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sábado, 29 de janeiro de 2011

Nos Domínios da Mediunidade-Francisco Cândido Xavier

NOS DOMÍNIOS DA MEDIUNIDADE

FRANCISCO CÂNDIDO XAVIER

DITADO PELO ESPÍRITO ANDRÉ LUIZ

Série André Luiz

1 - Nosso Lar - 2 - Os Mensageiros  - 3 - Missionários da Luz  - 4 - Obreiros da Vida Eterna  - 5 - No Mundo Maior - 6 - Agenda Cristã  - 7 – Libertação - 8 - Entre a Terra e o Céu  - 9 - Nos Domínios da Mediunidade - 10 - Ação e Reação - 11 - Evolução em Dois Mundos - 12 - Mecanismos da Mediunidade - 13 - Conduta Espírita  - 14 - Sexo e Destino - 15 – Desobsessão - 16 - E a Vida Continua...


ÍNDICE

Raios, Ondas, Médiuns, Mentes

CAPÍTULO 01 = Estudando a mediunidade
CAPÍTULO 02 = O psicoscópio
CAPÍTULO 03 = Equipagem mediúnica
CAPÍTULO 04 = Ante o serviço
CAPÍTULO 05 = Assimilação de correntes mentais
CAPÍTULO 06 = Psicofonia consciente
CAPÍTULO 07 = Socorro espiritual
CAPÍTULO 08 = Psicofonia sonambúlica
CAPÍTULO 09 = Possessão
CAPÍTULO 10 = Sonambulismo torturado
CAPÍTULO 11 = Desdobramento em serviço
CAPÍTULO 12 = Clarividência e clariaudiência
CAPÍTULO 13 = Pensamento e mediunidade
CAPÍTULO 14 = Em serviço espiritual
CAPÍTULO 15 = Forças viciadas
CAPÍTULO 16 = Mandato mediúnico
CAPÍTULO 17 = Serviço de passes
CAPÍTULO 18 = Apontamentos à margem
CAPÍTULO 19 = Dominação telepática
CAPÍTULO 20 = Mediunidade e oração
CAPÍTULO 21 = Mediunidade no leito de morte
CAPÍTULO 22 = Emersão do passado
CAPÍTULO 23 = Fascinação
CAPÍTULO 24 = Luta expiatória
CAPÍTULO 25 = Em torno da fixação mental
CAPÍTULO 26 = Psicometria
CAPÍTULO 27 = Mediunidade transviada
CAPÍTULO 28 = Efeitos físicos
CAPÍTULO 29 = Anotações em serviço
CAPÍTULO 30 = Últimas páginas


Raios, Ondas, Médiuns, Mentes...

A Ciência do século 20, estudando a consti­tuição da matéria, caminha de surpresa a surpresa, renovando aspectos de sua conceituação milenar.

Não obstante a teoria de Leucipo, o mentor de Demócrito, o qual, quase cinco séculos antes do Cristo, considerava todas as coisas formadas de par­tículas infinitesimais (átomos), em constante movi­mentação, a cultura clássica prosseguiu detida nos quatro princípios de Aristóteles, a água, a terra, o ar e o fogo, ou nos três elementos hipostáticos dos antigos alquimistas, o enxofre, o sal e o mercúrio, para explicar as múltiplas combinações no campo da forma.

No século 19, Dalton concebe cientificamente a teoria corpuscular da matéria, e um maravilhoso período de investigações se Inicia, através de inte­ligências respeitabilíssimas, renovando idéias e con­cepções em volta da chamada “partícula indivisível”.

Extraordinárias descobertas descortinam novos e grandiosos horizontes aos conhecimentos humanos.

Crookes surpreende o estado radiante da ma­téria e estuda os raios catódicos.

Röntgen observa que radiações Invisíveis atra­vessam o tubo de Crookes envolvido por uma caixa de papelão preto, e conclui pela existência dos raios X.

Henri Becquerel, seduzido pelo assunto, expe­rimenta o urânio, à procura de radiações do mesmo teor, e encontra motivos para novas indagações.

O casal Curte, intrigado com o enigma, analisa toneladas de pechblenda e detém o rádio.

Velhas afirmações científicas tremem nas bases.

Rutherford, à frente de larga turma de pioneiros, inicia preciosos estudos, em torno da radioatividade.

O átomo sofre Irresistível perseguição na for­taleza a que se acolhe e confia ao homem a solução de numerosos segredos.

E, desde o último quartel do século passado, a Terra se converteu num reino de ondas e raios, correntes e vibrações.

A eletricidade e o magnetismo, o movimento e a atração palpitam em tudo.

O estudo dos raios cósmicos evidencia as fan­tásticas energias espalhadas no Universo, provendo os físicos de poderosíssimo instrumento para a in­vestigação dos fenômenos atômicos e subatômicos.

Bohrs, Planck, Einstein erigem novas e gran­diosas concepções.

O veículo carnal agora não é mais que um turbilhão eletrônico, regido pela consciência.

Cada corpo tangível é um feixe de energia con­centrada. A matéria é transformada em energia, e esta desaparece para dar lugar à matéria.

Químicos e físicos, geômetras e matemáticos, erguidos à condição de investigadores da verdade, são hoje, sem o desejarem, sacerdotes do Espírito, porque, como consequência de seus porfiados estu­dos, o materialismo e o ateísmo serão com pelidos a desaparecer, por falta de matéria, a base que lhes assegurava as especulações negativistas.

Os laboratórios são templos em que a inteli­gência é concitada ao serviço de Deus, e, ainda mesmo quando a cerebração se perverte, transito­riamente subornada pela hegemonia política, gera­dora de guerras, o progresso da Ciência, como con­quista divina, permanece na exaltação do bem, rumo a glorioso porvir.

O futuro pertence ao Espírito!

E, meditando no amanhã da coletividade ter­restre, André Luis organizou estas ligeiras páginas, em torno da mediunidade, compreendendo a impor­tância, cada vez maior, do intercâmbio espiritual entre as criaturas.

Quanto mais avança na ascensão evolutiva, mais seguramente percebe o homem a inexistência da morte como cessação da vida.

E agora, mais que nunca, reconhece-se na po­sição de uma consciência retida entre forças e flui­dos, provisoriamente aglutinados para fins educa­tivos.

Compreende, pouco a pouco, que o túmulo é porta à renovação, como o berço é acesso à expe­riência, e observa que o seu estágio no Planeta éuma viagem com destino às estações do Progresso Maior.

E, na grande romagem, todos somos instru­mentos das forças com as quais estamos em sintonia. Todos somos médiuns, dentro do campo men­tal que nos é próprio, associando-nos às energias edificantes, se o nosso pensamento flui na direção da vida superior, ou às forças perturbadoras e de­primentes, se ainda nos escravizamos às sombras da vida primitivista ou torturada.

Cada criatura com os sentimentos que lhe ca­racterizam a vida íntima emite raios específicos e vive na onda espiritual com que se Identifica.

Semelhantes verdades não permanecerão semi-ocultas em nossos santuários de fé. Irradiar-se-ão dos templos da Ciência como equações matemáticas.

E enquanto variados aprendizes focalizam a me­diunidade, estudando-a da Terra para o Céu, nosso amigo procura analisar-lhe a posição e os valores, do Céu para a Terra, colaborando na construção dos tempos novos.

Todavia, o que destacamos por mais alto em suas páginas é a necessidade do Cristo no coração e na consciência, para que não estejamos deso­rientados ao toque dos fenômenos.

Sem noção de responsabilidade, sem devoção àprática do bem, sem amor ao estudo e sem esforço perseverante em nosso próprio burilamento moral, é impraticável a peregrinação libertadora para os Cimos da Vida.

André Luis é bastante claro para que nos alon­guemos em qualquer consideração.

Cada médium com a sua mente.

Cada mente com os seus raios, personalizando observações e Interpretações.

E, conforme os raios que arremessamos, er­guer-se-nos-á o domicilio espiritual na onda de pen­samentos a que nossas almas se afeiçoam.

Isso, em boa síntese, equivale ainda a repetir com Jesus:

— A cada qual segundo suas obras.

EMMANUEL

Pedro Leopoldo, 3 de outubro de 1954.


1

Estudando a mediunidade

Indubitavelmente — concordava o Assis­tente Aulus — a mediunidade é problema dos mais sugestivos na atualidade do mundo. Aproxima-se o homem terreno da Era do Espírito, sob a luz da Religião Cósmica do Amor e da Sabedoria e, de­certo, precisa de cooperação, a fim de que se lhe habilite o entendimento.

O orientador, de feição nobre e simpática, re­cebera-nos, a pedido de Clarêncio, para um curso rápido de ciências mediúnicas.

Especializara-se em trabalhos dessa natureza, consagrando-lhes muitos anos de abnegação. Era, por isso, dentre as relações do Ministro, que se nos fizera patrono e condutor, um dos companheiros mais competentes no assunto.

Aulus nos acolhera com afabilidade e doçura.

Relacionando aflitivas questões da Humanidade Terrestre, pousava em nós o olhar firme e lúcido, não apenas com o interesse do irmão mais velho, mas também com a afetividade de um pai enternecido.

Hilário e eu não conseguíamos disfarçar a admiração.

Era um privilégio ouvi-lo discorrer sobre o tema que nos trazia até ali.

Aliavam-se nele substanciosa riqueza cultural e o mais entranhado patrimônio de amor, causan­do-nos satisfação o vê-lo reportar-se às necessida­des humanas, com o carinho do médico benevolente e sábio que desce à condição de enfermeiro para a alegria de ajudar e salvar.

Interessava-se pelas experimentações mediú­nicas, desde 1779, quando conhecera Mesmer, em Paris, no estudo das célebres proposições lançadas a público pelo famoso magnetizador. Reencarnan­do no início do século passado, apreciara, de per­to, as realizações de Allan Kardec, na codificação do Espiritismo, e privara com Cahagnet e Balzac, com Théophile Gautier e Victor Hugo, acabando seus dias na França, depois de vários decênios consa­grados à mediunidade e ao magnetismo, nos mol­des científicos da Europa. No mundo espiritual prosseguiu no mesmo rumo, observando e traba­lhando em seu apostolado educativo. Dedicando-se agora a obra de espiritualização no Brasil, e isto há mais de trinta anos, comentava, otimista, as esperanças do novo campo de ação, dando-nos a conhecer a primorosa bagagem de memórias e ex­periências de que se fazia portador.

Maravilhados ao ouvi-lo, mal lhe respondía­mos a essa ou àquela indagação.

— Conhecíamos, sim — informamos, respei­tosos, em dado momento —, alguns aspectos do intercâmbio espiritual; todavia, o nosso desejo era amealhar mais amplas noções do assunto, com a simplicidade possível. Em outras ocasiões, estudáramos ao de leve alguns fenômenos de psicogra­fia, incorporação e materialização, no entanto, era isso muito pouco, à face dos múltiplos serviços que a mediunidade encerra em si mesma.

O anfitrião, afável, aquiesceu em elucidar-nos.

Colaborava em diversos setores de trabalho e prodigalizar-nos-ia aquilo que considerava, com humildade, como sendo “alguns apontamentos”.

Para começar, convidou-nos a ouvir um amigo que falaria sobre mediunidade a pequeno grupo de aprendizes encarnados e desencarnados, e em cuja palavra reconhecia oportunidade e valor.

Não nos fizemos de rogados ante a obsequiosa lembrança.

E, porque não havia tempo a perder, segui­mo-lo, prestamente.

Em vasto recinto do Ministério das Comuni­cações, fomos apresentados ao Instrutor Albério, que se dispunha a iniciar a palestra.

Tomamos lugar entre as dezenas de compa­nheiros que o seguiam, atentos, em muda expectação.

Como tantos outros orientadores que eu co­nhecia, Albério assomou à tribuna, sem cerimônia, qual se nos fora simples irmão, conversando co­nosco em tom fraternal.

— Meus amigos — falou, com segurança —, dando continuidade aos nossos estudos anteriores, precisamos considerar que a mente permanece na base de todos os fenômenos mediúnicos.

Não ignoramos que o Universo, a estender-se no Infinito, por milhões e milhões de sóis, é a ex­teriorização do Pensamento Divino, de cuja essên­cia partilhamos, em nossa condição de raios cons­cientes da Eterna Sabedoria, dentro do limite de nossa evolução espiritual.

Da superestrutura dos astros à infra-estrutura subatômica, tudo está mergulhado na substância viva da Mente de Deus, como os peixes e as plan­tas da água estão contidos no oceano imenso.

Filhos do Criador, dEle herdamos a faculdade de criar e desenvolver, nutrir e transformar.

Naturalmente circunscritos nas dimensões con­ceptuais em que nos encontramos, embora na in­significância de nossa posição comparada à glória dos Espíritos que já atingiram a angelitude, pode­mos arrojar de nós a energia atuante do próprio pensamento, estabelecendo, em torno de nossa in­dividualidade, o ambiente psíquico que nos é par­ticular.

Cada mundo possui o campo de tensão electro­magnética que lhe é próprio, no teor de força gravítica em que se equilibra, e cada alma se en­volve no circulo de forças vivas que lhe transpiram do «hálito» mental, na esfera de criaturas a que se imana, em obediência às suas necessidades de ajuste ou crescimento para a imortalidade.

Cada planeta revoluciona na órbita que lhe éassinalada pelas leis do equilíbrio, sem ultrapassar as linhas de gravitação que lhe dizem respeito, e cada consciência evolve no grupo espiritual a cuja movimentação se subordina.

Somos, pois, vastíssimo conjunto de Inteligên­cias, sintonizadas no mesmo padrão vibratório de percepção, integrando um Todo, constituído de al­guns bilhões de seres, que formam por assim dizer a Humanidade Terrestre.

Compondo, assim, apenas humilde família, no infinito concerto da vida cósmica, em que cada mundo guarda somente determinada família da Humanidade Universal, conhecemos, por enquanto, simplesmente as expressões da vida que nos fala mais de perto, limitados ao degrau de conhecimen­to que já escalamos.

Dependendo dos nossos semelhantes, em nossa trajetória para a vanguarda evolutiva, à maneira dos mundos que se deslocam no Espaço, influen­ciados pelos astros que os cercam, agimos e rea­gimos uns sobre os outros, através da energia mental em que nos renovamos constantemente, criando, alimentando e destruindo formas e situações, paisagens e coisas, na estruturação dos nos­sos destinos.

