Cala-te, infame! Não sabes que tens diante dos olhos a esposa de

um pretor?

- Não me parece - murmurou o feiticeiro, com serena ironia -, pois as

nobres matronas dessa estirpe não viriam a esta casa solicitar minha

cooperação para um crime... E, ao demais, que diriam em Roma de uma

patrícia, que descesse ao

264

ROMANCE DE EMMANUEL

extremo de procurar, na intimidade, um velho feiticeiro do Esquilino?

É verdade que muitos males tenho praticado na minha vida, mas,

sabem-no todos que assim procedo e não busco a sombra das boas

situações sociais para acobertar a hediondez da minha miserável

existência!... Ainda assim, quero salvar a mocidade de tua filha do lôbrego

caminho de tuas perversidades, porque na hipótese de seguir-te ela os

coleios de víbora, na senda de esposa criminosa e infiel, seu único fim

será a prostituição e o infortúnio, rematados com a morte ignominiosa na

ponta de uma espada...

Fúlvia desejou revidar energicamente aos insultos de Araxes,

repelindo aquelas expressões injuriosas, recebidas como atrevimento

supremo, mas Aurélia, receosa de novas complicações e compreendendo

a culpabilidade de sua mãe, tomou-lhe do braço, retirando-se ambas

silenciosamente, sob o olhar zombeteiro do velho egípcio, que voltara a

empilhar pacotes de plantas entre numerosos vasos de substâncias

estranhas.

Pouco tempo, contudo, pôde ele empregar na sua faina solitária e

silenciosa.

Dentro de duas horas, nova personagem lhe batia à porta.

Araxes surpreendeu-se à vista daquele judeu insinuante que o

procurava. O brilho dos olhos, o nariz característico, a harmonia dos

traços israelitas, faziam daquele homem, ainda jovem, uma figura singular

e sugestiva.

Era Saul, que recorria aos mesmos processos misteriosos, na ânsia

de possuir, a qualquer preço, a esposa de Plínio, buscando o talismã ou o

elixir miraculoso do feiticeiro, a serviço de suas pretensões descabidas.

Recebido nas mesmas circunstâncias em que o foram as duas

personagens do nosso penoso drama, Saul expunha ao adivinho as suas

torturas amorosas, junto daquela mulher honesta e digna.

265

HÁ DOIS MIL ANOS...

Após a habitual concentração, já do nosso conhecimento, junto da

trípode em que fazia as orações costumeiras, Araxes esboçou leve e

discreto sorriso, como quem havia encontrado mais uma estranha

coincidência nos seus amplos estudos da psicologia humana. Sua

hesitação, todavia, durou poucos instantes, porque, em breve, se fazia

ouvir com voz pausada e soturna:

- Judeu! - disse ele austeramente - louva o Deus de tuas crenças,

porque tua face foi erguida do pó pelas mãos do homem que hoje te

empenhas em trair... Mandam as leis severas da tua pátria que não venhas

a desejar, nem mesmo por pensamentos, a mulher do teu próximo e muito

menos a companheira devotada e fiel de um dos teus maiores benfeitores.

Dá um passo atrás no teu triste e mal-aventurado caminho! Houve tempo

em que teu Espírito viveu no corpo de um sacerdote de Apolo, no templo

glorioso de Delfos... Perseguiste uma jovem mulher dos misteres

sagrados, conduzindo-a à miséria e à morte, com os teus desvarios

nefandos e dolorosos. Não ouses, agora, arrancá-la dos braços destinados

ao seu amparo e proteção, à face deste mundo!... Não te intrometas no

destino de duas criaturas que as forças do céu talharam uma para a

outra!...

O moço judeu, todavia, apesar de impressionado com aquela

exortação incisiva, não seguia a orientação violenta das duas mulheres

que o precederam na misteriosa visita.

Arrancando uma bolsa de moedas, acariciou-a nas mãos como a

excitar a concupiscência do adivinho, exclamando com voz quase súplice:

- Araxes, eu tenho ouro... muito ouro, e dar-te-ei o que quiseres, pelo

valioso auxílio da tua ciência... Pelo amor de teus deuses, consegue-me a

simpatia dessa mulher e recompensar-te-ei generosamente a preciosidade

dos esforços despendidos...

266

ROMANCE DE EMMANUEL

Os olhos do mago egípcio faiscaram ao clarão de sentimento

estranho, contemplando a bolsa em forma de cornucópia, reluzente de

ouro, como se a desejasse intensamente, murmurando com mais

delicadeza:

- Meu amigo, essa mulher não é cobiçada tão somente por ti e

suponho que deverias contribuir para que ela não se afastasse da

companhia do esposo!...

- Mas, existe, então, ainda outro homem?

- Sim, revelam-me os signos do destino que essa criatura é também

desejada pelo irmão do marido.

Saul fez um gesto de enfado, como quem se sentia amargamente

atormentado pelos mais acerbos ciúmes, murmurando entre dentes:

- Ah! sim... agora entendo melhor a viagem precipitada de Agripa, em

busca de Avênio!...

E, elevando a voz como quem estivesse jogando a derradeira

cartada da sua ambição, falou com ansiedade:

- Araxes, peço-te ainda uma vez!... Faze tudo!... pagar-te-ei

regiamente!...

A fronte do mago curvou-se de novo, em atitude de profunda

meditação, como se o espírito buscasse, no invisível, alguma força

tenebrosa, propícia aos seus sinistros desígnios.

Ao cabo de alguns minutos, tornou a dizer em tom benevolente e

amigo:

- Parece que haverá uma oportunidade para a sua afeição, daqui a

algum tempo!...

O moço judeu ouvia-o com angustiosa expectativa, enquanto as

afirmações continuavam:

- Dizem os signos do destino que os dois cônjuges, para

consolidação de sua profunda afeição, de sua confiança recíproca e

progresso espiritual, estão destinados a dolorosas provas daqui a alguns

anos! Dar-se-á alguma coisa que os separará dentro do próprio lar, sem

que eu possa precisar o que seja. Sei, tão somente, que cumpre a ambos

um

267

HÁ DOIS MIL ANOS...

grande período de ascetismo e dolorosa abnegação, no instituto sagrado

da família... Nessa ocasião, talvez, quem sabe? poderá o meu amigo tentar

essa afeição ardentemente cobiçada!...

- Dar-se-á, então, alguma coisa? - perguntou Saul, curioso e aflito,

nas suas perquirições do assunto transcendente - mas que poderá

acontecer que os separe no ambiente doméstico?

- Eu mesmo não saberia dizê-lo...

- E cada qual será obrigado a um ascetismo fiel e a uma dedicação

inquebrantável?

- Manda o determinismo do destino que assim seja, mas não só o

esposo, como a companheira, podem interferir nessas provas, contraindo

novo débito moral, ou resgatando o passado doloroso com o preciso valor

moral nos sofrimentos, empregando, no determinismo das provações

purificadoras, sua boa ou má vontade... Saiba que as tendências humanas

são mais fortes para o mal, tornando-se possível que as suas pretensões

sejam satisfeitas nessa época.

- E quanto tempo deverei esperar para que isso aconteça? -

perguntou o liberto, fundamente preocupado.

- Alguns anos.

- E será inútil tentar qualquer esforço antes disso?

- Perfeitamente inútil. Sei que o nobre cliente tem numerosos

interesses numa cidade distante e é justo que, neste intervalo, cuide dos

seus negócios materiais.

Saul fixou detidamente aquele homem que parecia conhecer os mais

recônditos segredos da sua vida, passando as suas observações pelo

crivo da consciência.

Deu-lhe a bolsa recheada, agradecendo a atenção e prometendo

voltar em tempo oportuno.

Daí a alguns dias, o moço judeu, nas vésperas da despedida,

aproveitando alguns minutos de pura

268

ROMANCE DE EMMANUEL

e simples intimidade com a jovem Flávia, dirigia-lhe a palavra nestes

termos:

- Nobre senhora - começou em voz quase tímida, mas com o mesmo

clarão estranho de sentimentos inferiores a lhe irradiar dos olhos -, ignoro

a razão do fato íntimo que vos vou revelar, mas a realidade é que vou partir

para Massília, guardando a vossa imagem no mais recôndito escaninho do

meu pensamento!...

- Senhor - disse-lhe Flávia Lentúlia, corando, acabrunhada -, devo

viver tão só no pensamento daquele com quem os deuses iluminaram o

meu destino!...

- Nobre Flávia - revidou o judeu arguto, percebendo que o golpe era

prematuro e inoportuno -, minha admiração não se prende a qualquer

sentimento menos digno. Para mim, sois duplamente respeitável, não

somente pela vossa alta condição de patrícia, como também pela

circunstância de serdes a companheira de um dos maiores benfeitores de

minha vida.

Ficai tranqüila quanto às minhas palavras, porque em meu coração

só existe o mais leal interesse pela vossa felicidade pessoal, junto do

digno esposo que escolhestes.

Sinto por vós o que um escravo deve sentir por uma benfeitora de

sua existência, já que, na minha triste condição de liberto, não posso

apresentar-me à vossa generosidade com as credenciais de irmão que

muito vos venera e estima.

- Está bem, senhor Saul - disse a jovem, mais aliviada -, meu marido

vos considera como irmão muito caro e eu me honro de associar-me aos

seus sentimentos.

- Muito vos agradeço - exclamou Saul, fingidamente -, e já que me

entendeis tão bem o pensamento fraterno, é com o interesse de irmão que

me dirijo à vossa alma generosa para prevenir-vos de um perigo...

- Um perigo?... - perguntou Flávia, aflita.

269

HÁ DOIS MIL ANOS...

- Sim. Falo-vos confidencialmente, solicitando que guardeis o

máximo segredo desta confidência fraternal.

E, enquanto a jovem o escutava com a maior atenção, Saul

continuou com as suas pérfidas insinuações.

- Sabeis que Plínio foi quase noivo da filha do pretor Sálvio Lentulus,

vosso tio, hoje casada com Emiliano Lúcios?

- Sim... - replicou a pobre senhora, de alma oprimida.

- Pois devo avisar, como irmão, que vossa prima Aurélia, a despeito

dos seus austeros compromissos matrimoniais, não renunciou ao homem

de suas antigas preferências; hoje fui cientificado, por um amigo, de que

ela tem recorrido a diversos feiticeiros de Roma, com o fim de reaver o seu

afeto de outrora, a qualquer preço!...

Ouvindo essas pérfidas palavras, Flávia Lentúlia experimentou o

primeiro espinho da sua vida conjugal, sentindo-se intimamente torturada

pelo mais acerbo ciúme.

Plínio resumia todo o seu idealismo e toda a sua felicidade de

mulher jovem. Depositara no seu coração todos os sonhos femininos,

todas as suas melhores e mais florentes esperanças. Assaltada pela

primeira contrariedade da sua vida social, na grande cidade de seus pais,

sentia, naquele instante, a sede devoradora de um esclarecimento amigo,

de uma palavra carinhosa que viesse restabelecer o equilíbrio do coração,

agora turbado pelos primeiros dissabores. Faltava-lhe alguma coisa que

pudesse completar as nobres qualidades do seu coração de mulher,

alguma coisa que devia ser a atuação materna na sua educação, porque

Públio Lentulus, na sua cegueira espiritual, lhe moldara o caráter no

orgulho da estirpe, nas tradições vaidosas dos antepassados, sem

desenvolver as suas qualidades de ponderação, que a influência de Lívia

criaria, certo, para notáveis florações do sentimento.

270

ROMANCE DE EMMANUEL

A jovem patrícia sentiu o coração despedaçado por um ciúme quase

feroz; mas, compreendendo os deveres que lhe competiam em tais

conjunturas, recobrou a precisa energia moral para reagir naquele primeiro

embate de provas, respondendo ao moço judeu e fazendo o possível por

afetar o máximo de severa e tranqüila nobreza:

- Agradeço, penhorada, o interesse de vossa comunicação; todavia,

nada me autoriza a suspeitar da consciência retilínea de meu esposo,

mesmo porque Plínio resume todos os meus ideais de esposa e de mulher!

- Senhora - revidou o judeu, mordendo os lábios -, o espírito

feminino, na sua fertilidade de imaginação, alheio à vida prática, pode

enganar-se muitas vezes, pelas aparências...

Folgo de ouvir-vos e louvo a vossa ilimitada confiança; porém, quero

fiqueis convencida de que, a qualquer tempo, encontrareis em mim um

sincero defensor da vossa felicidade e das vossas virtudes!...

Isso dizendo, Saul de Gioras apresentou atenciosas despedidas,

deixando a pobre moça com as suas impressões de surpresa e amargura.

Os primeiros infortúnios haviam atingido a vida conjugal de Flávia

Lentúlia, sem que ela soubesse conjurar o perigo que ameaçava a sua

ventura para sempre

Nessa noite, Plínio Severus não encontrou em casa a criatura

mimosa e adorável da sua dedicação e do seu amor profundo. Na

intimidade da alcova, encontrou a companheira cheia de recriminações

descabidas e importunas, tocada de tristezas amarguradas e

incompreensíveis, verificando-se entre ambos os primeiros atritos que

podem arruinar para sempre, no curso de uma vida, a felicidade de um

casal, quando seus corações não se encontram suficientemente

preparados para a compreensão espiritual, no instituto das provas

remissoras, embora

271

HÁ DOIS MIL ANOS...

a estrada divina de suas almas gêmeas seja um caminho glorioso para os

mais elevados destinos.

Em breves dias, Saul regressava a Massília, esperançoso de

concretizar algumas realizações de ordem material, de modo a regressar a

Roma no menor espaço de tempo.

E a vida das nossas personagens continuava, na Capital do Império,

quase com a mesma fisionomia de sempre.

O senador Lentulus prosseguia engolfado nas suas cogitações de

ordem política, procurando, sempre que possível, a residência da filha,

onde mantinha as mais longas palestras com Calpúrnia, sobre o passado e

as necessidades do presente.

Quanto a Lívia, afastada compulsoriamente da filha, pela força das

circunstâncias; longe de sua melhor amiga de outros tempos, pela

incompreensão, e prosseguindo distante do esposo no ambiente dos seus

afetos mais íntimos, refugiara-se na dedicada amizade de Ana, nas preces

mais fervorosas e sinceras.

Diariamente, ambas procuravam orar, em dolorosa soledade, ao pé

daquela mesma cruz grosseira que lhes dera Simeão no instante extremo.

Muitas vezes, ambas, em êxtase, notavam que o pequenino madeiro

se toucava de luz tenuíssima, ao mesmo tempo que lhes parecia ouvir

longe, no santuário do coração e dos pensamentos, exortações singulares

e maravilhosas.

Afigurava-se-lhes que a voz branda e amiga do apóstolo da Samaria

voltava do Reino de Jesus para ensinar-lhes a fé, o cumprimento do dever

de caridade fraterna, a resignação e a piedade. Ambas choravam, então,

como se nas suas almas sensíveis e carinhosas vibrassem as harmonias

de um divino prelúdio da vida celeste.

Nessa época, instruída por alguns cristãos mais humildes, Ana

cientificou a senhora das reuniões nas catacumbas.

272

ROMANCE DE EMMANUEL

Somente ali podiam reunir-se os adeptos do Cristianismo nascente,

porquanto, desde os seus primeiros eventos na sociedade romana, foram

as suas idéias consideradas subversivas e perversoras.

O Império fundado com Augusto, que significou a maior expressão

de um Estado forte em todas as épocas do mundo, depois das conquistas

democráticas da República, não tolerava nenhum agrupamento partidário,

em matéria de doutrinas sociais e políticas.

Verificava-se em Roma o mesmo que hoje com as nações modernas,

a oscilarem entre as mais variadas formas governamentais, ao longo do

eixo dos extremismos e dentro da ignorância do homem, que teima em não

compreender que a reforma das instituições tem que começar no íntimo

das criaturas.

As únicas associações admitidas eram, então, as cooperativas

funerárias, em vista de seus programas de piedade e proteção aos que já

não podiam perturbar os poderes temporais do César.

Perseguidos pelas leis, que lhes não toleravam as idéias

renovadoras; encarados com aversão pelas forças poderosas das

tradições antigas, os adeptos de Jesus não ignoravam a sua futura

posição de angústia e sofrimento. Alguns editos mais rigorosos os

compeliam a ocultar a manifestação de crença, embora o governo de

Cláudio procurasse, sempre, o máximo de ordem e equilíbrio, sem grandes

excessos na execução dos seus desígnios.

Alguns companheiros mais esclarecidos na fé advogavam

publicamente as suas teses, em epístolas ao sabor da época; mas, muito

antes dos crimes tenebrosos de Domício Nero, a atmosfera dos cristãos

primitivos era já de aflição, angústia e trabalhos penosos. Desse modo, as

reuniões das catacumbas efetuavam-se periodicamente, nada obstante o

seu caráter absolutamente secreto.

273

HÁ DOIS MIL ANOS...

Grande número de apóstolos da Palestina passavam em Roma,

trazendo aos irmãos da metrópole as prédicas mais edificantes e

consoladoras.

Ali, no silêncio dos grandes maciços de pedra, em cavernas

desprezadas pelo tempo, ouviam-se vozes profundas e moralizantes, que

comentavam o Evangelho do Senhor ou encareciam as sublimidades do

seu Reino, acima de todos os precários poderes da perversidade humana.

Tochas brilhantes iluminavam esses desvãos subterrâneos, que as heras

protegiam, enquanto suas portas empedradas davam a impressão de

angústia, tristeza e supremo abandono.

Sempre que um peregrino mais dedicado aportava à cidade, havia

um aviso comum a todos os conversos.

O sinal da cruz, feito de qualquer forma, era a senha silenciosa entre

os irmãos de crença, e, feito desse ou daquele modo especial, significava

um aviso, cujo sentido era imediatamente compreendido.

Através dessas comunicações incessantes, Ana conhecia todo o

movimento das catacumbas, colocando sua senhora a par de todos os

fatos que se desenrolavam em Roma, sobre a redentora doutrina do

Crucificado.

Assim é que, quando se anunciava a chegada de algum apóstolo da

Galileia ou das regiões que lhe são fronteiriças, Lívia fazia questão de

comparecer, fazendo-se acompanhar pela serva desvelada e fiel,

atravessando os caminhos a pé, embora trajasse agora a sua indumentária

patrícia, de conformidade com a autorização do marido, para professar

livremente as suas crenças. Ela estava ciente de que, perante a sociedade,

sua atitude representava grave perigo, mas o sacrifício de Simeão fôra um

marco de luz assinalando os seus destinos na Terra. Adquirira coragem,

serenidade, resignação e conhecimento de si mesma, para nunca

tergiversar em detrimento da sua fé ardente e pura. Se as suas

274

ROMANCE DE EMMANUEL

antigas relações de amizade, em Roma, atribuíam suas modificações

interiores à demência; se o marido não a compreendia e Calpúrnia e Plínio

cavavam, ainda mais, o grande abismo que Públio havia aberto entre ela e

a filha, possuía o seu espírito, na crença, um caminho divino para fugir de

todas as terrenas amarguras, sentindo que o Divino Mestre de Nazaré lhe

dulcificava as úlceras da alma, compadecendo-se do seu coração

retalhado de angústias. Era-lhe a fé como um archote luminoso clareando

a estrada dolorosa, e do qual se irradiavam os clarões da confiança

humana na Providência Divina, que transforma as provações penosas da

Terra em antegozo das eternas alegrias do Infinito.

275

IV

Tragédias e esperanças

A vida real sempre é prosaica, sem fantasia nem sonhos.

Assim decorre a existência das personagens deste livro, na tela viva

das realidades nuas e dolorosas do ambiente terrestre.

Os que atingem determinadas posições sociais, bem como os que

se aproximam do crepúsculo da vida fragmentária da Terra, poucas

novidades têm a contar, com respeito ao curso de cada dia.

Há um período na existência do homem, em que lhe parece não mais

haver a precisa pressão psíquica do coração, a fim de que se lhe renovem

os sonhos e as aspirações primeiras, figurando-se a sua situação

espiritual cristalizada ou estacionaria. No íntimo, não há mais espaço para

novas ilusões ou reflorescimento de velhas esperanças, e a alma, como

que em doloroso período de expectação e forçado silêncio, queda-se no

caminho, contemplando os que passam, presa aos cordéis da rotina, das

semanas uniformes e indiferentes.

Estamos vivendo, agora, o ano 57, e a vida dos atores deste drama

doloroso apresenta-se quase

276

ROMANCE DE EMMANUEL

invariável no desdobramento infindo dos seus episódios comuns e

angustiosos.

Apenas uma grande modificação se fizera na residência de

Calpúrnia.

Plínio Severus, nas suas radiosas expressões de vitalidade física, já

havia recebido as maiores distinções por parte das organizações militares

que garantiam a estabilidade do Império. Longas e periódicas

permanências nas Gálias e na Espanha lhe haviam angariado

honrosíssimas condecorações, mas, no seu íntimo, a vaidade e o orgulho

haviam proliferado intensamente, não obstante a generosidade do seu

coração.

Os primeiros ciúmes ásperos da esposa fizeram-se acompanhar de

conseqüências nefastas e dolorosas.

Aos criminosos propósitos de Saul juntaram-se as pérfidas

confidências das amigas mentirosas, e Flávia Lentúlia, longe de gozar a

ventura conjugal a que tinha direito pelos seus elevados dotes de coração,

descera, sem sentir, dados os seus ciúmes desmesurados, aos tenebrosos

abismos do sofrimento e da provação.

Para um homem da condição de Plínio, era muito fácil a substituição

do ambiente doméstico pelas festividades ruidosas do circo, na

companhia de mulheres alegres, que não faltavam em todos os lugares da

metrópole do pecado.

Em breve, o carinho da esposa foi substituído pelo falso amor de

numerosas amantes.

Debalde procurou Calpúrnia interpor seus bons ofícios e carinhosos

conselhos, e, em vão, prosseguia a jovem esposa do oficial romano no seu

martírio imperturbável e silencioso.

As raras queixas de Flávia eram guardadas pelo coração generoso

da mãe do seu marido, ou, então, confiadas ao espírito do pai, em

confidências amarguradas e penosas.

Públio Lentulus, compreendendo a importância da cooperação

feminina na regeneração dos costu277

HÁ DOIS MIL ANOS...

mes e no reerguimento do lar e da família, incitava a filha ao máximo de

resignação e tolerância, fazendo-lhe sentir que a esposa de um homem é a

honra do seu nome e o alimento da sua vida e que, enquanto um marido se

perverte no torvelinho das paixões desenfreadas, escarnecendo de todos

os bens da vida, basta, às vezes, uma lágrima da mulher para que a paz

conjugal volte a brilhar no céu sem nuvens do afeto puro e recíproco.

Para o espírito de Flávia, a palavra paterna tinha foros de realidade

insofismável e ela buscava amparar-se nas suas promessas e nos seus

conselhos, julgados preciosos, esperando que o esposo voltasse, um dia,

ao seu amor, entre as bênçãos do caminho.

Enquanto isso, Plínio Severus dissipava no jogo e nas folganças

uma verdadeira fortuna. Sua prodigalidade com as mulheres tornara-se

proverbial nos centros mais elegantes da cidade, e poucas vezes buscava

o ambiente familiar, onde, aliás, todos os afetos se conjugavam para

esclarecer-lhe docemente o espírito desviado do bom caminho.

A morte do velho pretor Sálvio Lentulus, antes do ano 50, obrigara a

família de Públio e os remanescentes de Flamínio aos protocolos sociais

junto de Fúlvia e da filha, por ocasião das homenagens prestadas às

cinzas do morto que, envolto no mistério da sua passividade resignada e

incompreensível, havia passado pelo mundo.

Bastou esse ensejo para que Aurélia retomasse a oportunidade

perdida. Um olhar, um encontro, uma palavra e o filho mais moço de

Flamínio, enamorado das belezas pecaminosas, restabeleceu o laço

afetivo que um amor santificado e puro havia destruído anteriormente.

Em breve, ambos eram vistos com olhares significativos pelos

teatros, pelos circos ou pelas grandes reuniões esportivas da época.

De todas essas dores, fizera Flávia Lentúlia o seu calvário de

agonias silenciosas, dentro do lar

278

ROMANCE DE EMMANUEL

que a sua fidelidade dignificava. Nas suas meditações silenciosas, muitas

vezes deplorou os antigos desabafos de ciúme injustificável, que

constituíram a primeira porta para que o marido se desviasse dos

sagrados deveres em família; mas, no seu orgulho de patrícia, ponderava

que era muito tarde para qualquer arrependimento dela, considerando,

intimamente, que o único recurso era aguardar a volta do esposo ao seu

coração fiel e dedicado, com o máximo de humildade e paciência. Nos

seus instantes de contristação, escrevia páginas amarguradas e

luminosas, pelos elevados conceitos que traduziam, ora implorando a

piedade dos deuses, em súplicas fervorosas, ora estereotipando as

íntimas angústias em versos comovedores, lidos tão somente pelos olhos

de seu genitor que, a chorar de emoção, considerava, muitas vezes, se a

desventura conjugal da pobre filha não era igualmente uma herança

singular e dolorosa.

Por volta do ano 53, desaparecia em trágicas circunstâncias, nos

escuros braços da morte, uma das figuras mais fortes desta história.

Referimo-nos a Fúlvia que, dois anos após o falecimento do

companheiro, acusava as mais sérias perturbações mentais, além de

inquietantes fenômenos orgânicos, provenientes de passados desvarios.

Feridas cancerosas devoravam-lhe os centros vitais e, por dois anos

a fio, o corpo emagrecido era forçado às mais penosas e incômodas

posições de repouso, enquanto os olhos inquietos e arregalados

dançavam nas órbitas, como se nas suas alucinações fosse compelida à

vidência dos quadros mais sinistros e tenebrosos.

Nessas ocasiões, não encontrava a dedicação da filha, que não

soubera educar, sempre atarefada nos seus constantes compromissos de

festas, encontros e representações sociais numerosas.

279

HÁ DOIS MIL ANOS...

Mas a misericórdia divina, que não abandona os seres mais

desditosos, dera-lhe um filho carinhoso e compassivo para as dores

expiatórias.

Emiliano Lúcios, o marido de Aurélia, era desses homens dignos e

valorosos, raros na paciência e nas mais elevadas virtudes domésticas.

Noites e noites sucessivas, velava pela velhinha infeliz, que as dores

físicas castigavam impiedosamente com o azorrague de suplícios atrozes.

Nos seus últimos dias, vamos ouvir-lhe as palavras desconexas e

dolorosas. Noite alta, quando as próprias escravas descansavam,

subjugadas pela fadiga e pelo sono, parecia que seus ouvidos de louca se

aguçavam, espantosamente, para ouvir os ruídos do invisível, dirigindo

impropérios às suas antigas vitimas, que voltavam das mais baixas esferas

espirituais para rodear-lhe o leito de sofrimento e morte. Olhos

desmesuradamente abertos, como se fixassem visões fatídicas e

horrorosas, exclamava a pobre velhinha abraçando-se ao genro, no auge

das suas freqüentes crises de medo e desesperação inconsciente:

- Emiliano!... - exclamava em atitudes de pavor supremo. - Este

quarto está cheio de seres tenebrosos!... Não percebes? Ouve bem...

Ouço-lhes os impropérios rijos e as sinistras gargalhadas!... Conheceste

Sulpício Tarquinius, o grande lictor de Pilatos?... Ei-lo que chega com os

seus legionários mascarados de treva!... Falam-me da morte, falam-me da

morte!... Socorre-me, filho meu!... Sulpício Tarquinius tem um corpo de

dragão que me apavora!...

Crises de soluço e lágrimas sucediam-se a essas observações

angustiosas.

- Acalma-te, mãe! - exclamava o militar, consternado até às lágrimas.

- Tenhamos confiança na bondade infinita dos deuses!...

- Ah!... os deuses! - gritava agora a infeliz, em histéricas gargalhadas

- os deuses... - onde

280

ROMANCE DE EMMANUEL

estariam os deuses desta casa infame? Emiliano, Emiliano, nós é que

criamos os deuses para justificar os desvarios de nossa vida! O Olimpo de

Júpiter é uma mentira necessária ao Estado... Somos uma caveira

enfeitada na Terra com um punhado de pó!... O único lugar que deve

existir, de fato, é o inferno, onde se conservam os demônios com os seus

tridentes no braseiro!... Ei-los que chegam em falanges escuras!...

E, apegando-se fortemente ao peito do oficial, gritava

disparatadamente, como se buscasse ocultar o rosto, de sombras

ameaçadoras:

- Nunca me levareis, malditos!... Para trás, canalhas!... Tenho um

filho que me defende de vossas investidas tenebrosas!...

Emiliano Lúcios acariciava bondosamente os cabelos brancos da

desventurada senhora, incitando-a a implorar a misericórdia dos deuses,

de modo a balsamizarem-se-lhe os rudes padecimentos.

De outras vezes, Fúlvia Prócula, como se tivesse a consciência

despertada por um raio divino, dizia, mais calma, ao filho que o destino lhe

havia dado:

- Emiliano, estou aproximando-me da morte e preciso confessar-te

as minhas faltas e grandes deslizes! Perdoa-me, filho, se tamanhos

trabalhos te hei proporcionado! Minha existência misérrima foi uma longa

esteira de crimes, cujas manchas horrorosas não poderão ser lavadas

pelas próprias lágrimas da enfermidade que ora me conduz aos

impenetráveis segredos da outra vida! Nunca, porém, consegui ponderar

as amarguras terríveis que me esperavam. Hoje, nas pesadas sombras

dalma, sinto que minha consciência se tisna do carvão apagado do fogo

das paixões nefastas que me devoraram o penoso destino!... Fui esposa

desleal, impiedosa, e mãe desnaturada...

Quem se apiedará de mim, se houver uma claridade espiritual após

as cinzas do túmulo? Deste leito de loucura e agonia desesperada, vejo o

des281

HÁ DOIS MIL ANOS...

file incessante de fantasmas hediondos, que parecem esperar-me no

pórtico do sepulcro!... Todos profligam meus crimes passados e mostramse

jubilosos com os padecimentos que me arrastam à sepultura!

Sem uma crença sincera, sinto-me entregue a esses dragões do

imponderável, que me fazem evocar o passado criminoso e sombrio!...

Uma torrente de lágrimas de compunção e arrependimento seguia-se

a esses instantes vertiginosos, de raciocínio e lucidez.

Emiliano Lúcios afagava-lhe, com carinho, a face rugosa, imergindose

ele mesmo em cismas dolorosas.

Aquele quadro lancinante era bem o fim tempestuoso de uma

existência de deslizes clamorosos.

Sim... ele tudo compreendia agora. A rebeldia da esposa, a sua

incompreensão, os atritos domésticos, aquela sede insaciável de festas

ruidosas em companhia de afetos que não eram os dele, deviam ser os

frutos amargos de educação viciada e deficiente. Mas, seu coração estava

cheio de generosidade sem limites. Espírito valoroso, compreendia a

situação, e quem compreende perdoa sempre.

Uma noite em que a doente manifestava crises acentuadas e

profundas, o bondoso oficial ordenou que as servas se recolhessem.

A pobre louca falava sempre, como se fôra tocada de energia

inesgotável e incompreensível.

Copioso suor inundava-lhe a fronte, tomada de febre alta e

constante.

- Emiliano - gritava ela desesperadamente -, onde está Aurélia, que

não busca velar à minha cabeceira nas vésperas da morte? Como as falsas

amizades de minha vida, terá ela também horror do meu corpo?

- Aurélia - explicou generosamente o oficial - precisava desobrigarse

hoje de um compromisso com as amigas, na organização de alguns

serviços sociais!

282

ROMANCE DE EMMANUEL

- Ah! - exclamou a demente, em sinistras gargalhadas - os serviços

sociais... os serviços sociais!... Como pudeste crer nisso, filho meu? Tua

mulher, a estas horas, deve estar ao lado de Plínio Severus, seu antigo

amante, em algum lugar suspeito desta cidade miserável!...

Emiliano Lúcios fez o possível para que a infeliz dementada não

prosseguisse em suas revelações terríveis e impressionantes; mas Fúlvia

continuava o libelo tremendo e doloroso:

- Não, não me prives de continuar... - prosseguia desesperadamente.

- Ouve-me ainda! Todas as minhas acusações representam a criminosa

realidade... Muitas vezes, a verdade está com aqueles que

enlouqueceram!... Fui eu própria que induzi minha infeliz filha aos desvios

conjugais... Plínio Severus era o inimigo que ela precisava vencer, na

qualidade de mulher... Facilitei-lhe o adultério, que se consumou sob este

teto!... Certifica-te, filho meu, da enormidade das minhas faltas!...

Horroriza-te, mas perdoa!... E vigia tua mulher para que não continue a

trair-te com as suas perfídias torpes, e não venha um dia a apodrecer,

lamentavelmente, como eu, num leito de sedas perfumosas!...

O generoso militar acompanhava, boquiaberto e aflito, aquelas

revelações assombrosas.

Então a esposa, além de não o compreender no seu idealismo, ainda

o traia vergonhosamente, no próprio ambiente sacrossanto do lar?

Emoções dolorosas represavam-se-lhe no coração, mas, possivelmente,

todas aquelas palavras não passavam de simples delírio febril, na

demência incurável. Uma dúvida horrível e impiedosa aninhara-se-lhe no

coração angustiado. Algumas lágrimas umedeceram-lhe os grandes olhos

tristes, enquanto a enferma dava uma trégua às penosas revelações.

Dai a minutos, porém, com voz estentórica, continuava:

- E Aurélia? Que é feito de Aurélia que não vem? Por onde andará

minha pobre filha crimi283

HÁ DOIS MIL ANOS...

nosa e infiel? Amanhã, meu filho, hei-de confiar-te os infames segredos da

nossa existência desventurada.

Alguém, todavia, penetrara no aposento contíguo, cautelosa e

silenciosamente. Era Aurélia, que voltava de uma festividade ruidosa, onde

o vinho e os prazeres haviam jorrado em abundância.

Depois de atravessar a porta próxima, ainda ouviu as últimas

palavras da mãe, no auge da febre e da desesperação doentia. Ela, que

ouvira as tristes revelações de pouco antes, considerou que a doente, no

dia imediato, haveria de cumprir a terrível promessa e, num relance,

examinou todas as probabilidades de execução da idéia tenebrosa que lhe

passara pela mente criminosa e infeliz. Seus olhos pareciam vidrados de

cólera, sob o azorrague de um pensamento mórbido, que lhe aflorara

repentinamente no coração frio e impiedoso.

Despiu os trajes da festa, reintegrando-se nos aspectos interiores do

lar, e abriu uma nova porta, dirigindo-se ao leito materno, onde acariciou a

mãe fingidamente, enquanto o esposo incompreendido a contemplava, de

cérebro fervilhante e dolorido, sob o domínio das dúvidas mais acerbas.

- Mãe, que é isso? - perguntou, afetando uma preocupação

imaginária. - Estás cansada... precisas repousar um pouco.

Fúlvia fitou-a profundamente, como se um clarão de lucidez lhe

houvesse clareado repentinamente o espírito abatido. A presença da filha

tranqüilizava de algum modo o seu coração dorido e a consciência

dilacerada. Sentou-se com esforço, no leito, afagou os cabelos da filha,

como sempre costumava fazer na intimidade, deitando-se em seguida e

parecendo com boa disposição de repousar.

Emiliano Lúcios retirou-se da cena, considerando que sua presença já não

era necessária.

Mas Aurélia continuava a falar com o seu fingido carinho:

284

ROMANCE DE EMMANUEL

- Queres, mãe, uma dose do calmante para o repouso preciso?

A pobre louca, na sua inconsciência espiritual, fez um sinal

afirmativo com a cabeça.

A jovem encaminhou-se ao seu aposento privado e, retirando

minúsculo tubo de um dos móveis prediletos, deixou pingar algumas gotas

numa pequena taça de sedativo, monologando: - "Sim!... um segredo é

sempre um segredo... e só a morte pode guardá-lo convenientemente!..."

Caminhou, sem hesitação, para o leito materno, onde, por mais de

dois anos, jazia a infeliz, devorada pelo câncer e atormentada pelas visões

mais sinistras e tenebrosas.

Num relance, o horrível envenenamento estava consumado.

Ministrada a poção corrosiva e violenta, Aurélia determinou, então, que

duas escravas velassem o sono da enferma, como de costume, ao

regressar das noitadas ruidosas, esperando o resultado da ação criminosa

e injustificável.

Em duas horas, a enferma apresentava os mais evidentes sinais de

sufocação sob a ação do corrosivo, que constituía mais um daqueles

filtros misteriosos e homicidas da época.

Ao chamamento aflito das servas, todas as pessoas da casa se

colocaram a postos, dado o penoso estado da enferma.

Emiliano Lúcios contemplou-lhe os olhos, que se iam apagando no

véu da morte, e debalde procurou fazer que a agonizante lhe dissesse

ainda uma palavra. Seus membros frios foram-se enrijando devagarinho e

da boca começou a escapar-lhe espuma rósea.

Em vão foram chamados os entendidos da medicina, naqueles

derradeiros instantes. Naquela época, nem os esculápios conheciam os

segredos anatômicos do organismo, nem havia polícia técnica para

averiguar as causas profundas das mortes misteriosas. O envenenamento

de Fúlvia correu por conta das moléstias incompreensíveis que, durante

285

HÁ DOIS MIL ANOS...

muitos meses, lhe haviam minado todos os centros de vitalidade.

Contudo, aquela agonia rápida não passou despercebida a Emiliano,

que juntou mais uma dúvida penosa aos amargos pensamentos que lhe

negrejavam o foro íntimo.

Aurélia buscou representar, do melhor modo, a comédia da

sentimentalidade em tais circunstâncias, e depois das cerimônias

simplificadas e rápidas, em vista da imediata decomposição cadavérica,

que forçou a incineração em breves horas, o antigo lar do pretor Sálvio

Lentulus tornou-se o abrigo de dois corações que se odiavam

mutuamente.

Se a esposa infiel, logo após os primeiros dias de luto, retornava à

sua existência de regalados prazeres, Emiliano Lúcios nunca pôde

esquecer as revelações de Fúlvia, nas vésperas do seu desprendimento,

envolvendo-se, então, num véu de tristeza que lhe cobriu o coração por

mais de dois anos.

Em 54, subia Domício Nero ao poder, fazendo-se acompanhar de

uma depravada corte de áulicos perversos e de concubinas tão numerosas

quão desalmadas.

Muito tarde, reconheceu Agripina a inconveniência de sua atitude

maternal obrigando o imperador Cláudio a anuir ao casamento de sua filha

Otávia com aquele que, mais tarde, iria eliminar-lhe a própria vida com os

maiores requintes de perversidade.

O Fórum e o Senado receberam, tremendo, a sombria notícia da

proclamação do novo César pelas legiões pretorianas, não tanto por ele,

mas porque sabiam, de antemão, que aquele príncipe ignorante e cruel ia

tornar-se um fácil joguete dos espíritos mais ambiciosos e mais perversos

da corte romana.

Ninguém, todavia, ousou protestar, tal a série de crimes tenebrosos,

perpetrados impunentemente, para que Domício Nero atingisse os

bastidores do supremo poder.

286

ROMANCE DE EMMANUEL

No ano 56, o envenenamento do jovem Britanicus punha arrepios de

terror em todos os patrícios.

Medidas ignominiosas foram postas em prática para humilhar os

senadores do Império, que não conseguiram efetivar os seus protestos

formais. Todas as famílias mais importantes da cidade conheciam que,

diante de si, tinham os filtros venenosos de uma Locusta, a tirania e a

perversidade de um Tigelinus, ou o punhal de um Aniceto.

A morte inesperada de Britanicus, porém, provocara certo

descontentamento, dando azo a que se manifestassem alguns espíritos

mais valorosos.

Entre esses, encontrava-se Emíliano Lúcios, que se viu logo em

sérias perspectivas de banimento, tornando-se vigiado pelos inúmeros

esbirros do Imperador.

O generoso oficial buscou recolher-se o mais que lhe era possível,

evitando a possibilidade de conflitos. Recrudesceram as suas angústias

íntimas e as suas meditações tornaram-se mais profundas e dolorosas...

