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as forças misteriosas da morte. Os médicos não tinham a menor
esperança de cura, considerando o profundo desequilíbrio físico, aliado a
mui forte desorganização do sistema cardíaco. As menores emoções
determinavam alterações no seu estado, ensejando as mais amplas
apreensões da família.
De vez em quando, os olhos serenos e tranqüilos se fixavam
detidamente na porta de entrada, como se esperassem alguém com o
máximo interesse, até que rumores mais fortes, vindos do vestíbulo,
anunciaram ao seu coração que ia cessar uma ausência de quinze anos
consecutivos, entre ele e os amigos sempre lembrados.
Calpúrnia, igualmente muito abatida, abraçou Lívia e Públio,
derramada em lágrimas e apertando Flávia nos braços, como se recebesse
uma filha.
Ali mesmo, no vestíbulo, trocaram impressões e falaram das suas
saudades intensas e das preocupações numerosas, até que Públio
deliberou deixar as duas amigas em franca expansão afetiva e se
encaminhou com Agripa a um dos compartimentos próximos do tablino,
onde abraçou o grande amigo, com lágrimas de alegria.
Flamínio Severus estava magríssimo e suas palavras, por vezes,
eram cortadas pela dispnéia impressionante, dando a perceber que muito
pouco tempo lhe restava de vida.
Sabendo da satisfação do pai na companhia íntima do leal amigo,
Agripa retirou-se do vasto
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HÁ DOIS MIL ANOS...
aposento, onde as sombras do crepúsculo começavam a penetrar
caprichosamente, como se o fizessem no silêncio sagrado das naves
religiosas.
Públio Lentulus se surpreendeu, encontrando o velho companheiro
em tal estado. Não supunha revê-lo tão depauperado. Agora, certificava-se
de que era a ele, sim, que competia auxiliá-lo com os seus conselhos,
levantando-lhe as forças orgânicas e espirituais, com as suas exortações
amigas e carinhosas.
Uma vez a sós, contemplou o amigo e mentor, como se estivesse a
mirar uma criança enferma.
Flamínio, por sua vez, olhou-o face a face e, olhos rasos dágua,
tomou-lhe as mãos nas suas, dando-lhe a entender que recebia ali,
naquele momento, um filho muito amado.
Num gesto brando e delicado, procurou sentar-se mais
comodamente e, amparando-se nos ombros de Lentulus, murmurou
comovidamente ao seu ouvido:
- Públio, aqui já te não recebe o companheiro enérgico e resoluto
doutros tempos. Sinto que apenas te esperava para poder entregar a alma
aos deuses, tranqüilamente, supondo já cumprida a missão que me
competia na Terra, com a minha consciência retilínea e os meus honestos
pensamentos.
Há mais de um ano pressinto o instante irremediável e fatal, que,
agora, satisfeito o meu ardente desejo, deve estar avizinhando-se com a
velocidade do relâmpago. Não desejava, pois, partir sem te apertar em
meus braços, fazendo-te as últimas confidências neste leito de morte...
- Mas, Flamínio - respondeu-lhe o amigo, com serenidade dolorosa -,
tudo me autoriza a crer nas tuas melhoras imediatas, e todos nós
aguardamos a bênção dos deuses, de maneira que possamos contar com
a tua companhia indispensável, por muito tempo ainda, neste mundo.
- Não, meu bom amigo, não te iludas com essas suposições e
pensamentos. Nossa alma ja228
ROMANCE DE EMMANUEL
mais se engana quando se avizinha das sombras do sepulcro... Não me
demorarei em penetrar o mistério da grande noite, mas acredito,
firmemente, que os deuses me saudarão com as luzes de suas auroras!...
E, deixando o olhar, profundo e sereno, divagar pelo aposento, como
se as paredes marmorizadas se dilatassem ao infinito, Flamínio Severus
concentrou-se um minuto em meditações íntimas, continuando a falar,
como se desejasse imprimir à conversação um novo rumo:
- Lembras-te daquela noite em que me confiaste os pormenores de
um sonho misterioso, no auge da tua emotividade dolorosa?
- Oh! se me lembro!... - revidou Públio Lentulus recordando, de modo
inexplicável, não só a palestra remota que resolvera a viagem à Palestina,
mas também outro sonho, no qual testemunhara os mesmos fenômenos
intraduzíveis, na noite do seu encontro com Jesus de Nazaré. Ao lembrarse
daquela personalidade maravilhosa, estremeceu-lhe o coração, mas
tudo fez por evitar ao amigo uma impressão mais forte e dolorosa,
acrescentando com aparente serenidade: - Mas, a que vem tua pergunta,
se hoje estou mais que convicto, de acordo contigo mesmo, que tudo
aquilo não passava de simples impressões de uma fantasia sem
importância?
- Fantasia? - replicou Flamínio, como se houvesse encontrado uma
nova fórmula da verdade. - Já modifiquei por completo as minhas idéias. A
enfermidade tem, igualmente, os seus belos e grandiosos beneficios.
Retido no leito há muitos meses, habituei-me a invocar a proteção de
Têmis, de modo que não chegasse a ver nos meus padecimentos mais que
o resultado penoso dos meus próprios méritos, perante a incorruptível
justiça dos deuses, até que uma noite tive impressões iguais às tuas.
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HÁ DOIS MIL ANOS...
Não me recordo de haver guardado qualquer preocupação com a tua
narrativa, mas o certo é que, há cerca de dois meses, me senti levado em
sonho à mesma época da revolução de Catilina, e observei a veracidade de
todos os fatos que me relataste há dezesseis anos, chegando a ver o teu
próprio ascendente, Públio Lentulus Sura, que era como que o teu retrato,
tal a sua profunda semelhança contigo, mormente agora que te encontras
nos teus quarenta e quatro anos, em plena fixação de traços fisionômicos.
Interessante é que me encontrava a teu lado, caminhando contigo na
mesma estrada de clamorosas iniquidades. Lembro-me de nos vermos
assinando sentenças iníquas e impiedosas, determinando o suplício de
muitos dos nossos semelhantes... Todavia, o que mais me atormentava era
observar-te a terrível atitude, determinando a cegueira de muitos dos
nossos adversários políticos e assistindo, pessoalmente, ao desenrolar
das flagelações do ferro em brasa, queimando numerosas pupilas para
todo o sempre, aos gritos dolorosos das vitimas indefesas!...
Públio Lentulus arregalou os olhos, de espanto, participando,
igualmente, daquelas recordações que dormitavam fundo na sua alma
ensombrada, e replicou, por fim:
- Meu bom amigo, tranqüiliza o coração... Semelhantes impressões
parecem reflexos de alguma emoção mais forte que perdurasse no âmago
da tua memória, por minhas narrativas naquela noite de há tantos anos!...
Flamínio Severus esboçou, porém, um leve sorriso, como quem
compreendia a intenção generosa e consoladora, redargüindo com serena
bondade:
- Devo dizer-te, Públio, que esses quadros não me apavoraram e
apenas te falo desse complexo de emoções, porque tenho a certeza de que
vou partir desta vida e ainda ficarás, talvez por muito tempo, na crosta
deste mundo. É possível
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ROMANCE DE EMMANUEL
que as recordações do teu espírito aflorem novamente e, então, quero que
aceites a verdade religiosa dos gregos e dos egípcios. Acredito, agora, que
temos vidas numerosas, através de corpos diversos. Sinto que meu pobre
organismo está prestes a desfazer-se; entretanto, meu pensamento está
vivaz como nunca e só em tais circunstâncias presumo entender o grande
mistério de nossas existências. Pesa-me, no íntimo, haver praticado o mal
no pretérito tenebroso, embora haja decorrido mais de um século sobre os
tristes acontecimentos de nossas visões espirituais; todavia, aqui estou
diante dos deuses, com a consciência tranqüila.
Públio ouvia-o atentamente, entre penalizado e comovido. Procurava
dirigir-lhe palavras confortadoras, mas a voz parecia morrer-lhe na
garganta, embargada pelas emoções daquele doloroso momento.
Flamínio, porém, apertou-o de encontro ao coração, com os olhos
rasos de pranto, sussurrando-lhe ao ouvido:
- Meu amigo, não tenhas dúvidas sobre as minhas palavras... Quero
crer que estas horas sejam as últimas... No meu escritório estão todos os
teus documentos e o memorial dos negócios de ordem material que
movimentei em teu nome, na tua ausência e no concernente aos nossos
problemas de ordem política e financeira. Não encontrarás dificuldade para
catalogar, convenientemente, todos os papéis a que me refiro...
- Mas, Flamínio - replicou Públio, com enérgica serenidade -, acredito
que teremos muito tempo para cuidar disso.
Nesse momento, Lívia e a filha, Calpúrnia e os rapazes, acercaramse
do nobre enfermo, trazendo-lhe sorriso amigo e palavras consoladoras.
O doente deu mostras de ânimo e alegria para cada um deles,
encarecendo o abatimento de Lívia e a beleza exuberante de Flávia, com
palavras meigas e quentes.
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HÁ DOIS MIL ANOS...
Ficando a sós, novamente, o generoso senador que a moléstia
desfigurara, entre os linhos claros do leito, exclamou com bondade:
- Eis, meu amigo, as borboletas risonhas do amor e da mocidade,
que o tempo faz desaparecer, célere, no seu torvelinho de impiedades.
E baixando a voz, como se quisesse transmitir ao amigo uma
delicada confidência dalma, continuou a falar pausadamente:
- Levo comigo, para o túmulo, numerosas preocupações pelos meus
pobres filhos. Dei-lhes tudo que me era possível, em matéria educativa, e,
embora reconhecendo que ambos possuem sentimentos generosos e
sinceros, noto que os seus corações são vítimas das penosas transições
dos tempos que passam, nos quais temos o desgosto de observar os mais
aviltantes rebaixamentos da dignidade do lar e da família.
Agripa vem fazendo o possível por se adaptar aos meus conselhos,
entregando-se aos labores do Estado; mas Plínio teve a pouca sorte de se
deixar seduzir por amigos pérfidos e desleais, que não desejam senão a
sua ruína e o arrastam aos maiores desregramentos, nos ambientes
suspeitos de nossas mais altas camadas sociais, levando muito longe o
seu espírito de aventuras.
Ambos me proporcionam os maiores dissabores com os atos que
praticam, testemunhando reduzidas noções de responsabilidade
individual. Esbanjando grande parte da nossa fortuna própria, não sei que
futuro será o da minha pobre Calpúrnia se os deuses não me permitirem a
graça de buscá-la, em breve, no exílio de sua saudade e da sua amargura,
depois da minha morte!...
- Mas a mim - respondeu com interesse o interpelado - eles se me
afiguram dignos do pai que os deuses lhes concederam, com a sua
gentileza generosa e com a fidalguia de suas atitudes.
- Em todo caso, meu amigo, não podes esquecer que tua ausência
de Roma foi muito longa
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ROMANCE DE EMMANUEL
e que muitas inovações se processaram nesse período.
Parecemos caminhar vertiginosamente para um nível de absoluta
decadência dos nossos costumes familiares, bem como os nossos
processos educativos, a meu ver, desmantelados em dolorosa falência!...
E como se desejasse trazer de novo a conversação para os assuntos
de ordem imediata, da vida prática, acentuou
- Agora que vejo tua filha esplendente de mocidade e de energia,
renovo, intimamente, meus antigos projetos de trazê-la para o círculo da
nossa comunidade familiar.
Era meu desejo que Plínio a desposasse, mas meu filho mais moço
parece inclinado a comprometer-se com a filha de Sálvio, não obstante a
oposição de Calpúrnia a esse projeto; não por teu tio, sempre digno e
respeitável aos nossos olhos, mas por sua mulher que não parece
disposta a abandonar as antigas idéias e iniciativas do passado. Devo,
porém, considerar que me resta ainda Agripa, a fim de concretizarmos as
minhas futurosas esperanças.
Se puderes, algum dia, não te esqueças desta minha recomendação
in extremis!...
- Está bem, Flamínio, mas não te canses. Dá tempo ao tempo, porque
não faltará ocasião para discutir o assunto - replicou Públio Lentulus,
comovido.
Neste comenos, Agripa entrou na alcova, dirigindo-se ao pai,
afetuosamente:
- Meu pai, o mensageiro enviado a Massília (1) acaba de chegar,
trazendo as desejadas informações a respeito de Saul.
- E ele nada nos manda dizer sobre a sua vinda? - perguntou o
enfermo, com bondoso interesse.
__________
(1) Nota da Editora: atualmente, Marselha.
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HÁ DOIS MIL ANOS...
- Não. O portador apenas comunica que Saul partiu para a Palestina,
logo depois de alcançar a consolidação da sua fortuna com os últimos
lucros comerciais, acrescentando haver deliberado ir à Judeia, para rever
o pai que reside nas cercanias de Jerusalém.
- Pois sim - disse o enfermo, resignado -, a vista disso, recompensa
o mensageiro e não te preocupes mais com os meus anteriores desejos.
Ao ouvi-los, Públio deu tratos ao cérebro para se recordar de alguma
coisa que não podia definir com precisão. O nome de Saul não lhe era
estranho. Com a circunstância de se localizar a residência do pai nas
proximidades de Jerusalém, lembrou-se, finalmente, das personagens de
suas recordações, com fidelidade absoluta. Rememorou o incidente em
que fôra obrigado a castigar um jovem judeu desse nome, nas cercanias
da cidade, remetendo-o às galeras como punição do seu ato irrefletido, e
recordando, igualmente, o instante em que um agricultor israelita fôra
reclamar a liberdade do prisioneiro, dando-o como seu filho.
Experimentando um anseio vago no coração, exclamou intencionalmente:
- Saul? Não é um nome característico da Judeia?
- Sim - respondeu Flamínio com serenidade -, trata-se de um escravo
liberto de minha casa. Era um cativo judeu, ainda jovem, adquirido por
Valério, no mercado, para as bigas dos meninos, ao ínfimo preço de quatro
mil sestércios. Tão bem se houve, entretanto, nos afazeres que lhe eram
comumente designados, que, após levantar vários prêmios com as suas
proezas no Campo de Marte, destinados aos meus filhos, resolvi concederlhe
a liberdade, dotando-o com os recursos necessários para viver e
promover empreendimentos de sua própria conta. E parece que a mão dos
deuses o abençoou no momento preciso, porque Saul é hoje senhor de
uma fortuna sólida, como resultado do seu esforço e trabalho.
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ROMANCE DE EMMANUEL
Públio Lentulus silenciou, intimamente aliviado, pois o seu
prisioneiro, segundo notícias recebidas pelos prepostos do governo
provincial, se havia evadido para o lar paterno, fugindo, desse modo, à
escravidão humilhante.
As horas da noite iam já avançadas.
O visitante lembrou-se, então, de que esperava avistar-se com
Flamínio para uma palestra substanciosa e longa, a respeito de múltiplos
assuntos, como, por exemplo, a sua penosa situação conjugal, o
desaparecimento misterioso do filhinho, o seu encontro com Jesus de
Nazaré. Mas, observava que Flamínio estava exausto, sendo justo e
necessário adiar suas confidências amargas e penosas.
Foi então que se retirou do aposento para aguardar o dia seguinte,
cheio de esperanças consoladoras.
Os dois amigos trocaram longo e significativo olhar no instante
daquelas despedidas, que agora pareciam comuns, como as afetuosas
saudações diárias doutros tempos.
Confortadoras exortações e promessas amigas foram trocadas,
entre expressões de fraternidade e carinho, antes que Calpúrnia
reconduzisse as visitas ao vestíbulo, com a sua bondade generosa e
acolhedora.
Todavia, nas primeiras horas da manhã seguinte, um mensageiro
apressado parava à porta do palacete dos Lentulus, com a notícia
alarmante e dolorosa.
Flamínio Sevérus piorava inesperadamente, sem que os médicos
dessem aos seus familiares a menor esperança. Todas as melhoras
fictícias haviam desaparecido. Uma força inexplicável lhe desequilibrara a
harmonia orgânica, sem que remédio algum lhe paralisasse as aflições
angustiosas.
Dentro de poucas horas, Públio Lentulus e os seus se encontravam
de novo na vivenda confortável dos amigos.
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HÁ DOIS MIL ANOS...
Enquanto penetra ele, ansioso, no quarto do velho companheiro de
lutas terrestres, Lívia, na intimidade de um apartamento, dirige-se a
Calpúrnia nestes termos:
- Minha amiga, já ouviste falar em Jesus de Nazaré?
A orgulhosa matrona, que não perdia a linha de suas vaidades em
família, ainda nos momentos das mais angustiosas preocupações,
arregalou os olhos, exclamando:
- Porque mo perguntas?
- Porque Jesus - respondeu Lívia, humildemente - é a misericórdia
de todos os que sofrem e não posso esquecer-me da sua bondade, agora
que nos vemos em provações tão ásperas e tão dolorosas.
- Suponho, querida Lívia - redargüiu Calpúrnia, gravemente -, que
esqueceste todas as recomendações que te fiz antes de partires para a
Palestina, porque, pelas tuas advertências, estou deduzindo que aceitaste
de boa fé as teorias absurdas da igualdade e da humildade, incompatíveis
com as nossas tradições mais vulgares, deixando-te levar nas águas
enganosas das crenças errôneas dos escravos.
- Mas, não é isso. Refiro-me à fé cristã, que nos anima nas lutas da
existência e consola o coração atormentado nas provações mais ríspidas e
mais amargosas...
- Essa crença está chegando agora à sede do Império e por sinal tem
encontrado a repulsa geral dos nossos homens mais sensatos e ilustres.
- Eu, porém, conheci Jesus de perto e a sua doutrina é de amor, de
fraternidade e de perdão... Conhecendo os teus justos receios por
Flamínio, lembrei-me de apelar para o profeta de Nazaré, que, na Galileia,
era a providência de todos os aflitos e de todos os sofredores!
- Ora, minha filha, sabes que a fraternidade e o perdão das faltas não
se compadecem, de modo
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ROMANCE DE EMMANUEL
algum, com as nossas idéias de honra, de pátria e de família, e o que mais
me admira é a facilidade com que Públio te permitiu tão íntimo contacto
com as concepções errôneas da Judeia, a ponto de modificares tua
personalidade moral, segundo me deixas entrever.
- Todavia...
Ia Lívia esclarecer, da melhor maneira, os seus pontos de vista, com
respeito ao assunto, quando Agripa entrou inopinadamente no gabinete,
exclamando com a mais forte emoção:
Minha mãe, venha depressa, muito depressa!... Meu pai parece
agonizante!...
Num átimo, ambas penetraram no aposento do moribundo, que tinha
os olhos parados como se fôra acometido, inesperadamente, de um
delíquio irrefreável.
Públio Lentulus guardava, entre as suas, as mãos do moribundo,
mirando-lhe ansiosamente o fundo das pupilas.
Aos poucos, porém, o tórax de Flamínio parecia mover-se de novo
aos impulsos de uma respiração profunda e dolorosa. Em seguida, os
olhos revelaram forte clarão de vida e consciência, como se a lâmpada do
cérebro se houvesse reacendido num movimento derradeiro. Contemplou,
em torno, os familiares e amigos bem-amados, que se debruçavam sobre
ele, inquietos e ansiosos. Um médico muito amigo, que o assistia
invariavelmente, compreendendo a gravidade do momento, retirara-se para
o átrio, enquanto em volta do agonizante somente se ouvia a respiração
opressa dos nossos conhecidos destas páginas.
Flamínio passeou o olhar brilhante e indefinível por todos os rostos,
como se procurasse, mais detidamente, a esposa e os filhos, exclamando
em frases entrecortadas:
- Calpúrnia, estou... na hora extrema... e dou graças aos deuses...
por sentir a consciência... desanuviada e tranqüila... Esperar-te-ei na
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HÁ DOIS MIL ANOS...
eternidade... um dia... quando Júpiter... houver por bem... chamar-te para
meu lado...
A veneranda senhora ocultou o rosto nas mãos, dando expansão às
lágrimas, sem conseguir articular palavra.
- Não chores... - continuou ele, como a aproveitar os momentos
derradeiros -, a morte... é uma solução... quando a vida... já não tem mais
remédio... para as nossas dores...
E olhando ambos os filhos, que o contemplavam com ansiedade, de
olhos lacrimejantes, tomou a mão do mais moço, murmurando:
- Desejaria... meu Plínio... ver-te feliz... muito feliz... É intenção tua...
desposares a filha de Sálvio?...
Plínio compreendeu as alusões paternas naquele momento grave e
decisivo, fazendo um leve sinal negativo com a cabeça, ao mesmo tempo
que fixava os olhos grandes e ardentes em Flávia Lentúlia, como a indicar
ao pai a sua preferência.
O moribundo, por sua vez, com a profunda lucidez espiritual dos que
se aproximam da morte, com plena consciência da situação e dos seus
deveres, entendeu a atitude silenciosa do filho estremecido e, tomando a
mão da jovem, que se inclinava afetuosamente sobre o seu peito, apertou
as mãos de ambos de encontro ao coração, murmurando com íntima
alegria:
- Isso é mais... uma razão... para que eu parta... tranqüilo... Tu,
Agripa... hás-de ser também... muito feliz... e tu... meu caro... Públio... junto
de Lívia... haverás de viver...
Todavia, um soluço mais forte escapara-se-lhe inopinadamente e a
sucessão dos singultos violentos e dolorosos obrigou-o a calar-se,
enquanto Calpúrnia se ajoelhava e lhe cobria as mãos de beijos...
Lívia, também genuflexa, olhava para o alto como se desejasse
descobrir os seus arcanos. A seus olhos, apresentava-se aquela câmara
mortuária repleta de vultos luminosos e de outras sombras
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ROMANCE DE EMMANUEL
indefiníveis, que deslizavam tranqüilamente em torno do moribundo. Orou
no imo dalma, rogando a Jesus força e paz, luz e misericórdia para o
grande amigo que partia. Nesse instante, lobrigou a radiosa figura de
Simeão, rodeada de claridade azulina e resplandecente.
Flamínio agonizava...
À medida que transcorriam os minutos, os olhos se lhe tornavam
vítreos e descoloridos. Todo o corpo transudava um suor abundante, que
alagava o linho alvíssimo das cobertas.
Lívia notou que todas as sombras presentes se haviam também
ajoelhado e somente o vulto imponente de Simeão ficara de pé, como se
fôra uma sentinela divina, colocando as mãos radiosas na fronte abatida
do moribundo. Notou, então, que seus lábios se entreabriam para a oração,
ao mesmo tempo que doces palavras lhe chegavam, nítidas, aos ouvidos
espirituais:
- Pai Nosso que estais no céu, santificado seja o vosso
nome, venha a nós o vosso reino de misericórdia e seja feita a
vossa vontade, assim na Terra como nos céus!...
Nesse instante, Flamínio Severus deixava escapar o último suspiro.
Marmórea palidez lhe cobriu os traços fisionômicos, ao mesmo tempo que
uma infinita serenidade se estampava na sua máscara cadavérica, como se
a alma generosa houvesse partido para a mansão dos bem-aventurados e
dos justos.
Somente Lívia, com a sua crença e a sua fé, pôde conservar-se de
ânimo sereno, entre quantos a rodeavam no doloroso transe. Públio
Lentulus, entre lágrimas comovedoras, certificava-se de haver perdido o
melhor e o maior dos amigos. Nunca mais a voz de Flamínio lhe falaria das
mais belas equações filosóficas, sobre os problemas grandiosos do
destino e da dor, nas correntes intermináveis da vida. E, enquanto se
abriam as portas do palácio para as homenagens da sociedade ro239
HÁ DOIS MIL ANOS...
mana; e enquanto se celebravam solenes exéquias implorando a proteção
dos manes do morto, seu coração de amigo considerava a realidade
dolorosa de se haver rasgado, para sempre, uma das mais belas páginas
afetivas, no livro da sua vida, dentro da escuridão espessa e impenetrável
dos segredos de um túmulo.
240
II
Sombras e núpcias
Às exéquias de Flamínio compareceram numerosos afeiçoados do
extinto, além das muitas representações sociais e políticas de todas as
organizações a que radicara o seu nome digno e ilustre.
Entre tantos elementos, não podia faltar a figura do pretor Sálvio
Lentulus que, nas homenagens póstumas, se fez acompanhar da mulher e
da filha, que fizeram o possível por bem representar a comédia de suas
fingidas mágoas pela morte do grande senador, junto de Calpúrnia que se
debulhava nas lágrimas dos seus mais dolorosos sentimentos.
Ali mesmo, no palácio dos Severus, encontraram-se os membros da
família Lentulus, com a evidente aversão de Públio pela presença da
esposa do tio, enquanto as senhoras trocavam impressões dolorosas, na
afetada etiqueta das trivialidades sociais.
Fúlvia e Aurélia notaram, com profundo desagrado, a expressão
carinhosa de Plínio Severus para com Flávia Lentúlia, a quem distinguia
com especial atenção, nas solenidades fúnebres, como a demonstrar as
preferências do seu coração.
241
HÁ DOIS MIL ANOS...
Eis porque, daí a algum tempo, vamos encontrar mãe e filha em
palestra animada sobre o assunto, na intimidade do lar, dando a entender a
mesquinhez de seus sentimentos, embora os cabelos brancos infundissem
veneração na fronte materna, que, apesar disso, não se deixava vencer
pelos argumentos da experiência e da idade.
- Eu também - exclamava Fúlvia, maliciosamente, respondendo a
uma interpelação da filha - muito me surpreendi com as atitudes de Plínio,
por julgá-lo um rapaz cioso do cumprimento de seus deveres; mas não me
interessei pelos modos de Flávia, porquanto sempre achei que os filhos
têm de herdar fatalmente as qualidades dos pais e, mais particularmente
no caso presente, quando a herança é materna, com mais bases de certeza
irrefutável para o nosso julgamento.
- Oh! mãe, queres dizer, então, que conheces a conduta de Lívia a
esse ponto? - perguntou Aurélia, com bastante interesse.
- Nem duvides que seja de outra forma...
E a imaginação caluniosa de Fúlvia passou a satisfazer a
curiosidade da filha, com os fatos mais inverossímeis e terríveis, sobre a
esposa do senador, quando de sua permanência na Palestina, glosados
pelas expressões de ironia e desprezo da jovem, dominada pelos mais
acerbos ciúmes, terminando a narrativa nestes termos:
- Somente tua tia Cláudia poderia contar-te, literalmente, o que
sofremos, em face do perjúrio dessa mulher que hoje vemos tão simples e
tão retraída, como se não conhecesse as experiências mais fortes deste
mundo. Não podemos esquecer que nos encontramos diante de pessoas
tão poderosas na política, como na astúcia. O sobrinho de teu pai, além de
marido profundamente infeliz, é um homem público orgulhoso e
malvado!...
Não me consta houvesse ele corrigido a esposa descriteriosa e
infiel, depois de haver verificado, com os próprios olhos, a sua traição
conjugal; mas,
242
ROMANCE DE EMMANUEL
bastou que ela o fizesse sofrer com as suas deslealdades para que todos
nós, os romanos que nos encontrávamos na Judeia, pagássemos o fato
com os mais horríveis tributos de sofrimentos...
Possuíamos um grande amigo na pessoa do lictor Sulpício
Tarquinius, que foi assassinado barbaramente em Samaria, em trágicas
circunstâncias, sem que alguém, até hoje, pudesse identificar seus
matadores, para o merecido castigo... Nossa família, que tinha interesses
vultosos em Jerusalém, foi obrigada a voltar precipitadamente para Roma,
com graves prejuízos financeiros de teu pai e, por último - prosseguia a
palavra venenosa da caluniadora -, o grande coração do meu cunhado
Pôncio sucumbiu sob as provações mais injuriosas e mais rudes...
Destituído do governo provincial e atormentado pelas mais duras
humilhações, foi banido para as Gálias, suicidando-se em Viena, em
penosas circunstâncias, acarretando-nos inextinguível desgosto!...
Em face dos martírios suportados por Cláudia, em virtude da nefasta
influência dessa mulher, não me surpreendo, portanto, com as atitudes da
filha, procurando roubar-te o noivo futuroso!...
- Urge trabalharmos para que tal não aconteça, minha mãe - replicou
a moça sob a forte impressão dos seus nervos vibráteis. - Já não posso
viver sem ele, sem a sua companhia... Seus beijos me ajudam a viver no
torvelinho das nossas preocupações de cada dia...
Fúlvia ergueu, então, os olhos, como a examinar melhor a ansiedade
que se estampara na fisionomia da filha, redargüindo com ar inteligente e
malicioso:
- Mas tu te vens entregando a Plínio, dessa maneira?
A jovem, todavia, tremendo de cólera, recebeu a indireta dentro dos
infelizes princípios educativos a que obedecia desde o berço, exclamando
em fúria:
243
HÁ DOIS MIL ANOS...
- Que pensas, então, que fazemos indo às festas e aos circos?
Porventura, serei eu diferente das outras moças do meu tempo?
E, alteando a voz como alguém que necessitasse defender-se
pronunciando um libelo contra o acusador, desatou em considerações
inconvenientes, através de termos asquerosos, rematando:
- E tu, mãe, não tens igualmente...
Fúlvia, porém, de um salto, colou-se ao corpo da filha numa atitude
acrimoniosa e severa, exclamando com fria serenidade:
- Cala-te! Nem mais uma palavra, pois que não era meu propósito
acalentar uma víbora no próprio seio!...
Compreendendo, porém, que a situação podia tornar-se mais penosa
em virtude das suas grandes culpas, como mãe, como esposa e na
qualidade de mulher, exclamou com voz quase melíflua, como a dar uma
triste lição à própria filha:
- Ora esta, Aurélia! Não te aborreças!... Se falei desse modo foi para
te insinuar que não podemos cativar um homem, para as nossas garantias
femininas no matrimônio, dando-lhe tudo de uma só vez. Um homem
nervoso e galanteador, qual o filho de Flamínio, conquista-se por etapas,
fazendo-lhe poucas concessões e muitos carinhos.
Bem sabes que o primeiro problema da vida de uma mulher da
nossa época se resume, antes de tudo, na obtenção de um marido, porque
os tempos são maus e não podemos dispensar a sombra de uma árvore
que nos abrigue de surpresas penosas, entre as asperezas do caminho...
- É verdade, mãe - respondeu a jovem totalmente modificada, mercê
daquelas astuciosas ponderações -; o que me dizes é a realidade e já que
são tão grandes as tuas experiências, que me sugeres para a realização
dos meus desejos?
- Antes de tudo - retornou Fúlvia, perversamente - devemos recorrer
aos argumentos do ciúme, que são sempre mais fortes, quando existe
244
ROMANCE DE EMMANUEL
um interesse mais ou menos sincero, de conseguir alguma coisa em
assuntos de amor. E já que te entregaste tanto ao filho de Flamínio, vê se
aproveitas as primeiras festas do circo, provocando-lhe impulsos de inveja
e despeito.
Não tens sido cortejada pelo protegido do questor Britanicus?
- Emiliano? - perguntou a moça, interessada.
- Sim, Emiliano. Trata-se igualmente de um bom partido, pois o seu
futuro nas classes militares parece de ótimas perspectivas. Procura
seduzir-lhe a atenção, diante de Plínio, de modo a fazermos todo o
possível por conseguir-te o descendente dos Severus, que, afinal, é o
partido mais vantajoso de quantos apareçam.
- Mas se o plano falhar, para nosso desgosto?
- Resta-nos recorrer às ciências de Araxes, com os seus ungüentos
e artes mágicas...
Pesado silêncio fizera-se entre ambas, no exame daquela
perspectiva de recorrer, mais tarde, às forças tenebrosas de um dos mais
célebres feiticeiros da sociedade de então.
Dias se passaram sobre dias, porém o filho mais moço de Flamínio
não voltou a cortejar a filha do pretor Sálvio Lentulus, e quando, daí a
algum tempo, voltou a freqüentar os circos festivos e ruidosos, não teve
grande surpresa encontrando, na intimidade de Emiliano, aquela a quem
se sentia ligado tão somente pelos laços frágeis e artificiais da lascívia e
dos hábitos viciosos do tempo.
Aurélia, todavia, não se conformava, intimamente, com o abandono a
que fôra votada, planejando a melhor maneira de exercer, oportunamente,
sua vingança, porque Plínio, ante as vibrações cariciosas do amor de
Flávia Lentúlia, parecia um homem inteiramente modificado. Afastara-se
espontaneamente das bacanais comuns da época, fugindo, igualmente,
dos companheiros antigos que o arrastavam no torvelinho de todos os
vícios e levianda245
HÁ DOIS MIL ANOS...
des. Parecia, mesmo, que uma força nova o guiava agora para a vida,
talhando-lhe de novo o coração para os ambientes caridosos e lúcidos da
família.
No palácio dos Lentulus, a vida transcorria com relativa
tranqüilidade.
Calpúrnia passava ali os primeiros meses, depois do falecimento do
marido, em companhia dos filhos, enquanto Plínio e Flávia teciam o seu
romance de esperança e de amor, nas luzes da mocidade, sob a bênção
dos deuses, de quem não se esqueciam, na culminância radiosa da sua
doce afeição.
Alheando-se das inquietações da época, Plínio recolhia-se, sempre
que possível, aos seus aposentos no palácio do Aventino, entregando-se à
pintura, ou à escultura, em que era exímio, modelando em preciosos
mármores belos exemplares de Vênus e de Apolo, que eram dados a Flávia
como recordação do seu intenso amor. Ela, por sua vez, compunha
delicadas jóias poéticas. musicadas na lira por suas próprias mãos,
oferecendo as flores dalma ao noivo idolatrado, em cujo espírito generoso
colocara os mais belos sonhos do coração.
Apenas uma pessoa não tolerava aquele formoso encontro de duas
almas gêmeas. Essa pessoa era Agripa. Desde o instante em que vira a
filha do senador, no porto de Óstia, pensou haver encontrado a futura
esposa. Supunha-se o único candidato ao coração daquela jovem romana,
enigmática e inteligente, em cujas faces coradas brincava sempre um
sorriso de bondade superior, como se a Palestina lhe houvesse imposto
uma beleza nova, cheia de misteriosos e singulares atrativos.
Mas, à vista dos projetos de casamento do irmão com Flávia, seus
planos haviam fracassado totalmente. Debalde, presumira haver
encontrado a mulher dos seus sonhos, porque a ternura, os caprichos dela
pertenciam ao irmão, unicamente. Foi por esse motivo que, de par com o
retraimento de Plínio
246
ROMANCE DE EMMANUEL
Severus, dentro do lar, para a organização de seus projetos futuros, Agripa
se desviara para uma longa série de atos impensados, acentuando, cada
vez mais, a feição extravagante da sua personalidade, preferindo as
companhias mais nocivas e os ambientes mais viciosos.
No curso dos seus desvios numerosos, adoecera gravemente,
inspirando cuidados à sua mãe, que se desvelava pelos filhos com o
mesmo carinho de sempre.
Vamos encontrá-lo, desse modo, por uma bela tarde romana, no
mesmo terraço onde vimos Públio Lentulus em amargas meditações, nas
primeiras páginas deste livro.
Virações caridosas refrescavam o crepúsculo, ainda saturado dos
clarões de sol formoso e quente.
A seu lado, Calpúrnia examina algumas peças de lã, deitando-lhe
olhares afetuosos. Em dado momento, a veneranda senhora dirige-lhe a
palavra neste termos:
- Então, meu filho, rendamos graças aos deuses, porque agora te
vejo muito melhor e a caminho do mais franco restabelecimento.
- Sim, mãe - murmurou o moço convalescente -, estou bem melhor e
mais forte; todavia, espero que nos transfiramos para nossa casa dentro
de dois dias, a fim de poder consolidar minha cura, procurando esquecer...
- Esquecer o quê? - perguntou Calpúrnia, surpreendida.
- Minha mãe - respondeu o jovem, enigmaticamente -, a saúde não
pode voltar ao corpo quando o espírito contínua enfermo!...
- Ora, filho, deves abrir-me o coração com mais sinceridade e mais
franqueza. Confia-me as tuas mágoas mais íntimas, pois é possível que te
possa dar algum consolo!...
- Não, mãe, não devo fazê-lo!
247
HÁ DOIS MIL ANOS...
E, assim falando, Agripa Severus, fosse pelo estado de abatimento
em que ainda se encontrava, fosse pela necessidade de um desabafo mais
intenso, desatou em pranto, surpreendendo amargamente o coração
materno com a sua inesperada atitude.
- Mas que é isso, filho? Que se passa em teu íntimo, para sofreres
dessa forma? - perguntou-lhe Calpúrnia, extremamente penalizada,
enlaçando-o nos braços carinhosos. - Dize-me tudo!... - prosseguiu aflita. -
Não me ocultes tuas mágoas, Agripa, porque eu saberei remediar a
situação de qualquer modo!
- Mãe, minha mãe!... - disse ele, então, num longo desabafo - eu
sofro desde o dia em que Plínio me arrebatou a mulher desejada... Sinto
nalma uma atração misteriosa por Flávia e não posso conformar-me com a
dolorosa realidade desse casamento que se aproxima.
Acredito que, se meu pai ainda vivesse, procuraria salvar minha
situação, conquistando para mim esse matrimônio, com as resoluções
providenciais que lhe conhecíamos...
Esperei sempre, através de todas as venturas da mocidade, que me
surgisse no caminho a criatura idealizada em meus sonhos, para organizar
um lar e constituir uma família e, quando aparece a mulher de minhas
aspirações, eis que ma arrebatam, e quem?!... Porque a verdade é que, se
Plínio não fôra meu irmão, não vacilaria em usar e abusar dos mais
violentos processos para atingir a consecução dos meus desejos!...
Calpúrnia ouvia-o em silêncio, compartilhando das suas angústias e
das suas lágrimas. Ignorava aquele duelo silencioso de sentimentos e
somente agora podia compreender a moléstia indefinida que lhe devorava
o filho mais velho, avassaladoramente.
Seu coração possuía, porém, bastante experiência da vida e dos
costumes do tempo, para ajuizar com o máximo acerto a situação e,
transformando
248
ROMANCE DE EMMANUEL
a sensibilidade feminina e os receios maternais em rígida fortaleza,
respondeu-lhe comovida, acariciando-lhe os cabelos numa doce atitude:
- Meu Agripa, eu te compreendo o coração e sei avaliar a intensidade
dos teus padecimentos morais; precisas, porém, compreender que há na
vida fatalidades dolorosas, cujos problemas angustiantes devemos
resolver com o máximo de coragem e paciência... Nem foi para outra coisa
que os deuses nos colocaram nas culminâncias sociais, de modo a
ensinarmos aos mais ignorantes e mais fracos as tradições da nossa
superioridade espiritual, em face de todas as penosas eventualidades da
vida e do destino.
Sufoca no teu íntimo essa paixão injustificável, mesmo porque, sinto
que Flávia e teu irmão nasceram neste mundo com os seus destinos
entrelaçados... Plínio ainda era uma criança de colo, quando teu pai já
projetava esse matrimônio, agora prestes a consumar-se.
Sê forte - continuava a nobre matrona enxugando-lhe as lágrimas
silenciosas e tristes -, porque a existência exige de nós, algumas vezes,
esses gestos de renúncia ilimitada!...
Ergamos, todavia, nossas súplicas aos deuses! De Júpiter há-de
chegar, para a tua alma ulcerada, o necessário conforto.
Agripa, depois de ouvir a voz materna, sentia-se mais ou menos
aliviado, como se o seu íntimo houvesse serenado após uma tempestade
dos mais antagônicos sentimentos.
Considerou que as ponderações maternas representavam a verdade
e preparava-se, intimamente, ainda com a penosa impressão psíquica que
o atormentava, para se resignar, infinitamente, com a situação dolorosa e
irremediável.
Calpúrnia deixou passar alguns minutos, antes de lhe dirigir a
palavra novamente, como se aguar
249
HÁ DOIS MIL ANOS...
dasse o efeito salutar das suas primeiras ponderações, continuando:
- Não te interessaria, agora, uma viagem à nossa propriedade do
Avênio? Bem sei que, pela força da tua vocação e pelo imperativo das
circunstâncias, teu lugar é aqui, como sucessor de teu pai; mas, essa
viagem representaria a solução de vários problemas urgentes, inclusive o
teu caso íntimo.
Agripa ouviu a sugestão com o máximo interesse, replicando afinal:
- Minha mãe, tuas palavras carinhosas me confortaram e aceito a
sugestão, a ver se consigo encontrar o maravilhoso elixir do
esquecimento; contudo, desejava partir com atribuições de Estado,
porque, desse modo, poderia demorar-me em Massília, lá permanecendo
com a autoridade que me será necessária em tais circunstâncias...
- E não poderias conseguir facilmente esse propósito?
- Acredito que não. Para demandar essa viagem com atribuições
oficiais, apenas conseguiria os meus intentos, em caráter militar.
- E porque não movimentarmos nossas prestigiosas relações de
amizade para obter o que desejas? Bem sabes que, com o auxílio de
Públio e do senador Cornélio Docus, Plínio aguarda promoção a oficial em
breves dias, com amplas perspectivas de progresso e novas realizações
futuras, no quadro das nossas classes armadas. Dizem mesmo que o
Imperador Cláudio, consolidando a centralização de poderes com a nova
administração, se mostra satisfeito quando transforma as regalias
políticas em regalias militares.
A mim só me causaria orgulho e satisfação oferecer meus dois filhos
ao Império, para a consolidação de suas conquistas soberanas.
- Assim o farei - replicou Agripa, já de olhos enxutos, como se as
sugestões maternas cons250
ROMANCE DE EMMANUEL
tituíssem brando remédio para as suas penosas preocupações.
Aos poucos, escoavam-se no horizonte os derradeiros clarões
rubros da tarde, que davam lugar a uma formosa noite cheia de estrelas.
Amparado pelos braços maternos, o moço patrício recolheu-se mais
confortado aos aposentos, esperando o ensejo de providenciar quanto aos
seus novos planos.
Após acomodá-lo convenientemente, voltou Calpúrnia ao terraço,
onde procurou repousar das intensas fadigas morais. Suplicando a
piedade dos deuses, fixou nos céus constelados os olhos lacrimosos.
Parecia que o coração lhe havia parado no peito para assistir ao
desfile das recordações mais cariciosas e mais doces, embora com a
mente torturada por pensamentos amargos e dolorosos.
Mais de seis meses haviam decorrido após a morte do esposo e a
nobre matrona sentia-se já completamente estranha na sociedade e no
mundo. Fazia prodígios mentais para enfrentar dignamente a sua situação
social, porquanto sentia, na sua velhice resignada, que o curso do tempo
vai insulando determinadas criaturas à margem do rio infinito da vida.
Sentia, no ambiente e nos corações que a rodeavam, uma diferença
singular, como se faltasse uma peça do mecanismo do seu raciocínio, para
completar um preciso julgamento das coisas e dos acontecimentos. Essa
peça era a presença do esposo, que a morte arrebatara; era a sua palavra
ponderada e amorosa, meiga e sábia.
Desde os primeiros dias de permanência na casa dos amigos,
recebera de Lívia e Públio, em separado, as mais dolorosas confidências
sobre os fatos da Palestina, que lhes comprometeram para sempre a
ventura e tranqüilidade conjugal. Mobilizando, porém, todas as suas
faculdades de observação e análise, não conseguira pronunciar-se em
251
HÁ DOIS MIL ANOS...
definitivo quanto aos acontecimentos em favor da inocência da sua
bondosa e leal amiga. Se, aos seus olhos, Públio Lentulus era o mesmo
homem integrado no conhecimento de seus nobilíssimos deveres junto do
Estado e das mais caras tradições da família patrícia, Lívia pareceu-lhe
excessivamente modificada nos seus modos de crer e de sentir.
Na sua concepção de orgulho e vaidade raciais, não podia admitir
aqueles princípios de humildade, aquela fraternidade e aquela fé ativa de
que Lívia dava pleno testemunho junto dos próprios escravos, dentro dos
postulados da nova doutrina que invadia todos os departamentos da
sociedade.
Quanto desejava ela ter ainda o esposo a seu lado, de modo a poder
submeter-lhe aqueles assuntos íntimos, a fim de lhe adotar a opinião
sempre cheia de ponderações e sabedoria... Mas, agora, estava sozinha
para raciocinar e agir, com plena emancipação de consciência, e por mais
que buscasse no íntimo uma solução para o doloroso problema conjugal
dos amigos, nada podia dizer, nas suas observações e no exame das
tradições familiares, cultivadas, pelo seu espírito, com o máximo de
orgulho e de cuidado.
No céu brilhavam miríades de constelações, dentro da noite,
acentuando o mistério de suas penosas divagações, quando a seus
ouvidos chegaram alguns rumores de passos que se aproximavam.
Era Públio que, terminada a refeição, vinha igualmente ao terraço,
descansar o pensamento.
- Por aqui? - perguntou a matrona com bondade.
- Sim, minha amiga, apraz-me voltar, em espírito, aos dias que já se
foram... Por vezes, aprecio o repouso neste terraço, a fim de contemplar o
céu. Para mim, é de lá, dessa cúpula imensa e estrelada, que recebemos
luz e vida; é lá que deve estar o nosso inesquecível Flamínio, embalado
pelo carinho dos deuses generosos!...
252
ROMANCE DE EMMANUEL
E, de fato, nobre Calpúrnia - prosseguiu o senador, atencioso -, era
este um dos lugares prediletos de nossas palestras e divagações, quando
o sempre lembrado amigo me dava a honra de suas visitas a esta casa. Foi
ainda aqui que, muitas vezes, trocamos idéias e impressões sobre a minha
partida para a Judeia, nas vésperas de minha prolongada ausência de
Roma, há mais de dezesseis anos!...
Longa pausa sobreveio, parecendo que os dois aproveitavam as
claridades suaves da noite, com idêntica vibração espiritual, para
descerem ao túmulo do coração, exumando as lembranças mais queridas,
em resignado e doloroso silêncio.
Após alguns minutos, como se desejasse modificar o curso de suas
recordações, exclamou a veneranda matrona:
- Lembrando-nos de tua viagem, no passado, preciso avisar-te de
que Agripa deve partir para Avênio, tão logo se sinta restabelecido.
Mas, que motiva essa novidade? perguntou Públio, com grande
interesse.
- Há muitos dias venho refletindo na necessidade de examinarmos,
ali, os numerosos interesses de nossas propriedades, mesmo porque,
antes de morrer, era intenção do meu morto cuidar pessoalmente deste
assunto.
- A solução do problema, porém, é tão urgente assim? E o
casamento de Plínio? Agripa não estará presente, porventura?
- Acredito que não; todavia, na hipótese de sua ausência, ele será
representado por Saul, antigo liberto de nossa casa, que já nos mandou
um mensageiro de Massília, comunicando sua presença às cerimônias.
- É pena!... - murmurou o senador, sensibilizado.
- Devo dizer-te, ainda mais - continuou a matrona, com serenidade -,
que espero o prestigio253
HÁ DOIS MIL ANOS...
so favor da tua amizade, junto de Cornélio Docus, a fim de que consigas
do Imperador Cláudio uma boa situação para o nosso viajante, que deseja
partir com atribuições oficiais, necessitando para tanto que sejam
transformados em regalias militares os direitos políticos que lhe
competem pelo nascimento.
- Não será difícil consegui-lo. A atual administração interessa-se
muito mais pela valorização das classes armadas.
Novo silêncio verificou-se na conversação, voltando o senador a
exclamar, depois de longa pausa, como se desejasse aproveitar a
oportunidade para a solução decisiva do seu amargo problema:
- Calpúrnia - disse ansiosamente -, ao falar de minha excursão no
passado, informaste-me da viagem forçada do nosso Agripa, no presente.
E eu continuo a relembrar minha ventura desfeita, a felicidade perdida, que
nunca mais voltou!...
O senador observava todas as atitudes psicológicas da sua
venerável amiga, ansioso por surpreender-lhe um gesto de conforto
supremo. Desejava que ela, como conselheira de Lívia, quase como a
própria mãe desta, pelos laços eternos e sacrossantos do espírito, lhe
dissipasse todas as dúvidas, falasse da inocência da esposa,
proporcionando-lhe uma certeza de que o seu coração caprichoso e
egoísta de homem estava enganado; mas, em vão aguardou essa defesa
espontânea, que não apareceu no instante necessário e decisivo. A
respeitável viúva de Flamínio deixara no ar o mesmo ponto de dolorosa
interrogação, murmurando com voz triste, enquanto uma réstia de luar lhe
coroava os cabelos brancos:
- Sim, meu amigo, os deuses podem dar-nos a felicidade e podem
retomá-la... Somos duas almas chorando sobre o sepulcro dos sonhos
mais gratos do coração!...