Nossa mente é, dessarte, um núcleo de forças inteligentes, gerando plasma sutil que, a exterio­rizar-se incessantemente de nós, oferece recursos de objetividade às figuras de nossa imaginação, sob o comando de nossos próprios desígnios.

A idéia é um “ser” organizado por nosso es­pírito, a que o pensamento dá forma e ao qual a vontade imprime movimento e direção.

Do conjunto de nossas idéias resulta a nossa própria existência.

O orador fez pequeno intervalo que ninguém ousou interromper e prosseguiu comentando:

— Segundo é fácil de concluir, todos os seres vivos respiram na onda de psiquismo dinâmico que lhes é peculiar, dentro das dimensões que lhes são características ou na freqüência que lhes é própria. Esse psiquismo independe dos centros nervosos, de vez que, fluindo da mente, é ele que condiciona todos os fenômenos da vida orgânica em si mesma.

Examinando, pois, os valores anímicos como faculdades de comunicação entre os Espíritos, qual­quer que seja o plano em que se encontrem, não podemos perder de vista o mundo mental do agen­te e do recipiente, porqüanto, em qualquer posição mediúnica, a inteligência receptiva está sujeita às possibilidades e à coloração dos pensamentos em que vive, e a inteligência emissora jaz submetida aos limites e às interpretações dos pensamentos que é capaz de produzir.

Um hotentote desencarnado, em se comuni­cando com um sábio terrestre, ainda jungido ao envoltório físico, não lhe poderá oferecer noticias outras, além dos assuntos triviais em que se lhe desdobraram no mundo as experiências primitivis­tas, e um sábio, sem o indumento carnal, entrando em relação com o hotentote, ainda colado ao seu “habitat” africano, não conseguirá facultar-lhe co­operação imediata, senão no trabalho embrionário em que se lhe encravam os interesses mentais, como sejam o auxilio a um rebanho bovino ou a cura de males do corpo denso. Por isso mesmo, o ho­tentote não se sentiria feliz na companhia do sábio e o sábio, a seu turno, não se demoraria com o hotentote, por falta desse alimento quase imponderável a que podemos chamar vibrações com­pensadas.

É da Lei, que nossas maiores alegrias sejam recolhidas ao contacto daqueles que, em nos com­preendendo, permutam conosco valores mentais de qualidades idênticas aos nossos, assim como as árvores oferecem maior coeficiente de produção se colocadas entre companheiras da mesma espécie, com as quais trocam seus princípios germinativos.

Em mediunidade, portanto, não podemos olvi­dar o problema da sintonia.

Atraímos os Espíritos que se afinam conosco, tanto quanto somos por eles atraidos; e se é ver­dade que cada um de nós somente pode dar con­forme o que tem, é indiscutível que cada um recebe de acordo com aquilo que dá.

Achando-se a mente na base de todas as ma­nifestações mediúnicas, quaisquer que sejam os característicos em que se expressem, é imprescin­dível enriquecer o pensamento, incorporando-lhe os tesouros morais e culturais, os únicos que nos pos­sibilitam fixar a luz que jorra para nós, das Esfe­ras Mais Altas, através dos gênios da sabedoria e do amor que supervisionam nossas experiências.

Procederam acertadamente aqueles que com­pararam nosso mundo mental a um espelho.

Refletimos as imagens que nos cercam e arre­messamos na direção dos outros as imagens que criamos.

E, como não podemos fugir ao imperativo da atração, somente retrataremos a claridade e a beleza, se instalarmos a beleza e a claridade no espelho de nossa vida íntima.

Os reflexos mentais, segundo a sua natureza, favorecem-nos a estagnação ou nos impulsionam a jornada para a frente, porque cada criatura hu­mana vive no céu ou no inferno que edificou para si mesma, nas reentrâncias do coração e da cons­ciência, independentemente do corpo físico, porque, observando a vida em sua essência de eternidade gloriosa, a morte vale apenas como transição entre dois tipos da mesma experiência, no “hoje impe­recível”.

Vemos a mediunidade em todos os tempos e em todos os lugares da massa humana.

Missões santificantes e guerras destruidoras, tarefas nobres e obsessões pérfidas, guardam origem nos reflexos da mente individual ou coletiva, combinados com as forças sublimadas ou degra­dantes dos pensamentos de que se nutrem.

Saibamos, assim, cultivar a educação, aprimo­rando-nos cada dia.

Médiuns somos todos nós, nas linhas de ati­vidade em que nos situamos.

A força psíquica, nesse ou naquele teor de expressão, é peculiar a todos os seres, mas não existe aperfeiçoamento mediúnico sem acrisolamen­to da individualidade.

É contraproducente intensificar a movimenta­ção da energia sem disciplinar-lhe os impulsos.

É perigoso possuir sem saber usar.

O espelho sepultado na lama não reflete o esplendor do Sol.

O lago agitado não retrata a imagem da es­trela que jas no infinito.

Elevemos nosso padrão de conhecimento pelo estudo bem conduzido e apuremos a qualidade de nossa emoção pelo exercício constante das virtudes superiores, se nos propomos recolher a mensagem das Grandes Almas.

Mediunidade não basta só por si.

É imprescindível saber que tipo de onda men­tal assimilamos para conhecer da qualidade de nosso trabalho e ajuizar de nossa direção.

Albério prosseguiu ainda em seus valiosos co­mentários e, mais tarde, passou a responder a com­plicadas perguntas que lhe eram desfechadas por diversos aprendizes. Por minha vez recolhera lar­go material de meditação e, em razão disso, em companhia de Hilário, despedi-me dos instrutores com alguns monossílabos de agradecimento, ouvin­do de Aulus a promessa de reencontro para o dia seguinte.


2

O psicoscópio

Tornando ao convívio do Assistente, na noite imediata, dele recebemos o acolhimento gentil da véspera.

— Creio haver traçado o nosso programa —falou, paternal.

Finda a ligeira pausa em que nos registrava a atenção, prosseguiu:

- Admito que devamos centralizar nossas observaçôes em reduzido núcleo, onde melhor dis­pomos do fator qualidade. Temos um grupo de dez companheiros encarnados, com quatro médiuns detentores de faculdades regularmente desenvolvi­das e de lastro moral respeitável. Trata-se de pequeno conjunto, a serviço de uma instituição consagrada ao nosso ideal cristianizante. Desse grupo-base ser-nos-á possível alongar apontamen­tos e coletar anotações que se façam valiosas à nossa tarefa.

Fitou-nos com bondade por um instante de silêncio e acrescentou:

— Isso porque vocês pretendem especializar conhecimentos, em torno da mediunidade, apenas no círculo terrestre, de vez que em nosso campo de ação espiritual o assunto seria muito menos complexo.

— Sim esclarecemos Hilário e eu —, dese­jávamos auxiliar, de algum modo, os irmãos en­carnados, na execução de serviços em que se mos­travam comprometidos. A oportunidade, por esse motivo, surgia diante de nós por verdadeira bênção.

Decorridos alguns minutos de entendimento afetuoso, o orientador convidou, solícito:

— Sigamos. Não há tempo a perder.

Logo após, muniu-se de pequena pasta e, tal­vez porque nos percebesse a curiosidade, informou, paciente:

— Temos aqui o nosso psicoscópio, de modo a facilitar-nos exames e estudos, sem o impositivo de acurada concentração mental.

Tomei o enigmático volume, chamando a mim o agradável serviço de transportá-lo, notando, en­tão, que na Terra o minúsculo objeto não pesaria senão alguns gramas.

Espicaçado tanto quanto eu pela curiosidade, Hilário indagou sem preâmbulos:

— Psicoscópio? que novo engenho vem a ser esse?

— É um aparelho a que intuitivamente se referiu ilustre estudioso da fenomenologia espiri­tica, em fins do século passado. Destina-se à aus­cultação da alma, com o poder de definir-lhe as vibrações e com capacidade para efetuar diversas observações em torno da matéria — esclareceu Au­lus, com leve sorriso. — Esperamos esteja, mais tarde, entre os homens. Funciona à base de ele­tricidade e magnetismo, utilizando-se de elementos radiantes, análogos na essência aos raios gama. É constituído por óculos de estudo, com recursos disponíveis para a microfotografia.

E, enquanto demandávamos a cidade terrestre, em que nos cabia operar, o mentor continuava, explicando:

— Em nosso esforço de supervisão, podemos classificar sem dificuldade as perspectivas desse ou daquele agrupamento de serviços psíquicoS que apa­recem no mundo. Analisando a psicoscopia de uma personalidade ou de uma equipe de trabalhadOreS, é possível anotar-lhes as possibilidades e catego­rizar-lhes a situação. Segundo as radiações que projetam, planejamos a obra que podem realizar no tempo.

Meu colega e eu não conseguíamos sopitar a surpresa.

Entre assombrado e receoso, ousou Hilário in­quirir:

— Quer isso dizer que qualquer de nós pode ser submetido a exame dessa espécie?

— Sem dúvida — considerou o nosso interlo­cutor bem-humorado —; decerto que estamoS su­jeitos às sondagens dos planos superioreS, tanto quanto pesquisamos agora os planos que se nos situam à retaguarda. Se o espectroSCóPio permite ao homem perquirir a natureza dos elementos quí­micos, localizados a enormes distânciaS, através da onda luminosa que arrojam de si, com muito mais facilidade identificaremos os valores da individua­lidade humana pelos raios que emite. A moralida­de, o sentimento, a educação e o caráter são claramente perceptíveis, através de ligeira inspecção.

— Mas — indagou Hilário, investigador —, e na hipótese de surgirem elementos arraigados ao mal, numa formação de cooperadores do bem? de posse da ficha psicoScôPica, os instrutoreS espiri­tuais providenciar-lhes-ão a expulsão?

— Não será preciso. Se a maioria permanece empenhada na extensão do bem, a minoria encarcerada ­ no mal distancia-se do conjunto, pouco a pouco, por ausência de afinidade.

— Contudo — alegou ainda o meu companhei­ro —, que acontece numa instituição cujo progra­ma elevado se degenera em desequilíbrio, induzin­do-nos a reconhecer que a virtude aí não passa de bandeira fictícia, acobertando a ignorância e a per­versidade?

— Então, nesse caso — adiantou o interpe­lado, tolerante —, dispensamos qualquer regime de perseguição ou denúncia. Encarrega-se a vida de colocar-nos no lugar que nos compete.

E, sorrindo, ajuntou:

— Os Anjos ou Ministros da Eterna Sabedoria entregam-nos, com segurança, às forjas renovado­ras do tempo e da provação. Sabe-se, atualmente, na Terra, que um grama de rádio perde a metade do seu peso em dezesseis séculos e que um ciclo­tron, trabalhando com projetis atômicos acelerados a milhões de electrons-volt, realiza a transmutação dos elementos químicos, de imediato. A evolução vagarosa nos milênios ou o choque brusco do so­frimento alteram-nos o panorama mental, aprimo­rando-lhe os valores.

Essas notas arrastavam-nos a divagação nou­tros campos.

O Assistente revelava brilhante cultura, aliada a extremas facilidades de exposição.

Dispunha-me a ensaiar perguntas extra-servi­ço, mas, adivinhando-nos o intento, Aulus objetou:

— Toda conversação nobre é instrutiva, no en­tanto, por agora, guardemos o espírito no trabalho a fazer. O êxito não exonera a atenção. Se cairmos numa digressão acerca da química, o horário não nos desculpará.

Reajustando-se aos nossos objetivos, Hilário acentuou:

— O psicoscópio, só por si, dá margem a pre­ciosas reflexões. Imaginemos uma sociedade humana que pudesse retratar a vida interior dos seus membros... Isso economizaria grandes quotas de tempo na solução de inúmeros problemas psicoló­gicos.

— Sim — anuiu o mentor, cordial —, o futuro reserva prodígios ao senso do homem comum.

Havíamos, porém, alcançado o portão de es­paçoso edifício que o Assistente nos designou como sendo o santuário que -nos competia visitar e servir.

— Esta é a casa espírita-cristã onde encon­traremos nosso ponto básico de experiências e observações.

Entramos.

Atravessado largo recinto, em que estaciona­vam numerosas entidades menos felizes de nosso plano, o orientador esclareceu:

— Vemos aqui o salão consagrado aos ensina­mentos públicos. Todavia, o núcleo que buscamos jaz situado em reduto íntimo, assim como o coração dentro do corpo.

Escoados alguns instantes, penetramos acanha­do aposento, onde se congregava reduzida assem­bléia, em silenciosa concentração mental.

— Nossos companheiros — elucidou o Assis­tente — fazem o serviço de harmonização prepara­tória. Quinze minutos de prece, quando não sejam de palestra ou leitura com elevadas bases morais. Sabem que não devem abordar o mundo espiritual sem a atitude nobre e digna que lhes outorgará a possibilidade de atrair companhias edificantes e, por esse motivo, não comparecem aqui sem tra­zer ao campo que lhes é invisível as sementes do melhor que possuem.

Hilário e eu nos inclinávamos à indagação, contudo, a respeitabilidade do recinto impunha-nos silêncio.

Amigos da nossa esfera ali se demoravam em oração, compelindo-nos a entranhado recolhimento.

O Assistente armou o psicoscópio e, depois de ligeira análise, recomendou-nos a observação.

Chegada a minha vez de usá-lo, assombraram-me as peculiaridades do aparelho.

Sem necessidade de esforço mental, notei que todas as expressões de matéria física assumiam diferente aspecto, destacando-se a matéria de nos­so plano.

Teto, paredes e objetos de uso corriqueiro re­velavam-se formados de correntes de força, a emi­tirem baça claridade.

Detive-me na contemplação dos companheiros encarnados que agora apareciam mais estreita-mente associados entre si, pelos vastos círculos radiantes que lhes nimbavam as cabeças de opalino esplendor.

Tive a impressão de fixar, em torno do apa­gado bloco de massa semi-obscura a que se reduzira a mesa, uma coroa de luz solar, formada por dez pontos característicos, salientando-se no centro de cada um deles o semblante espiritual dos ami­gos em oração.