E, assim, certa vez, às primeiras horas de uma noite tranqüila,

quando se recolhia ao lar, contrariamente aos seus hábitos mais antigos,

notou que o aposento da esposa estava cheio de vozes animadas e

alegres. Observou que Aurélia e Plínio se embriagavam no vinho de seus

venenosos prazeres e, olhos traduzindo incoercível espanto, viu que a

esposa o traía no próprio tálamo conjugal.

Emiliano Lúcios sentiu que espinho mais agudo lhe penetrava o

coração sensível e generoso, ao verificar, por si mesmo, aquela realidade

cruel. Teve ímpetos de chamar o amante ao campo da honra para morrer

ou eliminar-lhe a vida, mas considerou, simultaneamente, que Aurélia não

merecia tal sacrifício.

Enojado de tudo que se referia à sua época e sentindo-se vencido

nas desventuras do seu penoso destino, o nobre oficial retirou-se para o

an287

HÁ DOIS MIL ANOS...

tigo gabinete do pretor Sálvio, onde estabelecera a sede de seus trabalhos

diurnos e, tomado de sinistra e dolorosa resolução, abriu velho armário

onde se alinhavam pequenos frascos, retirando um deles, de configuração

especial, a fim de satisfazer os amargos propósitos do seu espírito

exausto.

Diante da taça de cicuta, o cérebro dorido perdeu-se, por minutos,

em pungentes conjeturas, mas, estudando intimamente todas as suas

probabilidades de ventura, ponderou, no auge do desespero, que, à traição

da mulher, às ameaças de proscrição e de banimento ou à possibilidade de

um ataque nas sombras, era preferível o que ele considerava o consolo

derradeiro da morte.

Num instante, sem que os amigos espirituais pudessem demovê-lo

do intento terrível, tal a subitaneidade do gesto desesperado e irrefletido,

sorveu o conteúdo de pequena taça, descansando depois a jovem cabeça

sobre os braços, estirado num leito próprio do triclínio, mas adaptado ao

seu gabinete antigo, abarrotado de mármores e pergaminhos preciosos.

A morte horrível não se fez esperar muito, e, no círculo numeroso de

suas relações de amizade, enquanto Aurélia representava nova farsa de

pesares imaginários, comentava-se o suicídio de Emiliano, não como

consequência direta de suas profundas desilusões domésticas, mas como

fruto da tirania política do novo imperador, sob cujo reinado tantos crimes

foram cometidos, diariamente, nas sombras.

Sozinha, agora, no seu campo de ação, Aurélia entregou-se

livremente aos seus desvarios, amplificando as suas inclinações nocivas e

procurando reter, cada vez mais, junto de si o homem de suas

preferências, objeto de suas desenfreadas ambições.

Em casa dos Lentulus e dos Severus, a vida continuava a desfiar o

rosário das desventuras.

Havia mais de cinco anos, em 57, que Saul de Gioras se encontrava

definitivamente instalado

288

ROMANCE DE EMMANUEL

em Roma, sem haver desistido dos seus desejos e propósitos a respeito

da esposa do amigo e benfeitor. Consolidada a sua fortuna no comércio de

peles do Oriente, não perdia ele as mínimas oportunidades para evidenciar

a excelência de sua situação material à mulher cobiçada de longos anos;

Flávia Lentúlia, porém, fizera da existência um calvário de resignação,

comovedora e silenciosa.

A vida pública do marido era, para o seu espírito, um prolongado e

doloroso suplício moral. Sobre o assunto, fazia Saul, de vez em quando,

referências indiretas, no intuito de chamar-lhe a atenção para o seu afeto,

mas a pobre senhora nele não via outra individualidade, além de um

amigo, ou irmão. Debalde, o moço judeu testemunhava-lhe sua admiração

pessoal, em gestos de extrema gentileza, buscando oferecer-lhe a sua

companhia; mas, a verdade é que os apelos de sua alma impetuosa e

apaixonada não encontravam. ressonância no coração daquela mulher,

que enfeitava com a dor a dignidade do matrimônio.

Tocado pelas expressões do seu dinheiro, Araxes animava-lhe as

esperanças sem o deixar esmorecer nos seus perigosos instintos.

Plínio Severus só vinha ao lar de vez em quando, alegando serviços

ou viagens numerosas para justificar a continuidade de sua ausência. Mal

se precatava ele de que as despesas astronômicas lhe arruinavam, pouco

a pouco, as possibilidades financeiras, conduzindo igualmente os seus

familiares ao esgotamento de todos os recursos.

Algumas vezes, mantinha colóquios afetuosos com a esposa, a

quem se sentia preso pelos laços de afeição eterna e profunda, mas as

seduções do mundo eram já muito fortes no seu coração, para serem

extirpadas. No íntimo, desejava voltar à calma do lar, à vida carinhosa e

tranqüila; mas, o vinho, as mulheres e os ambientes ostentosos eram a

permanente obsessão do seu espírito combalido; outras vezes, embora

amando a esposa ternamente,

289

HÁ DOIS MIL ANOS...

não lhe perdoava a circunstância da sua superioridade moral, irritando-se

contra a própria humildade que ela testemunhava em face dos seus

desatinos, e regressava novamente aos braços de Aurélia, como vítima

indecisa entre as forças do bem e do mal.

No ano 57, a saúde de Calpúrnia, abalada em extremo, obrigara a

família a reunir-se em torno do leito da matrona generosa. Pela primeira

vez, após o casamento do irmão, voltou Agripa Severus de suas longas

aventuras em Massília e em Avênio, para junto de sua mãe enferma e

abatida, atendendo-lhe os sentidos apelos. Reencontrar Flávia Lentúlia e

participar com ela das claridades do ambiente doméstico, foi o mesmo que

reavivar velho vulcão adormecido.

A um golpe de vista, compreendeu a situação conjugal de Plínio,

procurando substituir-lhe o afeto junto da esposa desvelada e meiga.

Desejava confessar-lhe todo o seu amor ardente e infeliz, mas guardava no

coração sublime respeito fraternal por aquela mulher, que confiava nele

como irmão muito amado.

Foi assim que, nas alternativas de melhora da velha enferma, Flávia

lhe aceitou a companhia para distrair-se nalguns espetáculos da rumorosa

cidade da época.

Tanto bastou para que Saul envenenasse os acontecimentos,

supondo nessas expansões inocentes uma ligação menos digna, que lhe

enchia de pavorosos ciúmes o coração violento e irascível.

Na primeira oportunidade, insinuou a Plínio Severus todas as suas

cavilosas suspeitas, arquitetando, com a sua imaginação doentia,

situações e acontecimentos que jamais se verificaram. O esposo de Flávia

era desses homens caprichosos, que, organizando um circulo de liberdade

ilimitada para si próprio, nada concedem à mulher, nem mesmo no terreno

das afeições desinteressadas e puras. Dessa forma, Plínio Severus

começou a acatar a palavra

290

ROMANCE DE EMMANUEL

de Saul, concedendo-lhe aos conceitos insensatos o mais largo crédito, no

seu foro íntimo. Ele, que deixara a companheira afetuosa ao abandono e

que, por largos anos, dera azo às mais penosas amarguras domésticas,

sentiu-se, então, ralado de ciúmes acerbos e inconcebíveis, passando a

espionar os menores gestos do irmão e a desconfiar dos mais secretos

pensamentos da esposa, esperando que a moléstia irremediável de sua

mãe tivesse uma solução na morte, que se presumia para breve, a fim de

se pronunciar com mais força na reivindicação dos seus direitos

conjugais.

Entrava o ano de 58, com amarguradas perspectivas para as nossas

personagens.

Um fato, porém, começava ferir a atenção de todas as personagens

desta história real e dolorosa.

A dedicação de Lívia à sua velha amiga doente era um exemplo raro

de amor fraterno, de carinho e bondade indefiníveis. Oito meses a fio, sua

figura franzina e silenciosa esteve a postos dia e noite, sem descanso,

junto ao leito de Calpúrnia, provando-lhe com exemplos a excelência dos

seus princípios religiosos

Muitas vezes, a nobre matrona considerou, intimamente, a

superioridade moral daquela doutrina generosa, que estava no mundo para

levantar os caídos, confortar os enfermos e os tristes, disseminando as

mais formosas esperanças com os desiludidos da sorte, em confronto com

os seus velhos deuses que amavam os mais ricos e os que oferecessem

os melhores sacrifícios nos templos, e aquele Jesus humilde e pobre,

descalço e crucificado, de que lhe falava Lívia em suas palestras íntimas e

carinhosas.

Calpúrnia estava plenamente modificada, às vésperas da morte. A

convivência contínua da velha amiga renovara-lhe todos os pensamentos e

crenças mais radicadas. Tratava melhor as escravas que lhe beiravam o

leito e pedira a Lívia lhe

291

HÁ DOIS MIL ANOS...

ensinasse as preces do profeta crucificado em Jerusalém, o que ambas

faziam de mãos postas, quando os aposentos da enferma ficavam

silenciosos e desertos. Nesses instantes, a viúva de Flamínio Severus

sentia que as dores abrandavam, como se bálsamo suave lhe refrescasse

os centros íntimos de força; cessavam as dispneias dolorosas e a

respiração quase se normalizava, como se profundas energias do plano

invisível lhe reanimassem o coração escleroso e fatigado.

Ao espírito de Públio não passavam despercebidos esses sintomas

de modificação moral da velha matrona, nem tampouco o nobre

procedimento da esposa, que nunca mais repousou, desde o instante em

que a vira inerme e exausta. Os sofrimentos da vida haviam igualmente

modificado muito a estrutura da sua organização espiritual e, como nunca,

sentia o senador a necessidade de se reconciliar com a esposa, para

enfrentar os invernos penosos da velhice que se aproximava.

Não só ele, como Lívia, já haviam ultrapassado meio século de

existência, e agora, que tão bem conhecia a vida e os seus dolorosos

mecanismos de aperfeiçoamento, se sentia apto a perdoar todas as faltas

da esposa, no pretérito, considerando que os seus vinte e cinco anos de

martírio moral, no sacrossanto ambiente doméstico, bastavam para redimila

das faltas que, porventura, houvesse cometido, nas ilusões da

mocidade, em terra estranha, conforme supunha em suas falsas

observações, filhas ainda da calúnia que lhe destruíra a ventura e a paz de

uma existência inteira.

Nos primeiros dias do ano 58, os padecimentos de Calpúrnia foram

subitamente agravados, esperando-se a cada momento o penoso

desenlace.

Os filhos e os mais íntimos lhe rodeavam o leito, grandemente

comovidos, embora reconhecessem a necessidade de repouso para

aquele corpo doente e esgotado.

292

ROMANCE DE EMMANUEL

Na antevéspera da morte, a veneranda senhora pediu que a

deixassem sozinha com o senador, por algumas horas, alegando a

necessidade de confiar a Públio Lentulus algumas disposições "in

extremis".

Atendida, imediatamente, vamos encontrá-los em íntimo colóquio,

como se estivessem juntos pela última vez, para decisão de assuntos

importantes e supremos.

Públio, ainda em pleno vigor de sua compleição física, tinha os

olhos rasos dágua, enquanto a velha matrona o contemplava, deixando

transparecer um clarão de viva lucidez nos olhos calmos e profundos.

- Públio - começou ela, gravemente, como se aquelas palavras

fossem as suas últimas recomendações -, para os espíritos de nossa

formação não pode existir o receio da morte, e é por esse motivo que

deliberei falar-te nas minhas horas derradeiras...

- Mas, minha boa amiga - respondeu o senador, franzindo a testa e

esforçando-se por dissimular a comoção que lhe ia nalma, lembrando-se

de que, nas mesmas circunstâncias, lhe falara FIamínio pela última vez,

entre as paredes daquele quarto -, somente os deuses podem decidir de

nossos destinos e só eles conhecem os nossos últimos instantes!...

- Não duvido dessas verdades - acudiu a valorosa patrícia -, mas,

tenho a certeza de que as minhas horas na Terra chegam a termo e não

quero levar para o túmulo o remorso de uma falta que reconheço haver

cometido há mais de dez anos...

- Uma falta? Nunca... Vossa vida, Calpúrnia, foi sempre um dos mais

raros exemplos de virtude nesta época de transição e degenerescência

dos nossos mais belos costumes...

- Agradeço-te, meu grande amigo, mas tua gentileza não me exime

da penitência perante o teu espírito, afirmando que há mais de dez anos

errei

293

HÁ DOIS MIL ANOS...

num julgamento, pedindo-te hoje recebas a minha retificação, talvez tardia,

mas ainda a tempo de santificarmos, com o mais justo respeito, uma vida

de sacrifícios e de abnegações!...

Públio Lentulus adivinhou que se tratava de sua mulher e, com voz

embargada pela comoção e pelas lágrimas, deixou que a velha amiga

continuasse, de olhos enxutos, manifestando o mais subido valor moral

em face da morte que se aproximava.

- Refiro-me a Lívia - continuou Calpúrnia, em tom comovido -, a

respeito de quem tive a infelicidade de te transmitir uma suposição errônea

e injusta, cortando-lhe a última possibilidade de ventura na Terra; mas, a

morte renova as nossas concepções da vida e os que estão prestes a

abandonar este mundo possuem uma visão mais clara de todos os

problemas da existência.

Hoje, meu amigo, digo-te, de alma serena, que tua esposa é

imaculada e inocente...

O senador sentia que o pranto lhe brotava espontaneamente dos

olhos, mas estava intimamente confortado por saber que a venerável

amiga confirmava, agora, as convicções que o tempo lhe aumentara

quanto à nobilíssima companheira de sua existência.

- Não to digo simplesmente por uma questão de egoísmo pessoal,

em penhor de agradecimento pelas supremas dedicações de Lívia para

comigo no decurso desta dolorosa enfermidade - continuou ela,

valorosamente. - Um espírito do nosso estofo deve estar com a verdade

acima de tudo, e esta minha confissão não se verifica tão somente pelas

observações da minha fraqueza toda humana.

A realidade, todavia, meu amigo, é que, desde aquela noite em que

me pediste opinasse sobre tua esposa e minha desvelada amiga, sinto o

espinho de uma dúvida cruel no meu coração dilacerado. Lívia foi sempre

a minha melhor companheira, e contribuir para a sua desventura,

injustificada294

ROMANCE DE EMMANUEL

mente, era aos meus olhos a suprema falta de toda a vida...

Por onze anos, orei constantemente e ofereci numerosos sacrifícios

nos templos, para que os deuses me inspirassem a verdade sobre o

assunto e, por todo esse tempo, tenho esperado pacientemente a

revelação do céu... Só hoje, porém, me foi dado obtê-la, já nos pórticos do

sepulcro!...

É possível que minha pobre alma, já semiliberta, esteja participando

dos incompreendidos mistérios da vida do além-túmulo e talvez seja por

isso que, hoje pela manhã, vi a figura de Flamínio neste quarto!... Era muito

cedo e eu estava só, com as minhas meditações e as minhas preces!...

Nesse ínterim, a palavra da enferma tornara-se entrecortada de

profundas emoções que a dominavam, enquanto Públio Lentulus chorava,

em doloroso silêncio.

- Sim... - prosseguiu Calpúrnia, depois de longa pausa -, no meio de

uma luz difusa e azulada, vi Flamínio a estender-me os braços carinhosos

e compassivos... No olhar, observei-lhe a mesma expressão habitual de

ternura e, na voz, o timbre familiar, inesquecível... Avisou-me que dentro de

dois dias penetrarei os mistérios indevassáveis da morte, mas essa

revelação do meu fim próximo não me podia surpreender... porque, pari

mim... que há tantos anos vivo no meu exílio de saudades e sombras...

acrescido das continuadas angústias da enfermidade longa e dolorosa... a

certeza da morte constitui supremo consolo... Confortada pelas doces

promessas da visão, as quais me auguravam esse brando alívio para

breves horas...

perguntei ao espírito de Flamínio sobre a dúvida cruel que me dilacerava

há tantos anos... Bastou que a argüísse mentalmente, para que a radiosa

entidade me dissesse em alta voz... meneando a cabeça num gesto

delicado... como a exprimir infinita e dolorosa tristeza: "Calpúrnia, em má

hora duvidaste daquela a quem deverias amar... e pro295

HÁ DOIS MIL ANOS...

teger como a filha querida e carinhosa... porque Lívia... e uma criatura

imaculada e inocente..."

Nesse instante... - continuou a enferma, com alguma dificuldade -, tal

foi a impressão dolorosa de minhalma... com a surpresa da resposta... que

não mais lobriguei a visão carinhosa e consoladora... como se fosse

repentinamente chamada às tristes realidades da vida prática.

A velha matrona tinha os olhos marejados de lágrimas, enquanto o

senador se entregava silenciosamente ao pranto de suas comoções

penosas.

Longos minutos estiveram ambos assim, na atitude de quem dava

curso ao remorso e ao sofrimento...

Afinal, foi ainda a valorosa patrícia quem rompeu o pesado silêncio,

tomando as mãos do amigo entre as suas mãos descarnadas e brancas,

exclamando:

- Públio, fala-te o coração de uma velha amiga, com as verdades

serenas e tristes da morte... Acreditas piamente nas minhas dolorosas

revelações?...

O senador fez um esforço para enxugar as lágrimas que lhe caiam

copiosamente dos olhos, e, movimentando o máximo de energias, replicou

firmemente:

- Sim, acredito.

- E que faremos agora... para reparar nossas faltas... ante o coração

generoso e justo de tua mulher?...

Ele deixou transparecer um clarão de ternura nos olhos, e, passando

as mãos inquietas pela fronte, como se houvera encontrado solução quase

feliz, dirigiu-se à doente, com uma irradição de alegria e de tranqüilidade

no semblante, dizendo confortado:

- Sabeis da grande festa do Estado, que se realizará de hoje a

poucos dias, na qual os senadores, com mais de vinte anos de serviço ao

Império, serão coroados de mirto e rosas, como os triunfadores?

296

ROMANCE DE EMMANUEL

- Sim - respondeu a matrona -, tanto que já pedi a meus filhos que...

não obstante a minha morte próxima... te acompanhem nessa justa

alegria... porque serás um dos agraciados pelas nossas autoridades

supremas...

- Ó, minha grande amiga, ninguém pode esperar vossa morte,

mesmo porque, não poderemos prescindir da preciosa contribuição da

vossa vida; mas, já que cuidamos de reparar o meu erro grave no passado

doloroso, esperarei mais uma semana para levar ao espírito de Lívia a

expressão do meu reconhecimento, da minha gratidão e do meu profundo

amor. Irei a essa festa, a realizar-se sob os auspícios de Sêneca, que tudo

tem feito por dissimular a penosa impressão causada pela conduta cruel

do Imperador, seu antigo discípulo. Depois de receber a coroa da suprema

vitória de minha vida pública, trarei todas as condecorações aos pés de

Lívia, como preito justo à sua angustiada existência de penosos sacrifícios

domésticos... Ajoelhar-me-ei ante a sua figura santificada e, retirando da

fronte a auréola do Império, deporei as flores simbólicas a seus pés, que

beijarei humildemente com o meu arrependimento e as minhas lágrimas,

traduzindo-lhe gratidão e amor infindos!...

- Generosa idéia, meu filho - exclamou a enferma, sensibilizada -, e

peço-te que a executes... no momento oportuno. E, no instante... em que

testemunhares a Lívia o teu amor supremo... dize-lhe que me perdoe...

porque eu chorarei de alegria... vendo ambos felizes... lá das sombras

tranqüilas do meu sepulcro.

Ambos choravam, comovidos, silenciosamente.

Em dado instante, a velha doente apertou as mãos do amigo, como a

dizer-lhe um supremo adeus. Calpúrnia fixou nele os grandes olhos claros

- a desprenderem irradiações misteriosas, e, com lágrimas de emoção

inexprimível, exclamou comovidamente:

297

HÁ DOIS MIL ANOS...

- Públio... peço... não te esqueças... do prometido... Ajoelha-te aos

pés de Lívia... como aos de uma deusa... de renúncia e de bondade... Não

te importe... a minha partida deste mundo... Vai à festa do Senado...

reparemos... nossa falta grave... e agora, meu amigo... um último pedido...

Vela por meus filhos... como se fossem teus... Ensina-lhes ainda a

honradez... a fortaleza... a sinceridade e o bem... Um dia... todos nos... nos

reuniremos... na eternidade...

Públio Lentulus apertou-lhe as mãos, sensibilizado, ajeitando-lhe,

nas sedosas almofadas, a cabeça encanecida, enquanto lágrimas de

comoção lhe embargavam a voz.

Havia muito que a enferma era atacada, subitamente, de periódicas e

prolongadas dispneias.

O senador abriu as portas do largo aposento aonde Lívia acorreu,

pressurosa, como enfermeira de todos os instantes, enquanto Flávia e

algumas servas acudiam com ungüentos e outras panacéias da medicina

do tempo.

Calpúrnia, porém, parecia atacada pelas últimas aflições que a

levariam ao túmulo. Por vinte e quatro horas consecutivas, o peito arfou

sibilante, como se a caixa toráxica estivesse prestes a rebentar sob o

impulso de uma força indomável e misteriosa.

Ao fim de um dia e uma noite de azáfama e angústias, a doente

parecia haver experimentado ligeira melhora. A respiração fazia-se menos

penosa e os olhos revelavam grande serenidade, embora todo o corpo

estivesse salteado de manchas azuladas e violáceas, prenunciando a

morte. Apenas a afonia continuava, mas, em dado instante, fez um gesto

com a mão, chamando Lívia à cabeceira com a terna familiaridade dos

antigos tempos. A esposa do senador atendeu ao apelo silencioso,

ajoelhando-se, com os olhos cheios de lágrimas e compreendendo, pela

intuição espiritual, que era chegado o instante doloroso da despedida. Viase

298

ROMANCE DE EMMANUEL

que Calpúrnia desejava falar, inutilmente. Foi então que cingiu Lívia,

amorosamente, contra o peito, osculando-lhe os cabelos e a fronte num

esforço supremo e, colando os lábios ao seu ouvido, balbuciou com

infinita ternura: - "Lívia, perdoa-me!" Somente a interpelada escutara o

brando cicio da agonizante. Foram essas as derradeiras palavras de

Calpúrnia. Dir-se-ia que sua alma valorosa necessitava, tão somente,

daquele último apelo para conseguir desvencilhar-se da Terra, elevando-se

ao Paraíso.

Abraçada à incansável amiga, a agonizante depôs novamente a

cabeça nas almofadas, para sempre. Suor abundante transbordava de todo

o seu corpo, que se aquietou de leve para a suprema rigidez cadavérica e,

dai a minutos, seus olhos se fecharam, como se se preparassem para um

grande sono. A respiração foi-se extinguindo brandamente, enquanto uma

lágrima pesada e branca lhe rolava nas faces enrugadas, como um raio

divino da luz que lhe clarificava a noite do túmulo.

As portas do palácio abriram-se, então, para os tributos afetuosos

da sociedade romana. As exéquias da valorosa matrona compareceu o que

a cidade possuía de mais nobre e mais fino, em sua aristocracia espiritual,

dado o elevado conceito em que eram tidas as peregrinas virtudes da

morta.

Terminadas as cerimônias da incineração e guardadas as cinzas

ilustres da nobre patrícia nas sombras do jazigo familiar, Flávia Lentúlia

assumiu a direção da casa, enquanto seus pais voltavam à residência do

Aventino, para o necessário descanso.

Faltavam somente quatro dias para a realização das grandes festas,

em que mais de uma centena de senadores receberia a auréola do

supremo triunfo na vida pública. Públio Lentulus, que seria dos

homenageados na festa memorável, não obstante o luto da família,

aguardava o grande momento, com ansiedade. É que, recebida a

expressão supre299

HÁ DOIS MIL ANOS...

ma da vitória de um homem de Estado, levá-la-ia aos pés da esposa, como

símbolo perene do seu afeto e do seu reconhecimento da vida inteira. No

seu íntimo, arquitetava a maneira mais doce de se dirigir novamente à

companheira, no timbre caricioso e suave que a sua voz havia perdido há

vinte e cinco anos, e, verificando a continuidade do seu amor, cada vez

mais profundo, pela esposa, esperava ansiosamente o instante da sua

reintegração na felicidade doméstica.

De noite, naquelas horas longas que se passavam, enquanto o velho

coração se preparava para as bênçãos da ventura conjugal, em breves

dias, ia ele até às proximidades dos apartamentos da esposa, situados

bem distantes do seus, naqueles prolongados anos de amarguras infindas.

Na antevéspera das grandes festividades a que nos referimos,

seriam vinte e três horas, quando a sua figura se postara em frente aos

aposentos da companheira, antegozando o ditoso momento da penitência,

que significava para ele uma alegria suprema.

Enquanto o pensamento se afundava nos abismos do passado

longínquo, sua atenção espiritual foi repentinamente despertada pela

melodia suave de uma voz de mulher, que cantava baixinho no silêncio da

noite. O senador aproximou-se, vagarosamente, da porta, colando o ouvido

à escuta... Sim! Lívia cantava em voz apagada e mansa, qual cotovia

abandonada, fazendo soar levemente as cordas harmoniosas de uma lira

de suas lembranças mais queridas. Públio chorava comovido, ouvindo-lhe

as notas argentinas que se abafavam no ambiente restrito do quarto, como

se Lívia estivesse cantando para si própria, adormentando o coração

humilde e desprezado, para encher de consolo as horas tristes e desertas

da noite. Era a mesma composição das musas do esposo, que lhe

escapava dos lábios naquele instante em que a voz tinha tonalidades

estranhas e maravilhosas, de indefiní300

ROMANCE DE EMMANUEL

vel melancolia, como se todo o seu canto fosse o lamento doloroso de

rouxinol apunhalado:

Alma gêmea da minhalma,

Flor de luz da minha vida,

Sublime estrela caída

Das belezas da amplidão!...

Quando eu errava no mundo,

Triste e só, no meu caminho,

Chegaste, devagarinho,

E encheste-me o coração.

Vinhas na bênção dos deuses,

Na divina claridade,

Tecer-me a felicidade

Em sorrisos de esplendor!...

És meu tesouro infinito,

Juro-te eterna aliança,

Porque sou tua esperança,

Como és todo o meu amor!

Alma gêmea da minhalma,

Se eu te perder, algum dia,

Serei a escura agonia

Da saudade nos seus véus...

Se um dia me abandonares,

Luz terna dos meus amores,

Hei-de esperar-te, entre as flores

Da claridade dos céus...

Daí a minutos, a voz harmoniosa calava, como se fôra obrigada a um

divino estacato. O senador retirou-se, então, com os olhos marejados de

lágrimas, refletindo consigo mesmo: - "Sim, Lívia, de hoje a dois dias heide

provar-te que foste sempre a luz da minha vida inteira... Beijarei teus

pés com a minha humildade agradecida e saberei entornar no teu coração

o perfume do meu arrependimento..."

Penetrando no aposento de Lívia, vamos encontrá-la genuflexa,

depois de haver deposto, sobre um

301

HÁ DOIS MIL ANOS...

móvel predileto, a lira das suas recordações. Ajoelha-se, como sempre,

diante da cruz de Simeão que, nesse dia, mostrava a seus olhos espirituais

uma claridade mais intensa.

No curso de suas preces, ouviu a palavra do amigo invisível, cuja

tonalidade profunda parecia gravar-se, para sempre, no imo da sua

consciência: "Filha - exclamava a voz amiga, do plano espiritual -, regozijate

no Senhor, porque são chegadas as vésperas da tua ventura eterna e

imorredoura! Eleva o pensamento humilde a Jesus, porque não está longe

o instante ditoso da tua gloriosa entrada no seu Reino!..."

Lívia deixou transparecer no olhar uma atitude de alegria e surpresa,

mas, cheia de confiança e fé na providência divina, guardou, nos refolhos

mais íntimos do coração, o conforto daquelas palavras sacrossantas.

302

V

Nas catacumbas da fé e no circo do martírio

No dia imediato à cena que acabamos de descrever, vamos

encontrar, juntas, as duas grandes amigas que, longe de serem a senhora

e a serva, eram duas almas unidas pelos mesmos ideais, ligadas pelos

elos mais santos do coração.

Ana acabava de chegar a casa, depois de cumprir algumas

obrigações no Fórum Olitorium, (1) quando, encontrando Lívia mais a sós,

lhe disse confidencialmente:

- Senhora, hoje à noite uma nova voz se levantará no santuário das

catacumbas, para as pregações da nossa fé. Amigos nossos me avisaram,

esta manhã, que, já há alguns dias, se encontra na cidade um emissário da

igreja de Antioquia, chamado João de Cleofas, portador de significativas

revelações para nós outros, os cristãos desta cidade...

Lívia deixou transparecer um clarão de íntimo contentamento nos

olhos, exclamando:

__________

(1) Mercado de legumes. - Nota de Emmanuel.

303

HÁ DOIS MIL ANOS...

- Ah! sim... havemos de ir hoje às catacumbas. Tenho necessidade

de comungar com os nossos irmãos de crença, nas mesmas vibrações da

nossa fé! Além disso, preciso agradecer ao Senhor a misericórdia das

suas graças imensas...

E elevando um pouco a voz, como se desejasse comunicar à amiga

o santo júbilo de suas esperanças mais íntimas, exclamou com terno

sorriso a lhe irradiar no semblante calmo:

- Ana, desde a morte de Calpúrnia, noto que Públio está mais sereno

e mais esclarecido... Nestes últimos dias, tem-me dirigido a palavra com a

ternura de outros tempos, havendo-me afirmado, ainda ontem, que seu

coração me reserva doce surpresa para amanhã, depois da sua vitória

suprema na vida pública. Sinto que é muito tarde para que seja novamente

feliz neste mundo, mas, em suma, estou intimamente satisfeita, porque

nunca desejei morrer em desarmonia com o companheiro que Deus me

concedeu para as lutas e alegrias da vida. Acredito que nunca me perdoará

o crime de infidelidade que julga haver eu praticado há vinte e cinco anos,

mas choro de contentamento ao reconhecer que Públio me sente redimida,

ante a severidade de seus olhos!...

E chorava, comovida, enquanto a velha criada lhe afiançava com

ternura:

- Sim, minha senhora, talvez tenha ele reconhecido as suas

abnegações santificantes no lar, nestes longos anos de sacrifícios

abençoados.

- Agradeço a Jesus tamanha misericórdia - revidou Lívia,

sensibilizada. - Suponho mesmo que não estou longe de partir para o

mundo das realidades celestes, onde todos os sofredores hão-de ser

consolados...

E depois de ligeira pausa, continuou:

- Ainda ontem, quando orava junto à cruz singela, lá no quarto, ouvi

uma voz que me anunciava o Reino de Jesus para muito breve.

304

ROMANCE DE EMMANUEL

Ouvindo-a, Ana lembrou-se subitamente de Simeão e das horas que

antecederam os seus sacrifícios, mergulhando-se em dolorosas cismas.

Suas recordações remontavam ao passado longínquo, quando a voz de

Lívia novamente a despertou nestes termos:

- Ana - dizia com as heróicas decisões da sua fé -, não sei como

serei chamada pelo Messias, mas, na hipótese da minha breve partida,

peço-te continuares nesta casa, no teu apostolado de trabalho e

sacrifícios, porque Jesus há-de abençoar-te os labores santificantes.

A antiga serva dos Lentulus queria dar novo rumo à conversação

pungente e exclamou com a serenidade criteriosa que lhe conhecemos:

- Senhora, sabe Deus qual de nós partirá primeiro. Esqueçamos,

hoje, este assunto para pensar tão somente nas suas santificadas alegrias.

E, como para encerrar a angustiada impressão daquela palestra

íntima, rematou perguntando, confidencialmente:

- Então, iremos hoje, de fato, às catacumbas?

- Sim. Fica combinado. À noitinha, partiremos para as nossas

orações e carinhosas lembranças do Messias Nazareno. Tenho

necessidade desse desafogo espiritual, após os longos meses que estive

retida junto da minha nobre Calpúrnia; além disso, desejo pedir aos

nossos irmãos que orem comigo por ela, testemunhando ao mesmo

tempo, ao Senhor, meu sincero agradecimento pelas suas graças divinas...

Ao partirmos, peço-te me atives a memória, pois quero levar ao novo

apóstolo uma espórtula destinada à igreja de Antioquia.

Se, amanhã, Públio vai receber o supremo galardão do homem do

mundo, quero rogar a Jesus não lhe abandone o coração intrépido e

generoso, para que as vaidades da Terra não o inibam de buscar, algum

dia, o reino maravilhoso do céu!

305

HÁ DOIS MIL ANOS...

Assim entendidas, separaram-se na azáfama dos misteres

domésticos. E enquanto o senador, durante todo o dia, tomava

providências numerosas para que nada faltasse ao brilho pessoal do seu

grande triunfo no dia imediato, Lívia passava as horas, de alma voltada

para o Cristo, em preces fervorosas.

À noitinha, consoante combinaram, lá se foram à secreta reunião

das práticas primitivas do Cristianismo

Todos os servos graduados do palácio viram-nas sair, sem

preocupação nem surpresa. Em todo o longo período da moléstia de

Calpúrnia, Lívia e Ana nunca mais haviam fixado a sua presença no interior

do lar e não seria de estranhar que ambas houvessem deliberado buscar a

residência dos Severus, naquela noite, de onde, possivelmente, não

voltariam senão no dia seguinte, depois de confortarem o espírito abatido

de Flávia, no desdobramento de seus fadigosos encargos domésticos.

Foi assim que as horas passaram, tranqüilas e descuidadas; e

quando o senador se aproximou dos aposentos da esposa, antegozando

as profundas alegrias esperadas para o dia seguinte, presumiu, no pesado

silêncio ali reinante, a significação do seu calmo repouso, nas asas leves e

cariciosas do sono. Imaginando que Lívia descansava na paz soberana da

noite, Públio Lentulus recolheu-se ao seu gabinete particular, com o

cérebro referto de radiosas esperanças, no propósito de se penitenciar de

todos os seus erros do passado.

Lívia, porém, em companhia de Ana, aproveitara-se das primeiras

sombras da noite para atingir as catacumbas.

Passava das dezenove horas, quando ambas se ocultavam entre as

pedras abandonadas que davam acesso aos subterrâneos, onde se

amontoava a velha poeira dos mortos.

Num vasto espaço abobadado, que servira outrora às assembléias

das cooperativas funerárias,

306

ROMANCE DE EMMANUEL

reunia-se grande número de pessoas em torno da figura simpática e

generosa do culto pregador, que chegara da Síria distante. A um canto,

erguia-se improvisada tribuna, para onde, dai a minutos, subia João de

Cleofas, dentro do halo de doçura que lhe aureolava a singular

individualidade.

O apóstolo de Antioquia trazia à cabeça os primeiros cabelos

brancos e toda a sua figura estava saturada de forte magnetismo pessoal,

que ligava intimamente a sua personalidade a quantos se lhe

aproximavam, levados pela doce afinidade da crença e dos sentimentos

profundos.

Todos os presentes pareciam empolgados por sua palavra sedutora

e impressionante, que se fez ouvir por quase duas horas sucessivas,

caindo no coração do auditório como orvalho sublime da eloquência

celeste. Conceitos elevados e proféticas observações ressoavam pelas

arcadas silenciosas e sombrias, fracamente iluminadas pela claridade de

algumas tochas.

De fato, a assembléia tinha razão de se eletrizar com aquele

doloroso e sublime profetismo, porque João de Cleofas pronunciava

profunda alocução, mais ou menos nestes termos:

- Irmãos, seja convosco a paz do Cordeiro de Deus, Nosso Senhor

Jesus-Cristo, na intimidade da vossa consciência e no santuário do vosso

coração!...

O santo patriarca de Antioquia, nas suas preces e meditações de

cada dia, recebeu numerosas revelações do Messias, ordenando a vinda

de um mensageiro ao ambiente de vossos trabalhos na capital do mundo,

a fim de anunciar-vos grandes coisas...

Pelas revelações do Espírito Santo, os cristãos desta cidade

impiedosa foram escolhidos pelo Cordeiro para o grande sacrifício. E eu

vos venho anunciar nossa breve entrada no Reino de Jesus, em nome dos

seus apóstolos bem-amados!...

307

HÁ DOIS MIL ANOS... 307

Sim, porque aqui, onde todas as glórias divinas foram escarnecidas

e humilhadas pela impenitência das criaturas, se hão-de travar os

primeiros grandes embates das forças do bem e do mal, preludiando o

estabelecimento definitivo, no mundo, da divina e eterna mensagem do

Evangelho do Senhor!

Na última reunião geral dos crentes de Antioquia, manifestaram-se

as vozes do céu, em línguas de fogo, como aconteceu nos dias gloriosos

do cenáculo dos apóstolos, depois da divina ressurreição do nosso

Salvador; e o vosso servo, aqui presente, foi escolhido para emissário

dessas noticias confortadoras, porque as vozes celestes nos prometem o

Reino do Senhor, em breves dias...

Amados, acredito que estamos em vésperas dos mais atrozes

testemunhos da nossa fé, pelos sofrimentos remissores, mas a cruz do

Calvário deverá iluminar a penosa noite dos nossos padecimentos...

Eu também tive a felicidade de ouvir a palavra do Senhor, nas horas

derradeiras da sua dolorosa agonia, à face deste mundo. E que pedia ele,

meus queridos, senão o perdão infinito do Pai para os algozes implacáveis

que o atormentavam? Sim, não duvidemos das revelações do céu...

Verdugos inflexíveis rondam nossos passos e eu vos trago a mensagem

do amor e da fortaleza em Nosso Senhor Jesus-Cristo!

Roma batizará sua nova fé com o sangue dos justos e dos

inocentes; mas, também importa considerar que o Cordeiro imáculo de

Deus Todo-Poderoso se imolou no madeiro infamante, para resgatar os

pecados e aviltamentos do mundo!...

Andaremos, talvez, nestas vias suntuosas, como em novas ruas de

uma Jerusalém apodrecida, cheia de desolação e de amargura... Clamam

as vozes celestes que, aqui, seremos desprezados, humilhados,

vilipendiados e vencidos; mas, a vitória suprema do Senhor nos espera

além das palmas espinhosas do martírio, nas claridades doces do seu

reino, inacessível ao sofrimento e à morte!...

308

ROMANCE DE EMMANUEL

Lavaremos com o nosso sangue e as nossas lágrimas a iniquidade

destes mármores preciosos, mas, um dia, irmãos meus, toda esta

Babilônia de inquietação e de pecado ruirá, fragorosamente, ao peso de

suas misérias ignóbeis... Um furacão destruidor derrubará os falsos ídolos

e confundirá as pretensiosas mentiras dos seus altares... Tormentas

dolorosas do extermínio e do tempo farão chover sobre este Império

poderoso as ruínas da pobreza e do mais triste esquecimento... Os circos

da impiedade hão-de desaparecer sob um punhado de cinzas, o Fórum e o

Senado dos impenitentes hão-de ser confundidos pela suprema justiça

divina, e os guerreiros orgulhosos desta cidade pecadora rastejarão um

dia, como vermes, pelas margens do mesmo Tibre que lhes carreia a

iniquidade!...

Então, novos Jeremias hão-de chorar sobre os mármores, à piedosa

luz da noite... os suntuosos palácios destas colinas soberbas e donosas

cairão em penoso torvelinho de assombros e, sobre os seus monumentos

de orgulho, de egoísmo e vaidade, gemerão os ventos tristes das noites

silenciosas e desertas...

Felizes todos aqueles que chorarem agora, por amor ao Divino

Mestre; venturosos todos os que derramarem seu sangue pelas sublimes

verdades do Cordeiro, porque no céu existem as moradas divinas para os

bem-aventurados de Jesus...

Falava a voz suave e terrível do emissário da igreja de Antioquia e

suas palavras ressoavam no profundo silêncio das abóbadas ermas.

Cerca de duas centenas de pessoas ali se encontravam, ouvindo-o

atentamente.