Aquelas palavras desalentadoras penetravam no peito sensível e
orgulhoso do senador, como sabre afiado que o rasgasse vagarosamente.
254
ROMANCE DE EMMANUEL
- Mas, afinal, minha nobre amiga - exclamou ele quase enérgico,
como se esperasse resposta decisiva para a angustiosa indecisão da sua
alma -, que pensas atualmente de Lívia?
- Públio - respondeu Calpúrnia com serenidade -, não sei se a
franqueza seria um mal em certas circunstâncias, mas prefiro ser sincera.
Desde as penosas confidências que me fizeste, sobre os fatos que
se desenrolaram na Palestina, venho observando nossa amiga de modo a
poder advogar a causa da sua inocência perante o teu coração, mas,
infelizmente, noto em Lívia as mais singulares e imprevistas diferenças de
ordem espiritual. E humilde, meiga, inteligente e generosa, como sempre,
mas parece menosprezar todas as nossas tradições familiares e as nossas
crenças mais caras.
Em nossas discussões e palestras íntimas, não me revela mais
aquela timidez encantadora que lhe conheci noutros tempos,
demonstrando, pelo contrário, demasiada desenvoltura de opinião a
respeito dos problemas sociais, que ela julga haver resolvido ao contacto
duma nova fé. Suas idéias me escandalizam com as mais injustificáveis
concepções de igualdade; não hesita em classificar nossos deuses como
ilusões nocivas da sociedade, para a qual tem, em todas as palavras, as
mais severas recriminações, revelando singulares modificações em
pensamento, indo ao extremo de confraternizar com as próprias servas de
sua casa, como se fôra uma simples plebéia...
Seria uma perturbação mental, depois de alguma queda em que a
sua dignidade individual fosse chamada a uma rígida reação? Seriam,
talvez, influências do meio ou mesmo das escravas com quem se habituou
a conviver nessa prolongada ausência de Roma? Não sei... A realidade é
que, em consciência, não posso manifestar-me, por enquanto, em
definitivo, sobre as tuas amarguras conjugais, acon255
HÁ DOIS MIL ANOS...
selhando-te a esperar melhor as demonstrações do tempo.
Depois de ligeira pausa, terminou a velha matrona as suas
observações, inquirindo, com interesse:
- Porque permitiste o ingresso de Lívia nessas idéias novas,
deixando-a à mercê desse reformador judeu, conhecido como Jesus de
Nazaré?
- Tens razão - murmurou Públio Lentulus, extremamente desalentado
-, mas, o motivo baseou-se em circunstâncias imperiosas, porque Lívia
acreditou que o profeta Nazareno nos havia curado a filhinha!...
- Foste ingênuo, porque não podias admitir essa hipótese, em face
da evolução dos nossos conhecimentos, salvando, dessas perigosas
influências espirituais, o espírito maleável de tua mulher. Está comprovado
que esse novo credo preconiza atitudes mentais humilhantes, subvertendo
as mais íntimas disposições das criaturas que o aceitam. Homens ricos e
de ciência, que se submetem a esses odiosos princípios dentro do
Império, em favor de um reino imaginário, parecem tresvariados por
terrível narcótico, que os faz esquecer e desprezar a fortuna, o nome, as
tradições e a própria família!...
Colaborarei contigo, afastando Flávia desses prejuízos morais,
levando-a para a minha companhia, tão logo se realize o casamento de
nossos queridos filhos, porque a verdade é que, quanto a Lívia, tudo já fiz
para convencê-la, inutilmente.
- Entretanto, minha boa amiga - murmurou o senador, sensibilizado,
como a defender-se perante a nobre patrícia -, observo que Lívia continua
a ser uma criatura simples e modesta, sem exigir de mim coisa alguma que
atinja o terreno do exorbitante ou do supérfluo. Nestes quase dezessete
anos de íntima separação dentro do lar, somente me solicitou a licença
precisa para prosseguir em suas práticas cristãs junto de uma antiga serva
de nossa casa, permissão essa que fui obrigado a conceder,
256
ROMANCE DE EMMANUEL
considerando a continuidade de sua renúncia silenciosa e triste, no
ambiente familiar.
- Também considero que é pedir muito pouco, mormente agora que
todas as mulheres da cidade, segundo o costume, exigem dos maridos as
maiores extravagâncias em luxo do Oriente; contudo, cumpre-me
aconselhar-te, a ti que conservas intactas as nossas tradições mais
queridas, esperares mais algum tempo antes de esqueceres as
eventualidades dolorosas do passado, de modo a observarmos se Lívia
virá a beneficiar-se com a continuidade de nossas atitudes, voltando,
finalmente, ao seio de nossas tradições e de nossas crenças!...
Doloroso silêncio se fez então sentir, entre ambos, após essas
palavras.
Calpúrnia supôs haver cumprido o seu dever e Públio recolheu-se,
naquela noite, desalentado como nunca.
Em breves dias, conseguidos seus intentos, partia Agripa em
demanda do Avênio, não obstante as rogativas do irmão e de Flávia para
que esperasse as solenidades do matrimônio. Sua resolução era, porém,
inabalável e o filho mais velho de FIamínio, enfraquecido sob o peso das
suas desilusões, ia ausentar-se de Roma, por espaço de alguns anos,
prolongados e dolorosos.
Passavam-se os dias celeremente e, como somos obrigados a
caminhar em nossa história na companhia de todas as personagens,
devemos registrar que, em se vendo completamente abandonada pelo
homem de suas preferências, Aurélia, ralada de venenoso despeito,
resolvera aceitar a mão abnegada e afetuosa que o jovem Emiliano Lúcios
lhe oferecia.
Fúlvia, que acompanhara a luta silenciosa, intoxicada pelos seus
sentimentos inferiores, deliberou aguardar o tempo, para exercer as suas
sinistras represálias.
E, em tempo breve, o casamento de Plínio e Flávia realizava-se com
suntuosidade discreta, no
257
HÁ DOIS MIL ANOS...
palácio do Aventino. O noivo, cheio de galardões militares e títulos
honoríficos, bem como a futura companheira, tocada de formosura
indefinível e de adorável simplicidade, sentiam-se venturosos como se a
felicidade perfeita se resumisse tão somente na eterna fusão de seus
corações e de suas almas. Aquele dia, indubitavelmente, assinalava a hora
mais sagrada e mais formosa dos seus destinos.
Na assistência reduzidíssima, que se compunha de relações da
maior intimidade, notava-se a presença de um homem ainda jovem, que
representava uma figura saliente naquele quadro, caracterizado,
essencialmente, de acordo com a época.
Seus olhos impetuosos e ardentes haviam pousado sobre a noiva
com misterioso e estranho interesse.
Esse homem era Saul de Gioras, que, abandonando o sobrenome
paterno, exibia agora uma nova denominação romana, segundo antiga
autorização de Flamínio, de modo a valorizar, cada vez mais, a expressão
social da sua fortuna.
Debalde, o senador fez o possível para identificar aquele judeu, que
se lhe figurava um velho conhecido pessoal. Saul, porém, reconhecera o
seu verdugo de outrora; reconheceu e guardou silêncio, serenando as
grandes emoções do seu foro íntimo, porque, qual o pai, tinha o coração
mergulhado nos propósitos tenebrosos de uma vindita cruel.
258
III
Planos da treva
Depois das solenidades do casamento de Plínio, contrariamente ao
que se podia esperar, o liberto judeu não regressou a Massília, pretextando
numerosos negócios que o retinham na Capital do Império.
Instalado no palacete dos Severus, para onde se haviam transferido
os jovens nubentes, junto de Calpúrnia, Saul teve oportunidades
numerosas de se avistar com o senador Públio Lentulus, mantendo ambos
várias palestras sobre a Judeia e as suas regiões importantes.
Intrigado com aquele olhar ardente e aqueles traços fisionômicos,
que lhe não eram totalmente estranhos, e lembrando-se perfeitamente
daquele pai que o procurara ansioso e aflito, em Jerusalém,
acompanhemos o senador em uma de suas palestras íntimas com o
interessante desconhecido, na qual o abordou com esta pergunta
inesperada:
- Senhor Saul, já que sois filho das cercanias de Jerusalém, vosso
pai, porventura, não se chamaria André de Gioras?
259
HÁ DOIS MIL ANOS...
O liberto mordeu os lábios, diante daquele ataque direto ao assunto
mais delicado da sua existência, respondendo dissimuladamente:
Não, senador. Meu pai não tem esse nome. Ao tempo em que fui
escravizado por mãos impiedosas e cruéis, porquanto eu não era senão
uma criança mal educada e irresponsável - acentuou com profunda ironia -
, meu pai era um agricultor miserável que não possuía outra coisa além
dos seus braços para o trabalho de cada dia... Tive, contudo, a felicidade
de encontrar as mãos generosas de Flamínio Severus, que me guiaram
para a liberdade e para a fortuna e, hoje, o meu genitor, com o pouco que
lhe forneci, aumentou as suas possibilidades de trabalho, desfrutando não
somente certa importância social em Jerusalém, como também funções
superiores no Templo.
Mas, porque mo perguntais?
O senador franziu o sobrolho, em face de tanta desenvoltura na
resposta, mas, sentindo-se aliviado, por lhe parecer que não se tratava, de
fato, do Saul de suas penosas lembranças, respondeu com mais desafogo
de consciência:
- É que eu conheci, ligeiramente, um agricultor israelita, por nome
André de Gioras, cujos traços fisionômicos não eram muito diversos dos
vossos...
E a conversação seguia o ritmo normal das conversações sem
importância nos ambientes de convencionalismo da vida social.
Saul, entretanto, deixava transparecer fulgor estranho no olhar,
como quem se encontrava extremamente satisfeito com o destino, à
espera de um ensejo para executar seus tenebrosos planos de vingança.
Um móvel oculto e inconfessável o retinha em Roma, quando
numerosas operações comerciais requeriam sua presença em Massília,
onde seu nome se radicara a grandes interesses de ordem financeira e
material. Esse móvel era o intenso desejo
260
ROMANCE DE EMMANUEL
de se fazer notado pela jovem esposa de Plínio, cujo olhar parecia atrai-lo
para um abismo de amor violento e irreprimível.
Desde o instante em que a vira com os adornos do noivado, no dia
venturoso de seu enlace, parecia haver lobrigado a criatura ideal dos seus
sonhos mais íntimos e remotos.
Na realidade, os filhos de seus antigos senhores mereciam o seu
respeito e o maior acatamento; todavia, uma força maior que todos os
seus sentimentos de gratidão o levava a desejar a posse de Flávia Lentúlia,
a qualquer preço, ainda que fosse o da própria vida.
Aqueles olhos formosos e cismadores, a graça amorosa e
espontânea, a inteligência lúcida e delicada, todos os seus predicados
físicos e espirituais, que observara agudamente, nos poucos dias de
permanência na cidade, o autorizavam a crer que aquela mulher era bem o
tipo das suas idealizações.
E foi engolfado nesse turbilhão de pensamentos sombrios que dois
meses se passaram, de expectativas inconfessáveis e angustiosas, sem
que perdesse a mais ligeira oportunidade para demonstrar a Flávia o grau
do seu afeto, da sua admiração e estima, sob as vistas amigas e confiantes
de Plínio.
Na soledade de suas preocupações íntimas, considerava Saul que,
se ela o amasse, se correspondesse à afeição violenta do seu espírito
impetuoso e egoísta, jamais se lembraria de exercer a planejada vingança
sobre o coração de seu pai, indo buscar o jovem Marcus Lentulus para o
lar paterno e liquidando o pretérito de visões tenebrosas; contudo, se
acontecesse o contrário, executaria os seus diabólicos projetos, deixandose
embriagar pelo vinho odiento da morte.
Nessa época, corria já o ano de 47, e sem nos esquecermos de
Fúlvia e sua filha, vamos encontrá-las, de novo, sob o domínio dos
mesmos sentimentos cruéis e tenebrosos.
261
HÁ DOIS MIL ANOS...
Em vão desposara Aurélia a Emiliano Lúcios, que, para ela, não
representava de modo algum o tipo do homem que o seu temperamento
supunha haver encontrado no filho mais moço de Flamínio.
E foi assim que, depois dos primeiros desencantos e atritos no
ambiente doméstico, a conselho da mãe e na sua própria companhia,
procurou recorrer às ciências estranhas de Araxes, célebre feiticeiro
egípcio, que tinha uma loja de mercadorias exóticas nas proximidades do
Esquilino.
Araxes, cujo comércio criminoso todos conheciam como fonte
inesgotável de filtros milagrosos do amor, da enfermidade e da morte, era
um iniciado do antigo Egito, desviado, porém, da missão sacrossanta da
caridade e da paz, na sua violenta paixão pelo dinheiro da numerosa
clientela romana, então em pletora de vícios clamorosos e na dissolução
dos mais belos costumes do sagrado instituto da família.
Explorando-lhe as paixões inferiores e os hábitos viciosos, o mago
egípcio empregava quase toda a sua ciência espiritual na execução de
todos os malefícios e crimes, motivando enormes danos com as suas
drogas venenosas e seus estranhos conselhos.
Procurado, discretamente, por Fúlvia e a filha, inteirou-se dos fins da
visita e ali mesmo, entre grandes retortas e pacotes de plantas e
substâncias diversas. mergulhou a cabeça nas mãos, como se o seu
espírito estivesse devassando os menores segredos do mundo invisível,
ante uma trípode e outros petrechos de ciências ocultas, com que ele,
psicólogo profundo, buscava impressionar a mente sugestionável dos
consulentes numerosos que lhe solicitavam a solução dos problemas da
vida.
Ao cabo de longos minutos de concentração, com os olhos a brilhar
estranhamente, o mago egípcio dirigiu-se a Aurélia, afirmando-lhe em
palavras impressionantes:
262
ROMANCE DE EMMANUEL
- Senhora, vejo à minha frente dolorosos quadros da sua vida
espiritual, no passado longínquo!... Vejo Delfos, nos dias gloriosos do seu
oráculo e contemplo a sua personalidade buscando seduzir um homem
que lhe não pertencia... Esse homem é o mesmo da atualidade... As
mesmas almas perambulam agora em outros corpos e a senhora deve
pensar na realidade dos dias que se passam, conformando-se com a nítida
separação das linhas do destino!...
Aurélia ouvia, entre surpresa e assombrada, enquanto a alma arguta
de sua mãe acompanhava a palestra, tocada de impressão indefinível.
- Que me dizeis? - replicou a jovem senhora, no auge da sua
sensibilidade ferida. - Outras vidas? Um homem que não me pertencia?...
Que vem a ser tudo isso?
- Sim, nosso espírito, neste mundo - redargüiu o feiticeiro, com
imperturbável serenidade -, tem longa série de existências, que
enriquecem o nosso íntimo com o máximo de conhecimento sobre os
deveres que nos competem na vida!
A senhora já viveu em Atenas e em Delfos, numa grande fase de
profundas irreflexões em matéria de amor, e, sentindo-se hoje próxima do
objeto de suas ardentes e pecaminosas paixões de outrora, julga-se com
as mesmas possibilidades de satisfazer seus desejos violentos e
indignos!...
Por aqui, hão passado inúmeras criaturas. A muitas aconselhei
perseverança nos propósitos, por vezes injustificáveis e inferiores; mas,
para o seu caso, há uma voz que fala mais alto à minha consciência. Se a
sua irreflexão for ao ponto de provocar esse homem, em consciência
honesto até agora, é possível que o seu coração também inquieto venha a
corresponder aos seus caprichos; contudo, busque não se entregar ao
desvario dessa provocação, porque o destino o reuniu, agora, à alma
gêmea da sua e um caminho áspero de provações amargas os espera no
futuro, para a consolidação da sua con263
HÁ DOIS MIL ANOS...
fiança mútua, da sua afeição e da sua grandeza espiritual!... Não se
interponha no caminho dessa mulher considerada pelo seu espírito como
poderosa rival!... Interpor-se entre ela e o esposo seria agravar a senhora
as suas próprias penas, porque a verdade é que o seu coração não se
encontra preparado para as grandes renúncias santificantes, e aquilo que
supõe ser profundo e sublimado amor, nada mais é que capricho
prejudicial do seu coração de mulher voluntariosa e pouco disposta a
sacrificar-se pelo carinho de companheiro amoroso e leal, mas, sim, a
multiplicar os amantes pelo número de suas vontades artificiais...
Aurélia estava lívida, ouvindo essas palavras, que considerava
atrevidas e injuriosas.
Desejava defender-se, mas uma força poderosa parecia comprimirlhe
a garganta, anulando-lhe o esforço das cordas vocais.
Fúlvia, porém, tomada de rancor pelas expressões insultuosas
daquele homem, tomou a defesa da filha, argüindo-o com energia:
- Araxes, feiticeiro impudico, que queres dizer com estas palavras?
Insultas-nos? Poderemos fazer cair sobre tua cabeça o peso da justiça do
Império, conduzindo-te ao cárcere e revelando à sociedade os teus
sinistros segredos!.
- E porventura não os tereis também, nobre senhora? - revidou ele
imperturbavelmente -; estaríeis, assim, tão sem culpa, para não vacilar em
condenar-me?
Fúlvia mordeu os lábios, tremendo de ódio e exclamando com fúria:
- Cala-te, infame! Não sabes que tens diante dos olhos a esposa de
um pretor?
- Não me parece - murmurou o feiticeiro, com serena ironia -, pois as
nobres matronas dessa estirpe não viriam a esta casa solicitar minha
cooperação para um crime... E, ao demais, que diriam em Roma de uma
patrícia, que descesse ao
264
ROMANCE DE EMMANUEL
extremo de procurar, na intimidade, um velho feiticeiro do Esquilino?
É verdade que muitos males tenho praticado na minha vida, mas,
sabem-no todos que assim procedo e não busco a sombra das boas
situações sociais para acobertar a hediondez da minha miserável
existência!... Ainda assim, quero salvar a mocidade de tua filha do lôbrego
caminho de tuas perversidades, porque na hipótese de seguir-te ela os
coleios de víbora, na senda de esposa criminosa e infiel, seu único fim
será a prostituição e o infortúnio, rematados com a morte ignominiosa na
ponta de uma espada...
Fúlvia desejou revidar energicamente aos insultos de Araxes,
repelindo aquelas expressões injuriosas, recebidas como atrevimento
supremo, mas Aurélia, receosa de novas complicações e compreendendo
a culpabilidade de sua mãe, tomou-lhe do braço, retirando-se ambas
silenciosamente, sob o olhar zombeteiro do velho egípcio, que voltara a
empilhar pacotes de plantas entre numerosos vasos de substâncias
estranhas.
Pouco tempo, contudo, pôde ele empregar na sua faina solitária e
silenciosa.
Dentro de duas horas, nova personagem lhe batia à porta.
Araxes surpreendeu-se à vista daquele judeu insinuante que o
procurava. O brilho dos olhos, o nariz característico, a harmonia dos
traços israelitas, faziam daquele homem, ainda jovem, uma figura singular
e sugestiva.
Era Saul, que recorria aos mesmos processos misteriosos, na ânsia
de possuir, a qualquer preço, a esposa de Plínio, buscando o talismã ou o
elixir miraculoso do feiticeiro, a serviço de suas pretensões descabidas.
Recebido nas mesmas circunstâncias em que o foram as duas
personagens do nosso penoso drama, Saul expunha ao adivinho as suas
torturas amorosas, junto daquela mulher honesta e digna.
265
HÁ DOIS MIL ANOS...
Após a habitual concentração, já do nosso conhecimento, junto da
trípode em que fazia as orações costumeiras, Araxes esboçou leve e
discreto sorriso, como quem havia encontrado mais uma estranha
coincidência nos seus amplos estudos da psicologia humana. Sua
hesitação, todavia, durou poucos instantes, porque, em breve, se fazia
ouvir com voz pausada e soturna:
- Judeu! - disse ele austeramente - louva o Deus de tuas crenças,
porque tua face foi erguida do pó pelas mãos do homem que hoje te
empenhas em trair... Mandam as leis severas da tua pátria que não venhas
a desejar, nem mesmo por pensamentos, a mulher do teu próximo e muito
menos a companheira devotada e fiel de um dos teus maiores benfeitores.
Dá um passo atrás no teu triste e mal-aventurado caminho! Houve tempo
em que teu Espírito viveu no corpo de um sacerdote de Apolo, no templo
glorioso de Delfos... Perseguiste uma jovem mulher dos misteres
sagrados, conduzindo-a à miséria e à morte, com os teus desvarios
nefandos e dolorosos. Não ouses, agora, arrancá-la dos braços destinados
ao seu amparo e proteção, à face deste mundo!... Não te intrometas no
destino de duas criaturas que as forças do céu talharam uma para a
outra!...
O moço judeu, todavia, apesar de impressionado com aquela
exortação incisiva, não seguia a orientação violenta das duas mulheres
que o precederam na misteriosa visita.
Arrancando uma bolsa de moedas, acariciou-a nas mãos como a
excitar a concupiscência do adivinho, exclamando com voz quase súplice:
- Araxes, eu tenho ouro... muito ouro, e dar-te-ei o que quiseres, pelo
valioso auxílio da tua ciência... Pelo amor de teus deuses, consegue-me a
simpatia dessa mulher e recompensar-te-ei generosamente a preciosidade
dos esforços despendidos...
266
ROMANCE DE EMMANUEL
Os olhos do mago egípcio faiscaram ao clarão de sentimento
estranho, contemplando a bolsa em forma de cornucópia, reluzente de
ouro, como se a desejasse intensamente, murmurando com mais
delicadeza:
- Meu amigo, essa mulher não é cobiçada tão somente por ti e
suponho que deverias contribuir para que ela não se afastasse da
companhia do esposo!...
- Mas, existe, então, ainda outro homem?
- Sim, revelam-me os signos do destino que essa criatura é também
desejada pelo irmão do marido.
Saul fez um gesto de enfado, como quem se sentia amargamente
atormentado pelos mais acerbos ciúmes, murmurando entre dentes:
- Ah! sim... agora entendo melhor a viagem precipitada de Agripa, em
busca de Avênio!...
E, elevando a voz como quem estivesse jogando a derradeira
cartada da sua ambição, falou com ansiedade:
- Araxes, peço-te ainda uma vez!... Faze tudo!... pagar-te-ei
regiamente!...
A fronte do mago curvou-se de novo, em atitude de profunda
meditação, como se o espírito buscasse, no invisível, alguma força
tenebrosa, propícia aos seus sinistros desígnios.
Ao cabo de alguns minutos, tornou a dizer em tom benevolente e
amigo:
- Parece que haverá uma oportunidade para a sua afeição, daqui a
algum tempo!...
O moço judeu ouvia-o com angustiosa expectativa, enquanto as
afirmações continuavam:
- Dizem os signos do destino que os dois cônjuges, para
consolidação de sua profunda afeição, de sua confiança recíproca e
progresso espiritual, estão destinados a dolorosas provas daqui a alguns
anos! Dar-se-á alguma coisa que os separará dentro do próprio lar, sem
que eu possa precisar o que seja. Sei, tão somente, que cumpre a ambos
um
267
HÁ DOIS MIL ANOS...
grande período de ascetismo e dolorosa abnegação, no instituto sagrado
da família... Nessa ocasião, talvez, quem sabe? poderá o meu amigo tentar
essa afeição ardentemente cobiçada!...
- Dar-se-á, então, alguma coisa? - perguntou Saul, curioso e aflito,
nas suas perquirições do assunto transcendente - mas que poderá
acontecer que os separe no ambiente doméstico?
- Eu mesmo não saberia dizê-lo...
- E cada qual será obrigado a um ascetismo fiel e a uma dedicação
inquebrantável?
- Manda o determinismo do destino que assim seja, mas não só o
esposo, como a companheira, podem interferir nessas provas, contraindo
novo débito moral, ou resgatando o passado doloroso com o preciso valor
moral nos sofrimentos, empregando, no determinismo das provações
purificadoras, sua boa ou má vontade... Saiba que as tendências humanas
são mais fortes para o mal, tornando-se possível que as suas pretensões
sejam satisfeitas nessa época.
- E quanto tempo deverei esperar para que isso aconteça? -
perguntou o liberto, fundamente preocupado.
- Alguns anos.
- E será inútil tentar qualquer esforço antes disso?
- Perfeitamente inútil. Sei que o nobre cliente tem numerosos
interesses numa cidade distante e é justo que, neste intervalo, cuide dos
seus negócios materiais.
Saul fixou detidamente aquele homem que parecia conhecer os mais
recônditos segredos da sua vida, passando as suas observações pelo
crivo da consciência.
Deu-lhe a bolsa recheada, agradecendo a atenção e prometendo
voltar em tempo oportuno.
Daí a alguns dias, o moço judeu, nas vésperas da despedida,
aproveitando alguns minutos de pura
268
ROMANCE DE EMMANUEL
e simples intimidade com a jovem Flávia, dirigia-lhe a palavra nestes
termos:
- Nobre senhora - começou em voz quase tímida, mas com o mesmo
clarão estranho de sentimentos inferiores a lhe irradiar dos olhos -, ignoro
a razão do fato íntimo que vos vou revelar, mas a realidade é que vou partir
para Massília, guardando a vossa imagem no mais recôndito escaninho do
meu pensamento!...
- Senhor - disse-lhe Flávia Lentúlia, corando, acabrunhada -, devo
viver tão só no pensamento daquele com quem os deuses iluminaram o
meu destino!...
- Nobre Flávia - revidou o judeu arguto, percebendo que o golpe era
prematuro e inoportuno -, minha admiração não se prende a qualquer
sentimento menos digno. Para mim, sois duplamente respeitável, não
somente pela vossa alta condição de patrícia, como também pela
circunstância de serdes a companheira de um dos maiores benfeitores de
minha vida.
Ficai tranqüila quanto às minhas palavras, porque em meu coração
só existe o mais leal interesse pela vossa felicidade pessoal, junto do
digno esposo que escolhestes.
Sinto por vós o que um escravo deve sentir por uma benfeitora de
sua existência, já que, na minha triste condição de liberto, não posso
apresentar-me à vossa generosidade com as credenciais de irmão que
muito vos venera e estima.
- Está bem, senhor Saul - disse a jovem, mais aliviada -, meu marido
vos considera como irmão muito caro e eu me honro de associar-me aos
seus sentimentos.
- Muito vos agradeço - exclamou Saul, fingidamente -, e já que me
entendeis tão bem o pensamento fraterno, é com o interesse de irmão que
me dirijo à vossa alma generosa para prevenir-vos de um perigo...
- Um perigo?... - perguntou Flávia, aflita.
269
HÁ DOIS MIL ANOS...
- Sim. Falo-vos confidencialmente, solicitando que guardeis o
máximo segredo desta confidência fraternal.
E, enquanto a jovem o escutava com a maior atenção, Saul
continuou com as suas pérfidas insinuações.
- Sabeis que Plínio foi quase noivo da filha do pretor Sálvio Lentulus,
vosso tio, hoje casada com Emiliano Lúcios?
- Sim... - replicou a pobre senhora, de alma oprimida.
- Pois devo avisar, como irmão, que vossa prima Aurélia, a despeito
dos seus austeros compromissos matrimoniais, não renunciou ao homem
de suas antigas preferências; hoje fui cientificado, por um amigo, de que
ela tem recorrido a diversos feiticeiros de Roma, com o fim de reaver o seu
afeto de outrora, a qualquer preço!...
Ouvindo essas pérfidas palavras, Flávia Lentúlia experimentou o
primeiro espinho da sua vida conjugal, sentindo-se intimamente torturada
pelo mais acerbo ciúme.
Plínio resumia todo o seu idealismo e toda a sua felicidade de
mulher jovem. Depositara no seu coração todos os sonhos femininos,
todas as suas melhores e mais florentes esperanças. Assaltada pela
primeira contrariedade da sua vida social, na grande cidade de seus pais,
sentia, naquele instante, a sede devoradora de um esclarecimento amigo,
de uma palavra carinhosa que viesse restabelecer o equilíbrio do coração,
agora turbado pelos primeiros dissabores. Faltava-lhe alguma coisa que
pudesse completar as nobres qualidades do seu coração de mulher,
alguma coisa que devia ser a atuação materna na sua educação, porque
Públio Lentulus, na sua cegueira espiritual, lhe moldara o caráter no
orgulho da estirpe, nas tradições vaidosas dos antepassados, sem
desenvolver as suas qualidades de ponderação, que a influência de Lívia
criaria, certo, para notáveis florações do sentimento.
270
ROMANCE DE EMMANUEL
A jovem patrícia sentiu o coração despedaçado por um ciúme quase
feroz; mas, compreendendo os deveres que lhe competiam em tais
conjunturas, recobrou a precisa energia moral para reagir naquele primeiro
embate de provas, respondendo ao moço judeu e fazendo o possível por
afetar o máximo de severa e tranqüila nobreza:
- Agradeço, penhorada, o interesse de vossa comunicação; todavia,
nada me autoriza a suspeitar da consciência retilínea de meu esposo,
mesmo porque Plínio resume todos os meus ideais de esposa e de mulher!
- Senhora - revidou o judeu, mordendo os lábios -, o espírito
feminino, na sua fertilidade de imaginação, alheio à vida prática, pode
enganar-se muitas vezes, pelas aparências...
Folgo de ouvir-vos e louvo a vossa ilimitada confiança; porém, quero
fiqueis convencida de que, a qualquer tempo, encontrareis em mim um
sincero defensor da vossa felicidade e das vossas virtudes!...
Isso dizendo, Saul de Gioras apresentou atenciosas despedidas,
deixando a pobre moça com as suas impressões de surpresa e amargura.
Os primeiros infortúnios haviam atingido a vida conjugal de Flávia
Lentúlia, sem que ela soubesse conjurar o perigo que ameaçava a sua
ventura para sempre
Nessa noite, Plínio Severus não encontrou em casa a criatura
mimosa e adorável da sua dedicação e do seu amor profundo. Na
intimidade da alcova, encontrou a companheira cheia de recriminações
descabidas e importunas, tocada de tristezas amarguradas e
incompreensíveis, verificando-se entre ambos os primeiros atritos que
podem arruinar para sempre, no curso de uma vida, a felicidade de um
casal, quando seus corações não se encontram suficientemente
preparados para a compreensão espiritual, no instituto das provas
remissoras, embora
271
HÁ DOIS MIL ANOS...
a estrada divina de suas almas gêmeas seja um caminho glorioso para os
mais elevados destinos.
Em breves dias, Saul regressava a Massília, esperançoso de
concretizar algumas realizações de ordem material, de modo a regressar a
Roma no menor espaço de tempo.
E a vida das nossas personagens continuava, na Capital do Império,
quase com a mesma fisionomia de sempre.
O senador Lentulus prosseguia engolfado nas suas cogitações de
ordem política, procurando, sempre que possível, a residência da filha,
onde mantinha as mais longas palestras com Calpúrnia, sobre o passado e
as necessidades do presente.
Quanto a Lívia, afastada compulsoriamente da filha, pela força das
circunstâncias; longe de sua melhor amiga de outros tempos, pela
incompreensão, e prosseguindo distante do esposo no ambiente dos seus
afetos mais íntimos, refugiara-se na dedicada amizade de Ana, nas preces
mais fervorosas e sinceras.
Diariamente, ambas procuravam orar, em dolorosa soledade, ao pé
daquela mesma cruz grosseira que lhes dera Simeão no instante extremo.
Muitas vezes, ambas, em êxtase, notavam que o pequenino madeiro
se toucava de luz tenuíssima, ao mesmo tempo que lhes parecia ouvir
longe, no santuário do coração e dos pensamentos, exortações singulares
e maravilhosas.
Afigurava-se-lhes que a voz branda e amiga do apóstolo da Samaria
voltava do Reino de Jesus para ensinar-lhes a fé, o cumprimento do dever
de caridade fraterna, a resignação e a piedade. Ambas choravam, então,
como se nas suas almas sensíveis e carinhosas vibrassem as harmonias
de um divino prelúdio da vida celeste.
Nessa época, instruída por alguns cristãos mais humildes, Ana
cientificou a senhora das reuniões nas catacumbas.
272
ROMANCE DE EMMANUEL
Somente ali podiam reunir-se os adeptos do Cristianismo nascente,
porquanto, desde os seus primeiros eventos na sociedade romana, foram
as suas idéias consideradas subversivas e perversoras.
O Império fundado com Augusto, que significou a maior expressão
de um Estado forte em todas as épocas do mundo, depois das conquistas
democráticas da República, não tolerava nenhum agrupamento partidário,
em matéria de doutrinas sociais e políticas.
Verificava-se em Roma o mesmo que hoje com as nações modernas,
a oscilarem entre as mais variadas formas governamentais, ao longo do
eixo dos extremismos e dentro da ignorância do homem, que teima em não
compreender que a reforma das instituições tem que começar no íntimo
das criaturas.
As únicas associações admitidas eram, então, as cooperativas
funerárias, em vista de seus programas de piedade e proteção aos que já
não podiam perturbar os poderes temporais do César.
Perseguidos pelas leis, que lhes não toleravam as idéias
renovadoras; encarados com aversão pelas forças poderosas das
tradições antigas, os adeptos de Jesus não ignoravam a sua futura
posição de angústia e sofrimento. Alguns editos mais rigorosos os
compeliam a ocultar a manifestação de crença, embora o governo de
Cláudio procurasse, sempre, o máximo de ordem e equilíbrio, sem grandes
excessos na execução dos seus desígnios.
Alguns companheiros mais esclarecidos na fé advogavam
publicamente as suas teses, em epístolas ao sabor da época; mas, muito
antes dos crimes tenebrosos de Domício Nero, a atmosfera dos cristãos
primitivos era já de aflição, angústia e trabalhos penosos. Desse modo, as
reuniões das catacumbas efetuavam-se periodicamente, nada obstante o
seu caráter absolutamente secreto.
273
HÁ DOIS MIL ANOS...
Grande número de apóstolos da Palestina passavam em Roma,
trazendo aos irmãos da metrópole as prédicas mais edificantes e
consoladoras.
Ali, no silêncio dos grandes maciços de pedra, em cavernas
desprezadas pelo tempo, ouviam-se vozes profundas e moralizantes, que
comentavam o Evangelho do Senhor ou encareciam as sublimidades do
seu Reino, acima de todos os precários poderes da perversidade humana.
Tochas brilhantes iluminavam esses desvãos subterrâneos, que as heras
protegiam, enquanto suas portas empedradas davam a impressão de
angústia, tristeza e supremo abandono.
Sempre que um peregrino mais dedicado aportava à cidade, havia
um aviso comum a todos os conversos.
O sinal da cruz, feito de qualquer forma, era a senha silenciosa entre
os irmãos de crença, e, feito desse ou daquele modo especial, significava
um aviso, cujo sentido era imediatamente compreendido.
Através dessas comunicações incessantes, Ana conhecia todo o
movimento das catacumbas, colocando sua senhora a par de todos os
fatos que se desenrolavam em Roma, sobre a redentora doutrina do
Crucificado.
Assim é que, quando se anunciava a chegada de algum apóstolo da
Galileia ou das regiões que lhe são fronteiriças, Lívia fazia questão de
comparecer, fazendo-se acompanhar pela serva desvelada e fiel,
atravessando os caminhos a pé, embora trajasse agora a sua indumentária
patrícia, de conformidade com a autorização do marido, para professar
livremente as suas crenças. Ela estava ciente de que, perante a sociedade,
sua atitude representava grave perigo, mas o sacrifício de Simeão fôra um
marco de luz assinalando os seus destinos na Terra. Adquirira coragem,
serenidade, resignação e conhecimento de si mesma, para nunca
tergiversar em detrimento da sua fé ardente e pura. Se as suas
274
ROMANCE DE EMMANUEL
antigas relações de amizade, em Roma, atribuíam suas modificações
interiores à demência; se o marido não a compreendia e Calpúrnia e Plínio
cavavam, ainda mais, o grande abismo que Públio havia aberto entre ela e
a filha, possuía o seu espírito, na crença, um caminho divino para fugir de
todas as terrenas amarguras, sentindo que o Divino Mestre de Nazaré lhe
dulcificava as úlceras da alma, compadecendo-se do seu coração
retalhado de angústias. Era-lhe a fé como um archote luminoso clareando
a estrada dolorosa, e do qual se irradiavam os clarões da confiança
humana na Providência Divina, que transforma as provações penosas da
Terra em antegozo das eternas alegrias do Infinito.
275
IV
Tragédias e esperanças
A vida real sempre é prosaica, sem fantasia nem sonhos.
Assim decorre a existência das personagens deste livro, na tela viva
das realidades nuas e dolorosas do ambiente terrestre.
Os que atingem determinadas posições sociais, bem como os que
se aproximam do crepúsculo da vida fragmentária da Terra, poucas
novidades têm a contar, com respeito ao curso de cada dia.
Há um período na existência do homem, em que lhe parece não mais
haver a precisa pressão psíquica do coração, a fim de que se lhe renovem
os sonhos e as aspirações primeiras, figurando-se a sua situação
espiritual cristalizada ou estacionaria. No íntimo, não há mais espaço para
novas ilusões ou reflorescimento de velhas esperanças, e a alma, como
que em doloroso período de expectação e forçado silêncio, queda-se no
caminho, contemplando os que passam, presa aos cordéis da rotina, das
semanas uniformes e indiferentes.
Estamos vivendo, agora, o ano 57, e a vida dos atores deste drama
doloroso apresenta-se quase
276
ROMANCE DE EMMANUEL
invariável no desdobramento infindo dos seus episódios comuns e
angustiosos.
Apenas uma grande modificação se fizera na residência de
Calpúrnia.
Plínio Severus, nas suas radiosas expressões de vitalidade física, já
havia recebido as maiores distinções por parte das organizações militares
que garantiam a estabilidade do Império. Longas e periódicas
permanências nas Gálias e na Espanha lhe haviam angariado
honrosíssimas condecorações, mas, no seu íntimo, a vaidade e o orgulho
haviam proliferado intensamente, não obstante a generosidade do seu
coração.
Os primeiros ciúmes ásperos da esposa fizeram-se acompanhar de
conseqüências nefastas e dolorosas.
Aos criminosos propósitos de Saul juntaram-se as pérfidas
confidências das amigas mentirosas, e Flávia Lentúlia, longe de gozar a
ventura conjugal a que tinha direito pelos seus elevados dotes de coração,
descera, sem sentir, dados os seus ciúmes desmesurados, aos tenebrosos
abismos do sofrimento e da provação.
Para um homem da condição de Plínio, era muito fácil a substituição
do ambiente doméstico pelas festividades ruidosas do circo, na
companhia de mulheres alegres, que não faltavam em todos os lugares da
metrópole do pecado.
Em breve, o carinho da esposa foi substituído pelo falso amor de
numerosas amantes.
Debalde procurou Calpúrnia interpor seus bons ofícios e carinhosos
conselhos, e, em vão, prosseguia a jovem esposa do oficial romano no seu
martírio imperturbável e silencioso.
As raras queixas de Flávia eram guardadas pelo coração generoso
da mãe do seu marido, ou, então, confiadas ao espírito do pai, em
confidências amarguradas e penosas.
Públio Lentulus, compreendendo a importância da cooperação
feminina na regeneração dos costu277
HÁ DOIS MIL ANOS...
mes e no reerguimento do lar e da família, incitava a filha ao máximo de
resignação e tolerância, fazendo-lhe sentir que a esposa de um homem é a
honra do seu nome e o alimento da sua vida e que, enquanto um marido se
perverte no torvelinho das paixões desenfreadas, escarnecendo de todos
os bens da vida, basta, às vezes, uma lágrima da mulher para que a paz
conjugal volte a brilhar no céu sem nuvens do afeto puro e recíproco.
Para o espírito de Flávia, a palavra paterna tinha foros de realidade
insofismável e ela buscava amparar-se nas suas promessas e nos seus
conselhos, julgados preciosos, esperando que o esposo voltasse, um dia,
ao seu amor, entre as bênçãos do caminho.
Enquanto isso, Plínio Severus dissipava no jogo e nas folganças
uma verdadeira fortuna. Sua prodigalidade com as mulheres tornara-se
proverbial nos centros mais elegantes da cidade, e poucas vezes buscava
o ambiente familiar, onde, aliás, todos os afetos se conjugavam para
esclarecer-lhe docemente o espírito desviado do bom caminho.
A morte do velho pretor Sálvio Lentulus, antes do ano 50, obrigara a
família de Públio e os remanescentes de Flamínio aos protocolos sociais
junto de Fúlvia e da filha, por ocasião das homenagens prestadas às
cinzas do morto que, envolto no mistério da sua passividade resignada e
incompreensível, havia passado pelo mundo.
Bastou esse ensejo para que Aurélia retomasse a oportunidade
perdida. Um olhar, um encontro, uma palavra e o filho mais moço de
Flamínio, enamorado das belezas pecaminosas, restabeleceu o laço
afetivo que um amor santificado e puro havia destruído anteriormente.
Em breve, ambos eram vistos com olhares significativos pelos
teatros, pelos circos ou pelas grandes reuniões esportivas da época.
De todas essas dores, fizera Flávia Lentúlia o seu calvário de
agonias silenciosas, dentro do lar
278
ROMANCE DE EMMANUEL
que a sua fidelidade dignificava. Nas suas meditações silenciosas, muitas
vezes deplorou os antigos desabafos de ciúme injustificável, que
constituíram a primeira porta para que o marido se desviasse dos
sagrados deveres em família; mas, no seu orgulho de patrícia, ponderava
que era muito tarde para qualquer arrependimento dela, considerando,
intimamente, que o único recurso era aguardar a volta do esposo ao seu
coração fiel e dedicado, com o máximo de humildade e paciência. Nos
seus instantes de contristação, escrevia páginas amarguradas e
luminosas, pelos elevados conceitos que traduziam, ora implorando a
piedade dos deuses, em súplicas fervorosas, ora estereotipando as
íntimas angústias em versos comovedores, lidos tão somente pelos olhos
de seu genitor que, a chorar de emoção, considerava, muitas vezes, se a
desventura conjugal da pobre filha não era igualmente uma herança
singular e dolorosa.
Por volta do ano 53, desaparecia em trágicas circunstâncias, nos
escuros braços da morte, uma das figuras mais fortes desta história.
Referimo-nos a Fúlvia que, dois anos após o falecimento do
companheiro, acusava as mais sérias perturbações mentais, além de
inquietantes fenômenos orgânicos, provenientes de passados desvarios.
Feridas cancerosas devoravam-lhe os centros vitais e, por dois anos
a fio, o corpo emagrecido era forçado às mais penosas e incômodas
posições de repouso, enquanto os olhos inquietos e arregalados
dançavam nas órbitas, como se nas suas alucinações fosse compelida à
vidência dos quadros mais sinistros e tenebrosos.
Nessas ocasiões, não encontrava a dedicação da filha, que não
soubera educar, sempre atarefada nos seus constantes compromissos de
festas, encontros e representações sociais numerosas.
279
HÁ DOIS MIL ANOS...
Mas a misericórdia divina, que não abandona os seres mais
desditosos, dera-lhe um filho carinhoso e compassivo para as dores
expiatórias.
Emiliano Lúcios, o marido de Aurélia, era desses homens dignos e
valorosos, raros na paciência e nas mais elevadas virtudes domésticas.
Noites e noites sucessivas, velava pela velhinha infeliz, que as dores
físicas castigavam impiedosamente com o azorrague de suplícios atrozes.
Nos seus últimos dias, vamos ouvir-lhe as palavras desconexas e
dolorosas. Noite alta, quando as próprias escravas descansavam,
subjugadas pela fadiga e pelo sono, parecia que seus ouvidos de louca se
aguçavam, espantosamente, para ouvir os ruídos do invisível, dirigindo
impropérios às suas antigas vitimas, que voltavam das mais baixas esferas
espirituais para rodear-lhe o leito de sofrimento e morte. Olhos
desmesuradamente abertos, como se fixassem visões fatídicas e
horrorosas, exclamava a pobre velhinha abraçando-se ao genro, no auge
das suas freqüentes crises de medo e desesperação inconsciente:
- Emiliano!... - exclamava em atitudes de pavor supremo. - Este
quarto está cheio de seres tenebrosos!... Não percebes? Ouve bem...
Ouço-lhes os impropérios rijos e as sinistras gargalhadas!... Conheceste
Sulpício Tarquinius, o grande lictor de Pilatos?... Ei-lo que chega com os
seus legionários mascarados de treva!... Falam-me da morte, falam-me da
morte!... Socorre-me, filho meu!... Sulpício Tarquinius tem um corpo de
dragão que me apavora!...
Crises de soluço e lágrimas sucediam-se a essas observações
angustiosas.
- Acalma-te, mãe! - exclamava o militar, consternado até às lágrimas.
- Tenhamos confiança na bondade infinita dos deuses!...
- Ah!... os deuses! - gritava agora a infeliz, em histéricas gargalhadas
- os deuses... - onde
280
ROMANCE DE EMMANUEL
estariam os deuses desta casa infame? Emiliano, Emiliano, nós é que
criamos os deuses para justificar os desvarios de nossa vida! O Olimpo de
Júpiter é uma mentira necessária ao Estado... Somos uma caveira
enfeitada na Terra com um punhado de pó!... O único lugar que deve
existir, de fato, é o inferno, onde se conservam os demônios com os seus
tridentes no braseiro!... Ei-los que chegam em falanges escuras!...
E, apegando-se fortemente ao peito do oficial, gritava
disparatadamente, como se buscasse ocultar o rosto, de sombras
ameaçadoras:
- Nunca me levareis, malditos!... Para trás, canalhas!... Tenho um
filho que me defende de vossas investidas tenebrosas!...
Emiliano Lúcios acariciava bondosamente os cabelos brancos da
desventurada senhora, incitando-a a implorar a misericórdia dos deuses,
de modo a balsamizarem-se-lhe os rudes padecimentos.
De outras vezes, Fúlvia Prócula, como se tivesse a consciência
despertada por um raio divino, dizia, mais calma, ao filho que o destino lhe
havia dado:
- Emiliano, estou aproximando-me da morte e preciso confessar-te
as minhas faltas e grandes deslizes! Perdoa-me, filho, se tamanhos
trabalhos te hei proporcionado! Minha existência misérrima foi uma longa
esteira de crimes, cujas manchas horrorosas não poderão ser lavadas
pelas próprias lágrimas da enfermidade que ora me conduz aos
impenetráveis segredos da outra vida! Nunca, porém, consegui ponderar
as amarguras terríveis que me esperavam. Hoje, nas pesadas sombras
dalma, sinto que minha consciência se tisna do carvão apagado do fogo
das paixões nefastas que me devoraram o penoso destino!... Fui esposa
desleal, impiedosa, e mãe desnaturada...
Quem se apiedará de mim, se houver uma claridade espiritual após
as cinzas do túmulo? Deste leito de loucura e agonia desesperada, vejo o
des281
HÁ DOIS MIL ANOS...
file incessante de fantasmas hediondos, que parecem esperar-me no
pórtico do sepulcro!... Todos profligam meus crimes passados e mostramse
jubilosos com os padecimentos que me arrastam à sepultura!
Sem uma crença sincera, sinto-me entregue a esses dragões do
imponderável, que me fazem evocar o passado criminoso e sombrio!...
Uma torrente de lágrimas de compunção e arrependimento seguia-se
a esses instantes vertiginosos, de raciocínio e lucidez.
Emiliano Lúcios afagava-lhe, com carinho, a face rugosa, imergindose
ele mesmo em cismas dolorosas.
Aquele quadro lancinante era bem o fim tempestuoso de uma
existência de deslizes clamorosos.
Sim... ele tudo compreendia agora. A rebeldia da esposa, a sua
incompreensão, os atritos domésticos, aquela sede insaciável de festas
ruidosas em companhia de afetos que não eram os dele, deviam ser os
frutos amargos de educação viciada e deficiente. Mas, seu coração estava
cheio de generosidade sem limites. Espírito valoroso, compreendia a
situação, e quem compreende perdoa sempre.