Desse colar de focos dourados alongava-se extensa faixa de luz violeta, que parecia contida numa outra faixa de luz alaranjada, a espraiar-se em tonalidades diversas que, de momento, não pude identificar, de vez que a minha atenção estava presa ao circulo dos rostos fulgurantes, visívelmente unidos entre si, à maneira de dez pe­queninos sóis, imanados uns aos outros. Reparei que sobre cada um deles se ostentava uma auréola de raios quase verticais, fulgentes e móveis, quais se fossem diminutas antenas de ouro fumegante. Sobre essas coroas que se particularizavam, de companheiro a companheiro, caíam do Alto abun­dantes jorros de luminosidàde estelar que, tocando as cabeças ali irmanadas, pareciam suaves corren­tes de força a se transformarem em pétalas micros­cópicas, que se acendiam e apagavam, em miríades de formas delicadas e caprichosas, gravitando, por momentos, ao redor dos cérebros em que se proziam, quais satélites de vida breve, em torno das fontes vitais que lhes davam origem.

Custodiando a assembléia, permaneciam os mentores espirituais presentes, cada qual irradian­do a luz que lhe era própria.

Admirado, porém, com os irmãos da esfera física, a se revelarem tão afins, na onda brilhante em que se reuniam, perguntei, entusiástico:

— Aulus amigo, os companheiros que visita­mos são, porventura, grandes iniciados na revela­ção divina?

O interpelado estampou um gesto de bom-humor e respondeu:

— Não. Achamo-nos ainda muito longe de semelhantes apóstolos. Vemo-nos aqui na companhia de quatro irmãs e seis irmãos de boa-von­tade. Naturalmente, são pessoas comuns. Comem, bebem, vestem-se e apresentam-se na Terra sob o aspecto vulgar de outras criaturas do ramerrão carnal; no entanto, trazem a mente voltada para os ideais superiores da fé ativa, a expressar-se em amor pelos semelhantes. Procuram disciplinar-se, exercitam a renúncia, cultivam a bondade constante e, por intermédio do esforço próprio no bem e no estudo nobremente conduzido, adquiri­ram elevado teor de radiação mental.

Hilário, que utilizara o psicoscópio em primei­ro lugar, alegou com o deslumbramento de uma criança espantada:

— Mas, e a luz? a matéria que conhecemos no mundo transfigurou-se. Tudo aqui se converteu em claridade nova! o espetáculo é magnífico!...

— Nada de estranheza — falou o Assistente, bondoso —, não sabe você que um homem encar­nado é um gerador de força electromagnética, com uma oscilação por segundo, registrada pelo coração? Ignora, porventura, que todas as substâncias vivas da Terra emitem energias, enqüadradas nos do­mínios das radiações ultravioletas? Em nos repor­tando aos nossos companheiros, possuimos neles almas regularmente evolutidas, em apreciáveis con­dições vibratórias pela sincera devoção ao bem, com esquecimento dos seus próprios desejos. Po­dem, desse modo, projetar raios mentais, em vias de sublimação, assimilando correntes superiores e enriquecendo os raios vitais de que são dínamos comuns.

— Raios vitais? — redargüiu meu colega, fa­minto de esclarecimento.

— Sim, para maior limpidez da definição, cha­memos-lhes raios ectoplásmicos, unindo nossos apontamentos à nomenclatura dos espiritistas mo­dernos. Esses raios são peculiares a todos os seres vivos. E’ com eles que a lagarta realiza suas complicadas demonstrações de metamorfose e é ainda na base deles que se efetuam todos os pro­cessos de materialização mediúnica, porqüanto os sensitivos encarnados que os favorecem libertam essas energias com mais facilidade. Todas as criaturas, porém, guardam-nas consigo, emitindo-as em freqüência que varia em cada uma, de conformi­dade com as tarefas que o Plano da Vida lhes assinala.

E, otimista, acrescentou:

— O estudo da mediunidade repousa nos ali­cerces da mente com o seu prodigioso campo de radiações. A ciência dos raios imprimirá, em breve, grande renovação aos setores culturais do mundo. Aguardemos o porvir.

Em seguida, Aulus convidou-nos a inspecção mais direta e acompanhamo-lo, alegremente.


3

Equipagem mediúnica

— Conheçamos a nossa equipagem mediúnica — disse o orientador.

E, detendo-se ao pé do companheiro encarnado que regia os trabalhos, apresentou:

— Este é o nosso irmão Raul Silva, que diri­ge o núcleo com sincera devoção à fraternidade. Correto no desempenho dos seus deveres e ardo­roso na fé, consegue equilibrar o grupo na onda de compreensão e boa-vontade que lhe é caracte­rística. Pelo amor com que se desincumbe da tarefa, é instrumento fiel dos benfeitores desencar­nados, que lhe identificam na mente um espelho cristalino, retratando-lhes as instruções.

Logo após, caminhoU na direção de uma se­nhora muito jovem e, designando-a, explicou:

— Eis nossa irmã Eugênia, médium de grande docilidade, que promete brilhante futuro na expan­são do bem. Excelente órgão de transmissão, co­opera com eficiência na ajuda aos desencarnados em desequilíbrio. Intuição clara, aliada a distinção moral, tem a vantagem de conservar-se conscien­te, nos serviços de intercâmbio, beneficiando-nos a ação.

Quase rente, parou à esquerda de um rapaz de seus trinta anos presumíveis e informou:

— Aqui temos nosso amigo Anélio Araújo. Vem conquistando gradativo progresso na clarivi­dência, na clariaudiência e na psicografia.

Em seguida, abeirou-se de um cavalheiro sim­pático e notificou:

— Este é o nosso colaborador Antônio Castro, moço bem-intencionado e senhor de valiosas possi­bilidades em nossas atividades de permuta. So­nâmbulo, no entanto, é de uma passividade que nos requer grande vigilância. Desdobra-se com fa­cilidade, levando a efeito preciosas tarefas de cooperação conosco, mas ainda necessita de maiores estudos e mais amplas experiências para expres­sar-se com segurança, acerca das próprias obser­vações. Por vezes, comporta-se, fora da matéria densa, à maneira de uma criança, comprometendo-nos a açao. Quando empresta o veículo a entidades dementes ou sofredoras, reclama-nos cautela, porqüanto quase sempre deixa o corpo à mercê dos comunicantes, quando lhe compete o dever de aju­dar-nos na contenção deles, a fim de que o nosso tentame de fraternidade não lhe traga prejuízo àorganização física. Será, porém, valioso auxiliar em nossos estudos.

Movimentando-se algo mais, o Assistente es­tacou diante de respeitável senhora, que se man­tinha em fervorosa prece, e exclamou:

— Apresento-lhes agora nossa irmã Cellna, devotada companheira de nosso ministério espiri­tual. já atravessou meio século de existência fí­sica, conquistando significativas vitórias em suas batalhas morais. Viúva, há quase vinte anos, dedicou-se aos filhos, com admirável denodo, varando estradas espinhosas e dias escuros de renunciação. Suportou heroicamente o assédio de compactas le­giões de ignorância e miséria que lhe rodeavam o esposo, com quem se consorciara em tarefa de sacrifício. Conheceu, de perto, a perseguição de gênios infernais a que não se rendeu e, lutando, por muitos anos, para atender de modo irrepreensível às obrigações que o mundo lhe assinalava, acrisolou as faculdades medianímicas, aperfeiçoan­do-as nas chamas do sofrimento moral, como se aprimoram as peças de ferro sob a ação do fogo e da bigorna. Ela não é simples instrumento de fenômenos psíquicos. É abnegada servidora na construção de valores do espírito. A clarividência e a clariaudiência, a incorporação sonambúlica e o desdobramento da personalidade são estados em que ingressa, na mesma espontaneidade com que respira, guardando noção de suas responsabilidades e representando, por isso, valiosa colaboradora de nossas realizações. Diligente e humilde, encontrou na plantação do amor fraterno a sua maior alegria e, repartindo o tempo entre as obrigações e os estudos edificantes, transformou-se num acumula­dor espiritual de energias benéficas, assimilando elevadas correntes mentais, com o que se faz me­nos acessível às forças da sombra.

Realmente, ao lado da irmã sob nossa vista, fruíamos deliciosa sensação de paz e reconforto.

Provavelmente fascinado pela onda de alegria Indefinível em que nos banhávamos, Hilário indagou:

— Se extraíssemos agora uma ficha psicos­côpica de dona Celina, a posição dela, como a estamos registrando, seria devidamente caracterizada?

— Perfeitamente — elucidou Aulus, de pron­to —; assinalar-lhe-ia as emanações fluídicas de bondade e compreensão, fé e bom ânimo. Assim como a Ciência na Terra consegue catalogar os elementos químicos que entram nas formações de matéria densa, em nosso campo de matéria rare­feita é possível analisar o tipo de forças sutis que dimanam de cada ser. Mais tarde, o homem poderá examinar uma emissão de otimismo ou de confiança, de tristeza ou desesperação e fixar-lhes a densidade e os limites, como já pode separar e estudar as radiações do átomo de urânio, Os prin­cípios mentais são mensuráveis e merecerão no por-vir excepcionais atenções, entre os homens, qual acontece na atualidade com os fotônios, estudados pelos cientistas que se empenham em decifrar a constituição específica da luz.

Depois de ligeiro intervalo, o Assistente adu­ziu:

— Uma ficha psicoscópica, sobretudo, deter­mina a natureza de nossos pensamentos e, através de semelhante auscultação, é fácil ajuizar dos nos­sos méritos ou das nossas necessidades.

Logo após, nosso orientador convocou-nos a exame detido, junto ao campo encefálico da irmã Celina, acentuando:

— Em todos os processos medianímicos, não podemos esquecer a máquina cerebral como órgão de manifestação da mente. Decerto, já possuem conhecimentos adequados em torno do aparelha­mento orgânico, dispensando-nos a atenção em par­ticularidades técnicas sobre o vaso carnal.

E afagando-lhe a cabeça pintalgada de cabelos brancos, acrescentou:

— Bastar-nos-á sucinto exame da vida intra­craniana, onde estão assentadas as chaves de comunicação entre o mundo mental e o mundo físico.

Centralizando a atenção, através de pequenina lente que Aulus nos estendeu, o cérebro de nossa amiga pareceu-nos poderosa estação radiofônica, reunindo milhares de antenas e condutos, resistên­cias e ligações de tamanho microscópico, à disposição das células especializadas em serviços diver­sos, a funcionarem como detectores e estimulantes, transformadores e ampliadores da sensação e da idéia, cujas vibrações fulguravam aí dentro como raios incessantes, iluminando um firmamento minúsculo.

O Assistente observou conosco aquele precioso labirinto, em que a epífise brilhava como peque­nino sol azul, e falou:

— Não nos convém relacionar minudências re­lativas ao cérebro e ao sistema nervoso em geral, com as quais se encontram vocês familiarizados nos conhecimentos humanos comuns.

Nesse instante, reparei admirado os feixes de associação entre as células corticais, vibrando com a passagem do fluxo magnético do pensamento.

— Recordemos — prosseguiu o instrutor —que o delicado aparelho encefálico reúne milhões de células, que desempenham funções particulares, quais sejam as dos trabalhadores em fila hierárquica, na harmoniosa estrutura de um Estado.

E, enumerando determinadas regiões, trecho a trecho, daquele prodigioso reino pensante, declarou:

— Não precisaremos alongar digressões. As experiências adquiridas pela alma constituem maravilhosas sínteses de percepção e sensibilidade, na condição de Espíritos libertos em que nos encon­tramos, mas especificam-se no equipamento de ma­téria densa como núcleos de controle das manifes­tações da individualidade, perfeitamente analisáveis. É assim que a alma encarnada possui no cérebro físico os centros especiais que governam a cabeça, o rosto, os olhos, os ouvidos e os membros, em conjunto com os centros da fala, da linguagem, da visão, da audição, da memória, da escrita, do paladar, da deglutição, do tato, do olfato, do regis­tro de calor e frio, da dor, do equilíbrio muscular, da comunhão com os valores internos da mente, da ligação com o mundo exterior, da imagina­ção, do gosto estético, dos variados estímulos ar­tísticos e tantos outros quantas sejam as aquisi­ções de experiência entesouradas pelo ser, que conquista a própria individualidade, passo a passo e esforço a esforço, enaltecendo-a pelo trabalho

constante para a sublimação integral, à face de todas as vias de progresso e aprimoramento que

a Terra lhe possa oferecer.

Breve pausa surgiu espontânea.

E porque Hilário e eu não ousássemos inter­ferir, o Assistente continuou:

— Não podemos realizar qualquer estudo de faculdades medianímicas, sem o estudo da perso­nalidade. Considero, assim, de extrema importância a apreciação dos centros cerebrais, que represen­tam bases de operação do pensamento e da von­tade, que influem de modo compreensível em todos os fenômenos mediúnicos, desde a intuição pura à materialização objetiva. Esses recursos, que me­recem a defesa e o auxílio das entidades sábias e benevolentes, em suas tarefas de amor e sacri­fício junto dos homens, quando os medianeiros se sustentam no ideal superior da bondade e do ser­viço ao próximo, em muitas ocasiões podem ser ocupados por entidades inferiores ou animalizadas, em lastimáveis processos de obsessão.

— Mas — interpôs Hilário, judicioso —, dian­te de um campo cerebral tão iluminado quanto o de nossa irmã Celina, será lícitõ aceitar a possi­bilidade de invasão dele por parte de Inteligências menos evolvidas? Será cabível semelhante retro­cesso?

— Não podemos olvidar — considerou o Assis­tente — que Celina se encontra encarnada numa prova de longo curso e que, nos encargos de apren­diz, ainda se encontra muito longe de terminar a lição.

Meditou um momento e filosofou bem-humorado:

— Numa viagem de cem léguas podem ocor­rer muitas surpresas no derradeiro quilômetro do caminho.

Logo após, colocando a destra paternal sobre a fronte da médium, prosseguiu:

— Nossa irmã vem atravessando os seus tes­temunhos de boa-vontade, fé viva, caridade e paciência. Tanto quanto nós, ainda não possui plena quitação com o passado. Somos vasta legião de combatentes em vias de vencer os inimigos que nos povoam a fortaleza íntima ou o mundo de nós mesmos, inimigos simbolizados em nossos velhos hábitos de convívio com a natureza inferior, a nos colocarem em sintonia com os habitantes das som­bras, evidentemente perigosos ao nosso equilíbrio. Se nossa amiga Celina, quanto qualquer de nós, abandonar a disciplina a que somos constrangidos para manter a boa forma na recepção da luz, ren­dendo-se às sugestões da vaidade ou do desâni­mo, que costumamos fantasiar como sendo direitos adquiridos ou injustificável desencanto, decerto so­frerá o assédio de elementos destrutivos que lhe perturbarão a nobre experiência atual de subida. Muitos médiuns se arrojam a prejuízos dessa or­dem. Depois de ensaios promissores e começo bri­lhante, acreditam-se donos de recursos espirituais que lhes não pertencem ou temem as aflições pro­longadas da marcha e recolhem-se à inutilidade, descendo de nível moral ou conchegando-se a im­produtivo repouso, porqüanto retomam inevitavel­mente a cultura dos impulsos primitivos que o trabalho incessante no bem os induziria a olvidar.