Quase todos os cristãos presentes choravam, embevecidos. No

íntimo das almas pairava uma exaltação suave e mística, fazendo-lhes

sentir as doces emoções de todos aqueles apóstolos anônimos, que

tombaram nas arenas ignominiosas dos circos, para cimentar com sangue

e lágrima a edificação da nova fé.

309

HÁ DOIS MIL ANOS...

Depois das profecias singulares e dolorosas, que encheram todos

os olhares de clarões indefiníveis de alegria interior, na antevisão do

glorioso Reino de Jesus, João foi consultado por numerosos confrades a

respeito de vários assuntos de interesse geral para a marcha e

desenvolvimento da nova doutrina, tal como acontecia nas primitivas

assembléias do Cristianismo nascente, e a todos atendia com as mais

francas expressões de bondade fraterna.

Interpelado, por um dos presentes, quanto ao motivo de sua alegria

radiosa, quando as revelações do Espírito Santo anunciavam tão grandes

provações e tantos padecimentos, o generoso emissário respondeu com

sublimado otimismo:

- Sim, meus amigos, não podemos esperar senão o sagrado

cumprimento das profecias anunciadas, mas devemos considerar com

júbilo que se Jesus permite aos ímpios a realização de monumentos

maravilhosos, como os desta cidade suntuosa e apodrecida, que não

reservará ele, na sua infinita misericórdia, aos homens bons e justos, nas

claridades do seu Reino?

Aquelas respostas consoladoras caiam na alma da numerosa

assembléia, como bálsamo dulcificante.

Palavras de amor e saudações afetuosas eram trocadas entre todos,

com as mais doces demonstrações de júbilo e fraternidade.

Lívia e Ana tinham um clarão de alegria íntima a lhes brilhar nos

olhos calmos.

Ao fim da reunião, todos se levantaram para as preces singelas e

espontâneas das primitivas lições do Cristianismo, em fontes puras.

A voz do emissário de Antioquia, ainda uma vez, se fez ouvir,

brilhante e clara:

- Pai Nosso, que estais nos céus, santificado seja o vosso nome,

venha a nós o vosso Reino de misericórdia, seja feita a vossa vontade,

assim na Terra, como nos Céus...

310

ROMANCE DE EMMANUEL

Todavia, nesse instante, a palavra meiga e comovedora foi abafada

por sinistro tinir de armaduras.

- É aqui, Luculo!... - gritava a voz estentórica do centurião Clódio

Varrus, que avançava, com os seus numerosos pretorianos, para a massa

atônita dos cristãos indefesos, constituída, na sua maioria, de mulheres.

Alguns crentes mais inflamados começaram então a apagar as

tochas, provocando as trevas para a confusão e o tumulto, mas João de

Cleofas descera da tribuna com a sua figura radiosa e impressionante.

- Irmãos - gritou com voz estranha e vibrante no seu apelo, como que

saturado de extraordinário magnetismo -, recomendou o Senhor que

jamais colocássemos a luz sob o alqueire! Não apagueis a claridade que

deve iluminar o nosso exemplo de coragem e de fé!...

A esse tempo, os dois centuriões presentes já haviam articulado as

suas forças, em comum, organizando os cinqüenta homens que tinham

vindo, sob suas ordens, para a hipótese de uma resistência.

Viu-se, então, o apóstolo de Antioquia caminhar com desassombro,

sob o pasmo silencioso dos presentes, dirigindo-se a Luculo Quintilius,

estendendo-lhe os braços pacificamente e solicitando com empenho:

- Centurião, cumpre a tua tarefa sem receio, porque eu não vim a

Roma senão para as glórias do sacrifício.

O preposto do Império não se comoveu com essas palavras e,

depois de brandir ao rosto do missionário os copos de sua espada, em

dois tempos amarrou-lhe os braços, impossibilitando-lhe os movimentos.

Dois jovens crentes, dando largas ao seu temperamento ardoroso e

sincero, revoltados com a crueldade, desembainharam as armas, que

reluziram à claridade pálida daquele interior de penum311

HÁ DOIS MIL ANOS...

bra, avançando para os soldados num gesto supremo de defesa e

resistência, mas João de Cleofas advertiu ainda uma vez, com a sua

palavra magnética e profunda:

- Meus filhos, não repitais neste recinto a cena dolorosa da prisão do

Messias. Lembrai-vos de Malcus e guardai a vossa espada na bainha,

porque os que ferem com o ferro, com o ferro serão feridos...

Houve, então, na assembléia, um movimento de quietude e de

assombro. A coragem serena do apóstolo contagiara todos os corações.

Nos grandes movimentos da vida, há sempre uma vibração espiritual

que flui doutros mundos, para conforto dos míseros viajores da jornada

terrestre.

Observou-se, desse modo, o inaudito e inesperado. Todos os

presentes imitaram o apóstolo valoroso, entregando os braços inermes

para o sacrifício.

No seu doloroso momento, Lívia enchera-se de uma coragem que

nunca havia possuído. Diante da sua figura nobre e da sua indumentária

de patrícia detiveram-se, longamente, os olhares significativos dos

verdugos. Naquela assembléia, era ela a única mulher que ostentava as

insígnias do patriciado romano.

Clódio Varrus cumpria sua tarefa algo respeitoso e, daí a minutos, a

pesada caravana estava a caminho da prisão, dentro das sombras

espessas da meia-noite.

O cárcere onde os cristãos iam passar tantas horas ao relento, em

angustiosa promiscuidade, que.. de algum modo, representava para eles

suave consolo, ficava anexo ao grande circo, sobre cujas proporções

gigantescas somos obrigados a deter nossas vistas, dando ao leitor uma

fraca idéia da sua grandeza.

O Circo Máximo ficava situado justamente no vale que separa o

Palatino do Aventino, erguen312

ROMANCE DE EMMANUEL

do-se, ali, como uma das mais belas maravilhas da cidade invicta.

Edificado nos primórdios da organização romana, suas proporções

grandiosas se haviam desenvolvido com a cidade e, ao tempo de Domício

Nero, tal era a sua extensão, que ocupava 2190 pés de comprimento, por

960 de largura, terminando em semicírculo, com capacidade para trezentos

mil espectadores comodamente instalados. De ambos os lados, corriam

duas ordens de pórticos, superpostos, ornados de colunas preciosas e

coroadas de terraços confortáveis. Naquele luxo de construções e demasia

de ornamentos, viam-se tascas numerosas e inúmeros lugares de

devassidão, a cuja sombra dormiam os miseráveis e repousava a maioria

do povo, embriagado e amolecido nos prazeres mais hediondos. Seis

torres quadradas, denotando as mais avançadas expressões de bom gosto

da arquitetura da época, dominavam os terraços, servindo de camarotes

luxuosos às personalidades mais distintas, nos espetáculos de grande

gala. Largos bancos de pedra, dispostos em anfiteatro, corriam por três

lados, localizando-se, em seguida, em linha reta, o espaço ocupado pelos

cárceres, de onde saíam os cavalos e carros, bem como escravos e

prisioneiros, feras e gladiadores, para os divertimentos preferidos da

sociedade romana. Sobre os cárceres, erguia-se o suntuoso pavilhão do

Imperador, de onde as mais altas autoridades e áulicos acompanhavam o

César nos seus entretenimentos. A arena era dividida longitudinalmente

por uma muralha de seis pés de altura, por doze de largura, erguendo-se

sobre ela altares e estátuas preciosas, que ostentavam bronzes finos e

dourados. Bem no centro dessa muralha, imprimindo um traço majestoso

de grandeza ao ambiente, levantava-se, à altura de cento e vinte pés, o

famoso obelisco de Augusto, dominando a arena colorida de vermelho e

de verde, dando a impressão de relva deliciosa que se tingisse

subitamente de flores de sangue.

313

HÁ DOIS MIL ANOS...

Os míseros prisioneiros daquela caçada humana foram atirados a

uma larga dependência dos cárceres, nas primeiras horas da madrugada.

Os soldados os despojaram, um a um, dos objetos de valor, ou das

pequenas importâncias em dinheiro que traziam consigo. As próprias

senhoras não escaparam ao esbulho humilhante, sendo roubadas nas

suas jóias mais preciosas. Apenas Lívia, pelo respeito que inspiravam

suas vestes, foi poupada ao exame infamante.

Num gabinete privado, Clódio Varrus dava ciência ao seu superior,

Cornélio Rufus, do êxito da diligência que lhe fôra cometida aquela noite.

- Sim - exclamava Cornélio, satisfeito -, pelo que vejo, a festa de

amanhã correrá a inteiro contento do Imperador. Esta primeira caçada de

cristãos era essencial ao glorioso feito das grandes homenagens aos

senadores.

Mas, escuta - continuava ele mais discretamente, referindo-se a Lívia

-, quem é essa mulher que traz a toga das matronas da mais alta classe

social?

- Ignoro - respondeu o centurião, assaz pensativo. Aliás, muito me

admirei de encontrá-la em tal ambiente, mas cumpri severamente as

vossas ordens.

- Fizeste bem.

Todavia, como se estivesse adotando intimamente uma providência

nova, Cornélio Rufus sentenciou:

- Deixá-la-emos aqui até amanhã, até o momento do espetáculo,

quando, então, poderá ser posta em liberdade.

- E porque não a libertamos desde já?

- Ela poderia, na sua condição de nobreza, provocar algum

movimento de protesto contra a decisão de César e isso nos colocaria em

péssima situação. E como essas miseráveis criaturas serão atiradas às

feras, na qualidade de escravos e condenados à última pena, nos

derradeiros divertirem314

ROMANCE DE EMMANUEL

tos da tarde, não convém nos comprometermos perante a sua família.

Retendo-a aqui, satisfazemos os caprichos de Nero e, soltando-a em

seguida, não nos incompatibilizaremos com os que gozam dos favores da

situação.

- É verdade; essa é a solução mais razoável. Contudo, por que

motivo essas criaturas serão condenadas como escravos, quando

deveriam morrer como cristãos, pois tão somente essa é a causa de sua

justa condenação? A razão de sua morte não está na humilhante doutrina

que professam?

- Sim, mas temos de ponderar que o Imperador não se sente ainda

com bastante força para enfrentar a opinião dos senadores, dos edis e de

várias outras autoridades, que, certamente, desejariam advogar a causa

destes infelizes, em desprestígio dele e no de seus mais íntimos

conselheiros... Mas, não duvido de que essa perseguição aos adeptos da

odiosa doutrina do Crucificado será oficializada em breves dias (1), tão

logo os poderes imperiais estejam mais fortemente centralizados.

Esperemos, pois, mais algum tempo e, até lá, fortifiquemos o

prestigio de Nero, porque o detentor do poder deve representar sempre o

melhor dos amigos.

Enquanto isso ocorria, todos os cristãos se dividiam em grupos, no

interior do cárcere, trocando as mais íntimas impressões sobre o

angustioso transe.

Em dado momento, todavia, abriu-se uma porta, por onde surgiu a

figura detestável de Clódio, exclamando, ironicamente:

__________

(1) A maioria dos historiadores do Império Romano assinala as primeiras

perseguições ao Cristianismo somente no ano de 64; entretanto, desde 58 alguns dos

favoritos de Nero conseguiram iniciar o criminoso movimento, salientando-se que os

cristãos da época, antes do grande incêndio da cidade, eram levados aos sacrifícios, na

qualidade de escravos misérrimos, para divertimento do povo. - Nota de Emmanuel.

315

HÁ DOIS MIL ANOS...

- Cristãos, não há demência de César para os que professam as

perigosas doutrinas do Nazareno. Se tendes alguns negócios materiais a

resolver, lembrai-vos de que é muito tarde, porquanto poucas horas vos

separam das feras da arena, no circo.

Novamente, a pesada porta se fechou sobre a sua figura, enquanto

os míseros condenados se surpreendiam amargamente com a notícia

inquietante e dolorosa.

Através das grades reforçadas, podiam observar os movimentos dos

numerosos soldados que os guardavam, dando guarida, nos primeiros

instantes, às mais angustiosas conjeturas. Depressa, porém, voltara-lhes a

calma e os prisioneiros se aquietaram com humildade. Alguns faziam

preces fervorosas, enquanto outros trocavam pensamentos em voz baixa.

Os carcereiros não tardaram a separar as mulheres, instalando-as

em dependência contígua, onde cada grupo de crentes ficou de alma

voltada para Jesus, nos instantes supremos em que aguardavam a morte.

De manhãzinha, mal o Sol havia surgido de todo nas amplitudes do

formoso firmamento romano, vamos encontrar Ana e Lívia em conversação

quase serena, a sós, numa espécie de biombo dos muitos existentes na

espaçosa sala reservada às mulheres, enquanto numerosas companheiras

aparentavam descansar, estremunhadas.

- Senhora - exclamava a serva, algo preocupada -, noto que vos

tratam aqui com simpatia e deferência. Porque não pleiteardes

imediatamente a vossa liberdade? Não sabemos o que de sinistro e terrível

nos ocorrerá nas horas penosas deste dia!...

- Não, minha boa Ana - respondeu Lívia, tranqüila -, deves ficar certa

de que minhalma está convenientemente preparada para o sacrifício. E

ainda que me não sentisse confortada, não deve316

ROMANCE DE EMMANUEL

rias apresentar-me semelhante alvitre, porque Jesus, sendo embora o

Mestre de todos os mestres e Senhor do reino dos céus, não pleiteou sua

liberdade junto aos algozes que o atormentavam e oprimiam...

- Isso é verdade, senhora. Mas, acredito que Jesus saberia

compreender o vosso gesto, porque tendes ainda um esposo e uma filha...

- acentuou a velha empregada, como a lhe recordar as obrigações

humanas.

- Um esposo? - retrucou a nobre matrona, com heróica serenidade. -

Sim, agradeço a Deus a paz que me concedeu, permitindo que Públio me

demonstrasse a sua contrição nestes últimos dias. Para mim, só essa

tranqüilidade era essencial e necessária, porque o esposo, na sua feição

humana, eu o perdi há longos vinte e cinco anos... Debalde sacrifiquei

todos os impulsos de minha mocidade para lhe provar o meu amor e a

minha inocência, em contraposição à calúnia com que humilharam meu

nome. Por um quarto de século tenho vivido com as minhas orações e as

minhas lágrimas... Angustiosa tem sido a minha saudade e dolorosíssimo

o triste degredo espiritual a que fui relegada, no plano dos meus afetos

mais puros.

Não creio possa reviver para mim, no coração do velho

companheiro, a confiança antiga, cheia de felicidade e ternura...

Quanto à filha, entreguei-a a Jesus, desde os dias de sua infância,

quando me vi obrigada à terrível separação do seu afeto. Afastada de sua

alma por imposição de Públio, tive de sufocar os mais doces entusiasmos

do coração materno. Sabe o Senhor de minhas ansiosas angústias, nas

noites silenciosas e tristes em que lhe confiava meus amargurosos

padecimentos. Além disso, Flávia tem hoje um marido que procurou isolála

ainda mais do meu pobre espírito, receoso da minha fé, qualificada por

todos de demência...

317

HÁ DOIS MIL ANOS...

E depois de ligeira pausa, na sua confiança dolorosa, acentuou com

serena tristeza:

- Para mim, não pode haver o reflorescimento das esperanças aqui

na Terra... Só aspiro, agora, a morrer em paz confortadora com a minha

consciência.

- Mas, senhora - tornou a criada com veemência -, hoje é o dia da

maior vitória do vosso esposo...

- Não me esqueci dessa circunstância. Faz, porém, vinte e cinco

anos que Públio segue rumo oposto ao meu caminho e não será demais

que, buscando ele hoje a suprema recompensa do mundo, como triunfo

final dos seus desejos, busque eu também não a vitória do céu, que não

mereci, mas a possibilidade de mostrar ao Senhor a sinceridade da minha

fé, ansiosa pelas bênçãos lucificantes da sua infinita misericórdia.

Depois, minha querida Ana, é muito grato ao coração sonhar com o

seu reino santificado e misericordioso... Vermos, de novo, as mãos suaves

do Messias abençoando-nos o espírito, com os seus gestos amplos de

caridade e de ternura!...

Lívia tinha um clarão divino nos olhos, que se molhavam em

lágrimas espontâneas, como se houvesse caído sobre o seu coração o

orvalho do Paraíso.

Via-se, claramente, que suas idéias não estavam na Terra, mas, sim,

flutuando num mundo de radiosidades suavíssimas, cheio de recordações

carinhosas do passado e saturado de ternas esperanças no amor de

Jesus-Cristo.

- Sim - continuava falando, como se fôra tão somente para a sua

própria alma, na intimidade do coração -, ultimamente, muito me tenho

lembrado do Divino Mestre e de suas palavras inesquecíveis... Naquela

tarde inolvidável de suas pregações, ainda era crepúsculo e o céu estava

recamado de estrelas, como se as luzes do firmamento desejassem

também ouvi-lo... As ondas do Tiberíades,

318

ROMANCE DE EMMANUEL

que se apresentavam, freqüentemente, tão rumorosas ao fustigo do vento,

vinham, silenciosas, desfazer-se num leque de espumas, de encontro às

barcas da praia, numa doce expressão de respeito, quando se faziam ouvir

na paisagem os seus divinos ensinamentos! Tudo se aquietava de manso;

era de ver-se o sorriso angelical das criancinhas, à claridade terna dos

seus olhos de pastor dos homens e da Natureza...

Nos meus anseios, minha boa Ana, desejava adotar todos aqueles

petizes maltrapilhos e famintos, que surgiam nas assembléias populares

de Cafarnaum; mas, meu propósito materno de amparar aquelas mulheres

desprezadas e aquelas crianças andrajosas, que viviam ao desamparo, não

podia realizar-se neste mundo... Todavia, suponho que hei-de realizar os

ideais de minha alma, se Jesus me acolher nas claridades do seu Reino...

A velha serva chorava emocionada, ouvindo estas expansões

tocantes, comovedoras.

Depois de longa pausa, continuou como se desejasse bem

aproveitar as derradeiras horas:

- Ana - disse com enérgica tranqüilidade -, ambas fomos chamadas

ao testemunho sagrado da fé, nas horas que passam e que devem ser

gloriosas para o nosso espírito. Perdoa-me, querida, se algum dia te ofendi

o coração com alguma palavra menos digna. Antes que Simeão te

entregasse à minha guarda, já eu te amava ternamente, como se fôras

minha irmã ou minha própria filha!...

A serva chorava, emocionada, enquanto Lívia, carinhosa,

continuava:

- Agora, querida, tenho um derradeiro pedido a fazer-te...

- Dizei, senhora - sussurrou a serva, com os olhos rasos de lágrimas

-, antes de tudo, sou vossa escrava.

- Ana, se é verdade que temos de testemunhar ainda hoje a nossa fé,

eu desejava comparecer ao sacrifício como aquelas criaturas

desamparadas,

319

HÁ DOIS MIL ANOS...

que ouviam as consolações divinas junto do Tiberíades. Se puderes

atender-me, troca hoje comigo a toga da senhora pela túnica da serva!

Desejava participar do sacrifício com as vestes humildes e pobres da

plebe, não porque me sinta humilhada perante as pessoas da minha

condição, no momento ditoso do testemunho, mas porque, arrancando

para sempre os derradeiros preconceitos do meu nascimento, daria à

minha consciência cristã o conforto do último ato de humildade... Eu, que

nasci entre as púrpuras da nobreza, desejava buscar o Reino de Jesus

com as vestiduras singelas dos que passaram pelo mundo no torvelinho

doloroso das provações e dos trabalhos!...

- Senhora!... - obtemperou a serva, hesitante...

- Não vaciles, se queres proporcionar-me a satisfação derradeira.

Ana não pôde recusar, ante os piedosos propósitos da generosa

criatura e, num instante, na penumbra daquele improvisado recanto que as

separava das demais companheiras, trocaram a toga e a túnica, que eram

tão somente uma espécie de manto, sobre a complicada indumentária da

época, tendo Lívia adornado a toga de lã finíssima, agora no corpo da

serva, com as jóias discretas que trazia usualmente consigo. Depois de

entregar-lhe dois anéis preciosos e um gracioso bracelete, apenas um

adorno de valor lhe restava, mas Lívia, passando a mão pelo pescoço e

acariciando um pequeno colar, com imensa ternura, exclamou com

decisão para a companheira:

- Está bem, Ana, fica-me apenas este pequeno colar, em que trago o

camafeu com o perfil de Públio, em alto relevo, e que é um presente dele

no dia longínquo das nossas núpcias. Morrerei com esta jóia, como se ela

fôra um símbolo de união entre os meus dois amores, que são meu marido

e Jesus-Cristo...

320

ROMANCE DE EMMANUEL

Ana aceitou, sem protesto, todas as piedosas imposições da

senhora e, em breves instantes, na sua antiga beleza virginal, o porte da

serva humilde estava tocado de imponente nobreza, como se ela fosse

uma soberana figura de marfim velho.

Para todos os prisioneiros, na terrível inquietação que os oprimia,

embora as doces claridades interiores da prece que os integrava na

precisa coragem moral para o sacrifício, as horas do dia passavam

pesadas e vagarosas. João de Cleofas, com o resignado heroísmo do seu

fervor religioso, conseguiu manter aceso o calor da fé em todos os

corações: não faltaram os companheiros mais animosos que, na exaltação

de sua confiança na Providência Divina, ensaiaram os próprios cânticos de

glória espiritual, para o instante supremo do martírio.

No palácio do Aventino, todos os domésticos mais íntimos

acreditavam na permanência de Lívia em casa da filha; mas, um pouco

antes do meio-dia, Flávia Lentúlia veio ter com o pai, a fim de beijá-lo antes

do triunfo.

Informada pelo senador, quanto aos seus projetos de restabelecer a

antiga felicidade doméstica, com as mais expressivas demonstrações

públicas de confiança e de amor pela esposa, Flávia, com grande surpresa

para o pai, procurava a mãe para as manifestações de sua justificada

alegria.

Angustiosa interrogação se estampou, desse modo, em todos os

semblantes.

Depois de vinte e cinco anos, era a primeira vez que Lívia e Ana se

ausentavam de casa, de um dia para outro, provocando os mais

justificados receios.

O senador sentiu o coração ferido de presságios angustiosos, mas

os escravos já se encontravam preparados para conduzi-lo ao Senado,

onde as primeiras cerimônias teriam início depois do meio-dia, com a

presença de César. Observando-lhe a aflição e os olhares ansiosos e

inquietos, Flávia

321

HÁ DOIS MIL ANOS...

Lentúlia buscou tranqüilizá-lo com estas palavras, que dissimulavam as

suas próprias aflições:

- Vai tranqüilo, meu pai. Voltarei agora a casa, mas não me

descuidarei das providências necessárias, porque, quando regressares, de

tarde, com a auréola do triunfo, quero abraçar-te com a mamãe, entre as

flores do vestíbulo, a fim de podermos ambas receber-te com as pétalas do

nosso amor desvelado de todos os dias.

- Sim, filha - respondeu o senador com uma sombra de angústia -,

permitam os deuses que assim seja, porque as rosas do lar serão para

mim as melhores recompensas!...

E tomando a liteira, saudado por amigos numerosos que o

esperavam, Públio Lentulus demandou o Senado, onde multidões

entusiásticas esfuziavam de alegria, em sinal de agradecimento pela farta

distribuição de trigo com que as autoridades romanas haviam

comemorado aquele evento, aplaudindo os homenageados com a gritaria

ensurdecedora das grande manifestações populares.

Da nobre casa política, onde os mais elegantes torneios de oratória

foram proferidos para enaltecimento da personalidade do Imperador e

antecedidos pela figura impressionante do César, que nunca desdenhou o

fausto retumbante dos grandes espetáculos, na sua feição de antigo

comediante, dirigiram-se os senadores para o famoso Templo de Júpiter,

onde os homenageados receberiam a auréola de mirto e rosas, como os

triunfadores, obedecendo à inspiração de Sêneca, que tudo envidava por

desfazer a penosa impressão do governo cruel do seu ex-discípulo, que,

afinal, decretaria também a sua morte no ano 66. No Templo de Júpiter, o

grande artista que era Domício Nero coroou a fronte de mais de cem

senadores do Império, sob a bênção convencional dos sacerdotes,

demorando-se as cerimônias na sua complicada feição religiosa, por

algumas horas sucessivas. Somente depois das 15 horas, saía do templo,

em direção ao Circo Má322

ROMANCE DE EMMANUEL

ximo, o grosso e desmesurado cortejo. A compacta procissão, tocada de

aspecto solene, poucas vezes observado em Roma nos séculos

posteriores, dirigiu-se primeiramente ao Fórum, atravessando pela massa

formidável de povo, com o máximo respeito.

Para esclarecimento dos leitores, passemos a dar pálida idéia do

maravilhoso cortejo, de conformidade com as grandes cerimônias públicas

da época.

Na frente, vai um carro, soberba e magnificamente ornamentado,

onde se instala molemente o Imperador, seguindo-se-lhe numerosos

carros nos quais se aboletam os senadores homenageados, bem como os

seus áulicos preferidos.

Domício Nero, junto de um dos favoritos mais caros, passa

sobranceiro no seu traje vermelho de triunfador, com o luxo espalhafatoso

que lhe caracterizava as atitudes.

Em seguida, numeroso grupo de jovens de quinze anos passa, a

cavalo e a pé, escoltando as carruagens de honra e abrindo a marcha.

Passam, depois, os cocheiros guiando as bigas, as quadrigas, as

séjuges, que eram carros a dois, a quatro e a seis cavalos, para as loucas

emoções das corridas tradicionais.

Seguindo-se aos aurigas, quase em completa nudez, surgem os

atletas, que farão os números de todos os grandes e pequenos jogos da

tarde; após eles, vão os três coros clássicos de dançarmos, o primeiro

constituído por adultos, o segundo dos adolescentes insinuantes, e o

terceiro por graciosas crianças, todos ostentando a túnica escarlate

apertada com uma cinta de cobre, espada ao lado e lança na mão,

salientando-se o capacete de bronze enfeitado de penachos e cocares, que

lhes completam a indumentária extravagante. Esses bailarinos passam,

seguidos pelos músicos, exibindo movimentos rítmicos e executando

bailados guerreiros, ao som de harpas de marfim, flautas curtas e

numerosos alaúdes.

323

HÁ DOIS MIL ANOS... 323

Depois dos músicos, qual bando de sinistros histriões, surgem os

Sátiros e os Silenos, personagens estranhas, que apresentam máscaras

horripilantes, cobertos de peles de bode, sob as quais fazem os gestos

mais horrendos, provocando o riso frenético dos espectadores, com as

suas contorções ridículas e estranhas. Sucedem-se novos grupos

musicais, que se fazem acompanhar de vários ministros secundários do

culto de Júpiter e outros deuses, levando nas mãos grandes recipientes à

guisa de turíbulos de ouro e de prata, de onde espiralam inebriantes

nuvens de incenso.

Seguindo os ministros, com adornos de ouro e pedras preciosas,

passam as estátuas das numerosas divindades arrancadas, por um

momento, dos seus templos suntuosos e sossegados. Cada estátua, na

sua expressão simbólica, faz-se acompanhar de seus devotos ou dos seus

variados colégios sacerdotais. Todas as imagens, em grande aparato, são

conduzidas em carros de marfim ou de prata, puxados por cavalos

imponentes, guiados delicadamente por meninos pobres de dez a doze

anos, que tenham pai e mãe vivos, e escoltados, com atenção, pelos

patrícios mais em evidência na grande cidade.

Era tudo um deslumbramento de coroas de ouro, púrpuras, luxuosos

tecidos do Oriente, metais brilhantes, cintilações de pedras preciosas.

Fecha o cortejo a última legião de sacerdotes e ministros do culto,

seguindo-lhes a massa interminável do povo anônimo e desconhecido.

A gigantesca procissão penetra o Grande Circo com grande

recolhimento, em observância às mais elevada solenidades. O silêncio é

apenas cortado pelas aclamações parciais dos diferentes grupos de

cidadãos, quando passa a estátua da divindade que lhes protege as

atividades e a profissão, na vida comum.

Depois de um volteio solene pelo interior do circo, as silenciosas

figuras de marfim são depostas na edícula, junto aos cárceres, sob os

fulgores ra324

ROMANCE DE EMMANUEL

diosos do pavilhão do Imperador e onde se fazem as preces e sacrifícios

de nobres e plebeus, enquanto o César e seus áulicos, em companhia dos

políticos homenageados naquela tarde, fazem numerosas e extraordinárias

libações.

Terminadas aquelas cerimônias, desaparece, igualmente, o

silencioso recolhimento das multidões.

Começam, então, os jogos sob os olhares ávidos de mais de

trezentos mil espectadores, que não se circunscrevem às massas

compactas, comprimidas nas dimensões grandiosas do luxuoso recinto.

Os palácios do Aventino e do Palatino, bem como os elegantes terraços do

Célio, servem também de arquibancadas para a numerosa assistência, que

não pôde ver de mais perto o formidando espetáculo.

Roma diverte-se e todas as suas classes estão deslumbradas.

A competição dos carros é o primeiro número a ser apresentado,

mas os aplausos entusiásticos somente se verificam quando morrem na

arena os primeiros cocheiros e os primeiros cavalos espatifados.

Os jogadores distinguem-se pelas cores da túnica. Há os que se

vestem de vermelho, de azul, de branco e de verde, representando vários

partidos, enquanto a platéia se reparte em grupos exaltados e

enlouquecidos. Gritam apaixonadamente os admiradores e os sócios de

cada facção, traduzindo a sua alegria, o seu receio, a sua angústia ou a

sua impaciência. Ao fim dos primeiros números, verificam-se desoladoras

cenas de luta entre os adversários desse ou daquele partido, no seio da

enorme assistência, havendo sérios tumultos, imediatamente degenerados

em sanha criminosa, de onde são retirados, em seguida, alguns cadáveres.

Após as corridas, houve uma caçada fabulosa, levando-se a efeito

terríveis combates entre homens e feras, nos quais alguns escravos

jovens perderam a vida em trágicas circunstâncias, ante as aclamações

delirantes das massas inconscientes.

325

HÁ DOIS MIL ANOS...

O Imperador sorri, satisfeito, e continua nas suas libações pessoais,

vagarosamente, junto de alguns amigos mais íntimos. Seis harpistas

executam as melodias prediletas no pavilhão, enquanto os alaúdes fazem

ouvir, igualmente, sons maviosos e claros.

Outros jogos passaram, vários, divertidos e terríveis, e, depois de

algumas danças exóticas, executadas na arena, viu-se um áulico predileto

de Domício Nero inclinar-se discretamente, falando-lhe ao ouvido:

- Chegou o instante, ó Augusto, da grande surpresa dos jogos desta

tarde!

- Entrarão, agora, os cristãos na arena? - perguntou o Imperador em

voz baixa, com o seu impiedoso e frio sorriso.

- Sim, já foi dada ordem para que fiquem em liberdade na arena os

vinte leões africanos, tão logo se apresentem em público os condenados.

- Bela homenagem aos senadores! - glosou Nero, sarcasticamente. -

Esta festividade foi uma feliz lembrança de Sêneca, porque terei

oportunidade de mostrar ao Senado que a lei é a força e toda a força deve

estar comigo.

Poucos minutos faltavam para a apresentação do número

surpreendente da tarde, quando Clódio Varrus aconselhava a um dos

auxiliares de confiança:

- Aton - dizia ele circunspecto -, podes providenciar agora a entrada

de todos os prisioneiros na arena, mas afasta com discrição uma mulher

que lá se conserva com a toga do patriciado. Deixa-a por último,

expulsando-a em seguida para a rua, porque não desejamos complicações

com a sua família.

O soldado fez sinal, como quem havia guardado fielmente a ordem

recebida, dispondo-se a cumpri-la e, daí a momentos, o numeroso grupo

de cristãos, sob impropérios e apupos dos mais baixos servido326

ROMANCE DE EMMANUEL

res do Circo, encaminhava-se, impavidamente, para o sacrifício...

Em primeiro lugar, ia João de Cleofas, murmurando intimamente a

sua derradeira prece.

No instante, porém, de se abrir a grande porta, através da qual se

ouviam os rugidos ameaçadores das feras esfomeadas, Aton aproximouse

de Ana e, reparando-lhe a toga finíssima de lá, as jóias discretas que lhe

adornavam o porte enobrecido, bem como a delicada rede de ouro que lhe

prendia graciosamente os cabelos, exclamou respeitosamente, admirado

da nobreza de sua figura:

- Senhora, ficareis aqui, até segunda ordem!

A velha criada dos Lentulus trocou significativo e angustioso olhar

com a sua senhora, respondendo, todavia, com serena altivez:

- Mas, porquê? Pretendeis privar-me da glória do sacrifício?

Aton e seus colegas se surpreenderam com aquela atitude de

profundo heroísmo espiritual, e aquele, depois de um gesto evasivo, que

exprimia a vacilação da resposta que lhe competia dar, esclareceu

respeitosamente:

- Sereis a última!

Aquela explicação pareceu satisfazê-la, mas Lívia e Ana, nesse

instante decisivo de separação, trocaram entre si um amoroso olhar,

angustiado e inesquecível.

Tudo, porém, fôra obra de alguns segundos, porque a porta sinistra

estava agora aberta e as armas ameaçadoras dos prepostos de Domício

Nero obrigavam os prisioneiros a demandar a arena, como um bloco de

condenados ao terror da última pena.

O venerável apóstolo de Antioquia entestou a fileira com serenidade

valorosa. Seu coração elevava-se ao infinito, em orações sinceras e

fervorosas. Em poucos instantes, todos os prisioneiros se encontravam

reunidos à entrada da arena, saturados de uma força moral que, até então,

lhes era

327

HÁ DOIS MIL ANOS...

desconhecida. É que, detrás daquelas púrpuras suntuosas e além

daqueles risos estridentes e impropérios sinistros, estava uma legião de

mensageiros celestes fortalecendo as energias espirituais dos que iam

sucumbir de morte infamante, para regar a semente do Cristianismo com

as suas lágrimas fecundas. Uma estrada luminosa, invisível aos olhos

mortais, abrira-se nas claridades do firmamento e, por ela, descia todo um

exército de arcanjos do Divino Mestre, para aureolar com as bênçãos da

sua glória os valorosos trabalhadores da sua causa.

Sob os aplausos delirantes e ensurdecedores da turba numerosa,

soltaram-se os leões famintos, para a espantosa cena de impiedade, de

pavor e sangue, mas nenhum dos apóstolos desconhecidos, que iam

morrer no depravado festim de Nero, sentiu as torturas angustiosas de tão

horrenda morte, porque o brando anestésico das potências divinas lhes

balsamizou o coração dorido e dilacerado no tormentoso momento.

Fustigados pela angústia e pela aflição do instante derradeiro, ante o

público sanguinário, os míseros sacrificados não tiveram tempo de se

reunir na arena dolorosa. As feras famintas pareciam tocadas de horrível

ansiedade. E enquanto se estraçalhavam corpos misérrimos, Domício Nero

mandava que todos os coros de dançarmos e todos os músicos

celebrassem o espetáculo com os cânticos e bailados de Roma vitoriosa.

Incluindo-se a considerável assistência que se aglomerava nas

colinas, quase meio milhão de pessoas vibrava em aplausos

ensurdecedores e espantosos, enquanto duas centenas de criaturas

humanas tombavam espostejadas...

Ingressando na arena, Lívia ajoelhara-se defronte do grande e

suntuoso pavilhão do Imperador, onde buscou lobrigar o vulto do esposo,

pela derradeira vez, a fim de guardar no fundo dalma a dolorosa expressão

daquele último quadro, junto da

328

ROMANCE DE EMMANUEL

imagem íntima de Jesus Crucificado, que inundava de emoções serenas o

seu pobre coração dilacerado no minuto supremo. Pareceu-lhe divisar,

confusamente, na doce claridade do crepúsculo, a figura ereta do senador

coroado de rosas, como os triunfadores e, quando seus lábios se

entreabriram numa última prece misturada de lágrimas ardentes que lhe

borbulhavam dos olhos, viu-se repentinamente envolvida pelas patas

selvagens de um monstro. Não sentira, porém, qualquer comoção violenta

e rude, que assinala comumente o minuto obscuro da morte. Figurou-selhe

haver experimentado ligeiro choque, sentindo-se agora embalada nuns

braços de névoa translúcida, que ela contemplou altamente surpreendida.

Buscou certificar-se da sua posição, dentro do circo, e reconheceu, a seu

lado, a nobre figura de Simeão, que lhe sorria divinamente, dando-lhe a

silenciosa e doce certeza de haver transposto o limiar da Eternidade.

Naquele instante, dentro do camarim de honra do Imperador, Públio

Lentulus sentiu no coração inexprimível angústia. No turbilhão daquele

ensurdecedor vozerio, o senador nunca sentira tão fundo desalento e tão

amargo desencanto da vida. Horrorizavam-lhe agora aqueles tremendos

espetáculos homicidas, de pavor e morte. Sem que pudesse explicar o

motivo, seu pensamento voltou à Galileia longínqua, figurando-se-lhe

divisar, novamente, a suave figura do Messias de Nazaré, quando lhe

afirmava: Todos os poderes do teu Império são bem fracos e todas as

suas riquezas bem miseráveis!.

Inclinando-se para o seu amigo Eufanilo Drusus, Públio desabafou a

penosa impressão, discretamente:

- Meu amigo, este espetáculo de hoje me apavora!... Sinto, aqui,

emoções de angústia, como jamais experimentei em toda a vida... Serão

escravos destinados à última pena os que ora sucumbem, sob a crueldade

das feras violentas e rudes?

329

HÁ DOIS MIL ANOS...

- Não creio - respondeu o senador Eufanilo, segredando-lhe ao

ouvido. - Corre o boato de que estes míseros condenados são pobres

cristãos inofensivos, aprisionados nas catacumbas!...

Sem saber explicar a razão do seu profundo desgosto, Públio

Lentulus lembrou-se repentinamente de Lívia, mergulhando-se, aflito, nas

mais penosas conjeturas.

Enquanto ocorriam esses fatos, voltemos a examinar a situação de

Ana, logo após a entrada dos companheiros na arena do sacrifício. Certa

de que Jesus lhe havia reservado o último lugar no penoso momento do

martírio, a antiga serva mantinha o espírito valoroso em orações sinceras e

ardentes. Seus olhos, porém, não abandonaram a figura de Lívia, que se

afastava para um recanto da arena, onde se ajoelhara, chegando a fixar o

grande leão africano que lhe desferira um golpe fatal à altura do peito.

Nesse instante, a pobre criatura sentiu algo de enfraquecimento, ante as

tremendas perspectivas do testemunho, mas, num relance, antes que suas

idéias tomassem novo curso, Aton e mais um dos colegas acercaram-se,

exclamando:

- Senhora, acompanhai-nos!

Observando que os soldados a faziam voltar ao interior, protestou

com energia:

- Soldados, eu nada mais desejo, senão morrer igualmente, nesta

hora, pela fé em Jesus-Cristo!

Mas, reparando-lhe a coragem indomável, o preposto do Império

agarrou-a fortemente pelo braço, e, trazendo-a para uma passagem do

interior dos cárceres, que comunicava com a via pública, Aton dirigiu-lhe a

palavra, quase ameaçadora.

- Retirai-vos, mulher! Fugi sem demora, pois não desejamos

complicações com a vossa família!

E, dizendo-o, fechava a porta ampla, enquanto a antiga criada de

Lívia tudo compreendia agora. Angustiada, chegou imediatamente à

conclusão de que a indumentária da senhora lhe salvara a vida,

330

ROMANCE DE EMMANUEL

no amargurado transe. Sentiu que o pranto lhe borbotava abundante dos

olhos. Suas lágrimas eram bem um misto de inenarráveis sofrimentos

morais e no íntimo inquiria a si mesma a razão pela qual não a admitira o

Senhor à glorificação dos sacrifícios daquela tarde memorável e dolorosa.

Percebia o confuso rumor de mais de trezentas mil vozes, que se

concentravam em gritos retumbantes de aplauso, aclamando a corrida

sinistra das feras na sua caçada humana, e, passo a passo, carregando

consigo o peso torturante de uma angústia sem termos, buscou o palácio

do Aventino, que não distava muito do circo ignominioso, lá penetrando

desalentada e silenciosa.