Uma noite em que a doente manifestava crises acentuadas e
profundas, o bondoso oficial ordenou que as servas se recolhessem.
A pobre louca falava sempre, como se fôra tocada de energia
inesgotável e incompreensível.
Copioso suor inundava-lhe a fronte, tomada de febre alta e
constante.
- Emiliano - gritava ela desesperadamente -, onde está Aurélia, que
não busca velar à minha cabeceira nas vésperas da morte? Como as falsas
amizades de minha vida, terá ela também horror do meu corpo?
- Aurélia - explicou generosamente o oficial - precisava desobrigarse
hoje de um compromisso com as amigas, na organização de alguns
serviços sociais!
282
ROMANCE DE EMMANUEL
- Ah! - exclamou a demente, em sinistras gargalhadas - os serviços
sociais... os serviços sociais!... Como pudeste crer nisso, filho meu? Tua
mulher, a estas horas, deve estar ao lado de Plínio Severus, seu antigo
amante, em algum lugar suspeito desta cidade miserável!...
Emiliano Lúcios fez o possível para que a infeliz dementada não
prosseguisse em suas revelações terríveis e impressionantes; mas Fúlvia
continuava o libelo tremendo e doloroso:
- Não, não me prives de continuar... - prosseguia desesperadamente.
- Ouve-me ainda! Todas as minhas acusações representam a criminosa
realidade... Muitas vezes, a verdade está com aqueles que
enlouqueceram!... Fui eu própria que induzi minha infeliz filha aos desvios
conjugais... Plínio Severus era o inimigo que ela precisava vencer, na
qualidade de mulher... Facilitei-lhe o adultério, que se consumou sob este
teto!... Certifica-te, filho meu, da enormidade das minhas faltas!...
Horroriza-te, mas perdoa!... E vigia tua mulher para que não continue a
trair-te com as suas perfídias torpes, e não venha um dia a apodrecer,
lamentavelmente, como eu, num leito de sedas perfumosas!...
O generoso militar acompanhava, boquiaberto e aflito, aquelas
revelações assombrosas.
Então a esposa, além de não o compreender no seu idealismo, ainda
o traia vergonhosamente, no próprio ambiente sacrossanto do lar?
Emoções dolorosas represavam-se-lhe no coração, mas, possivelmente,
todas aquelas palavras não passavam de simples delírio febril, na
demência incurável. Uma dúvida horrível e impiedosa aninhara-se-lhe no
coração angustiado. Algumas lágrimas umedeceram-lhe os grandes olhos
tristes, enquanto a enferma dava uma trégua às penosas revelações.
Dai a minutos, porém, com voz estentórica, continuava:
- E Aurélia? Que é feito de Aurélia que não vem? Por onde andará
minha pobre filha crimi283
HÁ DOIS MIL ANOS...
nosa e infiel? Amanhã, meu filho, hei-de confiar-te os infames segredos da
nossa existência desventurada.
Alguém, todavia, penetrara no aposento contíguo, cautelosa e
silenciosamente. Era Aurélia, que voltava de uma festividade ruidosa, onde
o vinho e os prazeres haviam jorrado em abundância.
Depois de atravessar a porta próxima, ainda ouviu as últimas
palavras da mãe, no auge da febre e da desesperação doentia. Ela, que
ouvira as tristes revelações de pouco antes, considerou que a doente, no
dia imediato, haveria de cumprir a terrível promessa e, num relance,
examinou todas as probabilidades de execução da idéia tenebrosa que lhe
passara pela mente criminosa e infeliz. Seus olhos pareciam vidrados de
cólera, sob o azorrague de um pensamento mórbido, que lhe aflorara
repentinamente no coração frio e impiedoso.
Despiu os trajes da festa, reintegrando-se nos aspectos interiores do
lar, e abriu uma nova porta, dirigindo-se ao leito materno, onde acariciou a
mãe fingidamente, enquanto o esposo incompreendido a contemplava, de
cérebro fervilhante e dolorido, sob o domínio das dúvidas mais acerbas.
- Mãe, que é isso? - perguntou, afetando uma preocupação
imaginária. - Estás cansada... precisas repousar um pouco.
Fúlvia fitou-a profundamente, como se um clarão de lucidez lhe
houvesse clareado repentinamente o espírito abatido. A presença da filha
tranqüilizava de algum modo o seu coração dorido e a consciência
dilacerada. Sentou-se com esforço, no leito, afagou os cabelos da filha,
como sempre costumava fazer na intimidade, deitando-se em seguida e
parecendo com boa disposição de repousar.
Emiliano Lúcios retirou-se da cena, considerando que sua presença já não
era necessária.
Mas Aurélia continuava a falar com o seu fingido carinho:
284
ROMANCE DE EMMANUEL
- Queres, mãe, uma dose do calmante para o repouso preciso?
A pobre louca, na sua inconsciência espiritual, fez um sinal
afirmativo com a cabeça.
A jovem encaminhou-se ao seu aposento privado e, retirando
minúsculo tubo de um dos móveis prediletos, deixou pingar algumas gotas
numa pequena taça de sedativo, monologando: - "Sim!... um segredo é
sempre um segredo... e só a morte pode guardá-lo convenientemente!..."
Caminhou, sem hesitação, para o leito materno, onde, por mais de
dois anos, jazia a infeliz, devorada pelo câncer e atormentada pelas visões
mais sinistras e tenebrosas.
Num relance, o horrível envenenamento estava consumado.
Ministrada a poção corrosiva e violenta, Aurélia determinou, então, que
duas escravas velassem o sono da enferma, como de costume, ao
regressar das noitadas ruidosas, esperando o resultado da ação criminosa
e injustificável.
Em duas horas, a enferma apresentava os mais evidentes sinais de
sufocação sob a ação do corrosivo, que constituía mais um daqueles
filtros misteriosos e homicidas da época.
Ao chamamento aflito das servas, todas as pessoas da casa se
colocaram a postos, dado o penoso estado da enferma.
Emiliano Lúcios contemplou-lhe os olhos, que se iam apagando no
véu da morte, e debalde procurou fazer que a agonizante lhe dissesse
ainda uma palavra. Seus membros frios foram-se enrijando devagarinho e
da boca começou a escapar-lhe espuma rósea.
Em vão foram chamados os entendidos da medicina, naqueles
derradeiros instantes. Naquela época, nem os esculápios conheciam os
segredos anatômicos do organismo, nem havia polícia técnica para
averiguar as causas profundas das mortes misteriosas. O envenenamento
de Fúlvia correu por conta das moléstias incompreensíveis que, durante
285
HÁ DOIS MIL ANOS...
muitos meses, lhe haviam minado todos os centros de vitalidade.
Contudo, aquela agonia rápida não passou despercebida a Emiliano,
que juntou mais uma dúvida penosa aos amargos pensamentos que lhe
negrejavam o foro íntimo.
Aurélia buscou representar, do melhor modo, a comédia da
sentimentalidade em tais circunstâncias, e depois das cerimônias
simplificadas e rápidas, em vista da imediata decomposição cadavérica,
que forçou a incineração em breves horas, o antigo lar do pretor Sálvio
Lentulus tornou-se o abrigo de dois corações que se odiavam
mutuamente.
Se a esposa infiel, logo após os primeiros dias de luto, retornava à
sua existência de regalados prazeres, Emiliano Lúcios nunca pôde
esquecer as revelações de Fúlvia, nas vésperas do seu desprendimento,
envolvendo-se, então, num véu de tristeza que lhe cobriu o coração por
mais de dois anos.
Em 54, subia Domício Nero ao poder, fazendo-se acompanhar de
uma depravada corte de áulicos perversos e de concubinas tão numerosas
quão desalmadas.
Muito tarde, reconheceu Agripina a inconveniência de sua atitude
maternal obrigando o imperador Cláudio a anuir ao casamento de sua filha
Otávia com aquele que, mais tarde, iria eliminar-lhe a própria vida com os
maiores requintes de perversidade.
O Fórum e o Senado receberam, tremendo, a sombria notícia da
proclamação do novo César pelas legiões pretorianas, não tanto por ele,
mas porque sabiam, de antemão, que aquele príncipe ignorante e cruel ia
tornar-se um fácil joguete dos espíritos mais ambiciosos e mais perversos
da corte romana.
Ninguém, todavia, ousou protestar, tal a série de crimes tenebrosos,
perpetrados impunentemente, para que Domício Nero atingisse os
bastidores do supremo poder.
286
ROMANCE DE EMMANUEL
No ano 56, o envenenamento do jovem Britanicus punha arrepios de
terror em todos os patrícios.
Medidas ignominiosas foram postas em prática para humilhar os
senadores do Império, que não conseguiram efetivar os seus protestos
formais. Todas as famílias mais importantes da cidade conheciam que,
diante de si, tinham os filtros venenosos de uma Locusta, a tirania e a
perversidade de um Tigelinus, ou o punhal de um Aniceto.
A morte inesperada de Britanicus, porém, provocara certo
descontentamento, dando azo a que se manifestassem alguns espíritos
mais valorosos.
Entre esses, encontrava-se Emíliano Lúcios, que se viu logo em
sérias perspectivas de banimento, tornando-se vigiado pelos inúmeros
esbirros do Imperador.
O generoso oficial buscou recolher-se o mais que lhe era possível,
evitando a possibilidade de conflitos. Recrudesceram as suas angústias
íntimas e as suas meditações tornaram-se mais profundas e dolorosas...
E, assim, certa vez, às primeiras horas de uma noite tranqüila,
quando se recolhia ao lar, contrariamente aos seus hábitos mais antigos,
notou que o aposento da esposa estava cheio de vozes animadas e
alegres. Observou que Aurélia e Plínio se embriagavam no vinho de seus
venenosos prazeres e, olhos traduzindo incoercível espanto, viu que a
esposa o traía no próprio tálamo conjugal.
Emiliano Lúcios sentiu que espinho mais agudo lhe penetrava o
coração sensível e generoso, ao verificar, por si mesmo, aquela realidade
cruel. Teve ímpetos de chamar o amante ao campo da honra para morrer
ou eliminar-lhe a vida, mas considerou, simultaneamente, que Aurélia não
merecia tal sacrifício.
Enojado de tudo que se referia à sua época e sentindo-se vencido
nas desventuras do seu penoso destino, o nobre oficial retirou-se para o
an287
HÁ DOIS MIL ANOS...
tigo gabinete do pretor Sálvio, onde estabelecera a sede de seus trabalhos
diurnos e, tomado de sinistra e dolorosa resolução, abriu velho armário
onde se alinhavam pequenos frascos, retirando um deles, de configuração
especial, a fim de satisfazer os amargos propósitos do seu espírito
exausto.
Diante da taça de cicuta, o cérebro dorido perdeu-se, por minutos,
em pungentes conjeturas, mas, estudando intimamente todas as suas
probabilidades de ventura, ponderou, no auge do desespero, que, à traição
da mulher, às ameaças de proscrição e de banimento ou à possibilidade de
um ataque nas sombras, era preferível o que ele considerava o consolo
derradeiro da morte.
Num instante, sem que os amigos espirituais pudessem demovê-lo
do intento terrível, tal a subitaneidade do gesto desesperado e irrefletido,
sorveu o conteúdo de pequena taça, descansando depois a jovem cabeça
sobre os braços, estirado num leito próprio do triclínio, mas adaptado ao
seu gabinete antigo, abarrotado de mármores e pergaminhos preciosos.
A morte horrível não se fez esperar muito, e, no círculo numeroso de
suas relações de amizade, enquanto Aurélia representava nova farsa de
pesares imaginários, comentava-se o suicídio de Emiliano, não como
consequência direta de suas profundas desilusões domésticas, mas como
fruto da tirania política do novo imperador, sob cujo reinado tantos crimes
foram cometidos, diariamente, nas sombras.
Sozinha, agora, no seu campo de ação, Aurélia entregou-se
livremente aos seus desvarios, amplificando as suas inclinações nocivas e
procurando reter, cada vez mais, junto de si o homem de suas
preferências, objeto de suas desenfreadas ambições.
Em casa dos Lentulus e dos Severus, a vida continuava a desfiar o
rosário das desventuras.
Havia mais de cinco anos, em 57, que Saul de Gioras se encontrava
definitivamente instalado
288
ROMANCE DE EMMANUEL
em Roma, sem haver desistido dos seus desejos e propósitos a respeito
da esposa do amigo e benfeitor. Consolidada a sua fortuna no comércio de
peles do Oriente, não perdia ele as mínimas oportunidades para evidenciar
a excelência de sua situação material à mulher cobiçada de longos anos;
Flávia Lentúlia, porém, fizera da existência um calvário de resignação,
comovedora e silenciosa.
A vida pública do marido era, para o seu espírito, um prolongado e
doloroso suplício moral. Sobre o assunto, fazia Saul, de vez em quando,
referências indiretas, no intuito de chamar-lhe a atenção para o seu afeto,
mas a pobre senhora nele não via outra individualidade, além de um
amigo, ou irmão. Debalde, o moço judeu testemunhava-lhe sua admiração
pessoal, em gestos de extrema gentileza, buscando oferecer-lhe a sua
companhia; mas, a verdade é que os apelos de sua alma impetuosa e
apaixonada não encontravam. ressonância no coração daquela mulher,
que enfeitava com a dor a dignidade do matrimônio.
Tocado pelas expressões do seu dinheiro, Araxes animava-lhe as
esperanças sem o deixar esmorecer nos seus perigosos instintos.
Plínio Severus só vinha ao lar de vez em quando, alegando serviços
ou viagens numerosas para justificar a continuidade de sua ausência. Mal
se precatava ele de que as despesas astronômicas lhe arruinavam, pouco
a pouco, as possibilidades financeiras, conduzindo igualmente os seus
familiares ao esgotamento de todos os recursos.
Algumas vezes, mantinha colóquios afetuosos com a esposa, a
quem se sentia preso pelos laços de afeição eterna e profunda, mas as
seduções do mundo eram já muito fortes no seu coração, para serem
extirpadas. No íntimo, desejava voltar à calma do lar, à vida carinhosa e
tranqüila; mas, o vinho, as mulheres e os ambientes ostentosos eram a
permanente obsessão do seu espírito combalido; outras vezes, embora
amando a esposa ternamente,
289
HÁ DOIS MIL ANOS...
não lhe perdoava a circunstância da sua superioridade moral, irritando-se
contra a própria humildade que ela testemunhava em face dos seus
desatinos, e regressava novamente aos braços de Aurélia, como vítima
indecisa entre as forças do bem e do mal.
No ano 57, a saúde de Calpúrnia, abalada em extremo, obrigara a
família a reunir-se em torno do leito da matrona generosa. Pela primeira
vez, após o casamento do irmão, voltou Agripa Severus de suas longas
aventuras em Massília e em Avênio, para junto de sua mãe enferma e
abatida, atendendo-lhe os sentidos apelos. Reencontrar Flávia Lentúlia e
participar com ela das claridades do ambiente doméstico, foi o mesmo que
reavivar velho vulcão adormecido.
A um golpe de vista, compreendeu a situação conjugal de Plínio,
procurando substituir-lhe o afeto junto da esposa desvelada e meiga.
Desejava confessar-lhe todo o seu amor ardente e infeliz, mas guardava no
coração sublime respeito fraternal por aquela mulher, que confiava nele
como irmão muito amado.
Foi assim que, nas alternativas de melhora da velha enferma, Flávia
lhe aceitou a companhia para distrair-se nalguns espetáculos da rumorosa
cidade da época.
Tanto bastou para que Saul envenenasse os acontecimentos,
supondo nessas expansões inocentes uma ligação menos digna, que lhe
enchia de pavorosos ciúmes o coração violento e irascível.
Na primeira oportunidade, insinuou a Plínio Severus todas as suas
cavilosas suspeitas, arquitetando, com a sua imaginação doentia,
situações e acontecimentos que jamais se verificaram. O esposo de Flávia
era desses homens caprichosos, que, organizando um circulo de liberdade
ilimitada para si próprio, nada concedem à mulher, nem mesmo no terreno
das afeições desinteressadas e puras. Dessa forma, Plínio Severus
começou a acatar a palavra
290
ROMANCE DE EMMANUEL
de Saul, concedendo-lhe aos conceitos insensatos o mais largo crédito, no
seu foro íntimo. Ele, que deixara a companheira afetuosa ao abandono e
que, por largos anos, dera azo às mais penosas amarguras domésticas,
sentiu-se, então, ralado de ciúmes acerbos e inconcebíveis, passando a
espionar os menores gestos do irmão e a desconfiar dos mais secretos
pensamentos da esposa, esperando que a moléstia irremediável de sua
mãe tivesse uma solução na morte, que se presumia para breve, a fim de
se pronunciar com mais força na reivindicação dos seus direitos
conjugais.
Entrava o ano de 58, com amarguradas perspectivas para as nossas
personagens.
Um fato, porém, começava ferir a atenção de todas as personagens
desta história real e dolorosa.
A dedicação de Lívia à sua velha amiga doente era um exemplo raro
de amor fraterno, de carinho e bondade indefiníveis. Oito meses a fio, sua
figura franzina e silenciosa esteve a postos dia e noite, sem descanso,
junto ao leito de Calpúrnia, provando-lhe com exemplos a excelência dos
seus princípios religiosos
Muitas vezes, a nobre matrona considerou, intimamente, a
superioridade moral daquela doutrina generosa, que estava no mundo para
levantar os caídos, confortar os enfermos e os tristes, disseminando as
mais formosas esperanças com os desiludidos da sorte, em confronto com
os seus velhos deuses que amavam os mais ricos e os que oferecessem
os melhores sacrifícios nos templos, e aquele Jesus humilde e pobre,
descalço e crucificado, de que lhe falava Lívia em suas palestras íntimas e
carinhosas.
Calpúrnia estava plenamente modificada, às vésperas da morte. A
convivência contínua da velha amiga renovara-lhe todos os pensamentos e
crenças mais radicadas. Tratava melhor as escravas que lhe beiravam o
leito e pedira a Lívia lhe
291
HÁ DOIS MIL ANOS...
ensinasse as preces do profeta crucificado em Jerusalém, o que ambas
faziam de mãos postas, quando os aposentos da enferma ficavam
silenciosos e desertos. Nesses instantes, a viúva de Flamínio Severus
sentia que as dores abrandavam, como se bálsamo suave lhe refrescasse
os centros íntimos de força; cessavam as dispneias dolorosas e a
respiração quase se normalizava, como se profundas energias do plano
invisível lhe reanimassem o coração escleroso e fatigado.
Ao espírito de Públio não passavam despercebidos esses sintomas
de modificação moral da velha matrona, nem tampouco o nobre
procedimento da esposa, que nunca mais repousou, desde o instante em
que a vira inerme e exausta. Os sofrimentos da vida haviam igualmente
modificado muito a estrutura da sua organização espiritual e, como nunca,
sentia o senador a necessidade de se reconciliar com a esposa, para
enfrentar os invernos penosos da velhice que se aproximava.
Não só ele, como Lívia, já haviam ultrapassado meio século de
existência, e agora, que tão bem conhecia a vida e os seus dolorosos
mecanismos de aperfeiçoamento, se sentia apto a perdoar todas as faltas
da esposa, no pretérito, considerando que os seus vinte e cinco anos de
martírio moral, no sacrossanto ambiente doméstico, bastavam para redimila
das faltas que, porventura, houvesse cometido, nas ilusões da
mocidade, em terra estranha, conforme supunha em suas falsas
observações, filhas ainda da calúnia que lhe destruíra a ventura e a paz de
uma existência inteira.
Nos primeiros dias do ano 58, os padecimentos de Calpúrnia foram
subitamente agravados, esperando-se a cada momento o penoso
desenlace.
Os filhos e os mais íntimos lhe rodeavam o leito, grandemente
comovidos, embora reconhecessem a necessidade de repouso para
aquele corpo doente e esgotado.
292
ROMANCE DE EMMANUEL
Na antevéspera da morte, a veneranda senhora pediu que a
deixassem sozinha com o senador, por algumas horas, alegando a
necessidade de confiar a Públio Lentulus algumas disposições "in
extremis".
Atendida, imediatamente, vamos encontrá-los em íntimo colóquio,
como se estivessem juntos pela última vez, para decisão de assuntos
importantes e supremos.
Públio, ainda em pleno vigor de sua compleição física, tinha os
olhos rasos dágua, enquanto a velha matrona o contemplava, deixando
transparecer um clarão de viva lucidez nos olhos calmos e profundos.
- Públio - começou ela, gravemente, como se aquelas palavras
fossem as suas últimas recomendações -, para os espíritos de nossa
formação não pode existir o receio da morte, e é por esse motivo que
deliberei falar-te nas minhas horas derradeiras...
- Mas, minha boa amiga - respondeu o senador, franzindo a testa e
esforçando-se por dissimular a comoção que lhe ia nalma, lembrando-se
de que, nas mesmas circunstâncias, lhe falara FIamínio pela última vez,
entre as paredes daquele quarto -, somente os deuses podem decidir de
nossos destinos e só eles conhecem os nossos últimos instantes!...
- Não duvido dessas verdades - acudiu a valorosa patrícia -, mas,
tenho a certeza de que as minhas horas na Terra chegam a termo e não
quero levar para o túmulo o remorso de uma falta que reconheço haver
cometido há mais de dez anos...
- Uma falta? Nunca... Vossa vida, Calpúrnia, foi sempre um dos mais
raros exemplos de virtude nesta época de transição e degenerescência
dos nossos mais belos costumes...
- Agradeço-te, meu grande amigo, mas tua gentileza não me exime
da penitência perante o teu espírito, afirmando que há mais de dez anos
errei
293
HÁ DOIS MIL ANOS...
num julgamento, pedindo-te hoje recebas a minha retificação, talvez tardia,
mas ainda a tempo de santificarmos, com o mais justo respeito, uma vida
de sacrifícios e de abnegações!...
Públio Lentulus adivinhou que se tratava de sua mulher e, com voz
embargada pela comoção e pelas lágrimas, deixou que a velha amiga
continuasse, de olhos enxutos, manifestando o mais subido valor moral
em face da morte que se aproximava.
- Refiro-me a Lívia - continuou Calpúrnia, em tom comovido -, a
respeito de quem tive a infelicidade de te transmitir uma suposição errônea
e injusta, cortando-lhe a última possibilidade de ventura na Terra; mas, a
morte renova as nossas concepções da vida e os que estão prestes a
abandonar este mundo possuem uma visão mais clara de todos os
problemas da existência.
Hoje, meu amigo, digo-te, de alma serena, que tua esposa é
imaculada e inocente...
O senador sentia que o pranto lhe brotava espontaneamente dos
olhos, mas estava intimamente confortado por saber que a venerável
amiga confirmava, agora, as convicções que o tempo lhe aumentara
quanto à nobilíssima companheira de sua existência.
- Não to digo simplesmente por uma questão de egoísmo pessoal,
em penhor de agradecimento pelas supremas dedicações de Lívia para
comigo no decurso desta dolorosa enfermidade - continuou ela,
valorosamente. - Um espírito do nosso estofo deve estar com a verdade
acima de tudo, e esta minha confissão não se verifica tão somente pelas
observações da minha fraqueza toda humana.
A realidade, todavia, meu amigo, é que, desde aquela noite em que
me pediste opinasse sobre tua esposa e minha desvelada amiga, sinto o
espinho de uma dúvida cruel no meu coração dilacerado. Lívia foi sempre
a minha melhor companheira, e contribuir para a sua desventura,
injustificada294
ROMANCE DE EMMANUEL
mente, era aos meus olhos a suprema falta de toda a vida...
Por onze anos, orei constantemente e ofereci numerosos sacrifícios
nos templos, para que os deuses me inspirassem a verdade sobre o
assunto e, por todo esse tempo, tenho esperado pacientemente a
revelação do céu... Só hoje, porém, me foi dado obtê-la, já nos pórticos do
sepulcro!...
É possível que minha pobre alma, já semiliberta, esteja participando
dos incompreendidos mistérios da vida do além-túmulo e talvez seja por
isso que, hoje pela manhã, vi a figura de Flamínio neste quarto!... Era muito
cedo e eu estava só, com as minhas meditações e as minhas preces!...
Nesse ínterim, a palavra da enferma tornara-se entrecortada de
profundas emoções que a dominavam, enquanto Públio Lentulus chorava,
em doloroso silêncio.
- Sim... - prosseguiu Calpúrnia, depois de longa pausa -, no meio de
uma luz difusa e azulada, vi Flamínio a estender-me os braços carinhosos
e compassivos... No olhar, observei-lhe a mesma expressão habitual de
ternura e, na voz, o timbre familiar, inesquecível... Avisou-me que dentro de
dois dias penetrarei os mistérios indevassáveis da morte, mas essa
revelação do meu fim próximo não me podia surpreender... porque, pari
mim... que há tantos anos vivo no meu exílio de saudades e sombras...
acrescido das continuadas angústias da enfermidade longa e dolorosa... a
certeza da morte constitui supremo consolo... Confortada pelas doces
promessas da visão, as quais me auguravam esse brando alívio para
breves horas...
perguntei ao espírito de Flamínio sobre a dúvida cruel que me dilacerava
há tantos anos... Bastou que a argüísse mentalmente, para que a radiosa
entidade me dissesse em alta voz... meneando a cabeça num gesto
delicado... como a exprimir infinita e dolorosa tristeza: "Calpúrnia, em má
hora duvidaste daquela a quem deverias amar... e pro295
HÁ DOIS MIL ANOS...
teger como a filha querida e carinhosa... porque Lívia... e uma criatura
imaculada e inocente..."
Nesse instante... - continuou a enferma, com alguma dificuldade -, tal
foi a impressão dolorosa de minhalma... com a surpresa da resposta... que
não mais lobriguei a visão carinhosa e consoladora... como se fosse
repentinamente chamada às tristes realidades da vida prática.
A velha matrona tinha os olhos marejados de lágrimas, enquanto o
senador se entregava silenciosamente ao pranto de suas comoções
penosas.
Longos minutos estiveram ambos assim, na atitude de quem dava
curso ao remorso e ao sofrimento...
Afinal, foi ainda a valorosa patrícia quem rompeu o pesado silêncio,
tomando as mãos do amigo entre as suas mãos descarnadas e brancas,
exclamando:
- Públio, fala-te o coração de uma velha amiga, com as verdades
serenas e tristes da morte... Acreditas piamente nas minhas dolorosas
revelações?...
O senador fez um esforço para enxugar as lágrimas que lhe caiam
copiosamente dos olhos, e, movimentando o máximo de energias, replicou
firmemente:
- Sim, acredito.
- E que faremos agora... para reparar nossas faltas... ante o coração
generoso e justo de tua mulher?...
Ele deixou transparecer um clarão de ternura nos olhos, e, passando
as mãos inquietas pela fronte, como se houvera encontrado solução quase
feliz, dirigiu-se à doente, com uma irradição de alegria e de tranqüilidade
no semblante, dizendo confortado:
- Sabeis da grande festa do Estado, que se realizará de hoje a
poucos dias, na qual os senadores, com mais de vinte anos de serviço ao
Império, serão coroados de mirto e rosas, como os triunfadores?
296
ROMANCE DE EMMANUEL
- Sim - respondeu a matrona -, tanto que já pedi a meus filhos que...
não obstante a minha morte próxima... te acompanhem nessa justa
alegria... porque serás um dos agraciados pelas nossas autoridades
supremas...
- Ó, minha grande amiga, ninguém pode esperar vossa morte,
mesmo porque, não poderemos prescindir da preciosa contribuição da
vossa vida; mas, já que cuidamos de reparar o meu erro grave no passado
doloroso, esperarei mais uma semana para levar ao espírito de Lívia a
expressão do meu reconhecimento, da minha gratidão e do meu profundo
amor. Irei a essa festa, a realizar-se sob os auspícios de Sêneca, que tudo
tem feito por dissimular a penosa impressão causada pela conduta cruel
do Imperador, seu antigo discípulo. Depois de receber a coroa da suprema
vitória de minha vida pública, trarei todas as condecorações aos pés de
Lívia, como preito justo à sua angustiada existência de penosos sacrifícios
domésticos... Ajoelhar-me-ei ante a sua figura santificada e, retirando da
fronte a auréola do Império, deporei as flores simbólicas a seus pés, que
beijarei humildemente com o meu arrependimento e as minhas lágrimas,
traduzindo-lhe gratidão e amor infindos!...
- Generosa idéia, meu filho - exclamou a enferma, sensibilizada -, e
peço-te que a executes... no momento oportuno. E, no instante... em que
testemunhares a Lívia o teu amor supremo... dize-lhe que me perdoe...
porque eu chorarei de alegria... vendo ambos felizes... lá das sombras
tranqüilas do meu sepulcro.
Ambos choravam, comovidos, silenciosamente.
Em dado instante, a velha doente apertou as mãos do amigo, como a
dizer-lhe um supremo adeus. Calpúrnia fixou nele os grandes olhos claros
- a desprenderem irradiações misteriosas, e, com lágrimas de emoção
inexprimível, exclamou comovidamente:
297
HÁ DOIS MIL ANOS...
- Públio... peço... não te esqueças... do prometido... Ajoelha-te aos
pés de Lívia... como aos de uma deusa... de renúncia e de bondade... Não
te importe... a minha partida deste mundo... Vai à festa do Senado...
reparemos... nossa falta grave... e agora, meu amigo... um último pedido...
Vela por meus filhos... como se fossem teus... Ensina-lhes ainda a
honradez... a fortaleza... a sinceridade e o bem... Um dia... todos nos... nos
reuniremos... na eternidade...
Públio Lentulus apertou-lhe as mãos, sensibilizado, ajeitando-lhe,
nas sedosas almofadas, a cabeça encanecida, enquanto lágrimas de
comoção lhe embargavam a voz.
Havia muito que a enferma era atacada, subitamente, de periódicas e
prolongadas dispneias.
O senador abriu as portas do largo aposento aonde Lívia acorreu,
pressurosa, como enfermeira de todos os instantes, enquanto Flávia e
algumas servas acudiam com ungüentos e outras panacéias da medicina
do tempo.
Calpúrnia, porém, parecia atacada pelas últimas aflições que a
levariam ao túmulo. Por vinte e quatro horas consecutivas, o peito arfou
sibilante, como se a caixa toráxica estivesse prestes a rebentar sob o
impulso de uma força indomável e misteriosa.
Ao fim de um dia e uma noite de azáfama e angústias, a doente
parecia haver experimentado ligeira melhora. A respiração fazia-se menos
penosa e os olhos revelavam grande serenidade, embora todo o corpo
estivesse salteado de manchas azuladas e violáceas, prenunciando a
morte. Apenas a afonia continuava, mas, em dado instante, fez um gesto
com a mão, chamando Lívia à cabeceira com a terna familiaridade dos
antigos tempos. A esposa do senador atendeu ao apelo silencioso,
ajoelhando-se, com os olhos cheios de lágrimas e compreendendo, pela
intuição espiritual, que era chegado o instante doloroso da despedida. Viase
298
ROMANCE DE EMMANUEL
que Calpúrnia desejava falar, inutilmente. Foi então que cingiu Lívia,
amorosamente, contra o peito, osculando-lhe os cabelos e a fronte num
esforço supremo e, colando os lábios ao seu ouvido, balbuciou com
infinita ternura: - "Lívia, perdoa-me!" Somente a interpelada escutara o
brando cicio da agonizante. Foram essas as derradeiras palavras de
Calpúrnia. Dir-se-ia que sua alma valorosa necessitava, tão somente,
daquele último apelo para conseguir desvencilhar-se da Terra, elevando-se
ao Paraíso.
Abraçada à incansável amiga, a agonizante depôs novamente a
cabeça nas almofadas, para sempre. Suor abundante transbordava de todo
o seu corpo, que se aquietou de leve para a suprema rigidez cadavérica e,
dai a minutos, seus olhos se fecharam, como se se preparassem para um
grande sono. A respiração foi-se extinguindo brandamente, enquanto uma
lágrima pesada e branca lhe rolava nas faces enrugadas, como um raio
divino da luz que lhe clarificava a noite do túmulo.
As portas do palácio abriram-se, então, para os tributos afetuosos
da sociedade romana. As exéquias da valorosa matrona compareceu o que
a cidade possuía de mais nobre e mais fino, em sua aristocracia espiritual,
dado o elevado conceito em que eram tidas as peregrinas virtudes da
morta.
Terminadas as cerimônias da incineração e guardadas as cinzas
ilustres da nobre patrícia nas sombras do jazigo familiar, Flávia Lentúlia
assumiu a direção da casa, enquanto seus pais voltavam à residência do
Aventino, para o necessário descanso.
Faltavam somente quatro dias para a realização das grandes festas,
em que mais de uma centena de senadores receberia a auréola do
supremo triunfo na vida pública. Públio Lentulus, que seria dos
homenageados na festa memorável, não obstante o luto da família,
aguardava o grande momento, com ansiedade. É que, recebida a
expressão supre299
HÁ DOIS MIL ANOS...
ma da vitória de um homem de Estado, levá-la-ia aos pés da esposa, como
símbolo perene do seu afeto e do seu reconhecimento da vida inteira. No
seu íntimo, arquitetava a maneira mais doce de se dirigir novamente à
companheira, no timbre caricioso e suave que a sua voz havia perdido há
vinte e cinco anos, e, verificando a continuidade do seu amor, cada vez
mais profundo, pela esposa, esperava ansiosamente o instante da sua
reintegração na felicidade doméstica.
De noite, naquelas horas longas que se passavam, enquanto o velho
coração se preparava para as bênçãos da ventura conjugal, em breves
dias, ia ele até às proximidades dos apartamentos da esposa, situados
bem distantes do seus, naqueles prolongados anos de amarguras infindas.
Na antevéspera das grandes festividades a que nos referimos,
seriam vinte e três horas, quando a sua figura se postara em frente aos
aposentos da companheira, antegozando o ditoso momento da penitência,
que significava para ele uma alegria suprema.
Enquanto o pensamento se afundava nos abismos do passado
longínquo, sua atenção espiritual foi repentinamente despertada pela
melodia suave de uma voz de mulher, que cantava baixinho no silêncio da
noite. O senador aproximou-se, vagarosamente, da porta, colando o ouvido
à escuta... Sim! Lívia cantava em voz apagada e mansa, qual cotovia
abandonada, fazendo soar levemente as cordas harmoniosas de uma lira
de suas lembranças mais queridas. Públio chorava comovido, ouvindo-lhe
as notas argentinas que se abafavam no ambiente restrito do quarto, como
se Lívia estivesse cantando para si própria, adormentando o coração
humilde e desprezado, para encher de consolo as horas tristes e desertas
da noite. Era a mesma composição das musas do esposo, que lhe
escapava dos lábios naquele instante em que a voz tinha tonalidades
estranhas e maravilhosas, de indefiní300
ROMANCE DE EMMANUEL
vel melancolia, como se todo o seu canto fosse o lamento doloroso de
rouxinol apunhalado:
Alma gêmea da minhalma,
Flor de luz da minha vida,
Sublime estrela caída
Das belezas da amplidão!...
Quando eu errava no mundo,
Triste e só, no meu caminho,
Chegaste, devagarinho,
E encheste-me o coração.
Vinhas na bênção dos deuses,
Na divina claridade,
Tecer-me a felicidade
Em sorrisos de esplendor!...
És meu tesouro infinito,
Juro-te eterna aliança,
Porque sou tua esperança,
Como és todo o meu amor!
Alma gêmea da minhalma,
Se eu te perder, algum dia,
Serei a escura agonia
Da saudade nos seus véus...
Se um dia me abandonares,
Luz terna dos meus amores,
Hei-de esperar-te, entre as flores
Da claridade dos céus...
Daí a minutos, a voz harmoniosa calava, como se fôra obrigada a um
divino estacato. O senador retirou-se, então, com os olhos marejados de
lágrimas, refletindo consigo mesmo: - "Sim, Lívia, de hoje a dois dias heide
provar-te que foste sempre a luz da minha vida inteira... Beijarei teus
pés com a minha humildade agradecida e saberei entornar no teu coração
o perfume do meu arrependimento..."
Penetrando no aposento de Lívia, vamos encontrá-la genuflexa,
depois de haver deposto, sobre um
301
HÁ DOIS MIL ANOS...
móvel predileto, a lira das suas recordações. Ajoelha-se, como sempre,
diante da cruz de Simeão que, nesse dia, mostrava a seus olhos espirituais
uma claridade mais intensa.
No curso de suas preces, ouviu a palavra do amigo invisível, cuja
tonalidade profunda parecia gravar-se, para sempre, no imo da sua
consciência: "Filha - exclamava a voz amiga, do plano espiritual -, regozijate
no Senhor, porque são chegadas as vésperas da tua ventura eterna e
imorredoura! Eleva o pensamento humilde a Jesus, porque não está longe
o instante ditoso da tua gloriosa entrada no seu Reino!..."
Lívia deixou transparecer no olhar uma atitude de alegria e surpresa,
mas, cheia de confiança e fé na providência divina, guardou, nos refolhos
mais íntimos do coração, o conforto daquelas palavras sacrossantas.
302
V
Nas catacumbas da fé e no circo do martírio
No dia imediato à cena que acabamos de descrever, vamos
encontrar, juntas, as duas grandes amigas que, longe de serem a senhora
e a serva, eram duas almas unidas pelos mesmos ideais, ligadas pelos
elos mais santos do coração.
Ana acabava de chegar a casa, depois de cumprir algumas
obrigações no Fórum Olitorium, (1) quando, encontrando Lívia mais a sós,
lhe disse confidencialmente:
- Senhora, hoje à noite uma nova voz se levantará no santuário das
catacumbas, para as pregações da nossa fé. Amigos nossos me avisaram,
esta manhã, que, já há alguns dias, se encontra na cidade um emissário da
igreja de Antioquia, chamado João de Cleofas, portador de significativas
revelações para nós outros, os cristãos desta cidade...
Lívia deixou transparecer um clarão de íntimo contentamento nos
olhos, exclamando:
__________
(1) Mercado de legumes. - Nota de Emmanuel.
303
HÁ DOIS MIL ANOS...
- Ah! sim... havemos de ir hoje às catacumbas. Tenho necessidade
de comungar com os nossos irmãos de crença, nas mesmas vibrações da
nossa fé! Além disso, preciso agradecer ao Senhor a misericórdia das
suas graças imensas...
E elevando um pouco a voz, como se desejasse comunicar à amiga
o santo júbilo de suas esperanças mais íntimas, exclamou com terno
sorriso a lhe irradiar no semblante calmo:
- Ana, desde a morte de Calpúrnia, noto que Públio está mais sereno
e mais esclarecido... Nestes últimos dias, tem-me dirigido a palavra com a
ternura de outros tempos, havendo-me afirmado, ainda ontem, que seu
coração me reserva doce surpresa para amanhã, depois da sua vitória
suprema na vida pública. Sinto que é muito tarde para que seja novamente
feliz neste mundo, mas, em suma, estou intimamente satisfeita, porque
nunca desejei morrer em desarmonia com o companheiro que Deus me
concedeu para as lutas e alegrias da vida. Acredito que nunca me perdoará
o crime de infidelidade que julga haver eu praticado há vinte e cinco anos,
mas choro de contentamento ao reconhecer que Públio me sente redimida,
ante a severidade de seus olhos!...
E chorava, comovida, enquanto a velha criada lhe afiançava com
ternura:
- Sim, minha senhora, talvez tenha ele reconhecido as suas
abnegações santificantes no lar, nestes longos anos de sacrifícios
abençoados.
- Agradeço a Jesus tamanha misericórdia - revidou Lívia,
sensibilizada. - Suponho mesmo que não estou longe de partir para o
mundo das realidades celestes, onde todos os sofredores hão-de ser
consolados...
E depois de ligeira pausa, continuou:
- Ainda ontem, quando orava junto à cruz singela, lá no quarto, ouvi
uma voz que me anunciava o Reino de Jesus para muito breve.
304
ROMANCE DE EMMANUEL
Ouvindo-a, Ana lembrou-se subitamente de Simeão e das horas que
antecederam os seus sacrifícios, mergulhando-se em dolorosas cismas.
Suas recordações remontavam ao passado longínquo, quando a voz de
Lívia novamente a despertou nestes termos:
- Ana - dizia com as heróicas decisões da sua fé -, não sei como
serei chamada pelo Messias, mas, na hipótese da minha breve partida,
peço-te continuares nesta casa, no teu apostolado de trabalho e
sacrifícios, porque Jesus há-de abençoar-te os labores santificantes.
A antiga serva dos Lentulus queria dar novo rumo à conversação
pungente e exclamou com a serenidade criteriosa que lhe conhecemos:
- Senhora, sabe Deus qual de nós partirá primeiro. Esqueçamos,
hoje, este assunto para pensar tão somente nas suas santificadas alegrias.
E, como para encerrar a angustiada impressão daquela palestra
íntima, rematou perguntando, confidencialmente:
- Então, iremos hoje, de fato, às catacumbas?
- Sim. Fica combinado. À noitinha, partiremos para as nossas
orações e carinhosas lembranças do Messias Nazareno. Tenho
necessidade desse desafogo espiritual, após os longos meses que estive
retida junto da minha nobre Calpúrnia; além disso, desejo pedir aos
nossos irmãos que orem comigo por ela, testemunhando ao mesmo
tempo, ao Senhor, meu sincero agradecimento pelas suas graças divinas...
Ao partirmos, peço-te me atives a memória, pois quero levar ao novo
apóstolo uma espórtula destinada à igreja de Antioquia.
Se, amanhã, Públio vai receber o supremo galardão do homem do
mundo, quero rogar a Jesus não lhe abandone o coração intrépido e
generoso, para que as vaidades da Terra não o inibam de buscar, algum
dia, o reino maravilhoso do céu!
305
HÁ DOIS MIL ANOS...
Assim entendidas, separaram-se na azáfama dos misteres
domésticos. E enquanto o senador, durante todo o dia, tomava
providências numerosas para que nada faltasse ao brilho pessoal do seu
grande triunfo no dia imediato, Lívia passava as horas, de alma voltada
para o Cristo, em preces fervorosas.
À noitinha, consoante combinaram, lá se foram à secreta reunião
das práticas primitivas do Cristianismo
Todos os servos graduados do palácio viram-nas sair, sem
preocupação nem surpresa. Em todo o longo período da moléstia de
Calpúrnia, Lívia e Ana nunca mais haviam fixado a sua presença no interior
do lar e não seria de estranhar que ambas houvessem deliberado buscar a
residência dos Severus, naquela noite, de onde, possivelmente, não
voltariam senão no dia seguinte, depois de confortarem o espírito abatido
de Flávia, no desdobramento de seus fadigosos encargos domésticos.
Foi assim que as horas passaram, tranqüilas e descuidadas; e
quando o senador se aproximou dos aposentos da esposa, antegozando
as profundas alegrias esperadas para o dia seguinte, presumiu, no pesado
silêncio ali reinante, a significação do seu calmo repouso, nas asas leves e
cariciosas do sono. Imaginando que Lívia descansava na paz soberana da
noite, Públio Lentulus recolheu-se ao seu gabinete particular, com o
cérebro referto de radiosas esperanças, no propósito de se penitenciar de
todos os seus erros do passado.
Lívia, porém, em companhia de Ana, aproveitara-se das primeiras
sombras da noite para atingir as catacumbas.
Passava das dezenove horas, quando ambas se ocultavam entre as
pedras abandonadas que davam acesso aos subterrâneos, onde se
amontoava a velha poeira dos mortos.
Num vasto espaço abobadado, que servira outrora às assembléias
das cooperativas funerárias,
306
ROMANCE DE EMMANUEL
reunia-se grande número de pessoas em torno da figura simpática e
generosa do culto pregador, que chegara da Síria distante. A um canto,
erguia-se improvisada tribuna, para onde, dai a minutos, subia João de
Cleofas, dentro do halo de doçura que lhe aureolava a singular
individualidade.
O apóstolo de Antioquia trazia à cabeça os primeiros cabelos
brancos e toda a sua figura estava saturada de forte magnetismo pessoal,
que ligava intimamente a sua personalidade a quantos se lhe
aproximavam, levados pela doce afinidade da crença e dos sentimentos
profundos.
Todos os presentes pareciam empolgados por sua palavra sedutora
e impressionante, que se fez ouvir por quase duas horas sucessivas,
caindo no coração do auditório como orvalho sublime da eloquência
celeste. Conceitos elevados e proféticas observações ressoavam pelas
arcadas silenciosas e sombrias, fracamente iluminadas pela claridade de
algumas tochas.
De fato, a assembléia tinha razão de se eletrizar com aquele
doloroso e sublime profetismo, porque João de Cleofas pronunciava
profunda alocução, mais ou menos nestes termos:
- Irmãos, seja convosco a paz do Cordeiro de Deus, Nosso Senhor
Jesus-Cristo, na intimidade da vossa consciência e no santuário do vosso
coração!...
O santo patriarca de Antioquia, nas suas preces e meditações de
cada dia, recebeu numerosas revelações do Messias, ordenando a vinda
de um mensageiro ao ambiente de vossos trabalhos na capital do mundo,
a fim de anunciar-vos grandes coisas...
Pelas revelações do Espírito Santo, os cristãos desta cidade
impiedosa foram escolhidos pelo Cordeiro para o grande sacrifício. E eu
vos venho anunciar nossa breve entrada no Reino de Jesus, em nome dos
seus apóstolos bem-amados!...
307
HÁ DOIS MIL ANOS... 307
Sim, porque aqui, onde todas as glórias divinas foram escarnecidas
e humilhadas pela impenitência das criaturas, se hão-de travar os
primeiros grandes embates das forças do bem e do mal, preludiando o
estabelecimento definitivo, no mundo, da divina e eterna mensagem do
Evangelho do Senhor!
Na última reunião geral dos crentes de Antioquia, manifestaram-se
as vozes do céu, em línguas de fogo, como aconteceu nos dias gloriosos
do cenáculo dos apóstolos, depois da divina ressurreição do nosso
Salvador; e o vosso servo, aqui presente, foi escolhido para emissário
dessas noticias confortadoras, porque as vozes celestes nos prometem o
Reino do Senhor, em breves dias...
Amados, acredito que estamos em vésperas dos mais atrozes
testemunhos da nossa fé, pelos sofrimentos remissores, mas a cruz do
Calvário deverá iluminar a penosa noite dos nossos padecimentos...
Eu também tive a felicidade de ouvir a palavra do Senhor, nas horas
derradeiras da sua dolorosa agonia, à face deste mundo. E que pedia ele,
meus queridos, senão o perdão infinito do Pai para os algozes implacáveis
que o atormentavam? Sim, não duvidemos das revelações do céu...
Verdugos inflexíveis rondam nossos passos e eu vos trago a mensagem
do amor e da fortaleza em Nosso Senhor Jesus-Cristo!
Roma batizará sua nova fé com o sangue dos justos e dos
inocentes; mas, também importa considerar que o Cordeiro imáculo de
Deus Todo-Poderoso se imolou no madeiro infamante, para resgatar os
pecados e aviltamentos do mundo!...
Andaremos, talvez, nestas vias suntuosas, como em novas ruas de
uma Jerusalém apodrecida, cheia de desolação e de amargura... Clamam
as vozes celestes que, aqui, seremos desprezados, humilhados,
vilipendiados e vencidos; mas, a vitória suprema do Senhor nos espera
além das palmas espinhosas do martírio, nas claridades doces do seu
reino, inacessível ao sofrimento e à morte!...
308
ROMANCE DE EMMANUEL
Lavaremos com o nosso sangue e as nossas lágrimas a iniquidade
destes mármores preciosos, mas, um dia, irmãos meus, toda esta
Babilônia de inquietação e de pecado ruirá, fragorosamente, ao peso de
suas misérias ignóbeis... Um furacão destruidor derrubará os falsos ídolos
e confundirá as pretensiosas mentiras dos seus altares... Tormentas
dolorosas do extermínio e do tempo farão chover sobre este Império
poderoso as ruínas da pobreza e do mais triste esquecimento... Os circos
da impiedade hão-de desaparecer sob um punhado de cinzas, o Fórum e o
Senado dos impenitentes hão-de ser confundidos pela suprema justiça
divina, e os guerreiros orgulhosos desta cidade pecadora rastejarão um
dia, como vermes, pelas margens do mesmo Tibre que lhes carreia a
iniquidade!...