E sorrindo:

— Ainda não chegamos à vitória suprema so­bre nós mesmos. Achamo-nos na condição do solo terrestre, que não prescinde do arado protetor ou da enxada prestimosa, a fim de produzir. Sem os instrumentos do trabalho e da luta, aperfeiçoan­do-nos as possibilidades, estaríamos permanente­mente ameaçados pela erva daninha que mais se alastra e se afirma, tanto quanto melhor é a qua­lidade do trato de terra em abandono.

Fitando-nos, de frente, como a recordar o peso das responsabilidades de que nos investíamos, com­pletou:

— Nossas realizações espirituais do presente são pequeninas réstias de claridade sobre as pirâ­mides de sombra do nosso passado. É imprescin­dível muita cautela com as sementeiras do bem para que a ventania do mal não as arrase. É por isso que a tarefa mediúnica, examinada como instrumentação para a obra das Inteligências supe­riores, não é tão fácil de ser conduzida a bom termo, de vez que, contra o canal ainda frágil que se oferece à passagem da luz, acometem as ondas pesadas de treva da ignorância, a se agitarem, com­pactas, ao nosso derredor.

Calou-se o Assistente.

Dir-se-ia que ele também agora se ligava ao campo magnético dos amigos em silêncio, para o trabalho da reunião prestes a começar.


4

Ante o serviço

Leve chamamento à porta provocou a saída de um dos companheiros da atitude de meditação, para atender.

Dois enfermos, uma senhora jovem e um cava­lheiro idoso, custodiados por dois familiares, transpuseram o umbral, localizando-se num dos ângulos da sala, fora do círculo magnético.

— São doentes a serem beneficiados — infor­mou-nos o orientador.

Logo após, um colaborador de nosso plano franqueou acesso a numerosas entidades sofredoras e perturbadas, que se postaram, diante da assem­bléia, formando legião.

Nenhuma delas vinha até nós, constrangida­mente.

Dir-se-ia que se aglomeravam, em derredor dos amigos encarnados em prece, quais mariposas Inconscientes, rodeando grande luz..

Vinham bulhentas, proferindo frases descone­xas ou exclamações menos edificantes, entretanto, logo que atingidas pelas emanações espirituais do grupo, emudeciam de pronto, qual se fossem con­tidas por forças que elas próprias não conseguiam perceber.

Atencioso, Aulus notificou:

— São almas em turvação mental, que acom­panham parentes, amigos ou desafetos às reuniões públicas da Instituição, e que se desligam deles quando os encarnados se deixam renovar pelas idéias salvadoras, expressas na palavra dos que veiculam o ensinamento doutrinário. Modificado o centro mental daqueles que habitualmente vampiri­zam, essas entidades vêem-se como que despejadas de casa, porqüanto, alterada a elaboração do pen­samento naqueles a quem se afeiçoam, experimen­tam súbitas reviravoltas nas posições em que fal­samente se equilibram. Algumas delas, rebeladas, fogem dos templos de oração como este, detestan­do-lhes temporariamente os serviços e armando novas perseguições às suas vítimas, que procuram até o reencontro; contudo, outras, de algum modo tocadas pelas lições ouvidas, demoram-se no local das predicações, em ansiosa expectativa, famintas de maior esclarecimento.

Hilário, que recebia, surpreso, semelhantes in­formes, perguntou, curioso:

— Que ocorre, porém, quando os encarnados não prestam atenção aos ensinamentos ouvidos?

— Sem dúvida, passam pelos santuários da fé na condição de urnas cerradas. Impermeáveis ao bom aviso, continuam inacessíveis à mudança ne­cessária.

— Mas este mesmo fenômeno se repete nas igrejas de outras confissões religiosas?

— Sim. A palavra desempenha significativo papel nas construções do espírito. Sermões e conferências de sacerdotes e doutrinadores, em variados setores da fé, sempre que inspirados no Infinito Bem, guardam o objetivo da elevação moral.

O Assistente meditou um instante e acres­centou:

— Entre os homens, porém, se não é fácil cul­tivar a vida digna, é muito difícil habilitar-se a criatura à morte libertadora. Comumente, desencar­na-se a alma, sem que se lhe desagarrem os pen­samentos, enovelados em situações, pessoas e coisas da Terra. A mente, por isso, continua encarcerada nos interesses quase sempre inferiores do mundo, cristalizada e enfermiça em paisagens inquietan­tes, criadas por ela mesma. Daí o valor do culto religioso respeitável, formando ambiente propício à ascensão espiritual, com indiscutíveis vantagens, não só para os Espíritos encarnados que a ele assis­tem, com sinceridade e fervor, mas também para os desencarnados, que aspiram à própria transfor­mação. Todos os santuários, em seus atos públi­cos, estão repletos de almas necessitadas que a eles comparecem, sem o veículo denso, sequiosas de reconforto. Os expositores da boa palavra po­dem ser comparados a técnicos eletricistas, desli­gando «tomadas mentais», através dos princípios libertadores que distribuem na esfera do pensa­mento.

Sorriu bem-humorado e prosseguiu:

— Em razão disso, as entidades vampirizantes operam contra eles, muitas vezes envolvendo-lhes os ouvintes em fluidos entorpecentes, conduzindo esses últimos ao sono provocado, para que se lhes adie a renovação.

Observando os irmãos retardados que se abei­ravam da mesa num quase semicírculo, tive a idéia de usar o psicoscópio, de modo a examiná-los devi­damente, ao que Aulus informou, prestimoso:

— Não será preciso. Bastará uma análise atenta para a colheita de resultados interessantes, de vez que os nossos amigos estampam no próprio corpo perispiritual os sofrimentos de que são portadores.

Notei que o Assistente não desejava alongar a conversação, decerto preparando-se para colabo­rar nos trabalhos próximos e, por esse motivo, aproveitei os instantes à nossa frente, especifican­do observações, junto aos companheiros menos fe­lizes que se uniam estreitamente uns aos outros, entre a angústia e a expectação.

Pareciam envolvidos em grande nuvem ova-lada, qual nevoeiro cinza-escuro, espesso e móvel, agitado por estranhas formações.

Reparei o conjunto, notando que alguns deles se mostravam enfermos, como se estivessem ainda na carne.

Membros lesados, mutilações, paralisias e ul­cerações diversas eram perceptíveis a rápido olhar.

Talvez porque Hilário e eu nos demorássemos em atencioso exame, na posição de aprendizes em aula, um dos colaboradores espirituais da reunião acercou-se de nós e falou, cordial:

— Nossos irmãos sofredores trazem consigo, individualmente, o estigma dos erros deliberados a que se entregaram. A doença, como resultante de desequilíbrio moral, sobrevive no perispírito, ali­mentada pelos pensamentos que a geraram, quan­do esses pensamentos persistem depois da morte do corpo físico.

— Mas, adquirem melhoras positivas em reu­nião de intercâmbio? — indagou Hilário, espantadiço.

— Sim — esclareceu o interlocutor —, assi­milam idéias novas com que passam a trabalhar, ainda que vagarosamente, melhorando a visão intenor e estruturando, assim, novos destinos. A renovação mental é a renovação da vida.

Meditei na ilusão dos que julgam na morte livre passagem da alma, em demanda do céu ou do inferno, como lugares determinados de alegria e padecimento...

Quão raros na Terra se capacitam de que tra­zemos conosco os sinais de nossos pensamentos, de nossas atividades e de nossas obras, e o túmulo nada mais faz que o banho revelador das imagens que escondemos no mundo, sob as vestes da carne!...

A consciência é um núcleo de forças, em tor­no do qual gravitam os bens e os males gerados por ela mesma e, ali, estávamos defrontados por vasta fileira de almas, sofrendo nos purgatórios diferenciados que lhes eram característicos.

Abeiramo-nos de triste companheiro, de maci­lenta expressão fisionômica, e Hilário, num impulso todo humano, perguntou-lhe:

— Amigo, como te chamas?

— Eu? — tartamudeou o interpelado.

E, num esforço tremendo e inútil para recor­dar-se de alguma coisa, ajuntou:

— Eu não tenho nome...

— Impossível!... — considerou meu colega, dominado de espanto — todos temos um nome.

— Esqueci-me, esqueci-me de tudo... — co­mentou o infeliz, desoladoramente.

— É um caso de amnésia a estudar — aclarou o companheiro da equipe de trabalho que visitá­vamos.

— Fenômeno natural? — interrogou Hilário, perplexo.

— Sim, pode ser natural, em razão de algum desequilíbrio trazido da Terra, mas é possível que o nosso amigo esteja sendo vítima de vigorosa su­gestão pós-hipnótica, partida de algum perseguidor de grande poder sobre os seus recursos mnemôni­cos. Encontra-se ainda profundamente imantado às sensações físicas e a vida cerebral nele ain­da é uma cópia das linhas sensoriais que deixou. Assim considerando, é provável esteja submetido ao império de vontades estranhas e menos dignas, às quais se teria associado no mundo.

— Céus! — clamou meu colega impressiona­do — é possível semelhante dominação depois da morte?

— Como não? a morte é continuação da vida, e na vida, que é eterna, possuimos o que buscamos.

Atento aos nossos estudos da mediunidade, observei:

— Se o nosso amigo desmemoriado for condu­zido ao aparelho mediúnico, manifestar-se-á, acaso, assim, ignorando a identidade que lhe é própria?

— Perfeitamente. E precisará de tratamento carinhoso como qualquer alienado mental comum. Exprimindo-se por algum médium que lhe dê gua­rida, será para qualquer doutrinador terrestre o mesmo enigma que estamos presenciando.

Nesse momento, renteou conosco uma entidade em deplorável aspecto.

Era um homem esguio e triste, exibindo o braço direito paralítico e ressecado.

Atendendo-me ao olhar interrogativo, o com­panheiro, como quem não mais dispunha de tempo para o comentário fraterno, apenas me disse:

— Faça uma auscultação. Repare por si mesmo.

Acerquei-me do amigo sofredor.

Toquei-lhe a fronte, de leve, e registrei-lhe a angústia.

Nas recordações que se lhe haviam cristali­zado no mundo mental, senti-lhe o drama interior.

Fora musculoso estivador no cais, alcoólatra inveterado que, certa feita, de volta a casa, esbofeteou a face paterna, porque o velho genitor lhe exprobrara o procedimento.

Incapaz de revidar, o ancião, cuspinhando san­gue, praguejou, desapiedado:

— Infame! o teu braço cruel será transfor­mado em galho seco... Maldito sejas!

Ouvindo tais palavras que se fizeram seguidas por terrível jacto de força hipnotizante, o mísero tornou à via pública, sugestionado pela maldição recebida, bebericando para esquecer.

Cambaleante, foi vitimado num desastre de bonde, no qual veio a perder o braço.

Sobreviveu por alguns anos, coagulando, con­tudo, no próprio pensamento a idéia de que a expressão paternal tivera a força de uma ordem vingativa a se lhe implantar no fundo dalma e, por isso, ao desencarnar, recuperara o membro dantes mutilado a pender-lhe, ressecado e inerte, no cor­po perispirítico.

Enquanto refletia, o nosso orientador reapro­ximou-se de nós e, percebendo quanto se passava, informou:

— É um caso de reajuste difícil, reclamando tempo e tolerância.

E, afagando os ombros do paralítico, acentuou:

— Nosso amigo traz a mente subjugada pelo remorso com que ambientou nele mesmo a maldi­ção recebida. Exige muito carinho para refazer-se.

Sem despreocupar-me do tema que nos prendia a atenção, inquiri:

— Se esse companheiro utilizar-se da organi­zação mediúnica, transmitirá ao receptor humano as sensações de que se acha investido?

— Sim — elucidou o Assistente —, refletirá no instrumento passivo as impressões que o pos­suem, nos processos de imanização em que se ba­seiam os serviços de intercâmbio.

Sorriu, bondoso, e acrescentou:

— No entanto, não nos percamos agora nos casos particulares. Cada entidade menos equilibra­da de quantas se acham reunidas aqui traz consi­go inquietantes experiências. Observemos de plano mais alto.

E conduziu-me à cabeceira da mesa, onde o nosso amigo Raul Silva ia começar o serviço de oração.


5

Assimilação de correntes mentais

Faltavam apenas dois minutos para as vinte horas, quando o dirigente espiritual mais responsável deu entrada no pequeno recinto.

Nosso orientador articulou a apresentação.

O Irmão Clementino abraçou-nos, acolhedor.

A casa pertencia-nos a todos, explicou sorri­dente. Estivéssemos, pois, à vontade, na tarefa de que nos achávamos investidos.

A essa altura, diversas entidades do nosso pla­no colocaram-se junto dos médiuns que estariam de serviço.

Clementino avançou em direção de Raul Silva, perto de quem se postou em muda reflexão.

Logo após, Aulus convidou-me ao psicoscópio e, graduando-o sob nova modalidade, recomendou­-nos acurado exame.

Foquei os companheiros encarnados em con­centração mental, identificando-os sob aspecto di­ferente.

Dessa vez, os veículos físicos apareciam quais se fossem correntes electromagnéticas em elevada tensão.

O sistema nervoso, os núcleos glandulares e os plexos emitiam luminescência particular. E, justapondo-se ao cérebro, a mente surgia como esfera de luz característica, oferecendo em cada compa­nheiro determinado potencial de radiação.

Assinalando-nos a curiosidade, o Assistente explicou:

— Em qualquer estudo mediúnico, não pode­mos esquecer que a individualidade espiritual, na carne, mora na cidadela atômica do corpo, forma­do por recursos tomados de empréstimo ao ambiente do mundo. Sangue, encéfalo, nervos, ossos, pele e músculos representam materiais que se aglu­tinam entre si para a manifestação transitória da alma, na Terra, constituindo-lhe vestimenta tem­porária, segundo as condições em que a mente se acha.

Nesse instante, o irmão Clementino pousou a destra na fronte do amigo que comandava a assembléia, mostrando-se-nos mais humanizado, quase obscuro.