Apenas alguns escravos mais íntimos faziam a guarda da residência

dos Lentulus, como de costume nos grandes dias de festas populares, das

quais participavam quase todos os servos. Ninguém percebeu o retorno da

serva, que conseguiu despojar-se da toga com a calma precisa. Alijou as

jóias preciosas do vestuário, das mãos e dos cabelos e, ajoelhando-se no

aposento, deixou que as lágrimas dolorosas corressem livremente, ao

influxo das orações amargas que elevava a Jesus, sob o peso de suas

angustiosas mágoas.

Não chegou a saber quantos minutos infindos permaneceu naquela

atitude súplice e dolorosa, entre rogativas ardentes e amarguradas

conjeturas sobre o seu inesperado afastamento das torturas do circo,

sentindo-se indigna de testemunhar ao Salvador a sua fé profunda e

sincera, até que um rumor mais pronunciado lhe denunciava o regresso do

senador.

Era quase noite e as primeiras estrelas brilhavam no azul do

formoso céu romano.

Penetrando no lar com o espírito inquieto e desalentado, Públio

Lentulus atingiu o vestíbulo vazio, de alma opressa, sendo, porém,

imediatamente procurado pelo servo Fábio Túlio, que, havia

331

HÁ DOIS MIL ANOS...

muitos anos, substituíra Comênio, arrebatado pela morte naquele cargo de

confiança.

Acercando-se do senador que entrara só, dispensando a companhia

dos amigos sob a alegação de que a esposa se encontrava gravemente

enferma, exclamou o antigo serviçal com atencioso respeito:

- Senhor, vossa filha manda comunicar, por um mensageiro, que

continua providenciando, a fim de que tenhais notícias da senhora, dentro

do menor prazo possível.

O senador agradeceu com leve sinal de cabeça, acentuando suas

penosas preocupações íntimas.

Ana, contudo, na soledade de suas preces, no cômodo que lhe era

reservado, verificando o regresso do amo, compreendeu o triste dever que

lhe corria naquele instante inesquecível, de modo a cientificá-lo de todas

as ocorrências e, em breves minutos, Fábio voltava a procurá-lo nos seus

apartamentos, a fim de participar-lhe que Ana lhe pedia uma entrevista em

particular. O senador atendeu imediatamente à velha serva de sua casa,

tomado de indefinível surpresa.

Olhos inchados de chorar e com a voz freqüentemente entrecortada

por emoções rudes e penosas, Ana expôs todos os fatos, sem omitir

nenhum detalhe dos trágicos incidentes, enquanto o senador, de olhos

arregalados, tudo fazia por compreender aquelas confidências dolorosas,

na sua incredulidade e no seu pavoroso espanto.

Ao fim do terrível depoimento, álgido suor lhe corria da fronte

atormentada, enquanto as têmporas lhe batiam assustadoramente.

A princípio, desejou esmagar a criada humilde, como se o fizesse a

uma víbora venenosa, tomado das primeiras comoções de revolta do seu

orgulho e da sua vaidade. Não queria acreditar naquela confissão horrível

e angustiosa, mas o coração lhe batia apressadamente e seus nervos se

exaltavam em vibrações lancinantes.

332

ROMANCE DE EMMANUEL

Públio Lentulus experimentou a dor mais terrível de sua misérrima

existência. Todos os seus sonhos, todas as suas aspirações e carinhosas

esperanças esboroavam-se penosamente, irremediavelmente, para todo o

sempre, sob a maré sombria das realidades tenebrosas.

Sentindo-se o mais desventurado réu da justiça dos deuses, no

momento em que presumia efetivar a sua suprema ventura, nada mais

enxergou à frente dos olhos, senão a realidade esmagadora da sua dor

sem limites.

Sob os olhares comovidos de Ana, que o observava receosa,

levantou-se rígido e sem uma lágrima, com os olhos raiando pela loucura,

tal a sua fixidez estranha e dolorosa, e como se fôra um fantasma de

revolta, de dor, de vingança e sofrimento indefiníveis, sem nada responder

à serva atônita, que rogava silenciosamente a Jesus lhe serenasse as

angustiosas mágoas, deu alguns passos como um autômato em direção à

porta, que abriu de par em par e por onde entraram as brisas suaves e

refrigerantes da noite...

Cambaleando de dor selvagem através do peristilo, caminhou,

depois, resoluto, como se fosse disputar um duelo com as sombras, para

defender a esposa caluniada e traída, martirizada pelos criminosos

daquela corte de infâmia, dirigindo-se com rapidez, sem observar o

desalinho de suas vestes, para o circo, onde a plebe rematava as paixões

impiedosas do seu César desalmado.

Todavia, um espetáculo mais terrível se lhe deparou aos olhos

agoniados, no insulamento da sua suprema angústia moral.

Embriagados nos baixos instintos da sua perversa materialidade, os

soldados e o povo colocaram os restos sinistros do monstruoso banquete

das feras, naquela tarde inesquecível, nas eminências de postes e colunas

improvisados à maneira de tochas, e iluminavam todo o exterior do grande

333

HÁ DOIS MIL ANOS...

recinto com o incêndio tétrico dos fragmentos de carne humana.

Públio Lentulus sentiu toda a extensão da sua impotência diante

daquela demonstração suprema de horror e crueldade, mas avançou,

cambaleante de dor, como ébrio ou louco, com espanto dos que o viam a

pé, em tais lugares, contemplando boquiaberto as tochas sinistras, feitas

de cabeças disformes e combustas.

Dava largas aos pensamentos doridos de angústia e de revolta,

como se o seu espírito não passasse de um tigre encarcerado no

arcabouço do peito envelhecido, quando notou a presença de dois

soldados ébrios, em luta por causa de um delicado objeto, que lhe chamou

repentinamente a atenção, sem que conseguisse explicar o motivo do seu

inesperado interesse por alguma coisa.

Era um pequeno colar de pérolas, do qual pendia precioso camafeu

antigo. Seus olhos fixaram aquele objeto estranho e o coração adivinhou o

resto. Ele o reconhecera. Aquela jóia fôra o presente de núpcias, feito à

esposa idolatrada e somente agora se lembrava do apego carinhoso da

mulher ao camafeu que lhe guardava o próprio perfil da juventude,

recordando a única afeição da sua mocidade.

Postou-se à frente dos contendores, que se formalizaram

imediatamente em atitude respeitosa, devida à sua presença.

Interpelado com severidade, um dos soldados esclareceu humilde e

trêmulo:

- Ilustríssimo, esta jóia pertenceu a uma das mulheres condenadas

às feras, no espetáculo de hoje...

- Quanto quereis pelo achado? - perguntou Públio Lentulus,

sombriamente.

- Comprei-a de um companheiro por dois sestércios.

- Entregai-ma! - replicou o senador, em tom ameaçador e imperativo.

334

ROMANCE DE EMMANUEL

Os soldados entregaram-lhe o colar, humildemente, e o senador,

revolvendo as vestes, retirou pesada bolsa de moedas de ouro, jogando-a

aos contendores num gesto de nojo e de supremo desprezo.

Públio Lentulus afastou-se do ambiente nefando, mal contendo as

lágrimas que, agora, lhe subiam em torrente, do coração oprimido e

dilacerado.

Apertando de encontro ao peito aquele adereço minúsculo, parecia

tomado de força misteriosa. Afigurava-se-lhe que, conservando aquele

último vestígio da "toilette" de sua mulher, arquivara, junto de si próprio e

para sempre, alguma coisa da sua personalidade e do seu coração.

Longe das luzes sinistras que iluminavam macabramente em toda a

extensão a via pública, o senador penetrou por uma viela cheia de

sombras.

Depois de alguns passos, notou que à sua frente se elevava para o

céu uma árvore gigantesca, que poetizava todo o ambiente, com a vetustez

de sua majestade frondejante. Cambaleando, encostou-se ao tronco

anoso, ávido de repouso e consolação. Contemplou as estrelas que

matizavam de cintilações cariciosas todo o firmamento romano e lembrouse

de que, por certo, em tal momento, a alma puríssima da companheira

deveria repousar na paz sublime das claridades celestes, sob a bênção

dos deuses...

Num gesto espontâneo, beijou o colar minúsculo, apertou-o com

delicado enlevo de encontro ao coração e, considerando o deserto árido

da sua vida, chorou, como nunca o fizera em qualquer outra circunstância

dolorosa da sua atribulada existência.

Num retrospecto profundo de todo o passado amarguroso,

considerava que todas as suas nobres aspirações haviam recebido o

escárnio dos deuses e dos homens. No seu orgulho desventurado, pagara

ao mundo os mais pesados tributos de angústia e de lágrimas dolorosas e,

na sua vaidade de homem, recebera as mais penosas humilhações do

335

HÁ DOIS MIL ANOS...

destino. Ponderava, tardiamente, que Lívia tudo fizera por torná-lo

venturoso, numa vida de amor risonho, simples e despretensiosa.

Recordou os mínimos incidentes do passado doloroso, como se o seu

espírito estivesse procedendo a meticulosa autópsia de todos os seus

sonhos, esperanças e ilusões, na caligem do tempo.

Como homem, vivera unido aos processos do Estado, que lhe

roubavam os mais encantadores entretenimentos da vida doméstica e,

como esposo, não tivera energia bastante para armar-se contra as calúnias

insidiosas. Como pai, considerava-se o mais desgraçado de todos. De que

lhe valia, então, a auréola do triunfo, se ela lhe chegava como intragável

cálice de amargura? De que lhe valiam, agora, as vitórias políticas e a

significação social dos títulos de nobreza, bem como a vultosa expressão

da sua fortuna, sob a mão implacável do seu impiedoso destino neste

mundo?

Perdiam-se as suas meditações em profundos abismos de sombra e

de dúvidas acerbas, quando lhe surgiu na mente atormentada a figura

suave e doce do sublime profeta de Nazaré, com a riqueza indestrutível da

sua paz e da sua humildade.

Na plenitude de suas lembranças, pareceu ouvir ainda as

extraordinárias advertências que lhe dirigira com a voz carinhosa e

compassiva, junto às águas marulhentas do Tiberíades. Recordando-se

intensamente de Jesus, sentiu-se tomado por uma vertigem de lágrimas

dolorosas, as quais, de alguma forma, lhe balsamizavam o deserto do

coração. Ajoelhando-se sob a fronde opulenta e generosa, qual o fizera um

dia na Palestina, exclamou para os céus, com os olhos marejados de

pranto, lembrando-se da força moral que a doutrina cristã havia

proporcionado ao coração da esposa, nutrindo-a espiritualmente para

receber com dignidade e heroísmo todos os sofrimentos:

- Jesus de Nazaré! disse com voz súplice e dolorosa - foi preciso

perdesse eu o melhor e o

336

ROMANCE DE EMMANUEL

mais querido de todos os meus tesouros, para recordar a concisão e a

doçura de tuas palavras!... Não sei compreender a tua cruz e ainda não sei

aceitar a tua humildade dentro da minha sinceridade de homem, mas, se

podes ver a enormidade de minhas chagas, vem socorrer, ainda uma vez,

meu coração miserável e infeliz!...

Penosa crise de lágrimas sobreveio a essa invocação tocada de uma

franqueza rude, agressiva e dolorosa.

Figurou-se-lhe, todavia, que uma energia indefinível e imponderável

o ajudava, agora, a atravessar o angustioso transe.

Terminada a súplica que lhe fluía do imo da alma lacerada, o

orgulhoso patrício observou que a presença de inexplicável força

modificava, naquele momento inesquecível, todas as disposições mais

íntimas do seu coração e, conservando-se genuflexo, notou, com a visão

interior do seu espírito, que a seu lado começava a surgir um ponto

luminoso, que se desenvolveu prodigiosamente, na dolorosa serenidade

daquele penoso instante de sua vida, surpreendendo-se com o fenômeno

que lhe sugeria ao pensamento as conjeturas mais inesperadas.

Por fim, aquele núcleo de luz tomava forma e, diante de si, viu a

figura radiosa de Flamínio Severus, que lhe vinha falar na tormentosa noite

da sua infinita amargura.

Públio reconheceu-lhe a presença, surpreendido e espantado,

identificando-lhe os traços fisionômicos e as saudações acolhedoras,

como quando se dirigia a ele, na Terra. Seu semblante era o mesmo, na

doce expressão de serenidade, agora tocada de triste e amargurado

sorriso. Ostentava a mesma toga de barra purpurina, mas não apresentava

o aspecto marcial e imponente dos dias terrestres. Flamínio contemplou-o

como se estivesse assomado de piedade infinita e de ilimitada amargura.

Seu olhar penetrante de espírito lhe devassava os mais recônditos

refolhos da consciência,

337

HÁ DOIS MIL ANOS...

enquanto o senador se aquietava, reverente, sensibilizado e surpreendido.

- Públio - disse-lhe carinhosamente a voz amiga do duende -, não te

revoltes com a execução dos desígnios divinos, que hoje modificou todos

os roteiros da tua vida!... Ouve-me bem! Falo-te com a mesma sinceridade

e amor que nos une os corações, de há longos séculos!... Diante da morte,

todas as nossas vaidades desaparecem... nas suas claridades sublimadas;

nossos poderes terrenos são de uma fragilidade misérrima!... O orgulho,

amigo meu, abre-nos além do túmulo uma porta de trevas densas, nas

quais nos perdemos em nosso egoísmo e impenitência!... Volta a tua casa

e sorve o conteúdo da taça travosa das provas rudes, com serenidade e

valor espiritual, porque ainda estás longe de esgotar o cálice de tuas

purificadoras amarguras, dentro das expiações redentoras e supremas...

As grandes dores, sem remédio no mundo, hão-de abrir para o teu

raciocínio um caminho novo, nos eternos horizontes da crença!... Nossos

deuses são expressões de fé respeitável e pura, mas Jesus de Nazaré é o

Caminho, a Verdade e a Vida!... Enquanto nossas ilusões sobre Júpiter nos

levam a render culto aos mais poderosos e aos mais fortes, considerados

como prediletos de nossas divindades, pela expressão valiosa dos seus

ricos sacrifícios, os ensinos preciosos do Messias Nazareno nos levam a

ponderar a miserabilidade de nossos falsos poderes à face do mundo,

abraçando os mais pobres e os mais desventurados da sorte, como a

impelir todas as criaturas a caminho do seu Reino, conquistado com o

sacrifício e o esforço de cada um, em demanda da única vida real, que é a

vida do Espírito... Hoje sei que perdeste, um dia, a tua sublime

oportunidade, mas o Filho de Deus Todo-Poderoso, na sua piedade infinita

e infinito amor, atende agora ao teu apelo, permitindo que a minha velha

afeição venha balsamizar as feridas dolorosas do teu coração

atormentado!...

338

ROMANCE DE EMMANUEL

O senador deixou que todo o seu pensamento se perdesse na

tempestade das mais abençoadas lágrimas de sua vida. Arfando nos

soluços de sua compunção, suplicava, mentalmente:

- Sim, meu amigo e meu mestre, eu quero compreender a verdade e

almejo o perdão das minhas faltas enormes!... Flamínio, inspiração de

minha alma dilacerada, sê o meu guia na tormentosa noite do meu triste

destino!... Vale-me com a tua ponderação e bondade!... Toma-me, de novo,

pelas mãos e esclarece-me o coração no tenebroso caminho!... Que fazer

para alcançar do céu o esquecimento de minhas faltas?!...

A serena visão, como se se houvera comovido intensamente ao

receber aquele apelo, tinha agora os olhos iluminados por piedosa e divina

lágrima.

Aos poucos, sem que Públio pudesse compreender o mecanismo

daquele fenômeno insólito, observou que a silhueta do amigo se diluía

levemente na sombra, afastando-se da tela de suas contemplações

espirituais; mas, ainda assim, percebeu que seus lábios murmuravam,

piedosamente, uma palavra: - Perdoa!...

Aquela suave recomendação caiu-lhe nalma como bálsamo

dulcificante. Sentiu, então, que seus olhos estavam agora abertos para as

realidades materiais que o rodeavam, como se houvera acordado de sonho

edificante.

Sentiu-se algo aliviado de suas profundas dores e levantou-se para

retomar, com decidido valor, o fardo penoso da existência terrena.

Regressando a casa, por volta das vinte e duas horas, ali encontrou

Plínio e Flávia, que o esperavam aflitos.

Vendo-lhe a fisionomia fundamente abatida e transfigurada, a filha,

ansiosa, o abraçou, num transporte de ternura indefinível, exclamando em

lágrimas:

- Meu pai, meu querido pai, até agora não nos foi possível obter

qualquer notícia.

339

HÁ DOIS MIL ANOS...

Públio Lentulus, porém, fixou nos filhos o olhar triste e desalentado,

enlaçando-os silenciosamente.

Em seguida, chamou-os ao gabinete particular, para onde

determinou, igualmente, a vinda de Ana, e os quatro, em conselho de

família, examinaram, emocionadamente, os inolvidáveis sucessos daquele

dia de provações aspérrimas.

À medida que o senador transmitia aos filhos as revelações penosas

de Ana, que lhe acompanhava as palavras extremamente comovida, via-se

que Flávia e o esposo traduziam no rosto as emoções mais singulares e

mais fortes, sob a angustiosa impressão daquela narrativa.

Ao fim do minucioso relato, Plínio Severus exclamou no seu orgulho

irrefletido:

- Mas não poderíamos imputar toda a culpa dos fatos a esta mísera

criatura que há tantos anos serve indignamente em vossa casa?

Assim se pronunciando, o oficial apontava a serva, que baixou a

cabeça humildemente, rogando a Jesus lhe fortalecesse o espírito para o

testemunho daquele momento, que adivinhava penoso para os

sentimentos mais delicados do seu coração.

Públio Lentulus pareceu participar da opinião do genro; contudo,

afigurou-se-lhe que as palavras de Flamínio ainda lhe ressoavam no ádito

da consciência e respondeu com firmeza:

- Filhos, esqueçamos os julgamentos apressados e, se bem

reconheça a falta de Ana aceitando as vestes de sua senhora, quero

venerar nesta serva a memória de Lívia, para sempre. Companheira fiel dos

seus angustiosos martírios de vinte e cinco anos consecutivos, ela

continuará nesta casa com as mesmas regalias que lhe foram outorgadas

por sua benfeitora. Apenas exijo que o seu coração saiba guardar os

nossos lúgubres segredos desta noite, porque desejo honrar publicamente

a memória de

340

ROMANCE DE EMMANUEL

minha mulher, depois do seu tremendo sacrifício naquela festividade da

infâmia.

Plínio e Flávia observaram-lhe, surpresos, a generosidade

espontânea para com a criada que, por sua vez, agradecia a Jesus a graça

do seu esclarecimento.

O senador pareceu profundamente modificado naquele choque

terrível, experimentado por suas fibras espirituais.

Neste comenos, interveio Plínio Severus, esclarecendo:

- A vários amigos nossos, que aqui estiveram para cumprimentarvos,

declarei que, em vista do nosso luto por minha mãe, não

comemoraríeis o vosso triunfo político na data de hoje, informando mais,

no intuito de justificar vossa ausência, que a senhora Lívia se encontrava

gravemente enferma, em Tibur, para onde fôra em busca de melhoras,

notícias essas que, aliás, eram recebidas pelos nossos íntimos com o

máximo de naturalidade, porque a vossa consorte nunca mais freqüentou

a sociedade desde a volta da Palestina, sendo compreensível que todos os

nossos amigos a considerassem doente.

O senador ouviu, com interesse, essas explicações, corno se

houvera encontrado solução para o angustioso problema que o oprimia.

Ao cabo de alguns momentos, depois de examinar a possibilidade

da execução da idéia que lhe aflorara no cérebro dolorido, exclamou mais

animado:

- Tua idéia, meu filho, neste particular, veio trazer-me a perspectiva

de solução razoável para a angustiosa questão que me acabrunha.

Cumpre-me defender a memória de minha mulher - continuava o

senador, de olhos úmidos -, e, se fôra possível, iria lutar corpo a corpo

com a mentalidade infame do governo cruel que atualmente nos conspurca

as melhores conquistas sociais; mas, se eu fosse bradar pessoalmente a

minha

341

HÁ DOIS MIL ANOS...

indignação e a minha revolta, na praça pública, seria tachado de louco; e

se fosse desafiar Domício Nero seria o mesmo que tentar a imobilidade

das águas do Tibre com o galho de uma flor. Neste sentido, pois, saberei

agir nos bastidores políticos, para derrubar o tirano e seus asseclas, ainda

que isso nos custe o máximo de tempo e paciência.

Agora, o que me compete urgentemente é prestar todas as

homenagens possíveis aos sentimentos imáculos da companheira

arrebatada nos torvelinhos da insânia e da crueldade.

Plínio e Flávia escutavam-no, silenciosos e comovidos, sem lhe

perturbarem o curso rápido das palavras, enquanto ele prosseguia

sensatamente:

- Há mais de dez anos que a sociedade romana via em minha pobre

companheira uma enferma e uma demente. E já que os nossos amigos

foram avisados de que Lívia se encontrava em Tibur, talvez aguardando a

morte, partirei para lá, ainda esta noite, levando Ana em minha

companhia...

E como se estivesse tomado por uma idéia fixa, com aquela

preocupação de homenagear a morta inesquecível, Públio Lentulus

continuou:

- Nossa casa em Tibur está agora desabitada porque, há mais de

vinte dias, Filopátor foi a Pompeia, obedecendo a determinações minhas...

Chegarei lá com Ana, levando uma urna funerária que, para todos os

efeitos, encerrará os restos da minha pobre Lívia... Nossos servos devem

partir amanhã, igualmente, quando então mandarei mensageiros a Roma,

cientificando-lhes do acontecimento por satisfazer as pragmáticas da vida

social!... Em Tibur, prestaremos à memória de Lívia todas as homenagens,

transladando, em seguida, publicamente, as cinzas para aqui, onde farei

celebrar as mais solenes exéquias, na visitação pública, testemunhando,

assim, embora tardiamente, minha veneração pela santa criatura que se

sacrificou por nós a vida inteira...

342

ROMANCE DE EMMANUEL

- Mas... e a incineração? - perguntou Plínio Severus, prudentemente,

ao conjeturar o êxito possível do projeto.

O senador, porém, não hesitou, resolvendo o assunto com a habitual

energia das suas decisões:

- Se essa cerimônia requer a presença dos sacerdotes, saberei

conduzir-me junto ao ministro do culto, na cidade, alegando o desejo de

tudo fazer no mais reduzido círculo da minha intimidade familiar.

O que resta, tão somente, é esperar, de vocês que me ouvem,

silêncio tumular sobre as providências dolorosas desta noite, a fim de não

ferirmos as suscetibilidades do preconceito social.

Surpreso com aquela energia em tão penosas circunstâncias, Plínio

Severus fez-lhe companhia naquelas horas avançadas, para a compra da

urna mortuária, que foi adquirida, em poucos minutos, de um comerciante

que nada indagou do estranho cliente, atendendo à circunstância da sua

posição social e política, bem como à vultosa importância da compra,

efetuada com significativas vantagens para o seu interesse.

Naquela mesma noite, Públio Lentulus e Ana se dirigiram com

alguns escravos para a cidade de repouso dos antigos romanos, vencendo

em algumas horas as sombras espessas dos caminhos e chegando com a

possível tranqüilidade. de modo a ambientar as derradeiras homenagens à

memória de Lívia.

Todas as providências foram adotadas com profunda surpresa para

todos os servos, que não ousavam discutir as ordens recebidas, e mesmo

para os patrícios da cidade, que sabiam doente a esposa do senador, mas

ignoravam o doloroso episódio da sua morte.

Flávia e Plínio foram chamados no dia seguinte, satisfazendo-se a

todos os imperativos de ordem social, naquela penosa representação de

condolências.

343

HÁ DOIS MIL ANOS...

Um donativo mais rico e mais generoso de Públio Lentulus ao culto

de Júpiter conquistava-lhe a plena autorização do clero tiburtino, no

referente à sua decisão de incinerar o cadáver da esposa na intimidade da

família, sendo a memória de Lívia homenageada com todos os cerimoniais

do antigo culto dos deuses, invocando-se a proteção dos manes e

divindades domésticas.

Numerosos portadores foram expedidos a Roma e daí a dois dias a

urna funerária chegava à sede do Império, penetrando pomposamente no

palácio do Aventino, onde a esperava um soberbo catafalco.

Durante três dias sucessivos, as cinzas simbólicas de Lívia

estiveram expostos à visitação do povo, tendo o senador mandado

distribuir vultosos donativos, em alimentos e dinheiro, à plebe que viesse

prestar as últimas homenagens à memória da sua morta querida. Longas

romarias visitaram a residência, dia e noite, dando-lhe o aspecto

imponente de um templo aberto a todas as classes sociais. Toda a nobreza

romana, inclusive o cruel Imperador, se fez representar nas pompas

daquelas exéquias, que eram como que uma expressão de remorso e uma

tentativa de reparação da parte do esposo amargurado. Públio Lentulus

considerava que, somente assim, poderia agora penitenciar-se,

publicamente, a respeito de sua mulher, que voltava a ocupar o lugar de

veneração no círculo numeroso de amizades aristocráticas da sua família.

Terminado o último número daquelas cerimônias, o senador fez

questão de que a filha e o genro, bem como Agripa, passassem a residir no

palácio do Aventino, em sua companhia, no que foi atendido, em caráter

provisório, segundo asseverava Plínio à mulher, e, naquela mesma noite,

com a alma dilacerada de saudade e de angústias transportou, em

companhia de Ana, todos os objetos de uso pessoal da esposa para os

seus aposentos particulares.

344

ROMANCE DE EMMANUEL

Terminada a tarefa, Públio Lentulus exclamou para a serva, com

singular interesse:

- Tudo pronto?

Recebendo resposta afirmativa, insistiu, como se faltasse ainda

alguma coisa, referindo-se à cruz de Simeão, guardada cuidadosamente

pela dedicação de Ana, como se mais ninguém pudesse apreciar a

significação especial daquele tesouro:

- Onde está uma pequena cruz de madeira tosca, que minha mulher

tanto venerava?

- Ah! é verdade!... - exclamou a serva, satisfeita por observar a

modificação daquela alma austera.

E, retirando do seu quarto a modesta lembrança do apóstolo de

Samaria, entregou-lha com reverência afetuosa. O senador, então,

colocou-a num móvel secreto. Todavia, quem lhe acompanhasse a

existência amargurada, poderia vê-lo, todas as noites, na solidão do seu

aposento, junto do precioso símbolo das crenças da companheira.

Quando as luzes do palácio se apagavam, de leve, e quando todos

buscavam o repouso no silêncio da noite, o orgulhoso patrício retirava do

cofre de suas lembranças mais queridas a cruz de Simeão e, ajoelhado

qual o fazia Lívia, parava a máquina do convencionalismo mundano, para

meditar e chorar amargamente.

345

VI

Alvoradas do Reino do Senhor

Reportando-nos à dolorosa e comovedora cena do sacrifício dos

mártires cristãos, na arena do circo, somos compelido a acompanhar a

entidade de Lívia na sua augusta trajetória para o Reino de Jesus.

Nunca os horizontes da Terra foram brindados com paisagens de

tanta beleza, como as que se abriram nas esferas mais próximas do

planeta, quando da partida em massa dos primeiros apóstolos do

Cristianismo, exterminados pela impiedade humana, nos tempos áureos e

gloriosos da consoladora doutrina do Nazareno.

Naquele dia, quando as feras famintas estraçalhavam os indefesos

adeptos das idéias novas, toda uma legião de espíritos sábios e

benevolentes, sob a égide do Divino Mestre, lhes rodeava os corações

dilacerados no martírio, saturando-os de força, resignação e coragem para

o supremo testemunho de sua fé.

Sobre as nefastas paixões desencadeadas naquela assistência

ignorante e impiedosa, desdobravam os poderes do céu o manto infinito

de sua

346

ROMANCE DE EMMANUEL

misericórdia, e além daquele vozerio sinistro e ensurdecedor havia vozes

que abençoavam, proporcionando aos mártires do Senhor uma fonte de

suaves e ditosas consolações.

Entardecia já, quando tombavam as últimas vítimas ao choque brutal

dos leões furiosos e implacáveis.

Abrindo os olhos entre os braços carinhosos do seu velho e

generoso amigo, Lívia compreendera, imediatamente, a consumação do

angustioso transe. Simeão tinha nos lábios um sorriso divino e lhe

acariciava os cabelos, paternalmente, com meiguice e doçura. Estranha

emoção vibrava, porém, na alma liberta da esposa do senador, que se viu

presa de lágrimas dolorosas. A seu lado notou, com penosa surpresa, os

despojos sangrentos do corpo dilacerado e entendeu, embora o seu

espanto, o doce mistério da ressurreição espiritual, de que falava Jesus

nas suas lições divinas. Desejou falar, de modo a traduzir seus

pensamentos mais íntimos e, todavia, tinha o coração repleto de emoções

indefiníveis e angustiosas. Aos poucos, notou que, da arena

ensangüentada, se erguiam entidades, qual a sua própria, ensaiando

passos vacilantes, amparadas, porém, por criaturas etéreas, aureoladas de

graça incomparável, como jamais contemplara em qualquer circunstância

da vida. Aos seus olhos desapareceu o cenário colorido e tumultuoso do

circo da ignomínia e aos ouvidos não mais ressoaram as gargalhadas

irônicas e perversas dos espectadores impiedosos. Notou que, do

firmamento constelado, fluía uma luz misericordiosa e compassiva,

afigurando-se-lhe que nova claridade, desconhecida na Terra, se acendera

maravilhosamente dentro da noite. Imensa multidão de seres, que lhe

pareciam alados, cercava-os a todos, enchendo o ambiente de vibrações

divinas.

Deslumbrada, viu, então, que entre a Terra e o Céu se formava

radioso caminho...

347

HÁ DOIS MIL ANOS...

Através de uma esteira de luz intraduzível, que não chegara a

ofuscar o brilho caricioso e terno das estrelas que bordavam, cintilando, o

azul macio do firmamento, observou novas legiões espirituais que

desciam, celeremente, das maravilhosas regiões do Infinito...

Empolgados com as sonoridades delicadas daquele ambiente

indescritível, seus ouvidos escutaram, então, sublimes melodias do plano

invisível, como se, de envolta com liras e flautas, harpas e alaúdes,

cantassem no Alto as divinas toutinegras do Paraíso, projetando as

alegrias siderais nas paisagens escuras e tristes da Terra...

Seu espírito, como que impulsado por energia misteriosa,

conseguiu, então. manifestar as emoções mais íntimas e mais queridas.

Abraçando-se ao velho e generoso amigo de Samaria, pôde

murmurar, banhada em lágrimas:

- Simeão, meu benfeitor e mestre, roga comigo a Jesus para que

esta hora me seja menos dolorosa...

- Sim, filha - respondeu o venerável apóstolo aconchegando-a ao

coração, como se o fizesse a uma criança -, o Senhor, na sua infinita

misericórdia, reserva o seu carinho a quantos lhe recorrem a

magnanimidade, com a fé ardente e sincera do coração!... Acalma o teu

espírito porque estás, agora, a caminho do Reino do Senhor, destinado

aos corações que muito amaram!...

Naquele instante, porém, uma força incompreensível parecia impelir

para as Alturas quantos ali se conservavam sem a pesada indumentária da

Terra...

Lívia sentiu que o terreno lhe faltava e que todo o seu ser volitava

em pleno espaço, experimentando estranhas sensações, embora

fortemente amparada pelos braços generosos do venerando amigo.

Era, de fato, uma radiosa caravana de entidades puríssimas, que se

elevava em conjunto,

348

ROMANCE DE EMMANUEL

através daquele cintilante caminho traçado de luz, em pleno éter!...

Experimentando singulares sensações de leveza, a esposa do

senador sentiu-se mergulhada num oceano de vibrações suavíssimas.

Todos os companheiros lhe sorriam e, contemplando-os, igualmente

amparados pelos mensageiros divinos, ela identificava, um a um, quantos

lhe haviam sido irmãos no cárcere, no martírio e na morte infamante. Em

dado instante, todavia, como se a memória fosse chamada a todos os

pormenores da realidade ambiente, lembrou-se de Ana, sentindo-lhe a falta

naquela jornada de glorificação em Jesus-Cristo.

Bastou que a recordação lhe aflorasse no íntimo, para que a voz de

Simeão esclarecesse com a proverbial bondade:

- Filha, mais tarde poderás saber tudo... Na tua saudade, porém,

inclina-te sempre aos desígnios divinos, inspirados em toda a sabedoria e

misericórdia... Não te impressiones com a ausência de Ana neste banquete

de alegrias celestiais, porque aprouve a Jesus conservá-la ainda algum

tempo na oficina de suas bênçãos, entre as sombras do degredo

terrestre...

Lívia ouviu e resignou-se, silenciosa.

Reconheceu que seguiam sempre pela mesma estrada maravilhosa,

que, a seus olhos, parecia ligar o Céu e a Terra num fraternal amplexo de

luz, afigurando-se-lhe que todos os divinos componentes da luminosa

caravana flutuavam num movimento de ascensão, em pleno espaço,

demandando regiões gloriosas e desconhecidas. No seio dos elementos

aéreos, admirava-se de conservar todo o mecanismo de suas sensações

físicas, através do eterizado e radioso caminho.

Ao longe, nos abismos do ilimitado, parecia divisar novos

firmamentos estrelados, que se multiplicavam maravilhosamente no seio

do Infinito,

349

HÁ DOIS MIL ANOS...

e observava radiações fulgurantes que, por vezes, lhe ofuscavam os olhos

deslumbrados...

De outras vezes, olhando furtivamente para trás, via um acervo de

sombras compactas e movediças, onde se localizavam as esferas de vida

na Terra distante.

Em ambas as margens do caminho verificou a existência de flores

graciosas e perfumadas, como se os lírios terrestres, com expressões

mais delicadas, se houvessem transportado aos jardins do Paraíso.

A eternidade apresentava-se-lhe com encantos e venturas

indizíveis!...

Simeão falava carinhosamente da sua adaptação à vida nova e das

belezas sublimadas do reino de Jesus, recordando com alegria as penosas

angústias da vida na Terra, quando aos seus ouvidos ecoaram vozes

argentinas e harmônicas dos rouxinóis siderais que festejavam, nas

Alturas, a redenção dos mártires do Cristianismo, como se estivessem

chegando às cercanias de uma nova Galileia, saturada de melodias e

perfumes deliciosos, erguida à luz plena do Infinito, como se fosse um

ninho de almas santificadas e puras balouçando, aos ventos perfumados

de interminável Primavera, na árvore maravilhosa e sem fim da Criação...

Aquele hino suave e claro, ora se elevava às Alturas em sonoridades

prodigiosas, como se fôra um incenso sutil das almas procurando o sólio

do Sempiterno em hosanas de amor, de alegria e de reconhecimento, ora

descia em melodias arrebatadoras, demandando as sombras da Terra,

como se fosse um brado de fé e esperança em Jesus-Cristo, destinado a

acordar no mundo os corações mais perversos e mais empedernidos...

A linguagem humana não traduz fielmente as harmoniosas vibrações

das melodias do Invisível, mas aquele cântico de glória, ao menos

palidamente, deve ser lembrado por nós outros como suave reminiscência

do Paraíso:

350

ROMANCE DE EMMANUEL

- Glória a Ti, Senhor do Universo, Criador de todas as maravilhas!...

"É por tua sabedoria inacessível que se acendem as constelações

nos abismos do Infinito e é por tua bondade que se desenvolve a erva

tenra na crosta escura da Terra!...

"Por tua grandeza inapreciável e por tua justiça misericordiosa, abre

o Tempo os seus ilimitados tesouros para as almas!...

"Por teu amor, sacrossanto e sublime, florescem todos os risos e

todas as lágrimas no coração das criaturas!...

"Abençoa, Senhor do Universo, as sagradas esperanças deste

Reino. Jesus é para nós o teu Verbo de amor, de paz, de caridade e

beleza!... Fortalece as nossas aspirações de cooperar em sua Seara

Santa!...

"Multiplica as nossas energias e faze chover sobre nós o fogo

sagrado da fé, para espalharmos na Terra as divinas sementes do amor de

teu Filho!...

"Basta uma gota do orvalho divino de tua misericórdia para que se

purifiquem todos os corações, mergulhados no lodo dos crimes e das

impenitências terrestres, e basta um raio só do teu poder para que todos

os Espíritos se convertam ao bem supremo!..

"E agora, ó Jesus, Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo,

recebe as nossas súplicas ardentes e fervorosas!

"Abençoa, ó Divino Mestre, os que chegam redimidos com o anélito

criador de tuas bênçãos sacratíssimas!...

"Vítimas da perversidade humana, cumpriram, valorosamente, os

teus missionários, todas as obrigações que os prendiam ao cárcere do

penoso degredo!...

"O mundo, no torvelinho de suas inquietações e iniquidades, não

lhes compreendeu o coração amantíssimo, mas, na tua bondade e

misericórdia,

351

HÁ DOIS MIL ANOS...

abres aos mártires da verdade as portas divinas do teu reino de luz..."

Estrofes de profunda beleza espalhavam nas estradas claras e

sublimadas do éter universal as bênçãos da paz e das alegrias

harmoniosas!

Os seres inferiores, das esferas espirituais mais próximas do

planeta, recebiam aqueles eflúvios sacrossantos do celeste banquete

reservado por Jesus aos mártires da sua doutrina de redenção, como se

fossem também convidados pela misericórdia do Divino Mestre, e muitos

deles, recebendo no íntimo aquelas vibrações maravilhosas, se

converteram para sempre ao amor e ao bem supremos.

Harmonias suavíssimas saturavam todas as atmosferas espirituais,

derramando sobre a Terra claridades augustas e soberanas.

Naquela região de belezas ignotas e prodigiosas, intraduzíveis na

pobreza da linguagem humana, Lívia retemperou as forças morais, depois

do austero cumprimento de sua missão divina.

Ali, compreendeu a extensão do conceito de "muitas moradas", dos

ensinamentos de Jesus, contemplando junto de Simeão as mais diversas

esferas de trabalho, localizadas nas cercanias da Terra, ou estudando a

grandeza dos mundos disseminados pela sabedoria divina no oceano

imensurável do éter, na imortalidade. Obedecendo às tendências do seu

coração, não se esqueceu das antigas amizades nos círculos espirituais,

colocados nas zonas terrestres.

Depois de alguns dias de emoções suaves e carinhosas, todos os

Espíritos, reunidos naquela paisagem luminosa, se prepararam para

receber a visita do Senhor, como quando da sua divina presença na

bucólica moldura da Galileia.

Num dia de rara e indefinível beleza, em que uma claridade de

cambiantes divinos entornava saboroso mel de alegria em todos os

corações, descia o Cordeiro de Deus da esfera superior de suas glórias

sublimes e, tomando a palavra naquele ce352

ROMANCE DE EMMANUEL

náculo de maravilhas, recordava as suas inesquecíveis pregações junto às

águas tranqüilas do pequeno 'mar" da Galileia. De modo algum se poderia

traduzir fielmente, na Terra, a beleza nova da sua palavra eterna,

substância de todo o amor, de toda a verdade e de toda a vida, mas

constitui para nós um dever, neste escorço, lembrar a sua ilimitada

sabedoria, ousando reproduzir, imperfeitamente e de leve, a essência de

sua lição divina naquele momento inesquecível.

Figurava-se, a todos os presentes, a cópia fiel dos quadros

graciosos e claros do Tiberíades. A palavra do Mestre derramava-se no

ádito das almas, com sonoridades profundas e misteriosas, enquanto de

seus olhos vinha a mesma vibração de misericórdia e de serena

majestade.

- Vinde a mim, vós todos que semeastes, com lágrimas e sangue, na

vinha celeste do meu reino de amor e verdade!...

"Nas moradas infinitas do Pai, há luz bastante para dissipar todas as

trevas, consolar todas as dores, redimir todas as iniquidades...