Então, novos Jeremias hão-de chorar sobre os mármores, à piedosa
luz da noite... os suntuosos palácios destas colinas soberbas e donosas
cairão em penoso torvelinho de assombros e, sobre os seus monumentos
de orgulho, de egoísmo e vaidade, gemerão os ventos tristes das noites
silenciosas e desertas...
Felizes todos aqueles que chorarem agora, por amor ao Divino
Mestre; venturosos todos os que derramarem seu sangue pelas sublimes
verdades do Cordeiro, porque no céu existem as moradas divinas para os
bem-aventurados de Jesus...
Falava a voz suave e terrível do emissário da igreja de Antioquia e
suas palavras ressoavam no profundo silêncio das abóbadas ermas.
Cerca de duas centenas de pessoas ali se encontravam, ouvindo-o
atentamente.
Quase todos os cristãos presentes choravam, embevecidos. No
íntimo das almas pairava uma exaltação suave e mística, fazendo-lhes
sentir as doces emoções de todos aqueles apóstolos anônimos, que
tombaram nas arenas ignominiosas dos circos, para cimentar com sangue
e lágrima a edificação da nova fé.
309
HÁ DOIS MIL ANOS...
Depois das profecias singulares e dolorosas, que encheram todos
os olhares de clarões indefiníveis de alegria interior, na antevisão do
glorioso Reino de Jesus, João foi consultado por numerosos confrades a
respeito de vários assuntos de interesse geral para a marcha e
desenvolvimento da nova doutrina, tal como acontecia nas primitivas
assembléias do Cristianismo nascente, e a todos atendia com as mais
francas expressões de bondade fraterna.
Interpelado, por um dos presentes, quanto ao motivo de sua alegria
radiosa, quando as revelações do Espírito Santo anunciavam tão grandes
provações e tantos padecimentos, o generoso emissário respondeu com
sublimado otimismo:
- Sim, meus amigos, não podemos esperar senão o sagrado
cumprimento das profecias anunciadas, mas devemos considerar com
júbilo que se Jesus permite aos ímpios a realização de monumentos
maravilhosos, como os desta cidade suntuosa e apodrecida, que não
reservará ele, na sua infinita misericórdia, aos homens bons e justos, nas
claridades do seu Reino?
Aquelas respostas consoladoras caiam na alma da numerosa
assembléia, como bálsamo dulcificante.
Palavras de amor e saudações afetuosas eram trocadas entre todos,
com as mais doces demonstrações de júbilo e fraternidade.
Lívia e Ana tinham um clarão de alegria íntima a lhes brilhar nos
olhos calmos.
Ao fim da reunião, todos se levantaram para as preces singelas e
espontâneas das primitivas lições do Cristianismo, em fontes puras.
A voz do emissário de Antioquia, ainda uma vez, se fez ouvir,
brilhante e clara:
- Pai Nosso, que estais nos céus, santificado seja o vosso nome,
venha a nós o vosso Reino de misericórdia, seja feita a vossa vontade,
assim na Terra, como nos Céus...
310
ROMANCE DE EMMANUEL
Todavia, nesse instante, a palavra meiga e comovedora foi abafada
por sinistro tinir de armaduras.
- É aqui, Luculo!... - gritava a voz estentórica do centurião Clódio
Varrus, que avançava, com os seus numerosos pretorianos, para a massa
atônita dos cristãos indefesos, constituída, na sua maioria, de mulheres.
Alguns crentes mais inflamados começaram então a apagar as
tochas, provocando as trevas para a confusão e o tumulto, mas João de
Cleofas descera da tribuna com a sua figura radiosa e impressionante.
- Irmãos - gritou com voz estranha e vibrante no seu apelo, como que
saturado de extraordinário magnetismo -, recomendou o Senhor que
jamais colocássemos a luz sob o alqueire! Não apagueis a claridade que
deve iluminar o nosso exemplo de coragem e de fé!...
A esse tempo, os dois centuriões presentes já haviam articulado as
suas forças, em comum, organizando os cinqüenta homens que tinham
vindo, sob suas ordens, para a hipótese de uma resistência.
Viu-se, então, o apóstolo de Antioquia caminhar com desassombro,
sob o pasmo silencioso dos presentes, dirigindo-se a Luculo Quintilius,
estendendo-lhe os braços pacificamente e solicitando com empenho:
- Centurião, cumpre a tua tarefa sem receio, porque eu não vim a
Roma senão para as glórias do sacrifício.
O preposto do Império não se comoveu com essas palavras e,
depois de brandir ao rosto do missionário os copos de sua espada, em
dois tempos amarrou-lhe os braços, impossibilitando-lhe os movimentos.
Dois jovens crentes, dando largas ao seu temperamento ardoroso e
sincero, revoltados com a crueldade, desembainharam as armas, que
reluziram à claridade pálida daquele interior de penum311
HÁ DOIS MIL ANOS...
bra, avançando para os soldados num gesto supremo de defesa e
resistência, mas João de Cleofas advertiu ainda uma vez, com a sua
palavra magnética e profunda:
- Meus filhos, não repitais neste recinto a cena dolorosa da prisão do
Messias. Lembrai-vos de Malcus e guardai a vossa espada na bainha,
porque os que ferem com o ferro, com o ferro serão feridos...
Houve, então, na assembléia, um movimento de quietude e de
assombro. A coragem serena do apóstolo contagiara todos os corações.
Nos grandes movimentos da vida, há sempre uma vibração espiritual
que flui doutros mundos, para conforto dos míseros viajores da jornada
terrestre.
Observou-se, desse modo, o inaudito e inesperado. Todos os
presentes imitaram o apóstolo valoroso, entregando os braços inermes
para o sacrifício.
No seu doloroso momento, Lívia enchera-se de uma coragem que
nunca havia possuído. Diante da sua figura nobre e da sua indumentária
de patrícia detiveram-se, longamente, os olhares significativos dos
verdugos. Naquela assembléia, era ela a única mulher que ostentava as
insígnias do patriciado romano.
Clódio Varrus cumpria sua tarefa algo respeitoso e, daí a minutos, a
pesada caravana estava a caminho da prisão, dentro das sombras
espessas da meia-noite.
O cárcere onde os cristãos iam passar tantas horas ao relento, em
angustiosa promiscuidade, que.. de algum modo, representava para eles
suave consolo, ficava anexo ao grande circo, sobre cujas proporções
gigantescas somos obrigados a deter nossas vistas, dando ao leitor uma
fraca idéia da sua grandeza.
O Circo Máximo ficava situado justamente no vale que separa o
Palatino do Aventino, erguen312
ROMANCE DE EMMANUEL
do-se, ali, como uma das mais belas maravilhas da cidade invicta.
Edificado nos primórdios da organização romana, suas proporções
grandiosas se haviam desenvolvido com a cidade e, ao tempo de Domício
Nero, tal era a sua extensão, que ocupava 2190 pés de comprimento, por
960 de largura, terminando em semicírculo, com capacidade para trezentos
mil espectadores comodamente instalados. De ambos os lados, corriam
duas ordens de pórticos, superpostos, ornados de colunas preciosas e
coroadas de terraços confortáveis. Naquele luxo de construções e demasia
de ornamentos, viam-se tascas numerosas e inúmeros lugares de
devassidão, a cuja sombra dormiam os miseráveis e repousava a maioria
do povo, embriagado e amolecido nos prazeres mais hediondos. Seis
torres quadradas, denotando as mais avançadas expressões de bom gosto
da arquitetura da época, dominavam os terraços, servindo de camarotes
luxuosos às personalidades mais distintas, nos espetáculos de grande
gala. Largos bancos de pedra, dispostos em anfiteatro, corriam por três
lados, localizando-se, em seguida, em linha reta, o espaço ocupado pelos
cárceres, de onde saíam os cavalos e carros, bem como escravos e
prisioneiros, feras e gladiadores, para os divertimentos preferidos da
sociedade romana. Sobre os cárceres, erguia-se o suntuoso pavilhão do
Imperador, de onde as mais altas autoridades e áulicos acompanhavam o
César nos seus entretenimentos. A arena era dividida longitudinalmente
por uma muralha de seis pés de altura, por doze de largura, erguendo-se
sobre ela altares e estátuas preciosas, que ostentavam bronzes finos e
dourados. Bem no centro dessa muralha, imprimindo um traço majestoso
de grandeza ao ambiente, levantava-se, à altura de cento e vinte pés, o
famoso obelisco de Augusto, dominando a arena colorida de vermelho e
de verde, dando a impressão de relva deliciosa que se tingisse
subitamente de flores de sangue.
313
HÁ DOIS MIL ANOS...
Os míseros prisioneiros daquela caçada humana foram atirados a
uma larga dependência dos cárceres, nas primeiras horas da madrugada.
Os soldados os despojaram, um a um, dos objetos de valor, ou das
pequenas importâncias em dinheiro que traziam consigo. As próprias
senhoras não escaparam ao esbulho humilhante, sendo roubadas nas
suas jóias mais preciosas. Apenas Lívia, pelo respeito que inspiravam
suas vestes, foi poupada ao exame infamante.
Num gabinete privado, Clódio Varrus dava ciência ao seu superior,
Cornélio Rufus, do êxito da diligência que lhe fôra cometida aquela noite.
- Sim - exclamava Cornélio, satisfeito -, pelo que vejo, a festa de
amanhã correrá a inteiro contento do Imperador. Esta primeira caçada de
cristãos era essencial ao glorioso feito das grandes homenagens aos
senadores.
Mas, escuta - continuava ele mais discretamente, referindo-se a Lívia
-, quem é essa mulher que traz a toga das matronas da mais alta classe
social?
- Ignoro - respondeu o centurião, assaz pensativo. Aliás, muito me
admirei de encontrá-la em tal ambiente, mas cumpri severamente as
vossas ordens.
- Fizeste bem.
Todavia, como se estivesse adotando intimamente uma providência
nova, Cornélio Rufus sentenciou:
- Deixá-la-emos aqui até amanhã, até o momento do espetáculo,
quando, então, poderá ser posta em liberdade.
- E porque não a libertamos desde já?
- Ela poderia, na sua condição de nobreza, provocar algum
movimento de protesto contra a decisão de César e isso nos colocaria em
péssima situação. E como essas miseráveis criaturas serão atiradas às
feras, na qualidade de escravos e condenados à última pena, nos
derradeiros divertirem314
ROMANCE DE EMMANUEL
tos da tarde, não convém nos comprometermos perante a sua família.
Retendo-a aqui, satisfazemos os caprichos de Nero e, soltando-a em
seguida, não nos incompatibilizaremos com os que gozam dos favores da
situação.
- É verdade; essa é a solução mais razoável. Contudo, por que
motivo essas criaturas serão condenadas como escravos, quando
deveriam morrer como cristãos, pois tão somente essa é a causa de sua
justa condenação? A razão de sua morte não está na humilhante doutrina
que professam?
- Sim, mas temos de ponderar que o Imperador não se sente ainda
com bastante força para enfrentar a opinião dos senadores, dos edis e de
várias outras autoridades, que, certamente, desejariam advogar a causa
destes infelizes, em desprestígio dele e no de seus mais íntimos
conselheiros... Mas, não duvido de que essa perseguição aos adeptos da
odiosa doutrina do Crucificado será oficializada em breves dias (1), tão
logo os poderes imperiais estejam mais fortemente centralizados.
Esperemos, pois, mais algum tempo e, até lá, fortifiquemos o
prestigio de Nero, porque o detentor do poder deve representar sempre o
melhor dos amigos.
Enquanto isso ocorria, todos os cristãos se dividiam em grupos, no
interior do cárcere, trocando as mais íntimas impressões sobre o
angustioso transe.
Em dado momento, todavia, abriu-se uma porta, por onde surgiu a
figura detestável de Clódio, exclamando, ironicamente:
__________
(1) A maioria dos historiadores do Império Romano assinala as primeiras
perseguições ao Cristianismo somente no ano de 64; entretanto, desde 58 alguns dos
favoritos de Nero conseguiram iniciar o criminoso movimento, salientando-se que os
cristãos da época, antes do grande incêndio da cidade, eram levados aos sacrifícios, na
qualidade de escravos misérrimos, para divertimento do povo. - Nota de Emmanuel.
315
HÁ DOIS MIL ANOS...
- Cristãos, não há demência de César para os que professam as
perigosas doutrinas do Nazareno. Se tendes alguns negócios materiais a
resolver, lembrai-vos de que é muito tarde, porquanto poucas horas vos
separam das feras da arena, no circo.
Novamente, a pesada porta se fechou sobre a sua figura, enquanto
os míseros condenados se surpreendiam amargamente com a notícia
inquietante e dolorosa.
Através das grades reforçadas, podiam observar os movimentos dos
numerosos soldados que os guardavam, dando guarida, nos primeiros
instantes, às mais angustiosas conjeturas. Depressa, porém, voltara-lhes a
calma e os prisioneiros se aquietaram com humildade. Alguns faziam
preces fervorosas, enquanto outros trocavam pensamentos em voz baixa.
Os carcereiros não tardaram a separar as mulheres, instalando-as
em dependência contígua, onde cada grupo de crentes ficou de alma
voltada para Jesus, nos instantes supremos em que aguardavam a morte.
De manhãzinha, mal o Sol havia surgido de todo nas amplitudes do
formoso firmamento romano, vamos encontrar Ana e Lívia em conversação
quase serena, a sós, numa espécie de biombo dos muitos existentes na
espaçosa sala reservada às mulheres, enquanto numerosas companheiras
aparentavam descansar, estremunhadas.
- Senhora - exclamava a serva, algo preocupada -, noto que vos
tratam aqui com simpatia e deferência. Porque não pleiteardes
imediatamente a vossa liberdade? Não sabemos o que de sinistro e terrível
nos ocorrerá nas horas penosas deste dia!...
- Não, minha boa Ana - respondeu Lívia, tranqüila -, deves ficar certa
de que minhalma está convenientemente preparada para o sacrifício. E
ainda que me não sentisse confortada, não deve316
ROMANCE DE EMMANUEL
rias apresentar-me semelhante alvitre, porque Jesus, sendo embora o
Mestre de todos os mestres e Senhor do reino dos céus, não pleiteou sua
liberdade junto aos algozes que o atormentavam e oprimiam...
- Isso é verdade, senhora. Mas, acredito que Jesus saberia
compreender o vosso gesto, porque tendes ainda um esposo e uma filha...
- acentuou a velha empregada, como a lhe recordar as obrigações
humanas.
- Um esposo? - retrucou a nobre matrona, com heróica serenidade. -
Sim, agradeço a Deus a paz que me concedeu, permitindo que Públio me
demonstrasse a sua contrição nestes últimos dias. Para mim, só essa
tranqüilidade era essencial e necessária, porque o esposo, na sua feição
humana, eu o perdi há longos vinte e cinco anos... Debalde sacrifiquei
todos os impulsos de minha mocidade para lhe provar o meu amor e a
minha inocência, em contraposição à calúnia com que humilharam meu
nome. Por um quarto de século tenho vivido com as minhas orações e as
minhas lágrimas... Angustiosa tem sido a minha saudade e dolorosíssimo
o triste degredo espiritual a que fui relegada, no plano dos meus afetos
mais puros.
Não creio possa reviver para mim, no coração do velho
companheiro, a confiança antiga, cheia de felicidade e ternura...
Quanto à filha, entreguei-a a Jesus, desde os dias de sua infância,
quando me vi obrigada à terrível separação do seu afeto. Afastada de sua
alma por imposição de Públio, tive de sufocar os mais doces entusiasmos
do coração materno. Sabe o Senhor de minhas ansiosas angústias, nas
noites silenciosas e tristes em que lhe confiava meus amargurosos
padecimentos. Além disso, Flávia tem hoje um marido que procurou isolála
ainda mais do meu pobre espírito, receoso da minha fé, qualificada por
todos de demência...
317
HÁ DOIS MIL ANOS...
E depois de ligeira pausa, na sua confiança dolorosa, acentuou com
serena tristeza:
- Para mim, não pode haver o reflorescimento das esperanças aqui
na Terra... Só aspiro, agora, a morrer em paz confortadora com a minha
consciência.
- Mas, senhora - tornou a criada com veemência -, hoje é o dia da
maior vitória do vosso esposo...
- Não me esqueci dessa circunstância. Faz, porém, vinte e cinco
anos que Públio segue rumo oposto ao meu caminho e não será demais
que, buscando ele hoje a suprema recompensa do mundo, como triunfo
final dos seus desejos, busque eu também não a vitória do céu, que não
mereci, mas a possibilidade de mostrar ao Senhor a sinceridade da minha
fé, ansiosa pelas bênçãos lucificantes da sua infinita misericórdia.
Depois, minha querida Ana, é muito grato ao coração sonhar com o
seu reino santificado e misericordioso... Vermos, de novo, as mãos suaves
do Messias abençoando-nos o espírito, com os seus gestos amplos de
caridade e de ternura!...
Lívia tinha um clarão divino nos olhos, que se molhavam em
lágrimas espontâneas, como se houvesse caído sobre o seu coração o
orvalho do Paraíso.
Via-se, claramente, que suas idéias não estavam na Terra, mas, sim,
flutuando num mundo de radiosidades suavíssimas, cheio de recordações
carinhosas do passado e saturado de ternas esperanças no amor de
Jesus-Cristo.
- Sim - continuava falando, como se fôra tão somente para a sua
própria alma, na intimidade do coração -, ultimamente, muito me tenho
lembrado do Divino Mestre e de suas palavras inesquecíveis... Naquela
tarde inolvidável de suas pregações, ainda era crepúsculo e o céu estava
recamado de estrelas, como se as luzes do firmamento desejassem
também ouvi-lo... As ondas do Tiberíades,
318
ROMANCE DE EMMANUEL
que se apresentavam, freqüentemente, tão rumorosas ao fustigo do vento,
vinham, silenciosas, desfazer-se num leque de espumas, de encontro às
barcas da praia, numa doce expressão de respeito, quando se faziam ouvir
na paisagem os seus divinos ensinamentos! Tudo se aquietava de manso;
era de ver-se o sorriso angelical das criancinhas, à claridade terna dos
seus olhos de pastor dos homens e da Natureza...
Nos meus anseios, minha boa Ana, desejava adotar todos aqueles
petizes maltrapilhos e famintos, que surgiam nas assembléias populares
de Cafarnaum; mas, meu propósito materno de amparar aquelas mulheres
desprezadas e aquelas crianças andrajosas, que viviam ao desamparo, não
podia realizar-se neste mundo... Todavia, suponho que hei-de realizar os
ideais de minha alma, se Jesus me acolher nas claridades do seu Reino...
A velha serva chorava emocionada, ouvindo estas expansões
tocantes, comovedoras.
Depois de longa pausa, continuou como se desejasse bem
aproveitar as derradeiras horas:
- Ana - disse com enérgica tranqüilidade -, ambas fomos chamadas
ao testemunho sagrado da fé, nas horas que passam e que devem ser
gloriosas para o nosso espírito. Perdoa-me, querida, se algum dia te ofendi
o coração com alguma palavra menos digna. Antes que Simeão te
entregasse à minha guarda, já eu te amava ternamente, como se fôras
minha irmã ou minha própria filha!...
A serva chorava, emocionada, enquanto Lívia, carinhosa,
continuava:
- Agora, querida, tenho um derradeiro pedido a fazer-te...
- Dizei, senhora - sussurrou a serva, com os olhos rasos de lágrimas
-, antes de tudo, sou vossa escrava.
- Ana, se é verdade que temos de testemunhar ainda hoje a nossa fé,
eu desejava comparecer ao sacrifício como aquelas criaturas
desamparadas,
319
HÁ DOIS MIL ANOS...
que ouviam as consolações divinas junto do Tiberíades. Se puderes
atender-me, troca hoje comigo a toga da senhora pela túnica da serva!
Desejava participar do sacrifício com as vestes humildes e pobres da
plebe, não porque me sinta humilhada perante as pessoas da minha
condição, no momento ditoso do testemunho, mas porque, arrancando
para sempre os derradeiros preconceitos do meu nascimento, daria à
minha consciência cristã o conforto do último ato de humildade... Eu, que
nasci entre as púrpuras da nobreza, desejava buscar o Reino de Jesus
com as vestiduras singelas dos que passaram pelo mundo no torvelinho
doloroso das provações e dos trabalhos!...
- Senhora!... - obtemperou a serva, hesitante...
- Não vaciles, se queres proporcionar-me a satisfação derradeira.
Ana não pôde recusar, ante os piedosos propósitos da generosa
criatura e, num instante, na penumbra daquele improvisado recanto que as
separava das demais companheiras, trocaram a toga e a túnica, que eram
tão somente uma espécie de manto, sobre a complicada indumentária da
época, tendo Lívia adornado a toga de lã finíssima, agora no corpo da
serva, com as jóias discretas que trazia usualmente consigo. Depois de
entregar-lhe dois anéis preciosos e um gracioso bracelete, apenas um
adorno de valor lhe restava, mas Lívia, passando a mão pelo pescoço e
acariciando um pequeno colar, com imensa ternura, exclamou com
decisão para a companheira:
- Está bem, Ana, fica-me apenas este pequeno colar, em que trago o
camafeu com o perfil de Públio, em alto relevo, e que é um presente dele
no dia longínquo das nossas núpcias. Morrerei com esta jóia, como se ela
fôra um símbolo de união entre os meus dois amores, que são meu marido
e Jesus-Cristo...
320
ROMANCE DE EMMANUEL
Ana aceitou, sem protesto, todas as piedosas imposições da
senhora e, em breves instantes, na sua antiga beleza virginal, o porte da
serva humilde estava tocado de imponente nobreza, como se ela fosse
uma soberana figura de marfim velho.
Para todos os prisioneiros, na terrível inquietação que os oprimia,
embora as doces claridades interiores da prece que os integrava na
precisa coragem moral para o sacrifício, as horas do dia passavam
pesadas e vagarosas. João de Cleofas, com o resignado heroísmo do seu
fervor religioso, conseguiu manter aceso o calor da fé em todos os
corações: não faltaram os companheiros mais animosos que, na exaltação
de sua confiança na Providência Divina, ensaiaram os próprios cânticos de
glória espiritual, para o instante supremo do martírio.
No palácio do Aventino, todos os domésticos mais íntimos
acreditavam na permanência de Lívia em casa da filha; mas, um pouco
antes do meio-dia, Flávia Lentúlia veio ter com o pai, a fim de beijá-lo antes
do triunfo.
Informada pelo senador, quanto aos seus projetos de restabelecer a
antiga felicidade doméstica, com as mais expressivas demonstrações
públicas de confiança e de amor pela esposa, Flávia, com grande surpresa
para o pai, procurava a mãe para as manifestações de sua justificada
alegria.
Angustiosa interrogação se estampou, desse modo, em todos os
semblantes.
Depois de vinte e cinco anos, era a primeira vez que Lívia e Ana se
ausentavam de casa, de um dia para outro, provocando os mais
justificados receios.
O senador sentiu o coração ferido de presságios angustiosos, mas
os escravos já se encontravam preparados para conduzi-lo ao Senado,
onde as primeiras cerimônias teriam início depois do meio-dia, com a
presença de César. Observando-lhe a aflição e os olhares ansiosos e
inquietos, Flávia
321
HÁ DOIS MIL ANOS...
Lentúlia buscou tranqüilizá-lo com estas palavras, que dissimulavam as
suas próprias aflições:
- Vai tranqüilo, meu pai. Voltarei agora a casa, mas não me
descuidarei das providências necessárias, porque, quando regressares, de
tarde, com a auréola do triunfo, quero abraçar-te com a mamãe, entre as
flores do vestíbulo, a fim de podermos ambas receber-te com as pétalas do
nosso amor desvelado de todos os dias.
- Sim, filha - respondeu o senador com uma sombra de angústia -,
permitam os deuses que assim seja, porque as rosas do lar serão para
mim as melhores recompensas!...
E tomando a liteira, saudado por amigos numerosos que o
esperavam, Públio Lentulus demandou o Senado, onde multidões
entusiásticas esfuziavam de alegria, em sinal de agradecimento pela farta
distribuição de trigo com que as autoridades romanas haviam
comemorado aquele evento, aplaudindo os homenageados com a gritaria
ensurdecedora das grande manifestações populares.
Da nobre casa política, onde os mais elegantes torneios de oratória
foram proferidos para enaltecimento da personalidade do Imperador e
antecedidos pela figura impressionante do César, que nunca desdenhou o
fausto retumbante dos grandes espetáculos, na sua feição de antigo
comediante, dirigiram-se os senadores para o famoso Templo de Júpiter,
onde os homenageados receberiam a auréola de mirto e rosas, como os
triunfadores, obedecendo à inspiração de Sêneca, que tudo envidava por
desfazer a penosa impressão do governo cruel do seu ex-discípulo, que,
afinal, decretaria também a sua morte no ano 66. No Templo de Júpiter, o
grande artista que era Domício Nero coroou a fronte de mais de cem
senadores do Império, sob a bênção convencional dos sacerdotes,
demorando-se as cerimônias na sua complicada feição religiosa, por
algumas horas sucessivas. Somente depois das 15 horas, saía do templo,
em direção ao Circo Má322
ROMANCE DE EMMANUEL
ximo, o grosso e desmesurado cortejo. A compacta procissão, tocada de
aspecto solene, poucas vezes observado em Roma nos séculos
posteriores, dirigiu-se primeiramente ao Fórum, atravessando pela massa
formidável de povo, com o máximo respeito.
Para esclarecimento dos leitores, passemos a dar pálida idéia do
maravilhoso cortejo, de conformidade com as grandes cerimônias públicas
da época.
Na frente, vai um carro, soberba e magnificamente ornamentado,
onde se instala molemente o Imperador, seguindo-se-lhe numerosos
carros nos quais se aboletam os senadores homenageados, bem como os
seus áulicos preferidos.
Domício Nero, junto de um dos favoritos mais caros, passa
sobranceiro no seu traje vermelho de triunfador, com o luxo espalhafatoso
que lhe caracterizava as atitudes.
Em seguida, numeroso grupo de jovens de quinze anos passa, a
cavalo e a pé, escoltando as carruagens de honra e abrindo a marcha.
Passam, depois, os cocheiros guiando as bigas, as quadrigas, as
séjuges, que eram carros a dois, a quatro e a seis cavalos, para as loucas
emoções das corridas tradicionais.
Seguindo-se aos aurigas, quase em completa nudez, surgem os
atletas, que farão os números de todos os grandes e pequenos jogos da
tarde; após eles, vão os três coros clássicos de dançarmos, o primeiro
constituído por adultos, o segundo dos adolescentes insinuantes, e o
terceiro por graciosas crianças, todos ostentando a túnica escarlate
apertada com uma cinta de cobre, espada ao lado e lança na mão,
salientando-se o capacete de bronze enfeitado de penachos e cocares, que
lhes completam a indumentária extravagante. Esses bailarinos passam,
seguidos pelos músicos, exibindo movimentos rítmicos e executando
bailados guerreiros, ao som de harpas de marfim, flautas curtas e
numerosos alaúdes.
323
HÁ DOIS MIL ANOS... 323
Depois dos músicos, qual bando de sinistros histriões, surgem os
Sátiros e os Silenos, personagens estranhas, que apresentam máscaras
horripilantes, cobertos de peles de bode, sob as quais fazem os gestos
mais horrendos, provocando o riso frenético dos espectadores, com as
suas contorções ridículas e estranhas. Sucedem-se novos grupos
musicais, que se fazem acompanhar de vários ministros secundários do
culto de Júpiter e outros deuses, levando nas mãos grandes recipientes à
guisa de turíbulos de ouro e de prata, de onde espiralam inebriantes
nuvens de incenso.
Seguindo os ministros, com adornos de ouro e pedras preciosas,
passam as estátuas das numerosas divindades arrancadas, por um
momento, dos seus templos suntuosos e sossegados. Cada estátua, na
sua expressão simbólica, faz-se acompanhar de seus devotos ou dos seus
variados colégios sacerdotais. Todas as imagens, em grande aparato, são
conduzidas em carros de marfim ou de prata, puxados por cavalos
imponentes, guiados delicadamente por meninos pobres de dez a doze
anos, que tenham pai e mãe vivos, e escoltados, com atenção, pelos
patrícios mais em evidência na grande cidade.
Era tudo um deslumbramento de coroas de ouro, púrpuras, luxuosos
tecidos do Oriente, metais brilhantes, cintilações de pedras preciosas.
Fecha o cortejo a última legião de sacerdotes e ministros do culto,
seguindo-lhes a massa interminável do povo anônimo e desconhecido.
A gigantesca procissão penetra o Grande Circo com grande
recolhimento, em observância às mais elevada solenidades. O silêncio é
apenas cortado pelas aclamações parciais dos diferentes grupos de
cidadãos, quando passa a estátua da divindade que lhes protege as
atividades e a profissão, na vida comum.
Depois de um volteio solene pelo interior do circo, as silenciosas
figuras de marfim são depostas na edícula, junto aos cárceres, sob os
fulgores ra324
ROMANCE DE EMMANUEL
diosos do pavilhão do Imperador e onde se fazem as preces e sacrifícios
de nobres e plebeus, enquanto o César e seus áulicos, em companhia dos
políticos homenageados naquela tarde, fazem numerosas e extraordinárias
libações.
Terminadas aquelas cerimônias, desaparece, igualmente, o
silencioso recolhimento das multidões.
Começam, então, os jogos sob os olhares ávidos de mais de
trezentos mil espectadores, que não se circunscrevem às massas
compactas, comprimidas nas dimensões grandiosas do luxuoso recinto.
Os palácios do Aventino e do Palatino, bem como os elegantes terraços do
Célio, servem também de arquibancadas para a numerosa assistência, que
não pôde ver de mais perto o formidando espetáculo.
Roma diverte-se e todas as suas classes estão deslumbradas.
A competição dos carros é o primeiro número a ser apresentado,
mas os aplausos entusiásticos somente se verificam quando morrem na
arena os primeiros cocheiros e os primeiros cavalos espatifados.
Os jogadores distinguem-se pelas cores da túnica. Há os que se
vestem de vermelho, de azul, de branco e de verde, representando vários
partidos, enquanto a platéia se reparte em grupos exaltados e
enlouquecidos. Gritam apaixonadamente os admiradores e os sócios de
cada facção, traduzindo a sua alegria, o seu receio, a sua angústia ou a
sua impaciência. Ao fim dos primeiros números, verificam-se desoladoras
cenas de luta entre os adversários desse ou daquele partido, no seio da
enorme assistência, havendo sérios tumultos, imediatamente degenerados
em sanha criminosa, de onde são retirados, em seguida, alguns cadáveres.
Após as corridas, houve uma caçada fabulosa, levando-se a efeito
terríveis combates entre homens e feras, nos quais alguns escravos
jovens perderam a vida em trágicas circunstâncias, ante as aclamações
delirantes das massas inconscientes.
325
HÁ DOIS MIL ANOS...
O Imperador sorri, satisfeito, e continua nas suas libações pessoais,
vagarosamente, junto de alguns amigos mais íntimos. Seis harpistas
executam as melodias prediletas no pavilhão, enquanto os alaúdes fazem
ouvir, igualmente, sons maviosos e claros.
Outros jogos passaram, vários, divertidos e terríveis, e, depois de
algumas danças exóticas, executadas na arena, viu-se um áulico predileto
de Domício Nero inclinar-se discretamente, falando-lhe ao ouvido:
- Chegou o instante, ó Augusto, da grande surpresa dos jogos desta
tarde!
- Entrarão, agora, os cristãos na arena? - perguntou o Imperador em
voz baixa, com o seu impiedoso e frio sorriso.
- Sim, já foi dada ordem para que fiquem em liberdade na arena os
vinte leões africanos, tão logo se apresentem em público os condenados.
- Bela homenagem aos senadores! - glosou Nero, sarcasticamente. -
Esta festividade foi uma feliz lembrança de Sêneca, porque terei
oportunidade de mostrar ao Senado que a lei é a força e toda a força deve
estar comigo.
Poucos minutos faltavam para a apresentação do número
surpreendente da tarde, quando Clódio Varrus aconselhava a um dos
auxiliares de confiança:
- Aton - dizia ele circunspecto -, podes providenciar agora a entrada
de todos os prisioneiros na arena, mas afasta com discrição uma mulher
que lá se conserva com a toga do patriciado. Deixa-a por último,
expulsando-a em seguida para a rua, porque não desejamos complicações
com a sua família.
O soldado fez sinal, como quem havia guardado fielmente a ordem
recebida, dispondo-se a cumpri-la e, daí a momentos, o numeroso grupo
de cristãos, sob impropérios e apupos dos mais baixos servido326
ROMANCE DE EMMANUEL
res do Circo, encaminhava-se, impavidamente, para o sacrifício...
Em primeiro lugar, ia João de Cleofas, murmurando intimamente a
sua derradeira prece.
No instante, porém, de se abrir a grande porta, através da qual se
ouviam os rugidos ameaçadores das feras esfomeadas, Aton aproximouse
de Ana e, reparando-lhe a toga finíssima de lá, as jóias discretas que lhe
adornavam o porte enobrecido, bem como a delicada rede de ouro que lhe
prendia graciosamente os cabelos, exclamou respeitosamente, admirado
da nobreza de sua figura:
- Senhora, ficareis aqui, até segunda ordem!
A velha criada dos Lentulus trocou significativo e angustioso olhar
com a sua senhora, respondendo, todavia, com serena altivez:
- Mas, porquê? Pretendeis privar-me da glória do sacrifício?
Aton e seus colegas se surpreenderam com aquela atitude de
profundo heroísmo espiritual, e aquele, depois de um gesto evasivo, que
exprimia a vacilação da resposta que lhe competia dar, esclareceu
respeitosamente:
- Sereis a última!
Aquela explicação pareceu satisfazê-la, mas Lívia e Ana, nesse
instante decisivo de separação, trocaram entre si um amoroso olhar,
angustiado e inesquecível.
Tudo, porém, fôra obra de alguns segundos, porque a porta sinistra
estava agora aberta e as armas ameaçadoras dos prepostos de Domício
Nero obrigavam os prisioneiros a demandar a arena, como um bloco de
condenados ao terror da última pena.
O venerável apóstolo de Antioquia entestou a fileira com serenidade
valorosa. Seu coração elevava-se ao infinito, em orações sinceras e
fervorosas. Em poucos instantes, todos os prisioneiros se encontravam
reunidos à entrada da arena, saturados de uma força moral que, até então,
lhes era
327
HÁ DOIS MIL ANOS...
desconhecida. É que, detrás daquelas púrpuras suntuosas e além
daqueles risos estridentes e impropérios sinistros, estava uma legião de
mensageiros celestes fortalecendo as energias espirituais dos que iam
sucumbir de morte infamante, para regar a semente do Cristianismo com
as suas lágrimas fecundas. Uma estrada luminosa, invisível aos olhos
mortais, abrira-se nas claridades do firmamento e, por ela, descia todo um
exército de arcanjos do Divino Mestre, para aureolar com as bênçãos da
sua glória os valorosos trabalhadores da sua causa.
Sob os aplausos delirantes e ensurdecedores da turba numerosa,
soltaram-se os leões famintos, para a espantosa cena de impiedade, de
pavor e sangue, mas nenhum dos apóstolos desconhecidos, que iam
morrer no depravado festim de Nero, sentiu as torturas angustiosas de tão
horrenda morte, porque o brando anestésico das potências divinas lhes
balsamizou o coração dorido e dilacerado no tormentoso momento.
Fustigados pela angústia e pela aflição do instante derradeiro, ante o
público sanguinário, os míseros sacrificados não tiveram tempo de se
reunir na arena dolorosa. As feras famintas pareciam tocadas de horrível
ansiedade. E enquanto se estraçalhavam corpos misérrimos, Domício Nero
mandava que todos os coros de dançarmos e todos os músicos
celebrassem o espetáculo com os cânticos e bailados de Roma vitoriosa.
Incluindo-se a considerável assistência que se aglomerava nas
colinas, quase meio milhão de pessoas vibrava em aplausos
ensurdecedores e espantosos, enquanto duas centenas de criaturas
humanas tombavam espostejadas...
Ingressando na arena, Lívia ajoelhara-se defronte do grande e
suntuoso pavilhão do Imperador, onde buscou lobrigar o vulto do esposo,
pela derradeira vez, a fim de guardar no fundo dalma a dolorosa expressão
daquele último quadro, junto da
328
ROMANCE DE EMMANUEL
imagem íntima de Jesus Crucificado, que inundava de emoções serenas o
seu pobre coração dilacerado no minuto supremo. Pareceu-lhe divisar,
confusamente, na doce claridade do crepúsculo, a figura ereta do senador
coroado de rosas, como os triunfadores e, quando seus lábios se
entreabriram numa última prece misturada de lágrimas ardentes que lhe
borbulhavam dos olhos, viu-se repentinamente envolvida pelas patas
selvagens de um monstro. Não sentira, porém, qualquer comoção violenta
e rude, que assinala comumente o minuto obscuro da morte. Figurou-selhe
haver experimentado ligeiro choque, sentindo-se agora embalada nuns
braços de névoa translúcida, que ela contemplou altamente surpreendida.
Buscou certificar-se da sua posição, dentro do circo, e reconheceu, a seu
lado, a nobre figura de Simeão, que lhe sorria divinamente, dando-lhe a
silenciosa e doce certeza de haver transposto o limiar da Eternidade.
Naquele instante, dentro do camarim de honra do Imperador, Públio
Lentulus sentiu no coração inexprimível angústia. No turbilhão daquele
ensurdecedor vozerio, o senador nunca sentira tão fundo desalento e tão
amargo desencanto da vida. Horrorizavam-lhe agora aqueles tremendos
espetáculos homicidas, de pavor e morte. Sem que pudesse explicar o
motivo, seu pensamento voltou à Galileia longínqua, figurando-se-lhe
divisar, novamente, a suave figura do Messias de Nazaré, quando lhe
afirmava: Todos os poderes do teu Império são bem fracos e todas as
suas riquezas bem miseráveis!.
Inclinando-se para o seu amigo Eufanilo Drusus, Públio desabafou a
penosa impressão, discretamente:
- Meu amigo, este espetáculo de hoje me apavora!... Sinto, aqui,
emoções de angústia, como jamais experimentei em toda a vida... Serão
escravos destinados à última pena os que ora sucumbem, sob a crueldade
das feras violentas e rudes?
329
HÁ DOIS MIL ANOS...
- Não creio - respondeu o senador Eufanilo, segredando-lhe ao
ouvido. - Corre o boato de que estes míseros condenados são pobres
cristãos inofensivos, aprisionados nas catacumbas!...
Sem saber explicar a razão do seu profundo desgosto, Públio
Lentulus lembrou-se repentinamente de Lívia, mergulhando-se, aflito, nas
mais penosas conjeturas.
Enquanto ocorriam esses fatos, voltemos a examinar a situação de
Ana, logo após a entrada dos companheiros na arena do sacrifício. Certa
de que Jesus lhe havia reservado o último lugar no penoso momento do
martírio, a antiga serva mantinha o espírito valoroso em orações sinceras e
ardentes. Seus olhos, porém, não abandonaram a figura de Lívia, que se
afastava para um recanto da arena, onde se ajoelhara, chegando a fixar o
grande leão africano que lhe desferira um golpe fatal à altura do peito.
Nesse instante, a pobre criatura sentiu algo de enfraquecimento, ante as
tremendas perspectivas do testemunho, mas, num relance, antes que suas
idéias tomassem novo curso, Aton e mais um dos colegas acercaram-se,
exclamando:
- Senhora, acompanhai-nos!
Observando que os soldados a faziam voltar ao interior, protestou
com energia:
- Soldados, eu nada mais desejo, senão morrer igualmente, nesta
hora, pela fé em Jesus-Cristo!
Mas, reparando-lhe a coragem indomável, o preposto do Império
agarrou-a fortemente pelo braço, e, trazendo-a para uma passagem do
interior dos cárceres, que comunicava com a via pública, Aton dirigiu-lhe a
palavra, quase ameaçadora.
- Retirai-vos, mulher! Fugi sem demora, pois não desejamos
complicações com a vossa família!
E, dizendo-o, fechava a porta ampla, enquanto a antiga criada de
Lívia tudo compreendia agora. Angustiada, chegou imediatamente à
conclusão de que a indumentária da senhora lhe salvara a vida,
330
ROMANCE DE EMMANUEL
no amargurado transe. Sentiu que o pranto lhe borbotava abundante dos
olhos. Suas lágrimas eram bem um misto de inenarráveis sofrimentos
morais e no íntimo inquiria a si mesma a razão pela qual não a admitira o
Senhor à glorificação dos sacrifícios daquela tarde memorável e dolorosa.
Percebia o confuso rumor de mais de trezentas mil vozes, que se
concentravam em gritos retumbantes de aplauso, aclamando a corrida
sinistra das feras na sua caçada humana, e, passo a passo, carregando
consigo o peso torturante de uma angústia sem termos, buscou o palácio
do Aventino, que não distava muito do circo ignominioso, lá penetrando
desalentada e silenciosa.
Apenas alguns escravos mais íntimos faziam a guarda da residência
dos Lentulus, como de costume nos grandes dias de festas populares, das
quais participavam quase todos os servos. Ninguém percebeu o retorno da
serva, que conseguiu despojar-se da toga com a calma precisa. Alijou as
jóias preciosas do vestuário, das mãos e dos cabelos e, ajoelhando-se no
aposento, deixou que as lágrimas dolorosas corressem livremente, ao
influxo das orações amargas que elevava a Jesus, sob o peso de suas
angustiosas mágoas.
Não chegou a saber quantos minutos infindos permaneceu naquela
atitude súplice e dolorosa, entre rogativas ardentes e amarguradas
conjeturas sobre o seu inesperado afastamento das torturas do circo,
sentindo-se indigna de testemunhar ao Salvador a sua fé profunda e
sincera, até que um rumor mais pronunciado lhe denunciava o regresso do
senador.
Era quase noite e as primeiras estrelas brilhavam no azul do
formoso céu romano.
Penetrando no lar com o espírito inquieto e desalentado, Públio
Lentulus atingiu o vestíbulo vazio, de alma opressa, sendo, porém,
imediatamente procurado pelo servo Fábio Túlio, que, havia
331
HÁ DOIS MIL ANOS...
muitos anos, substituíra Comênio, arrebatado pela morte naquele cargo de
confiança.
Acercando-se do senador que entrara só, dispensando a companhia
dos amigos sob a alegação de que a esposa se encontrava gravemente
enferma, exclamou o antigo serviçal com atencioso respeito:
- Senhor, vossa filha manda comunicar, por um mensageiro, que
continua providenciando, a fim de que tenhais notícias da senhora, dentro
do menor prazo possível.
O senador agradeceu com leve sinal de cabeça, acentuando suas
penosas preocupações íntimas.
Ana, contudo, na soledade de suas preces, no cômodo que lhe era
reservado, verificando o regresso do amo, compreendeu o triste dever que
lhe corria naquele instante inesquecível, de modo a cientificá-lo de todas
as ocorrências e, em breves minutos, Fábio voltava a procurá-lo nos seus
apartamentos, a fim de participar-lhe que Ana lhe pedia uma entrevista em
particular. O senador atendeu imediatamente à velha serva de sua casa,
tomado de indefinível surpresa.
Olhos inchados de chorar e com a voz freqüentemente entrecortada
por emoções rudes e penosas, Ana expôs todos os fatos, sem omitir
nenhum detalhe dos trágicos incidentes, enquanto o senador, de olhos
arregalados, tudo fazia por compreender aquelas confidências dolorosas,
na sua incredulidade e no seu pavoroso espanto.
Ao fim do terrível depoimento, álgido suor lhe corria da fronte
atormentada, enquanto as têmporas lhe batiam assustadoramente.
A princípio, desejou esmagar a criada humilde, como se o fizesse a
uma víbora venenosa, tomado das primeiras comoções de revolta do seu
orgulho e da sua vaidade. Não queria acreditar naquela confissão horrível
e angustiosa, mas o coração lhe batia apressadamente e seus nervos se
exaltavam em vibrações lancinantes.
332
ROMANCE DE EMMANUEL
Públio Lentulus experimentou a dor mais terrível de sua misérrima
existência. Todos os seus sonhos, todas as suas aspirações e carinhosas
esperanças esboroavam-se penosamente, irremediavelmente, para todo o
sempre, sob a maré sombria das realidades tenebrosas.
Sentindo-se o mais desventurado réu da justiça dos deuses, no
momento em que presumia efetivar a sua suprema ventura, nada mais
enxergou à frente dos olhos, senão a realidade esmagadora da sua dor
sem limites.
Sob os olhares comovidos de Ana, que o observava receosa,
levantou-se rígido e sem uma lágrima, com os olhos raiando pela loucura,
tal a sua fixidez estranha e dolorosa, e como se fôra um fantasma de
revolta, de dor, de vingança e sofrimento indefiníveis, sem nada responder
à serva atônita, que rogava silenciosamente a Jesus lhe serenasse as
angustiosas mágoas, deu alguns passos como um autômato em direção à
porta, que abriu de par em par e por onde entraram as brisas suaves e
refrigerantes da noite...
Cambaleando de dor selvagem através do peristilo, caminhou,
depois, resoluto, como se fosse disputar um duelo com as sombras, para
defender a esposa caluniada e traída, martirizada pelos criminosos
daquela corte de infâmia, dirigindo-se com rapidez, sem observar o
desalinho de suas vestes, para o circo, onde a plebe rematava as paixões
impiedosas do seu César desalmado.
Todavia, um espetáculo mais terrível se lhe deparou aos olhos
agoniados, no insulamento da sua suprema angústia moral.
Embriagados nos baixos instintos da sua perversa materialidade, os
soldados e o povo colocaram os restos sinistros do monstruoso banquete
das feras, naquela tarde inesquecível, nas eminências de postes e colunas
improvisados à maneira de tochas, e iluminavam todo o exterior do grande
333
HÁ DOIS MIL ANOS...
recinto com o incêndio tétrico dos fragmentos de carne humana.
Públio Lentulus sentiu toda a extensão da sua impotência diante
daquela demonstração suprema de horror e crueldade, mas avançou,
cambaleante de dor, como ébrio ou louco, com espanto dos que o viam a
pé, em tais lugares, contemplando boquiaberto as tochas sinistras, feitas
de cabeças disformes e combustas.
Dava largas aos pensamentos doridos de angústia e de revolta,
como se o seu espírito não passasse de um tigre encarcerado no
arcabouço do peito envelhecido, quando notou a presença de dois
soldados ébrios, em luta por causa de um delicado objeto, que lhe chamou
repentinamente a atenção, sem que conseguisse explicar o motivo do seu
inesperado interesse por alguma coisa.
Era um pequeno colar de pérolas, do qual pendia precioso camafeu
antigo. Seus olhos fixaram aquele objeto estranho e o coração adivinhou o
resto. Ele o reconhecera. Aquela jóia fôra o presente de núpcias, feito à
esposa idolatrada e somente agora se lembrava do apego carinhoso da
mulher ao camafeu que lhe guardava o próprio perfil da juventude,
recordando a única afeição da sua mocidade.
Postou-se à frente dos contendores, que se formalizaram
imediatamente em atitude respeitosa, devida à sua presença.
Interpelado com severidade, um dos soldados esclareceu humilde e
trêmulo:
- Ilustríssimo, esta jóia pertenceu a uma das mulheres condenadas
às feras, no espetáculo de hoje...
- Quanto quereis pelo achado? - perguntou Públio Lentulus,
sombriamente.
- Comprei-a de um companheiro por dois sestércios.
- Entregai-ma! - replicou o senador, em tom ameaçador e imperativo.
334
ROMANCE DE EMMANUEL
Os soldados entregaram-lhe o colar, humildemente, e o senador,
revolvendo as vestes, retirou pesada bolsa de moedas de ouro, jogando-a
aos contendores num gesto de nojo e de supremo desprezo.
Públio Lentulus afastou-se do ambiente nefando, mal contendo as
lágrimas que, agora, lhe subiam em torrente, do coração oprimido e
dilacerado.