— O benfeitor espiritual que ora nos dirige —acentuou o nosso instrutor — afigura-se-nos mais pesado porque amorteceu o elevado tom vibratório em que respira habitualmente, descendo à posição de Raul, tanto quanto lhe é possível, para bene­fício do trabalho começante. Influencia agora a vida cerebral do condutor da casa, à maneira dum musicista emérito manobrando, respeitoso, um vio­lino de alto valor, do qual conhece a firmeza e a harmonia.

Notamos que a cabeça venerável de Clemen­tino passou a emitir raios fulgurantes, ao mesmo tempo que o cérebro de Silva, sob os dedos do benfeitor, se nimbava de luminosidade intensa, embora diversa.

O mentor desencarnado levantou a voz como­vente, suplicando a Bênção Divina com expressões que nos eram familiares, expressões essas que Sil­va transmitiu igualmente em alta voz, imprimin­do-lhes diminutas variações.

Com a emotividade que nos invadia a todos, brando silêncio se interpôs, durante rápidos minutos.

Fios de luz brilhante ligavam os componentes da mesa, dando-nos a perceber que a prece os reu­nia mais fortemente entre si.

Terminada a oração, acerquei-me de Silva.

Desejava investigar mais a fundo as impres­sões que lhe assaltavam o campo físico, e observei-lhe, então, todo o busto, inclusive braços e mãos, sob vigorosa onda de força, a eriçar-lhe a pele, num fenômeno de doce excitação, como que «agra­dável calafrio». Essa onda de força descansava sobre o plexo solar, onde se transformava em lu­minoso estímulo, que se estendia pelos nervos até o cérebro, do qual se derramava pela boca, em forma de palavras.

Acompanhando-me a análise, o Assistente ex­plicou:

— O jacto de forças mentais do irmão Clemen­tino atuou sobre a organização psíquica de Silva, como a corrente dirigida para a lâmpada elétrica. Apoiando-se no plexo solar, elevou-se ao sistema neuro-cerebrino, como a energia elétrica da usi­na emissora que, atingindo a lâmpada, se espalha no filamento incandescente, produzindo o fenôme­no da luz.

— E o problema da voltagem? — indaguei, curioso.

— Não foi esquecido. Clementino graduou o pensamento e a expressão, de acordo com a capa­cidade do nosso Raul e do ambiente que o cerca, ajustando-se-lhes às possibilidades, tanto quanto o técnico de eletricidade controla a projeção de energia, segundo a rede dos elementos receptivos.

E sorrindo:

— Cada vaso recebe de conformidade com a estrutura que lhe é própria.

Os confrontos de Aulus sugeriam belas inda­gações. A ligação elétrica gera luz na lâmpada. E ali? O contacto espiritual, decerto, segundo in­feríamos, improvisava forças igualmente a se der­ramarem do cérebro e da boca de Silva, na feição de palavras e raios luminosos...

O instrutor percebeu-nos a muda inquirição e apressou-se em aclarar:

— A lâmpada em cujo bojo se faz luz arroja de si mesma os fotônios que são elementos vivos da Natureza a vibrarem no «espaço físico», atra­vés dos movimentos que lhes são peculiares, e nos­sa alma, em cuja intimidade se processa a idéia irradiante, lança fora de si os princípios espirituais, condensados na força ponderável e múltipla do pensamento, princípios esses com que influimos no «espaço mental». Os mundos atuam uns sobre os outros pelas irradiações que despedem e as almas influenciam-se mutuamente, por intermédio dos agentes mentais que produzem.

A palavra serena e precisa do orientador com­pelia-nos à meditação, embora rápida.

Os claros apontamentos, em torno da energia mental, conduziam-me a preciosas reflexões.

Então, o pensamento não escapava às reali­dades do mundo corpuscular, ponderei de mim para comigo.

Assim como possuímos na Terra valiosas ob­serrações alusivas à química da matéria densa, relacionando-lhe as unidades atômicas, o campo da mente oferecia largas ensanchas ao estudo de suas combinações... Pensamentos de crueldade, revolta, tristeza, amor, compreensão, esperança ou alegria teriam natureza diferenciada, com característicos e pesos próprios, adensando a alma ou sutilizan­do-a, além de lhe definirem as qualidades mag­néticas... A onda mental possuiria determinados coeficientes de força na concentração silenciosa, no verbo exteriorizado ou na palavra escrita...

Compreendia, desse modo, mais uma vez, e sem qualquer obscuridade, que somos naturalmente vítimas ou beneficiários de nossas próprias criações, segundo as correntes mentais que projetamos, es­cravizando-nos a compromissos com a retaguarda de nossas experiências ou libertando-nos para a vanguarda do progresso, conforme nossas delibera­ções e atividades, em harmonia ou em desarmonia com as Leis Eternas...

O solilóquio, porém, não devia alongar-se.

Nosso orientador, atento aos objetivos de nos­sa permanência na casa, chamou-me a novas obser­vações:

— Repararam na comunhão entre Clementino e Silva, no momento da prece?

E, ante a nossa expectação de aprendizes, continuou:

— Vimos aqui o fenômeno da perfeita assi­milação de correntes mentais que preside habitualmente a quase todos os fatos mediúnicos. Para clareza de raciocínio, comparemos a organização de Silva, nosso companheiro encarnado, a um apa­relho receptor, quais os que conhecemos na Terra, nos domínios da radiofonia. A emissão mental de Clementino, condensando-lhe o pensamento e a von­tade, envolve Raul Silva em profusão de raios que lhe alcançam o campo interior, primeiramente pelos poros, que são miríades de antenas sobre as quais essa emissão adquire o aspecto de impressões fra­cas e indecisas. Essas impressões apóiam-se nos centros do corpo espiritual, que funcionam à guisa de condensadores, atingem, de imediato, os cabos do sistema nervoso, a desempenharem o papel de preciosas bobinas de indução, acumulando-se aí num átimo e reconstituindo-se, automaticamente, no cé­rebro, onde possuímos centenas de centros moto­res, semelhante a milagroso teclado de eletroímãs, ligados uns aos outros e em cujos fulcros dinâmi­cos se processam as ações e as reações mentais, que determinam vibrações criativas, através do pensamento ou da palavra, considerando-se o en­céfalo como poderosa estação emissora e receptora e a boca por valioso alto-falante. Tais estímulos se expressam ainda pelo mecanismo das mãos e dos pés ou pelas impressões dos sentidos e dos órgãos, que trabalham na feição de guindastes e condutores, transformadores e analistas, sob o co­mando direto da mente.

A elucidação não podia ser mais simples, con­tudo oferecia oportunidade a mais amplas indagações.

— Temos então aqui a técnica do próprio pen­samento? — perguntou Hilário, com interesse.

— Não tanto — adiantou o interlocutor —; o pensamento que nos é exclusivo flui incessantemente de nosso campo cerebral, tanto quanto as ondas magnéticas e caloríficas que nos são par­ticulares, e usamo-lo normalmente, acionando os recursos de que dispomos.

— Não será, porém, tão fácil estabelecer a diferença entre a criação mental que nos pertence daquela que se nos incorpora à cabeça... — pon­derou meu colega intrigado.

— Sua afirmativa carece de base — exclamou o Assistente. — Qualquer pessoa que saiba mane­jar a própria atenção observará a mudança, de vez que o nosso pensamento vibra em certo grau de freqüência, a concretizar-se em nossa maneira es­pecial de expressão, no círculo dos hábitos e dos pontos de vista, dos modos e do estilo que nos são peculiares.

E, bem-humorado, comentou:

— Em assuntos dessa ordem, é imprescindível muito cuidado no julgar, porque, enquanto afina­mos o critério pela craveira terrena, possuímos uma vida mental quase sempre parasitária, de vez que ocultamos a onda de pensamento que nos éprópria, para refletir e agir com os preconceitos consagrados ou com a pragmática dos costumes preestabelecidos, que são cristalizações mentais no tempo, ou com as modas do dia e as opiniões dos afeiçoados que constituem fácil acomodação com o menor esforço. Basta, no entanto, nos afeiçoe­mos aos exercícios da meditação, ao estudo edifi­cante e ao hábito de discernir para compreender­mos onde se nos situa a faixa de pensamento, identificando com nitidez as correntes espirituais que passamos a assimilar.

Hilário pensou alguns instantes e, estampando na fisionomia o contentamento de quem fizera im­portante descoberta, falou satisfeito:

— Agora percebo como podem surgir fenôme­nos mediúnicos em comezinhas situações da vida, tanto nos feitos notáveis da genialidade, como nos dramas cotidianos...

— Sim, sim... — acentuou o orientador, ago­ra preocupado com o tempo que a nossa palestra­ção consumia — a mediunidade é um dom inerente a todos os seres, como a faculdade de respirar, e cada criatura assimila as forças superiores ou inferiores com as quais sintoniza. Por isso mesmo, o Divino Mestre recomendou-nos oração e vigilân­cia para não cairmos nas sugestões do mal, porque a tentação é o fio de forças vivas a irradiar-se de nós, captando os elementos que lhe são seme­lhantes e tecendo, assim, ao redor de nossa alma, espessa rede de impulsos, por vezes irresistíveis.

E, buscando o lugar que lhe competia nos tra­balhos em andamento, ajuntou:

— Estudemos trabalhando. O tempo utilizado a serviço do próximo é bênção que entesouramOs, em nosso próprio favor, para sempre.


6

Psicofonia consciente

Desdobravam-se os serviços da casa, harmo­niosamente.

Três guardas espirituais entraram na sala, conduzindo infeliz irmão ao socorro do grupo.

Era infortunado solteirão desencarnado que não guardava consciência da própria situação.

Incapaz de enxergar os vigilantes que o tra­ziam, caminhava à maneira de um surdo-cego, impelido por forças que não conseguia identificar.

— É um desventurado obsessor, que acabam de remover do ambiente a que, desde muito tempo, se ajusta — informou Áulus, compadecido. — De­sencarnou em plena vitalidade orgânica, depois de extenuar-se em festiva loucura. Letal intoxicação cadaverizou-lhe o corpo, quando não possuía o me­nor sinal de habilitação para conchegar-se às ver­dades do espírito.

E como quem já conhecia as particularidades da prestação de socorro que, decerto, fora anteci­padamente preparada, continuou explicando:

— Reparem. É alguém a movimentar-se nas trevas de si mesmo, trazido ao recinto sem saber o rumo tomado pelos próprios pés, como qualquer alienado mental em estado grave. Desenfaixando-se da veste de carne, com o pensamento enovelado a paixão por irmã nossa, hoje torturada enferma que sintonizou com ele, a ponto de retê-lo junto de si com aflições e lágrimas, passou a vampi­rizar-lhe o corpo. A perda do veículo físico, na deficiência espiritual em que se achava, deixou-o integralmente desarvorado, como náufrago dentro da noite. Entretanto, adaptando-se ao organismo da mulher amada que passou a obsidiar, nela en­controu novo instrumento de sensação, vendo por seus olhos, ouvindo por seus ouvidos, muitas vezes falando por sua boca e vitalizando-se com os ali­mentos comuns por ela utilizados. Nessa simbiose vivem ambos, há quase cinco anos sucessivos, con­tudo, agora, a moça subnutrida e perturbada acusa desequilíbrios orgânicos de vulto. Por haver a doente solicitado nosso concurso assistencial, so­mos constrangidos a duplo socorro. Para que se cure das fobias que presentemente a assaltam como reflexos da mente dele, que se vê apavorado dian­te das realidades do espírito, é necessário o afastamento dos fluidos que a envolvem, assim como a coluna, abalada pelo abraço constringente da hera, reclama limpeza em favor do reajuste.

Nesse ínterim, os condutores, obedecendo às determinacões de Clementino, localizaram o sofredor ao lado de Dona Eugênia.

O mentor da casa aproximou-se dela e apli­cou-lhe forças magnéticas sobre o córtex cerebral, depois de arrojar vários feixes de raios luminosos sobre extensa região da glote.

Notamos que Eugênia-alma afastou-se do cor­po, mantendo-se junto dele, a distância de alguns centímetros, enquanto que, amparado pelos amigos que o assistiam, o visitante sentava-se rente, inclinando-se sobre o equipamento mediúnico ao qual se justapunha, à maneira de alguém a debruçar-se numa janela.

Ante o quadro, recordei as operações do mun­do vegetal, em que uma planta se desenvolve à custa de outra, e compreendi que aquela associação poderia ser comparada a sutil processo de enxer­tia neuropsíquica.

Suspiros de alívio desprenderam-se do tórax mediúnico que, por instantes, se mostrara algo agitado.

Observei que leves fios brilhantes ligavam a fronte de Eugênia, desligada do veículo físico, ao cérebro da entidade comunicante.

Porque eu lhe dirigisse um olhar de interroga­ção e estranheza, Áulus explicou, prestimoso:

— É o fenômeno da psicofonia consciente ou trabalho dos médiuns falantes. Embora senhorean­do as forças de Eugênia, o hóspede enfermo do nosso plano permanece controlado por ela, a quem se imana pela corrente nervosa, através da qual estará nossa irmã informada de todas as palavras que ele mentalize e pretenda dizer. Efetivamente apossa-se ele temporariamente do órgão vocal de nossa amiga, apropriando-se de seu mundo sensó­rio, conseguindo enxergar, ouvir e raciocinar com algum equilíbrio, por intermédio das energias dela, mas Eugênia comanda, firme, as rédeas da pró­pria vontade, agindo qual se fosse enfermeira con­cordando com os caprichos de um doente, no obje­tivo de auxiliá-lo. Esse capricho, porém, deve ser limitado, porque, consciente de todas as intenções do companheiro infortunado a quem empresta o seu carro físico, nossa amiga reserva-se o direito de corrigi-lo em qualquer inconveniência. Pela cor­rente nervosa, conhecer-lhe-á as palavras na for­mação, apreciando-as previamente, de vez que os impulsos mentais dele lhe percutem sobre o pensamento sarnento como verdadeiras marteladas. Pode, as­sim, frustrar-lhe qualquer abuso, fiscalizando-lhe os propósitos e expressões, porque se trata de uma entidade que lhe é inferior, pela perturbação e pelo sofrimento em que se encontra, e a cujo nível não deve arremessar-se, se quiser ser-lhe útil, O Espírito em turvação é um alienado mental, requi­sitando auxilio. Nas sessões de caridade, qual a que presenciamos, o primeiro socorrista é o mé­dium que o recebe, mas, se esse socorrista cai no padrão vibratório do necessitado que lhe roga ser­viço, há pouca esperança no amparo eficiente. O médium, pois, quando integrado nas responsabili­dades que esposa, tem o dever de colaborar na preservação da ordem e da respeitabilidade na obra de assistência aos desencarnados, permitindo-lhes a livre manifestação apenas até o ponto em que essa manifestação não colida com a harmonia ne­cessária ao conjunto e com a dignidade impres­cindível ao recinto.