"Glorificai-vos, pois, na sabedoria e no amor de Deus Todo-

Poderoso, vós que já sacudistes o pó das sandálias miseráveis da carne,

nos sacrifícios purificadores da Terra! Uma paz soberana vos aguarda,

para sempre, no reino dilatado e sem fim, prometido pelas divinas aleluias

da Boa Nova, porque não alimentastes outra aspiração no mundo, senão a

de procurar o reino de Deus e de sua justiça.

"Entre a Manjedoura e o Calvário, tracei para as minhas ovelhas o

eterno e luminoso caminho... O Evangelho floresce, agora, como a seara

imortal e inesgotável das bênçãos divinas. Não descansemos, contudo,

meus amados, porque tempo virá na Terra, em que todas as suas lições

hão-de ser espezinhadas e esquecidas... Depois de longa era de sacrifícios

para consolidar-se nas almas, a doutrina da redenção será chamada a

esclarecer o governo

353

HÁ DOIS MIL ANOS...

transitório dos povos; mas o orgulho e a ambição, o despotismo e a

crueldade hão-de reviver os abusos nefandos de sua liberdade! O culto

antigo, com as suas ruínas pomposas, buscará restaurar os templos

abomináveis do bezerro de ouro. Os preconceitos religiosos, as castas

clericais e os falsos sacerdotes restabelecerão novamente o mercado das

coisas sagradas, ofendendo o amor e a sabedoria de Nosso Pai, que

acalma a onda minúscula no deserto do mar, como enxuga a mais

recôndita lágrima da criatura, vertida no silêncio de suas orações ou na

dolorosa serenidade de sua amargura indizível!...

"Soterrando o Evangelho na abominação dos lugares santos, os

abusos religiosos não poderão, todavia, sepultar o clarão de minhas

verdades, roubando-as ao coração dos homens de boa vontade!...

"Quando se verificar este eclipse da evolução de meus

ensinamentos, nem por isso deixarei de amar intensamente o rebanho das

minhas ovelhas tresmalhadas do aprisco!...

"Das esferas de luz que dominam todos os círculos das atividades

terrestres, caminharei com os meus rebeldes tutelados, como outrora

entre os corações impiedosos e empedernidos de Israel, que escolhi, um

dia, para mensageiro das verdades divinas entre as tribos desgarradas da

imensa família humana!...

"Em nome de Deus Todo-Poderoso, meu Pai e vosso Pai, regozijome

aqui convosco, pelos galardões espirituais que conquistastes no meu

reino de paz, com os vossos sacrifícios abençoados e com as vossas

renúncias purificadoras! Numerosos missionários de minha doutrina ainda

tombarão, exânimes, na arena da impiedade, mas hão-de constituir

convosco a caravana apostólica, que nunca mais se dissolverá,

amparando todos os trabalhadores que perseverarem até ao fim, no longo

caminho da salvação das almas!...

"Quando a escuridão se fizer mais profunda nos corações da Terra,

determinando a utilização

354

ROMANCE DE EMMANUEL

de todos os progressos humanos para o extermínio, para a miséria e para

a morte, derramarei minha luz sobre toda a carne e todos os que vibrarem

com o meu reino e confiarem nas minhas promessas, ouvirão as nossas

vozes e apelos santificadores!...

"Pela sabedoria e pela verdade, dentro das suaves revelações do

Consolador, meu verbo se manifestará novamente no mundo, para as

criaturas desnorteadas no caminho escabroso, através de vossas lições,

que se perpetuarão nas páginas imensas dos séculos do porvir!...

"Sim! amados meus, porque o dia chegará no qual todas as mentiras

humanas hão de ser confundidas pela claridade das revelações do céu.

Um sopro poderoso de verdade e vida varrerá toda a Terra, que pagará,

então, à evolução dos seus institutos, os mais pesados tributos de

sofrimentos e de sangue... Exausto de receber os fluidos venenosos da

ignomínia e da iniquidade de seus habitantes, o próprio planeta protestará

contra a impenitência dos homens, rasgando as entranhas em dolorosos

cataclismos. .. As impiedades terrestres formarão pesadas nuvens de dor

que rebentarão, no instante oportuno, em tempestades de lágrimas na face

escura da Terra e, então, das claridades da minha misericórdia,

contemplarei meu rebanho desditoso e direi como os meus emissários: "Ó

Jerusalém, Jerusalém?..."

"Mas Nosso Pai, que é a sagrada expressão de todo o amor e

sabedoria, não quer se perca uma só de suas criaturas, transviadas nas

tenebrosas sendas da impiedade!...

"Trabalharemos com amor, na oficina dos séculos porvindouros,

reorganizaremos todos os elementos destruídos, examinaremos

detidamente todas as ruínas buscando o material passível de novo

aproveitamento e, quando as instituições terrestres reajustarem a sua vida

na fraternidade e no bem, na paz e na justiça, depois da seleção natural

dos Espíritos e dentro das convulsões renovadoras da

355

HÁ DOIS MIL ANOS...

vida planetária, organizaremos para o mundo um novo ciclo evolutivo,

consolidando, com as divinas verdades do Consolador, os progressos

definitivos do homem espiritual".

A voz do Mestre parecia encher os âmbitos do próprio Infinito, como

se Ele a lançasse, qual baliza divina do seu amor, no ilimitado do espaço e

do tempo, no seio radioso da Eternidade.

Terminando a exposição de suas profecias augustas, sua figura

sublimada elevava-se às Alturas, enquanto um oceano de luz azulada, de

mistura aos sons de melodias divinas e incomparáveis, invadia aqueles

domínios espirituais, com as tonalidades cariciosas das safiras terrestres.

Todos os presentes, genuflexos na sua doce emoção, choravam de

reconhecimento e alegria, enchendo-se de santificada coragem para as

elevadas tarefas que lhes competia levar a efeito, no curso incessante dos

séculos. Flores de maravilhoso azul-celeste choviam do Alto sobre todas

as frontes, desfazendo-se, todavia, ao tocarem nas delicadas substâncias

que formavam o solo daquela paisagem; de soberana harmonia, como se

fossem lírios fluidicos, de perfumada neblina.

Lívia chorava de comoção indefinível, enquanto Simeão, com seus

generosos ensinamentos, a instruía das novas missões de trabalho

santificante, que lhe aguardavam a dedicação no plano espiritual.

- Meu amigo - disse ela, entre lágrimas as agonias terrestres são um

preço misérrimo para estas recompensas radiosas e imortais!... Se todos

os homens tivessem conhecimento direto de semelhantes venturas, não

possuiriam outra preocupação além da de buscar o glorioso reino de Deus

e de sua justiça.

- Sim, filha - acrescentou Simeão, como se os seus olhos

pousassem serenamente nos quadros do futuro -, um dia, todos os seres

da Terra hão-de conhecer o Evangelho do Mestre, observando-lhe

356

ROMANCE DE EMMANUEL

os ensinos!... Para isso, haveremos de sacrificar-nos pelo Cordeiro de

Deus, quantas vezes forem necessárias. Organizaremos avançados postos

de trabalho entre as sombras terrestres, buscaremos acordar todos os

corações adormecidos nas reencarnações dolorosas, para as harmonias

sublimes destas divinas alvoradas!...

Se for preciso, voltaremos de novo ao mundo, em missões

santificadoras de paz e verdade... Sucumbiremos na cruz infamante, ou

daremos o sangue em repasto às feras da ambição e do orgulho, do ódio e

da impiedade, que dormitam nas almas dos nossos companheiros da

existência terrestre, convertendo todos os corações ao amor de Jesus-

Cristo!...

Nesse instante, todavia, Lívia notou que um grupo gracioso de

entidades angélicas distribuía as graças do Senhor naquela paisagem

florida do Infinito, organizada no Além como estância de repouso,

recompensando os que haviam partido das angústias terrenas, após o

cumprimento de missão divina.

Todos os que haviam alcançado a vitória celeste com os seus

esforços, nos martírios santificantes, retemperavam agora as forças

morais e desejavam conhecer novas esferas de gozo espiritual, novas

expressões da vida noutros mundos, recebendo outros conhecimentos

nos templos radiosos e sublimes da Eternidade e restabelecendo, ao

mesmo tempo, o equilíbrio de suas emoções.

Junto à magnanimidade dos mensageiros de Jesus, sublimados

planos foram arquitetados. Novos cenários, novas oficinas de estudo,

novas emoções no reencontro de afetos inesquecíveis, que haviam

antecedido os missionários do Senhor na noite escura e fria da morte.

Mas, chegando-lhe a vez de externar seus mais recônditos desejos,

a nobre companheira do senador, depois de auscultar os seus sentimentos

mais profundos, respondeu, entre lágrimas, ao emissário de Jesus que a

interpelava:

357

HÁ DOIS MIL ANOS...

- Mensageiro do Bem - as maravilhas do reino do Senhor teriam para

mim uma nova beleza, se eu pudesse penetrar-lhes a excelsitude, em

companhia do coração que é metade do meu, da alma gêmea da minha,

que a sabedoria de Deus, em seus profundos e doces mistérios, destinou

ao meu modo de ser, desde a aurora dos tempos!...

Não desejo menosprezar a glória sublime destas regiões de

felicidade e de paz indizíveis, mas, no meio de todas estas alegrias que me

rodeiam, sinto saudades da alma que é o complemento da minha própria

vida!...

Dai-me a graça de voltar às sombras da Terra e erguer, do lodaçal do

orgulho e das vaidades impiedosas, o companheiro do meu destino!...

Permiti que possa protegê-lo em espírito, a fim de um dia trazê-lo aos pés

de Jesus, igualmente, de modo que também receba as suas divinas

bênçãos!...

A entidade angélica sorriu com profunda compreensão e terna

complacência, exclamando:

- Sim - o amor é o laço de luz eterna que une todos os mundos e

todos os seres da imensidade; sem ele, a própria Criação Infinita não teria

razão de ser, porque Deus é a sua expressão suprema... As perspectivas

deslumbrantes das esferas felizes perderiam a divina beleza, se não

guardássemos a esperança de participar, um dia, de suas ilimitadas

venturas, junto dos nossos bem-amados, que se encontram na Terra ou

noutros círculos de provação, do Universo...

E, fixando o lúcido olhar nos olhos serenos e fulgurantes de Lívia,

continuou como se lhe devassasse os pensamentos mais secretos e mais

profundos:

- Conheço toda a tua história e sei de tuas lutas incessantes e

redentoras, nas encarnações do passado, justificando assim os teus

propósitos de prosseguir, em espírito, trabalhando na Terra pelo

aperfeiçoamento daqueles a quem muito amaste!...

358

ROMANCE DE EMMANUEL

Também o Cordeiro de Deus, por muito amar a Humanidade. não

desdenhou a humilhação, o martírio, o sacrifício...

Vai, minha filha. Poderás trabalhar livremente entre as falanges

radiosas que operam na face sombria do planeta terrestre. Voltarás aqui,

sempre que necessitares de novos esclarecimentos e novas energias.

Regressarás junto de Simeão, logo que o desejares. Ampara o teu infeliz

companheiro na longa esteira de suas expiações rudes e amargas, mesmo

porque o desventurado Públio Lentulus não está longe da sua mais

angustiosa provação na atual existência, perdida, infelizmente, pelo seu

desmarcado orgulho e pela sua vaidade fria e impiedosa!...

Lívia sentiu-se tomada de indizível emoção em face daquela

revelação dolorosa, mas, simultaneamente, externou todo o seu

reconhecimento à misericórdia divina, na intimidade do seu coração

sensível e amoroso.

Naquele mesmo dia. em companhia de Simeão, a generosa criatura

voltava à Terra, afastando-se provisoriamente daqueles domínios

esplendorosos.

Através da sua excursão espiritual, sublime e vertiginosa, observou

as mesmas perspectivas encantadoras e deslumbrantes do caminho,

recebendo, extasiada, elevados ensinamentos do venerando amigo da

Samaria.

Em pouco tempo aproximavam-se ambos de larga mancha escura.

Já na atmosfera da Terra, Lívia sentiu a singular diversidade da

natureza ambiente, experimentando os mais penosos choques fluídicos.

Num ápice, notou que se encontravam na mesma Roma da sua

infância, da sua juventude e das suas amargas provações.

Era meia-noite. Todo o hemisfério estava mergulhado nos abismos

de sombra.

359

HÁ DOIS MIL ANOS...

Amparada pelos braços e pela experiência de Simeão, chegou ao

seu antigo palácio do Aventino, identificando-lhe os mármores preciosos.

Em lá penetrando, Lívia e Simeão se dirigiram imediatamente ao

quarto do senador, então iluminado por frouxa claridade.

Com exceção das ruas, onde se movimentavam ruidosamente os

escravos, nos serviços noturnos de transporte, segundo os costumes do

tempo, toda a cidade repousava na sombra.

De joelhos ante a relíquia de Simeão, como de seu recente costume,

Públio Lentulus meditava. Seu pensamento descia aos abismos

tenebrosos do passado, onde buscava rever, angustiadamente as afeições

inesquecíveis que o haviam precedido nas sendas tristes da morte. Fazia

mais de um mês que a esposa havia demandado, igualmente, os mistérios

do túmulo, em trágicas circunstâncias.

Mergulhado nas trevas do seu exílio de amargores e profundas

saudades, o orgulhoso patrício serenava as inquietações dolorosas do dia,

a fim de melhor consultar os mistérios do ser, do sofrimento e do destino...

Em dado instante, quando mais fundas e melancólicas as penosas

reminiscências, notou, através do véu de suas lágrimas, que a pequena

cruz de madeira como que emitia delicados fios de luz prateada, qual se

fôra banhada de luar misericordioso e brando.

Públio Lentulus, absorto nas vibrações pesadas e obscuras da

carne, não viu a nobre silhueta de sua mulher, que ali se encontrava junto

do venerável apóstolo da Samaria, regozijando-se no Senhor, ao verificar

as profundas e benéficas modificações espirituais da alma gêmea da sua,

na peregrinação iterativa das encarnações terrenas. Tomada de alegria e

reconhecimento para com a Providência Divina, Lívia beijou-lhe a fronte

num transporte de indefinível ternura, enquanto Simeão erguia aos céus

uma prece de amor e agradecimento.

360

ROMANCE DE EMMANUEL

O senador não lhes percebeu, diretamente, a presença suave e

luminosa, mas no íntimo dalma sentiu-se tocado por uma força nova, ao

mesmo tempo que o seu coração dilacerado se viu envolto na luz cariciosa

de uma consolação inefável e até então desconhecida.

361

VII

Teias do infortúnio

Parecia que o ano 58 estava destinado a assinalar os mais penosos

incidentes para a vida do senador Lentulus e a de sua família.

A morte de Calpúrnia e o falecimento inesperado de Lívia, dolorosos

acontecimentos que impuseram à casa um luto permanente, obrigaram

Plínio Severus a conchegar-se um pouco mais ao ambiente doméstico,

onde instituíra uma trégua aos seus desatinos de homem ainda novo, para

viver em relativa calma ao lado da esposa.

Aurélia, contudo, na violência de suas pretensões, não descansava.

Conseguindo introduzir uma serva astuta junto de Flávia, de conformidade

com antigo projeto da sua mentalidade doentia, iniciou a sinistra execução

de um plano diabólico, no sentido de envenenar, vagarosamente, a rival

retraída e desditosa.

A princípio, observou a filha do senador que lhe surgiam algumas

erupções cutâneas que, consideradas de somenos importância, foram

tratadas tão somente à pasta de miolo de pão misturado ao leite de

jumenta, medicamento havido na época como específico dos mais eficazes

para a conser362

ROMANCE DE EMMANUEL

vação da pele. A esposa de Plínio, todavia, queixava-se incessantemente

de fraqueza geral, apresentando o mais profundo desânimo.

Quanto a Plínio, o retomar a normalidade da vida pública e entregarse,

de novo, ao violento amor de Aurélia, foi questão de poucos dias,

regressando à vida espetaculosa, com a amante e, agora, com a situação

sentimental muito agravada pelas caluniosas denúncias de Saul, acerca

das relações afetuosas de Agripa com a esposa.

Plínio Severus, embora generoso, era impulsivo: no regime familiar,

seu espírito era o desses tiranos domésticos, que, adotando a conduta

mais desregrada e incompreensível, não toleram a mínima falta no

santuário da família. A despeito de sua orientação errônea e condenável,

passou a vigiar constantemente o irmão e a esposa, com a feroz

impulsividade do leão ofendido.

Saul de Gioras, por sua vez, despeitado com a sublime e fraternal

afeição entre Flávia e Agripa, não perdia ensejo para envenenar o coração

impetuoso do oficial, levando-lhe as calúnias mais torpes e injustificáveis.

Agripa, na sua generosidade e no seu sentimentalismo, não podia

adivinhar as ciladas que o enredavam na vida comum e prosseguia com a

preciosa atenção de sua amizade, junto da mulher que não podia amá-lo

senão com sublimado amor fraterno.

O ex-escravo dos Severus não perdia, contudo, as esperanças.

Procurando freqüentemente o velho Araxes, que aumentava de cupidez e

ambição à medida que se lhe multiplicavam os anos, aguardava

ansiosamente o instante de realizar sua apaixonada aspiração.

Observando que Flávia Lentúlia dispensava funda afeição a Agripa,

não trepidou em ver sinceramente nos seus menores gestos uma prova de

amor intenso e correspondido, procurando insinuar-se por todos os

modos, a fim de captar-lhe, igualmente, o interesse e a atenção.

363

HÁ DOIS MIL ANOS...

Uma noite, depois de mais de dois meses de expectativa ansiosa

para atingir seus fins ignóbeis, conseguiu aproximar-se da jovem senhora,

quando sozinha, ela repousava em largo divã do espaçoso terraço.

Do alto, contemplavam-se os mais belos panoramas da cidade,

então clareada pelo brilho das primeiras estrelas, na languidez suave do

crepúsculo. As brisas cariciosas da tarde tranqüila traziam sons de

alaúdes e harpas, tangidos nas vizinhanças, como se fossem vozes

harmoniosas do seio imenso da noite.

Saul fixou a mulher cobiçada, observando-lhe o formoso e delicado

semblante de madona, de uma palidez de neve, sob o domínio de um

langor doentio e inexplicável!... Aquela criatura representava o objeto de

todas as suas aspirações violentas e rudes, a meta da sua felicidade

impossível e impetuosa. Na materialidade dos seus sentimentos, não a

podia amar como se fôra um irmão, e sim com a brutalidade dos seus

impuros desejos.

- Senhora - disse resoluto, depois de fitar-lhe o rosto

demoradamente -, há muitos anos espero um minuto como este, para

poder confessar-vos a enorme afeição que vos dedico. Quero-vos acima

de tudo, até da própria vida! Sei que para mim estais num plano

inacessível, mas, que fazer, se não consigo dominar esta adoração, este

intenso amor de minhalma?

Flávia abriu desmesuradamente os olhos serenos e tristonhos,

tomada de penosa surpresa...

- Senhor Saul - revidou corajosamente, triunfando da sua emoção -,

serenai vosso ânimo... Se me tendes tamanha afeição, deixai-me no

caminho dos meus deveres, onde precisa conservar-se toda mulher ciosa

da sua virtude e do seu nome! Calai, portanto, vossas emoções neste

sentido, porque o amor que me confessais não pode passar de um desejo

violento e impuro!...

364

ROMANCE DE EMMANUEL

- Impossível, senhora! - ajuntou o liberto, desesperado. - Já fiz tudo

para esquecer-vos... Tenho feito tudo que era possível para afastar-me

definitivamente de Roma, desde o dia infausto em que vos vi pela primeira

vez!... Regressei para Massília decidido a nunca mais voltar, porém, quanto

mais me apartava da vossa presença, mais se me enchia a alma de tédio e

de amargura! Fixei-me aqui, novamente, onde tenho vivido da minha

desventura e das minhas tristes esperanças!... Por mais de dez anos,

senhora, tenho esperado pacientemente. Sempre tributei respeito às

vossas indiscutíveis virtudes, aguardando que um dia vos cansásseis do

esposo infiel que o destino colocou, impiedosamente, no vosso

caminho!...

Agora, pressinto que esgotastes o cálice das amarguras domésticas,

porque não hesitastes em ceder ao afeto de Agripa... Desde que vos vi na

companhia de um homem que não é o vosso marido, tremo de ciúmes,

porque sinto que fostes talhada apenas para mim... Ardo em zelos,

senhora, e todas as noites sonho intensamente com os vossos carinhos e

com a doce ternura de vossas palavras, que me enchem a alma toda, como

se de vós tão somente dependesse toda a felicidade da minha vida!...

Atendei aos apelos da minha afeição interminável! Não me façais

esperar mais tempo, porque eu poderia morrer!...

Flávia Lentúlia ouvia-o, agora, entre surpreendida e aterrada. Quis

levantar-se, mas, faltou-lhe o ânimo preciso. Mesmo assim, teve a coragem

necessária para responder-lhe:

- Enganais-vos! - entre mim e Agripa existe apenas uma afeição

santificada e pura, de irmãos que se identificam nas provações e nas lutas

da vida.

Não aceito as vossas insinuações acrimoniosas à vida particular de

meu marido, porque, tenha

365

HÁ DOIS MIL ANOS...

ele a conduta que lhe aprouver na existência, eu devo ser a sentinela do

seu lar e a honra do seu nome...

Se puderdes compreender o respeito devido a uma mulher, retiraivos

daqui, porque os vossos propósitos de traição me causam a mais

funda repugnância!

- Deixar-vos? Nunca!... exclamou Saul, com terrível entono. -

Esperar tantos anos e nada conseguir? Nunca, nunca!...

E avançando para a senhora indefesa, que se levantara num esforço

supremo, abraçou-lhe o busto, em ânsias apaixonadas, retendo-a nos

braços impulsivos, por um rápido minuto.

Saul, todavia, na sua excitação e terrível impulsividade, não teve

ânimo para resistir à força sobre-humana com que a pobre senhora se

defendeu naquele transe penoso para a sua alma sensível, e perdeu a

presa que se lhe escapou inopinadamente das mãos criminosas, descendo

imediatamente aos seus aposentos, onde se recolheu, chorando as

lágrimas da sua dignidade ofendida, mas evitando qualquer nota

escandalosa sobre o incidente.

Só no dia seguinte, à noite, Plínio Severus regressou a casa,

encontrando a esposa desalentada e abatida.

Censurando-lhe a ausência, na intimidade conjugal, o esposo infiel

respondeu-lhe secamente:

- Mais uma cena de ciúmes? Bem sabes que isso é inútil!

- Plínio, meu querido - esclareceu entre lágrimas -, não se trata de

ciúme, mas da justa defesa de nossa casa!...

E, em rápidas palavras, a desventurada criatura o pôs ao corrente de

todos os fatos; todavia, o oficial esboçou um sorriso de incredulidade,

acentuando com certa indiferença:

- Se esta longa história é mais um artifício de mulher ciumenta, para

me reter na insipidez do ambiente doméstico, todo o esforço é

dispensável,

366

ROMANCE DE EMMANUEL

porque Saul é o meu melhor amigo. Ainda ontem, quando me encontrava

em sérias aperturas financeiras para resgatar algumas dívidas, foi ele

quem me emprestou oitocentos mil sestércios. Seria melhor, portanto, que

prezasses mais alto a honra do nosso nome, abandonando as tuas

relações com Agripa, já excessivamente comentadas, para que eu alimente

qualquer dúvida!

E, assim falando, retirou-se novamente para os prazeres da vida

noturna, enquanto a consorte sofria, em silêncio, o seu inominável martírio

moral, sentindo-se abandonada e incompreendida, sem qualquer

esperança.

Alguns dias correram lentos, amargos, dolorosos.

Flávia, dado o seu natural retraimento feminino, não teve coragem

de confiar ao pai, já de si tão acabrunhado pelos golpes da vida, a sua

enorme desdita.

Agripa, observando-lhe o abatimento, buscava confortar-lhe o

coração com generosas palavras, examinando as perspectivas de

melhores dias no porvir.

A pobre senhora, todavia, definhava a olhos vistos, sob o domínio

das moléstias inexplicáveis que lhe dominavam os centros de força e sob

a tortura íntima dos seus penosos segredos.

Saul de Gioras, como se tivesse todos os seus instintos açulados

por aquele minuto em que tivera entre os braços impetuosos a mulher dos

seus desejos impulsivos, jurava, intimamente, possuí-la a qualquer preço,

enchendo-se dos mais terríveis propósitos de vingança contra o filho mais

velho de Flamínio. Foi assim que continuou a freqüentar o palácio do

Aventino, tomado das intenções mais sinistras.

Respeitando as antigas tradições da família Severus, que sempre

fizera questão de proporcionar àquele liberto um perfeito tratamento de

amigo íntimo, Públio Lentulus, embora a pouca simpatia

367

HÁ DOIS MIL ANOS...

que lhe inspirava, concedia-lhe o máximo de liberdade na sua residência,

sem de leve suspeitar dos seus propósitos condenáveis. Agora, Saul não

buscava a intimidade da família nem procurava avistar-se, de modo algum,

com a esposa de Plínio ou com o pai, conservando-se na companhia dos

servos da casa ou permanecendo nos aposentos particulares de Agripa ou

do irmão, que nunca lhe haviam negado a mais sincera confiança.

Da sua permanência nas sombras, todavia, procurava observar os

mínimos gestos do irmão mais velho de Plínio, que, atendendo à situação

de abatimento de Flávia Lentúlia, se conservava horas a fio, muitas vezes,

em companhia do velho senador, nos seus apartamentos privados, ora

prolongando as suas tristes esperanças no futuro, com a possível

compreensão do irmão, ora dando-lhe a conhecer os versos mais

admirados da cidade, comentando-se, fraternalmente, as bagatelas

encantadoras da vida social.

Diariamente, contudo, o sicofanta Saul procurava o marido de Flávia,

para colocá-lo ao corrente de fatos injustificáveis e inverossímeis, a

respeito da vida íntima de sua mulher.

Plínio Severus dava todo o crédito aos desarrazoamentos do falso

amigo, afervorando cada vez mais sua dedicação a Aurélia, que lhe

empolgava o coração, assediado e enceguecido pelas mais torpes

tentações da vida material.

Envenenado pelas intrigas criminosas e reiteradas de Saul,

licenciara-se o oficial, de modo a realizar uma viagem às Gálias, com a

amante, por satisfazer-lhe caprichosos desejos há muito manifestados.

No dia da partida para Massília, de onde pretendia demandar o

interior da província, foi procurado por Saul na residência de Aurélia, a

qual ficava próxima do Fórum, ouvindo-lhe, em febre de ódio, as mais

tremendas assacadilhas, terminadas com esta aleivosa sugestão:

368

ROMANCE DE EMMANUEL

- Se quiseres verificar por ti mesmo a traição de Agripa e tua mulher,

volta hoje à noite, furtivamente, a tua casa e busca penetrar

inesperadamente no teu quarto. Não precisarás, então, dos zelos da minha

dedicação amiga, porque encontrarás teu irmão em atitudes decisivas.

Naquele momento, Plínio Severus ultimava os preparativos de

viagem, tendo mesmo, pela manhã, apresentado suas despedidas em

casa, aos mais íntimos familiares; para justificar os imperativos de sua

ausência, alegara determinações expressas da chefia de suas atividades

militares, embora fossem muito diversos os verdadeiros e inconfessáveis

motivos da partida.

Ouvindo, entretanto, as graves denúncias do liberto judeu, o oficial

preparou-se para enfrentar qualquer eventualidade, dirigindo-se, à noite,

para o palácio do Aventino, com o espírito atormentado por tigrinos

sentimentos.

O ex-escravo, porém, que planejara executar seus projetos

criminosos, nas suas intenções impiedosas e terríveis, postou-se, à

noitinha, cem a cumplicidade natural de todos os servidores da casa, nos

apartamentos particulares de Agripa, procedendo de tal modo que os

próprios escravos não poderiam atinar com a sua permanência nos

aposentos referidos.

À noite, Plínio Severus procurou a casa, inopinadamente, com

surpresa para alguns criados, que tinham ciência de suas despedidas e,

sem dizer palavra, enceguecido pelas calúnias injuriosas do falso amigo,

penetrou cautelosamente no gabinete da esposa, ouvindo a voz

despreocupada do irmão, embora não conseguisse identificar o que dizia.

Abrindo um pouco a cortina sedosa e delicada, viu Agripa nos seus

gestos de carinho íntimo e fraterno, acariciando as mãos de Flávia, com

um leve e doce sorriso.

Por muito tempo observou-lhes, ansioso, os menores gestos,

surpreendendo-lhes as recíprocas de369

HÁ DOIS MIL ANOS...

monstrações de suave estima fraternal, representados, agora, a seus olhos

cegos de ódio e ciúme, como os mais francos indícios de prevaricação e

adultério.

No auge da desesperação, abriu as cortinas num gesto brusco,

penetrando a câmara conjugal, como se fôra um tigre atormentado.

- Infames! - acentuou em voz baixa e enérgica, procurando evitar a

escandalosa assistência dos criados. - Então, é deste modo que

manifestam o respeito devido à dignidade do nosso nome?

Flávia Lentúlia, com os seus padecimentos físicos fundamente

agravados, fez-se pálida de neve, enquanto Agripa enfrentava o terrível

olhar do irmão, singularmente surpreendido.

- Plínio, com que direito me insultas desta forma? - perguntou ele

energicamente. - Saiamos daqui, imediatamente. Discutiremos as tuas

injuriosas interpelações no meu quarto. Aqui permanece uma pobre

criatura enferma e abandonada pelo esposo, que lhe humilha o nome e os

melindres com a vileza de um proceder criminoso e injustificável, uma

senhora que requer o nosso amparo e o nosso respeito!...

Os olhos de Plínio Severus fuzilavam de ódio, enquanto o irmão se

levantou serenamente, retirando-se para os seus aposentos, acompanhado

do oficial que fremia de raiva, agravada pela humilhação que lhe infligia a

calma superior do adversário.

Chegados, porém, aos aposentos de Agripa, o impulsivo oficial,

depois de numerosas acusações e reprimendas, explodia em exclamações

deste jaez:

- Vamos! Explica-te, traidor!... Então, lanças a lama da tua ignomínia

sobre o meu nome e te acovardas nesta serenidade incompreensível?!

- Plínio - disse ponderadamente Agripa, obrigando o interlocutor a

calar por alguns momentos -, é tempo de pores termo aos teus desatinos.

Como poderás provar semelhante calúnia contra mim, que sempre te

desejei o maior bem? Qual370

ROMANCE DE EMMANUEL

quer comentário menos digno, acerca da conduta de tua mulher, é um

crime imperdoável. Falo-te, nesta hora grave dos nossos destinos,

invocando a memória irrepreensível de nossos pais e o nosso passado de

sinceridade e confiança fraterna...

O impetuoso oficial quase se imobilizara, como um leão ferido,

ouvindo essas ponderações superiores e calmas, enquanto Agripa

continuava a externar suas impressões mais íntimas e mais sinceras:

- E agora - prosseguia com serenidade -, já que reclamas um direito

que nunca cultivaste, em vista da sucessão interminável dos teus

desatinos na vida social, devo afirmar-te que adorei tua mulher acima de

tudo, em toda a vida!... Quando gastavas a tua mocidade junto do espírito

turbulento de Aurélia, vimos Flávia, na sua juventude, pela primeira vez,

logo após o seu regresso da Palestina e descobri nos seus olhos a

claridade afetuosa e terna que deveria iluminar a placidez do lar que eu

idealizei nos dias que se foram!... Mas, descobriste, simultaneamente, a

mesma luz e eu não hesitei em reconhecer os direitos que te cabiam no

coração, porque ela correspondeu à intensidade do teu afeto, parecendome

unida a ti pelos laços indefiníveis de santificado mistério!. . . Flávia te

amava, como sempre te amou, e a mim só competia esquecer, buscando

ocultar as minhas ansiedades torturantes e angustiosas!...

Ao ensejo do teu casamento, não resisti vê-la partir nos teus braços

e, depois de ouvir a palavra materna, amorosa e sábia, demandei outras

terras com o coração esfacelado! Por dez anos amargurosos e tristes,

peregrinei entre Massília e a nossa propriedade de Avênio, em aventuras

loucas e criminosas. Nunca mais pude acarinhar a idéia da constituição de

uma família, atormentado constantemente pelas recordações da minha

desventura silenciosa e irremediável.

371

HÁ DOIS MIL ANOS...

Ultimamente, voltei a Roma com os derradeiros resquícios da minha

ilusão dolorosa e malograda...

Encontrei-te no abismo das afeições ilícitas e não te exprobrei os

deslizes injustificáveis.

Sei que gastaste três quartas partes dos nossos bens comuns,

satisfazendo a louca prodigalidade de tuas aventuras infelizes e

degradantes, e não te censurei o procedimento insólito.

E aqui, nesta casa, sob este teto que constitui para nós ambos o

prolongamento carinhoso do teto paternal, não tenho sido para a tua nobre

mulher senão um irmão dedicado e amigo!...

Vendo-se acusado, claramente, por suas faltas e sentindo-se ferido

nas suas vaidades de homem, Plínio Severus reagiu com mais ferocidade,

exclamando exaltadamente na sua desesperação:

- Infame, é inútil aparentares esta superioridade inacreditável!

Somos iguais, nos mesmos sentimentos, e não creio na tua dedicação

desinteressada nesta casa. Há muito tempo vives com Flávia,

ostensivamente, em aventuras criminosas, mas resolveremos, agora, toda

a nossa questão pela espada, porque um de nós deve desaparecer!...

E, arrancando a arma de que fôra munido para qualquer

eventualidade, avançou decididamente para o irmão, que cruzou os

braços, serenamente, esperando-lhe o golpe implacável.

- Então, onde se encontram os teus brios de homem? - exclamou

Plínio, exasperado. - Esta serenidade expressa bem a tua covardia...

Coloca-te em defesa da vida, porque, quando dois irmãos disputam a

mesma mulher, um deles deve morrer!

Agripa Severus, porém, sorriu tristemente, retorquindo:

- Não retardes muito a consumação dos teus propósitos, porque me

prestarás o bem supremo da sepultura, já que a minha vida, com as suas

torturas de cada instante, nada mais representa que um caminho

escabroso e longo para a morte.

372

ROMANCE DE EMMANUEL

Reconhecendo-lhe a nobreza e o heroísmo, mas acreditando na

infidelidade da mulher, Plínio guardou novamente a espada, exclamando:

- Está bem! Eu podia eliminar-te, mas não o faço, em consideração à

memória de nossos pais inesquecíveis; todavia, continuando a acreditar

na tua infâmia, partirei daqui para sempre, levando no íntimo a certeza de

que tenho em teu espírito de traidor o meu maior e pior inimigo.

Sem mais palavra, Plínio retirou-se a passos largos, enquanto o

irmão, caminhando até à porta, lançava-lhe um derradeiro apelo afetuoso,

para que não se fosse.

Alguém, todavia, acompanhara a cena, detalhe por detalhe. Esse

alguém era Saul que, saindo do seu esconderijo e apagando

inopinadamente a luz do quarto, alcançou Agripa num salto certeiro, pelas

costas, vibrando-lhe violento golpe. O pobre rapaz caiu redondamente

numa poça enorme de sangue, sem que lhe fosse possível articular uma

palavra. Em seguida ao ato criminoso, fugiu o liberto, afetando

despreocupação, sem que ninguém pudesse atinar com a dolorosa

ocorrência.

No seu quarto, porém, Flávia Lentúlia se surpreendia com a demora

da solução de um caso em que se via envolvida e também considerado,

por ela, à primeira vista, como um acontecimento sem importância.

Levantou-se, depois de considerável esforço, dirigindo-se à porta

que comunicava os apartamentos de Agripa com o peristilo, mas,

surpreendida com a escuridão e silêncio reinantes, apenas escutou, vindo

do interior, um leve rumor, semelhante aos sons roucos de uma respiração

fatigada e opressa.

Dominada por dolorosos pressentimentos, a desventurada criatura

sentiu bater-lhe o coração descompassadamente.

A ausência de luz, aquele ruído de respiração estertorosa e,

sobretudo, o profundo e pavoroso silêncio, fizeram-na recuar, buscando o

socorro e a

373

HÁ DOIS MIL ANOS...

experiência de Ana, que lhe conquistara igualmente o coração, pela

dedicação e pela humildade, em todos os dias daquele amargurado

período da sua existência.

Gozando do respeito e da estima de todos, a velha criada de Lívia

era, agora, quase a governanta da casa, a quem, por determinação dos

senhores, todas as escravas do palácio do Aventino deviam obediência.

Chamada por Flávia aos seus aposentos particulares, a velha

servidora dos Lentulus, depois de ouvir a apressada confidência da

senhora, compartilhando-lhe os receios, acompanhou-a ao quarto de

Agripa, em cuja porta de entrada também parou, pensativa, embora já não

mais se ouvisse a respiração opressa, observada minutos antes pela

esposa de Plínio.

- Senhora - disse afetuosa -, estais abatida e ainda necessitais de

repouso. Voltai ao quarto; se algo houver que justifique os vossos receios,

procurarei resolver o assunto junto de vosso pai. a quem cientificarei do

que houver, lá no seu gabinete particular.

- Agradecida, Ana - respondeu a senhora, visivelmente emocionada -

, concordo contigo, mas esperarei aqui no peristilo o resultado de tuas

providências.

Com uma prece, a antiga criada penetrou no aposento, fazendo uni

pouco de luz e parando o olhar, quase estarrecida.

No tapete, o cadáver de Agripa Severus, caído de borco, descansava

numa poça de sangue, que ainda corria do profundo ferimento aberto pela

arma homicida de Saul.

Ana precisou mobilizar todas as reservas de serenidade da sua fé,

para não gritar escandalosamente, alarmando a casa inteira. Ela, porém,

que tantos padecimentos havia já experimentado em todo o curso da vida,

não tinha grande dificuldade em juntar mais uma nota angustiosa ao

concerto de

374

ROMANCE DE EMMANUEL

suas amarguras, sofridas sempre com resignação e serenidade.

Todavia, sem poder dissimular a angústia e a profunda palidez,

voltou novamente ao peristilo, exclamando algo inquieta, para Flávia

Lentúlia, que lhe observava os mínimos gestos, ansiosamente.

- Senhora, não vos assusteis, mas o senhor Agripa está ferido...

E aos primeiros movimentos de curiosidade angustiosa da filha do

senador, a qual se lembrava da profunda desesperação do esposo,

momentos antes, Ana acalmou-a com estas palavras:

- Não temos tempo a perder! Procuremos o senador, para as

primeiras providências; contudo, suponho que devo cuidar sozinha dessa

tarefa, aconselhando-vos a buscar a tranqüilidade do vosso quarto.

Mas, silenciosas e inquietas, dirigiram-se as duas apressadamente

ao gabinete de Públio, absorvido em numerosos processos políticos, no

seio tranqüilo da noite.

- Agripa, ferido?! - perguntou altamente surpreendido o senador,

depois de se inteirar da ocorrência pela palavra de Ana. - Mas, quem teria

sido o autor de semelhante atentado nesta casa?

- Meu pai - respondeu Flávia, entre lágrimas -, ainda há pouco, Plínio

e Agripa tiveram séria altercação no interior dos meus aposentos!...

Públio Lentulus percebeu o perigo das palavras confidenciais da

filha, em tais circunstâncias, e, como não podia acreditar que os filhos de

Flamínio, sempre tão unidos e generosos, fossem ao extremo das armas,

acentuou decisivamente:

- Minha filha, não acredito que Plínio e Agripa se abalançassem a

tais extremos.

E como estivessem na presença de Ana, que por mais conceituada

que fosse, agora, na sua confiança pessoal, não podia modificar a

estrutura de suas rígidas tradições familiares, acrescentou, como se

quisesse prevenir o espírito da filha contra qual375

HÁ DOIS MIL ANOS...

quer revelação inconveniente que pudesse envolver o seu nome em

escândalos sociais irremediáveis:

- Além disso, não me pareces muito certa em tuas lembranças,

porque Plínio se despediu de manhã, seguindo viagem para Massília. Não

podemos esquecer esta circunstância.

Não se viu algum desconhecido nesta casa?