Apertando de encontro ao peito aquele adereço minúsculo, parecia
tomado de força misteriosa. Afigurava-se-lhe que, conservando aquele
último vestígio da "toilette" de sua mulher, arquivara, junto de si próprio e
para sempre, alguma coisa da sua personalidade e do seu coração.
Longe das luzes sinistras que iluminavam macabramente em toda a
extensão a via pública, o senador penetrou por uma viela cheia de
sombras.
Depois de alguns passos, notou que à sua frente se elevava para o
céu uma árvore gigantesca, que poetizava todo o ambiente, com a vetustez
de sua majestade frondejante. Cambaleando, encostou-se ao tronco
anoso, ávido de repouso e consolação. Contemplou as estrelas que
matizavam de cintilações cariciosas todo o firmamento romano e lembrouse
de que, por certo, em tal momento, a alma puríssima da companheira
deveria repousar na paz sublime das claridades celestes, sob a bênção
dos deuses...
Num gesto espontâneo, beijou o colar minúsculo, apertou-o com
delicado enlevo de encontro ao coração e, considerando o deserto árido
da sua vida, chorou, como nunca o fizera em qualquer outra circunstância
dolorosa da sua atribulada existência.
Num retrospecto profundo de todo o passado amarguroso,
considerava que todas as suas nobres aspirações haviam recebido o
escárnio dos deuses e dos homens. No seu orgulho desventurado, pagara
ao mundo os mais pesados tributos de angústia e de lágrimas dolorosas e,
na sua vaidade de homem, recebera as mais penosas humilhações do
335
HÁ DOIS MIL ANOS...
destino. Ponderava, tardiamente, que Lívia tudo fizera por torná-lo
venturoso, numa vida de amor risonho, simples e despretensiosa.
Recordou os mínimos incidentes do passado doloroso, como se o seu
espírito estivesse procedendo a meticulosa autópsia de todos os seus
sonhos, esperanças e ilusões, na caligem do tempo.
Como homem, vivera unido aos processos do Estado, que lhe
roubavam os mais encantadores entretenimentos da vida doméstica e,
como esposo, não tivera energia bastante para armar-se contra as calúnias
insidiosas. Como pai, considerava-se o mais desgraçado de todos. De que
lhe valia, então, a auréola do triunfo, se ela lhe chegava como intragável
cálice de amargura? De que lhe valiam, agora, as vitórias políticas e a
significação social dos títulos de nobreza, bem como a vultosa expressão
da sua fortuna, sob a mão implacável do seu impiedoso destino neste
mundo?
Perdiam-se as suas meditações em profundos abismos de sombra e
de dúvidas acerbas, quando lhe surgiu na mente atormentada a figura
suave e doce do sublime profeta de Nazaré, com a riqueza indestrutível da
sua paz e da sua humildade.
Na plenitude de suas lembranças, pareceu ouvir ainda as
extraordinárias advertências que lhe dirigira com a voz carinhosa e
compassiva, junto às águas marulhentas do Tiberíades. Recordando-se
intensamente de Jesus, sentiu-se tomado por uma vertigem de lágrimas
dolorosas, as quais, de alguma forma, lhe balsamizavam o deserto do
coração. Ajoelhando-se sob a fronde opulenta e generosa, qual o fizera um
dia na Palestina, exclamou para os céus, com os olhos marejados de
pranto, lembrando-se da força moral que a doutrina cristã havia
proporcionado ao coração da esposa, nutrindo-a espiritualmente para
receber com dignidade e heroísmo todos os sofrimentos:
- Jesus de Nazaré! disse com voz súplice e dolorosa - foi preciso
perdesse eu o melhor e o
336
ROMANCE DE EMMANUEL
mais querido de todos os meus tesouros, para recordar a concisão e a
doçura de tuas palavras!... Não sei compreender a tua cruz e ainda não sei
aceitar a tua humildade dentro da minha sinceridade de homem, mas, se
podes ver a enormidade de minhas chagas, vem socorrer, ainda uma vez,
meu coração miserável e infeliz!...
Penosa crise de lágrimas sobreveio a essa invocação tocada de uma
franqueza rude, agressiva e dolorosa.
Figurou-se-lhe, todavia, que uma energia indefinível e imponderável
o ajudava, agora, a atravessar o angustioso transe.
Terminada a súplica que lhe fluía do imo da alma lacerada, o
orgulhoso patrício observou que a presença de inexplicável força
modificava, naquele momento inesquecível, todas as disposições mais
íntimas do seu coração e, conservando-se genuflexo, notou, com a visão
interior do seu espírito, que a seu lado começava a surgir um ponto
luminoso, que se desenvolveu prodigiosamente, na dolorosa serenidade
daquele penoso instante de sua vida, surpreendendo-se com o fenômeno
que lhe sugeria ao pensamento as conjeturas mais inesperadas.
Por fim, aquele núcleo de luz tomava forma e, diante de si, viu a
figura radiosa de Flamínio Severus, que lhe vinha falar na tormentosa noite
da sua infinita amargura.
Públio reconheceu-lhe a presença, surpreendido e espantado,
identificando-lhe os traços fisionômicos e as saudações acolhedoras,
como quando se dirigia a ele, na Terra. Seu semblante era o mesmo, na
doce expressão de serenidade, agora tocada de triste e amargurado
sorriso. Ostentava a mesma toga de barra purpurina, mas não apresentava
o aspecto marcial e imponente dos dias terrestres. Flamínio contemplou-o
como se estivesse assomado de piedade infinita e de ilimitada amargura.
Seu olhar penetrante de espírito lhe devassava os mais recônditos
refolhos da consciência,
337
HÁ DOIS MIL ANOS...
enquanto o senador se aquietava, reverente, sensibilizado e surpreendido.
- Públio - disse-lhe carinhosamente a voz amiga do duende -, não te
revoltes com a execução dos desígnios divinos, que hoje modificou todos
os roteiros da tua vida!... Ouve-me bem! Falo-te com a mesma sinceridade
e amor que nos une os corações, de há longos séculos!... Diante da morte,
todas as nossas vaidades desaparecem... nas suas claridades sublimadas;
nossos poderes terrenos são de uma fragilidade misérrima!... O orgulho,
amigo meu, abre-nos além do túmulo uma porta de trevas densas, nas
quais nos perdemos em nosso egoísmo e impenitência!... Volta a tua casa
e sorve o conteúdo da taça travosa das provas rudes, com serenidade e
valor espiritual, porque ainda estás longe de esgotar o cálice de tuas
purificadoras amarguras, dentro das expiações redentoras e supremas...
As grandes dores, sem remédio no mundo, hão-de abrir para o teu
raciocínio um caminho novo, nos eternos horizontes da crença!... Nossos
deuses são expressões de fé respeitável e pura, mas Jesus de Nazaré é o
Caminho, a Verdade e a Vida!... Enquanto nossas ilusões sobre Júpiter nos
levam a render culto aos mais poderosos e aos mais fortes, considerados
como prediletos de nossas divindades, pela expressão valiosa dos seus
ricos sacrifícios, os ensinos preciosos do Messias Nazareno nos levam a
ponderar a miserabilidade de nossos falsos poderes à face do mundo,
abraçando os mais pobres e os mais desventurados da sorte, como a
impelir todas as criaturas a caminho do seu Reino, conquistado com o
sacrifício e o esforço de cada um, em demanda da única vida real, que é a
vida do Espírito... Hoje sei que perdeste, um dia, a tua sublime
oportunidade, mas o Filho de Deus Todo-Poderoso, na sua piedade infinita
e infinito amor, atende agora ao teu apelo, permitindo que a minha velha
afeição venha balsamizar as feridas dolorosas do teu coração
atormentado!...
338
ROMANCE DE EMMANUEL
O senador deixou que todo o seu pensamento se perdesse na
tempestade das mais abençoadas lágrimas de sua vida. Arfando nos
soluços de sua compunção, suplicava, mentalmente:
- Sim, meu amigo e meu mestre, eu quero compreender a verdade e
almejo o perdão das minhas faltas enormes!... Flamínio, inspiração de
minha alma dilacerada, sê o meu guia na tormentosa noite do meu triste
destino!... Vale-me com a tua ponderação e bondade!... Toma-me, de novo,
pelas mãos e esclarece-me o coração no tenebroso caminho!... Que fazer
para alcançar do céu o esquecimento de minhas faltas?!...
A serena visão, como se se houvera comovido intensamente ao
receber aquele apelo, tinha agora os olhos iluminados por piedosa e divina
lágrima.
Aos poucos, sem que Públio pudesse compreender o mecanismo
daquele fenômeno insólito, observou que a silhueta do amigo se diluía
levemente na sombra, afastando-se da tela de suas contemplações
espirituais; mas, ainda assim, percebeu que seus lábios murmuravam,
piedosamente, uma palavra: - Perdoa!...
Aquela suave recomendação caiu-lhe nalma como bálsamo
dulcificante. Sentiu, então, que seus olhos estavam agora abertos para as
realidades materiais que o rodeavam, como se houvera acordado de sonho
edificante.
Sentiu-se algo aliviado de suas profundas dores e levantou-se para
retomar, com decidido valor, o fardo penoso da existência terrena.
Regressando a casa, por volta das vinte e duas horas, ali encontrou
Plínio e Flávia, que o esperavam aflitos.
Vendo-lhe a fisionomia fundamente abatida e transfigurada, a filha,
ansiosa, o abraçou, num transporte de ternura indefinível, exclamando em
lágrimas:
- Meu pai, meu querido pai, até agora não nos foi possível obter
qualquer notícia.
339
HÁ DOIS MIL ANOS...
Públio Lentulus, porém, fixou nos filhos o olhar triste e desalentado,
enlaçando-os silenciosamente.
Em seguida, chamou-os ao gabinete particular, para onde
determinou, igualmente, a vinda de Ana, e os quatro, em conselho de
família, examinaram, emocionadamente, os inolvidáveis sucessos daquele
dia de provações aspérrimas.
À medida que o senador transmitia aos filhos as revelações penosas
de Ana, que lhe acompanhava as palavras extremamente comovida, via-se
que Flávia e o esposo traduziam no rosto as emoções mais singulares e
mais fortes, sob a angustiosa impressão daquela narrativa.
Ao fim do minucioso relato, Plínio Severus exclamou no seu orgulho
irrefletido:
- Mas não poderíamos imputar toda a culpa dos fatos a esta mísera
criatura que há tantos anos serve indignamente em vossa casa?
Assim se pronunciando, o oficial apontava a serva, que baixou a
cabeça humildemente, rogando a Jesus lhe fortalecesse o espírito para o
testemunho daquele momento, que adivinhava penoso para os
sentimentos mais delicados do seu coração.
Públio Lentulus pareceu participar da opinião do genro; contudo,
afigurou-se-lhe que as palavras de Flamínio ainda lhe ressoavam no ádito
da consciência e respondeu com firmeza:
- Filhos, esqueçamos os julgamentos apressados e, se bem
reconheça a falta de Ana aceitando as vestes de sua senhora, quero
venerar nesta serva a memória de Lívia, para sempre. Companheira fiel dos
seus angustiosos martírios de vinte e cinco anos consecutivos, ela
continuará nesta casa com as mesmas regalias que lhe foram outorgadas
por sua benfeitora. Apenas exijo que o seu coração saiba guardar os
nossos lúgubres segredos desta noite, porque desejo honrar publicamente
a memória de
340
ROMANCE DE EMMANUEL
minha mulher, depois do seu tremendo sacrifício naquela festividade da
infâmia.
Plínio e Flávia observaram-lhe, surpresos, a generosidade
espontânea para com a criada que, por sua vez, agradecia a Jesus a graça
do seu esclarecimento.
O senador pareceu profundamente modificado naquele choque
terrível, experimentado por suas fibras espirituais.
Neste comenos, interveio Plínio Severus, esclarecendo:
- A vários amigos nossos, que aqui estiveram para cumprimentarvos,
declarei que, em vista do nosso luto por minha mãe, não
comemoraríeis o vosso triunfo político na data de hoje, informando mais,
no intuito de justificar vossa ausência, que a senhora Lívia se encontrava
gravemente enferma, em Tibur, para onde fôra em busca de melhoras,
notícias essas que, aliás, eram recebidas pelos nossos íntimos com o
máximo de naturalidade, porque a vossa consorte nunca mais freqüentou
a sociedade desde a volta da Palestina, sendo compreensível que todos os
nossos amigos a considerassem doente.
O senador ouviu, com interesse, essas explicações, corno se
houvera encontrado solução para o angustioso problema que o oprimia.
Ao cabo de alguns momentos, depois de examinar a possibilidade
da execução da idéia que lhe aflorara no cérebro dolorido, exclamou mais
animado:
- Tua idéia, meu filho, neste particular, veio trazer-me a perspectiva
de solução razoável para a angustiosa questão que me acabrunha.
Cumpre-me defender a memória de minha mulher - continuava o
senador, de olhos úmidos -, e, se fôra possível, iria lutar corpo a corpo
com a mentalidade infame do governo cruel que atualmente nos conspurca
as melhores conquistas sociais; mas, se eu fosse bradar pessoalmente a
minha
341
HÁ DOIS MIL ANOS...
indignação e a minha revolta, na praça pública, seria tachado de louco; e
se fosse desafiar Domício Nero seria o mesmo que tentar a imobilidade
das águas do Tibre com o galho de uma flor. Neste sentido, pois, saberei
agir nos bastidores políticos, para derrubar o tirano e seus asseclas, ainda
que isso nos custe o máximo de tempo e paciência.
Agora, o que me compete urgentemente é prestar todas as
homenagens possíveis aos sentimentos imáculos da companheira
arrebatada nos torvelinhos da insânia e da crueldade.
Plínio e Flávia escutavam-no, silenciosos e comovidos, sem lhe
perturbarem o curso rápido das palavras, enquanto ele prosseguia
sensatamente:
- Há mais de dez anos que a sociedade romana via em minha pobre
companheira uma enferma e uma demente. E já que os nossos amigos
foram avisados de que Lívia se encontrava em Tibur, talvez aguardando a
morte, partirei para lá, ainda esta noite, levando Ana em minha
companhia...
E como se estivesse tomado por uma idéia fixa, com aquela
preocupação de homenagear a morta inesquecível, Públio Lentulus
continuou:
- Nossa casa em Tibur está agora desabitada porque, há mais de
vinte dias, Filopátor foi a Pompeia, obedecendo a determinações minhas...
Chegarei lá com Ana, levando uma urna funerária que, para todos os
efeitos, encerrará os restos da minha pobre Lívia... Nossos servos devem
partir amanhã, igualmente, quando então mandarei mensageiros a Roma,
cientificando-lhes do acontecimento por satisfazer as pragmáticas da vida
social!... Em Tibur, prestaremos à memória de Lívia todas as homenagens,
transladando, em seguida, publicamente, as cinzas para aqui, onde farei
celebrar as mais solenes exéquias, na visitação pública, testemunhando,
assim, embora tardiamente, minha veneração pela santa criatura que se
sacrificou por nós a vida inteira...
342
ROMANCE DE EMMANUEL
- Mas... e a incineração? - perguntou Plínio Severus, prudentemente,
ao conjeturar o êxito possível do projeto.
O senador, porém, não hesitou, resolvendo o assunto com a habitual
energia das suas decisões:
- Se essa cerimônia requer a presença dos sacerdotes, saberei
conduzir-me junto ao ministro do culto, na cidade, alegando o desejo de
tudo fazer no mais reduzido círculo da minha intimidade familiar.
O que resta, tão somente, é esperar, de vocês que me ouvem,
silêncio tumular sobre as providências dolorosas desta noite, a fim de não
ferirmos as suscetibilidades do preconceito social.
Surpreso com aquela energia em tão penosas circunstâncias, Plínio
Severus fez-lhe companhia naquelas horas avançadas, para a compra da
urna mortuária, que foi adquirida, em poucos minutos, de um comerciante
que nada indagou do estranho cliente, atendendo à circunstância da sua
posição social e política, bem como à vultosa importância da compra,
efetuada com significativas vantagens para o seu interesse.
Naquela mesma noite, Públio Lentulus e Ana se dirigiram com
alguns escravos para a cidade de repouso dos antigos romanos, vencendo
em algumas horas as sombras espessas dos caminhos e chegando com a
possível tranqüilidade. de modo a ambientar as derradeiras homenagens à
memória de Lívia.
Todas as providências foram adotadas com profunda surpresa para
todos os servos, que não ousavam discutir as ordens recebidas, e mesmo
para os patrícios da cidade, que sabiam doente a esposa do senador, mas
ignoravam o doloroso episódio da sua morte.
Flávia e Plínio foram chamados no dia seguinte, satisfazendo-se a
todos os imperativos de ordem social, naquela penosa representação de
condolências.
343
HÁ DOIS MIL ANOS...
Um donativo mais rico e mais generoso de Públio Lentulus ao culto
de Júpiter conquistava-lhe a plena autorização do clero tiburtino, no
referente à sua decisão de incinerar o cadáver da esposa na intimidade da
família, sendo a memória de Lívia homenageada com todos os cerimoniais
do antigo culto dos deuses, invocando-se a proteção dos manes e
divindades domésticas.
Numerosos portadores foram expedidos a Roma e daí a dois dias a
urna funerária chegava à sede do Império, penetrando pomposamente no
palácio do Aventino, onde a esperava um soberbo catafalco.
Durante três dias sucessivos, as cinzas simbólicas de Lívia
estiveram expostos à visitação do povo, tendo o senador mandado
distribuir vultosos donativos, em alimentos e dinheiro, à plebe que viesse
prestar as últimas homenagens à memória da sua morta querida. Longas
romarias visitaram a residência, dia e noite, dando-lhe o aspecto
imponente de um templo aberto a todas as classes sociais. Toda a nobreza
romana, inclusive o cruel Imperador, se fez representar nas pompas
daquelas exéquias, que eram como que uma expressão de remorso e uma
tentativa de reparação da parte do esposo amargurado. Públio Lentulus
considerava que, somente assim, poderia agora penitenciar-se,
publicamente, a respeito de sua mulher, que voltava a ocupar o lugar de
veneração no círculo numeroso de amizades aristocráticas da sua família.
Terminado o último número daquelas cerimônias, o senador fez
questão de que a filha e o genro, bem como Agripa, passassem a residir no
palácio do Aventino, em sua companhia, no que foi atendido, em caráter
provisório, segundo asseverava Plínio à mulher, e, naquela mesma noite,
com a alma dilacerada de saudade e de angústias transportou, em
companhia de Ana, todos os objetos de uso pessoal da esposa para os
seus aposentos particulares.
344
ROMANCE DE EMMANUEL
Terminada a tarefa, Públio Lentulus exclamou para a serva, com
singular interesse:
- Tudo pronto?
Recebendo resposta afirmativa, insistiu, como se faltasse ainda
alguma coisa, referindo-se à cruz de Simeão, guardada cuidadosamente
pela dedicação de Ana, como se mais ninguém pudesse apreciar a
significação especial daquele tesouro:
- Onde está uma pequena cruz de madeira tosca, que minha mulher
tanto venerava?
- Ah! é verdade!... - exclamou a serva, satisfeita por observar a
modificação daquela alma austera.
E, retirando do seu quarto a modesta lembrança do apóstolo de
Samaria, entregou-lha com reverência afetuosa. O senador, então,
colocou-a num móvel secreto. Todavia, quem lhe acompanhasse a
existência amargurada, poderia vê-lo, todas as noites, na solidão do seu
aposento, junto do precioso símbolo das crenças da companheira.
Quando as luzes do palácio se apagavam, de leve, e quando todos
buscavam o repouso no silêncio da noite, o orgulhoso patrício retirava do
cofre de suas lembranças mais queridas a cruz de Simeão e, ajoelhado
qual o fazia Lívia, parava a máquina do convencionalismo mundano, para
meditar e chorar amargamente.
345
VI
Alvoradas do Reino do Senhor
Reportando-nos à dolorosa e comovedora cena do sacrifício dos
mártires cristãos, na arena do circo, somos compelido a acompanhar a
entidade de Lívia na sua augusta trajetória para o Reino de Jesus.
Nunca os horizontes da Terra foram brindados com paisagens de
tanta beleza, como as que se abriram nas esferas mais próximas do
planeta, quando da partida em massa dos primeiros apóstolos do
Cristianismo, exterminados pela impiedade humana, nos tempos áureos e
gloriosos da consoladora doutrina do Nazareno.
Naquele dia, quando as feras famintas estraçalhavam os indefesos
adeptos das idéias novas, toda uma legião de espíritos sábios e
benevolentes, sob a égide do Divino Mestre, lhes rodeava os corações
dilacerados no martírio, saturando-os de força, resignação e coragem para
o supremo testemunho de sua fé.
Sobre as nefastas paixões desencadeadas naquela assistência
ignorante e impiedosa, desdobravam os poderes do céu o manto infinito
de sua
346
ROMANCE DE EMMANUEL
misericórdia, e além daquele vozerio sinistro e ensurdecedor havia vozes
que abençoavam, proporcionando aos mártires do Senhor uma fonte de
suaves e ditosas consolações.
Entardecia já, quando tombavam as últimas vítimas ao choque brutal
dos leões furiosos e implacáveis.
Abrindo os olhos entre os braços carinhosos do seu velho e
generoso amigo, Lívia compreendera, imediatamente, a consumação do
angustioso transe. Simeão tinha nos lábios um sorriso divino e lhe
acariciava os cabelos, paternalmente, com meiguice e doçura. Estranha
emoção vibrava, porém, na alma liberta da esposa do senador, que se viu
presa de lágrimas dolorosas. A seu lado notou, com penosa surpresa, os
despojos sangrentos do corpo dilacerado e entendeu, embora o seu
espanto, o doce mistério da ressurreição espiritual, de que falava Jesus
nas suas lições divinas. Desejou falar, de modo a traduzir seus
pensamentos mais íntimos e, todavia, tinha o coração repleto de emoções
indefiníveis e angustiosas. Aos poucos, notou que, da arena
ensangüentada, se erguiam entidades, qual a sua própria, ensaiando
passos vacilantes, amparadas, porém, por criaturas etéreas, aureoladas de
graça incomparável, como jamais contemplara em qualquer circunstância
da vida. Aos seus olhos desapareceu o cenário colorido e tumultuoso do
circo da ignomínia e aos ouvidos não mais ressoaram as gargalhadas
irônicas e perversas dos espectadores impiedosos. Notou que, do
firmamento constelado, fluía uma luz misericordiosa e compassiva,
afigurando-se-lhe que nova claridade, desconhecida na Terra, se acendera
maravilhosamente dentro da noite. Imensa multidão de seres, que lhe
pareciam alados, cercava-os a todos, enchendo o ambiente de vibrações
divinas.
Deslumbrada, viu, então, que entre a Terra e o Céu se formava
radioso caminho...
347
HÁ DOIS MIL ANOS...
Através de uma esteira de luz intraduzível, que não chegara a
ofuscar o brilho caricioso e terno das estrelas que bordavam, cintilando, o
azul macio do firmamento, observou novas legiões espirituais que
desciam, celeremente, das maravilhosas regiões do Infinito...
Empolgados com as sonoridades delicadas daquele ambiente
indescritível, seus ouvidos escutaram, então, sublimes melodias do plano
invisível, como se, de envolta com liras e flautas, harpas e alaúdes,
cantassem no Alto as divinas toutinegras do Paraíso, projetando as
alegrias siderais nas paisagens escuras e tristes da Terra...
Seu espírito, como que impulsado por energia misteriosa,
conseguiu, então. manifestar as emoções mais íntimas e mais queridas.
Abraçando-se ao velho e generoso amigo de Samaria, pôde
murmurar, banhada em lágrimas:
- Simeão, meu benfeitor e mestre, roga comigo a Jesus para que
esta hora me seja menos dolorosa...
- Sim, filha - respondeu o venerável apóstolo aconchegando-a ao
coração, como se o fizesse a uma criança -, o Senhor, na sua infinita
misericórdia, reserva o seu carinho a quantos lhe recorrem a
magnanimidade, com a fé ardente e sincera do coração!... Acalma o teu
espírito porque estás, agora, a caminho do Reino do Senhor, destinado
aos corações que muito amaram!...
Naquele instante, porém, uma força incompreensível parecia impelir
para as Alturas quantos ali se conservavam sem a pesada indumentária da
Terra...
Lívia sentiu que o terreno lhe faltava e que todo o seu ser volitava
em pleno espaço, experimentando estranhas sensações, embora
fortemente amparada pelos braços generosos do venerando amigo.
Era, de fato, uma radiosa caravana de entidades puríssimas, que se
elevava em conjunto,
348
ROMANCE DE EMMANUEL
através daquele cintilante caminho traçado de luz, em pleno éter!...
Experimentando singulares sensações de leveza, a esposa do
senador sentiu-se mergulhada num oceano de vibrações suavíssimas.
Todos os companheiros lhe sorriam e, contemplando-os, igualmente
amparados pelos mensageiros divinos, ela identificava, um a um, quantos
lhe haviam sido irmãos no cárcere, no martírio e na morte infamante. Em
dado instante, todavia, como se a memória fosse chamada a todos os
pormenores da realidade ambiente, lembrou-se de Ana, sentindo-lhe a falta
naquela jornada de glorificação em Jesus-Cristo.
Bastou que a recordação lhe aflorasse no íntimo, para que a voz de
Simeão esclarecesse com a proverbial bondade:
- Filha, mais tarde poderás saber tudo... Na tua saudade, porém,
inclina-te sempre aos desígnios divinos, inspirados em toda a sabedoria e
misericórdia... Não te impressiones com a ausência de Ana neste banquete
de alegrias celestiais, porque aprouve a Jesus conservá-la ainda algum
tempo na oficina de suas bênçãos, entre as sombras do degredo
terrestre...
Lívia ouviu e resignou-se, silenciosa.
Reconheceu que seguiam sempre pela mesma estrada maravilhosa,
que, a seus olhos, parecia ligar o Céu e a Terra num fraternal amplexo de
luz, afigurando-se-lhe que todos os divinos componentes da luminosa
caravana flutuavam num movimento de ascensão, em pleno espaço,
demandando regiões gloriosas e desconhecidas. No seio dos elementos
aéreos, admirava-se de conservar todo o mecanismo de suas sensações
físicas, através do eterizado e radioso caminho.
Ao longe, nos abismos do ilimitado, parecia divisar novos
firmamentos estrelados, que se multiplicavam maravilhosamente no seio
do Infinito,
349
HÁ DOIS MIL ANOS...
e observava radiações fulgurantes que, por vezes, lhe ofuscavam os olhos
deslumbrados...
De outras vezes, olhando furtivamente para trás, via um acervo de
sombras compactas e movediças, onde se localizavam as esferas de vida
na Terra distante.
Em ambas as margens do caminho verificou a existência de flores
graciosas e perfumadas, como se os lírios terrestres, com expressões
mais delicadas, se houvessem transportado aos jardins do Paraíso.
A eternidade apresentava-se-lhe com encantos e venturas
indizíveis!...
Simeão falava carinhosamente da sua adaptação à vida nova e das
belezas sublimadas do reino de Jesus, recordando com alegria as penosas
angústias da vida na Terra, quando aos seus ouvidos ecoaram vozes
argentinas e harmônicas dos rouxinóis siderais que festejavam, nas
Alturas, a redenção dos mártires do Cristianismo, como se estivessem
chegando às cercanias de uma nova Galileia, saturada de melodias e
perfumes deliciosos, erguida à luz plena do Infinito, como se fosse um
ninho de almas santificadas e puras balouçando, aos ventos perfumados
de interminável Primavera, na árvore maravilhosa e sem fim da Criação...
Aquele hino suave e claro, ora se elevava às Alturas em sonoridades
prodigiosas, como se fôra um incenso sutil das almas procurando o sólio
do Sempiterno em hosanas de amor, de alegria e de reconhecimento, ora
descia em melodias arrebatadoras, demandando as sombras da Terra,
como se fosse um brado de fé e esperança em Jesus-Cristo, destinado a
acordar no mundo os corações mais perversos e mais empedernidos...
A linguagem humana não traduz fielmente as harmoniosas vibrações
das melodias do Invisível, mas aquele cântico de glória, ao menos
palidamente, deve ser lembrado por nós outros como suave reminiscência
do Paraíso:
350
ROMANCE DE EMMANUEL
- Glória a Ti, Senhor do Universo, Criador de todas as maravilhas!...
"É por tua sabedoria inacessível que se acendem as constelações
nos abismos do Infinito e é por tua bondade que se desenvolve a erva
tenra na crosta escura da Terra!...
"Por tua grandeza inapreciável e por tua justiça misericordiosa, abre
o Tempo os seus ilimitados tesouros para as almas!...
"Por teu amor, sacrossanto e sublime, florescem todos os risos e
todas as lágrimas no coração das criaturas!...
"Abençoa, Senhor do Universo, as sagradas esperanças deste
Reino. Jesus é para nós o teu Verbo de amor, de paz, de caridade e
beleza!... Fortalece as nossas aspirações de cooperar em sua Seara
Santa!...
"Multiplica as nossas energias e faze chover sobre nós o fogo
sagrado da fé, para espalharmos na Terra as divinas sementes do amor de
teu Filho!...
"Basta uma gota do orvalho divino de tua misericórdia para que se
purifiquem todos os corações, mergulhados no lodo dos crimes e das
impenitências terrestres, e basta um raio só do teu poder para que todos
os Espíritos se convertam ao bem supremo!..
"E agora, ó Jesus, Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo,
recebe as nossas súplicas ardentes e fervorosas!
"Abençoa, ó Divino Mestre, os que chegam redimidos com o anélito
criador de tuas bênçãos sacratíssimas!...
"Vítimas da perversidade humana, cumpriram, valorosamente, os
teus missionários, todas as obrigações que os prendiam ao cárcere do
penoso degredo!...
"O mundo, no torvelinho de suas inquietações e iniquidades, não
lhes compreendeu o coração amantíssimo, mas, na tua bondade e
misericórdia,
351
HÁ DOIS MIL ANOS...
abres aos mártires da verdade as portas divinas do teu reino de luz..."
Estrofes de profunda beleza espalhavam nas estradas claras e
sublimadas do éter universal as bênçãos da paz e das alegrias
harmoniosas!
Os seres inferiores, das esferas espirituais mais próximas do
planeta, recebiam aqueles eflúvios sacrossantos do celeste banquete
reservado por Jesus aos mártires da sua doutrina de redenção, como se
fossem também convidados pela misericórdia do Divino Mestre, e muitos
deles, recebendo no íntimo aquelas vibrações maravilhosas, se
converteram para sempre ao amor e ao bem supremos.
Harmonias suavíssimas saturavam todas as atmosferas espirituais,
derramando sobre a Terra claridades augustas e soberanas.
Naquela região de belezas ignotas e prodigiosas, intraduzíveis na
pobreza da linguagem humana, Lívia retemperou as forças morais, depois
do austero cumprimento de sua missão divina.
Ali, compreendeu a extensão do conceito de "muitas moradas", dos
ensinamentos de Jesus, contemplando junto de Simeão as mais diversas
esferas de trabalho, localizadas nas cercanias da Terra, ou estudando a
grandeza dos mundos disseminados pela sabedoria divina no oceano
imensurável do éter, na imortalidade. Obedecendo às tendências do seu
coração, não se esqueceu das antigas amizades nos círculos espirituais,
colocados nas zonas terrestres.
Depois de alguns dias de emoções suaves e carinhosas, todos os
Espíritos, reunidos naquela paisagem luminosa, se prepararam para
receber a visita do Senhor, como quando da sua divina presença na
bucólica moldura da Galileia.
Num dia de rara e indefinível beleza, em que uma claridade de
cambiantes divinos entornava saboroso mel de alegria em todos os
corações, descia o Cordeiro de Deus da esfera superior de suas glórias
sublimes e, tomando a palavra naquele ce352
ROMANCE DE EMMANUEL
náculo de maravilhas, recordava as suas inesquecíveis pregações junto às
águas tranqüilas do pequeno 'mar" da Galileia. De modo algum se poderia
traduzir fielmente, na Terra, a beleza nova da sua palavra eterna,
substância de todo o amor, de toda a verdade e de toda a vida, mas
constitui para nós um dever, neste escorço, lembrar a sua ilimitada
sabedoria, ousando reproduzir, imperfeitamente e de leve, a essência de
sua lição divina naquele momento inesquecível.
Figurava-se, a todos os presentes, a cópia fiel dos quadros
graciosos e claros do Tiberíades. A palavra do Mestre derramava-se no
ádito das almas, com sonoridades profundas e misteriosas, enquanto de
seus olhos vinha a mesma vibração de misericórdia e de serena
majestade.
- Vinde a mim, vós todos que semeastes, com lágrimas e sangue, na
vinha celeste do meu reino de amor e verdade!...
"Nas moradas infinitas do Pai, há luz bastante para dissipar todas as
trevas, consolar todas as dores, redimir todas as iniquidades...
"Glorificai-vos, pois, na sabedoria e no amor de Deus Todo-
Poderoso, vós que já sacudistes o pó das sandálias miseráveis da carne,
nos sacrifícios purificadores da Terra! Uma paz soberana vos aguarda,
para sempre, no reino dilatado e sem fim, prometido pelas divinas aleluias
da Boa Nova, porque não alimentastes outra aspiração no mundo, senão a
de procurar o reino de Deus e de sua justiça.
"Entre a Manjedoura e o Calvário, tracei para as minhas ovelhas o
eterno e luminoso caminho... O Evangelho floresce, agora, como a seara
imortal e inesgotável das bênçãos divinas. Não descansemos, contudo,
meus amados, porque tempo virá na Terra, em que todas as suas lições
hão-de ser espezinhadas e esquecidas... Depois de longa era de sacrifícios
para consolidar-se nas almas, a doutrina da redenção será chamada a
esclarecer o governo
353
HÁ DOIS MIL ANOS...
transitório dos povos; mas o orgulho e a ambição, o despotismo e a
crueldade hão-de reviver os abusos nefandos de sua liberdade! O culto
antigo, com as suas ruínas pomposas, buscará restaurar os templos
abomináveis do bezerro de ouro. Os preconceitos religiosos, as castas
clericais e os falsos sacerdotes restabelecerão novamente o mercado das
coisas sagradas, ofendendo o amor e a sabedoria de Nosso Pai, que
acalma a onda minúscula no deserto do mar, como enxuga a mais
recôndita lágrima da criatura, vertida no silêncio de suas orações ou na
dolorosa serenidade de sua amargura indizível!...
"Soterrando o Evangelho na abominação dos lugares santos, os
abusos religiosos não poderão, todavia, sepultar o clarão de minhas
verdades, roubando-as ao coração dos homens de boa vontade!...
"Quando se verificar este eclipse da evolução de meus
ensinamentos, nem por isso deixarei de amar intensamente o rebanho das
minhas ovelhas tresmalhadas do aprisco!...
"Das esferas de luz que dominam todos os círculos das atividades
terrestres, caminharei com os meus rebeldes tutelados, como outrora
entre os corações impiedosos e empedernidos de Israel, que escolhi, um
dia, para mensageiro das verdades divinas entre as tribos desgarradas da
imensa família humana!...
"Em nome de Deus Todo-Poderoso, meu Pai e vosso Pai, regozijome
aqui convosco, pelos galardões espirituais que conquistastes no meu
reino de paz, com os vossos sacrifícios abençoados e com as vossas
renúncias purificadoras! Numerosos missionários de minha doutrina ainda
tombarão, exânimes, na arena da impiedade, mas hão-de constituir
convosco a caravana apostólica, que nunca mais se dissolverá,
amparando todos os trabalhadores que perseverarem até ao fim, no longo
caminho da salvação das almas!...
"Quando a escuridão se fizer mais profunda nos corações da Terra,
determinando a utilização
354
ROMANCE DE EMMANUEL
de todos os progressos humanos para o extermínio, para a miséria e para
a morte, derramarei minha luz sobre toda a carne e todos os que vibrarem
com o meu reino e confiarem nas minhas promessas, ouvirão as nossas
vozes e apelos santificadores!...
"Pela sabedoria e pela verdade, dentro das suaves revelações do
Consolador, meu verbo se manifestará novamente no mundo, para as
criaturas desnorteadas no caminho escabroso, através de vossas lições,
que se perpetuarão nas páginas imensas dos séculos do porvir!...
"Sim! amados meus, porque o dia chegará no qual todas as mentiras
humanas hão de ser confundidas pela claridade das revelações do céu.
Um sopro poderoso de verdade e vida varrerá toda a Terra, que pagará,
então, à evolução dos seus institutos, os mais pesados tributos de
sofrimentos e de sangue... Exausto de receber os fluidos venenosos da
ignomínia e da iniquidade de seus habitantes, o próprio planeta protestará
contra a impenitência dos homens, rasgando as entranhas em dolorosos
cataclismos. .. As impiedades terrestres formarão pesadas nuvens de dor
que rebentarão, no instante oportuno, em tempestades de lágrimas na face
escura da Terra e, então, das claridades da minha misericórdia,
contemplarei meu rebanho desditoso e direi como os meus emissários: "Ó
Jerusalém, Jerusalém?..."
"Mas Nosso Pai, que é a sagrada expressão de todo o amor e
sabedoria, não quer se perca uma só de suas criaturas, transviadas nas
tenebrosas sendas da impiedade!...
"Trabalharemos com amor, na oficina dos séculos porvindouros,
reorganizaremos todos os elementos destruídos, examinaremos
detidamente todas as ruínas buscando o material passível de novo
aproveitamento e, quando as instituições terrestres reajustarem a sua vida
na fraternidade e no bem, na paz e na justiça, depois da seleção natural
dos Espíritos e dentro das convulsões renovadoras da
355
HÁ DOIS MIL ANOS...
vida planetária, organizaremos para o mundo um novo ciclo evolutivo,
consolidando, com as divinas verdades do Consolador, os progressos
definitivos do homem espiritual".
A voz do Mestre parecia encher os âmbitos do próprio Infinito, como
se Ele a lançasse, qual baliza divina do seu amor, no ilimitado do espaço e
do tempo, no seio radioso da Eternidade.
Terminando a exposição de suas profecias augustas, sua figura
sublimada elevava-se às Alturas, enquanto um oceano de luz azulada, de
mistura aos sons de melodias divinas e incomparáveis, invadia aqueles
domínios espirituais, com as tonalidades cariciosas das safiras terrestres.
Todos os presentes, genuflexos na sua doce emoção, choravam de
reconhecimento e alegria, enchendo-se de santificada coragem para as
elevadas tarefas que lhes competia levar a efeito, no curso incessante dos
séculos. Flores de maravilhoso azul-celeste choviam do Alto sobre todas
as frontes, desfazendo-se, todavia, ao tocarem nas delicadas substâncias
que formavam o solo daquela paisagem; de soberana harmonia, como se
fossem lírios fluidicos, de perfumada neblina.
Lívia chorava de comoção indefinível, enquanto Simeão, com seus
generosos ensinamentos, a instruía das novas missões de trabalho
santificante, que lhe aguardavam a dedicação no plano espiritual.
- Meu amigo - disse ela, entre lágrimas as agonias terrestres são um
preço misérrimo para estas recompensas radiosas e imortais!... Se todos
os homens tivessem conhecimento direto de semelhantes venturas, não
possuiriam outra preocupação além da de buscar o glorioso reino de Deus
e de sua justiça.
- Sim, filha - acrescentou Simeão, como se os seus olhos
pousassem serenamente nos quadros do futuro -, um dia, todos os seres
da Terra hão-de conhecer o Evangelho do Mestre, observando-lhe
356
ROMANCE DE EMMANUEL
os ensinos!... Para isso, haveremos de sacrificar-nos pelo Cordeiro de
Deus, quantas vezes forem necessárias. Organizaremos avançados postos
de trabalho entre as sombras terrestres, buscaremos acordar todos os
corações adormecidos nas reencarnações dolorosas, para as harmonias
sublimes destas divinas alvoradas!...
Se for preciso, voltaremos de novo ao mundo, em missões
santificadoras de paz e verdade... Sucumbiremos na cruz infamante, ou
daremos o sangue em repasto às feras da ambição e do orgulho, do ódio e
da impiedade, que dormitam nas almas dos nossos companheiros da
existência terrestre, convertendo todos os corações ao amor de Jesus-
Cristo!...
Nesse instante, todavia, Lívia notou que um grupo gracioso de
entidades angélicas distribuía as graças do Senhor naquela paisagem
florida do Infinito, organizada no Além como estância de repouso,
recompensando os que haviam partido das angústias terrenas, após o
cumprimento de missão divina.
Todos os que haviam alcançado a vitória celeste com os seus
esforços, nos martírios santificantes, retemperavam agora as forças
morais e desejavam conhecer novas esferas de gozo espiritual, novas
expressões da vida noutros mundos, recebendo outros conhecimentos
nos templos radiosos e sublimes da Eternidade e restabelecendo, ao
mesmo tempo, o equilíbrio de suas emoções.
Junto à magnanimidade dos mensageiros de Jesus, sublimados
planos foram arquitetados. Novos cenários, novas oficinas de estudo,
novas emoções no reencontro de afetos inesquecíveis, que haviam
antecedido os missionários do Senhor na noite escura e fria da morte.
Mas, chegando-lhe a vez de externar seus mais recônditos desejos,
a nobre companheira do senador, depois de auscultar os seus sentimentos
mais profundos, respondeu, entre lágrimas, ao emissário de Jesus que a
interpelava:
357
HÁ DOIS MIL ANOS...
- Mensageiro do Bem - as maravilhas do reino do Senhor teriam para
mim uma nova beleza, se eu pudesse penetrar-lhes a excelsitude, em
companhia do coração que é metade do meu, da alma gêmea da minha,
que a sabedoria de Deus, em seus profundos e doces mistérios, destinou
ao meu modo de ser, desde a aurora dos tempos!...
Não desejo menosprezar a glória sublime destas regiões de
felicidade e de paz indizíveis, mas, no meio de todas estas alegrias que me
rodeiam, sinto saudades da alma que é o complemento da minha própria
vida!...
Dai-me a graça de voltar às sombras da Terra e erguer, do lodaçal do
orgulho e das vaidades impiedosas, o companheiro do meu destino!...
Permiti que possa protegê-lo em espírito, a fim de um dia trazê-lo aos pés
de Jesus, igualmente, de modo que também receba as suas divinas
bênçãos!...
A entidade angélica sorriu com profunda compreensão e terna
complacência, exclamando:
- Sim - o amor é o laço de luz eterna que une todos os mundos e
todos os seres da imensidade; sem ele, a própria Criação Infinita não teria
razão de ser, porque Deus é a sua expressão suprema... As perspectivas
deslumbrantes das esferas felizes perderiam a divina beleza, se não
guardássemos a esperança de participar, um dia, de suas ilimitadas
venturas, junto dos nossos bem-amados, que se encontram na Terra ou
noutros círculos de provação, do Universo...
E, fixando o lúcido olhar nos olhos serenos e fulgurantes de Lívia,
continuou como se lhe devassasse os pensamentos mais secretos e mais
profundos:
- Conheço toda a tua história e sei de tuas lutas incessantes e
redentoras, nas encarnações do passado, justificando assim os teus
propósitos de prosseguir, em espírito, trabalhando na Terra pelo
aperfeiçoamento daqueles a quem muito amaste!...
358
ROMANCE DE EMMANUEL
Também o Cordeiro de Deus, por muito amar a Humanidade. não
desdenhou a humilhação, o martírio, o sacrifício...
Vai, minha filha. Poderás trabalhar livremente entre as falanges
radiosas que operam na face sombria do planeta terrestre. Voltarás aqui,
sempre que necessitares de novos esclarecimentos e novas energias.
Regressarás junto de Simeão, logo que o desejares. Ampara o teu infeliz
companheiro na longa esteira de suas expiações rudes e amargas, mesmo
porque o desventurado Públio Lentulus não está longe da sua mais
angustiosa provação na atual existência, perdida, infelizmente, pelo seu
desmarcado orgulho e pela sua vaidade fria e impiedosa!...
Lívia sentiu-se tomada de indizível emoção em face daquela
revelação dolorosa, mas, simultaneamente, externou todo o seu
reconhecimento à misericórdia divina, na intimidade do seu coração
sensível e amoroso.
Naquele mesmo dia. em companhia de Simeão, a generosa criatura
voltava à Terra, afastando-se provisoriamente daqueles domínios
esplendorosos.
Através da sua excursão espiritual, sublime e vertiginosa, observou
as mesmas perspectivas encantadoras e deslumbrantes do caminho,
recebendo, extasiada, elevados ensinamentos do venerando amigo da
Samaria.
Em pouco tempo aproximavam-se ambos de larga mancha escura.
Já na atmosfera da Terra, Lívia sentiu a singular diversidade da
natureza ambiente, experimentando os mais penosos choques fluídicos.
Num ápice, notou que se encontravam na mesma Roma da sua
infância, da sua juventude e das suas amargas provações.
Era meia-noite. Todo o hemisfério estava mergulhado nos abismos
de sombra.
359
HÁ DOIS MIL ANOS...
Amparada pelos braços e pela experiência de Simeão, chegou ao
seu antigo palácio do Aventino, identificando-lhe os mármores preciosos.
Em lá penetrando, Lívia e Simeão se dirigiram imediatamente ao
quarto do senador, então iluminado por frouxa claridade.
Com exceção das ruas, onde se movimentavam ruidosamente os
escravos, nos serviços noturnos de transporte, segundo os costumes do
tempo, toda a cidade repousava na sombra.
De joelhos ante a relíquia de Simeão, como de seu recente costume,
Públio Lentulus meditava. Seu pensamento descia aos abismos
tenebrosos do passado, onde buscava rever, angustiadamente as afeições
inesquecíveis que o haviam precedido nas sendas tristes da morte. Fazia
mais de um mês que a esposa havia demandado, igualmente, os mistérios
do túmulo, em trágicas circunstâncias.
Mergulhado nas trevas do seu exílio de amargores e profundas
saudades, o orgulhoso patrício serenava as inquietações dolorosas do dia,
a fim de melhor consultar os mistérios do ser, do sofrimento e do destino...
Em dado instante, quando mais fundas e melancólicas as penosas
reminiscências, notou, através do véu de suas lágrimas, que a pequena
cruz de madeira como que emitia delicados fios de luz prateada, qual se
fôra banhada de luar misericordioso e brando.
Públio Lentulus, absorto nas vibrações pesadas e obscuras da
carne, não viu a nobre silhueta de sua mulher, que ali se encontrava junto
do venerável apóstolo da Samaria, regozijando-se no Senhor, ao verificar
as profundas e benéficas modificações espirituais da alma gêmea da sua,
na peregrinação iterativa das encarnações terrenas. Tomada de alegria e
reconhecimento para com a Providência Divina, Lívia beijou-lhe a fronte
num transporte de indefinível ternura, enquanto Simeão erguia aos céus
uma prece de amor e agradecimento.
360
ROMANCE DE EMMANUEL
O senador não lhes percebeu, diretamente, a presença suave e
luminosa, mas no íntimo dalma sentiu-se tocado por uma força nova, ao
mesmo tempo que o seu coração dilacerado se viu envolto na luz cariciosa
de uma consolação inefável e até então desconhecida.
361
VII
Teias do infortúnio
Parecia que o ano 58 estava destinado a assinalar os mais penosos
incidentes para a vida do senador Lentulus e a de sua família.
A morte de Calpúrnia e o falecimento inesperado de Lívia, dolorosos
acontecimentos que impuseram à casa um luto permanente, obrigaram
Plínio Severus a conchegar-se um pouco mais ao ambiente doméstico,
onde instituíra uma trégua aos seus desatinos de homem ainda novo, para
viver em relativa calma ao lado da esposa.
Aurélia, contudo, na violência de suas pretensões, não descansava.
Conseguindo introduzir uma serva astuta junto de Flávia, de conformidade
com antigo projeto da sua mentalidade doentia, iniciou a sinistra execução
de um plano diabólico, no sentido de envenenar, vagarosamente, a rival
retraída e desditosa.
A princípio, observou a filha do senador que lhe surgiam algumas
erupções cutâneas que, consideradas de somenos importância, foram
tratadas tão somente à pasta de miolo de pão misturado ao leite de
jumenta, medicamento havido na época como específico dos mais eficazes
para a conser362
ROMANCE DE EMMANUEL
vação da pele. A esposa de Plínio, todavia, queixava-se incessantemente
de fraqueza geral, apresentando o mais profundo desânimo.