— Então — alegou Hilário —, nesses traba­lhos, o médium nunca se mantém a longa distância do corpo...

Sim, sempre que o esforço se refira a en­tidades em desajuste, o medianeiro não deve au­sentar-se demasiado. -. Com um demente em casa, o afastamento é perigoso, mas se nosso lar está custodiado por amigos cônscios de si, podemos excursionar até muito longe, porqüanto o nosso domicílio demorar-se-á guardado com segurança. No concurso aos irmãos desequilibrados, nossa pre­sença é imperativo dos mais lógicos.

Fitou Eugênia preocupada e vigilante, ao pé do enfermo que começava a falar, e sentenciou:

— Se preciso, nossa amiga poderá retomar o próprio corpo num átimo. Acham-se ambos num consórcio momentâneo, em que o comunicante éa ação, mas no qual a médium personifica a von­tade. Em todos os campos de trabalho, é natural que o superior seja responsável pela direção do inferior.

O visitante passou a destra pela face num gesto de alívio e bradou, transformado:

— Vejo! Vejo!.. Mas por que encantamento me prendem aqui? que algemas me afívelam a este móvel pesado?

E acentuando a expressão de assombro, pros­seguia:

— Qual o objetivo desta assembléia em si­lêncio de funeral? quem me trouxe? quem me trouxe?...

Vimos que Eugênia, fora do veículo denso, es­cutava todas as palavras que lhe fluíam da boca, transitoriamente ocupada pelo peregrino das som­bras, arquivando-as, de maneira automática, no centro da memória.

— O sofredor — disse o Assistente, convic­to —, ao contacto das forças nervosas da médium, revive os próprios sentidos e deslumbra-se. Quei­xa-se das cadeias que o prendem, cadeias essas que em cinqüenta por cem decorrem da contenção cautelosa de Eugênia. Porta-se, dessa forma, como um doente controlado, qual se faz imprescindível.

— E se nossa irmã relaxasse a autoridade? — inquiriu Hilário, curioso.

— Não estaria em condições de prestar-lhe be­nefícios concretos, porque então teria descido ao desvairamento do mendigo de luz que nos propo­mos auxiliar — esclareceu o nosso instrutor, com calma.

E numa imagem feliz para ilustrar o assunto, ajuntou:

— Um médium passivo, em tais circunstâncias, pode ser comparado à mesa de serviço cirúrgico, retendo o enfermo necessitado de concurso médico. Se o móvel especializado não possuísse firmeza e humildade, qualquer intervenção seria de todo im­possível.

— Mas nossa amiga está enxergando, cons­cientemente, a entidade que se lhe associa ao vaso carnal, com tanta clareza quanto nós? — pergun­tei por minha vez, atento aos meus objetivos de aprendizado.

— No caso de Eugênia, isso não acontece —elucidou Aulus, condescendente —, porque o esfor­ço dela na preservação das próprias energias e o interesse na prestação de auxílio com todo o coefi­ciente de suas possibilidades não lhe permitem a necessária concentração mental para surpreender-lhe a forma exterior. Entretanto, reproduzem-se nela as aflições e os achaques do socorrido. Sen­te-lhe a dor e a excitação, registrando-lhe o sofri­mento e o mal-estar.

Ao passo que se dilatava a nossa conversação, o comunicante gritava, contundente:

— Estaremos, porventura, num tribunal? por que uma recepção estranha quanto esta, quando sou o importunado que comparece? a mim, Libório dos Santos, ninguém ofende sem revide...

Como se a consciência o torturasse, através de criações interiores que não nos era dado perceber, vociferava, frenético:

— Quem me acusa de haver espoliado minha mãe, lançando-a ao desamparo? não sou culpado pelas provações dos outros... Não estarei, acaso, mais doente que ela?...

Nessa altura, Hilário fixou o obsessor, com­padecidamente, e indagou, respeitoso:

— Não serão os seus padecimentos simples angústia moral?

— Não tanto assim — aclarou Aulus —; as crises morais de qualquer teor se nos refletem até no veículo de manifestação. O beneficiário desta hora tem o cérebro perispirítico dilacerado e a flagelação que lhe invade o corpo fluidico é tão au­têntica quanto a de um homem comum, supliciado por um tumor intracraniano.

Demonstrando-se sumamente interessado no estudo, Hilário acentuou:

— Se fôssemos nós os companheiros encar­nados, com sede de maiores conhecimentos da vida espiritual, poderíamos submetê-lo a interrogatório minucioso? Estaria em posição de identificar-se perfeitamente?

Aulus abanou levemente a cabeça e conside­rou:

Nas condições em que se encontra, o co­metimento não seria viável. Estamos abordando apenas um problema de caridade, que se reveste, porém, da mais elevada importância para a vida em si. Na hipótese de efetivarmos o tentame, con­seguiríamos tão-somente infrutuosa inquirição, endereçada a um alienado mental, que, por algum tempo, ainda se mostrará lesado em expressivos centros do raciocínio. Trazendo consigo a heran­ça de uma existência desequilibrada e fortemente atraído para a mulher que o ama e de quem se fez desabrido perseguidor, a nada aspira, por ago­ra, senão à vida parasitária, junto à irmã, de cujas energias se alimenta. Envolve-a em fluidos enfermiços e nela se apóia, assim como a trepadeira que se alastra e prolifera sobre um muro... So­mando tudo isso ao choque oriundo da morte, não temos o direito de esuerar dele uma experiência completa de identificação pessoal.

Enquanto isso, Libório prosseguia, alucinado:

— Quem poderá suportar esta situação? al­guém me hipnotiza? quem me fiscaliza o pensamento? Valerá restituir-me a visão, manietando-me os braços?

Fixando-o com simpatia fraterna, o Assistente informou-nos:

— Queixa-se ele do controle a que é subme­tido pela vontade cuidadosa de Eugênia.

Ruminando as indagações que nos esfervilha­vam na alma, Hilário objetou:

— Consciente a médium, qual se encontra, e ouvindo as frases do comunicante, que lhe utiliza a boca assim vigiado por ela, é possível que Dona Eugênia seja assaltada por grandes dúvidas... Não poderá ser induzida a admitir que as palavras pro­feridas pertençam a ela mesma? Não sofrerá va­cilações?

— Isso é possível — concordou o Assisten­te —; no entanto, nossa irmã está habilitada a perceber que as comoções e as palavras desta hora não lhe dizem respeito.

— Mas... e se a dúvida a invadisse? — in­sistiu meu colega.

— Então — disse Aulus, cortês —, emitiria da própria mente positiva recusa, expulsando o co­municante e anulando preciosa oportunidade de serviço. A dúvida, nesse caso, seria congelante faixa de forças negativas...

Todavia, porque Raul Silva iniciara a conver­sação com o hóspede revoltado, o orientador amigo convidou-nos a melhor observar.


7

Socorro espiritual

Sob a influência de Clementino, que o envolvia inteiramente, Silva levantara-se e dirigia-se ao co­municante com bondade:

— Meu amigo, tenhamos calma e roguemos o amparo divino!

— Estou doente, desesperado...

— Sim, todos somos enfermos, mas não nos cabe perder a confiança. Somos filhos de Nosso Pai Celestial que é sempre pródigo de amor.

— É padre?

— Não. Sou seu irmão.

— Mentira. Nem o conheço...

— Somos uma só família, à frente de Deus.

O interlocutor conturbado riu-se irônico e acen­tuou:

— Deve ser algum sacerdote fanatizado para conversar nestes termos!..

A paciência do doutrinador sensibilizava-nos.

Não recebia Libório, qual se fora defrontado por um habitante das sombras, suscetível de acordar-lhe qualquer impulso de curiosidade menos digna.

Ainda mesmo descontando o valioso concurso do mentor que o acompanhava, Raul emitia de si mesmo sincera compaixão de mistura com inequí­voco interesse paternal. Acolhia o hóspede sem estranheza ou irritação, como se o fizesse a um familiar que regressasse demente ao santuário doméstico.

Talvez por essa razão o obsessor a seu turno se revelava menos agastadiço. Tão logo passou a entender-se, de algum modo, com o dirigente da casa, observamos que Eugênia se revigorava no es­forço assistencial que lhe competia.

— Não sou um ministro religioso — continua­va Raul, imperturbável —, mas desejo me aceite como seu amigo.

— Que irrisão! não existem amigos quando a miséria está conosco... Dos companheiros que co­nheci, todos me abandonaram. Resta-me apenas Sara! Sara, que não deixarei...

Fixou a expressão de quem se detinha na lem­brança da pessoa a quem se referira e acrescentou com recalcada indignação:

Ignoro por que me entravam agora os pas­sos. É inútil. Aliás, não sei a razão pela qual me contenho. Um homem provocado, qual me vejo, decerto deveria esbofeteá-los a todos... Afinal, que fazem aqui estes cavalheiros silenciosos e estas mulheres mudas? que pretendem de mim?

— Estamos em prece por sua paz — falou Silva, com inflexão de bondade e carinho.

— Grande novidade! que há de. comum entre nós? Devo-lhes algo?

— Pelo contrário — exclamou o interlocutor, convicto —, nós somos quem lhe deve atenção e assistência. Estamos numa instituição de serviço fraterno e é fora de dúvida que, num hospital, a ninguém será lícito inquirir da luta particular da­queles que lhe batem à porta, porque, antes de tudo, é dever da medicina e da enfermagem a pres­tação de socorro às feridas que sangram.

Ante o argumento enunciado com sinceridade e simpleza, o renitente sofredor pareceu apaziguar-se ainda mais. Jactos de energia mental, partidos de Silva, alcançavam-no agora em cheio, no tórax, como a lhe buscarem o coração.

Libério tentou falar, contudo, à maneira de um viajante que já não pode resistir à aridez do deserto, comoveu-se diante da ternura daquele ines­perado acolhimento, a surgir-lhe por abençoada fonte de água fresca. Surpreendido, notou que a palavra lhe falecia embargada na garganta.

Sob o sábio comando de Clementino, falou o doutrinador com afetividade ardente:

— Libério, meu irmão!

Essas três palavras foram pronunciadas com tamanha inflexão de generosidade fraternal que o hóspede não pôde sopitar o pranto que lhe subia do âmago.

Raul avançou para ele, impondo-lhe as mãos, das quais jorrava luminoso fluxo magnético, e con­vidou:

— Vamos orar!

Findo um minuto de silêncio, a voz do diretor da casa, sob a inspiração de Clementino, suplicou enternecidamente:

- Divino Mestre, lança compassivo olhar sobre a nossa família aqui reunida...

Viajores de muitas romagens, repousa­mos neste instante sob a árvore bendita da prece e te imploramos amparo!

Todos somos endividados para contigo, todos nos achamos empenhados à tua bondade infinita, à maneira de servos insolventes para com o senhor.

Mas, rogando-te por nós todos, pedimos particularmente agora pelo companheiro que, decerto, encaminhas ao nosso coração, qual se fora uma ovelha que torna ao aprisco ou um irmão consangüíneo que volta ao Lar..

Mestre, dá-nos a alegria de recebê-lo de braços abertos.

Sela-nos os lábios para que lhe não per­guntemos de onde vem e descerra-nos a alma para a ventura de tê-lo conosco em paz.

Inspira-nos a palavra a fim de que a im­prudência não se imiscua em nossa língua, aprofundando as chagas interiores do irmão, e ajuda-nos a sustentar o respeito que lhe devemos...

Senhor, estamos certos de que o acaso não te preside às determinações!

Teu amor, que nos reserva invariavel­mente o melhor, cada dia, aproxima-nos uns dos outros para o trabalho justo.

Nossas almas são fios da vida em tuas mãos!

Ajusta-os para que obtenhamos do Alto o favor de servir contigo!

Nosso Libório é mais um irmão que che­ga de longe, de recuados horizontes do pas­sado...

Ó Senhor, auxilia-nos para que ele não nos encontre proferindo o teu nome em vão!...

O visitante chorava.

Via-se, porém, com clareza, que não eram as palavras a força que o convencia, mas sim o sen­timento irradiante com que eram estruturadas.

Raul Silva, sob a destra radiosa de Clementino, afigurava-se-nos aureolado de intensa luz.

— Ó Deus, que se passa comigo?... — con­seguiu gritar Libório em lágrimas.

O irmão Clementino fez breve sinal a um dos assessores de nosso plano, que apressadamente acorreu, trazendo interessante peça que me pare­ceu uma tela de gaze tenuíssima, com dispositivos especiais, medindo por inteiro um metro quadrado, aproximadamente.

O mentor espiritual da reunião manobrou pe­quena chave num dos ângulos do aparelho e o tecido suave se cobriu de leve massa fluídica, bran­quicenta e vibrátil.

Em seguida, postou-se novamente ao pé de Silva, que, controlado por ele, disse ao comunicante:

— Lembre-se, meu amigo, lembre-se! Faça um apelo à memória! Veja à frente os quadros que se desenrolarão aos nossos olhos!...