- Senhor - respondeu Ana, com humildade -, há alguns minutos vi

que o senhor Saul se retirava apressado lá do quarto do ferido. De acordo

com as minhas observações e atenta à sua familiaridade com os vossos

amigos, suponho-o pessoa indicada para nos dar qualquer esclarecimento.

Os olhos do velho senador brilharam estranhamente, como se

houvesse encontrado a chave do enigma.

Nesse instante, porém, enquanto organizava os seus papéis,

apressadamente, a fim de prestar os primeiros socorros ao ferido, Flávia

Lentúlia, corno se as observações de Ana lhe suscitassem novas

explicações, rompeu soluçante.

- Meu pai, meu pai, só agora me recordo de que vos deveria

cientificar de coisas muito graves!...

- Filha - acudiu com decisão -, estás doente e fatigada. Recolhe-te ao

quarto, procurarei a tudo remediar!... É muito tarde para qualquer

ponderação. As coisas graves são sempre más e o mal que não se corta

pela raiz, com o esclarecimento oportuno, é sempre uma semente de

calamidade guardada em nosso coração, para rebentar em lágrimas de

amarguras, nas horas inesperadas da vida!... Falaremos, pois, mais tarde.

Cumpre, agora, providenciar o que seja mais urgente e necessário.

Retirando-se apressado, com a serva, em demanda dos apartamentos do

rapaz, notou que Flávia obedecia, sem discussão, às suas determinações,

recolhendo-se ao quarto.

376

ROMANCE DE EMMANUEL

Penetrando nos aposentos de Agripa, em companhia da velha serva,

Públio Lentulus conseguiu medir toda a extensão da tragédia ali

desenrolada, sob o seu teto respeitável.

Fechando a porta de acesso, o senador verificou que o filho mais

velho do seu inesquecível Flamínio estava morto, restando saber os

íntimos detalhes daquele drama doloroso, cujo fim sangrento era a única

cena que ali se deparava.

Ajoelhando-se ao lado do cadáver, no que foi acompanhado pela

serva e amiga leal, falou compungidamente:

- Ana, é muito tarde!... O meu pobre Agripa já não vive, nem haveria

possibilidade de socorro para um ferimento desta natureza!... Parece haver

expirado há poucos momentos!...

Alçando ao Alto o olhar marejado de lágrimas, exclamou

amarguradamente:

- Ó manes de meu desventurado filho, acolhei as nossas súplicas

pelo descanso perpétuo de sua alma!...

Todavia, aquela prece morrera-lhe no íntimo. A voz tornara-se-lhe

frouxa e oprimida. Aquele espetáculo hediondo abalara-o profundamente.

Queria falar, sem o conseguir, porquanto tinha a garganta como que

dilacerada e rebelde, sob a força dos singultos do coração, que lhe

morriam latentes na soledade da imperiosa fortaleza espiritual.

Ana o contemplou aflita, porque seus olhos nunca o haviam

observado em atitudes tão íntimas, em todo o longo tempo de serviço

naquela casa.

Públio Lentulus, aos seus olhos, era sempre o homem frio e

impiedoso, em cujo peito pulsava um coração de ferro, que não podia

vibrar senão para as loucas vaidades mundanas.

Naquele instante, contudo, entre assustada e comovida, observava

que também o senador tinha lágrimas para chorar. De seus olhos sempre

altivos, caíam lágrimas ardentes, que rolavam, silenciosas e tristes, sobre

a cabeça inerte do rapaz, também con377

HÁ DOIS MIL ANOS...

siderado por ele um filho, como se nada mais lhe restasse, além do

consolo supremo de abraçar carinhosamente os seus despojos, através do

véu escuro de suas dúvidas angustiosas.

Ana, profundamente tocada pela amargura daquela cena íntima,

exclamou com humildade, desejosa de confortar a dor imensa daquele mal

sem remédio:

- Senhor, tenhamos coragem e serenidade. Nas minhas orações

obscuras, sempre peço ao profeta de Nazaré que vos ampare do céu,

confortando-vos o coração sofredor e desalentado!

O pensamento do senador vagava no dédalo das dúvidas

tenebrosas. Cotejando as observações da filha e as palavras de Ana,

buscava descobrir no íntimo, a intuição sobre a culpabilidade do delito. A

qual dos dois, Plínio ou Saul, deveria imputar a autoria do atentado

nefando? Ele, que decidira tantos processos difíceis na sua vida, ele, que

era senador e não perdia também ensejo de participar dos esforços da

edilidade romana, sentia agora a dor suprema de exercer a justiça em sua

própria casa, na perspectiva da destruição de toda a ventura dos seus

filhos muito amados!...

Ouvindo, porém, as expressões consoladoras da serva, recordou a

figura extraordinária de Jesus Nazareno, cuja doutrina de piedade e

misericórdia a tantos fortalecia para afrontar as situações mais ríspidas da

vida, ou para morrer, heroicamente, como sua própria mulher. Dirigindose,

então, à criada, com intimidade imprevista, em gesto comovedor de

simplicidade generosa, qual a serva jamais lhe observara, em qualquer

circunstância da vida doméstica, disse:

- Ana - nunca deixei de ser um homem enérgico, em toda a vida, mas

chega sempre um momento em que o nosso coração se sente

acabrunhado diante da rudeza das lutas que o mundo nos oferece com as

suas desilusões amargas e doloro378

ROMANCE DE EMMANUEL

sas! Se és tão somente uma serva, eu sei hoje apreciar-te o coração,

embora tardiamente!...

Uma lágrima espontânea embargava-lhe a voz, porém o velho

patrício continuava:

- Em toda a minha existência, tenho julgado uma imensidade de

processos de várias naturezas, relativos à justiça do mundo; mas, de

tempos a esta parte, parece-me que estou sendo julgado pela força

incoercível de uma justiça suprema, cujos tribunais não se encontram na

Terra!...

Desde a morte de Lívia, sinto o coração modificado, a caminho de

uma sensibilidade, para mim, até então desconhecida.

A aproximação da velhice parece um prenúncio da morte de todos

os nossos sonhos e esperanças!...

Diante deste cadáver, que, certamente, vai aumentar a sombra dos

nossos segredos de família, sinto quão dolorosa é a tarefa de justificar os

nossos entes amados; e, já que te referes ao Mestre de Nazaré, cuja

doutrina de paz e fraternidade a tantos tem ensinado a morrer com

resignação e heroísmo supremos, pela vitória da cruz dos seus martírios

terrestres, como procederia ele num caso destes, cm que as mais

tremendas dúvidas me pairam no coração, quanto à culpabilidade de uni

filho muito amado?

- Senhor - respondeu Ana, com humildade, fundamente comovida

ante aquela prova de consideração e afeto -, muitas vezes Jesus nos

ensinou que jamais devemos julgar, para não sermos também julgados.

O senador se surpreendia, ao receber, de uma criatura tão simples e

tão inculta aos seus olhos, essa maravilhosa síntese da filosofia humana,

repassando, no espírito, o seu doloroso pretérito.

- Mas - aventou, como se quisesse justificar-se a si mesmo dos erros

profundos do seu passado de homem público - os que não julgam

perdoam e esquecem; e, se mandam as leis da vida

379

HÁ DOIS MIL ANOS...

que sejamos agradecidos ao bem que se nos faça, não podemos perdoar

ao mal que se nos atira no caminho!...

Ana, porém, não perdeu o ensejo de consolidar o ensinamento

evangélico, acrescentando com doçura:

- Mesmo na minha terra, a Lei antiga mandava que se cobrasse olho

por olho e dente por dente, mas Jesus de Nazaré, sem destruir a essência

dos ensinos do Templo, esclareceu que os que mais erram no mundo são

os mais infelizes e mais necessitados do nosso amparo espiritual,

recomendando, na sua doutrina de amor e caridade, não perdoássemos

uma vez só, mas setenta vezes sete vezes.

Públio Lentulus admirava-se de aprender aqueles generosos

conceitos da sua criada, dentro dos princípios do perdão irrestrito.

Perdoar? Nunca o fizera em suas porfiadas lutas no mundo. Sua educação

não admitia piedade ou comiseração para os inimigos, porque todo perdão

e toda humildade significavam, para os de sua classe, traição ou covardia.

Lembrava-se, porém, agora, de que em numerosos processos

políticos poderia haver perdoado e que, em muitas circunstâncias da sua

vida, poderia ter fechado os olhos da sua severidade com amoroso

esquecimento.

Sem saber a razão, como se uma energia ignorada lhe reconduzisse

o pensamento aos tempos idos, suas lembranças se transportaram ao

período remoto de sua viagem à Judeia, revendo com os olhos da

imaginação a cena em que, com o seu rigorismo, escravizara

impiedosamente um mísero rapaz. Sim, também aquele jovem se chamava

Saul e ele trazia agora o cérebro ralado por dúvidas atrozes, entre aquele

Saul, liberto dos seus amigos, e a figura de Plínio, sempre guardada no

seu conceito num halo de amor e generosidade.

Perdoar?

380

ROMANCE DE EMMANUEL

E o pensamento do senador se quedava em meditações amargas e

penosíssimas, naqueles minutos angustiados e longos. Era, talvez, uma

das poucas vezes na vida, em que o seu cérebro duvidava, receoso de

fazer cair a austeridade do julgamento sobre a fronte de um filho muito

querido.

Mas, saindo dessa apatia de alguns minutos, exclamou com

resolução:

- Ana, o profeta Nazareno devia ser, de fato, uma figura divina aqui

na Terra!... Eu, porém, sou humano e careço de forças novas para viver

uma existência fora de minha época... Quero perdoar e não posso... Quero

julgar neste caso e não sei como fazê-lo. .. Mas, hei-de saber decidir,

quanto à solução deste terrível problema! Farei o possível por observar os

preceitos do teu mestre, guardando uma atitude de silêncio, até que venha

a conhecer o verdadeiro culpado, quando, então, buscarei não julgar como

os homens, mas pedir a essa justiça divina que se manifeste, amparando

meus pensamentos e esclarecendo os meus atos...

E como se retomasse a sua energia usual para as lutas da vida, o

velho patrício sentenciou:

- Agora, tratemos da vida nas suas realidades dolorosas.

Colocou o cadáver de Agripa no leito, e, recomendando à serva que

preparasse o espírito da filha, amparando-lhe o coração no angustioso

transe, abriu as portas do aposento, requisitou a presença de todos os

fâmulos da casa, levando a ocorrência ao conhecimento das autoridades e

procedendo, simultaneamente, a rigoroso inquérito, a fim de apurar a

procedência do crime, embora um episódio daquela natureza fosse

considerado vulgaríssimo nos dias atribulados da Roma de Domício Nero.

Alguns criados alegavam ter visto Plínio Severus com o irmão,

durante a noite; mas a palavra do senador anulava-lhes as informações,

com a afirmativa de que o irmão da vítima havia partido, durante o dia, em

demanda do porto de Massília.

381

HÁ DOIS MIL ANOS...

Saul era, desse modo, a pessoa naturalmente indicada para prestar

declarações e, antes mesmo que se realizassem as cerimônias fúnebres, o

senador, interrogando-o particularmente, supunha ter razões para crer na

sua culpa, observando-lhe as evasivas e alusões descabidas, que não

satisfaziam às exigências da sua perquirição psicológica. Suas afirmações

e indiretas não coincidiam com asseverações incisivas de Ana, cuja

retidão de palavra ele bem conhecia. Em alguns tópicos de suas

informações, negou estivesse presente nos aposentos de Agripa e isso foi

o bastante para que o senador verificasse que mentia.

Quanto a Plínio, não fôra de fato encontrado, obtendo-se tão

somente a lacônica participação da sua partida para Massília, o que

realmente ocorrera na mesma noite da tragédia, depois da altercação

decisiva com o irmão, no palácio do Aventino.

E, assim, em companhia de Aurélia, demandava ele as Gálias, em

suntuosa galera, singrando as águas calmas do antigo mar romano.

O senador, porém, apenas desejava ouvir melhor as confidências da

filha, para arrancar a confissão suprema do mísero liberto de Flamínio, de

cuja culpabilidade não tinha mais dúvida.

Procurou, dessarte, realizar com a maior discrição os funerais do

filho do seu inesquecível amigo, aos quais Saul de Gioras teve a

desfaçatez de assistir, com toda a serenidade venenosa do seu espírito

mesquinho.

Sob o efeito pernicioso de tóxicos letais, que lhe haviam sido

aplicado por Ateia, a serva traidora, paga por Aurélia, a qual, na sua

inconsciência, havia envenenado todos os cosméticos de uso da sua ama,

destinados ao tratamento da pele e dos cílios, Flávia Lentúlia tinha, agora,

todos os padecimentos físicos singularmente agravados, além da terrível

situação moral em face da penosa ocorrência e de seu acabrunhamento

por força de insolúveis dúvidas.

382

ROMANCE DE EMMANUEL

Aquele mal da infância parecia reviver, porque o corpo novamente se

abria em chagas dolorosas, enquanto os olhos pareciam seriamente

atacados de moléstia implacável.

Três dias depois das exéquias de Agripa, Públio Lentulus,

fundamente penalizado, ouviu-lhe o depoimento íntimo e angustioso, com

o máximo de atenção amorosa e interessada. Findo o relato minucioso da

filha, cujas desventuras conjugais lhe tocavam o âmago do coração, o

velho senador requereu novo interrogatório de Saul, com a sua presença,

mas, enviando emissário à procura do liberto de Flamínio, ficara atônito

com uma nova surpresa.

Saul de Gioras, depois de responder às argüições particulares de

Públio Lentulus, quando ainda não se haviam realizado os funerais de

Agripa Severus, percebeu claramente a atitude mental daquele para

consigo, concluindo que lhe não seria possível enganar o tato psicológico

do velho senador.

Dois dias após as cerimônias fúnebres, o liberto procurou Araxes no

seu miserável refúgio do Esquilino, com o espírito exacerbado e inquieto.

Crendo sinceramente nas intervenções maravilhosas do mago, à

vista das suas faculdades divinatórias, aproveitadas, aliás, por forças

tenebrosas do plano invisível, ligadas às suas sinistras ambições de

dinheiro, notou Saul que o adivinho o recebia com a misteriosa fleuma de

sempre. Deixou bem visível a volumosa bolsa, recheada, como a

demonstrar-lhe as ricas possibilidades financeiras, para aquisição do

talismã de sua ventura.

O velho feiticeiro, encarquilhado pelos anos, reconhecendo-lhe as

disposições generosas, desfazia-se em sorrisos de benevolência

ambiciosa e enigmática, parecendo devassar-lhe o olhar assustadiço e

inquieto, com seus olhos móveis e penetrantes.

- Araxes - exclamou Saul, com voz quase súplice -, estou cansado de

esperar o amor da

383

HÁ DOIS MIL ANOS...

mulher que adoro! Estou aflito e preocupado... Preciso serenar minhas

penosas aflições. Ouve-me! Quero de tuas mãos o talismã da felicidade

para o meu amor desventurado!..

O velho adivinho guardou por minutos a cabeça entre as mãos, no

gesto que lhe era peculiar e, depois, respondeu em voz quase sumida:

- Senhor, dizem-me as vozes do invisível que as vossas aflições não

são resultantes de um amor incompreendido e desesperado...

Mas o liberto de Flamínio, que sofria o mais fundo desespero de

consciência por haver eliminado um amigo e benfeitor, em plena floração

de juventude, cortou-lhe a palavra, exclamando incisivamente:

- Como ousas contradizer-me, feiticeiro infame?

Araxes, todavia, com um brilho estranho nos olhos buliçosos,

revidou com presteza:

- Julgais-me, então, um feiticeiro infame? Nem por isso, todavia,

deixarei de falar a verdade, quando a verdade me convenha.

- Pois repito o que disse! Mas, a que verdades misteriosas aludes em

tuas vagas afirmativas? - falou o liberto, fundamente exasperado.

- A verdade, meu amigo - dizia o mago, com serenidade quase

sinistra -, é que se estais tão perturbado é somente porque sois um

criminoso. Assassinastes, friamente, um benfeitor e um amigo, e a

consciência do celerado teme a implacável ação da justiça!

- Cala-te, miserável! Como o soubeste? - exclamou Saul,

excitadíssimo, ao mesmo tempo que arrancava o punhal de entre as

dobras do manto.

E avançando para o velho indefeso, acrescentava com voz

cavernosa:

- Já que as tuas ciências ocultas te proporcionam conhecimentos

perniciosos à tranqüilidade alheia, deves também desaparecer!...

384

ROMANCE DE EMMANUEL

Araxes compreendeu que o momento era decisivo. Aquele homem

arrebatado era capaz de eliminá-lo de um só golpe. Medindo a situação

num relance e movimentando toda a sua argúcia para conservar os bens

da vida, esboçou um sorriso fingido e complacente, exclamando:

- Ora, ora, se falei a verdade foi somente para poderdes avaliar os

meus poderes espirituais, porquanto, se é do vosso desejo, poderei

integrar-vos, imediatamente, na posse do necessário talismã. Com ele,

sereis profundamente amado pela mulher de vossas preferencias... Com

ele, modificareis os mais íntimos sentimentos dessa criatura que adorais e

que vos fará, então, a felicidade de toda a vida. Quanto ao mais, não sois o

primeiro a tirar a vida de um semelhante, porque todos os dias me

aparecem fregueses nas vossas condições, batendo a estas portas. Além

disso, entre nós deve existir grande confiança recíproca, porque sois meu

cliente há mais de dez anos.

Ouvindo-lhe as palavras benevolentes e serenas, o liberto de

Flamínio guardou novamente a arma, considerando novas perspectivas de

felicidade e concordando em tudo com o adivinho, que, fazendo-o sentarse,

lhe ocupou a atenção por mais de uma hora com a descrição de fatos

idênticos aos que lhe ocorriam, demonstrando teoricamente a eficiência

dos seus amuletos miraculosos. Ia a palestra em boa forma, quando Saul

lhe solicitou a entrega imediata do talismã, porquanto desejava

experimentar-lhe o efeito naquele mesmo dia, ao que Araxes respondeu

pressuroso:

- O vosso talismã está pronto. Posso entregar-vos essa preciosidade

agora mesmo, dependendo tão somente de vós mesmo, porque precisareis

beber o filtro mágico, que vos colocará na situação espiritual requerida

pelo cometimento.

Saul não fez questão de submeter-se às imposições do velho

egípcio, nas suas manobras estranhas e misteriosas, penetrando uma

câmara, orna385

HÁ DOIS MIL ANOS...

mentada de vários símbolos extravagantes, que lhe eram totalmente

desconhecidos.

Araxes levava a efeito as encenações mais sugestivas. Vestiu-lhe,

sobre a toga comum, larga túnica igual à sua e, depois de fingidas

posições de magia incompreensível, foi ao interior do pequeno laboratório,

onde tomou de um tóxico violento, monologando intimamente de si para

consigo: - "Vais receber o talismã que mais te convém neste mundo".

Deitou algumas gotas do perigoso filtro numa taça de vinho e, com

largos gestos espetaculosos, como se estivesse obedecendo a ritual

ignorado, deu-lhe a beber o conteúdo, prosseguindo nos gestos exóticos,

que eram bem as expressões pitorescas e sinistras de extravagante magia

de morte.

Ingerindo o vinho na melhor intenção de guardar o amuleto da sua

felicidade, o perigoso liberto sentiu que os membros se relaxavam sob o

império de uma força desconhecida e destruidora, porquanto lhe faltava a

própria voz para externar as emoções mais íntimas. Quis gritar, mas não o

conseguiu, e inúteis foram todos os esforços para levantar-se. Aos

poucos, os olhos turvaram-se lugubremente, como enevoados por sombra

espessa e indefinível. Desejou manifestar seu ódio ao mago assassino,

defender-se daquela angústia que lhe sufocava a garganta, mas a língua

estava hirta e um frio penetrante invadiu-lhe os centros vitais. Deixando

pender a cabeça sobre os cotovelos apoiados ao longo da mesa ampla,

compreendeu que a morte violenta lhe destruía todas as forças vivas do

organismo.

Araxes fechou tranqüilamente o quarto, como se nada houvesse

acontecido, e voltou à loja, atendendo solícito à clientela numerosa, sem

quebra da habitual serenidade.

Antes da noite, porém, penetrou na câmara mortuária e esvaziou a

bolsa do cadáver, guardando as moedas silenciosamente entre as suas

fartas reservas de avarento.

386

ROMANCE DE EMMANUEL

Depois das vinte e três horas, quando a cidade dormia, o velho

feiticeiro do Esquilino misturava-se aos escravos que faziam o serviço

noturno dos transportes, conduzindo uma pequena carroça de mão, dentro

da qual ia um grande volume.

Após longo trajeto, ganhava as cercanias do Fórum, entre o

Capitólio e o Palatino, onde descansou, esperando o derradeiro quarto da

madrugada, quando, então, despejou a carga num ângulo escuro da via

pública, voltando tranqüilamente para o seu sono de cada noite.

De manhã, o cadáver de Saul foi facilmente identificado e, quando o

senador buscava o liberto para declarações, recebeu a surpresa daquela

notícia, inquirindo a si mesmo as razões daquela morte imprevista e

estranha, aturdido com a entrosagem do mecanismo da justiça divina e

perguntando intimamente, à própria consciência, se Saul não seria

daqueles criminosos imediatamente justiçados pela lei das

compensações, no caminho infinito dos destinos.

Seu coração, mais que nunca inclinado ao exame das profundas

questões filosóficas, perdia-se num abismo de conjecturas, recordando a

recomendação do espírito de Flamínio e as elevadas lições de Ana,

calcadas no Evangelho: procurava, com a maior boa vontade resolver o

problema do perdão e da piedade. Desejoso de satisfazer a própria

consciência nas atividades da vida prática, buscou contrariar suas

tradições e costumes em face do acontecimento, e, dirigindo-se à

residência do algoz de seus filhos, tomou todas as providências para que

não lhe faltassem a decência e o respeito nas cerimônias fúnebres. Alguns

escravos e servos de confiança estavam habilitados a resolver todos os

problemas atinentes aos negócios deixados pelo morto, mas, cooperando

nas exéquias, Públio Lentulus se sentia satisfeito por vencer a aversão

pessoal, homenageando, ao mesmo tempo, a memória de FIamínio.

387

HÁ DOIS MIL ANOS...

Localizando-se com a nova companheira em Avênio, Plínio Severus

soube, por intermédio de amigos, da tragédia que se desenrolara em Roma

na noite de sua ausência, sendo igualmente cientificado das dúvidas

penosas que pairavam a seu respeito. Profundamente tocado nas suas

fibras emotivas, lembrando-se do irmão que, tantas vezes, lhe

testemunhara as mais altas provas de afeto, desejou regressar, de maneira

a esclarecer convenientemente o assunto, vingando-lhe a morte; todavia,

amolecido nos braços de Aurélia e receoso do julgamento do velho

senador, respeitado como um pai, além da suspeita que lhe causava a

notícia da inexplicável enfermidade da esposa, deixou-se ficar na sua vida

incompreensível, através de Avênio, Massília, Arelate, Antípolis e Nice,

buscando esquecer no vinho dos prazeres as grandes responsabilidades

que lhe cabiam.

Junto de Aurélia, a vida do oficial decorreu em tranqüilidade

condenável, por três longos anos, quando um dia teve a dolorosa surpresa

de encontrar a companheira pérfida e insensível nos braços do músico e

cantor Sérgio Acerronius, chegado a Massília com as ruidosas alegrias da

Capital do Império.

Nesse dia amargurado da sua existência, o filho de Flamínio investiu

sobre a mulher traidora, de arma na mão, disposto a tirar-lhe a vida

criminosa e dissoluta. No instante, porém, da sua desforra, considerou

intimamente que o assassínio de uma mulher, ainda que diabolicamente

perversa, não deveria entrar nos trâmites da sua vida, supondo ainda que,

deixá-la viver no caminho escabroso de suas crueldades, seria a melhor

vindita do seu coração traído e desventurado.

Abandonou, então, para sempre, aquela mísera criatura, que foi

eliminada mais tarde, em Âncio, pelo punhal implacável de Sérgio, que lhe

não tolerou a infidelidade e a pervicácia no crime.

388

ROMANCE DE EMMANUEL

Sentindo-se só, Plínio Severus considerou, amarguradamente, os

erros clamorosos da sua vida. Reviu o passado de futilidades condenáveis

e atitudes loucas. Quase pobre, viu-se misérrimo para voltar ao ambiente

romano, onde tantas vezes brilhara na mocidade, em aventuras pródigas e

felizes.

Debalde lhe enviara o senador apelos afetuosos. Chamado a brios

pelas lições dolorosas do próprio destino, o oficial, amparado por alguns

amigos de Roma, preferiu esforçar-se pela reabilitação nas cidades das

Gálias, onde permaneceria longos anos em trabalho silencioso e rude,

pelo reerguimento do seu nome diante dos parentes e amigos mais

íntimos.

Já entrado na idade madura, das profundas reflexões, grande lhe foi

o esforço de reabilitação, distante dos entes mais caros.

Quanto ao velho senador, resistiu, decididamente, dentro da sua

rígida estrutura espiritual, aos golpes aspérrimos do destino. Fazendo da

luta de cada dia o melhor caminho de esclarecimento, viu passar os anos

sem desânimo e sem ociosidade.

Desde os trágicos acontecimentos em que Agripa e Saul haviam

perdido a vida misteriosamente, com o abandono definitivo do marido,

Flávia Lentúlia tinha a saúde abalada para sempre. Na epiderme, os

venenos de Ateia haviam sido anulados e vencidos pelas substâncias

medicamentosas aplicadas, mas a luz dos seus olhos fôra aniquilada para

todo o sempre. Desalentada e cega, encontrou, porém, no coração

generoso de Ana, o carinho materno que lhe faltava em tão penosas

circunstâncias da vida.

A constituição física do senador, contudo, resistia a todos os

embates e infortúnios.

Entre os esforços de carinhosa assistência à filha e as lides políticas

que lhe tomavam o máximo de atenção, seus dias decorreram cheios de

lutas acerbas, mas silenciosos e tristes, como sempre. Em seu espírito,

havia agora as melhores e mais

389

HÁ DOIS MIL ANOS...

sinceras disposições para apreender a essência sagrada dos

ensinamentos do Cristianismo e foi assim que o seu coração penetrou o

crepúsculo da velhice, como se as sombras fossem clarificadas por

estrelas cariciosas e suaves. No seu íntimo, permanecia uma serenidade

imperturbável, mas, na vida do homem, corria o sopro inquieto do esforço

pelas realizações do seu tempo. O coração estava resignado com as

desilusões penosas e amargas do destino, mas no poder supremo do

Império estava um tirano, que precisava cair, em benefício das

construções do direito e da família; e por isso, junto de numerosos

companheiros, entregou-se ao trabalho sutil da política interna, para a

queda de Domício Nero, que prosseguia avassalando a cidade com os

espetáculos odiosos do seu nefando reinado.

Caius Pisão, Sêneca, bem como outras figuras veneráveis da época,

mais exaltadas no patriotismo e amor pela justiça, caíram sob as mãos

criminosas do celerado que cingia a coroa, mas Públio Lentulus, ao lado

de outros irmãos de ideal que trabalharam no silêncio e na sombra da

diplomacia secreta, junto dos militares e do povo, esperou pela morte ou

pelo banimento do tirano, aguardando as claridades do futuro, surgidas

com o efêmero reinado de Sérgio Sulpício Galba, que, no dizer de Tácíto,

teria sido por todos considerado digno do governo supremo do Império, se

não houvesse sido Imperador.

390

VIII

Na destruição de Jerusalém

Mais de dez anos correram, silenciosamente amargurados, depois

de 58, sobre a vida comum das personagens desta história.

Somente em 68, conseguira a política conciliatória de grande

número de patrícios, entre os quais Públio Lentulus, o definitivo

afastamento de Domício Nero e suas nefandas crueldades. Todavia, a

ascensão de Galba durara poucos meses e aquele ano de 69 ia definir

grandes acontecimentos na vida do império.

Lutas numerosas encheram a cidade de pavor e sangue.

A terrível contenda entre Otão e Vitélio dividira todas as classes da

família romana em facções hostis, que se odiavam ao extremo.

Afinal, a famosa batalha de Bedriaco dava o trono a Vitélio, que

instaurou novo círculo de crueldades em todos os setores políticos.

A diplomacia interna, porém, vigiava na sombra, examinando

atentamente a situação, de modo

391

HÁ DOIS MIL ANOS...

a não permitir a continuidade de novo surto de extermínio e de infâmia.

Vitélio apenas conservou o governo por oito meses e dias. porque,

no mesmo ano de 69, as legiões do território africano, trabalhadas pela

orientação sutil dos que haviam derribado Nero e seus asseclas,

proclamaram Vespasiano para a suprema investidura do Império. O novo

imperador, que ainda se encontrava no campo de seus feitos de armas,

empenhado na pacificação da Judeia distante satisfazia as exigências

mais avançadas de todas as classes civis e militares, sendo recebido em

triunfo para o posto supremo, iniciando-se, assim, a era prestigiosa dos

Flávios.

Vespasiano integrava aquele grupo de patrícios operosos que

contribuíra, sem alardes, para a queda dos tiranos.

Amigo pessoal de Públio Lentulus, o imperador se tornara famoso,

não só por suas vitórias militares, mas também por seu criterioso tirocínio

político, evidenciado em Roma desde os dias turbulentos de Calígula.

Sob a sua orientação administrativa, ia abrir-se uma trégua nas

imoralidades governamentais, inaugurar-se-ia novo período de

compreensão das necessidades populares e, na rota dos seus planos

econômico-financeiros, o Império ia caminhar para os dias regeneradores

de uma era nova.

Públio recebeu todos os acontecimentos com a velada alegria

possível aos seus 67 anos de lutas e fortes experiências da vida. Sob a

claridade serena da velhice, todavia, sua fibra moral e resistência física

eram as mesmas de sempre.

Dentro da perspectiva de melhores dias para as realizações

patrióticas, considerava, agora, como bem empregado, todo o tempo que

roubara à filha cega, para atender ao trabalho do bem coletivo; e foi nesse

estado de espírito, com a consciência satisfeita pelo dever cumprido, de

conformidade com as suas concepções, que se dirigiu a palácio para

392

ROMANCE DE EMMANUEL

atender a chamado especial do imperador, que, muitas vezes, não deixou

de recorrer ao conselho dos seus mais antigos companheiros de ideal.

- Senador - disse-lhe Vespasiano, na intimidade tranqüila de um dos

magníficos gabinetes da residência imperial -, mandei chamá-lo para me

amparar com a sua tradicional dedicação ao Império, na solução de

assunto que julgo de suma importância. (1)

- Dizei, Augusto!... - respondeu Públio, comovido.

Mas o imperador, gentil, cortou-lhe a palavra:

- Não, meu caro, entendamo-nos com a velha intimidade de outros

tempos. Deixemos, por um instante, os protocolos.

E, vendo que o senador esboçava um sorriso de reconhecimento à

sua palavra fluente e generosa, continuou a expor a questão que o

interessava:

- Chamado a Roma para o cargo supremo, não ousei desobedecer às

sagradas injunções que me impeliam ao cumprimento desse grande dever,

embora obrigado a deixar meu filho na obra de pacificação da Judeia

amotinada, trabalho esse que considerarei, em toda a vida, o meu melhor

esforço pela vitalidade do Império, no desdobramento de suas gloriosas

tradições.

Acontece, todavia, que o cerco de Jerusalém se vai prolongando

demasiado, acarretando as mais sérias conseqüências para meus projetos

econômicos, no programa restaurador que me propus realizar no governo.

Suponho que o meu valoroso Tito esteja necessitando de um

conselho de civis, além dos assistentes militares que o acompanham na

arrojada empresa, e lembrei-me de organizá-lo tão somente

__________

(1) Vespasiano esteve em Roma logo após a sua proclamação - Nota de Emmanuel.

393

HÁ DOIS MIL ANOS...

com os amigos mais íntimos, que conheçam Jerusalém e suas cercanias.

Quando das minhas primeiras incursões na edilidade, tive

conhecimento dos seus processos na reforma administrativa da Judeia,

sabendo, portanto, da sua permanência em Jerusalém há mais de vinte

anos.

Era, pois, meu desejo que aceitasse, com outros poucos

companheiros nossos, a incumbência de orientar melhor a tática militar de

meu filho. Tito está necessitando da cooperação política de quem conheça

a cidade nos seus menores recantos, bem como os seus idiomas

populares, de maneira a vencer a situação que se vai tornando cada vez

mais penosa.

Públio Lentulus pensou na filha doente, um instante, mas,

recordando-se da dedicação absoluta de Ana, que poderia perfeitamente

substituir seus zelos por algum tempo, respondeu com decisão e energia:

- Meu nobre imperador, vossa palavra augusta é a palavra do

império. O Império manda e eu obedeço, honrando-me em cumprir vossas

determinações e correspondendo aos impulsos generosos da vossa

confiança.

- Muito agradecido! - falou Vespasiano, estendendo-lhe a mão,

extremamente satisfeito. Tudo estará pronto, de modo que sua partida, e

de mais dois ou três amigos nossos, se verifique dentro de duas semanas,

o mais tardar.

Assim aconteceu.

Depois das dolorosas despedidas da filha, que ficara aos cuidados

da serva dedicada, no palácio do Aventino, o senador tomava. a suntuosa

galera que, largando de Óstia, penetrou depressa o mar largo, rumo à

Judeia.

O velho patrício reviveu, com penosa serenidade, as peripécias da

viagem dos seus tempos de juventude venturosa, quando a felicidade era

para

394

ROMANCE DE EMMANUEL

ele incompreensível, em companhia da esposa e dos dois filhinhos.

Sim, a pequenina figura de Marcus, o filho desaparecido, parecia

surgir novamente a seus olhos, sob uma auréola de radioso e santificado

enlevo.

Um dia, em Cafarnaum, levado pelas palavras caluniosas de Sulpício

Tarquinius, duvidou da honorabilidade da mulher, acreditando, mais tarde,

que o rapto da criança fosse uma consequência da sua infidelidade. Mas

Lívia agora estava redimida de todas as culpas, no tribunal da sua

consciência. Seus sacrifícios domésticos e a morte heróica no circo

constituíam a prova máxima da sublimada pureza do seu coração.

Naqueles instantes de meditação, figurava-se-lhe que voltava ao passado

com os seus sofrimentos intermináveis, esbarrando sempre na sombra

pesada do mistério, quando tentava reler as páginas desse doloroso

capítulo da sua existência.

A que abismos insondáveis e desconhecidos teria sido levado o

pequenino que lhe perpetuaria a estirpe nobre?

Suas emoções paternais pareciam alarmar-se de novo, depois de

tantos anos e tantos padecimentos em família.

Mas, embora lhe flutuassem no íntimo as mais penosas dúvidas, o

senador, na rigidez da sua enfibratura moral, preferia crer, consigo

mesmo, que Marcus Lentulus havia sido assassinado por malfeitores

vulgares, dados ao roubo e ao terrorismo, para nunca mais requisitar os

seus desvelos paternais.

Assim quereria crer, mas aquela viagem afigurava-se-lhe uma

análise de suas lembranças mais queridas e mais pungentes.

De tarde, ao suave clarão do crepúsculo no Mediterrâneo, parecialhe

ver ainda o vulto de Lívia acalentando o pequenino, ou falando-lhe ao

coração em termos afetuosos de consolação, supondo lobri395

HÁ DOIS MIL ANOS...

gar, igualmente, a figura de Comênio, o servo de confiança, entre os

subalternos e escravos.

Em companhia de três outros conselheiros civis, chegou sem maior

dificuldade ao destino, colocando-se esse reduzido conselho de íntimos

do imperador à imediata disposição de Tito, que lhe aproveitou os

pareceres, utilizando com grande êxito as suas opiniões, filhas de larga

experiência da região e dos costumes.

O filho do imperador era generoso e leal para com todos os

compatriotas, que o consideravam como benfeitor e amigo. Mas, para os

adversários, Tito era de uma crueldade sem nome.

Em torno da sua figura ardente e desassombrada, desdobravam-se

legiões numerosas de soldados que combatiam encarniçadamente.

O cerco de Jerusalém, terminado em 70, foi um dos mais

impressionantes da história da humanidade.

A cidade foi sitiada, justamente quando intermináveis multidões de

peregrinos, vindos de todos os pontos da província, se haviam reunido

junto ao templo famoso, para as festas dos pães ázimos. Daí, o excessivo

número de vítimas e as lutas acérrimas da célebre resistência.

O número de mortos nos terríveis recontros elevou-se a mais de um

milhão, fazendo os romanos quase cem mil prisioneiros, dos quais onze

mil foram massacrados pelas legiões vitoriosas, depois da escolha dos

homens válidos, entre cenas penosas de sangue e de selvageria por parte

dos soldados.

O velho senador sentia-se amargurado com aqueles pavorosos

espetáculos de carnificina, mas cumpria-lhe desempenhar a palavra dada e

era com o melhor espírito de coragem que dava pleno cumprimento ao seu

mandato.

Seus pareceres e conhecimentos foram, muitas vezes, utilizados

com êxito, tornando-se íntimo conselheiro do filho do imperador.

396

ROMANCE DE EMMANUEL

Diariamente, em companhia de um amigo, o senador Pompílio

Crasso, visitava os postos mais avançados das forças atacantes,

verificando a eficácia da nova orientação observada pela estratégia militar

dos seus patrícios Os chefes de operações várias vezes lhes chamaram a

atenção, para não avançarem muito em suas atitudes de desassombro,

mas, Públio Lentulus não manifestava o menor receio, realizando, na sua

idade, minuciosos serviços de reconhecimento topográfico da famosa

cidade.

Afinal, na véspera da queda de Jerusalém, já se lutava quase corpo a

corpo em todos os pontos de penetração, havendo incursões de parte a

parte nos campos inimigos, com reciprocas crueldades contra todos os

que tivessem a infelicidade de cair prisioneiros.

Apesar do zelo de que eram cercados, Públio e o amigo, em virtude

da coragem de que davam testemunho, caíram nas mãos de alguns

adversários que, ao lhes observarem a indumentária de altos dignitários da

Corte Imperial, os conduziram imediatamente a um dos chefes da

desesperada resistência, instalado num casarão à guisa de quartel,

próximo da Torre Antônia.

Públio Lentulus, observando as cenas de selvajaria e sangue da

plebe anônima e amotinada, que exterminava numerosos cidadãos

romanos sob as suas vistas, lembrou a tarde dolorosa do Calvário, em que

o piedoso profeta de Nazaré sucumbira na cruz, sob a vozeada terrificante

das multidões enfurecidas. Enquanto caminhava tangido com brutalidade

e aspereza, o velho senador considerava, igualmente, que, se aquele

momento assinalasse a sua morte, devia morrer heroicamente, como sua

própria mulher, em holocausto aos seus princípios, embora houvesse

fundamental diferença entre o reino de Jesus e o império de César. A idéia

de deixar Flávia Lentúlia órfã do seu afeto preocupava-lhe o íntimo;

todavia, ponderava que a filha teria

397

HÁ DOIS MIL ANOS...

no mundo a dedicação generosa e assídua de Ana, bem como o amparo

material da sua fortuna.

Foi nesse estado de espírito, surpreso com a sucessão dos

acontecimentos, que atravessou longas ruas cheias de movimento, de

gritos, de impropérios e de sangue.

Jerusalém, tomada de assombro, mobilizava as derradeiras energias

para evitar a ruína completa.

Ao cabo de algumas horas, extenuados de fadiga e sede, Públio e o

amigo foram introduzidos no sombrio gabinete de um chefe judeu, que

expedia as mais impiedosas ordens de suplício e morte para todos os

romanos presos, revidando às atrocidades do inimigo.

Bastou que Públio fitasse aquele velho israelita de traços

característicos, para procurar, sofregamente, uma figura semelhante no

acervo de suas lembranças mais íntimas e mais remotas.

Não pôde, porém, de pronto, identificar aquela personagem.