Quanto a Plínio, o retomar a normalidade da vida pública e entregarse,
de novo, ao violento amor de Aurélia, foi questão de poucos dias,
regressando à vida espetaculosa, com a amante e, agora, com a situação
sentimental muito agravada pelas caluniosas denúncias de Saul, acerca
das relações afetuosas de Agripa com a esposa.
Plínio Severus, embora generoso, era impulsivo: no regime familiar,
seu espírito era o desses tiranos domésticos, que, adotando a conduta
mais desregrada e incompreensível, não toleram a mínima falta no
santuário da família. A despeito de sua orientação errônea e condenável,
passou a vigiar constantemente o irmão e a esposa, com a feroz
impulsividade do leão ofendido.
Saul de Gioras, por sua vez, despeitado com a sublime e fraternal
afeição entre Flávia e Agripa, não perdia ensejo para envenenar o coração
impetuoso do oficial, levando-lhe as calúnias mais torpes e injustificáveis.
Agripa, na sua generosidade e no seu sentimentalismo, não podia
adivinhar as ciladas que o enredavam na vida comum e prosseguia com a
preciosa atenção de sua amizade, junto da mulher que não podia amá-lo
senão com sublimado amor fraterno.
O ex-escravo dos Severus não perdia, contudo, as esperanças.
Procurando freqüentemente o velho Araxes, que aumentava de cupidez e
ambição à medida que se lhe multiplicavam os anos, aguardava
ansiosamente o instante de realizar sua apaixonada aspiração.
Observando que Flávia Lentúlia dispensava funda afeição a Agripa,
não trepidou em ver sinceramente nos seus menores gestos uma prova de
amor intenso e correspondido, procurando insinuar-se por todos os
modos, a fim de captar-lhe, igualmente, o interesse e a atenção.
363
HÁ DOIS MIL ANOS...
Uma noite, depois de mais de dois meses de expectativa ansiosa
para atingir seus fins ignóbeis, conseguiu aproximar-se da jovem senhora,
quando sozinha, ela repousava em largo divã do espaçoso terraço.
Do alto, contemplavam-se os mais belos panoramas da cidade,
então clareada pelo brilho das primeiras estrelas, na languidez suave do
crepúsculo. As brisas cariciosas da tarde tranqüila traziam sons de
alaúdes e harpas, tangidos nas vizinhanças, como se fossem vozes
harmoniosas do seio imenso da noite.
Saul fixou a mulher cobiçada, observando-lhe o formoso e delicado
semblante de madona, de uma palidez de neve, sob o domínio de um
langor doentio e inexplicável!... Aquela criatura representava o objeto de
todas as suas aspirações violentas e rudes, a meta da sua felicidade
impossível e impetuosa. Na materialidade dos seus sentimentos, não a
podia amar como se fôra um irmão, e sim com a brutalidade dos seus
impuros desejos.
- Senhora - disse resoluto, depois de fitar-lhe o rosto
demoradamente -, há muitos anos espero um minuto como este, para
poder confessar-vos a enorme afeição que vos dedico. Quero-vos acima
de tudo, até da própria vida! Sei que para mim estais num plano
inacessível, mas, que fazer, se não consigo dominar esta adoração, este
intenso amor de minhalma?
Flávia abriu desmesuradamente os olhos serenos e tristonhos,
tomada de penosa surpresa...
- Senhor Saul - revidou corajosamente, triunfando da sua emoção -,
serenai vosso ânimo... Se me tendes tamanha afeição, deixai-me no
caminho dos meus deveres, onde precisa conservar-se toda mulher ciosa
da sua virtude e do seu nome! Calai, portanto, vossas emoções neste
sentido, porque o amor que me confessais não pode passar de um desejo
violento e impuro!...
364
ROMANCE DE EMMANUEL
- Impossível, senhora! - ajuntou o liberto, desesperado. - Já fiz tudo
para esquecer-vos... Tenho feito tudo que era possível para afastar-me
definitivamente de Roma, desde o dia infausto em que vos vi pela primeira
vez!... Regressei para Massília decidido a nunca mais voltar, porém, quanto
mais me apartava da vossa presença, mais se me enchia a alma de tédio e
de amargura! Fixei-me aqui, novamente, onde tenho vivido da minha
desventura e das minhas tristes esperanças!... Por mais de dez anos,
senhora, tenho esperado pacientemente. Sempre tributei respeito às
vossas indiscutíveis virtudes, aguardando que um dia vos cansásseis do
esposo infiel que o destino colocou, impiedosamente, no vosso
caminho!...
Agora, pressinto que esgotastes o cálice das amarguras domésticas,
porque não hesitastes em ceder ao afeto de Agripa... Desde que vos vi na
companhia de um homem que não é o vosso marido, tremo de ciúmes,
porque sinto que fostes talhada apenas para mim... Ardo em zelos,
senhora, e todas as noites sonho intensamente com os vossos carinhos e
com a doce ternura de vossas palavras, que me enchem a alma toda, como
se de vós tão somente dependesse toda a felicidade da minha vida!...
Atendei aos apelos da minha afeição interminável! Não me façais
esperar mais tempo, porque eu poderia morrer!...
Flávia Lentúlia ouvia-o, agora, entre surpreendida e aterrada. Quis
levantar-se, mas, faltou-lhe o ânimo preciso. Mesmo assim, teve a coragem
necessária para responder-lhe:
- Enganais-vos! - entre mim e Agripa existe apenas uma afeição
santificada e pura, de irmãos que se identificam nas provações e nas lutas
da vida.
Não aceito as vossas insinuações acrimoniosas à vida particular de
meu marido, porque, tenha
365
HÁ DOIS MIL ANOS...
ele a conduta que lhe aprouver na existência, eu devo ser a sentinela do
seu lar e a honra do seu nome...
Se puderdes compreender o respeito devido a uma mulher, retiraivos
daqui, porque os vossos propósitos de traição me causam a mais
funda repugnância!
- Deixar-vos? Nunca!... exclamou Saul, com terrível entono. -
Esperar tantos anos e nada conseguir? Nunca, nunca!...
E avançando para a senhora indefesa, que se levantara num esforço
supremo, abraçou-lhe o busto, em ânsias apaixonadas, retendo-a nos
braços impulsivos, por um rápido minuto.
Saul, todavia, na sua excitação e terrível impulsividade, não teve
ânimo para resistir à força sobre-humana com que a pobre senhora se
defendeu naquele transe penoso para a sua alma sensível, e perdeu a
presa que se lhe escapou inopinadamente das mãos criminosas, descendo
imediatamente aos seus aposentos, onde se recolheu, chorando as
lágrimas da sua dignidade ofendida, mas evitando qualquer nota
escandalosa sobre o incidente.
Só no dia seguinte, à noite, Plínio Severus regressou a casa,
encontrando a esposa desalentada e abatida.
Censurando-lhe a ausência, na intimidade conjugal, o esposo infiel
respondeu-lhe secamente:
- Mais uma cena de ciúmes? Bem sabes que isso é inútil!
- Plínio, meu querido - esclareceu entre lágrimas -, não se trata de
ciúme, mas da justa defesa de nossa casa!...
E, em rápidas palavras, a desventurada criatura o pôs ao corrente de
todos os fatos; todavia, o oficial esboçou um sorriso de incredulidade,
acentuando com certa indiferença:
- Se esta longa história é mais um artifício de mulher ciumenta, para
me reter na insipidez do ambiente doméstico, todo o esforço é
dispensável,
366
ROMANCE DE EMMANUEL
porque Saul é o meu melhor amigo. Ainda ontem, quando me encontrava
em sérias aperturas financeiras para resgatar algumas dívidas, foi ele
quem me emprestou oitocentos mil sestércios. Seria melhor, portanto, que
prezasses mais alto a honra do nosso nome, abandonando as tuas
relações com Agripa, já excessivamente comentadas, para que eu alimente
qualquer dúvida!
E, assim falando, retirou-se novamente para os prazeres da vida
noturna, enquanto a consorte sofria, em silêncio, o seu inominável martírio
moral, sentindo-se abandonada e incompreendida, sem qualquer
esperança.
Alguns dias correram lentos, amargos, dolorosos.
Flávia, dado o seu natural retraimento feminino, não teve coragem
de confiar ao pai, já de si tão acabrunhado pelos golpes da vida, a sua
enorme desdita.
Agripa, observando-lhe o abatimento, buscava confortar-lhe o
coração com generosas palavras, examinando as perspectivas de
melhores dias no porvir.
A pobre senhora, todavia, definhava a olhos vistos, sob o domínio
das moléstias inexplicáveis que lhe dominavam os centros de força e sob
a tortura íntima dos seus penosos segredos.
Saul de Gioras, como se tivesse todos os seus instintos açulados
por aquele minuto em que tivera entre os braços impetuosos a mulher dos
seus desejos impulsivos, jurava, intimamente, possuí-la a qualquer preço,
enchendo-se dos mais terríveis propósitos de vingança contra o filho mais
velho de Flamínio. Foi assim que continuou a freqüentar o palácio do
Aventino, tomado das intenções mais sinistras.
Respeitando as antigas tradições da família Severus, que sempre
fizera questão de proporcionar àquele liberto um perfeito tratamento de
amigo íntimo, Públio Lentulus, embora a pouca simpatia
367
HÁ DOIS MIL ANOS...
que lhe inspirava, concedia-lhe o máximo de liberdade na sua residência,
sem de leve suspeitar dos seus propósitos condenáveis. Agora, Saul não
buscava a intimidade da família nem procurava avistar-se, de modo algum,
com a esposa de Plínio ou com o pai, conservando-se na companhia dos
servos da casa ou permanecendo nos aposentos particulares de Agripa ou
do irmão, que nunca lhe haviam negado a mais sincera confiança.
Da sua permanência nas sombras, todavia, procurava observar os
mínimos gestos do irmão mais velho de Plínio, que, atendendo à situação
de abatimento de Flávia Lentúlia, se conservava horas a fio, muitas vezes,
em companhia do velho senador, nos seus apartamentos privados, ora
prolongando as suas tristes esperanças no futuro, com a possível
compreensão do irmão, ora dando-lhe a conhecer os versos mais
admirados da cidade, comentando-se, fraternalmente, as bagatelas
encantadoras da vida social.
Diariamente, contudo, o sicofanta Saul procurava o marido de Flávia,
para colocá-lo ao corrente de fatos injustificáveis e inverossímeis, a
respeito da vida íntima de sua mulher.
Plínio Severus dava todo o crédito aos desarrazoamentos do falso
amigo, afervorando cada vez mais sua dedicação a Aurélia, que lhe
empolgava o coração, assediado e enceguecido pelas mais torpes
tentações da vida material.
Envenenado pelas intrigas criminosas e reiteradas de Saul,
licenciara-se o oficial, de modo a realizar uma viagem às Gálias, com a
amante, por satisfazer-lhe caprichosos desejos há muito manifestados.
No dia da partida para Massília, de onde pretendia demandar o
interior da província, foi procurado por Saul na residência de Aurélia, a
qual ficava próxima do Fórum, ouvindo-lhe, em febre de ódio, as mais
tremendas assacadilhas, terminadas com esta aleivosa sugestão:
368
ROMANCE DE EMMANUEL
- Se quiseres verificar por ti mesmo a traição de Agripa e tua mulher,
volta hoje à noite, furtivamente, a tua casa e busca penetrar
inesperadamente no teu quarto. Não precisarás, então, dos zelos da minha
dedicação amiga, porque encontrarás teu irmão em atitudes decisivas.
Naquele momento, Plínio Severus ultimava os preparativos de
viagem, tendo mesmo, pela manhã, apresentado suas despedidas em
casa, aos mais íntimos familiares; para justificar os imperativos de sua
ausência, alegara determinações expressas da chefia de suas atividades
militares, embora fossem muito diversos os verdadeiros e inconfessáveis
motivos da partida.
Ouvindo, entretanto, as graves denúncias do liberto judeu, o oficial
preparou-se para enfrentar qualquer eventualidade, dirigindo-se, à noite,
para o palácio do Aventino, com o espírito atormentado por tigrinos
sentimentos.
O ex-escravo, porém, que planejara executar seus projetos
criminosos, nas suas intenções impiedosas e terríveis, postou-se, à
noitinha, cem a cumplicidade natural de todos os servidores da casa, nos
apartamentos particulares de Agripa, procedendo de tal modo que os
próprios escravos não poderiam atinar com a sua permanência nos
aposentos referidos.
À noite, Plínio Severus procurou a casa, inopinadamente, com
surpresa para alguns criados, que tinham ciência de suas despedidas e,
sem dizer palavra, enceguecido pelas calúnias injuriosas do falso amigo,
penetrou cautelosamente no gabinete da esposa, ouvindo a voz
despreocupada do irmão, embora não conseguisse identificar o que dizia.
Abrindo um pouco a cortina sedosa e delicada, viu Agripa nos seus
gestos de carinho íntimo e fraterno, acariciando as mãos de Flávia, com
um leve e doce sorriso.
Por muito tempo observou-lhes, ansioso, os menores gestos,
surpreendendo-lhes as recíprocas de369
HÁ DOIS MIL ANOS...
monstrações de suave estima fraternal, representados, agora, a seus olhos
cegos de ódio e ciúme, como os mais francos indícios de prevaricação e
adultério.
No auge da desesperação, abriu as cortinas num gesto brusco,
penetrando a câmara conjugal, como se fôra um tigre atormentado.
- Infames! - acentuou em voz baixa e enérgica, procurando evitar a
escandalosa assistência dos criados. - Então, é deste modo que
manifestam o respeito devido à dignidade do nosso nome?
Flávia Lentúlia, com os seus padecimentos físicos fundamente
agravados, fez-se pálida de neve, enquanto Agripa enfrentava o terrível
olhar do irmão, singularmente surpreendido.
- Plínio, com que direito me insultas desta forma? - perguntou ele
energicamente. - Saiamos daqui, imediatamente. Discutiremos as tuas
injuriosas interpelações no meu quarto. Aqui permanece uma pobre
criatura enferma e abandonada pelo esposo, que lhe humilha o nome e os
melindres com a vileza de um proceder criminoso e injustificável, uma
senhora que requer o nosso amparo e o nosso respeito!...
Os olhos de Plínio Severus fuzilavam de ódio, enquanto o irmão se
levantou serenamente, retirando-se para os seus aposentos, acompanhado
do oficial que fremia de raiva, agravada pela humilhação que lhe infligia a
calma superior do adversário.
Chegados, porém, aos aposentos de Agripa, o impulsivo oficial,
depois de numerosas acusações e reprimendas, explodia em exclamações
deste jaez:
- Vamos! Explica-te, traidor!... Então, lanças a lama da tua ignomínia
sobre o meu nome e te acovardas nesta serenidade incompreensível?!
- Plínio - disse ponderadamente Agripa, obrigando o interlocutor a
calar por alguns momentos -, é tempo de pores termo aos teus desatinos.
Como poderás provar semelhante calúnia contra mim, que sempre te
desejei o maior bem? Qual370
ROMANCE DE EMMANUEL
quer comentário menos digno, acerca da conduta de tua mulher, é um
crime imperdoável. Falo-te, nesta hora grave dos nossos destinos,
invocando a memória irrepreensível de nossos pais e o nosso passado de
sinceridade e confiança fraterna...
O impetuoso oficial quase se imobilizara, como um leão ferido,
ouvindo essas ponderações superiores e calmas, enquanto Agripa
continuava a externar suas impressões mais íntimas e mais sinceras:
- E agora - prosseguia com serenidade -, já que reclamas um direito
que nunca cultivaste, em vista da sucessão interminável dos teus
desatinos na vida social, devo afirmar-te que adorei tua mulher acima de
tudo, em toda a vida!... Quando gastavas a tua mocidade junto do espírito
turbulento de Aurélia, vimos Flávia, na sua juventude, pela primeira vez,
logo após o seu regresso da Palestina e descobri nos seus olhos a
claridade afetuosa e terna que deveria iluminar a placidez do lar que eu
idealizei nos dias que se foram!... Mas, descobriste, simultaneamente, a
mesma luz e eu não hesitei em reconhecer os direitos que te cabiam no
coração, porque ela correspondeu à intensidade do teu afeto, parecendome
unida a ti pelos laços indefiníveis de santificado mistério!. . . Flávia te
amava, como sempre te amou, e a mim só competia esquecer, buscando
ocultar as minhas ansiedades torturantes e angustiosas!...
Ao ensejo do teu casamento, não resisti vê-la partir nos teus braços
e, depois de ouvir a palavra materna, amorosa e sábia, demandei outras
terras com o coração esfacelado! Por dez anos amargurosos e tristes,
peregrinei entre Massília e a nossa propriedade de Avênio, em aventuras
loucas e criminosas. Nunca mais pude acarinhar a idéia da constituição de
uma família, atormentado constantemente pelas recordações da minha
desventura silenciosa e irremediável.
371
HÁ DOIS MIL ANOS...
Ultimamente, voltei a Roma com os derradeiros resquícios da minha
ilusão dolorosa e malograda...
Encontrei-te no abismo das afeições ilícitas e não te exprobrei os
deslizes injustificáveis.
Sei que gastaste três quartas partes dos nossos bens comuns,
satisfazendo a louca prodigalidade de tuas aventuras infelizes e
degradantes, e não te censurei o procedimento insólito.
E aqui, nesta casa, sob este teto que constitui para nós ambos o
prolongamento carinhoso do teto paternal, não tenho sido para a tua nobre
mulher senão um irmão dedicado e amigo!...
Vendo-se acusado, claramente, por suas faltas e sentindo-se ferido
nas suas vaidades de homem, Plínio Severus reagiu com mais ferocidade,
exclamando exaltadamente na sua desesperação:
- Infame, é inútil aparentares esta superioridade inacreditável!
Somos iguais, nos mesmos sentimentos, e não creio na tua dedicação
desinteressada nesta casa. Há muito tempo vives com Flávia,
ostensivamente, em aventuras criminosas, mas resolveremos, agora, toda
a nossa questão pela espada, porque um de nós deve desaparecer!...
E, arrancando a arma de que fôra munido para qualquer
eventualidade, avançou decididamente para o irmão, que cruzou os
braços, serenamente, esperando-lhe o golpe implacável.
- Então, onde se encontram os teus brios de homem? - exclamou
Plínio, exasperado. - Esta serenidade expressa bem a tua covardia...
Coloca-te em defesa da vida, porque, quando dois irmãos disputam a
mesma mulher, um deles deve morrer!
Agripa Severus, porém, sorriu tristemente, retorquindo:
- Não retardes muito a consumação dos teus propósitos, porque me
prestarás o bem supremo da sepultura, já que a minha vida, com as suas
torturas de cada instante, nada mais representa que um caminho
escabroso e longo para a morte.
372
ROMANCE DE EMMANUEL
Reconhecendo-lhe a nobreza e o heroísmo, mas acreditando na
infidelidade da mulher, Plínio guardou novamente a espada, exclamando:
- Está bem! Eu podia eliminar-te, mas não o faço, em consideração à
memória de nossos pais inesquecíveis; todavia, continuando a acreditar
na tua infâmia, partirei daqui para sempre, levando no íntimo a certeza de
que tenho em teu espírito de traidor o meu maior e pior inimigo.
Sem mais palavra, Plínio retirou-se a passos largos, enquanto o
irmão, caminhando até à porta, lançava-lhe um derradeiro apelo afetuoso,
para que não se fosse.
Alguém, todavia, acompanhara a cena, detalhe por detalhe. Esse
alguém era Saul que, saindo do seu esconderijo e apagando
inopinadamente a luz do quarto, alcançou Agripa num salto certeiro, pelas
costas, vibrando-lhe violento golpe. O pobre rapaz caiu redondamente
numa poça enorme de sangue, sem que lhe fosse possível articular uma
palavra. Em seguida ao ato criminoso, fugiu o liberto, afetando
despreocupação, sem que ninguém pudesse atinar com a dolorosa
ocorrência.
No seu quarto, porém, Flávia Lentúlia se surpreendia com a demora
da solução de um caso em que se via envolvida e também considerado,
por ela, à primeira vista, como um acontecimento sem importância.
Levantou-se, depois de considerável esforço, dirigindo-se à porta
que comunicava os apartamentos de Agripa com o peristilo, mas,
surpreendida com a escuridão e silêncio reinantes, apenas escutou, vindo
do interior, um leve rumor, semelhante aos sons roucos de uma respiração
fatigada e opressa.
Dominada por dolorosos pressentimentos, a desventurada criatura
sentiu bater-lhe o coração descompassadamente.
A ausência de luz, aquele ruído de respiração estertorosa e,
sobretudo, o profundo e pavoroso silêncio, fizeram-na recuar, buscando o
socorro e a
373
HÁ DOIS MIL ANOS...
experiência de Ana, que lhe conquistara igualmente o coração, pela
dedicação e pela humildade, em todos os dias daquele amargurado
período da sua existência.
Gozando do respeito e da estima de todos, a velha criada de Lívia
era, agora, quase a governanta da casa, a quem, por determinação dos
senhores, todas as escravas do palácio do Aventino deviam obediência.
Chamada por Flávia aos seus aposentos particulares, a velha
servidora dos Lentulus, depois de ouvir a apressada confidência da
senhora, compartilhando-lhe os receios, acompanhou-a ao quarto de
Agripa, em cuja porta de entrada também parou, pensativa, embora já não
mais se ouvisse a respiração opressa, observada minutos antes pela
esposa de Plínio.
- Senhora - disse afetuosa -, estais abatida e ainda necessitais de
repouso. Voltai ao quarto; se algo houver que justifique os vossos receios,
procurarei resolver o assunto junto de vosso pai. a quem cientificarei do
que houver, lá no seu gabinete particular.
- Agradecida, Ana - respondeu a senhora, visivelmente emocionada -
, concordo contigo, mas esperarei aqui no peristilo o resultado de tuas
providências.
Com uma prece, a antiga criada penetrou no aposento, fazendo uni
pouco de luz e parando o olhar, quase estarrecida.
No tapete, o cadáver de Agripa Severus, caído de borco, descansava
numa poça de sangue, que ainda corria do profundo ferimento aberto pela
arma homicida de Saul.
Ana precisou mobilizar todas as reservas de serenidade da sua fé,
para não gritar escandalosamente, alarmando a casa inteira. Ela, porém,
que tantos padecimentos havia já experimentado em todo o curso da vida,
não tinha grande dificuldade em juntar mais uma nota angustiosa ao
concerto de
374
ROMANCE DE EMMANUEL
suas amarguras, sofridas sempre com resignação e serenidade.
Todavia, sem poder dissimular a angústia e a profunda palidez,
voltou novamente ao peristilo, exclamando algo inquieta, para Flávia
Lentúlia, que lhe observava os mínimos gestos, ansiosamente.
- Senhora, não vos assusteis, mas o senhor Agripa está ferido...
E aos primeiros movimentos de curiosidade angustiosa da filha do
senador, a qual se lembrava da profunda desesperação do esposo,
momentos antes, Ana acalmou-a com estas palavras:
- Não temos tempo a perder! Procuremos o senador, para as
primeiras providências; contudo, suponho que devo cuidar sozinha dessa
tarefa, aconselhando-vos a buscar a tranqüilidade do vosso quarto.
Mas, silenciosas e inquietas, dirigiram-se as duas apressadamente
ao gabinete de Públio, absorvido em numerosos processos políticos, no
seio tranqüilo da noite.
- Agripa, ferido?! - perguntou altamente surpreendido o senador,
depois de se inteirar da ocorrência pela palavra de Ana. - Mas, quem teria
sido o autor de semelhante atentado nesta casa?
- Meu pai - respondeu Flávia, entre lágrimas -, ainda há pouco, Plínio
e Agripa tiveram séria altercação no interior dos meus aposentos!...
Públio Lentulus percebeu o perigo das palavras confidenciais da
filha, em tais circunstâncias, e, como não podia acreditar que os filhos de
Flamínio, sempre tão unidos e generosos, fossem ao extremo das armas,
acentuou decisivamente:
- Minha filha, não acredito que Plínio e Agripa se abalançassem a
tais extremos.
E como estivessem na presença de Ana, que por mais conceituada
que fosse, agora, na sua confiança pessoal, não podia modificar a
estrutura de suas rígidas tradições familiares, acrescentou, como se
quisesse prevenir o espírito da filha contra qual375
HÁ DOIS MIL ANOS...
quer revelação inconveniente que pudesse envolver o seu nome em
escândalos sociais irremediáveis:
- Além disso, não me pareces muito certa em tuas lembranças,
porque Plínio se despediu de manhã, seguindo viagem para Massília. Não
podemos esquecer esta circunstância.
Não se viu algum desconhecido nesta casa?
- Senhor - respondeu Ana, com humildade -, há alguns minutos vi
que o senhor Saul se retirava apressado lá do quarto do ferido. De acordo
com as minhas observações e atenta à sua familiaridade com os vossos
amigos, suponho-o pessoa indicada para nos dar qualquer esclarecimento.
Os olhos do velho senador brilharam estranhamente, como se
houvesse encontrado a chave do enigma.
Nesse instante, porém, enquanto organizava os seus papéis,
apressadamente, a fim de prestar os primeiros socorros ao ferido, Flávia
Lentúlia, corno se as observações de Ana lhe suscitassem novas
explicações, rompeu soluçante.
- Meu pai, meu pai, só agora me recordo de que vos deveria
cientificar de coisas muito graves!...
- Filha - acudiu com decisão -, estás doente e fatigada. Recolhe-te ao
quarto, procurarei a tudo remediar!... É muito tarde para qualquer
ponderação. As coisas graves são sempre más e o mal que não se corta
pela raiz, com o esclarecimento oportuno, é sempre uma semente de
calamidade guardada em nosso coração, para rebentar em lágrimas de
amarguras, nas horas inesperadas da vida!... Falaremos, pois, mais tarde.
Cumpre, agora, providenciar o que seja mais urgente e necessário.
Retirando-se apressado, com a serva, em demanda dos apartamentos do
rapaz, notou que Flávia obedecia, sem discussão, às suas determinações,
recolhendo-se ao quarto.
376
ROMANCE DE EMMANUEL
Penetrando nos aposentos de Agripa, em companhia da velha serva,
Públio Lentulus conseguiu medir toda a extensão da tragédia ali
desenrolada, sob o seu teto respeitável.
Fechando a porta de acesso, o senador verificou que o filho mais
velho do seu inesquecível Flamínio estava morto, restando saber os
íntimos detalhes daquele drama doloroso, cujo fim sangrento era a única
cena que ali se deparava.
Ajoelhando-se ao lado do cadáver, no que foi acompanhado pela
serva e amiga leal, falou compungidamente:
- Ana, é muito tarde!... O meu pobre Agripa já não vive, nem haveria
possibilidade de socorro para um ferimento desta natureza!... Parece haver
expirado há poucos momentos!...
Alçando ao Alto o olhar marejado de lágrimas, exclamou
amarguradamente:
- Ó manes de meu desventurado filho, acolhei as nossas súplicas
pelo descanso perpétuo de sua alma!...
Todavia, aquela prece morrera-lhe no íntimo. A voz tornara-se-lhe
frouxa e oprimida. Aquele espetáculo hediondo abalara-o profundamente.
Queria falar, sem o conseguir, porquanto tinha a garganta como que
dilacerada e rebelde, sob a força dos singultos do coração, que lhe
morriam latentes na soledade da imperiosa fortaleza espiritual.
Ana o contemplou aflita, porque seus olhos nunca o haviam
observado em atitudes tão íntimas, em todo o longo tempo de serviço
naquela casa.
Públio Lentulus, aos seus olhos, era sempre o homem frio e
impiedoso, em cujo peito pulsava um coração de ferro, que não podia
vibrar senão para as loucas vaidades mundanas.
Naquele instante, contudo, entre assustada e comovida, observava
que também o senador tinha lágrimas para chorar. De seus olhos sempre
altivos, caíam lágrimas ardentes, que rolavam, silenciosas e tristes, sobre
a cabeça inerte do rapaz, também con377
HÁ DOIS MIL ANOS...
siderado por ele um filho, como se nada mais lhe restasse, além do
consolo supremo de abraçar carinhosamente os seus despojos, através do
véu escuro de suas dúvidas angustiosas.
Ana, profundamente tocada pela amargura daquela cena íntima,
exclamou com humildade, desejosa de confortar a dor imensa daquele mal
sem remédio:
- Senhor, tenhamos coragem e serenidade. Nas minhas orações
obscuras, sempre peço ao profeta de Nazaré que vos ampare do céu,
confortando-vos o coração sofredor e desalentado!
O pensamento do senador vagava no dédalo das dúvidas
tenebrosas. Cotejando as observações da filha e as palavras de Ana,
buscava descobrir no íntimo, a intuição sobre a culpabilidade do delito. A
qual dos dois, Plínio ou Saul, deveria imputar a autoria do atentado
nefando? Ele, que decidira tantos processos difíceis na sua vida, ele, que
era senador e não perdia também ensejo de participar dos esforços da
edilidade romana, sentia agora a dor suprema de exercer a justiça em sua
própria casa, na perspectiva da destruição de toda a ventura dos seus
filhos muito amados!...
Ouvindo, porém, as expressões consoladoras da serva, recordou a
figura extraordinária de Jesus Nazareno, cuja doutrina de piedade e
misericórdia a tantos fortalecia para afrontar as situações mais ríspidas da
vida, ou para morrer, heroicamente, como sua própria mulher. Dirigindose,
então, à criada, com intimidade imprevista, em gesto comovedor de
simplicidade generosa, qual a serva jamais lhe observara, em qualquer
circunstância da vida doméstica, disse:
- Ana - nunca deixei de ser um homem enérgico, em toda a vida, mas
chega sempre um momento em que o nosso coração se sente
acabrunhado diante da rudeza das lutas que o mundo nos oferece com as
suas desilusões amargas e doloro378
ROMANCE DE EMMANUEL
sas! Se és tão somente uma serva, eu sei hoje apreciar-te o coração,
embora tardiamente!...
Uma lágrima espontânea embargava-lhe a voz, porém o velho
patrício continuava:
- Em toda a minha existência, tenho julgado uma imensidade de
processos de várias naturezas, relativos à justiça do mundo; mas, de
tempos a esta parte, parece-me que estou sendo julgado pela força
incoercível de uma justiça suprema, cujos tribunais não se encontram na
Terra!...
Desde a morte de Lívia, sinto o coração modificado, a caminho de
uma sensibilidade, para mim, até então desconhecida.
A aproximação da velhice parece um prenúncio da morte de todos
os nossos sonhos e esperanças!...
Diante deste cadáver, que, certamente, vai aumentar a sombra dos
nossos segredos de família, sinto quão dolorosa é a tarefa de justificar os
nossos entes amados; e, já que te referes ao Mestre de Nazaré, cuja
doutrina de paz e fraternidade a tantos tem ensinado a morrer com
resignação e heroísmo supremos, pela vitória da cruz dos seus martírios
terrestres, como procederia ele num caso destes, cm que as mais
tremendas dúvidas me pairam no coração, quanto à culpabilidade de uni
filho muito amado?
- Senhor - respondeu Ana, com humildade, fundamente comovida
ante aquela prova de consideração e afeto -, muitas vezes Jesus nos
ensinou que jamais devemos julgar, para não sermos também julgados.
O senador se surpreendia, ao receber, de uma criatura tão simples e
tão inculta aos seus olhos, essa maravilhosa síntese da filosofia humana,
repassando, no espírito, o seu doloroso pretérito.
- Mas - aventou, como se quisesse justificar-se a si mesmo dos erros
profundos do seu passado de homem público - os que não julgam
perdoam e esquecem; e, se mandam as leis da vida
379
HÁ DOIS MIL ANOS...
que sejamos agradecidos ao bem que se nos faça, não podemos perdoar
ao mal que se nos atira no caminho!...
Ana, porém, não perdeu o ensejo de consolidar o ensinamento
evangélico, acrescentando com doçura:
- Mesmo na minha terra, a Lei antiga mandava que se cobrasse olho
por olho e dente por dente, mas Jesus de Nazaré, sem destruir a essência
dos ensinos do Templo, esclareceu que os que mais erram no mundo são
os mais infelizes e mais necessitados do nosso amparo espiritual,
recomendando, na sua doutrina de amor e caridade, não perdoássemos
uma vez só, mas setenta vezes sete vezes.
Públio Lentulus admirava-se de aprender aqueles generosos
conceitos da sua criada, dentro dos princípios do perdão irrestrito.
Perdoar? Nunca o fizera em suas porfiadas lutas no mundo. Sua educação
não admitia piedade ou comiseração para os inimigos, porque todo perdão
e toda humildade significavam, para os de sua classe, traição ou covardia.
Lembrava-se, porém, agora, de que em numerosos processos
políticos poderia haver perdoado e que, em muitas circunstâncias da sua
vida, poderia ter fechado os olhos da sua severidade com amoroso
esquecimento.
Sem saber a razão, como se uma energia ignorada lhe reconduzisse
o pensamento aos tempos idos, suas lembranças se transportaram ao
período remoto de sua viagem à Judeia, revendo com os olhos da
imaginação a cena em que, com o seu rigorismo, escravizara
impiedosamente um mísero rapaz. Sim, também aquele jovem se chamava
Saul e ele trazia agora o cérebro ralado por dúvidas atrozes, entre aquele
Saul, liberto dos seus amigos, e a figura de Plínio, sempre guardada no
seu conceito num halo de amor e generosidade.
Perdoar?
380
ROMANCE DE EMMANUEL
E o pensamento do senador se quedava em meditações amargas e
penosíssimas, naqueles minutos angustiados e longos. Era, talvez, uma
das poucas vezes na vida, em que o seu cérebro duvidava, receoso de
fazer cair a austeridade do julgamento sobre a fronte de um filho muito
querido.
Mas, saindo dessa apatia de alguns minutos, exclamou com
resolução:
- Ana, o profeta Nazareno devia ser, de fato, uma figura divina aqui
na Terra!... Eu, porém, sou humano e careço de forças novas para viver
uma existência fora de minha época... Quero perdoar e não posso... Quero
julgar neste caso e não sei como fazê-lo. .. Mas, hei-de saber decidir,
quanto à solução deste terrível problema! Farei o possível por observar os
preceitos do teu mestre, guardando uma atitude de silêncio, até que venha
a conhecer o verdadeiro culpado, quando, então, buscarei não julgar como
os homens, mas pedir a essa justiça divina que se manifeste, amparando
meus pensamentos e esclarecendo os meus atos...
E como se retomasse a sua energia usual para as lutas da vida, o
velho patrício sentenciou:
- Agora, tratemos da vida nas suas realidades dolorosas.
Colocou o cadáver de Agripa no leito, e, recomendando à serva que
preparasse o espírito da filha, amparando-lhe o coração no angustioso
transe, abriu as portas do aposento, requisitou a presença de todos os
fâmulos da casa, levando a ocorrência ao conhecimento das autoridades e
procedendo, simultaneamente, a rigoroso inquérito, a fim de apurar a
procedência do crime, embora um episódio daquela natureza fosse
considerado vulgaríssimo nos dias atribulados da Roma de Domício Nero.
Alguns criados alegavam ter visto Plínio Severus com o irmão,
durante a noite; mas a palavra do senador anulava-lhes as informações,
com a afirmativa de que o irmão da vítima havia partido, durante o dia, em
demanda do porto de Massília.
381
HÁ DOIS MIL ANOS...
Saul era, desse modo, a pessoa naturalmente indicada para prestar
declarações e, antes mesmo que se realizassem as cerimônias fúnebres, o
senador, interrogando-o particularmente, supunha ter razões para crer na
sua culpa, observando-lhe as evasivas e alusões descabidas, que não
satisfaziam às exigências da sua perquirição psicológica. Suas afirmações
e indiretas não coincidiam com asseverações incisivas de Ana, cuja
retidão de palavra ele bem conhecia. Em alguns tópicos de suas
informações, negou estivesse presente nos aposentos de Agripa e isso foi
o bastante para que o senador verificasse que mentia.
Quanto a Plínio, não fôra de fato encontrado, obtendo-se tão
somente a lacônica participação da sua partida para Massília, o que
realmente ocorrera na mesma noite da tragédia, depois da altercação
decisiva com o irmão, no palácio do Aventino.
E, assim, em companhia de Aurélia, demandava ele as Gálias, em
suntuosa galera, singrando as águas calmas do antigo mar romano.
O senador, porém, apenas desejava ouvir melhor as confidências da
filha, para arrancar a confissão suprema do mísero liberto de Flamínio, de
cuja culpabilidade não tinha mais dúvida.
Procurou, dessarte, realizar com a maior discrição os funerais do
filho do seu inesquecível amigo, aos quais Saul de Gioras teve a
desfaçatez de assistir, com toda a serenidade venenosa do seu espírito
mesquinho.
Sob o efeito pernicioso de tóxicos letais, que lhe haviam sido
aplicado por Ateia, a serva traidora, paga por Aurélia, a qual, na sua
inconsciência, havia envenenado todos os cosméticos de uso da sua ama,
destinados ao tratamento da pele e dos cílios, Flávia Lentúlia tinha, agora,
todos os padecimentos físicos singularmente agravados, além da terrível
situação moral em face da penosa ocorrência e de seu acabrunhamento
por força de insolúveis dúvidas.
382
ROMANCE DE EMMANUEL
Aquele mal da infância parecia reviver, porque o corpo novamente se
abria em chagas dolorosas, enquanto os olhos pareciam seriamente
atacados de moléstia implacável.
Três dias depois das exéquias de Agripa, Públio Lentulus,
fundamente penalizado, ouviu-lhe o depoimento íntimo e angustioso, com
o máximo de atenção amorosa e interessada. Findo o relato minucioso da
filha, cujas desventuras conjugais lhe tocavam o âmago do coração, o
velho senador requereu novo interrogatório de Saul, com a sua presença,
mas, enviando emissário à procura do liberto de Flamínio, ficara atônito
com uma nova surpresa.
Saul de Gioras, depois de responder às argüições particulares de
Públio Lentulus, quando ainda não se haviam realizado os funerais de
Agripa Severus, percebeu claramente a atitude mental daquele para
consigo, concluindo que lhe não seria possível enganar o tato psicológico
do velho senador.
Dois dias após as cerimônias fúnebres, o liberto procurou Araxes no
seu miserável refúgio do Esquilino, com o espírito exacerbado e inquieto.
Crendo sinceramente nas intervenções maravilhosas do mago, à
vista das suas faculdades divinatórias, aproveitadas, aliás, por forças
tenebrosas do plano invisível, ligadas às suas sinistras ambições de
dinheiro, notou Saul que o adivinho o recebia com a misteriosa fleuma de
sempre. Deixou bem visível a volumosa bolsa, recheada, como a
demonstrar-lhe as ricas possibilidades financeiras, para aquisição do
talismã de sua ventura.
O velho feiticeiro, encarquilhado pelos anos, reconhecendo-lhe as
disposições generosas, desfazia-se em sorrisos de benevolência
ambiciosa e enigmática, parecendo devassar-lhe o olhar assustadiço e
inquieto, com seus olhos móveis e penetrantes.
- Araxes - exclamou Saul, com voz quase súplice -, estou cansado de
esperar o amor da
383
HÁ DOIS MIL ANOS...
mulher que adoro! Estou aflito e preocupado... Preciso serenar minhas
penosas aflições. Ouve-me! Quero de tuas mãos o talismã da felicidade
para o meu amor desventurado!..
O velho adivinho guardou por minutos a cabeça entre as mãos, no
gesto que lhe era peculiar e, depois, respondeu em voz quase sumida:
- Senhor, dizem-me as vozes do invisível que as vossas aflições não
são resultantes de um amor incompreendido e desesperado...
Mas o liberto de Flamínio, que sofria o mais fundo desespero de
consciência por haver eliminado um amigo e benfeitor, em plena floração
de juventude, cortou-lhe a palavra, exclamando incisivamente:
- Como ousas contradizer-me, feiticeiro infame?
Araxes, todavia, com um brilho estranho nos olhos buliçosos,
revidou com presteza:
- Julgais-me, então, um feiticeiro infame? Nem por isso, todavia,
deixarei de falar a verdade, quando a verdade me convenha.
- Pois repito o que disse! Mas, a que verdades misteriosas aludes em
tuas vagas afirmativas? - falou o liberto, fundamente exasperado.
- A verdade, meu amigo - dizia o mago, com serenidade quase
sinistra -, é que se estais tão perturbado é somente porque sois um
criminoso. Assassinastes, friamente, um benfeitor e um amigo, e a
consciência do celerado teme a implacável ação da justiça!
- Cala-te, miserável! Como o soubeste? - exclamou Saul,
excitadíssimo, ao mesmo tempo que arrancava o punhal de entre as
dobras do manto.
E avançando para o velho indefeso, acrescentava com voz
cavernosa:
- Já que as tuas ciências ocultas te proporcionam conhecimentos
perniciosos à tranqüilidade alheia, deves também desaparecer!...
384
ROMANCE DE EMMANUEL
Araxes compreendeu que o momento era decisivo. Aquele homem
arrebatado era capaz de eliminá-lo de um só golpe. Medindo a situação
num relance e movimentando toda a sua argúcia para conservar os bens
da vida, esboçou um sorriso fingido e complacente, exclamando:
- Ora, ora, se falei a verdade foi somente para poderdes avaliar os
meus poderes espirituais, porquanto, se é do vosso desejo, poderei
integrar-vos, imediatamente, na posse do necessário talismã. Com ele,
sereis profundamente amado pela mulher de vossas preferencias... Com
ele, modificareis os mais íntimos sentimentos dessa criatura que adorais e
que vos fará, então, a felicidade de toda a vida. Quanto ao mais, não sois o
primeiro a tirar a vida de um semelhante, porque todos os dias me
aparecem fregueses nas vossas condições, batendo a estas portas. Além
disso, entre nós deve existir grande confiança recíproca, porque sois meu
cliente há mais de dez anos.
Ouvindo-lhe as palavras benevolentes e serenas, o liberto de
Flamínio guardou novamente a arma, considerando novas perspectivas de
felicidade e concordando em tudo com o adivinho, que, fazendo-o sentarse,
lhe ocupou a atenção por mais de uma hora com a descrição de fatos
idênticos aos que lhe ocorriam, demonstrando teoricamente a eficiência
dos seus amuletos miraculosos. Ia a palestra em boa forma, quando Saul
lhe solicitou a entrega imediata do talismã, porquanto desejava
experimentar-lhe o efeito naquele mesmo dia, ao que Araxes respondeu
pressuroso:
- O vosso talismã está pronto. Posso entregar-vos essa preciosidade
agora mesmo, dependendo tão somente de vós mesmo, porque precisareis
beber o filtro mágico, que vos colocará na situação espiritual requerida
pelo cometimento.
Saul não fez questão de submeter-se às imposições do velho
egípcio, nas suas manobras estranhas e misteriosas, penetrando uma
câmara, orna385
HÁ DOIS MIL ANOS...
mentada de vários símbolos extravagantes, que lhe eram totalmente
desconhecidos.
Araxes levava a efeito as encenações mais sugestivas. Vestiu-lhe,
sobre a toga comum, larga túnica igual à sua e, depois de fingidas
posições de magia incompreensível, foi ao interior do pequeno laboratório,
onde tomou de um tóxico violento, monologando intimamente de si para
consigo: - "Vais receber o talismã que mais te convém neste mundo".
Deitou algumas gotas do perigoso filtro numa taça de vinho e, com
largos gestos espetaculosos, como se estivesse obedecendo a ritual
ignorado, deu-lhe a beber o conteúdo, prosseguindo nos gestos exóticos,
que eram bem as expressões pitorescas e sinistras de extravagante magia
de morte.
Ingerindo o vinho na melhor intenção de guardar o amuleto da sua
felicidade, o perigoso liberto sentiu que os membros se relaxavam sob o
império de uma força desconhecida e destruidora, porquanto lhe faltava a
própria voz para externar as emoções mais íntimas. Quis gritar, mas não o
conseguiu, e inúteis foram todos os esforços para levantar-se. Aos
poucos, os olhos turvaram-se lugubremente, como enevoados por sombra
espessa e indefinível. Desejou manifestar seu ódio ao mago assassino,
defender-se daquela angústia que lhe sufocava a garganta, mas a língua
estava hirta e um frio penetrante invadiu-lhe os centros vitais. Deixando
pender a cabeça sobre os cotovelos apoiados ao longo da mesa ampla,
compreendeu que a morte violenta lhe destruía todas as forças vivas do
organismo.
Araxes fechou tranqüilamente o quarto, como se nada houvesse
acontecido, e voltou à loja, atendendo solícito à clientela numerosa, sem
quebra da habitual serenidade.
Antes da noite, porém, penetrou na câmara mortuária e esvaziou a
bolsa do cadáver, guardando as moedas silenciosamente entre as suas
fartas reservas de avarento.
386
ROMANCE DE EMMANUEL
Depois das vinte e três horas, quando a cidade dormia, o velho
feiticeiro do Esquilino misturava-se aos escravos que faziam o serviço
noturno dos transportes, conduzindo uma pequena carroça de mão, dentro
da qual ia um grande volume.
Após longo trajeto, ganhava as cercanias do Fórum, entre o
Capitólio e o Palatino, onde descansou, esperando o derradeiro quarto da
madrugada, quando, então, despejou a carga num ângulo escuro da via
pública, voltando tranqüilamente para o seu sono de cada noite.
De manhã, o cadáver de Saul foi facilmente identificado e, quando o
senador buscava o liberto para declarações, recebeu a surpresa daquela
notícia, inquirindo a si mesmo as razões daquela morte imprevista e
estranha, aturdido com a entrosagem do mecanismo da justiça divina e
perguntando intimamente, à própria consciência, se Saul não seria
daqueles criminosos imediatamente justiçados pela lei das
compensações, no caminho infinito dos destinos.
Seu coração, mais que nunca inclinado ao exame das profundas
questões filosóficas, perdia-se num abismo de conjecturas, recordando a
recomendação do espírito de Flamínio e as elevadas lições de Ana,
calcadas no Evangelho: procurava, com a maior boa vontade resolver o
problema do perdão e da piedade. Desejoso de satisfazer a própria
consciência nas atividades da vida prática, buscou contrariar suas
tradições e costumes em face do acontecimento, e, dirigindo-se à
residência do algoz de seus filhos, tomou todas as providências para que
não lhe faltassem a decência e o respeito nas cerimônias fúnebres. Alguns
escravos e servos de confiança estavam habilitados a resolver todos os
problemas atinentes aos negócios deixados pelo morto, mas, cooperando
nas exéquias, Públio Lentulus se sentia satisfeito por vencer a aversão
pessoal, homenageando, ao mesmo tempo, a memória de FIamínio.
387
HÁ DOIS MIL ANOS...
Localizando-se com a nova companheira em Avênio, Plínio Severus
soube, por intermédio de amigos, da tragédia que se desenrolara em Roma
na noite de sua ausência, sendo igualmente cientificado das dúvidas
penosas que pairavam a seu respeito. Profundamente tocado nas suas
fibras emotivas, lembrando-se do irmão que, tantas vezes, lhe
testemunhara as mais altas provas de afeto, desejou regressar, de maneira
a esclarecer convenientemente o assunto, vingando-lhe a morte; todavia,
amolecido nos braços de Aurélia e receoso do julgamento do velho
senador, respeitado como um pai, além da suspeita que lhe causava a
notícia da inexplicável enfermidade da esposa, deixou-se ficar na sua vida
incompreensível, através de Avênio, Massília, Arelate, Antípolis e Nice,
buscando esquecer no vinho dos prazeres as grandes responsabilidades
que lhe cabiam.
Junto de Aurélia, a vida do oficial decorreu em tranqüilidade
condenável, por três longos anos, quando um dia teve a dolorosa surpresa
de encontrar a companheira pérfida e insensível nos braços do músico e
cantor Sérgio Acerronius, chegado a Massília com as ruidosas alegrias da
Capital do Império.
Nesse dia amargurado da sua existência, o filho de Flamínio investiu
sobre a mulher traidora, de arma na mão, disposto a tirar-lhe a vida
criminosa e dissoluta. No instante, porém, da sua desforra, considerou
intimamente que o assassínio de uma mulher, ainda que diabolicamente
perversa, não deveria entrar nos trâmites da sua vida, supondo ainda que,
deixá-la viver no caminho escabroso de suas crueldades, seria a melhor
vindita do seu coração traído e desventurado.