De imediato, como se tivesse a atenção com­pulsoriamente atraida para a tela, o visitante fi­xou-a e, desde esse momento, vimos com assombro que o retângulo sensibilizado exibia variadas cenas de que o próprio Libório era o principal protago­nista. Recebendo-as mentalmente, Raul Silva pas­sou a descrevê-las:

— Observe, meu amigo! É noite. Ouve-se um burburinho de algazarra a distância... Sua mãe velhinha chama-o à cabeceira e pede-lhe assistên­cia... Está exausta... Você é o filho que lhe resta... Derradeira esperança de flagelada vida. Único arrimo... A pobre sente-se morrer. A disp­néia martiriza-a... E o distúrbio cardíaco pres­sagiando o fim do corpo... Tem medo. Declara-se receosa da solidão, de vez que é sábado carnava­lesco e os vizinhos se ausentaram na direção dos centros festivos. Parece uma criança atemoriza­da... Contempla-o, ansiosa, e roga-lhe que fique... Você responde que sairá tão-somente por alguns minutos... o bastante para trazer-lhe a medica­ção necessária... Em seguida, avança, rápido, para uma gaveta situada em aposento próximo e apropria-se do único dinheiro de que a enferma dispõe, algumas centenas de cruzeiros, com que você se julga habilitado a desfrutar as falsas alegrias do seu clube... Amigos espirituais de seu lar abei­ram-se de você, implorando socorro em favor da doente, quase moribunda, mas você se mostra im­permeável a qualquer pensamento de compaixão... Dirige algumas palavras apressadas à enferma e sai para a rua. Em plena via pública, imanta-se aos indesejáveis companheiros desencarnados com os quais se afina... entidades turbulentas, hipno­tizadas pelo vício, com as quais você se arrasta ao prazer... Por três dias e quatro noites conse­cutivos, entrega-se à loucura, com esquecimento de todas as obrigações... Somente na madrugada de quarta-feira você volta estafado e semi-incons­ciente... A velhinha, socorrida por braços anôni­mos, não o reconhece mais... Aguarda, resigna­damente, a morte, enquanto você se encaminha para um quarto dos fundos, na expectativa de con­seguir um banho que o auxilie a refazer-se... Abre o gás e senta-se por alguns minutos, experimen­tando a cabeça entontecida... O corpo exige des­canso, depois da louca folia... A fadiga surge, insopitável... Desapercebe-se de si mesmo e dor­me semi-embriagado, perdendo a existência, por­que as emanações tóxicas lhe cadaverizam o cor­..... Na manhã clara de sol, um rabecão leva-o ao necrotério, como simples suicida...

Nessa altura, o interlocutor, como se voltasse de um pesadelo, bradou desesperado:

— Oh! esta é a verdade! a verdade!.., onde está minha casa? Sara, Sara, quero minha mãe, minha mãe!...

— Acalme-se! — recomendou Raul, compade­cido — nunca nos faltará o socorro divino! seu lar, meu amigo, cerrou-se com os seus olhos de carne e sua genitora, de outras esferas, lhe estende os braços amorosos e santificantes.

O comunicante, vencido, caiu em lágrimas.

Tão grande lhe surgiu a crise emotiva que o mentor espiritual do grupo se apressou a desligá-lo do equipamento mediúnico, entregando-o aos vigi­lantes para que fosse conveniententente abrigado em organização próxima.

Libório, em fundo processo de transformação, afastou-se, tornando Eugênia à posição normal.

E porque a tela regressasse à transparência do início, desfechei sobre o nosso orientador algu­mas indagações improvisadas.

Que função desempenhava aquele retângulo que eu ainda não conhecia? que cenas eram aquelas que se haviam desdobrado céleres sob a nossa admiração?

— Aquele aparelho — informou Aulus, gentil — é um «condensador ectoplásmico». Tem a pro­priedade de concentrar em si os raios de força projetados pelos componentes da reunião, repro­duzindo as imagens que fluem do pensamento da entidade comunicante, não só para a nossa obser­vação, mas também para a análise do doutrinador, que as recebe em seu campo intuitivo, agora auxi­liado pelas energias magnéticas do nosso plano.

— Evidentemente, a engrenagem de semelhan­te mecanismo deve ser maravilhosa! — exclamou Hilário, sob forte impressão.

— Nada de espanto — alegou o orientador —; o hóspede espiritual apenas contempla os reflexos da mente de si mesmo, à maneira de pessoa que se examina, através de um espelho.

— Mas, se estamos à frente de um conden­sador de forças — considerei —, precisamos concluir que o êxito do trabalho depende da colabo­ração de todos os componentes do grupo...

— Exato — confirmou o Assistente —, as energias ectoplásmicas são fornecidas pelo conjunto dos companheiros encarnados, em favor de irmãos que ainda se encontram semimaterializa­dos nas faixas vibratórias da experiência física -Por isso mesmo, Silva e Clementino necessitam do concurso geral para que a máquina do serviço fim­cione tão harmoniosamente quanto seja possível. Pessoas que exteriorizem sentimentos menos dig­nos, equivalentes a princípios envenenados nasci­dos das viciações de variada espécie, perturbam enormemente as atividades dessa natureza, porqüanto arrojam no condensador as sombras de que se fazem veículo, prejudicando a eficiência da as­sembléia e impedindo a visão perfeita da tela por parte da entidade necessitada de compreensão e de luz.

Levava-nos o assunto a diferentes inquirições, mas o nosso orientador lançou-nos um olhar dis­creto, como a pedir-nos silêncio e atenção.


8

Psicofonia sonambúlica

Sob a guarda de venerando amigo, que mais se nos afigurava um nume apostolar, pobre Espírito dementado varou o recinto.

Lembrava um fidalgo antigo, repentinamente arrancado ao subsolo, porque os fluidos que o re­vestiam era verdadeira massa escura e viscosa, cobrindo-lhe a roupagem e despedindo nauseabun­das emanações.

Nenhuma das entidades sofredoras que se aco­tovelavam à frente exibia tão horrenda fácies.

Aqui e ali, nos variados semblantes a se com­primirem no lugar reservado a irmãos menos feli­zes, as máscaras de sofrimento eram suavizadas por sinais inequívocos de arrependimento, fé, humildade, esperança...

Mas naquele rosto patibular, parecendo emer­gir dum lençol de lama, aliavam-se a frieza e a malignidade, a astúcia e o endurecimento.

Ante a expressão com que surgia de inopi­no, os próprios Espíritos perturbados recuaram receosos.

Na destra, o estranho recém-chegado trazia um azorrague que tentava estalar, ao mesmo tempo que proferia estrepitosas exclamações.

— Quem me faz chegar até aqui, contra a minha vontade? — bramia, semi-afônico. — Covardes! por que me segregarem assim? onde estão os abutres que me devoraram os olhos? Infames! Pagar-me-ão caro os ultrajes sofridos!...

E evidenciando o extremo desequilíbrio men­tal de que se fazia portador, continuava em rude tom de voz:

— Quem disse que a malfadada revolução dos franceses terá reflexos no Brasil? a loucura de um povo não pode alastrar-se a toda a Terra... Os privilégios dos nobres são invioláveis! Vêm dos reis, que são indiscutívelmente os escolhidos de Deus! Defenderemos nossas prerrogativas, exterminando a propaganda dos rebeldes e regicidas! Venderei meus escravos alfabetizadoS, nada de pan­fletos e comentários da rebelião. Como produzir sem o chicote no lombo? Cativos são cativos, se­nhores são senhores. E todos os fujões e crimi­nosos conhecerão o peso dos meus braços... Ma­tarei sem piedade. Cinco troncos de suplício! Cinco troncos! Eis aquilo de que necessito para refazer a nossa tranqüilidade.

— Foi um fazendeiro desumano — esclareceu nosso orientador amigo. — Desencarnou nos úl­timos dias do século 18, mas ainda conserva a mente estagnada na concha do próprio egoísmo. Nada percebe, por enquanto, senão os quadros in­teriores, criados por ele mesmo, constando de es­cravos, dinheiro e lucros da antiga propriedade rural em que enterrou o pensamento, converten­do-se hoje em vampiro inconsciente de almas reen­carnadas que lhe foram queridas no Brasil colonial. Com todo o respeito que devemos à fraternidade, podemos dizer que ele nada mais fora que desa­piedado algoz dos infortunados cativos que lhe caíam sob o guante de ferro. Detentor de vastís­simo latifúndio, possuía consigo larga, legião de servidores que lhe conheceram, de perto, a tirania e a perversidade.

Valendo-me da pausa espontânea, fitei o rosto do triste recém-chegado, com mais atenção, reco­nhecendo que os seus olhos, embora móveis quanto os de um felino, estavam vidrados, mortos...

Ia apontar para aquelas órbitas inexpressi­vas, quando o instrutor, adivinhando-me o impulso, acrescentou:

— Odiava os trabalhadores que lhe fugiam às garras e quando conseguia arrebatá-los ao quilom­bo, não somente os algemava aos troncos de mar­tírio, mas queimava-lhes os olhos, reduzindo-os à cegueira, para escarmento das senzalas. Alguns dos raros quilombolas que resistiam à morte eram sentenciados, depois de cegos, às mandíbulas de cães bravios, de cuja sanha não conseguiam esca­par. Com semelhante sistema de repressão, ins­talou o terror em derredor dos seus passos, gran­jeando, então, fama e riqueza - Contudo, veio a jornada inevitável do túmulo e, nessa fase nova, não encontrou senão desafetos, a se levantarem, junto dele, na feição de temíveis perseguidores. Muitas vítimas de alma branda lhe haviam descul­pado as ofensas, mas outras não conseguiram a força para o perdão espontâneo e converteram-se em vingadores do passado a lhe cumularem o es­pírito de aflitivo pavor. Emaranhado nas teias da usura e fazendo do ouro o único poder em que acreditava, nem de leve se sentiu transportado de um modo de vida para outro, através da morte. Crê-se num cárcere de trevas, atormentado pelos escravos, prisioneiro das próprias vítimas. Vive, assim, entre a desesperação e o remorso. Marti­rizado pelas reminiscências das flagelações que de­cretava e hipnotizado pelos algozes de agora, dos quais no pretérito foi verdugo, vê-se reduzido a extrema cegueira, por se lhe desequilibrarem no corpo espiritual as faculdades da visão.

Enquanto se nos alongava o entendimento, o infeliz foi situado junto de Dona Celina.

A medida impressionou-me desfavoravelmente.

Logo Dona Celina, o melhor instrumento da casa, é quem deveria acolher o indesejável comunicante?

Reparei-lhe a luminosa auréola, contrastando com a vestimenta pestilencial do forasteiro, e dei­xei-me avassalar por incoercível temor.

Semelhante providência não seria o mesmo que entregar uma harpa delicada às patas de uma fera?

Aulus, porém, deu-se pressa em explicar-nos:

— Acalmem-se, O amigo dementado penetrou o templo com a supervisão e o consentimento dos mentores da casa. Quanto aos fluidos de natureza deletéria, não precisamos temê-los. Recuam ins­tintivamente ante a luz espiritual que os fustiga ou desintegra. É por isso que cada médium pos­sui ambiente próprio e cada assembléia se carac­teriza por uma corrente magnética particular de preservação e defesa. Nuvens infecciosas da Terra são diariamente extintas ou combatidas pelas irra­diações solares, e formações fluídicas, inquietan­tes, a todo momento são aniquiladas ou varridas do Planeta pelas energias superiores do Espírito. Os raios luminosos da mente orientada para o bem incidem sobre as construções do mal, à feição de descargas elétricas. E, compreendendo-se que mais ajuda aquele que mais pode, nossa irmã Celina é a companheira ideal para o auxílio desta hora.

Indicando-a, exclamou:

— Observemos.

A médium desvencilhou-se do corpo físico, como alguém que se entregava a sono profundo, e con­duziu consigo a aura brilhante de que se coroava.

Clementino não teve necessidade de socorrê­-la. Parecia afeita àquele gênero de tarefa. Ainda assim, o condutor do grupo amparou-a, solícito.

A nobre senhora fitou o desesperado visitante com manifesta simpatia e abriu-lhe os braços, au­xiliando-o a senhorear o veículo físico, então em sombra.

Qual se fora atraído por vigoroso ímã, o sofredor arrojou-se sobre a organização física da médium, colando-se a ela, instintivamente.

Auxiliado pelo guardião que o trazia, sentou-se com dificuldade, afigurando-se-me intensivamente ligado ao cérebro mediúnico.

Se Eugênia revelara-se benemérita enfermeira, Dona Celina surgia aos nossos olhos por abnegada mãezinha, tal a devoção afetiva para com o hós­pede infortunado.

Dela partiam fios brilhantes a envolvê-lo in­teiramente e o recém-chegado, em vista disso, não obstante senhor de si, demonstrava-se criteriosa-mente controlado.

Assemelhava-se a um peixe em furiosa reação, entre os estreitos limites de um recipiente que, em vão, procurava dilacerar.

Projetava de si estiletes de treva, que se fun­diam na luz com que Celina-alma o rodeava, de­dicada.

Tentava gritar impropérios, mas debalde. A médium era um instrumento passivo no ex­terior, entretanto, nas profundezas do ser, mostrava as qualidades morais positivas que lhe eram con­quista inalienável, impedindo aquele irmão de qual­quer manifestação menos digna.

— Eu sou José Maria... — clamava o visi­tante, irritadíssimo, enfileirando outros nomes com o evidente intuito de lançar importância sobre a sua origem.

Amontoava reclamações, deitava reprimendas e revoltava-se exasperado, contudo, percebi que não usava palavras semelhantes às que proferira junto de nós. Achava-se como que manietado, vencido, embora prosseguisse rude e áspero.

Aparecia tão completamente implantado na or­ganização fisiológica da medianeira, tão espontâneo e tão natural, que não sopitei as perguntas a me escorrerem céleres do pensamento.

A mediunidade falante em Celina era diversa? Eugênia e ela se haviam desligado da veste carnal, durante o trabalho... Por que a primeira se man­tivera preocupada, qual enfermeira inquieta, en­quanto que a segunda parecia devotada tutora do irmão dementado, seguindo-o com cuidados de mãe? por que numa delas a expectação atormentada e na outra a serena confiança?

Desculpando-nos a condição de aprendizes, Au­lus passou a esclarecer-nos, enquanto Clementino e Raul Silva amparavam o comunicante, através de orações e frases renovadoras de incentivo ao bem.

— Celina — explicou, bondoso — é sonâm­bula perfeita. A psicofonia, em seu caso, se pro­cessa sem necessidade de ligação da corrente ner­vosa do cérebro mediúnico à mente do hóspede que o ocupa. A espontaneidade dela é tamanha na cessão de seus recursos às entidades necessitadas de socorro e carinho, que não tem qualquer dificuldade para desligar-se de maneira automáti­ca do campo sensório, perdendo provisoriamente o contacto com os centros motores da vida cere­bral. Sua posição medianímica é de extrema pas­sividade. Por isso mesmo, revela-se o comunicante mais seguro de si, na exteriorização da própria personalidade. Isso, porém, não indica que a nos­sa irmã deva estar ausente ou irresponsável. Junto do corpo que lhe pertence, age na condição de mãe generosa, auxiliando o sofredor que por ela se exprime qual se fora frágil protegido de sua bondade. Atraiu-o a si, exercendo um sacrifício voluntário, que lhe é doce ao coração fraterno, e José Maria, desvairado e desditoso, imensamente inferior a ela, não lhe pôde resistir. Permanece, assim, agressivo tanto quanto é, mas vê-se contro­lado em suas menores expressões, porque a mente superior subordina na que se lhe situam à reta­guarda, nos domínios do espírito. É por essa razão que o hóspede experimenta com rigor o do­mínio afetuoso da missionária que lhe dispensa amparo assistencial. Impelido a obedecer-lhe, rece­be-lhe as energias mentais constringentes que o obrigam a sustentar-se em respeitosa atitude, não obstante revoltado como se encontra.