O velho chefe, contudo, pousou nele o olhar astuto e, fazendo um

gesto de satisfação, exclamou com uma chispa de ódio a lhe transparecer

de cada palavra:

- Ilustríssimos senadores - enfatizou com ironia e desprezo -, eu vos

conheço de longos anos...

E, fixando Públio, acentuou com malícia:

- Sobretudo, honro-me com a presença do orgulhoso senador Públio

Lentulus, antigo legado de Tíbério e de seus sucessores nesta província

perseguida e flagelada pelas pragas romanas. Ainda bem que as forças do

destino não me permitiram partir para a outra vida, na minha velhice

trabalhosa, sem me desafrontar de uma injúria inolvidável.

Avançando para o velho patrício que o contemplava supinamente

surpreendido, repetia com insistência irritante:

- Não me reconheceis?...

398

ROMANCE DE EMMANUEL

O senador, porém, tinha o semblante a evidenciar o seu penoso

abatimento físico, em face daquela rude provação da sua vida; debalde,

encarava a figura franzina e maquiavélica de André de Gioras, agora com

elevado ascendente nos trabalhos do templo famoso, em vista da fortuna

que Conseguira amealhar.

Verificando a impossibilidade de ser identificado pelo prisioneiro,

cuja presença, ali, mais o interessava e que lhe respondera a todas as

perguntas com silencioso gesto negativo, o velho judeu retornou com

sarcasmo:

- Públio Lentulus, sou André de Gioras, o pai a quem insultaste um

dia com o excesso da tua autoridade orgulhosa. Lembras-te agora?

O prisioneiro fez um sinal afirmativo com a cabeça.

Vendo, porém, que o seu atrevimento não o intimidava, o chefe de

Jerusalém insistia exasperado:

- E porque não te humilhas neste momento, diante de minha

autoridade? Ignoras, porventura, que posso hoje decidir dos teus

destinos?... Qual a razão por que não me pedes comiseração?

Públio estava exausto. Lembrou os seus primeiros dias em

Jerusalém, recordou a visita daquele agricultor inteligente e revoltado.

Procurou rememorar, intimamente, as providências que adotara na

qualidade de homem público, a fim de que o filho do judeu voltasse ao lar

paterno, não se lembrando de haver destilado tanto fel naquele coração

irresignado. Deliberara nada dizer, diante da sua figura exasperada e

truculenta, atendendo às suas íntimas disposições espirituais, mas, em

face da ousada insistência, sem abdicar as antigas tradições de orgulho e

vaidade que o caracterizavam noutros tempos, e como se desejasse

demonstrar desassombro em tão penosas circunstâncias, replicou, afinal,

com energia:

399

HÁ DOIS MIL ANOS...

- Se vos julgais aqui no cumprimento de uma obrigação sagrada,

acima de qualquer sentimento particular e menos digno, não espereis que

se vos peça comiseração, pelo fato de cumprirdes o vosso dever.

André de Gioras franziu o sobrolho, exasperado com a resposta

imprevista, andando de um lado para outro no amplo gabinete, como se

estivesse a cogitar o melhor meio de executar a tremenda vingança.

Depois de alguns momentos de sombrio silêncio, como se houvesse

chegado a uma solução condigna dos seus tigrinos projetos, chamou com

voz soturna um dos guardas numerosos, ordenando:

- Vai depressa e dize a Ítalo, de minha parte, que deve aqui estar

amanhã, às primeiras horas, de modo a cumprir minhas determinações.

E enquanto o emissário saía, dirigiu-se aos dois prisioneiros nestes

termos:

- A queda de Jerusalém está iminente, mas darei a última gota de

sangue da minha velhice para exterminar as víboras do vosso povo. Vossa

raça maldita veio cevar-se na cidade eleita, mas eu exulto com a minha

vingança em vós ambos, orgulhosos dignitários do império da impiedade e

do crime! Quando se abrirem as portas de Jerusalém, terei executado

meus implacáveis desígnios!

Calando-se, bastou um gesto para que os dois amigos fossem

atirados numa enxovia escura e úmida, onde passaram uma noite terrível

de conjeturas dolorosas, trocando amarguradas confidências.

Na manhã seguinte, eram chamados à prova suprema.

Já se ouviam na cidade os primeiros rumores das forças romanas

vitoriosas, entregando-se ao terror e ao saque da população humilhada e

inerme.

Por toda parte, o êxodo precipitado de mulheres e crianças em

gritaria infernal e angustiosa; mas, naquele casarão de grossas paredes de

pedra,

400

ROMANCE DE EMMANUEL

refugiara-se considerável número de chefes e combatentes, para a

resistência suprema.

Públio e Pompílio foram conduzidos a uma sala ampla, de onde

podiam ouvir o ruído crescente da vitória das armas imperiais, depois de

lances dramáticos e cruentos, em tanto tempo de terror, de rapina e de

luta; todavia, ali, naquele compartimento espaçoso e fortificado, tinha à

frente centenas de guerreiros armados e alguns chefes políticos da

resistência israelita, que os contemplavam.

Diante do avanço vitorioso das legiões romanas, era de notar a

inquietação e o pavor que dominavam todos os semblantes, mas havia um

interesse geral pelos dois prisioneiros importantes do Império, como se

eles representassem o último objeto em que se pudessem cevar o ódio e a

vingança.

Modificando, todavia, aquela situação indecisa, André de Gioras

tomou a palavra em voz estranha e sinistra, que retumbou por todos os

ângulos da casa:

- Senhores! estamos chegando ao fim da nossa desesperada defesa,

mas temos o consolo de guardar dois grandes chefes da amaldiçoada

política de rapina do império Romano!... Um deles é Pompílio Crasso, que

começou a sua carreira de homem público nesta província desventurada,

inaugurando um longo período de terror entre os nossos compatriotas

infelizes! O outro, senhores, é Públio Lentulus, orgulhoso legado de

Tibério e de seus sucessores na Judeia humilhada de todos os tempos;

que escravizou nossos filhos ainda jovens e organizou processos

criminosos em todas as zonas provinciais, fomentando o pavor de nossos

irmãos perseguidos e flagelados, lá da sua residência senhorial da

Galileia!... Pois bem! antes que os malditos soldados da pilhagem imperial

nos aprisionem e aniquilem, cumpramos nossos desígnios!...

Todos os presentes ouviram-lhe a palavra, como se fôra a ordem

suprema de um chefe a quem se devesse obedecer cegamente.

401

HÁ DOIS MIL ANOS...

Os dois senadores foram, então, amarrados com pesadas peças de

ferro aos postes do suplício, sem liberdade para qualquer movimento,

restringindo suas expressões de mobilidade aos olhos silenciosos e

serenos no sacrifício.

- Nossa vingança - voltava o odiento israelita a explicar - deve

obedecer ao critério da antigüidade. Primeiramente, deverá morrer

Pompílio Crasso, por ser o mais velho e para que o vaidoso senador Públio

Lentulus compreenda o nosso esforço para eliminar a vitalidade do seu

império maldito.

Pompílio fitou longamente o amigo, como se estivesse fazendo suas

despedidas angustiosas e mudas, na hora extrema.

- Nicandro, este trabalho te compete - exclamou André, voltando-se

para um dos companheiros.

E dando ao vigoroso soldado uma espada sinistra, acrescentou com

profunda ironia:

- Tira-lhe o coração para o amigo, que deverá conservar a cena de

hoje na sua memória, para sempre.

Os olhos do condenado brilharam de intensa angústia, enquanto as

faces descoravam ao extremo, acusando as emoções dolorosas que lhe

iam na alma. Entre ele e o companheiro de amargura, foi trocado, então,

um olhar inesquecível.

Em minutos rápidos, Públio Lentulus assistiu ao desenrolar da

operação nefanda.

A cabeça branca do supliciado pendeu ao primeiro golpe de espada

e do seu tórax encarquilhado foi arrancado violentamente o coração

palpitante, sangrento.

Entretanto, o senador sobrevivente ouvia já o rumor dos patrícios

vitoriosos que se aproximavam afigurando-se-lhe que já se lutava corpo a

corpo, às portas daquela turbulenta assembléia da vindita e do crime. A

monstruosa cena estarrecia-lhe o ânimo, sempre otimista e decidido, mas

não perdeu

402

ROMANCE DE EMMANUEL

a compostura altiva e rígida que ele a si mesmo se impunha, naquele

angustioso transe.

Terminada a execução de Pompílio, feita à pressa, porquanto todos

os presentes tinham consciência da horrorosa situação que os esperava

diante dos triunfadores, André de Gioras levantou novamente a voz:

- Meus amigos - afirmou soturnamente -, ao mais velho, a penalidade

misericordiosa da morte; mas, a este patrício infame que nos ouve,

concederemos a pena amarga da vida, dentro do sepulcro das suas

ilusões desvairadas, de vaidade e orgulho!... Públio Lentulus, o antigo

emissário dos imperadores, deverá viver!... Sim, mas sem os olhos que lhe

clarearam o caminho do egoísmo supremo sobre os nossos grandes

infortúnios!... Deixá-lo-emos com vida, para que nas trevas da sua noite

busque ver com os olhos dos escravos que ele espezinhou no curso da

vida.

Havia um penoso silêncio interior, embora se ouvisse, lá fora, o

patear dos cavalos e o tinir das armaduras, aliados ao rumor sinistro de

vozes praguejantes no ataque e na resistência desesperada do último

reduto.

André de Gioras parecia, porém, embriagado com a volúpia de sua

vingança e, mantendo o equilíbrio da assistência naquela hora trágica do

destino que a todos aguardava, com a palavra magnética e persuasiva

exclamou energicamente:

- Ítalo, compete ás tuas mãos a tarefa deste momento.

Da assistência compacta e inquieta destacou-se um homem,

aparentando quase quarenta anos de idade, surpreendendo o senador

pelos seus traços finos de patrício. Seus olhares encontraram-se e ele

supôs descobrir naquela alma um laço de afinidade estranha e

incompreensível.

Ítalo? Aquele nome não lhe recordava alguma coisa das

proximidades da sua Roma inesquecida? Por que motivo estaria ali aquele

homem, eviden403

HÁ DOIS MIL ANOS...

temente de sangue nobre, combatendo ao lado dos judeus amotinados e

intoxicados de ódio? Por sua vez, o verdugo, indicado pela voz soberana

de André, parecia inclinado à ternura e à piedade por aquele homem velho

e sereno, de mãos e pés amarrados ao poste da injúria, como que hesitava

sobre se devia cumprir o sinistro e despiedado desígnio do seu chefe.

Daí a minutos, surgia, de uma porta larga e sombria, um guerreiro

israelita, trazendo em ampla bandeja de bronze uma lâmina de ferro

incandescente, cuja ponta aguçada repousava entre brasas vivas.

Contemplando com interesse a enigmática figura de Ítalo, na

vitalidade da idade adulta, o senador, silencioso, não podia dissimular a

curiosidade em face do seu vulto ereto e delicado.

André, porém, gozando o quadro e percebendo a acurada atenção do

condenado, arrancou-o daquele estado de conjetura e surpresa,

ironizando:

- Então, senador, estais admirando o porte nobre de Ítalo?...

Lembrai-vos de que se os patrícios se dão ao luxo de possuir escravos

israelitas, os senhores da Judeia também apreciam os servos de tipo

romano. Aliás, sou obrigado a considerar que é sempre perigoso

guardarmos um escravo como este, na cidade, em vista da praga do

patriciado, hoje excessivo por toda a parte; mas eu consegui manter este

homem de trabalho no ambiente rural, até agora...

Públio Lentulus mal poderia decifrar o sentido oculto daquelas

irônicas palavras, não lhe sobrando tempo, ali, para qualquer

introspecção. Observou que André se calara, atendendo à urgência com

que devia ser levada a efeito a operação em perspectiva, de modo a não se

perder o vermelho incandescente da lâmina fatídica. Diante de muitos

olhares atônitos e desesperados, que não sabiam se fixavam a cena

macabra ou se atentavam para a ruidosa penetração das forças de Tito a

quebrarem naquele ins404

ROMANCE DE EMMANUEL

tante os obstáculos do último reduto, o algoz implacável entregou a Ítalo o

terrível instrumento do sacrifício.

- Ítalo - recomendou com a máxima energia -, este minuto é

precioso... Vamos queimar-lhe as pupilas, de modo a lhe proporcionarmos

uma sepultura de sombras eternas, dentro da vida.

O pobre homem, todavia, sensibilizado até às lágrimas, em face do

suplício que deveria infligir por suas mãos, parecia indeciso e titubeante.

- Senhor... - disse súplice, sem conseguir formular objeções.

- Porque hesitas?... - revidou André, tiranicamente, cortando-lhe a

palavra. - Será preciso o chicote para que me obedeças?

Ítalo tomou, então, da lâmina, humildemente. Aproximou-se de leve

do condenado cheio de resignação e de fortaleza interior. Antes do

instante supremo, seus olhares se encontraram, trocando vibrações de

simpatia recíproca. Públio Lentulus ainda lhe fixou o porte, tocado de

incontestável nobreza, esfacelada em suas linhas mais características

pelos trabalhos mais impiedosos e mais rudes; e tão grande foi a atração

que experimentou por aquele homem, fixado pelos seus olhos em plena

luz, pela vez derradeira, que chegou a se recordar, inexplicavelmente, do

seu pequenino Marcus, considerando que, se ele ainda vivesse num

ambiente tão hostil, deveria ter aquele porte e aquela idade.

As mãos de Ítalo, trêmulas e hesitantes, aproximaram-se dos seus

olhos exaustos, como se o fizessem numa doce atitude de carinho; mas o

ferro incandescente, com a rapidez do relâmpago, feriu-lhe as pupilas

orgulhosas e claras, mergulhando-as na treva para todo o sempre.

Nisso, observou a vítima que uma gritaria infernal reboava em toda a

sala.

Uma dor indefinível irradiava-se da queimadura, fazendo-lhe

experimentar atrozes padecimentos.

405

HÁ DOIS MIL ANOS...

Ele nada mais divisava, além das trevas espessas que lhe cobriam o

espírito, mas adivinhava que as forças vitoriosas chegavam tardiamente

para libertá-lo.

No meio dos ruídos ensurdecedores, André de Gioras ainda se

aproximou do condenado, falando-lhe ao ouvido:

- Poderia matar-te, senador infame, mas quero que vivas. Vou

revelar-te, agora, quem é Ítalo, teu algoz do último instante!...

Mas um golpe violento de espada, brandida por um legionário

romano, fizera o velho israelita cair ao solo sem sentidos, enquanto

certeira punhalada atingia Ítalo, indeciso na sua estupefação, que caiu

pesadamente junto do supliciado, abraçando--lhe os pés, num gesto

significativo e supremo.

Vozes amigas rodearam, então, Públio Lentulus, naquele ambiente

tumultuário. Desataram-lhe imediatamente os pés e as mãos, restituindolhe

a liberdade dos movimentos, enquanto outros legionários retiravam o

cadáver de Pompílio Crasso, com o peito vazio, num quadro pavoroso de

selvajaria sanguinosa.

Serenados os primeiros tumultos e guardando as mais penosas

dúvidas sobre as palavras reticenciosas do inimigo implacável, Públio

Lentulus, antes de ser levado pelo braço dos companheiros ao comando

das forças em operações, onde receberia os primeiros socorros,

recomendou que tratassem com o máximo respeito o cadáver de Ítalo, que

jazia ao lado de um montão de despojos sangrentos, no que foi atendido,

obtemperando-lhe, porém, um companheiro:

- Senador, antes de tudo, não vos esqueçais do vosso estado, que

está requerendo de todos nós os mais urgentes cuidados.

E como se quisesse provocar uma explicação espontânea do ferido,

quanto ao seu interesse pelo morto, acentuou delicadamente:

406

ROMANCE DE EMMANUEL

- Não foi esse homem quem vos infligiu o horrendo suplício?

À vista da pergunta inopinada e necessitando justificar sua atitude

perante os compatriotas que o ouviam, Públio exclamou com voz

pungente:

- Enganais-vos, meu amigo. Esse homem cujo cadáver agora não

vejo, era nosso conterrâneo, prisioneiro de muito tempo pela sanha

vingativa de um poderoso senhor de Jerusalém... Observai-lhe os traços

nobres e concordareis comigo!...

E enquanto se retirava amparado pelos amigos, a fim de receber

socorros imediatos e imprescindíveis, supôs haver cumprido um dever, em

pronunciando aquelas palavras, porque misteriosas vozes lhe falavam ao

coração, acerca daquele olhar generoso que pousara em seus olhos pela

última vez.

Vários dias esteve Jerusalém entregue ao saque e à desordem,

levados a efeito pela soldadesca do império, faminta de prazeres e

envenenada no vinho sinistro do triunfo. Todos os chefes da resistência

israelita foram presos, a fim de comparecerem a Roma para o último

sacrifício, em homenagem às festas comemorativas da vitória. Entre eles

incluía-se André de Gioras, que, restabelecido das escoriações recebidas,

representava um dos que deveriam ser exterminados para gáudio da

assistência festiva na Capital do império.

Depois da matança de onze mil prisioneiros feridos ou inválidos,

massacrados pelas legiões vencedoras; depois dos pavorosos

espetáculos da destruição e saque do templo magnífico, no qual Israel

julgava contemplar a sua obra eterna e divina para todas as gerações da

sua posteridade prolífica, voltou a caravana compacta dos vencidos e

vencedores, cheia de riquezas ilícitas e troféus maravilhosos, de modo a

exibir em Roma todos os ornamentos ilustrativos da vitória, entre

vibrações tumultuárias e cânticos de triunfo.

Numa galera confortável e tranqüila, viajou Públio Lentulus,

resignado dentro da noite cerrada

407

HÁ DOIS MIL ANOS...

da sua cegueira, rodeado de amigos prestimosos que tudo faziam por

minorar-lhe os sofrimentos morais.

Antes de chegar a Roma, vezes muitas cogitou da melhor maneira de

se dirigir diretamente a André, para arrancar-lhe a verdade e serenar as

dúvidas íntimas, quanto à identidade do escravo de tipo romano, que o

ferira para sempre, nos preciosos dons da vista. Ele, porém, agora, estava

cego, e para realizar esse desejo teria de empregar um largo processo de

providências, de colaboração estranha, e, assim, não havia atinado com a

melhor maneira de ouvir o judeu sem ferir as tradições de dignidade

pessoal, mantida em todos os tempos da vida pública.

Foi, ainda, nesse impasse que chegou, novamente, ao palácio do

Aventino, acompanhado de numerosos companheiros de labores políticos,

surpreendendo amarguradamente o coração da filha com a notícia trágica

e dolorosa da sua cegueira.

Ana, qual anjo fraterno, valorosa irmã de todos os infortunados,

sincera discípula do Cristianismo, esperou carinhosamente o seu senhor

junto de Flávia que exclamava cheia de incoercível desalento:

- Meu pai, meu pai, mas que desgraça!...

O velho patrício, todavia, no seu otimismo, confortava-lhe o espírito,

obtemperando:

- Filha, não te dês ao trabalho de conjeturar a fundo os problemas do

destino. Em todos os acontecimentos da vida temos de louvar os

soberanos desígnios dos céus e espero que te encorajes de novo, porque

somente assim viverei agora, junto de ti, em consolação afetuosa e

recíproca! Foi o próprio destino que me afastou compulsoriamente das

lides do Estado, a fim de viver doravante somente por ti.

Abraçaram-se então efusivamente, fundiram-se em beijos do mesmo

infortúnio, vibrações de duas almas presas aos mesmos padecimentos.

408

ROMANCE DE EMMANUEL

Públio Lentulus, porém, embora o necessário descanso, e apesar da

cegueira que lhe impossibilitava as iniciativas, não perdeu a esperança de

ouvir a palavra do inimigo implacável, ainda uma vez, e, para isso,

aguardou o dia ansiosamente esperado pelo povo romano, das soberanas

festas do triunfo.

Convém acentuar que o velho senador foi conduzido à cidade

imediatamente, em virtude da sua especialíssima situação; mas o

vencedor e as suas legiões infindáveis entrariam em Roma com todos os

faustosos protocolos dos triunfadores, de conformidade com os

numerosos regulamentos da própria antiga República.

No dia aprazado, toda a Capital, com a sua população de um milhão

e meio de habitantes, aproximadamente, aguardava as magníficas

comemorações da vitória.

Desde as primeiras horas do dia, começaram a grupar-se ás portas

da cidade as legiões vencedoras, desarmadas, vestindo delicadas túnicas

de seda, ostentando soberbas auréolas de louro. Transpondo as portas da

cidade, sob os aplausos estrondosos de multidões sem fim, foi-lhes

oferecido esplêndido banquete, presidido pelo próprio imperador e seu

filho.

Vespasiano e Tito, logo após as cerimônias do Senado, no Pórtico

de Otávia, encaminharam-se para a Porta Triunfal. Ali, ofereceram um

sacrifício aos deuses e tomaram os símbolos do triunfo nas aparatosas

festividades imperiais. Realizada essa cerimônia, pôs-se em marcha o

grande cortejo, ao qual Públio Lentulus não faltou, com a secreta intenção

de ouvir a palavra reveladora do chefe prisioneiro, cujo cadáver, depois

dos sacrifícios daquele dia, seria atirado às águas do Tibre, de acordo com

as tradições vigentes.

Todos os troféus das batalhas sanguinolentas e todos os vencidos,

em número considerável, eram levados igualmente em procissão, na festa

indescritível.

409

HÁ DOIS MIL ANOS...

À frente do cortejo imenso, seguia incalculável quantidade de obras

de ouro puro, enfeitadas de cores variadas e berrantes, e, logo após,

pedras preciosas em número incontável, não só em coroas de fulgurante

beleza, como também em estofos que maravilhavam os espectadores pela

variedade, sendo de notar que todos esses tesouros eram carregados por

jovens legionários trajando túnicas de púrpura, com graciosos ornamentos

dourados.

Depois da exibição dos tesouros conquistados pelo triunfador,

vinham, às centenas, as estátuas dos deuses, talhadas em marfim, em

ouro, em prata, de tamanhos prodigiosos.

Em seguida aos deuses, todo um exército de animais, das mais

variadas espécies, entre os quais se distinguiam numerosos dromedários

e elefantes cobertos de magníficas pedrarias.

Acompanhando os animais, a multidão compacta e acabrunhada dos

prisioneiros vulgares, exibindo sua miséria e olhares tristes, procurando

ocultar dos espectadores impiedosos e irreverentes os ferros pesados que

os manietavam.

Após os prisioneiros sucumbidos, passavam os simulacros das

cidades vencidas e humilhadas, confeccionados com grande esmero,

sustentados nos ombros de soldados numerosos, semelhantes aos

modernos carros alegóricos das festas carnavalescas. Havia

representações de todas as cidades destruídas e saqueadas, de batalhas

vitoriosas, sem faltar o arrasamento dos campos, a queda de muralhas e

os incêndios devastadores.

Depois desses símbolos, eram os despojos riquíssimos dos povos

vencidos e das cidades conquistadas, principalmente os de Jerusalém,

carregados com muito desvelo pelos legionários. Sob os aplausos

gritantes e irreverentes da turba que se apinhava por toda a parte,

desfilaram as estátuas representando as figuras de Abraão e Sara, bem

como de todas as personalidades reais da família de David, e mais todos

os objetos sagrados do famoso

410

ROMANCE DE EMMANUEL

templo de Jerusalém, tais a mesa dos Pães de Proposição, feita de ouro

maciço, as trombetas do Jubileu, o castiçal de ouro com sete braços, o'

paramentos de alto valor intrínseco, os véus sagrados do Templo, e, por

fim, a Lei dos judeus, que seguia atrás de todos os despojos materiais,

pilhados pelas forças triunfadoras. Cada objeto era carregado em andores

preciosos e bem ornamentados, ao ombro dos legionários romanos

coroados de louros.

Após os textos da Lei, seguia Simão, o desventurado chefe supremo

de todos os movimentos da resistência de Jerusalém, acompanhado dos

seus três auxiliares diretos, inclusive André de Gioras. Todos esses chefes

da longa e desesperada resistência vestiam de preto e caminhavam

solenemente para o sacrifício, depois de exibidos em todas as

comemorações festivas do triunfo.

Em seguida, vinham os carros soberbos e magníficos dos

triunfadores. Após a passagem deslumbrante de Vespasiano, desfilava

Tito num oceano de púrpura, de sedas e de vermelhão, simbolizando o

próprio Júpiter, na embriaguez da sua vitória.

No séquito de honra, passava igualmente o senador valetudinário e

cego, não mais pelo prazer das homenagens, mas com o secreto desejo de

ouvir a palavra de André, antes do trágico momento em que o seu corpo

balançasse sobre as águas lodosas do Tibre, no instante da consumação

do último suplício, sob os aplausos delirantes do povo.

Após os carros imperiais dos vencedores e seus áulicos mais

íntimos, vinha o exército compacto, entoando os hinos da vitória, enquanto

todas as ruas e praças, foros e pórticos, terraços e janelas, se pejavam de

incalculáveis multidões curiosas.

O cortejo movimentou-se solenemente, desde a Porta Triunfal até ao

Capitólio. Longas horas foram gastas no trajeto, através do sinuoso

caminho, porquanto a festividade era consumada de molde a levar seus

esplendores pelos recantos mais aristocráticos do patriciado romano.

411

HÁ DOIS MIL ANOS...

Em dado momento, todavia, antes de se elevar à colina, todo o

cortejo parou e os olhos ansiosos da multidão convergiram para Simão e

seus três companheiros, auxiliares diretos da sua chefia na resistência da

cidade famosa.

Públio Lentulus, embora cego, mas afeito ao tradicionalismo

daquelas comemorações, compreendeu que era chegado o instante

supremo.

Em virtude do seu caso especialíssimo e considerando a deferência que a

autoridade julgava dever-lhe, o imperador preocupava-se com a sua

situação no cortejo, recomendando ao filho, Domiciano, atender a

quaisquer providências de que viesse a precisar em tais circunstâncias.

Naquele momento, debaixo das vibrações ruidosas do delírio

popular, procedia-se ao flagício de Simão, diante de toda a Roma

embriagada e vitoriosa, enquanto André de Gioras e os dois companheiros

eram conduzidos à Prisão Mamertina, onde aguardariam o chefe, após a

flagelação, para a morte em conjunto, de maneira que os cadáveres

pudessem ser arrastados através das Gemônias e, sob as vistas do povo,

atirados às correntes do Tibre.

De alma ansiosa, mas disposto a realizar seus desígnios, o senador

chamou o príncipe a cuja assistência fora recomendado, expressando-lhe

o desejo de dirigir a palavra a um dos prisioneiros, em particular e em

condições secretas, no que foi imediatamente atendido.

Domiciano tomou-lhe do braço com atenção e, conduzindo-o a uma

dependência da prisão sinistra, determinou a vinda de André a um

cubículo isolado e secreto, conforme o desejo de Públio, aguardando o fim

da entrevista numa sala próxima, juntamente com alguns guardas, tão logo

penetrou o condenado para o interrogatório do antigo político do Senado.

Defrontando-se, os dois inimigos tiveram estranha sensação de malestar.

Públio Lentulus não mais podia vê-lo, mas se os seus olhos já não ti412

ROMANCE DE EMMANUEL

nham expressão emotiva, crestadas para sempre as pupilas claras e

enérgicas, seu perfil ereto manifestava as emoções que o dominavam.

- Senhor André - exclamou o senador, profundamente emocionado -,

contra todos os meus hábitos provoquei este encontro secreto, de modo a

esclarecer minhas dúvidas sobre as palavras reticenciosas em Jerusalém,

no dia em que consumastes vossas impiedosas determinações a meu

respeito. Não quero, agora, entrar em pormenores sobre a vossa atitude,

mas tão somente informar-vos, neste momento em que a justiça do

Império vos toma à sua conta, que tudo fiz por devolver-vos o filho

prisioneiro, cumprindo um dever de humanidade, ao receber as vossas

súplicas. Lamento que as minhas providências tardias não alcançassem o

efeito desejado, fermentando tão violenta odiosidade no vosso coração.

Agora, porém, não mais ordeno. Um cego não pode determinar

providências de qualquer natureza, em face das penosas injunções da sua

própria vida, mas solicito o vosso esclarecimento, sobre a personalidade

do escravo que me crestou a vista para sempre!...

André de Gioras estava igualmente abatidíssimo na sua decrepitude

enfermiça. Comovido pela atitude daquele pai humilhado e infeliz e

fazendo o íntimo retrospecto dos seus atos criminosos, naquelas horas

supremas de sua vida, respondeu extremamente compungido:

- Senador Lentulus, a hora da morte é diferente de todas as outras

que o destino concede à nossa existência à face deste mundo... É por isso,

talvez, que sinto o meu ódio agora transformado em piedade, avaliando o

vosso sofrimento amargo e rude. Desde que fui preso, venho considerando

os erros da minha vida criminosa... Trabalhando no Templo e vivendo para

o culto da Lei de Moisés, só agora reconheço que Deus concede liberdade

de ação a todos os seus filhos, mormente aos seus sacerdotes, tocandolhes,

porém, a cons413

HÁ DOIS MIL ANOS...

ciência, no momento da morte, quando nada mais resta senão a

apresentação da alma falida, diante de um tribunal a que ninguém pode

mentir ou subornar!... Sei que é tarde para reagir no caminho percorrido, a

fim de refazer os nossos atos; mas um sentimento novo me faz falar-vos

aqui com a sinceridade do coração, que, acicatado pelo julgamento divino,

já não pode enganar a ninguém.

Há quase quarenta anos, vossa austeridade orgulhosa determinou a

prisão do meu único filho, remetendo-o impiedosamente para as galeras, e

debalde implorei a vossa demência de homem público, para o meu espírito

desamparado... Das galeras, contudo, meu pobre Saul foi remetido para

Roma, onde foi vendido, miseravelmente, num mercado de escravos, ao

Senador Flamínio Severus...

Nesse instante, o cego, que escutava atenta e eminentemente

emocionado, ao identificar, naquela narrativa, o algoz da filha,

interrompeu-a perguntando:

- Flamínio Severus?

- Sim, era também, como vós, um senador do Império.

Profundamente emocionado, ao ligar os fatos dolorosos de sua

família à pessoa do antigo liberto, mas necessitando de todas as energias

morais para dominar-se, o senador recalcou no íntimo a sua amargura,

conservando-se em atitude de expressivo silêncio, enquanto o condenado

prosseguia:

- Saul, todavia, foi feliz... Abraçou a liberdade e fez fortuna, voltando

de vez em quando a Jerusalém, onde me ajudou a prosperar; mas, devo

revelar-vos que, não obstante os textos da Lei por mim pregada muitas

vezes, que nos manda desejar ao próximo o que desejaríamos para nós

mesmos, não cruzei os braços ante a vossa arbitrariedade criminosa,

jurando vingar-me a qualquer preço; para isto, numa noite tranqüila, roubei

o vosso pequenino Marcus na vossa residência de Cafarnaum, de

cumplicidade com uma de vossas

414

ROMANCE DE EMMANUEL

servas, que mais tarde tive de envenenar, para que não viesse a revelar o

segredo e tolher meus sinistros propósitos, quando a vossa ansiedade

paterna instituiu, em Jerusalém, o prêmio de um Grande Sestércio a quem

descobrisse o paradeiro do pequenino... Lembrareis, por certo, da criada

Sêmele, que morreu repentinamente em vossa casa...

Enquanto André do Gioras se detinha na triste confissão que lhe

tocava as fibras mais íntimas da alma, representando cada palavra um

estilete de amargura a lhe retalhar o coração, Públio Lentulus chegava

tardiamente ao conhecimento de todos os fatos, recordando os

angustiosos martírios da companheira, como esposa caluniada e mãe

carinhosa.

Impressionado, porém, com o seu silêncio doloroso, André

continuava:

- Pois bem, senador; obedecendo aos meus sentimentos

condenáveis, raptei vosso filhinho, que cresceu humilhado nos mais rudes

trabalhos da lavoura... aniquilei-lhe a inteligência... favoreci-lhe o ingresso

nos vícios mais desprezíveis, pelo prazer diabólico de humilhar um

romano inimigo, até que culminei na minha vindita em nosso encontro

inesperado! Mas, agora, estou diante da morte e não sei enxergar mais a

nossa situação, senão como pais desventurados... Sei que vou

comparecer breve no tribunal do mais íntegro dos juízes, e, se vos fosse

possível, eu desejava que me désseis um pouco de paz com o vosso

perdão!

O velho senador do Império não saberia explicar as suas profundas

dores, ouvindo aquelas revelações angustiosas e amargas. Ouvindo

André, sentia ímpetos de perguntar pelo filhinho em criança, por suas

tendências, pelas suas aspirações da mocidade; desejava inteirar-se dos

seus trabalhos, das suas predileções, mas cada palavra daquela confissão

amargurosa era uma punhalada nos seus sentimentos mais sagrados.

Qual estátua muda do infortúnio, ainda ouviu o prisioneiro repetir, quase

415

HÁ DOIS MIL ANOS...

em lágrimas, arrancando-o das suas divagações sombrias e tormentosas:

- Senador - insistia ele, suplicando tristemente -, perdoai-me! Quero

compreender o espírito da minha Lei, apesar do último instante!... Relevai

meu crime e dai-me forças para comparecer diante da luz de Deus!...

Públio ouvia-lhe a voz súplice, enquanto uma lágrima de dor

indescritível rolava dos seus olhos tristes e apagados.

Perdoar? Mas, como? Não fôra ele, Públio, o ofendido e a vítima de

uma existência inteira? Singulares emoções abalavam-lhe o íntimo,

enquanto numerosos soluços lhe morriam na garganta opressa.

Diante dele estava o inimigo implacável que procurara em vão, por

consecutivos e longos anos de infelicidade. Mas, na sua introspecção,

sabia entender, igualmente, as próprias culpas, recordando os excessos

da sua severidade vaidosa. Também ele ali estava como um cadáver

ambulante, no seio das sombras espessas. De que valeram as honrarias e

o orgulho desenfreado? Todas as suas esperanças de ventura estavam

mortas. Todos os seus sonhos aniquilados. Senhor de fortuna

considerável, não viveria mais, no mundo, senão para carregar o esquife

negro das ilusões despedaçadas. Todavia, seu íntimo se recusava ao

perdão da hora extrema. Foi então que se lembrou de Jesus e da sua

doutrina de amor e piedade pelos inimigos. O Mestre de Nazaré perdoara a

todos os seus algozes e ensinara aos discípulos que o homem deve

perdoar setenta vezes sete vezes. Recordou, igualmente, que, por Jesus,

sua esposa imaculada morrera nas ignomínias do circo infamante; por

Jesus voltara FIamínio do reino das sombras, para incliná-lo, um dia, ao

perdão e à piedade...

Os ruídos de fora denunciavam que a hora derradeira de André

estava próxima. O próprio Simão já caminhava vacilante e ensangüentado,

depois do

416

ROMANCE DE EMMANUEL

açoite, para o interior da prisão, epilogando o suplício.

Foi então que Públio Lentulus, abandonando todas as tradições de

orgulho e vaidade, sentiu que no íntimo dalma brotava uma fonte de linfa

cristalina. Copiosas lágrimas desceram-lhe às faces rugosas e macilentas,

das órbitas sem expressão, dos olhos mortos e, como se desejasse fitar o

inimigo com os olhos espirituais, a fim de mostrar-lhe a sua comiseração,

exclamou em voz firme:

- Estais perdoado...

Voltando imediatamente à sala contígua e sem esperar qualquer

resposta, compreendeu que era chegada a última hora do inimigo.

Daí a minutos, o cadáver de André de Gioras era arrastado às

Gemônias, para ser atirado ao Tibre silencioso.

O senador nada mais percebeu do restante das numerosas

cerimônias no Templo de Júpiter.

O cortejo era agora iluminado pela claridade de mil fachos

colocados pelos escravos em quarenta elefantes, por ordem de Tito, ao

cair das primeiras sombras da noite, mas o senador, acabrunhado nos

seus padecimentos morais, regressava em liteira ao palácio do Aventino,

onde se fechou nos seus apartamentos particulares, alegando grande

cansaço.

Tateando na sua noite, abraçou-se à cruz de Simeão, que lhe fôra

deixada pela crença da esposa, molhando-a com as lágrimas da sua

desventura.

Em meditações profundas e dolorosas, pôde então compreender que

Lívia vivera para Deus e ele para César, recebendo ambos compensações

diversas na estrada do destino. E enquanto o jugo de Jesus fôra suave e

leve para sua mulher, seu altivo coração estava preso ao terrível jugo do

mundo, sepultado nas suas dores irremediáveis, sem claridade e sem

esperanças.

417

IX

Lembranças amargas

Logo após os penosos acontecimentos de 70 e de conformidade

com os desejos de Flávia, o senador passou a residir na vivenda

confortável que ele possuía em Pompeia, longe dos bulícios da Capital. Ali

poderia entregar-se melhor às suas meditações.

Para lá transportara então, o velho político, todo o seu volumoso

arquivo, bem como as lembranças mais carinhosas e mais importantes da

sua vida.

Dois libertos gregos, extremamente cultos, foram contratados para

os trabalhos de escrita e leitura, e assim é que, no seu retiro, se mantinha

ao corrente de todas as novidades políticas e literárias de Roma.

Nesses tempos recuados, quando o homem se encontrava ainda

longe dos benefícios preciosos da invenção de Gutenberg, os manuscritos

romanos eram raros e sumamente disputados pelas elites intelectuais da

época. Uma casa editora dispunha, quase sempre, de uma centena de

escravos calígrafos, inteligentes, que confeccionavam mais ou menos mil

livros por ano.

418

ROMANCE DE EMMANUEL

Públio, além disso possuía em Roma sinceras e numerosas

amizades ao seu serviço, recebendo em Pompeia todos os ecos dos

acontecimentos da cidade que lhe absorvera as melhores energias da vida.

Amiudadamente, recebia também notícias de Plínio Severus, por

intermédio de amigos desvelados, confortando-se com as informações

sobre sua conduta, agora digna, porquanto, pelos méritos conquistados

nas Gálias, fôra transferido, depois de 73, para Roma, onde, pela correção

do proceder, embora tardiamente, conquistara posição respeitável e

brilhante, prosseguindo nas tradições da probidade paterna, nos cargos

administrativos do Império.

Plínio, todavia, não mais voltara a procurar a esposa nem aquele que

o destino o compelia a considerar como um pai dedicado e carinhoso,

embora não ignorasse o supremo infortúnio dos seus familiares. No

íntimo, o antigo oficial romano não desdenhava a idéia de regressar ao

seio dos entes queridos; contudo, desejava fazê-lo em condições de

dissipar todas as dúvidas quanto no considerável esforço próprio, de sua

regeneração. Galgando postos de confiança na administração dos

Flavianos, queria uma posição de maiores vantagens morais, de maneira a

levar aos seus íntimos a certeza da sua reabilitação espiritual.

Corria o ano de 78, na placidez das paisagens formosas da

Campânia. Enquanto Tibur representava uma estação de cura e descanso

regenerador para os romanos mais ricos, Pompeia era bem a cidade dos

romanos mais sadios e mais felizes. Em suas vias públicas encontravamse,

a cada passo, os mármores soberbos e o bom gosto das mais belas

construções da capital aristocrática do Império. Em seus templos

suntuosos, aglomeravam-se assembléias brilhantes, de patrícios educados

e cultos, que se instalavam na linda cidade, povoada de cantores e poetas,

ao pé do Vesúvio, e iluminada por

419

HÁ DOIS MIL ANOS...

um céu de maravilhas, cheio de ridente sol ou bordado de estrelas

cintilantes.

Públio Lentulus, agora, sobremaneira apreciava a palavra simples e

convincente de Ana, que envelhecera ao lado de Flávia, qual bela figura de

marfim antigo. Era de lhe ver o interesse, a comoção, a alegria ao ouvi-la

sobre a excelência dos princípios cristãos, quando se entretinham em

recordações da Judeia distante.

Nessas amáveis palestras, entre os três, logo após o jantar, discutiase

a figura do Cristo e as sublimadas ilações da sua doutrina, conseguindo

o senador, pela força das circunstâncias, meditar melhor os grandiosos

postulados do Evangelho, ainda fragmentário e quase desconhecido, para

ligar os princípios generosos e santos do Cristianismo à personalidade do

seu divino fundador.