Abandonou, então, para sempre, aquela mísera criatura, que foi
eliminada mais tarde, em Âncio, pelo punhal implacável de Sérgio, que lhe
não tolerou a infidelidade e a pervicácia no crime.
388
ROMANCE DE EMMANUEL
Sentindo-se só, Plínio Severus considerou, amarguradamente, os
erros clamorosos da sua vida. Reviu o passado de futilidades condenáveis
e atitudes loucas. Quase pobre, viu-se misérrimo para voltar ao ambiente
romano, onde tantas vezes brilhara na mocidade, em aventuras pródigas e
felizes.
Debalde lhe enviara o senador apelos afetuosos. Chamado a brios
pelas lições dolorosas do próprio destino, o oficial, amparado por alguns
amigos de Roma, preferiu esforçar-se pela reabilitação nas cidades das
Gálias, onde permaneceria longos anos em trabalho silencioso e rude,
pelo reerguimento do seu nome diante dos parentes e amigos mais
íntimos.
Já entrado na idade madura, das profundas reflexões, grande lhe foi
o esforço de reabilitação, distante dos entes mais caros.
Quanto ao velho senador, resistiu, decididamente, dentro da sua
rígida estrutura espiritual, aos golpes aspérrimos do destino. Fazendo da
luta de cada dia o melhor caminho de esclarecimento, viu passar os anos
sem desânimo e sem ociosidade.
Desde os trágicos acontecimentos em que Agripa e Saul haviam
perdido a vida misteriosamente, com o abandono definitivo do marido,
Flávia Lentúlia tinha a saúde abalada para sempre. Na epiderme, os
venenos de Ateia haviam sido anulados e vencidos pelas substâncias
medicamentosas aplicadas, mas a luz dos seus olhos fôra aniquilada para
todo o sempre. Desalentada e cega, encontrou, porém, no coração
generoso de Ana, o carinho materno que lhe faltava em tão penosas
circunstâncias da vida.
A constituição física do senador, contudo, resistia a todos os
embates e infortúnios.
Entre os esforços de carinhosa assistência à filha e as lides políticas
que lhe tomavam o máximo de atenção, seus dias decorreram cheios de
lutas acerbas, mas silenciosos e tristes, como sempre. Em seu espírito,
havia agora as melhores e mais
389
HÁ DOIS MIL ANOS...
sinceras disposições para apreender a essência sagrada dos
ensinamentos do Cristianismo e foi assim que o seu coração penetrou o
crepúsculo da velhice, como se as sombras fossem clarificadas por
estrelas cariciosas e suaves. No seu íntimo, permanecia uma serenidade
imperturbável, mas, na vida do homem, corria o sopro inquieto do esforço
pelas realizações do seu tempo. O coração estava resignado com as
desilusões penosas e amargas do destino, mas no poder supremo do
Império estava um tirano, que precisava cair, em benefício das
construções do direito e da família; e por isso, junto de numerosos
companheiros, entregou-se ao trabalho sutil da política interna, para a
queda de Domício Nero, que prosseguia avassalando a cidade com os
espetáculos odiosos do seu nefando reinado.
Caius Pisão, Sêneca, bem como outras figuras veneráveis da época,
mais exaltadas no patriotismo e amor pela justiça, caíram sob as mãos
criminosas do celerado que cingia a coroa, mas Públio Lentulus, ao lado
de outros irmãos de ideal que trabalharam no silêncio e na sombra da
diplomacia secreta, junto dos militares e do povo, esperou pela morte ou
pelo banimento do tirano, aguardando as claridades do futuro, surgidas
com o efêmero reinado de Sérgio Sulpício Galba, que, no dizer de Tácíto,
teria sido por todos considerado digno do governo supremo do Império, se
não houvesse sido Imperador.
390
VIII
Na destruição de Jerusalém
Mais de dez anos correram, silenciosamente amargurados, depois
de 58, sobre a vida comum das personagens desta história.
Somente em 68, conseguira a política conciliatória de grande
número de patrícios, entre os quais Públio Lentulus, o definitivo
afastamento de Domício Nero e suas nefandas crueldades. Todavia, a
ascensão de Galba durara poucos meses e aquele ano de 69 ia definir
grandes acontecimentos na vida do império.
Lutas numerosas encheram a cidade de pavor e sangue.
A terrível contenda entre Otão e Vitélio dividira todas as classes da
família romana em facções hostis, que se odiavam ao extremo.
Afinal, a famosa batalha de Bedriaco dava o trono a Vitélio, que
instaurou novo círculo de crueldades em todos os setores políticos.
A diplomacia interna, porém, vigiava na sombra, examinando
atentamente a situação, de modo
391
HÁ DOIS MIL ANOS...
a não permitir a continuidade de novo surto de extermínio e de infâmia.
Vitélio apenas conservou o governo por oito meses e dias. porque,
no mesmo ano de 69, as legiões do território africano, trabalhadas pela
orientação sutil dos que haviam derribado Nero e seus asseclas,
proclamaram Vespasiano para a suprema investidura do Império. O novo
imperador, que ainda se encontrava no campo de seus feitos de armas,
empenhado na pacificação da Judeia distante satisfazia as exigências
mais avançadas de todas as classes civis e militares, sendo recebido em
triunfo para o posto supremo, iniciando-se, assim, a era prestigiosa dos
Flávios.
Vespasiano integrava aquele grupo de patrícios operosos que
contribuíra, sem alardes, para a queda dos tiranos.
Amigo pessoal de Públio Lentulus, o imperador se tornara famoso,
não só por suas vitórias militares, mas também por seu criterioso tirocínio
político, evidenciado em Roma desde os dias turbulentos de Calígula.
Sob a sua orientação administrativa, ia abrir-se uma trégua nas
imoralidades governamentais, inaugurar-se-ia novo período de
compreensão das necessidades populares e, na rota dos seus planos
econômico-financeiros, o Império ia caminhar para os dias regeneradores
de uma era nova.
Públio recebeu todos os acontecimentos com a velada alegria
possível aos seus 67 anos de lutas e fortes experiências da vida. Sob a
claridade serena da velhice, todavia, sua fibra moral e resistência física
eram as mesmas de sempre.
Dentro da perspectiva de melhores dias para as realizações
patrióticas, considerava, agora, como bem empregado, todo o tempo que
roubara à filha cega, para atender ao trabalho do bem coletivo; e foi nesse
estado de espírito, com a consciência satisfeita pelo dever cumprido, de
conformidade com as suas concepções, que se dirigiu a palácio para
392
ROMANCE DE EMMANUEL
atender a chamado especial do imperador, que, muitas vezes, não deixou
de recorrer ao conselho dos seus mais antigos companheiros de ideal.
- Senador - disse-lhe Vespasiano, na intimidade tranqüila de um dos
magníficos gabinetes da residência imperial -, mandei chamá-lo para me
amparar com a sua tradicional dedicação ao Império, na solução de
assunto que julgo de suma importância. (1)
- Dizei, Augusto!... - respondeu Públio, comovido.
Mas o imperador, gentil, cortou-lhe a palavra:
- Não, meu caro, entendamo-nos com a velha intimidade de outros
tempos. Deixemos, por um instante, os protocolos.
E, vendo que o senador esboçava um sorriso de reconhecimento à
sua palavra fluente e generosa, continuou a expor a questão que o
interessava:
- Chamado a Roma para o cargo supremo, não ousei desobedecer às
sagradas injunções que me impeliam ao cumprimento desse grande dever,
embora obrigado a deixar meu filho na obra de pacificação da Judeia
amotinada, trabalho esse que considerarei, em toda a vida, o meu melhor
esforço pela vitalidade do Império, no desdobramento de suas gloriosas
tradições.
Acontece, todavia, que o cerco de Jerusalém se vai prolongando
demasiado, acarretando as mais sérias conseqüências para meus projetos
econômicos, no programa restaurador que me propus realizar no governo.
Suponho que o meu valoroso Tito esteja necessitando de um
conselho de civis, além dos assistentes militares que o acompanham na
arrojada empresa, e lembrei-me de organizá-lo tão somente
__________
(1) Vespasiano esteve em Roma logo após a sua proclamação - Nota de Emmanuel.
393
HÁ DOIS MIL ANOS...
com os amigos mais íntimos, que conheçam Jerusalém e suas cercanias.
Quando das minhas primeiras incursões na edilidade, tive
conhecimento dos seus processos na reforma administrativa da Judeia,
sabendo, portanto, da sua permanência em Jerusalém há mais de vinte
anos.
Era, pois, meu desejo que aceitasse, com outros poucos
companheiros nossos, a incumbência de orientar melhor a tática militar de
meu filho. Tito está necessitando da cooperação política de quem conheça
a cidade nos seus menores recantos, bem como os seus idiomas
populares, de maneira a vencer a situação que se vai tornando cada vez
mais penosa.
Públio Lentulus pensou na filha doente, um instante, mas,
recordando-se da dedicação absoluta de Ana, que poderia perfeitamente
substituir seus zelos por algum tempo, respondeu com decisão e energia:
- Meu nobre imperador, vossa palavra augusta é a palavra do
império. O Império manda e eu obedeço, honrando-me em cumprir vossas
determinações e correspondendo aos impulsos generosos da vossa
confiança.
- Muito agradecido! - falou Vespasiano, estendendo-lhe a mão,
extremamente satisfeito. Tudo estará pronto, de modo que sua partida, e
de mais dois ou três amigos nossos, se verifique dentro de duas semanas,
o mais tardar.
Assim aconteceu.
Depois das dolorosas despedidas da filha, que ficara aos cuidados
da serva dedicada, no palácio do Aventino, o senador tomava. a suntuosa
galera que, largando de Óstia, penetrou depressa o mar largo, rumo à
Judeia.
O velho patrício reviveu, com penosa serenidade, as peripécias da
viagem dos seus tempos de juventude venturosa, quando a felicidade era
para
394
ROMANCE DE EMMANUEL
ele incompreensível, em companhia da esposa e dos dois filhinhos.
Sim, a pequenina figura de Marcus, o filho desaparecido, parecia
surgir novamente a seus olhos, sob uma auréola de radioso e santificado
enlevo.
Um dia, em Cafarnaum, levado pelas palavras caluniosas de Sulpício
Tarquinius, duvidou da honorabilidade da mulher, acreditando, mais tarde,
que o rapto da criança fosse uma consequência da sua infidelidade. Mas
Lívia agora estava redimida de todas as culpas, no tribunal da sua
consciência. Seus sacrifícios domésticos e a morte heróica no circo
constituíam a prova máxima da sublimada pureza do seu coração.
Naqueles instantes de meditação, figurava-se-lhe que voltava ao passado
com os seus sofrimentos intermináveis, esbarrando sempre na sombra
pesada do mistério, quando tentava reler as páginas desse doloroso
capítulo da sua existência.
A que abismos insondáveis e desconhecidos teria sido levado o
pequenino que lhe perpetuaria a estirpe nobre?
Suas emoções paternais pareciam alarmar-se de novo, depois de
tantos anos e tantos padecimentos em família.
Mas, embora lhe flutuassem no íntimo as mais penosas dúvidas, o
senador, na rigidez da sua enfibratura moral, preferia crer, consigo
mesmo, que Marcus Lentulus havia sido assassinado por malfeitores
vulgares, dados ao roubo e ao terrorismo, para nunca mais requisitar os
seus desvelos paternais.
Assim quereria crer, mas aquela viagem afigurava-se-lhe uma
análise de suas lembranças mais queridas e mais pungentes.
De tarde, ao suave clarão do crepúsculo no Mediterrâneo, parecialhe
ver ainda o vulto de Lívia acalentando o pequenino, ou falando-lhe ao
coração em termos afetuosos de consolação, supondo lobri395
HÁ DOIS MIL ANOS...
gar, igualmente, a figura de Comênio, o servo de confiança, entre os
subalternos e escravos.
Em companhia de três outros conselheiros civis, chegou sem maior
dificuldade ao destino, colocando-se esse reduzido conselho de íntimos
do imperador à imediata disposição de Tito, que lhe aproveitou os
pareceres, utilizando com grande êxito as suas opiniões, filhas de larga
experiência da região e dos costumes.
O filho do imperador era generoso e leal para com todos os
compatriotas, que o consideravam como benfeitor e amigo. Mas, para os
adversários, Tito era de uma crueldade sem nome.
Em torno da sua figura ardente e desassombrada, desdobravam-se
legiões numerosas de soldados que combatiam encarniçadamente.
O cerco de Jerusalém, terminado em 70, foi um dos mais
impressionantes da história da humanidade.
A cidade foi sitiada, justamente quando intermináveis multidões de
peregrinos, vindos de todos os pontos da província, se haviam reunido
junto ao templo famoso, para as festas dos pães ázimos. Daí, o excessivo
número de vítimas e as lutas acérrimas da célebre resistência.
O número de mortos nos terríveis recontros elevou-se a mais de um
milhão, fazendo os romanos quase cem mil prisioneiros, dos quais onze
mil foram massacrados pelas legiões vitoriosas, depois da escolha dos
homens válidos, entre cenas penosas de sangue e de selvageria por parte
dos soldados.
O velho senador sentia-se amargurado com aqueles pavorosos
espetáculos de carnificina, mas cumpria-lhe desempenhar a palavra dada e
era com o melhor espírito de coragem que dava pleno cumprimento ao seu
mandato.
Seus pareceres e conhecimentos foram, muitas vezes, utilizados
com êxito, tornando-se íntimo conselheiro do filho do imperador.
396
ROMANCE DE EMMANUEL
Diariamente, em companhia de um amigo, o senador Pompílio
Crasso, visitava os postos mais avançados das forças atacantes,
verificando a eficácia da nova orientação observada pela estratégia militar
dos seus patrícios Os chefes de operações várias vezes lhes chamaram a
atenção, para não avançarem muito em suas atitudes de desassombro,
mas, Públio Lentulus não manifestava o menor receio, realizando, na sua
idade, minuciosos serviços de reconhecimento topográfico da famosa
cidade.
Afinal, na véspera da queda de Jerusalém, já se lutava quase corpo a
corpo em todos os pontos de penetração, havendo incursões de parte a
parte nos campos inimigos, com reciprocas crueldades contra todos os
que tivessem a infelicidade de cair prisioneiros.
Apesar do zelo de que eram cercados, Públio e o amigo, em virtude
da coragem de que davam testemunho, caíram nas mãos de alguns
adversários que, ao lhes observarem a indumentária de altos dignitários da
Corte Imperial, os conduziram imediatamente a um dos chefes da
desesperada resistência, instalado num casarão à guisa de quartel,
próximo da Torre Antônia.
Públio Lentulus, observando as cenas de selvajaria e sangue da
plebe anônima e amotinada, que exterminava numerosos cidadãos
romanos sob as suas vistas, lembrou a tarde dolorosa do Calvário, em que
o piedoso profeta de Nazaré sucumbira na cruz, sob a vozeada terrificante
das multidões enfurecidas. Enquanto caminhava tangido com brutalidade
e aspereza, o velho senador considerava, igualmente, que, se aquele
momento assinalasse a sua morte, devia morrer heroicamente, como sua
própria mulher, em holocausto aos seus princípios, embora houvesse
fundamental diferença entre o reino de Jesus e o império de César. A idéia
de deixar Flávia Lentúlia órfã do seu afeto preocupava-lhe o íntimo;
todavia, ponderava que a filha teria
397
HÁ DOIS MIL ANOS...
no mundo a dedicação generosa e assídua de Ana, bem como o amparo
material da sua fortuna.
Foi nesse estado de espírito, surpreso com a sucessão dos
acontecimentos, que atravessou longas ruas cheias de movimento, de
gritos, de impropérios e de sangue.
Jerusalém, tomada de assombro, mobilizava as derradeiras energias
para evitar a ruína completa.
Ao cabo de algumas horas, extenuados de fadiga e sede, Públio e o
amigo foram introduzidos no sombrio gabinete de um chefe judeu, que
expedia as mais impiedosas ordens de suplício e morte para todos os
romanos presos, revidando às atrocidades do inimigo.
Bastou que Públio fitasse aquele velho israelita de traços
característicos, para procurar, sofregamente, uma figura semelhante no
acervo de suas lembranças mais íntimas e mais remotas.
Não pôde, porém, de pronto, identificar aquela personagem.
O velho chefe, contudo, pousou nele o olhar astuto e, fazendo um
gesto de satisfação, exclamou com uma chispa de ódio a lhe transparecer
de cada palavra:
- Ilustríssimos senadores - enfatizou com ironia e desprezo -, eu vos
conheço de longos anos...
E, fixando Públio, acentuou com malícia:
- Sobretudo, honro-me com a presença do orgulhoso senador Públio
Lentulus, antigo legado de Tíbério e de seus sucessores nesta província
perseguida e flagelada pelas pragas romanas. Ainda bem que as forças do
destino não me permitiram partir para a outra vida, na minha velhice
trabalhosa, sem me desafrontar de uma injúria inolvidável.
Avançando para o velho patrício que o contemplava supinamente
surpreendido, repetia com insistência irritante:
- Não me reconheceis?...
398
ROMANCE DE EMMANUEL
O senador, porém, tinha o semblante a evidenciar o seu penoso
abatimento físico, em face daquela rude provação da sua vida; debalde,
encarava a figura franzina e maquiavélica de André de Gioras, agora com
elevado ascendente nos trabalhos do templo famoso, em vista da fortuna
que Conseguira amealhar.
Verificando a impossibilidade de ser identificado pelo prisioneiro,
cuja presença, ali, mais o interessava e que lhe respondera a todas as
perguntas com silencioso gesto negativo, o velho judeu retornou com
sarcasmo:
- Públio Lentulus, sou André de Gioras, o pai a quem insultaste um
dia com o excesso da tua autoridade orgulhosa. Lembras-te agora?
O prisioneiro fez um sinal afirmativo com a cabeça.
Vendo, porém, que o seu atrevimento não o intimidava, o chefe de
Jerusalém insistia exasperado:
- E porque não te humilhas neste momento, diante de minha
autoridade? Ignoras, porventura, que posso hoje decidir dos teus
destinos?... Qual a razão por que não me pedes comiseração?
Públio estava exausto. Lembrou os seus primeiros dias em
Jerusalém, recordou a visita daquele agricultor inteligente e revoltado.
Procurou rememorar, intimamente, as providências que adotara na
qualidade de homem público, a fim de que o filho do judeu voltasse ao lar
paterno, não se lembrando de haver destilado tanto fel naquele coração
irresignado. Deliberara nada dizer, diante da sua figura exasperada e
truculenta, atendendo às suas íntimas disposições espirituais, mas, em
face da ousada insistência, sem abdicar as antigas tradições de orgulho e
vaidade que o caracterizavam noutros tempos, e como se desejasse
demonstrar desassombro em tão penosas circunstâncias, replicou, afinal,
com energia:
399
HÁ DOIS MIL ANOS...
- Se vos julgais aqui no cumprimento de uma obrigação sagrada,
acima de qualquer sentimento particular e menos digno, não espereis que
se vos peça comiseração, pelo fato de cumprirdes o vosso dever.
André de Gioras franziu o sobrolho, exasperado com a resposta
imprevista, andando de um lado para outro no amplo gabinete, como se
estivesse a cogitar o melhor meio de executar a tremenda vingança.
Depois de alguns momentos de sombrio silêncio, como se houvesse
chegado a uma solução condigna dos seus tigrinos projetos, chamou com
voz soturna um dos guardas numerosos, ordenando:
- Vai depressa e dize a Ítalo, de minha parte, que deve aqui estar
amanhã, às primeiras horas, de modo a cumprir minhas determinações.
E enquanto o emissário saía, dirigiu-se aos dois prisioneiros nestes
termos:
- A queda de Jerusalém está iminente, mas darei a última gota de
sangue da minha velhice para exterminar as víboras do vosso povo. Vossa
raça maldita veio cevar-se na cidade eleita, mas eu exulto com a minha
vingança em vós ambos, orgulhosos dignitários do império da impiedade e
do crime! Quando se abrirem as portas de Jerusalém, terei executado
meus implacáveis desígnios!
Calando-se, bastou um gesto para que os dois amigos fossem
atirados numa enxovia escura e úmida, onde passaram uma noite terrível
de conjeturas dolorosas, trocando amarguradas confidências.
Na manhã seguinte, eram chamados à prova suprema.
Já se ouviam na cidade os primeiros rumores das forças romanas
vitoriosas, entregando-se ao terror e ao saque da população humilhada e
inerme.
Por toda parte, o êxodo precipitado de mulheres e crianças em
gritaria infernal e angustiosa; mas, naquele casarão de grossas paredes de
pedra,
400
ROMANCE DE EMMANUEL
refugiara-se considerável número de chefes e combatentes, para a
resistência suprema.
Públio e Pompílio foram conduzidos a uma sala ampla, de onde
podiam ouvir o ruído crescente da vitória das armas imperiais, depois de
lances dramáticos e cruentos, em tanto tempo de terror, de rapina e de
luta; todavia, ali, naquele compartimento espaçoso e fortificado, tinha à
frente centenas de guerreiros armados e alguns chefes políticos da
resistência israelita, que os contemplavam.
Diante do avanço vitorioso das legiões romanas, era de notar a
inquietação e o pavor que dominavam todos os semblantes, mas havia um
interesse geral pelos dois prisioneiros importantes do Império, como se
eles representassem o último objeto em que se pudessem cevar o ódio e a
vingança.
Modificando, todavia, aquela situação indecisa, André de Gioras
tomou a palavra em voz estranha e sinistra, que retumbou por todos os
ângulos da casa:
- Senhores! estamos chegando ao fim da nossa desesperada defesa,
mas temos o consolo de guardar dois grandes chefes da amaldiçoada
política de rapina do império Romano!... Um deles é Pompílio Crasso, que
começou a sua carreira de homem público nesta província desventurada,
inaugurando um longo período de terror entre os nossos compatriotas
infelizes! O outro, senhores, é Públio Lentulus, orgulhoso legado de
Tibério e de seus sucessores na Judeia humilhada de todos os tempos;
que escravizou nossos filhos ainda jovens e organizou processos
criminosos em todas as zonas provinciais, fomentando o pavor de nossos
irmãos perseguidos e flagelados, lá da sua residência senhorial da
Galileia!... Pois bem! antes que os malditos soldados da pilhagem imperial
nos aprisionem e aniquilem, cumpramos nossos desígnios!...
Todos os presentes ouviram-lhe a palavra, como se fôra a ordem
suprema de um chefe a quem se devesse obedecer cegamente.
401
HÁ DOIS MIL ANOS...
Os dois senadores foram, então, amarrados com pesadas peças de
ferro aos postes do suplício, sem liberdade para qualquer movimento,
restringindo suas expressões de mobilidade aos olhos silenciosos e
serenos no sacrifício.
- Nossa vingança - voltava o odiento israelita a explicar - deve
obedecer ao critério da antigüidade. Primeiramente, deverá morrer
Pompílio Crasso, por ser o mais velho e para que o vaidoso senador Públio
Lentulus compreenda o nosso esforço para eliminar a vitalidade do seu
império maldito.
Pompílio fitou longamente o amigo, como se estivesse fazendo suas
despedidas angustiosas e mudas, na hora extrema.
- Nicandro, este trabalho te compete - exclamou André, voltando-se
para um dos companheiros.
E dando ao vigoroso soldado uma espada sinistra, acrescentou com
profunda ironia:
- Tira-lhe o coração para o amigo, que deverá conservar a cena de
hoje na sua memória, para sempre.
Os olhos do condenado brilharam de intensa angústia, enquanto as
faces descoravam ao extremo, acusando as emoções dolorosas que lhe
iam na alma. Entre ele e o companheiro de amargura, foi trocado, então,
um olhar inesquecível.
Em minutos rápidos, Públio Lentulus assistiu ao desenrolar da
operação nefanda.
A cabeça branca do supliciado pendeu ao primeiro golpe de espada
e do seu tórax encarquilhado foi arrancado violentamente o coração
palpitante, sangrento.
Entretanto, o senador sobrevivente ouvia já o rumor dos patrícios
vitoriosos que se aproximavam afigurando-se-lhe que já se lutava corpo a
corpo, às portas daquela turbulenta assembléia da vindita e do crime. A
monstruosa cena estarrecia-lhe o ânimo, sempre otimista e decidido, mas
não perdeu
402
ROMANCE DE EMMANUEL
a compostura altiva e rígida que ele a si mesmo se impunha, naquele
angustioso transe.
Terminada a execução de Pompílio, feita à pressa, porquanto todos
os presentes tinham consciência da horrorosa situação que os esperava
diante dos triunfadores, André de Gioras levantou novamente a voz:
- Meus amigos - afirmou soturnamente -, ao mais velho, a penalidade
misericordiosa da morte; mas, a este patrício infame que nos ouve,
concederemos a pena amarga da vida, dentro do sepulcro das suas
ilusões desvairadas, de vaidade e orgulho!... Públio Lentulus, o antigo
emissário dos imperadores, deverá viver!... Sim, mas sem os olhos que lhe
clarearam o caminho do egoísmo supremo sobre os nossos grandes
infortúnios!... Deixá-lo-emos com vida, para que nas trevas da sua noite
busque ver com os olhos dos escravos que ele espezinhou no curso da
vida.
Havia um penoso silêncio interior, embora se ouvisse, lá fora, o
patear dos cavalos e o tinir das armaduras, aliados ao rumor sinistro de
vozes praguejantes no ataque e na resistência desesperada do último
reduto.
André de Gioras parecia, porém, embriagado com a volúpia de sua
vingança e, mantendo o equilíbrio da assistência naquela hora trágica do
destino que a todos aguardava, com a palavra magnética e persuasiva
exclamou energicamente:
- Ítalo, compete ás tuas mãos a tarefa deste momento.
Da assistência compacta e inquieta destacou-se um homem,
aparentando quase quarenta anos de idade, surpreendendo o senador
pelos seus traços finos de patrício. Seus olhares encontraram-se e ele
supôs descobrir naquela alma um laço de afinidade estranha e
incompreensível.
Ítalo? Aquele nome não lhe recordava alguma coisa das
proximidades da sua Roma inesquecida? Por que motivo estaria ali aquele
homem, eviden403
HÁ DOIS MIL ANOS...
temente de sangue nobre, combatendo ao lado dos judeus amotinados e
intoxicados de ódio? Por sua vez, o verdugo, indicado pela voz soberana
de André, parecia inclinado à ternura e à piedade por aquele homem velho
e sereno, de mãos e pés amarrados ao poste da injúria, como que hesitava
sobre se devia cumprir o sinistro e despiedado desígnio do seu chefe.
Daí a minutos, surgia, de uma porta larga e sombria, um guerreiro
israelita, trazendo em ampla bandeja de bronze uma lâmina de ferro
incandescente, cuja ponta aguçada repousava entre brasas vivas.
Contemplando com interesse a enigmática figura de Ítalo, na
vitalidade da idade adulta, o senador, silencioso, não podia dissimular a
curiosidade em face do seu vulto ereto e delicado.
André, porém, gozando o quadro e percebendo a acurada atenção do
condenado, arrancou-o daquele estado de conjetura e surpresa,
ironizando:
- Então, senador, estais admirando o porte nobre de Ítalo?...
Lembrai-vos de que se os patrícios se dão ao luxo de possuir escravos
israelitas, os senhores da Judeia também apreciam os servos de tipo
romano. Aliás, sou obrigado a considerar que é sempre perigoso
guardarmos um escravo como este, na cidade, em vista da praga do
patriciado, hoje excessivo por toda a parte; mas eu consegui manter este
homem de trabalho no ambiente rural, até agora...
Públio Lentulus mal poderia decifrar o sentido oculto daquelas
irônicas palavras, não lhe sobrando tempo, ali, para qualquer
introspecção. Observou que André se calara, atendendo à urgência com
que devia ser levada a efeito a operação em perspectiva, de modo a não se
perder o vermelho incandescente da lâmina fatídica. Diante de muitos
olhares atônitos e desesperados, que não sabiam se fixavam a cena
macabra ou se atentavam para a ruidosa penetração das forças de Tito a
quebrarem naquele ins404
ROMANCE DE EMMANUEL
tante os obstáculos do último reduto, o algoz implacável entregou a Ítalo o
terrível instrumento do sacrifício.
- Ítalo - recomendou com a máxima energia -, este minuto é
precioso... Vamos queimar-lhe as pupilas, de modo a lhe proporcionarmos
uma sepultura de sombras eternas, dentro da vida.
O pobre homem, todavia, sensibilizado até às lágrimas, em face do
suplício que deveria infligir por suas mãos, parecia indeciso e titubeante.
- Senhor... - disse súplice, sem conseguir formular objeções.
- Porque hesitas?... - revidou André, tiranicamente, cortando-lhe a
palavra. - Será preciso o chicote para que me obedeças?
Ítalo tomou, então, da lâmina, humildemente. Aproximou-se de leve
do condenado cheio de resignação e de fortaleza interior. Antes do
instante supremo, seus olhares se encontraram, trocando vibrações de
simpatia recíproca. Públio Lentulus ainda lhe fixou o porte, tocado de
incontestável nobreza, esfacelada em suas linhas mais características
pelos trabalhos mais impiedosos e mais rudes; e tão grande foi a atração
que experimentou por aquele homem, fixado pelos seus olhos em plena
luz, pela vez derradeira, que chegou a se recordar, inexplicavelmente, do
seu pequenino Marcus, considerando que, se ele ainda vivesse num
ambiente tão hostil, deveria ter aquele porte e aquela idade.
As mãos de Ítalo, trêmulas e hesitantes, aproximaram-se dos seus
olhos exaustos, como se o fizessem numa doce atitude de carinho; mas o
ferro incandescente, com a rapidez do relâmpago, feriu-lhe as pupilas
orgulhosas e claras, mergulhando-as na treva para todo o sempre.
Nisso, observou a vítima que uma gritaria infernal reboava em toda a
sala.
Uma dor indefinível irradiava-se da queimadura, fazendo-lhe
experimentar atrozes padecimentos.
405
HÁ DOIS MIL ANOS...
Ele nada mais divisava, além das trevas espessas que lhe cobriam o
espírito, mas adivinhava que as forças vitoriosas chegavam tardiamente
para libertá-lo.
No meio dos ruídos ensurdecedores, André de Gioras ainda se
aproximou do condenado, falando-lhe ao ouvido:
- Poderia matar-te, senador infame, mas quero que vivas. Vou
revelar-te, agora, quem é Ítalo, teu algoz do último instante!...
Mas um golpe violento de espada, brandida por um legionário
romano, fizera o velho israelita cair ao solo sem sentidos, enquanto
certeira punhalada atingia Ítalo, indeciso na sua estupefação, que caiu
pesadamente junto do supliciado, abraçando--lhe os pés, num gesto
significativo e supremo.
Vozes amigas rodearam, então, Públio Lentulus, naquele ambiente
tumultuário. Desataram-lhe imediatamente os pés e as mãos, restituindolhe
a liberdade dos movimentos, enquanto outros legionários retiravam o
cadáver de Pompílio Crasso, com o peito vazio, num quadro pavoroso de
selvajaria sanguinosa.
Serenados os primeiros tumultos e guardando as mais penosas
dúvidas sobre as palavras reticenciosas do inimigo implacável, Públio
Lentulus, antes de ser levado pelo braço dos companheiros ao comando
das forças em operações, onde receberia os primeiros socorros,
recomendou que tratassem com o máximo respeito o cadáver de Ítalo, que
jazia ao lado de um montão de despojos sangrentos, no que foi atendido,
obtemperando-lhe, porém, um companheiro:
- Senador, antes de tudo, não vos esqueçais do vosso estado, que
está requerendo de todos nós os mais urgentes cuidados.
E como se quisesse provocar uma explicação espontânea do ferido,
quanto ao seu interesse pelo morto, acentuou delicadamente:
406
ROMANCE DE EMMANUEL
- Não foi esse homem quem vos infligiu o horrendo suplício?
À vista da pergunta inopinada e necessitando justificar sua atitude
perante os compatriotas que o ouviam, Públio exclamou com voz
pungente:
- Enganais-vos, meu amigo. Esse homem cujo cadáver agora não
vejo, era nosso conterrâneo, prisioneiro de muito tempo pela sanha
vingativa de um poderoso senhor de Jerusalém... Observai-lhe os traços
nobres e concordareis comigo!...
E enquanto se retirava amparado pelos amigos, a fim de receber
socorros imediatos e imprescindíveis, supôs haver cumprido um dever, em
pronunciando aquelas palavras, porque misteriosas vozes lhe falavam ao
coração, acerca daquele olhar generoso que pousara em seus olhos pela
última vez.
Vários dias esteve Jerusalém entregue ao saque e à desordem,
levados a efeito pela soldadesca do império, faminta de prazeres e
envenenada no vinho sinistro do triunfo. Todos os chefes da resistência
israelita foram presos, a fim de comparecerem a Roma para o último
sacrifício, em homenagem às festas comemorativas da vitória. Entre eles
incluía-se André de Gioras, que, restabelecido das escoriações recebidas,
representava um dos que deveriam ser exterminados para gáudio da
assistência festiva na Capital do império.
Depois da matança de onze mil prisioneiros feridos ou inválidos,
massacrados pelas legiões vencedoras; depois dos pavorosos
espetáculos da destruição e saque do templo magnífico, no qual Israel
julgava contemplar a sua obra eterna e divina para todas as gerações da
sua posteridade prolífica, voltou a caravana compacta dos vencidos e
vencedores, cheia de riquezas ilícitas e troféus maravilhosos, de modo a
exibir em Roma todos os ornamentos ilustrativos da vitória, entre
vibrações tumultuárias e cânticos de triunfo.
Numa galera confortável e tranqüila, viajou Públio Lentulus,
resignado dentro da noite cerrada
407
HÁ DOIS MIL ANOS...
da sua cegueira, rodeado de amigos prestimosos que tudo faziam por
minorar-lhe os sofrimentos morais.
Antes de chegar a Roma, vezes muitas cogitou da melhor maneira de
se dirigir diretamente a André, para arrancar-lhe a verdade e serenar as
dúvidas íntimas, quanto à identidade do escravo de tipo romano, que o
ferira para sempre, nos preciosos dons da vista. Ele, porém, agora, estava
cego, e para realizar esse desejo teria de empregar um largo processo de
providências, de colaboração estranha, e, assim, não havia atinado com a
melhor maneira de ouvir o judeu sem ferir as tradições de dignidade
pessoal, mantida em todos os tempos da vida pública.
Foi, ainda, nesse impasse que chegou, novamente, ao palácio do
Aventino, acompanhado de numerosos companheiros de labores políticos,
surpreendendo amarguradamente o coração da filha com a notícia trágica
e dolorosa da sua cegueira.
Ana, qual anjo fraterno, valorosa irmã de todos os infortunados,
sincera discípula do Cristianismo, esperou carinhosamente o seu senhor
junto de Flávia que exclamava cheia de incoercível desalento:
- Meu pai, meu pai, mas que desgraça!...
O velho patrício, todavia, no seu otimismo, confortava-lhe o espírito,
obtemperando:
- Filha, não te dês ao trabalho de conjeturar a fundo os problemas do
destino. Em todos os acontecimentos da vida temos de louvar os
soberanos desígnios dos céus e espero que te encorajes de novo, porque
somente assim viverei agora, junto de ti, em consolação afetuosa e
recíproca! Foi o próprio destino que me afastou compulsoriamente das
lides do Estado, a fim de viver doravante somente por ti.
Abraçaram-se então efusivamente, fundiram-se em beijos do mesmo
infortúnio, vibrações de duas almas presas aos mesmos padecimentos.
408
ROMANCE DE EMMANUEL
Públio Lentulus, porém, embora o necessário descanso, e apesar da
cegueira que lhe impossibilitava as iniciativas, não perdeu a esperança de
ouvir a palavra do inimigo implacável, ainda uma vez, e, para isso,
aguardou o dia ansiosamente esperado pelo povo romano, das soberanas
festas do triunfo.
Convém acentuar que o velho senador foi conduzido à cidade
imediatamente, em virtude da sua especialíssima situação; mas o
vencedor e as suas legiões infindáveis entrariam em Roma com todos os
faustosos protocolos dos triunfadores, de conformidade com os
numerosos regulamentos da própria antiga República.
No dia aprazado, toda a Capital, com a sua população de um milhão
e meio de habitantes, aproximadamente, aguardava as magníficas
comemorações da vitória.
Desde as primeiras horas do dia, começaram a grupar-se ás portas
da cidade as legiões vencedoras, desarmadas, vestindo delicadas túnicas
de seda, ostentando soberbas auréolas de louro. Transpondo as portas da
cidade, sob os aplausos estrondosos de multidões sem fim, foi-lhes
oferecido esplêndido banquete, presidido pelo próprio imperador e seu
filho.
Vespasiano e Tito, logo após as cerimônias do Senado, no Pórtico
de Otávia, encaminharam-se para a Porta Triunfal. Ali, ofereceram um
sacrifício aos deuses e tomaram os símbolos do triunfo nas aparatosas
festividades imperiais. Realizada essa cerimônia, pôs-se em marcha o
grande cortejo, ao qual Públio Lentulus não faltou, com a secreta intenção
de ouvir a palavra reveladora do chefe prisioneiro, cujo cadáver, depois
dos sacrifícios daquele dia, seria atirado às águas do Tibre, de acordo com
as tradições vigentes.
Todos os troféus das batalhas sanguinolentas e todos os vencidos,
em número considerável, eram levados igualmente em procissão, na festa
indescritível.
409
HÁ DOIS MIL ANOS...
À frente do cortejo imenso, seguia incalculável quantidade de obras
de ouro puro, enfeitadas de cores variadas e berrantes, e, logo após,
pedras preciosas em número incontável, não só em coroas de fulgurante
beleza, como também em estofos que maravilhavam os espectadores pela
variedade, sendo de notar que todos esses tesouros eram carregados por
jovens legionários trajando túnicas de púrpura, com graciosos ornamentos
dourados.
Depois da exibição dos tesouros conquistados pelo triunfador,
vinham, às centenas, as estátuas dos deuses, talhadas em marfim, em
ouro, em prata, de tamanhos prodigiosos.
Em seguida aos deuses, todo um exército de animais, das mais
variadas espécies, entre os quais se distinguiam numerosos dromedários
e elefantes cobertos de magníficas pedrarias.
Acompanhando os animais, a multidão compacta e acabrunhada dos
prisioneiros vulgares, exibindo sua miséria e olhares tristes, procurando
ocultar dos espectadores impiedosos e irreverentes os ferros pesados que
os manietavam.
Após os prisioneiros sucumbidos, passavam os simulacros das
cidades vencidas e humilhadas, confeccionados com grande esmero,
sustentados nos ombros de soldados numerosos, semelhantes aos
modernos carros alegóricos das festas carnavalescas. Havia
representações de todas as cidades destruídas e saqueadas, de batalhas
vitoriosas, sem faltar o arrasamento dos campos, a queda de muralhas e
os incêndios devastadores.
Depois desses símbolos, eram os despojos riquíssimos dos povos
vencidos e das cidades conquistadas, principalmente os de Jerusalém,
carregados com muito desvelo pelos legionários. Sob os aplausos
gritantes e irreverentes da turba que se apinhava por toda a parte,
desfilaram as estátuas representando as figuras de Abraão e Sara, bem
como de todas as personalidades reais da família de David, e mais todos
os objetos sagrados do famoso
410
ROMANCE DE EMMANUEL
templo de Jerusalém, tais a mesa dos Pães de Proposição, feita de ouro
maciço, as trombetas do Jubileu, o castiçal de ouro com sete braços, o'
paramentos de alto valor intrínseco, os véus sagrados do Templo, e, por
fim, a Lei dos judeus, que seguia atrás de todos os despojos materiais,
pilhados pelas forças triunfadoras. Cada objeto era carregado em andores
preciosos e bem ornamentados, ao ombro dos legionários romanos
coroados de louros.
Após os textos da Lei, seguia Simão, o desventurado chefe supremo
de todos os movimentos da resistência de Jerusalém, acompanhado dos
seus três auxiliares diretos, inclusive André de Gioras. Todos esses chefes
da longa e desesperada resistência vestiam de preto e caminhavam
solenemente para o sacrifício, depois de exibidos em todas as
comemorações festivas do triunfo.
Em seguida, vinham os carros soberbos e magníficos dos
triunfadores. Após a passagem deslumbrante de Vespasiano, desfilava
Tito num oceano de púrpura, de sedas e de vermelhão, simbolizando o
próprio Júpiter, na embriaguez da sua vitória.
No séquito de honra, passava igualmente o senador valetudinário e
cego, não mais pelo prazer das homenagens, mas com o secreto desejo de
ouvir a palavra de André, antes do trágico momento em que o seu corpo
balançasse sobre as águas lodosas do Tibre, no instante da consumação
do último suplício, sob os aplausos delirantes do povo.
Após os carros imperiais dos vencedores e seus áulicos mais
íntimos, vinha o exército compacto, entoando os hinos da vitória, enquanto
todas as ruas e praças, foros e pórticos, terraços e janelas, se pejavam de
incalculáveis multidões curiosas.
O cortejo movimentou-se solenemente, desde a Porta Triunfal até ao
Capitólio. Longas horas foram gastas no trajeto, através do sinuoso
caminho, porquanto a festividade era consumada de molde a levar seus
esplendores pelos recantos mais aristocráticos do patriciado romano.
411
HÁ DOIS MIL ANOS...
Em dado momento, todavia, antes de se elevar à colina, todo o
cortejo parou e os olhos ansiosos da multidão convergiram para Simão e
seus três companheiros, auxiliares diretos da sua chefia na resistência da
cidade famosa.
Públio Lentulus, embora cego, mas afeito ao tradicionalismo
daquelas comemorações, compreendeu que era chegado o instante
supremo.
Em virtude do seu caso especialíssimo e considerando a deferência que a
autoridade julgava dever-lhe, o imperador preocupava-se com a sua
situação no cortejo, recomendando ao filho, Domiciano, atender a
quaisquer providências de que viesse a precisar em tais circunstâncias.
Naquele momento, debaixo das vibrações ruidosas do delírio
popular, procedia-se ao flagício de Simão, diante de toda a Roma
embriagada e vitoriosa, enquanto André de Gioras e os dois companheiros
eram conduzidos à Prisão Mamertina, onde aguardariam o chefe, após a
flagelação, para a morte em conjunto, de maneira que os cadáveres
pudessem ser arrastados através das Gemônias e, sob as vistas do povo,
atirados às correntes do Tibre.
De alma ansiosa, mas disposto a realizar seus desígnios, o senador
chamou o príncipe a cuja assistência fora recomendado, expressando-lhe
o desejo de dirigir a palavra a um dos prisioneiros, em particular e em
condições secretas, no que foi imediatamente atendido.
Domiciano tomou-lhe do braço com atenção e, conduzindo-o a uma
dependência da prisão sinistra, determinou a vinda de André a um
cubículo isolado e secreto, conforme o desejo de Públio, aguardando o fim
da entrevista numa sala próxima, juntamente com alguns guardas, tão logo
penetrou o condenado para o interrogatório do antigo político do Senado.
Defrontando-se, os dois inimigos tiveram estranha sensação de malestar.
Públio Lentulus não mais podia vê-lo, mas se os seus olhos já não ti412
ROMANCE DE EMMANUEL
nham expressão emotiva, crestadas para sempre as pupilas claras e
enérgicas, seu perfil ereto manifestava as emoções que o dominavam.
- Senhor André - exclamou o senador, profundamente emocionado -,
contra todos os meus hábitos provoquei este encontro secreto, de modo a
esclarecer minhas dúvidas sobre as palavras reticenciosas em Jerusalém,
no dia em que consumastes vossas impiedosas determinações a meu
respeito. Não quero, agora, entrar em pormenores sobre a vossa atitude,
mas tão somente informar-vos, neste momento em que a justiça do
Império vos toma à sua conta, que tudo fiz por devolver-vos o filho
prisioneiro, cumprindo um dever de humanidade, ao receber as vossas
súplicas. Lamento que as minhas providências tardias não alcançassem o
efeito desejado, fermentando tão violenta odiosidade no vosso coração.
Agora, porém, não mais ordeno. Um cego não pode determinar
providências de qualquer natureza, em face das penosas injunções da sua
própria vida, mas solicito o vosso esclarecimento, sobre a personalidade
do escravo que me crestou a vista para sempre!...
André de Gioras estava igualmente abatidíssimo na sua decrepitude
enfermiça. Comovido pela atitude daquele pai humilhado e infeliz e
fazendo o íntimo retrospecto dos seus atos criminosos, naquelas horas
supremas de sua vida, respondeu extremamente compungido:
- Senador Lentulus, a hora da morte é diferente de todas as outras
que o destino concede à nossa existência à face deste mundo... É por isso,
talvez, que sinto o meu ódio agora transformado em piedade, avaliando o
vosso sofrimento amargo e rude. Desde que fui preso, venho considerando
os erros da minha vida criminosa... Trabalhando no Templo e vivendo para
o culto da Lei de Moisés, só agora reconheço que Deus concede liberdade
de ação a todos os seus filhos, mormente aos seus sacerdotes, tocandolhes,
porém, a cons413
HÁ DOIS MIL ANOS...
ciência, no momento da morte, quando nada mais resta senão a
apresentação da alma falida, diante de um tribunal a que ninguém pode
mentir ou subornar!... Sei que é tarde para reagir no caminho percorrido, a
fim de refazer os nossos atos; mas um sentimento novo me faz falar-vos
aqui com a sinceridade do coração, que, acicatado pelo julgamento divino,
já não pode enganar a ninguém.
Há quase quarenta anos, vossa austeridade orgulhosa determinou a
prisão do meu único filho, remetendo-o impiedosamente para as galeras, e
debalde implorei a vossa demência de homem público, para o meu espírito
desamparado... Das galeras, contudo, meu pobre Saul foi remetido para
Roma, onde foi vendido, miseravelmente, num mercado de escravos, ao
Senador Flamínio Severus...
Nesse instante, o cego, que escutava atenta e eminentemente
emocionado, ao identificar, naquela narrativa, o algoz da filha,
interrompeu-a perguntando:
- Flamínio Severus?
- Sim, era também, como vós, um senador do Império.
Profundamente emocionado, ao ligar os fatos dolorosos de sua
família à pessoa do antigo liberto, mas necessitando de todas as energias
morais para dominar-se, o senador recalcou no íntimo a sua amargura,
conservando-se em atitude de expressivo silêncio, enquanto o condenado
prosseguia:
- Saul, todavia, foi feliz... Abraçou a liberdade e fez fortuna, voltando
de vez em quando a Jerusalém, onde me ajudou a prosperar; mas, devo
revelar-vos que, não obstante os textos da Lei por mim pregada muitas
vezes, que nos manda desejar ao próximo o que desejaríamos para nós
mesmos, não cruzei os braços ante a vossa arbitrariedade criminosa,
jurando vingar-me a qualquer preço; para isto, numa noite tranqüila, roubei
o vosso pequenino Marcus na vossa residência de Cafarnaum, de
cumplicidade com uma de vossas
414
ROMANCE DE EMMANUEL
servas, que mais tarde tive de envenenar, para que não viesse a revelar o
segredo e tolher meus sinistros propósitos, quando a vossa ansiedade
paterna instituiu, em Jerusalém, o prêmio de um Grande Sestércio a quem
descobrisse o paradeiro do pequenino... Lembrareis, por certo, da criada
Sêmele, que morreu repentinamente em vossa casa...
Enquanto André do Gioras se detinha na triste confissão que lhe
tocava as fibras mais íntimas da alma, representando cada palavra um
estilete de amargura a lhe retalhar o coração, Públio Lentulus chegava
tardiamente ao conhecimento de todos os fatos, recordando os
angustiosos martírios da companheira, como esposa caluniada e mãe
carinhosa.
Impressionado, porém, com o seu silêncio doloroso, André
continuava:
- Pois bem, senador; obedecendo aos meus sentimentos
condenáveis, raptei vosso filhinho, que cresceu humilhado nos mais rudes
trabalhos da lavoura... aniquilei-lhe a inteligência... favoreci-lhe o ingresso
nos vícios mais desprezíveis, pelo prazer diabólico de humilhar um
romano inimigo, até que culminei na minha vindita em nosso encontro
inesperado! Mas, agora, estou diante da morte e não sei enxergar mais a
nossa situação, senão como pais desventurados... Sei que vou
comparecer breve no tribunal do mais íntegro dos juízes, e, se vos fosse
possível, eu desejava que me désseis um pouco de paz com o vosso
perdão!
O velho senador do Império não saberia explicar as suas profundas
dores, ouvindo aquelas revelações angustiosas e amargas. Ouvindo
André, sentia ímpetos de perguntar pelo filhinho em criança, por suas
tendências, pelas suas aspirações da mocidade; desejava inteirar-se dos
seus trabalhos, das suas predileções, mas cada palavra daquela confissão
amargurosa era uma punhalada nos seus sentimentos mais sagrados.
Qual estátua muda do infortúnio, ainda ouviu o prisioneiro repetir, quase
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HÁ DOIS MIL ANOS...
em lágrimas, arrancando-o das suas divagações sombrias e tormentosas:
- Senador - insistia ele, suplicando tristemente -, perdoai-me! Quero
compreender o espírito da minha Lei, apesar do último instante!... Relevai
meu crime e dai-me forças para comparecer diante da luz de Deus!...
Públio ouvia-lhe a voz súplice, enquanto uma lágrima de dor
indescritível rolava dos seus olhos tristes e apagados.
Perdoar? Mas, como? Não fôra ele, Públio, o ofendido e a vítima de
uma existência inteira? Singulares emoções abalavam-lhe o íntimo,
enquanto numerosos soluços lhe morriam na garganta opressa.
Diante dele estava o inimigo implacável que procurara em vão, por
consecutivos e longos anos de infelicidade. Mas, na sua introspecção,
sabia entender, igualmente, as próprias culpas, recordando os excessos
da sua severidade vaidosa. Também ele ali estava como um cadáver
ambulante, no seio das sombras espessas. De que valeram as honrarias e
o orgulho desenfreado? Todas as suas esperanças de ventura estavam
mortas. Todos os seus sonhos aniquilados. Senhor de fortuna
considerável, não viveria mais, no mundo, senão para carregar o esquife
negro das ilusões despedaçadas. Todavia, seu íntimo se recusava ao
perdão da hora extrema. Foi então que se lembrou de Jesus e da sua
doutrina de amor e piedade pelos inimigos. O Mestre de Nazaré perdoara a
todos os seus algozes e ensinara aos discípulos que o homem deve
perdoar setenta vezes sete vezes. Recordou, igualmente, que, por Jesus,
sua esposa imaculada morrera nas ignomínias do circo infamante; por
Jesus voltara FIamínio do reino das sombras, para incliná-lo, um dia, ao
perdão e à piedade...
Os ruídos de fora denunciavam que a hora derradeira de André
estava próxima. O próprio Simão já caminhava vacilante e ensangüentado,
depois do
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ROMANCE DE EMMANUEL
açoite, para o interior da prisão, epilogando o suplício.
Foi então que Públio Lentulus, abandonando todas as tradições de
orgulho e vaidade, sentiu que no íntimo dalma brotava uma fonte de linfa
cristalina. Copiosas lágrimas desceram-lhe às faces rugosas e macilentas,
das órbitas sem expressão, dos olhos mortos e, como se desejasse fitar o
inimigo com os olhos espirituais, a fim de mostrar-lhe a sua comiseração,
exclamou em voz firme:
- Estais perdoado...
Voltando imediatamente à sala contígua e sem esperar qualquer
resposta, compreendeu que era chegada a última hora do inimigo.
Daí a minutos, o cadáver de André de Gioras era arrastado às
Gemônias, para ser atirado ao Tibre silencioso.
O senador nada mais percebeu do restante das numerosas
cerimônias no Templo de Júpiter.
O cortejo era agora iluminado pela claridade de mil fachos
colocados pelos escravos em quarenta elefantes, por ordem de Tito, ao
cair das primeiras sombras da noite, mas o senador, acabrunhado nos
seus padecimentos morais, regressava em liteira ao palácio do Aventino,
onde se fechou nos seus apartamentos particulares, alegando grande
cansaço.
Tateando na sua noite, abraçou-se à cruz de Simeão, que lhe fôra
deixada pela crença da esposa, molhando-a com as lágrimas da sua
desventura.
Em meditações profundas e dolorosas, pôde então compreender que
Lívia vivera para Deus e ele para César, recebendo ambos compensações
diversas na estrada do destino. E enquanto o jugo de Jesus fôra suave e
leve para sua mulher, seu altivo coração estava preso ao terrível jugo do
mundo, sepultado nas suas dores irremediáveis, sem claridade e sem
esperanças.
417
IX
Lembranças amargas
Logo após os penosos acontecimentos de 70 e de conformidade
com os desejos de Flávia, o senador passou a residir na vivenda
confortável que ele possuía em Pompeia, longe dos bulícios da Capital. Ali
poderia entregar-se melhor às suas meditações.
Para lá transportara então, o velho político, todo o seu volumoso
arquivo, bem como as lembranças mais carinhosas e mais importantes da
sua vida.
Dois libertos gregos, extremamente cultos, foram contratados para
os trabalhos de escrita e leitura, e assim é que, no seu retiro, se mantinha
ao corrente de todas as novidades políticas e literárias de Roma.
Nesses tempos recuados, quando o homem se encontrava ainda
longe dos benefícios preciosos da invenção de Gutenberg, os manuscritos
romanos eram raros e sumamente disputados pelas elites intelectuais da
época. Uma casa editora dispunha, quase sempre, de uma centena de
escravos calígrafos, inteligentes, que confeccionavam mais ou menos mil
livros por ano.
418
ROMANCE DE EMMANUEL
Públio, além disso possuía em Roma sinceras e numerosas
amizades ao seu serviço, recebendo em Pompeia todos os ecos dos
acontecimentos da cidade que lhe absorvera as melhores energias da vida.
Amiudadamente, recebia também notícias de Plínio Severus, por
intermédio de amigos desvelados, confortando-se com as informações
sobre sua conduta, agora digna, porquanto, pelos méritos conquistados
nas Gálias, fôra transferido, depois de 73, para Roma, onde, pela correção
do proceder, embora tardiamente, conquistara posição respeitável e
brilhante, prosseguindo nas tradições da probidade paterna, nos cargos
administrativos do Império.
Plínio, todavia, não mais voltara a procurar a esposa nem aquele que
o destino o compelia a considerar como um pai dedicado e carinhoso,
embora não ignorasse o supremo infortúnio dos seus familiares. No
íntimo, o antigo oficial romano não desdenhava a idéia de regressar ao
seio dos entes queridos; contudo, desejava fazê-lo em condições de
dissipar todas as dúvidas quanto no considerável esforço próprio, de sua
regeneração. Galgando postos de confiança na administração dos
Flavianos, queria uma posição de maiores vantagens morais, de maneira a
levar aos seus íntimos a certeza da sua reabilitação espiritual.
Corria o ano de 78, na placidez das paisagens formosas da
Campânia. Enquanto Tibur representava uma estação de cura e descanso
regenerador para os romanos mais ricos, Pompeia era bem a cidade dos
romanos mais sadios e mais felizes. Em suas vias públicas encontravamse,
a cada passo, os mármores soberbos e o bom gosto das mais belas
construções da capital aristocrática do Império. Em seus templos
suntuosos, aglomeravam-se assembléias brilhantes, de patrícios educados
e cultos, que se instalavam na linda cidade, povoada de cantores e poetas,
ao pé do Vesúvio, e iluminada por
419
HÁ DOIS MIL ANOS...
um céu de maravilhas, cheio de ridente sol ou bordado de estrelas
cintilantes.
Públio Lentulus, agora, sobremaneira apreciava a palavra simples e
convincente de Ana, que envelhecera ao lado de Flávia, qual bela figura de
marfim antigo. Era de lhe ver o interesse, a comoção, a alegria ao ouvi-la
sobre a excelência dos princípios cristãos, quando se entretinham em
recordações da Judeia distante.
Nessas amáveis palestras, entre os três, logo após o jantar, discutiase
a figura do Cristo e as sublimadas ilações da sua doutrina, conseguindo
o senador, pela força das circunstâncias, meditar melhor os grandiosos
postulados do Evangelho, ainda fragmentário e quase desconhecido, para
ligar os princípios generosos e santos do Cristianismo à personalidade do
seu divino fundador.
Longas horas ficavam ali, no terraço amplo, sob a luz branda das
estrelas e usufruindo a carícia das brisas da noite, que eram como que
bafejos de inspirações celestes, aquelas três criaturas, em cujas frontes se
vincavam as experiências dos anos.
Por vezes, Flávia fazia um pouco de música, que lhe saía da harpa
como vibrante gemido de dor e de saudade, alcançando o coração paterno
mergulhado no abismo das reminiscências dolorosas. É que a música dos
cegos é sempre mais espiritualizada e mais pura, porque, na sua arte, fala
a alma profundamente, sem as emoções dispersas dos sentidos materiais.
Uma noite, obedecendo ao hábito de muitos anos, vamos encontrar
aquelas três criaturas no espaçoso terraço da vila de Pompeia, em doces
rememorações.
Havia mais de sete anos que quase todas as palestras versavam, ali,
sobre a personalidade do Messias e a excelsa pureza da sua doutrina,
observada, antes de tudo, a precisa discrição, porquanto os adeptos do
Cristianismo continuavam perseguidos, embora com menos crueldade.
420
ROMANCE DE EMMANUEL
Em todo caso, invariavelmente, a conversação era de enfermos e de
velhos, sem provocar o interesse dos amigos mais moços e mais felizes.
Depois de algumas lembranças e comentários de Ana, a respeito da
angustiosa tarde do Calvário, exclamava o velho senador em tom
convencido:
- De mim para comigo, tenho a certeza de que Jesus ficará para
sempre no mundo, como o mais elevado símbolo de consolação e fortaleza
moral para todos os sofredores e para todos os tristes!...
Desde os primeiros dias de minha cegueira material procuro,
intimamente, compreender-lhe n grandeza e não consigo apreender toda a
extensão da sua excelsitude e dos seus ensinos.
Lembro-me, como se fosse ontem, do crepúsculo formoso em que o
vi pela primeira vez, ao longo das margens do Tiberíades...
- Eu também - murmurou Ana - não consigo olvidar aquelas tardes
deliciosas e claras em que todos os servos e sofredores de Cafarnaum nos
reuníamos à margem do grande lago, esperando o suave enlevo das suas
palavras.
E como se estivesse contemplando o desfile de suas recordações
mais queridas, com os olhos da imaginação, a velha serva continuava:
- O Mestre apreciava a companhia de Simão e dos filhos de Zebedeu
e, quase sempre, era em uma de suas barcas que ele vinha, solicito,
atender às nossas rogativas...
- O que mais me assombrava - dizia Públio Lentulus, impressionado
- é que Jesus não era, que se soubesse, um doutor da Lei ou sacerdote
formado pelas escolas humanas. Sua palavra, entretanto, estava como que
ungida de uma graça divina. O olhar sereno e indefinível penetrava o fundo
da alma e o sorriso generoso tinha a complacência de quem, possuindo
toda a verdade, sabia compreender e perdoar os erros humanos. Seus
ensinos, diariamente meditados por mim, nestes
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HÁ DOIS MIL ANOS...
últimos anos, são revolucionários e novos, pois arrasam todos os
preconceitos de raça e de família, unindo as almas num grande amplexo
espiritual de fraternidade e tolerância. A filosofia humana jamais nos disse
que os aflitos e pacíficos são bem-aventurados no céu; entretanto, com as
suas lições renovadoras, modificamos o conceito de virtude, que, para o
Deus soberano e misericordioso das Alturas, não está no homem mais rico
e poderoso do mundo, mas no mais justo e mais puro, embora humilde e
pobre.
Sua palavra compassiva e carinhosa espalhou ensinamentos que
somente hoje posso compreender, na sombra espessa e triste dos meus
sofrimentos..
- Meu pai - perguntou Flávia Lentúlia, extremamente interessada na
conversação -, chegastes a ver o profeta muitas vezes?...
- Não, filha. Antes do dia nefasto de sua morte infamante na cruz,
somente o vi uma vez, ao tempo em que eras pequenina e doente. Isso
bastou, contudo, para que eu recebesse, nas suas palavras sublimes,
luminosas lições para toda a vida. Só hoje entendo as suas exortações
amigas, compreendendo que a minha existência foi bem uma oportunidade
perdida!... Aliás, já naquele tempo, sua profunda palavra me dizia que eu
defrontava, no minuto do nosso encontro, o maravilhoso ensejo de todos
os meus dias, acrescentando, na sua extraordinária benevolência, que eu
poderia aproveitá-lo naquela época ou daí a milênios, sem que me fosse
possível apreender o sentido simbólico de suas palavras...
- Todas as concessões de Jesus se esteavam na Verdade santificada
e consoladora - acrescentou Ana, agora gozando de toda a intimidade com
os seus senhores.
- Sim - exclamou Públio Lentulus, concentrado nas suas
reminiscências -, minhas observações pessoais autorizam-me a crer da
mesma forma.
422
ROMANCE DE EMMANUEL
Se eu tivesse aproveitado a exortação de Jesus naquele dia, talvez
houvesse alijado mais de metade das provações amargas que a Terra me
reserva... Se houvesse buscado compreender sua lição de amor e
humildade, teria procurado André de Gioras, pessoalmente, reparando o
mal que lhe havia feito, com a prisão do filho ignorante, demonstrando-lhe
o meu interesse individual, sem confiar tão somente nos funcionários
irresponsáveis que se encontravam a meu serviço... Guiado por esse
interesse, teria encontrado Saul facilmente, pois Flamínio Severus seria,
em Roma, o confidente dos meus desejos de reparação, evitando dessa
maneira a dolorosa tragédia da minha vida paternal.
Se houvesse entendido bastante a sua caridade, na cura de minha
filha, teria conhecido melhor o tesouro espiritual do coração de Lívia,
vibrando com o seu espírito na mesma fé, ou caindo juntamente com ela
na arena ignominiosa do circo, o que seria suave, em comparação com as
lentas agonias do meu destino; teria sido menos vaidoso e mais humano,
se lhe houvesse entendido a preceito a lição de fraternidade...
- Meu pai - exclamava, porém, a filha, de molde a confortar-lhe as
agruras do coração -, se Jesus é a sabedoria e a verdade, de qualquer
modo ele saberia compreender as razões da vossa atitude, sabendo que
fostes forçado pelas circunstâncias a manter esse ou aquele princípio em
vossa vida.
- Minha filha, nestes últimos anos - revidou Públio ponderadamente -
tenho a presunção de haver chegado as mais seguras conclusões a
respeito dos problemas da dor e do destino...
Acredito hoje, com a experiência própria que as atividades penosas
do mundo me ofertaram, que nós contribuímos, sobretudo, para agravar ou
atenuar os rigores da situação espiritual, nas tarefas desta vida.
Admitindo, agora, a existência de um Deus Todo-Poderoso, fonte de toda a
misericórdia e todo o amor, creio que a Sua Lei é a do bem
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HÁ DOIS MIL ANOS...
supremo para todas as criaturas. Esse código de solidariedade e de amor
deve reger todos os seres e, dentro dos seus dispositivos divinos, a
felicidade é o determinismo do céu para todas as almas. Toda vez que
caímos ao longo do caminho, favorecendo o mal ou praticando-o,
efetuamos uma intervenção indébita na Lei de Deus, com a nossa
liberdade relativa, contraindo uma dívida com o peso dos infortúnios...
Não me referindo aos meus atos pessoais, que agravaram as minhas
angustiosas dores íntimas, e considerando Jesus como medianeiro entre
nós e Aquele a quem a sua profunda palavra chamava Pai-Nosso, fico hoje
a pensar se não cometi um erro, forçando a sua misericórdia com a minha
súplica paternal, a fim de que continuasses a viver neste mundo, para o
nosso amor em família, quando eras pequenina!...
Flávia Lentúlia e Ana, que acompanhavam os raciocínios do
senador, desde muitos anos, lhe seguiam as conclusões morais, cheias de
surpresa, em face da facilidade íntima com que sabia aliar as lições
penosas do seu destino aos princípios pregados pelo profeta Nazareno.
- Na verdade, meu pai - disse Flávia Lentúlia, depois de longa pausa -
, tenho a impressão de que as forças divinas haviam deliberado arrebatarme
do mundo, considerando as dores penosas que me esperavam na
estrada escabrosa do meu destino desventurado...
- Sim - ajuntou o senador, cortando-lhe a palavra -, ainda bem que
me compreendeste. A vida e o sofrimento nos ensinam a entender melhor
o plano das determinações de ordem divina.
Antigos iniciados das religiões misteriosas do Egito e da Índia
acreditam que voltamos várias vezes à Terra, noutros corpos!...
Nesse instante, o velho patrício fez uma pausa.
Lembrou-se dos seus antigos sonhos, quando, em se vendo com a
indumentária de Cônsul nos
424
ROMANCE DE EMMANUEL
tempos de Catilina, infligia aos inimigos políticos o suplício da cegueira, a
ferro incandescente, quando se chamava Públio Lentulus Sura.
Nos seus pensamentos caia como que uma torrente de ilações
novas e sublimadas, como se fossem renovadoras inspirações da
sabedoria divina.
Mas, depois de alguns instantes, como se o relógio da imaginação
houvesse parado alguns minutos. para que o coração pudesse escutar o
tropel das lembranças no deserto do seu mundo subjetivo, murmurava,
confortado, na posse tardia do roteiro do seu amargurado destino:
- Hoje creio, minha filha, que, se as energias sábias do céu haviam
decidido a tua morte, em pequenina - determinação essa que eu
possivelmente contrariei com a minha súplica angustiosa de pai,
descoberta em silêncio pelo Messias de Nazaré no recôndito do meu
orgulhoso e infeliz coração - e que deverias ficar livre do cárcere que te
prendia, de modo a te preparares melhor para a resignação, para a
fortaleza e para os sofrimentos. Certamente, renascerias mais tarde e
encontrarias as mesmas circunstâncias e os mesmos inimigos, mas terias
um organismo mais forte para resistir aos embates penosos da existência
terrestre.
Reconhecemos hoje, portanto, que há uma lei soberana e
misericordiosa a que devemos obedecer, sem interferir no seu mecanismo
feito de misericórdia e sabedoria...
Quanto a mim, que tive organismo resistente e fibra espiritual
saturada de energia, sinto que, em outras vidas, procedi mal e cometi
crimes nefandos.
Minha atual existência teria de ser um imenso rosário de infinitas
amarguras, mas vejo tardiamente que, se houvesse ingressado no
caminho do bem, teria resgatado um montão de pecados do pretérito
obscuro e delituoso. Agora entendo a lição do Cristo como ensinamento
imortal da humildade e do amor, da caridade e do perdão - caminhos
425
HÁ DOIS MIL ANOS...
seguros para todas as conquistas do espírito, longe dos círculos
tenebrosos do sofrimento!
E lembrando o sonho que relatara a Flamínio, nos tempos idos,
concluía:
- A expiação não seria necessária no mundo, para burilamento da
alma, se compreendêssemos o bem, praticando-o por atos, palavras e
pensamentos. Se é verdade que nasci condenado ao suplício da cegueira,
em tão trágicas circunstâncias, talvez tivesse evitado a consumação desta
prova, se abandonasse o meu orgulho para ser um homem humilde e bom.
Um gesto de generosidade de minha parte teria modificado as
íntimas disposições de André de Gioras; mas, a realidade é que, não
obstante todos os preciosos alvitres do Alto, continuei com o meu
egoísmo, com a minha vaidade e com a minha criminosa impenitência.
Agravei, desse modo, meus débitos clamorosos perante a Justiça Divina, e
não posso esperar magnanimidade dos juizes que me aguardam...
O velho Públio Lentulus tinha uma lágrima dolorosa no canto dos
olhos apagados, mas Ana. que ansiosa lhe escutara as palavras e
conceitos, e que se regozijava intimamente verificando que o orgulhoso
senhor atingira as mais justas conclusões de ordem evangélica, ilações a
que também ela havia chegado nas meditações da velhice, esclarecia,
bondosamente, como se as suas afirmativas simples e incisivas
chegassem no momento justo para consolação de todos:
- Senador - todas as vossas observações são criteriosas e justas.
Essa lei das vidas múltiplas, em favor do nosso aprendizado nas lutas
penosas do mundo, eu a aceito plenamente, pois, nas suas divinas lições,
Jesus asseverou que ninguém poderá penetrar o reino dos céus sem
renascer de novo. Presumo, todavia, apesar da vossa cegueira material e
dos vossos padecimentos, que sei compreender em toda a sua angustiosa
intensidade, deveis
426
ROMANCE DE EMMANUEL
trazer a alma plena de crença e de esperanças no futuro espiritual, porque
também o Cristo nos afiançou que Nosso Pai não quer que se perca uma
só de suas ovelhas!...
Públio Lentulus sentiu que uma força inexplicável lhe brotava no
íntimo, como se fôra manancial desconhecido, de estranho conforto,
preparando-o para enfrentar dignamente todos os amargores.
- Sim - murmurou de leve -, sempre Jesus!... Sempre Jesus!... Sem
ele e sem os ensinos de suas palavras que nos enchem de coragem e de fé
para alcançar um reino de paz no porvir da alma, não sei bem o que seria
das criaturas humanas, agrilhoadas ao cárcere dos sofrimentos
terrestres... Sete anos de padecimentos infinitos na soledade dos meus
olhos mortos, figuram-se-me sete séculos de aprendizado cruel e
doloroso! Somente assim, porém, poderia chegar a entender a lição do
Crucificado!
O velho patrício, todavia, ao pronunciar a palavra "crucificado",
reconduziu o pensamento a Jerusalém, na Páscoa do ano 33. Recordou
que tivera em mãos o processo do Emissário Divino e, só então, ponderou
a tremenda responsabilidade em que se vira envolvido naquele dia
inolvidável e doloroso, exclamando depois de longa pausa:
- E pensar que, para um espírito como aquele, não houve sequer um
gesto decisivo de defesa, da nossa parte, no angustioso momento da cruz
infamante... . A mim, que agora vivo tão somente das minhas recordações
amargas, parece-me vê-lo ainda à frente dos meus olhos, com os tristes
estigmas da flagelação!...
Nele, concentrava-se todo o amor supremo do céu para redenção
das misérias da Terra e, entretanto, não vi pessoa alguma trabalhar pela
sua liberdade, ou agir efetivamente em seu favor!...
- Menos alguém... - exclamou Ana, inopinadamente.
427
HÁ DOIS MIL ANOS...
Quem chegou a ter esse gesto nobre? - perguntou o velho cego,
admirado. - Não me constou que alguém o defendesse.
- É porque ignorastes, até hoje, que vossa digna consorte e minha
inesquecível benfeitora, atendendo aos nossos rogos, se dirigiu
imediatamente a Pôncio Pilatos, tão logo o triste cortejo havia saído da
corte provincial romana, para interceder pelo Messias de Nazaré,
injustamente condenado pela multidão enfurecida. Recebida pelo
governador no seu gabinete particular, foi em vão que a nobre senhora
implorou compaixão e piedade para o Divino Mestre.
- Então Lívia chegou a dirigir-se a Pilatos para suplicar por Jesus? -
perguntou o senador, interessado e perplexo, recordando aquela tarde
angustiosa da sua vida e rememorando as calúnias de Fúlvia, a respeito da
esposa.
- Sim - respondeu a serva -, por Jesus, seu coração magnânimo
desprezou todas as convenções e todos os preconceitos, não vacilando
em atender às nossas súplicas, tudo fazendo por salvar o Messias da
morte infamante!...
Públio Lentulus sentiu, então, grande dificuldade para externar seus
pensamentos, com a garganta sufocada de emoção, dentro de suas
amargas lembranças, e com os olhos mortos, marejados de lágrimas...
Ana, porém, recordou todos os pormenores daquele dia doloroso,
relatando suas passadas emoções, enquanto o senador e a filha lhe
escutavam a palavra, tomados de pranto no caminho da dor, da gratidão e
da saudade.
E era desse modo que, ao fim de cada dia, sob o céu brilhante e
perfumado de Pompeia, aquelas três almas se preparavam para as
realidades consoladoras da morte, dentro da claridade terna e triste das
lições amargas do destino, na esteira das recordações amigas.
428
X
Nos derradeiros minutos de Pompeia
Em radiosa manhã do ano de 79, toda a Pompeia despertou em
rumores festivos.
A cidade havia recebido a visita de um ilustre questor do Império e,
naquele dia, todas as ruas se movimentavam em alacridade barulhenta,
aguardando-se, para breves horas, as festas deslumbrantes do anfiteatro,
com que a administração desejava celebrar o evento, em meio da alegria
geral.
Para o velho senador Públio Lentulus, o acontecimento se revestia
de importância especial, porquanto o distinto hóspede de Pompeia lhe
trazia significativa mensagem, bem como honrosas deferências de Tito
Flavius Vespasiano, então imperador, na sucessão de seu pai.
Ainda mais.
No séquito do questor ilustre vinha, igualmente, Plínio Severus, em
plenitude de maturidade, totalmente regenerado e julgando-se agora
redimido no conceito da esposa e daquele que seu coração considerava
como pai.
429
HÁ DOIS MIL ANOS...
Nesse dia, enquanto Ana comandava, verbalmente, as atividades
domésticas nos preparativos da recepção, mobilizando escravos e servos
numerosos, Públio e filha se abraçavam comovidos, em face da surpresa
que o destino lhes reservara, embora tardiamente. Avisados por
mensageiros da caravana de patrícios ilustres, davam larga às emoções
mais gratas do espírito, na doce perspectiva de acolherem o filho pródigo,
tantos anos distante de seus braços amigos.
Antes do meio-dia, um deslumbramento de viaturas, de cavalos
ajaezados e de jóias faiscantes sobre vestiduras reluzentes se deparava às
portas da vila plácida e graciosa, provocando a admiração e o interesse
curioso das vizinhanças. E, em seguida, foi um turbilhão de abraços,
carinhos, palavras confortadoras e generosas.
Quase todos os patrícios, em excursão pela Campânia, conheciam o
senador e sua família, representando esse acontecimento um suave
encontro de corações.
Públio Lentulus abraçou Plínio, demoradamente, como se fizesse a
um filho bem-amado, que voltasse de longe e cuja ausência houvera sido
excessivamente prolongada. Experimentava no íntimo impulsos de
extravasão de afeto, que o seu coração dominou, para não provocar a
admiração injustificada dos circunstantes.
- Meu pai, meu pai! - disse o filho de FIamínio em tom discreto e
quase imperceptível aos seus ouvidos, quando lhe beijava a fronte
encanecida - já me perdoastes?
Ó filho, como tardaste tanto?!... Quero-te como sempre e que o céu
te abençoe!... - respondeu o velho cego, emocionado.
Daí a instante, após o doce encontro de Plínio e sua mulher,
exclamou o questor em meio do silêncio geral:
- Senador, honro-me em trazer-vos preciosa lembrança de César,
acompanhada de uma mensa430
ROMANCE DE EMMANUEL
gem de reconhecimento da alta administração política do Império, um dos
mais fortes e mais justos motivos de minha permanência em Pompeia, e
incumbo o nosso amigo Plínio Severus de vos entregar, neste momento,
estas relíquias que representam uma das mais significativas homenagens
do Império ao esforço de um dos seus mais dedicados servidores!...
Públio Lentulus sentia bem a suprema emoção daquela hora.
A homenagem do imperador, a carinhosa presença dos amigos, a
volta do genro aos seus braços paternos, representavam para o seu
coração uma alegria entontecedora.
Seus olhos, entretanto, nada podiam ver. Do seio da sua noite, ouvia
aqueles apelos generosos, como um desterrado da luz, de quem se
exumassem as recordações mais queridas e mais doces.
- Amigos - disse, enxugando uma lágrima furtiva nos olhos
apagados -, tudo isso é para mim a maior recompensa de uma vida inteira.
Nosso imperador é um espírito excessivamente generoso, porque a
verdade é que nada fiz para merecer o reconhecimento da pátria.
Minhalma, todavia, exulta convosco, meus patrícios, porque a nossa
reunião nesta casa é símbolo de união e trabalho, nos elevados encargos
do Império!...
Nesse instante, contudo, alguém lhe tomava as mãos
encarquilhadas, levando-as aos lábios úmidos, deixando, porém, nas
pequeninas conchas das rugas, duas lágrimas ardentes.
Plínio Severus, num gesto espontâneo, ajoelhara-se e, osculando-lhe
as mãos, dava expansão ao seu afeto e reconhecimento, ao mesmo tempo
que lhe fazia entrega da mensagem imperial que o velho senador não mais
podia ler.
Públio Lentulus chorava, sem poder pronunciar uma única palavra,
tal a emoção que lhe oprimia o íntimo, enquanto os circunstantes lhe
acom431
HÁ DOIS MIL ANOS...
panhavam as atitudes com os olhos rociados de pranto.
Nesse ínterim, o filho de Flamínio não mais se conteve e,
consagrando a sua regeneração espiritual, exclamava enternecido:
- Meu querido pai, não choreis, se aqui nos achamos todos para
compartilhar vossa alegria! Diante de todos os nossos amigos romanos,
com a homenagem do Império, eu vos entrego o meu coração regenerado
para sempre!... Se estais agora cego, meu pai, não o estais pelo espírito
que sempre procurou dissipar as sombras e remover tropeços do nosso
caminho!... Continuareis guiando os meus, ou, melhor, os nossos passos,
com as vossas antigas tradições de sinceridade e de esforço, na retidão
do proceder!... Voltareis comigo para Roma e, junto de vosso filho
reabilitado, organizareis novamente o palácio do Aventino... Serei, então,
para todo o sempre, uma sentinela do vosso espírito, para vos amar e
proteger!... Tomarei minha esposa a meu inteiro cuidado e, dia a dia,
tecerei para nós três uma auréola de venturas novas e indefiníveis, com os
milagres da minha afeição imorredoura! Em nossa casa do Aventino
florescerá uma alegria nova, porque hei-de prover todas as vossas horas
com o amor grande e santo de quem, conhecendo todas as duras
experiências da vida, sabe agora valorizar seus próprios tesouros!...
O velho senador, alquebrado pelos anos e pelos mais rudes
sofrimentos, conservava-se de pé, acariciando os cabelos do genro,
igualmente prateados pelos invernos da vida, enquanto pesadas lágrimas
rompiam a muralha da sua noite para enternecer o coração de todos, numa
angustiosa e indefinível emotividade. Flávia Lentúlia chorava, igualmente,
dominada por íntimas sensações de felicidade, ao cabo de tão longas e
desalentadas esperanças!... Alguns amigos desejavam quebrar a
solenidade dolorosa daquele quadro imprevisto, mas o próprio questor,
que chefiava a caravana de patrícios ilus432
ROMANCE DE EMMANUEL
tres, se ocultara num recanto, sensibilizado até às lágrimas.
Públio Lentulus, contudo, compreendendo que somente ele próprio
poderia modificar as disposições daquela paisagem sentimental, reagiu às
emoções, exclamando:
- Levanta-te, meu filho!... Nada fiz para me agradeceres de joelhos...
Porque me falas deste modo?... Voltaremos para Roma, sim, em breves
dias, pois todos os teus desejos são os nossos... regressaremos à nossa
casa do Aventino, onde, juntos, viveremos para relembrar o pretérito e
venerar a memória dos nossos antepassados!
E, depois de uma pausa, continuou, em exclamações quase
otimistas:
- Meus amigos, sinto-me comovido e grato pela gentileza e afeto de
todos vós! Mas, que é isso? Todos silenciosos? Lembrai-vos de que não
vos vejo senão através das palavras. E a festa de hoje?...
As exclamações do senador quebraram o silêncio geral, voltando-se
aos intensos ruídos de minutos antes. A torrente das palestras casava-se
ao tinir das taças de vinho, em seus pesados estilos da época.
Enquanto as visitas se reuniam no triclínio espaçoso para libações
ligeiras, Plínio Severus e a esposa trocavam confidências ternas, ora sobre
os projetos em perspectiva para os anos que ainda lhes restavam no
mundo, ora quanto às recordações dos dias lentos e amargurados do
passado distante.
Insistentes chamados, porém, requeriam a presença do questor e
comitiva, no local dos festejos.
O circo fôra preparado a rigor e não se perdera nenhuma
oportunidade para a realização das menores minudências próprias das
grandes festividades romanas.
E ao mesmo tempo que todos se despediam do senador e de sua
filha, num deslumbramento de
433
HÁ DOIS MIL ANOS...
felicidade mundana, Plínio Severus dirigia-se a Públio nestes termos,
depois de abraçar ternamente a companheira:
- Meu pai, levado pelas circunstâncias, sou compelido a acompanhar
o questor nas festividades populares, mas estarei de regresso em breves
horas, para ficar convosco um mês, de modo a tratarmos do nosso
regresso a Roma.
- Muito bem, meu filho - respondia o velho senador, sumamente
confortado -, acompanha os nossos amigos e representa-me junto das
autoridades. Dize a todos da minha emoção e do meu agradecimento
sincero.
A sós novamente, o senador sentiu que aquelas comoções
cariciosas e alegres eram, talvez, as últimas da sua vida. No velho peito, o
coração batia-lhe descompassado, como se pesada nuvem de
pensamentos tristes o envolvesse. Sim, a volta de Plínio aos seus braços
paternos era a alegria suprema da sua velhice desalentada. Sabia, agora,
que a filha poderia contar com o esposo, nas estradas do seu tormentoso
destino, e que a ele, Públio, somente competia aguardar a morte,
resignado. Ponderando as palavras afetuosas do filho de FIamínio e os
seus apelos ao passado remoto, Públio Lentulus considerou, intimamente,
que era muito tarde para regressar ao Aventino e que a volta a Roma
apenas devia significar, para o seu espírito precito, o símbolo da sepultura.
Em pleno espetáculo, Plínio Severus, já no outono da vida,
arquitetava os planos de futuro. Procuraria resgatar todas as faltas
antigas, perante os seus parentes afetuosos e queridos; assumiria a
direção de todos os negócios do velho pai pelo coração, aliviando-o de
todas as angustiosas preocupações da vida material.
De vez em quando, os aplausos da multidão lhe interrompiam os
devaneios. A maioria da população de Pompeia ali estava em plena festa,
ovacionando os triunfadores. Gente de toda a re434
ROMANCE DE EMMANUEL
dondeza e muito particularmente de Herculanum, acorrera pressurosa ao
divertimento predileto daquelas épocas recuadas. De permeio com os
atletas e gladiadores, estavam os músicos, os cantores e os dançarinos.
Tudo era um farfalhar de sedas, um delicioso chocalhar de alegrias
ruidosas, ao som de flautas e alaúdes.
Em dado instante, porém, a atenção geral foi solicitada por um fato
estranho e incompreensível. Do cimo do Vesúvio elevava-se grossa
pirâmide de fumo, sem que ninguém atinasse com a causa do fenômeno
insólito.
Continuavam os jogos animadamente, mas agora, no seio da coluna
fumarenta que se elevava em caprichosos rolos para o alto, surgiam
impressionantes labaredas...
Plínio Severus, como todos os presentes, se surpreendia com o
fenômeno estranho e inexplicável.
Em minutos breves, no entanto, estabeleciam-se no anfiteatro a
confusão e o terror.
Em meio da perturbação geral e imprevista, o filho de Flamínio ainda
teve tempo de se aproximar do questor, então rodeado dos seus familiares
que residiam na cidade, o qual lhe falou com otimismo, embora não
conseguisse dissimular de todo as Íntimas inquietações:
- Meu amigo, tenhamos calma! Pelas barbas de Júpiter!... Então, por
onde andarão a nossa coragem e a nossa fibra?
Mas, em breves instantes a terra lhes tremia sob os pés, em
vibrações desconhecidas e sinistras. Algumas colunas tombavam ao solo,
pesadamente, enquanto numerosas estátuas rolavam dos nichos
improvisados, recamados de ouro e pedrarias.
Abraçando-se, então, à filha e cercado de numerosas senhoras, o
questor disse altamente preocupado:
- Plínio, demandemos as galeras, sem demora!...
435
HÁ DOIS MIL ANOS...
Mas, o oficial romano não mais ouviu os apelos. Ansiosamente,
atirou-se à faina de romper a multidão, que desejava retirar-se em massa
do circo, motivando o esmagamento de crianças e pessoas mais idosas.
Ao cabo de sobre-humano esforço, conseguiu alcançar a rua, mas
todos os lugares estavam tomados por gente que saía de casa,
desarvorada, aos gritos de "Fogo, Fogo!... O Vesúvio..."
Plínio verificou que todas as vias públicas estavam repletas de gente
desesperada, de viaturas e de animais espavoridos.
Com enorme dificuldade, vencia todos os obstáculos, mas o Vesúvio
lançava agora, para o céu, uma fogueira indescritível e imensa, como se a
própria Terra houvera incendiado as entranhas mais profundas.
Uma chuva de cinza, a princípio quase imperceptível, começou a
cair, enquanto o solo continuava a tremer com ruídos surdos, aterradores.
De instante a instante, ouvia-se o estrondo pavoroso de colunas
derribadas ou de edifícios desmoronados pelos abalos sísmicos, ao
mesmo tempo que o fumo do vulcão ia eclipsando a confortadora
claridade solar.
Mergulhada em penumbra espessa e tomada de terror indizível,
Pompeia assistia aos seus últimos instantes, numa aflição desesperada...
(1)
Na vila de Lentulus, os escravos perceberam imediatamente o perigo
próximo. Nos primeiros momentos, os cavalos relinchavam estranhamente
e as aves inquietas fugiam em desespero.
Após a queda das primeiras colunas que sustentavam o edifício,
todos os servos do senador
__________
(1) Este trecho desperta interesse e atenção do leitor curioso e inteligente, pela
similitude que oferece com a descritiva de outro romance mediúnico e também precioso,
qual o Herculanum, do Conde de Rochester. - Nota da Editora.
436
ROMANCE DE EMMANUEL
abandonaram precipitadamente os postos, desejosos de conservar noutra
parte os bens preciosos da vida. Somente Ana ficara junto dos amos,
dando-lhes conhecimento dos horrores do ambiente.
Os três, numa justificada inquietude, escutaram o rumor horrível da
inolvidável catástrofe do Império. A própria vila estava já meio destruída,
penetrando as cinzas pelos desvãos abertos pela queda dos telhados e
começando a sua obra de lenta sufocação. Ansiavam todos pelo regresso
imediato de Plínio, a fim de resolverem as providências a adotar, mas o
velho senador, cujo coração não se iludia nos seus amargurados
pressentimentos, exclamou em tom quase resignado:
- Ana, traze a cruz de Simeão e vamos à prece que te foi ensinada
pelos discípulos do Messias!... Diz-me o coração que é chegado o fim da
nossa romagem pela Terra!
Enquanto a serva buscava apressadamente a relíquia do ancião de
Samaria, afrontando o perigo das paredes oscilantes, Públio Lentulus
ouvia o surdo rumor da terra dilacerada e os gritos apavorantes e sinistros
do povo, misturados ao barulho tremendo do vulcão que, transformado em
fornalha imensa e indescritível, enchia toda a cidade de cinzas e lavas
ferventes. Lembrou-se, então, o senador, das afirmativas do Cristo nos
dias idos da Galileia, quando lhe asseverava que toda a grandeza romana
era bem miserável e num minuto breve poderia o Império ser reduzido a
um punhado de pó. O coração batia-lhe descompassado naquele minuto
extremo, mas a velha serva havia regressado e ajoelhara-se, serena,
guardando nas mãos a lembrança de Simeão e de Lívia, orando em voz
comovedora e profunda:
"Pai Nosso, que estais no céu... santificado seja o vosso nome...
venha a nós o vosso reino... seja feita a vossa vontade... assim na Terra
como nos céus..."
437
HÁ DOIS MIL ANOS...
Nesse instante, porém, a voz da serva emudeceu subitamente,
enquanto seu corpo rolava sob novos escombros, sentindo-se ela
amparada, espiritualmente, pelo venerável samaritano que a conduziu,
imediatamente, às mais elevadas esferas espirituais, tal a natureza do seu
coração iluminado nas dores e testemunhos mais angustiosos do
aprendizado terrestre.
- Ana!... Ana!... - exclamavam Públio e Flávia, soluçantes, sentindo
ambos pela primeira vez o infortúnio do insulamento supremo, sem uma
luz e sem um guia, em pleno desamparo!
Alguém, contudo, rompera todos os destroços e chegava, rápido, até
àquela câmara interior, e, abraçando Públio e sua filha gritava em voz
opressa: - "Flávia! meu pai! aqui estou..."
Plínio chegava, afinal, para o instante derradeiro. Flávia Lentúlia
apertou-o carinhosamente nos braços, enquanto o velho senador semiasfixiado
tomava as mãos do filho, abraçando-se os três num amplexo
derradeiro.
Flávia e Plínio quiseram falar, mas grossa camada de cinzas
penetrava o interior, pelas fendas enormes da vila meio destruída...
Mais um estremeção do solo e as colunas que ainda restavam de pé
se abateram sobre os três, roubando-lhes as últimas energias e fazendo-os
cair assim, enlaçados para sempre, sob um montão de escombros...
Naquelas sombras espessas, todavia, pairavam criaturas aladas e
leves, em atitudes de prece, ou confortando ativamente o coração abatido
dos míseros condenados à destruição.
Sobre os três corpos soterrados permanecia a entidade radiosa de
Lívia, junto de numerosos companheiros que cooperavam, com
devotamento e precisão, nos serviços de desprendimento total dos
moribundos.
Pousando as mãos luminosas e puras na fronte abatida do
companheiro exausto e agonizante, Lívia
438
ROMANCE DE EMMANUEL
elevou os olhos ao firmamento enegrecido e orou com a suavidade da sua
fé e dos seus sentimentos diamantinos.
- Jesus, meigo e divino Mestre - esta hora angustiosa é bem um
símbolo dos nossos erros e crimes, através de avatares tenebrosos; mas,
vós, Senhor, sois toda a esperança, toda a sabedoria e toda a
misericórdia!... Abençoai nossos espíritos neste momento ríspido e
doloroso!... Suavizai os tormentos da alma gêmea da minha, concedendolhe
neste instante o alvará da liberdade!... Aliviai, magnânimo Salvador do
mundo, todas as suas magoas pungentes, suas desoladoras amarguras!...
Concedei-lhe repouso ao coração angustiado e dolorido, antes do seu
novo regresso à trama escura das reencarnações no planeta do exílio e
das lágrimas dolorosas... Ele já não é mais, Senhor, o vaidoso déspota de
outrora, mas um coração inclinado ao bem e â piedade pregados pela
vossa doutrina de amor e redenção; sob o peso das provações amargas e
remissoras, seus pendores se espiritualizaram a caminho da vossa
Verdade e da vossa Vida!...
E, enquanto Lívia orava, o senador abraçado aos filhos, já
cadáveres, desferia o último gemido, com pesada lágrima a lhe cintilar nos
olhos mortos...
Numerosas legiões de seres espirituais volitaram por vários dias,
nos céus caliginosos e tristes de Pompeia.
Ao cabo de longas perturbações, Públio Lentulus e filhos
despertaram, ali mesmo, sobre o túmulo nevoento da cidade morta.
Em vão o senador invocou a presença de Ana ou de algum outro
servo, na penosa ilusão da vida material, persistindo em seu organismo
psíquico as impressões da cegueira material, que representara o longo
suplício dos seus anos derradeiros, na indumenta da carne.
Contudo, após as primeiras lamentações, ouviu uma voz que lhe
dizia brandamente:
439
HÁ DOIS MIL ANOS...
- Públio, meu amigo, não apeles mais para os recursos do planeta
terreno, porque todos os teus poderes terminaram com os teus despojos,
na face escura e triste da Terra! Apela para Deus Todo-Poderoso, cuja
misericórdia e sabedoria nos são dadas pelo amor do seu Cordeiro, que é
Jesus-Cristo!...
Públio Lentulus não chegou a lobrigar o interlocutor, mas identificou
a voz de Flamínio Severus, desabafando, então, numa torrente de preces e
de lágrimas fervorosas.
Embora as dedicações constantes de Lívia, havia já alguns dias que
seu espírito se encontrava presa de pesadelos angustiosos, nos primeiros
instantes da vida do Além, assistido, porém, continuamente por Flamínio e
outros companheiros abnegados, que o aguardavam no plano espiritual.
Contudo, depois daquelas súplicas sinceras que lhe fluíam do mais
recôndito do coração, sentiu que seu mundo interior se desanuviara...
Junto dos filhos queridos, recobrou a visão e reconheceu os entes
amados, com lágrimas de amor e reconhecimento, nos pórticos do alémtúmulo.
Ali se conservavam numerosas personagens desta história, como
Flamínio, Calpúrnia, Agripa, Pompílio Crasso, Emiliano Lucius e muitos
outros; mas, em vão, os olhos angustiosos do ex-senador procuravam
alguém na assembléia afetuosa e amiga.
Depois de todas as expansões de carinho e alegria dirigiu-se-lhe
Flamínio, intencionalmente.
- Estranhas a ausência de Lívia - dizia ele com o seu olhar
complacente e generoso -, mas não poderás vê-la, enquanto não
conseguires despir, pela prece e pelos bons desejos, todas as impressões
penosas e nocivas da Terra. Ela se tem conservado junto ao teu coração,
em rogativas sinceras e fervorosas pelo teu reerguimento, mas o nosso
grupo ainda é de espíritos muito apegados ao orbe, e esperávamos o
regresso dos seus últimos componentes, ainda na Terra, para podermos,
em conjunto, esta440
ROMANCE DE EMMANUEL
belecer novo roteiro às reencarnações vindouras.. Séculos de trabalho e
de dor nos esperam na senda da redenção e do aperfeiçoamento, mas
precisamos, antes de tudo, buscar a fortaleza precisa em Jesus, fonte de
todo o amor e de toda a fé, para as elevadas realizações do nosso
pensamento!..
Públio Lentulus chorava, tocado por emoções estranhas e
indefiníveis.
- Meu amigo - continuou Flamínio, amoroso -, pede a Jesus, por
todos nós, a misericórdia dessa claridade de um novo dia!...
Públio, então, ajoelhou-se e, banhado em lágrimas, concentrou o
coração em Jesus numa rogativa ardente e silenciosa... Ali, na soledade da
sua alma intrépida e sincera, apresentava ao Cordeiro de Deus o seu
arrependimento, suas esperanças para o porvir, suas promessas de fé e de
trabalho para os séculos porvindouros!...
Todos os presentes lhe acompanharam a oração, tomados de pranto
e mergulhados em vibrações de consolação inefável.
Viram, então, rasgar-se um caminho luminoso e florido nos céus
escuros e tristes da Campânia, e, por ele, como se descessem dos jardins
fulgurantes do Paraíso, surgiram Lívia e Ana abraçadas, como se ainda ali
enviasse Jesus um ensinamento simbólico àquelas almas prisioneiras da
Terra, de modo a lhes revelar que, em qualquer posição, pode a alma
encarnada buscar o seu reino de luz e de paz, de vida e de amor, tanto na
túnica humilde do escravo, como na pomposa indumentária dos senhores.
O velho patrício contemplou a figura radiosa da companheira e,
extasiado, fechou os olhos banhados no pranto da compunção e do
arrependimento; mas, em breve, dois lábios de névoa pousavam-lhe na
fronte, qual o leve roçar de um lírio divino. E, enquanto seu coração
maravilhado se lavava nas lágrimas da alegria e do reconhecimento a
Jesus, toda a caravana, ao impulso poderoso das
441
HÁ DOIS MIL ANOS...
preces fervorosas daquelas duas almas redimidas, elevava-se a esferas
mais altas, para repouso e aprendizado, antes de novas etapas de
regeneração e trabalhos purificadores, a lembrar um grupo maravilhoso de
luminosas falenas do Infinito!...
FIM
AVISO DOS EDITORES
Se lhe agradou a leitura deste livro, deverá conhecer a reencarnação
de Publius, em "50 Anos Depois", outro romance do mesmo Autor.