Longas horas ficavam ali, no terraço amplo, sob a luz branda das

estrelas e usufruindo a carícia das brisas da noite, que eram como que

bafejos de inspirações celestes, aquelas três criaturas, em cujas frontes se

vincavam as experiências dos anos.

Por vezes, Flávia fazia um pouco de música, que lhe saía da harpa

como vibrante gemido de dor e de saudade, alcançando o coração paterno

mergulhado no abismo das reminiscências dolorosas. É que a música dos

cegos é sempre mais espiritualizada e mais pura, porque, na sua arte, fala

a alma profundamente, sem as emoções dispersas dos sentidos materiais.

Uma noite, obedecendo ao hábito de muitos anos, vamos encontrar

aquelas três criaturas no espaçoso terraço da vila de Pompeia, em doces

rememorações.

Havia mais de sete anos que quase todas as palestras versavam, ali,

sobre a personalidade do Messias e a excelsa pureza da sua doutrina,

observada, antes de tudo, a precisa discrição, porquanto os adeptos do

Cristianismo continuavam perseguidos, embora com menos crueldade.

420

ROMANCE DE EMMANUEL

Em todo caso, invariavelmente, a conversação era de enfermos e de

velhos, sem provocar o interesse dos amigos mais moços e mais felizes.

Depois de algumas lembranças e comentários de Ana, a respeito da

angustiosa tarde do Calvário, exclamava o velho senador em tom

convencido:

- De mim para comigo, tenho a certeza de que Jesus ficará para

sempre no mundo, como o mais elevado símbolo de consolação e fortaleza

moral para todos os sofredores e para todos os tristes!...

Desde os primeiros dias de minha cegueira material procuro,

intimamente, compreender-lhe n grandeza e não consigo apreender toda a

extensão da sua excelsitude e dos seus ensinos.

Lembro-me, como se fosse ontem, do crepúsculo formoso em que o

vi pela primeira vez, ao longo das margens do Tiberíades...

- Eu também - murmurou Ana - não consigo olvidar aquelas tardes

deliciosas e claras em que todos os servos e sofredores de Cafarnaum nos

reuníamos à margem do grande lago, esperando o suave enlevo das suas

palavras.

E como se estivesse contemplando o desfile de suas recordações

mais queridas, com os olhos da imaginação, a velha serva continuava:

- O Mestre apreciava a companhia de Simão e dos filhos de Zebedeu

e, quase sempre, era em uma de suas barcas que ele vinha, solicito,

atender às nossas rogativas...

- O que mais me assombrava - dizia Públio Lentulus, impressionado

- é que Jesus não era, que se soubesse, um doutor da Lei ou sacerdote

formado pelas escolas humanas. Sua palavra, entretanto, estava como que

ungida de uma graça divina. O olhar sereno e indefinível penetrava o fundo

da alma e o sorriso generoso tinha a complacência de quem, possuindo

toda a verdade, sabia compreender e perdoar os erros humanos. Seus

ensinos, diariamente meditados por mim, nestes

421

HÁ DOIS MIL ANOS...

últimos anos, são revolucionários e novos, pois arrasam todos os

preconceitos de raça e de família, unindo as almas num grande amplexo

espiritual de fraternidade e tolerância. A filosofia humana jamais nos disse

que os aflitos e pacíficos são bem-aventurados no céu; entretanto, com as

suas lições renovadoras, modificamos o conceito de virtude, que, para o

Deus soberano e misericordioso das Alturas, não está no homem mais rico

e poderoso do mundo, mas no mais justo e mais puro, embora humilde e

pobre.

Sua palavra compassiva e carinhosa espalhou ensinamentos que

somente hoje posso compreender, na sombra espessa e triste dos meus

sofrimentos..

- Meu pai - perguntou Flávia Lentúlia, extremamente interessada na

conversação -, chegastes a ver o profeta muitas vezes?...

- Não, filha. Antes do dia nefasto de sua morte infamante na cruz,

somente o vi uma vez, ao tempo em que eras pequenina e doente. Isso

bastou, contudo, para que eu recebesse, nas suas palavras sublimes,

luminosas lições para toda a vida. Só hoje entendo as suas exortações

amigas, compreendendo que a minha existência foi bem uma oportunidade

perdida!... Aliás, já naquele tempo, sua profunda palavra me dizia que eu

defrontava, no minuto do nosso encontro, o maravilhoso ensejo de todos

os meus dias, acrescentando, na sua extraordinária benevolência, que eu

poderia aproveitá-lo naquela época ou daí a milênios, sem que me fosse

possível apreender o sentido simbólico de suas palavras...

- Todas as concessões de Jesus se esteavam na Verdade santificada

e consoladora - acrescentou Ana, agora gozando de toda a intimidade com

os seus senhores.

- Sim - exclamou Públio Lentulus, concentrado nas suas

reminiscências -, minhas observações pessoais autorizam-me a crer da

mesma forma.

422

ROMANCE DE EMMANUEL

Se eu tivesse aproveitado a exortação de Jesus naquele dia, talvez

houvesse alijado mais de metade das provações amargas que a Terra me

reserva... Se houvesse buscado compreender sua lição de amor e

humildade, teria procurado André de Gioras, pessoalmente, reparando o

mal que lhe havia feito, com a prisão do filho ignorante, demonstrando-lhe

o meu interesse individual, sem confiar tão somente nos funcionários

irresponsáveis que se encontravam a meu serviço... Guiado por esse

interesse, teria encontrado Saul facilmente, pois Flamínio Severus seria,

em Roma, o confidente dos meus desejos de reparação, evitando dessa

maneira a dolorosa tragédia da minha vida paternal.

Se houvesse entendido bastante a sua caridade, na cura de minha

filha, teria conhecido melhor o tesouro espiritual do coração de Lívia,

vibrando com o seu espírito na mesma fé, ou caindo juntamente com ela

na arena ignominiosa do circo, o que seria suave, em comparação com as

lentas agonias do meu destino; teria sido menos vaidoso e mais humano,

se lhe houvesse entendido a preceito a lição de fraternidade...

- Meu pai - exclamava, porém, a filha, de molde a confortar-lhe as

agruras do coração -, se Jesus é a sabedoria e a verdade, de qualquer

modo ele saberia compreender as razões da vossa atitude, sabendo que

fostes forçado pelas circunstâncias a manter esse ou aquele princípio em

vossa vida.

- Minha filha, nestes últimos anos - revidou Públio ponderadamente -

tenho a presunção de haver chegado as mais seguras conclusões a

respeito dos problemas da dor e do destino...

Acredito hoje, com a experiência própria que as atividades penosas

do mundo me ofertaram, que nós contribuímos, sobretudo, para agravar ou

atenuar os rigores da situação espiritual, nas tarefas desta vida.

Admitindo, agora, a existência de um Deus Todo-Poderoso, fonte de toda a

misericórdia e todo o amor, creio que a Sua Lei é a do bem

423

HÁ DOIS MIL ANOS...

supremo para todas as criaturas. Esse código de solidariedade e de amor

deve reger todos os seres e, dentro dos seus dispositivos divinos, a

felicidade é o determinismo do céu para todas as almas. Toda vez que

caímos ao longo do caminho, favorecendo o mal ou praticando-o,

efetuamos uma intervenção indébita na Lei de Deus, com a nossa

liberdade relativa, contraindo uma dívida com o peso dos infortúnios...

Não me referindo aos meus atos pessoais, que agravaram as minhas

angustiosas dores íntimas, e considerando Jesus como medianeiro entre

nós e Aquele a quem a sua profunda palavra chamava Pai-Nosso, fico hoje

a pensar se não cometi um erro, forçando a sua misericórdia com a minha

súplica paternal, a fim de que continuasses a viver neste mundo, para o

nosso amor em família, quando eras pequenina!...

Flávia Lentúlia e Ana, que acompanhavam os raciocínios do

senador, desde muitos anos, lhe seguiam as conclusões morais, cheias de

surpresa, em face da facilidade íntima com que sabia aliar as lições

penosas do seu destino aos princípios pregados pelo profeta Nazareno.

- Na verdade, meu pai - disse Flávia Lentúlia, depois de longa pausa -

, tenho a impressão de que as forças divinas haviam deliberado arrebatarme

do mundo, considerando as dores penosas que me esperavam na

estrada escabrosa do meu destino desventurado...

- Sim - ajuntou o senador, cortando-lhe a palavra -, ainda bem que

me compreendeste. A vida e o sofrimento nos ensinam a entender melhor

o plano das determinações de ordem divina.

Antigos iniciados das religiões misteriosas do Egito e da Índia

acreditam que voltamos várias vezes à Terra, noutros corpos!...

Nesse instante, o velho patrício fez uma pausa.

Lembrou-se dos seus antigos sonhos, quando, em se vendo com a

indumentária de Cônsul nos

424

ROMANCE DE EMMANUEL

tempos de Catilina, infligia aos inimigos políticos o suplício da cegueira, a

ferro incandescente, quando se chamava Públio Lentulus Sura.

Nos seus pensamentos caia como que uma torrente de ilações

novas e sublimadas, como se fossem renovadoras inspirações da

sabedoria divina.

Mas, depois de alguns instantes, como se o relógio da imaginação

houvesse parado alguns minutos. para que o coração pudesse escutar o

tropel das lembranças no deserto do seu mundo subjetivo, murmurava,

confortado, na posse tardia do roteiro do seu amargurado destino:

- Hoje creio, minha filha, que, se as energias sábias do céu haviam

decidido a tua morte, em pequenina - determinação essa que eu

possivelmente contrariei com a minha súplica angustiosa de pai,

descoberta em silêncio pelo Messias de Nazaré no recôndito do meu

orgulhoso e infeliz coração - e que deverias ficar livre do cárcere que te

prendia, de modo a te preparares melhor para a resignação, para a

fortaleza e para os sofrimentos. Certamente, renascerias mais tarde e

encontrarias as mesmas circunstâncias e os mesmos inimigos, mas terias

um organismo mais forte para resistir aos embates penosos da existência

terrestre.

Reconhecemos hoje, portanto, que há uma lei soberana e

misericordiosa a que devemos obedecer, sem interferir no seu mecanismo

feito de misericórdia e sabedoria...

Quanto a mim, que tive organismo resistente e fibra espiritual

saturada de energia, sinto que, em outras vidas, procedi mal e cometi

crimes nefandos.

Minha atual existência teria de ser um imenso rosário de infinitas

amarguras, mas vejo tardiamente que, se houvesse ingressado no

caminho do bem, teria resgatado um montão de pecados do pretérito

obscuro e delituoso. Agora entendo a lição do Cristo como ensinamento

imortal da humildade e do amor, da caridade e do perdão - caminhos

425

HÁ DOIS MIL ANOS...

seguros para todas as conquistas do espírito, longe dos círculos

tenebrosos do sofrimento!

E lembrando o sonho que relatara a Flamínio, nos tempos idos,

concluía:

- A expiação não seria necessária no mundo, para burilamento da

alma, se compreendêssemos o bem, praticando-o por atos, palavras e

pensamentos. Se é verdade que nasci condenado ao suplício da cegueira,

em tão trágicas circunstâncias, talvez tivesse evitado a consumação desta

prova, se abandonasse o meu orgulho para ser um homem humilde e bom.

Um gesto de generosidade de minha parte teria modificado as

íntimas disposições de André de Gioras; mas, a realidade é que, não

obstante todos os preciosos alvitres do Alto, continuei com o meu

egoísmo, com a minha vaidade e com a minha criminosa impenitência.

Agravei, desse modo, meus débitos clamorosos perante a Justiça Divina, e

não posso esperar magnanimidade dos juizes que me aguardam...

O velho Públio Lentulus tinha uma lágrima dolorosa no canto dos

olhos apagados, mas Ana. que ansiosa lhe escutara as palavras e

conceitos, e que se regozijava intimamente verificando que o orgulhoso

senhor atingira as mais justas conclusões de ordem evangélica, ilações a

que também ela havia chegado nas meditações da velhice, esclarecia,

bondosamente, como se as suas afirmativas simples e incisivas

chegassem no momento justo para consolação de todos:

- Senador - todas as vossas observações são criteriosas e justas.

Essa lei das vidas múltiplas, em favor do nosso aprendizado nas lutas

penosas do mundo, eu a aceito plenamente, pois, nas suas divinas lições,

Jesus asseverou que ninguém poderá penetrar o reino dos céus sem

renascer de novo. Presumo, todavia, apesar da vossa cegueira material e

dos vossos padecimentos, que sei compreender em toda a sua angustiosa

intensidade, deveis

426

ROMANCE DE EMMANUEL

trazer a alma plena de crença e de esperanças no futuro espiritual, porque

também o Cristo nos afiançou que Nosso Pai não quer que se perca uma

só de suas ovelhas!...

Públio Lentulus sentiu que uma força inexplicável lhe brotava no

íntimo, como se fôra manancial desconhecido, de estranho conforto,

preparando-o para enfrentar dignamente todos os amargores.

- Sim - murmurou de leve -, sempre Jesus!... Sempre Jesus!... Sem

ele e sem os ensinos de suas palavras que nos enchem de coragem e de fé

para alcançar um reino de paz no porvir da alma, não sei bem o que seria

das criaturas humanas, agrilhoadas ao cárcere dos sofrimentos

terrestres... Sete anos de padecimentos infinitos na soledade dos meus

olhos mortos, figuram-se-me sete séculos de aprendizado cruel e

doloroso! Somente assim, porém, poderia chegar a entender a lição do

Crucificado!

O velho patrício, todavia, ao pronunciar a palavra "crucificado",

reconduziu o pensamento a Jerusalém, na Páscoa do ano 33. Recordou

que tivera em mãos o processo do Emissário Divino e, só então, ponderou

a tremenda responsabilidade em que se vira envolvido naquele dia

inolvidável e doloroso, exclamando depois de longa pausa:

- E pensar que, para um espírito como aquele, não houve sequer um

gesto decisivo de defesa, da nossa parte, no angustioso momento da cruz

infamante... . A mim, que agora vivo tão somente das minhas recordações

amargas, parece-me vê-lo ainda à frente dos meus olhos, com os tristes

estigmas da flagelação!...

Nele, concentrava-se todo o amor supremo do céu para redenção

das misérias da Terra e, entretanto, não vi pessoa alguma trabalhar pela

sua liberdade, ou agir efetivamente em seu favor!...

- Menos alguém... - exclamou Ana, inopinadamente.

427

HÁ DOIS MIL ANOS...

Quem chegou a ter esse gesto nobre? - perguntou o velho cego,

admirado. - Não me constou que alguém o defendesse.

- É porque ignorastes, até hoje, que vossa digna consorte e minha

inesquecível benfeitora, atendendo aos nossos rogos, se dirigiu

imediatamente a Pôncio Pilatos, tão logo o triste cortejo havia saído da

corte provincial romana, para interceder pelo Messias de Nazaré,

injustamente condenado pela multidão enfurecida. Recebida pelo

governador no seu gabinete particular, foi em vão que a nobre senhora

implorou compaixão e piedade para o Divino Mestre.

- Então Lívia chegou a dirigir-se a Pilatos para suplicar por Jesus? -

perguntou o senador, interessado e perplexo, recordando aquela tarde

angustiosa da sua vida e rememorando as calúnias de Fúlvia, a respeito da

esposa.

- Sim - respondeu a serva -, por Jesus, seu coração magnânimo

desprezou todas as convenções e todos os preconceitos, não vacilando

em atender às nossas súplicas, tudo fazendo por salvar o Messias da

morte infamante!...

Públio Lentulus sentiu, então, grande dificuldade para externar seus

pensamentos, com a garganta sufocada de emoção, dentro de suas

amargas lembranças, e com os olhos mortos, marejados de lágrimas...

Ana, porém, recordou todos os pormenores daquele dia doloroso,

relatando suas passadas emoções, enquanto o senador e a filha lhe

escutavam a palavra, tomados de pranto no caminho da dor, da gratidão e

da saudade.

E era desse modo que, ao fim de cada dia, sob o céu brilhante e

perfumado de Pompeia, aquelas três almas se preparavam para as

realidades consoladoras da morte, dentro da claridade terna e triste das

lições amargas do destino, na esteira das recordações amigas.

428

X

Nos derradeiros minutos de Pompeia

Em radiosa manhã do ano de 79, toda a Pompeia despertou em

rumores festivos.

A cidade havia recebido a visita de um ilustre questor do Império e,

naquele dia, todas as ruas se movimentavam em alacridade barulhenta,

aguardando-se, para breves horas, as festas deslumbrantes do anfiteatro,

com que a administração desejava celebrar o evento, em meio da alegria

geral.

Para o velho senador Públio Lentulus, o acontecimento se revestia

de importância especial, porquanto o distinto hóspede de Pompeia lhe

trazia significativa mensagem, bem como honrosas deferências de Tito

Flavius Vespasiano, então imperador, na sucessão de seu pai.

Ainda mais.

No séquito do questor ilustre vinha, igualmente, Plínio Severus, em

plenitude de maturidade, totalmente regenerado e julgando-se agora

redimido no conceito da esposa e daquele que seu coração considerava

como pai.

429

HÁ DOIS MIL ANOS...

Nesse dia, enquanto Ana comandava, verbalmente, as atividades

domésticas nos preparativos da recepção, mobilizando escravos e servos

numerosos, Públio e filha se abraçavam comovidos, em face da surpresa

que o destino lhes reservara, embora tardiamente. Avisados por

mensageiros da caravana de patrícios ilustres, davam larga às emoções

mais gratas do espírito, na doce perspectiva de acolherem o filho pródigo,

tantos anos distante de seus braços amigos.

Antes do meio-dia, um deslumbramento de viaturas, de cavalos

ajaezados e de jóias faiscantes sobre vestiduras reluzentes se deparava às

portas da vila plácida e graciosa, provocando a admiração e o interesse

curioso das vizinhanças. E, em seguida, foi um turbilhão de abraços,

carinhos, palavras confortadoras e generosas.

Quase todos os patrícios, em excursão pela Campânia, conheciam o

senador e sua família, representando esse acontecimento um suave

encontro de corações.

Públio Lentulus abraçou Plínio, demoradamente, como se fizesse a

um filho bem-amado, que voltasse de longe e cuja ausência houvera sido

excessivamente prolongada. Experimentava no íntimo impulsos de

extravasão de afeto, que o seu coração dominou, para não provocar a

admiração injustificada dos circunstantes.

- Meu pai, meu pai! - disse o filho de FIamínio em tom discreto e

quase imperceptível aos seus ouvidos, quando lhe beijava a fronte

encanecida - já me perdoastes?

Ó filho, como tardaste tanto?!... Quero-te como sempre e que o céu

te abençoe!... - respondeu o velho cego, emocionado.

Daí a instante, após o doce encontro de Plínio e sua mulher,

exclamou o questor em meio do silêncio geral:

- Senador, honro-me em trazer-vos preciosa lembrança de César,

acompanhada de uma mensa430

ROMANCE DE EMMANUEL

gem de reconhecimento da alta administração política do Império, um dos

mais fortes e mais justos motivos de minha permanência em Pompeia, e

incumbo o nosso amigo Plínio Severus de vos entregar, neste momento,

estas relíquias que representam uma das mais significativas homenagens

do Império ao esforço de um dos seus mais dedicados servidores!...

Públio Lentulus sentia bem a suprema emoção daquela hora.

A homenagem do imperador, a carinhosa presença dos amigos, a

volta do genro aos seus braços paternos, representavam para o seu

coração uma alegria entontecedora.

Seus olhos, entretanto, nada podiam ver. Do seio da sua noite, ouvia

aqueles apelos generosos, como um desterrado da luz, de quem se

exumassem as recordações mais queridas e mais doces.

- Amigos - disse, enxugando uma lágrima furtiva nos olhos

apagados -, tudo isso é para mim a maior recompensa de uma vida inteira.

Nosso imperador é um espírito excessivamente generoso, porque a

verdade é que nada fiz para merecer o reconhecimento da pátria.

Minhalma, todavia, exulta convosco, meus patrícios, porque a nossa

reunião nesta casa é símbolo de união e trabalho, nos elevados encargos

do Império!...

Nesse instante, contudo, alguém lhe tomava as mãos

encarquilhadas, levando-as aos lábios úmidos, deixando, porém, nas

pequeninas conchas das rugas, duas lágrimas ardentes.

Plínio Severus, num gesto espontâneo, ajoelhara-se e, osculando-lhe

as mãos, dava expansão ao seu afeto e reconhecimento, ao mesmo tempo

que lhe fazia entrega da mensagem imperial que o velho senador não mais

podia ler.

Públio Lentulus chorava, sem poder pronunciar uma única palavra,

tal a emoção que lhe oprimia o íntimo, enquanto os circunstantes lhe

acom431

HÁ DOIS MIL ANOS...

panhavam as atitudes com os olhos rociados de pranto.

Nesse ínterim, o filho de Flamínio não mais se conteve e,

consagrando a sua regeneração espiritual, exclamava enternecido:

- Meu querido pai, não choreis, se aqui nos achamos todos para

compartilhar vossa alegria! Diante de todos os nossos amigos romanos,

com a homenagem do Império, eu vos entrego o meu coração regenerado

para sempre!... Se estais agora cego, meu pai, não o estais pelo espírito

que sempre procurou dissipar as sombras e remover tropeços do nosso

caminho!... Continuareis guiando os meus, ou, melhor, os nossos passos,

com as vossas antigas tradições de sinceridade e de esforço, na retidão

do proceder!... Voltareis comigo para Roma e, junto de vosso filho

reabilitado, organizareis novamente o palácio do Aventino... Serei, então,

para todo o sempre, uma sentinela do vosso espírito, para vos amar e

proteger!... Tomarei minha esposa a meu inteiro cuidado e, dia a dia,

tecerei para nós três uma auréola de venturas novas e indefiníveis, com os

milagres da minha afeição imorredoura! Em nossa casa do Aventino

florescerá uma alegria nova, porque hei-de prover todas as vossas horas

com o amor grande e santo de quem, conhecendo todas as duras

experiências da vida, sabe agora valorizar seus próprios tesouros!...

O velho senador, alquebrado pelos anos e pelos mais rudes

sofrimentos, conservava-se de pé, acariciando os cabelos do genro,

igualmente prateados pelos invernos da vida, enquanto pesadas lágrimas

rompiam a muralha da sua noite para enternecer o coração de todos, numa

angustiosa e indefinível emotividade. Flávia Lentúlia chorava, igualmente,

dominada por íntimas sensações de felicidade, ao cabo de tão longas e

desalentadas esperanças!... Alguns amigos desejavam quebrar a

solenidade dolorosa daquele quadro imprevisto, mas o próprio questor,

que chefiava a caravana de patrícios ilus432

ROMANCE DE EMMANUEL

tres, se ocultara num recanto, sensibilizado até às lágrimas.

Públio Lentulus, contudo, compreendendo que somente ele próprio

poderia modificar as disposições daquela paisagem sentimental, reagiu às

emoções, exclamando:

- Levanta-te, meu filho!... Nada fiz para me agradeceres de joelhos...

Porque me falas deste modo?... Voltaremos para Roma, sim, em breves

dias, pois todos os teus desejos são os nossos... regressaremos à nossa

casa do Aventino, onde, juntos, viveremos para relembrar o pretérito e

venerar a memória dos nossos antepassados!

E, depois de uma pausa, continuou, em exclamações quase

otimistas:

- Meus amigos, sinto-me comovido e grato pela gentileza e afeto de

todos vós! Mas, que é isso? Todos silenciosos? Lembrai-vos de que não

vos vejo senão através das palavras. E a festa de hoje?...

As exclamações do senador quebraram o silêncio geral, voltando-se

aos intensos ruídos de minutos antes. A torrente das palestras casava-se

ao tinir das taças de vinho, em seus pesados estilos da época.

Enquanto as visitas se reuniam no triclínio espaçoso para libações

ligeiras, Plínio Severus e a esposa trocavam confidências ternas, ora sobre

os projetos em perspectiva para os anos que ainda lhes restavam no

mundo, ora quanto às recordações dos dias lentos e amargurados do

passado distante.

Insistentes chamados, porém, requeriam a presença do questor e

comitiva, no local dos festejos.

O circo fôra preparado a rigor e não se perdera nenhuma

oportunidade para a realização das menores minudências próprias das

grandes festividades romanas.

E ao mesmo tempo que todos se despediam do senador e de sua

filha, num deslumbramento de

433

HÁ DOIS MIL ANOS...

felicidade mundana, Plínio Severus dirigia-se a Públio nestes termos,

depois de abraçar ternamente a companheira:

- Meu pai, levado pelas circunstâncias, sou compelido a acompanhar

o questor nas festividades populares, mas estarei de regresso em breves

horas, para ficar convosco um mês, de modo a tratarmos do nosso

regresso a Roma.

- Muito bem, meu filho - respondia o velho senador, sumamente

confortado -, acompanha os nossos amigos e representa-me junto das

autoridades. Dize a todos da minha emoção e do meu agradecimento

sincero.

A sós novamente, o senador sentiu que aquelas comoções

cariciosas e alegres eram, talvez, as últimas da sua vida. No velho peito, o

coração batia-lhe descompassado, como se pesada nuvem de

pensamentos tristes o envolvesse. Sim, a volta de Plínio aos seus braços

paternos era a alegria suprema da sua velhice desalentada. Sabia, agora,

que a filha poderia contar com o esposo, nas estradas do seu tormentoso

destino, e que a ele, Públio, somente competia aguardar a morte,

resignado. Ponderando as palavras afetuosas do filho de FIamínio e os

seus apelos ao passado remoto, Públio Lentulus considerou, intimamente,

que era muito tarde para regressar ao Aventino e que a volta a Roma

apenas devia significar, para o seu espírito precito, o símbolo da sepultura.

Em pleno espetáculo, Plínio Severus, já no outono da vida,

arquitetava os planos de futuro. Procuraria resgatar todas as faltas

antigas, perante os seus parentes afetuosos e queridos; assumiria a

direção de todos os negócios do velho pai pelo coração, aliviando-o de

todas as angustiosas preocupações da vida material.

De vez em quando, os aplausos da multidão lhe interrompiam os

devaneios. A maioria da população de Pompeia ali estava em plena festa,

ovacionando os triunfadores. Gente de toda a re434

ROMANCE DE EMMANUEL

dondeza e muito particularmente de Herculanum, acorrera pressurosa ao

divertimento predileto daquelas épocas recuadas. De permeio com os

atletas e gladiadores, estavam os músicos, os cantores e os dançarinos.

Tudo era um farfalhar de sedas, um delicioso chocalhar de alegrias

ruidosas, ao som de flautas e alaúdes.

Em dado instante, porém, a atenção geral foi solicitada por um fato

estranho e incompreensível. Do cimo do Vesúvio elevava-se grossa

pirâmide de fumo, sem que ninguém atinasse com a causa do fenômeno

insólito.

Continuavam os jogos animadamente, mas agora, no seio da coluna

fumarenta que se elevava em caprichosos rolos para o alto, surgiam

impressionantes labaredas...

Plínio Severus, como todos os presentes, se surpreendia com o

fenômeno estranho e inexplicável.

Em minutos breves, no entanto, estabeleciam-se no anfiteatro a

confusão e o terror.

Em meio da perturbação geral e imprevista, o filho de Flamínio ainda

teve tempo de se aproximar do questor, então rodeado dos seus familiares

que residiam na cidade, o qual lhe falou com otimismo, embora não

conseguisse dissimular de todo as Íntimas inquietações:

- Meu amigo, tenhamos calma! Pelas barbas de Júpiter!... Então, por

onde andarão a nossa coragem e a nossa fibra?

Mas, em breves instantes a terra lhes tremia sob os pés, em

vibrações desconhecidas e sinistras. Algumas colunas tombavam ao solo,

pesadamente, enquanto numerosas estátuas rolavam dos nichos

improvisados, recamados de ouro e pedrarias.

Abraçando-se, então, à filha e cercado de numerosas senhoras, o

questor disse altamente preocupado:

- Plínio, demandemos as galeras, sem demora!...

435

HÁ DOIS MIL ANOS...

Mas, o oficial romano não mais ouviu os apelos. Ansiosamente,

atirou-se à faina de romper a multidão, que desejava retirar-se em massa

do circo, motivando o esmagamento de crianças e pessoas mais idosas.

Ao cabo de sobre-humano esforço, conseguiu alcançar a rua, mas

todos os lugares estavam tomados por gente que saía de casa,

desarvorada, aos gritos de "Fogo, Fogo!... O Vesúvio..."

Plínio verificou que todas as vias públicas estavam repletas de gente

desesperada, de viaturas e de animais espavoridos.

Com enorme dificuldade, vencia todos os obstáculos, mas o Vesúvio

lançava agora, para o céu, uma fogueira indescritível e imensa, como se a

própria Terra houvera incendiado as entranhas mais profundas.

Uma chuva de cinza, a princípio quase imperceptível, começou a

cair, enquanto o solo continuava a tremer com ruídos surdos, aterradores.

De instante a instante, ouvia-se o estrondo pavoroso de colunas

derribadas ou de edifícios desmoronados pelos abalos sísmicos, ao

mesmo tempo que o fumo do vulcão ia eclipsando a confortadora

claridade solar.

Mergulhada em penumbra espessa e tomada de terror indizível,

Pompeia assistia aos seus últimos instantes, numa aflição desesperada...

(1)

Na vila de Lentulus, os escravos perceberam imediatamente o perigo

próximo. Nos primeiros momentos, os cavalos relinchavam estranhamente

e as aves inquietas fugiam em desespero.

Após a queda das primeiras colunas que sustentavam o edifício,

todos os servos do senador

__________

(1) Este trecho desperta interesse e atenção do leitor curioso e inteligente, pela

similitude que oferece com a descritiva de outro romance mediúnico e também precioso,

qual o Herculanum, do Conde de Rochester. - Nota da Editora.

436

ROMANCE DE EMMANUEL

abandonaram precipitadamente os postos, desejosos de conservar noutra

parte os bens preciosos da vida. Somente Ana ficara junto dos amos,

dando-lhes conhecimento dos horrores do ambiente.

Os três, numa justificada inquietude, escutaram o rumor horrível da

inolvidável catástrofe do Império. A própria vila estava já meio destruída,

penetrando as cinzas pelos desvãos abertos pela queda dos telhados e

começando a sua obra de lenta sufocação. Ansiavam todos pelo regresso

imediato de Plínio, a fim de resolverem as providências a adotar, mas o

velho senador, cujo coração não se iludia nos seus amargurados

pressentimentos, exclamou em tom quase resignado:

- Ana, traze a cruz de Simeão e vamos à prece que te foi ensinada

pelos discípulos do Messias!... Diz-me o coração que é chegado o fim da

nossa romagem pela Terra!

Enquanto a serva buscava apressadamente a relíquia do ancião de

Samaria, afrontando o perigo das paredes oscilantes, Públio Lentulus

ouvia o surdo rumor da terra dilacerada e os gritos apavorantes e sinistros

do povo, misturados ao barulho tremendo do vulcão que, transformado em

fornalha imensa e indescritível, enchia toda a cidade de cinzas e lavas

ferventes. Lembrou-se, então, o senador, das afirmativas do Cristo nos

dias idos da Galileia, quando lhe asseverava que toda a grandeza romana

era bem miserável e num minuto breve poderia o Império ser reduzido a

um punhado de pó. O coração batia-lhe descompassado naquele minuto

extremo, mas a velha serva havia regressado e ajoelhara-se, serena,

guardando nas mãos a lembrança de Simeão e de Lívia, orando em voz

comovedora e profunda:

"Pai Nosso, que estais no céu... santificado seja o vosso nome...

venha a nós o vosso reino... seja feita a vossa vontade... assim na Terra

como nos céus..."

437

HÁ DOIS MIL ANOS...

Nesse instante, porém, a voz da serva emudeceu subitamente,

enquanto seu corpo rolava sob novos escombros, sentindo-se ela

amparada, espiritualmente, pelo venerável samaritano que a conduziu,

imediatamente, às mais elevadas esferas espirituais, tal a natureza do seu

coração iluminado nas dores e testemunhos mais angustiosos do

aprendizado terrestre.

- Ana!... Ana!... - exclamavam Públio e Flávia, soluçantes, sentindo

ambos pela primeira vez o infortúnio do insulamento supremo, sem uma

luz e sem um guia, em pleno desamparo!

Alguém, contudo, rompera todos os destroços e chegava, rápido, até

àquela câmara interior, e, abraçando Públio e sua filha gritava em voz

opressa: - "Flávia! meu pai! aqui estou..."

Plínio chegava, afinal, para o instante derradeiro. Flávia Lentúlia

apertou-o carinhosamente nos braços, enquanto o velho senador semiasfixiado

tomava as mãos do filho, abraçando-se os três num amplexo

derradeiro.

Flávia e Plínio quiseram falar, mas grossa camada de cinzas

penetrava o interior, pelas fendas enormes da vila meio destruída...

Mais um estremeção do solo e as colunas que ainda restavam de pé

se abateram sobre os três, roubando-lhes as últimas energias e fazendo-os

cair assim, enlaçados para sempre, sob um montão de escombros...

Naquelas sombras espessas, todavia, pairavam criaturas aladas e

leves, em atitudes de prece, ou confortando ativamente o coração abatido

dos míseros condenados à destruição.

Sobre os três corpos soterrados permanecia a entidade radiosa de

Lívia, junto de numerosos companheiros que cooperavam, com

devotamento e precisão, nos serviços de desprendimento total dos

moribundos.

Pousando as mãos luminosas e puras na fronte abatida do

companheiro exausto e agonizante, Lívia

438

ROMANCE DE EMMANUEL

elevou os olhos ao firmamento enegrecido e orou com a suavidade da sua

fé e dos seus sentimentos diamantinos.

- Jesus, meigo e divino Mestre - esta hora angustiosa é bem um

símbolo dos nossos erros e crimes, através de avatares tenebrosos; mas,

vós, Senhor, sois toda a esperança, toda a sabedoria e toda a

misericórdia!... Abençoai nossos espíritos neste momento ríspido e

doloroso!... Suavizai os tormentos da alma gêmea da minha, concedendolhe

neste instante o alvará da liberdade!... Aliviai, magnânimo Salvador do

mundo, todas as suas magoas pungentes, suas desoladoras amarguras!...

Concedei-lhe repouso ao coração angustiado e dolorido, antes do seu

novo regresso à trama escura das reencarnações no planeta do exílio e

das lágrimas dolorosas... Ele já não é mais, Senhor, o vaidoso déspota de

outrora, mas um coração inclinado ao bem e â piedade pregados pela

vossa doutrina de amor e redenção; sob o peso das provações amargas e

remissoras, seus pendores se espiritualizaram a caminho da vossa

Verdade e da vossa Vida!...

E, enquanto Lívia orava, o senador abraçado aos filhos, já

cadáveres, desferia o último gemido, com pesada lágrima a lhe cintilar nos

olhos mortos...

Numerosas legiões de seres espirituais volitaram por vários dias,

nos céus caliginosos e tristes de Pompeia.

Ao cabo de longas perturbações, Públio Lentulus e filhos

despertaram, ali mesmo, sobre o túmulo nevoento da cidade morta.

Em vão o senador invocou a presença de Ana ou de algum outro

servo, na penosa ilusão da vida material, persistindo em seu organismo

psíquico as impressões da cegueira material, que representara o longo

suplício dos seus anos derradeiros, na indumenta da carne.

Contudo, após as primeiras lamentações, ouviu uma voz que lhe

dizia brandamente:

439

HÁ DOIS MIL ANOS...

- Públio, meu amigo, não apeles mais para os recursos do planeta

terreno, porque todos os teus poderes terminaram com os teus despojos,

na face escura e triste da Terra! Apela para Deus Todo-Poderoso, cuja

misericórdia e sabedoria nos são dadas pelo amor do seu Cordeiro, que é

Jesus-Cristo!...

Públio Lentulus não chegou a lobrigar o interlocutor, mas identificou

a voz de Flamínio Severus, desabafando, então, numa torrente de preces e

de lágrimas fervorosas.

Embora as dedicações constantes de Lívia, havia já alguns dias que

seu espírito se encontrava presa de pesadelos angustiosos, nos primeiros

instantes da vida do Além, assistido, porém, continuamente por Flamínio e

outros companheiros abnegados, que o aguardavam no plano espiritual.

Contudo, depois daquelas súplicas sinceras que lhe fluíam do mais

recôndito do coração, sentiu que seu mundo interior se desanuviara...

Junto dos filhos queridos, recobrou a visão e reconheceu os entes

amados, com lágrimas de amor e reconhecimento, nos pórticos do alémtúmulo.

Ali se conservavam numerosas personagens desta história, como

Flamínio, Calpúrnia, Agripa, Pompílio Crasso, Emiliano Lucius e muitos

outros; mas, em vão, os olhos angustiosos do ex-senador procuravam

alguém na assembléia afetuosa e amiga.

Depois de todas as expansões de carinho e alegria dirigiu-se-lhe

Flamínio, intencionalmente.

- Estranhas a ausência de Lívia - dizia ele com o seu olhar

complacente e generoso -, mas não poderás vê-la, enquanto não

conseguires despir, pela prece e pelos bons desejos, todas as impressões

penosas e nocivas da Terra. Ela se tem conservado junto ao teu coração,

em rogativas sinceras e fervorosas pelo teu reerguimento, mas o nosso

grupo ainda é de espíritos muito apegados ao orbe, e esperávamos o

regresso dos seus últimos componentes, ainda na Terra, para podermos,

em conjunto, esta440

ROMANCE DE EMMANUEL

belecer novo roteiro às reencarnações vindouras.. Séculos de trabalho e

de dor nos esperam na senda da redenção e do aperfeiçoamento, mas

precisamos, antes de tudo, buscar a fortaleza precisa em Jesus, fonte de

todo o amor e de toda a fé, para as elevadas realizações do nosso

pensamento!..

Públio Lentulus chorava, tocado por emoções estranhas e

indefiníveis.

- Meu amigo - continuou Flamínio, amoroso -, pede a Jesus, por

todos nós, a misericórdia dessa claridade de um novo dia!...

Públio, então, ajoelhou-se e, banhado em lágrimas, concentrou o

coração em Jesus numa rogativa ardente e silenciosa... Ali, na soledade da

sua alma intrépida e sincera, apresentava ao Cordeiro de Deus o seu

arrependimento, suas esperanças para o porvir, suas promessas de fé e de

trabalho para os séculos porvindouros!...

Todos os presentes lhe acompanharam a oração, tomados de pranto

e mergulhados em vibrações de consolação inefável.

Viram, então, rasgar-se um caminho luminoso e florido nos céus

escuros e tristes da Campânia, e, por ele, como se descessem dos jardins

fulgurantes do Paraíso, surgiram Lívia e Ana abraçadas, como se ainda ali

enviasse Jesus um ensinamento simbólico àquelas almas prisioneiras da

Terra, de modo a lhes revelar que, em qualquer posição, pode a alma

encarnada buscar o seu reino de luz e de paz, de vida e de amor, tanto na

túnica humilde do escravo, como na pomposa indumentária dos senhores.

O velho patrício contemplou a figura radiosa da companheira e,

extasiado, fechou os olhos banhados no pranto da compunção e do

arrependimento; mas, em breve, dois lábios de névoa pousavam-lhe na

fronte, qual o leve roçar de um lírio divino. E, enquanto seu coração

maravilhado se lavava nas lágrimas da alegria e do reconhecimento a

Jesus, toda a caravana, ao impulso poderoso das

441

HÁ DOIS MIL ANOS...

preces fervorosas daquelas duas almas redimidas, elevava-se a esferas

mais altas, para repouso e aprendizado, antes de novas etapas de

regeneração e trabalhos purificadores, a lembrar um grupo maravilhoso de

luminosas falenas do Infinito!...

FIM

AVISO DOS EDITORES

Se lhe agradou a leitura deste livro, deverá conhecer a reencarnação

de Publius, em "50 Anos Depois", outro romance do mesmo Autor.

 

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