Diante da pausa que se fazia natural, repa­ramos que Silva conseguia franco progresso na doutrinação.

O ex-tirano rural começava a assimilar algu­mas réstias de luz.

Hilário, contudo, provocou a continuidade da lição, perguntando:

— Embora seja preciosa auxiliar, como vemos, não se lembrará Dona Celina das palavras que o visitante pronuncia por seu intermédio?

— Se quiser, poderá recordá-las com esforço, mas na situação em que se reconhece, não vê qual­quer vantagem na retenção dos apontamentos que ouve.

— Indubitavelmente — ponderou meu colega — observamos singular diferença entre as duas mé­diuns que caíram em transe... Tenho a idéia de que, na psicofonia consciente, Dona Eugênia exer­cia um controle mais direto sobre o hóspede que lhe utilizava os recursos, ao passo que Dona Celina, embora vigiando o companheiro que se comunica, deixa-o mais à vontade, mais livre... Caso não fosse Dona Celina a trabalhadora hábil, capaz de intervir a tempo, em qualquer circunstância menos agradável, não seria de preferir as faculdades de Dona Eugênia?

— Sim, Hilário, você tem razão, O sonam­bulismo puro, quando em mãos desavisadas, pode produzir belos fenômenos, mas é menos útil na construção espiritual do bem. A psicofonia inconsciente, ­ naqueles que não possuem méritos morais suficientes à própria defesa, pode levar à posses­são, sempre nociva, e que, por isso, apenas se evi­dencia integral nos obsessos que se renderam às

forças vampirizantes. -

Hilário refletiu um momento e tornou a con­siderar:

— Aqui, vemos a médium fora do vaso físico. dominando mentalmente a entidade que lhe é inferior... Mas... e se fosse o contrário? se tivés­semos aqui uma entidade intelectualmente superior senhoreando mentalmente a médium?

— Nesse caso — redargüiu o paciente inter­locutor —, Celina seria naturalmente controlada. Se o comunicante fosse, nessa hipótese, uma inte­ligência degenerada e perversa, a fiscalização correria por conta dos mentores da casa e, em se tratando de um mensageiro com elevado patrimô­nio de conhecimento e virtude, a médium apassi­var-se-ia com satisfação, porqüanto lhe aproveita­ria as vantagens da presença, tal como o rio se beneficia com as chuvas que caem do alto.

O instrutor ia continuar, mas Clementino so­licitou-lhe o concurso para a remoção de José Maria que, algo renovado, principiava a aceitar o serviço da prece, chegando mesmo a atingir a feli­cidade de chorar.

Nosso orientador passou a contribuir na assis­tência ao visitante, que foi novamente entregue ao amigo paternal que o trazia, a fim de internar-se em organização socorrista distante.


9

Possessão

O cavalheiro doente, na pequena fila de quatro pessoas que haviam comparecido à cata de socorro, parecia incomodado, aflito...

Articulava palavras que eu não conseguia re­gistrar com clareza, quando o irmão Clementino, consultado por Áulus, disse, cortês, para o Assis­tente:

— Sim, já que o esforço se destina a estudos, permitiremos a manifestação.

Percebi que o nosso orientador solicitava al­guma demonstração importante.

Convidados pelo instrutor, abeiramo-nos do moço enfermo que se fazia assistir por uma senhora de cabelos grisalhos, sua própria mãezinha.

Atendendo às recomendações do supervisor, os guardas admitiram a passagem de uma entidade evidentemente aloucada, que atravessou, de cho­fre, as linhas vibratórias de contenção, vociferan­do, frenética:

— Pedro! Pedro!...

Parecia ter a visão centralizada no doente, porque nada mais fixava além dele. Alcançando o nosso irmão encarnado, este, de súbito, desfecha um grito agudo e cai desamparado.

A velha progenitora mal teve tempo de sua­vizar-lhe a queda espetacular.

De imediato, sob o comando de Clementino, Silva determinou que o rapaz fosse transferido para um leito de câmara próxima, isolando-o da assembléia.

Dona Celina foi incumbida do trabalho de as­sistência.

Junto dela acompanhamos o enfermo com ca­rinhoso interesse.

As variadas tarefas do recinto prosseguiram sem quebra de ritmo, enquanto nos insulávamos no aposento para a cooperação que o caso exigia.

Pedro e o obsessor que o jugulava pareciam agora fundidos um no outro.

Eram dois contendores engalfinhados em luta feroz.

Fitando o companheiro encarnado mais deti­damente, concluí que o ataque epiléptico, com toda a sua sintomatologia clássica, surgia claramente reconhecível.

O doente trazia agora a face transfigurada por indefinível palidez, os músculos jaziam tetanizados e a cabeça, exibindo os dentes cerrados, mostra­va-se flectida para trás, enquanto que os braços se assemelhavam a dois galhos de arvoredo, quan­do retorcidos pela tempestade.

Dona Celina e a matrona afetuosa acomoda­ram-no na cama e dispunham-se à prece, quando a rigidez do corpo se fez sucedida de estranhas convulsões a se estenderem aos olhos que se moviam em reviravoltas continuas.

A lividez do rosto deu lugar à vermelhidão que invadiu as faces congestas.

A respiração tornara-se angustiada, ao mesmo tempo que os esfíncteres se relaxavam, converten­do o enfermo em torturado vencido.

O insensível perseguidor como que se entra­nhara no corpo da vítima.

Pronunciava duras palavras, que somente nós outros conseguíamos assinalar, de vez que todas as funções sensoriais de Pedro se mostravam em deplorável inibição.

Dona Celina, afagando o doente, pressentia a gravidade do mal e registrava a presença do visi­tante infeliz, contudo, permanecia alerta de modo a manter-se, valorosa, em condições de auxiliá-lo.

Anotei-lhe a cautela para não se apassivar, a fim de seguir, por si própria, todos os trâmites do socorro.

Bondosa, tentou estabelecer um entendimento com o verdugo, mas em vão.

O desventurado continuava gritando para os nossos ouvidos, sem acolher-lhe os apelos comovedores.

— Vingar-me-ei! vingar-me-ei! Farei justiça por minhas próprias mãos!... — bradava, colérico.

Repreensões injuriosas apagavam-se na som­bra, porqüanto não conseguiam exteriorizar-se atra­vés das cordas vocais da vítima, a contorcer-se.

Permanecia o cavalheiro plenamente ligado ao algoz que o tomara de inopino. O córtex cerebral apresentava-se envolvido de escura massa fluídica.

Reconhecíamos no moço incapacidade de qual­quer domínio sobre si mesmo.

Acariciando-lhe a fronte suarenta, Áulus in­formou, compadecido:

— É a possessão completa ou a epilepsia es­sencial.

— Nosso amigo está inconsciente? — aven­turou Hilário, entre a curiosidade e o respeito.

— Sim, considerado como enfermo terrestre, está no momento sem recursos de ligação com o cérebro carnal. Todas as células do córtex sofrem o bombardeio de emissões magnéticas de natureza tóxica. Os centros motores estão desorganizados. Todo o cerebelo está empastado de fluidos deleté­rios. As vias do equilíbrio aparecem completamen­te perturbadas. Pedro temporariamente não dispõe de controle para governar-se, nem de memória comum para marcar a inquietante ocorrência de que é protagonista. Isso, porém, acontece no setor da forma de matéria densa, porque, em espírito, está arquivando todas as particularidades da situação em que se encontra, de modo a enriquecer o pa­trimônio das próprias experiências.

Fitei, sensibilizado, o quadro triste e pergun­tei, com objetivo de estudo:

— De vez que nos achamos defrontados por um encarnado e por um desencarnado, jungidos um ao outro, não obstante a dolorosa condição de sofrimento em que se caracterizam, será lícito con­siderar o fato sob nosso exame como sendo um transe mediúnico?

Embora ativo na tarefa assistencial, o instru­tor respondeu:

— Sim, presenciamos um ataque epiléptico, se­gundo a definição da medicina terrestre, entretan­to, somos constrangidos a identificá-lo como sendo um transe mediúnico de baixo teor, porqüanto ve­rificamos aqui a associação de duas mentes de­sequilibradas, que se prendem às teias do ódio recíproco.

E, fixando o par de infelizes em contorções, acrescentou:

— Nessa aflitiva situação achava-se Pedro nas regiões inferiores, antes da presente reencarnação que lhe constitui uma bênção. Por muitos anos, ele e o adversário rolaram nas zonas purgatoriais, em franco duelo. Presentemente, melhorou. Qual ocorre em muitos processos semelhantes, os reen­contros de ambos são agora mais espaçados, dando azo ao fenômeno que observamos, em razão de o rapaz ainda trazer o corpo perispirítico proviso­riamente lesado em centros importantes.

Nesse ínterim, percebendo a dificuldade para atingir o obsessor com a palavra falada, Dona Celina, com o auxílio de nosso orientador, formulou vibrante prece, implorando a Compaixão Divina para os infortunados companheiros que ali se di­gladiavam inutilmente.

As frases da venerável amiga libertavam jac­tos de força luminescente a lhe saltarem das mãos e a envolverem em sensações de alívio os partici­pantes do conflito.

Vimos que o perseguidor, qual se houvesse aspirado alguma substância anestesiante, se des­prendeu automaticamente da vítima, que repousou enfim, num sono profundo e reparador.

Guardas e socorristas conduziram o obsessor semi-adormecido a um local de emergência.

E enquanto Dona Celina ministrava um pouco dágua fluidificada à genitora do enfermo, chorosa e assustadiça, retornamos à conversação cordial.

— Apesar da carga doentia que suporta na atualidade, devemos aceitar o nosso Pedro na categoria de um médium? — perguntou Hilário, aten­cioso.

— Pela passividade com que reflete o inimigo desencarnado, será justo tê-lo nessa conta, contu­do, precisamos considerar que, antes de ser um médium na acepção comum do termo, é um Espí­rito endividado a redimir-se.

— Mas não poderá cogitar do próprio desen­volvimento psíquico?

O Assistente sorriu e observou:

— Desenvolver, em boa sinonímia, quer dizer “retirar do invólucro”, “fazer progredir” ou produzir. Assim compreendendo, é razoável que Pe­dro, antes de tudo, desenvolva recursos pessoais no próprio reajuste. Não se constroem paredes sólidas em bases inseguras. Necessitará, portanto, curar-se. Depois disso, então...

— Se é assim — objetou meu colega —, não resultará infrutífera a sua freqüência a esta casa?

— De modo algum. Aqui recolherá forças para refazer-se, assim como a planta raquítica encontra estímulo para a sua restauração no adubo que lhe oferecem. Dia a dia, ao contacto de amigos orien­tados pelo Evangelho, ele e o desafeto incorpora­rão abençoados valores em matéria de compreensão e serviço, modificando gradativamente o campo de elaboração das forças mentais. Sobrevirá, então. um aperfeiçoamento de individualidades, a fim de que a fonte mediúnica surja, mais tarde, tão cris­talina quanto desejamos. Salutares e renovadores pensamentos assimilados pelà dupla de sofredores em foco expressam melhoria e recuperação para ambos, porque, na imantação recíproca em que se vêem, as idéias de um reagem sobre o outro, determinando alterações radicais.

Diante da nossa atitude cismarenta, no exame das questões complexas de que nos sentíamos no­deados, o Assistente ponderou:

— Aparelhos mediúnicos valiosos naturalmen­te não se improvisam. Como todas as edificações preciosas, reclamam esforço, sacrifício, coragem, tempo... E sem amor e devotamento, não será pos­sível a criação de grupos e instrumentos louváveis, nas tarefas de intercâmbio.

Voltando, porém, a atenção para o doente adormecido, Áulus continuou:

— Nosso amigo está preso a significativo mon­tante de débitos com o passado e ninguém pode avançar livremente para o amanhã sem solver os compromissos de ontem. Por esse motivo, Pedro traz consigo aflitiva mediunidade de provação. É da Lei que ninguém se emancipe sem pagar o que deve. A rigor, por isso, deve ser encarado como enfermo, requisitando carinho e tratamento.

Em seguida, como se quisesse recolher dados informativos para completar a lição, tocou a fron­te de Pedro, auscultando-a demoradamente.

Decorridos alguns instantes de silêncio, infor­mou:

— A luta vem de muito longe. Não dispomos de tempo para incursões no passado, mas, de ime­diato, podemos reconhecer o verdugo de hoje como vítima de ontem. Na derradeira metade do século findo, Pedro era um médico que abusava da missão de curar. Uma análise mental particularizada iden­tificá-lo-ia em numerosas aventuras menos dignas. O perseguidor que presentemente lhe domina as energias era-lhe irmão consangüíneo, cuja esposa nosso amigo doente de agora procurou seduzir. Para isso, insinuou-se de formas diversas, além de prejudicar o irmão em todos os seus interesses econômicos e sociais, até incliná-lo à internação num hospício, onde estacionou, por muitos anos, aparvalhado e inútil, à espera da morte. Desen­carnando e encontrando-o na posse da mulher, des­vairou-se no ódio de que passou a nutrir-se. Mar­telou-lhes, então, a existência e aguardou-o, além-túmulo, onde os três se reuniram em angustioso processo de regeneração. A companheira, menos culpada, foi a primeira a retornar ao mundo, onde mais tarde recebeu o médico delinqUente nos bra­ços maternais, como seu próprio filho, purificando o amor de sua alma. O irmão atraiçoado de outro tempo, todavia, ainda não encontrou forças para modificar-se e continua vampirizando-o, obstinado no ódio a que se rendeu impensadamente.

Respondendo com um olhar amigo à nossa expressão de assombro, acrescentou:

— Penetramos forçosamente no inferno que criamos para os outros, a fim de experimentarmos, por nossa vez, o fogo com que afligimos o pró­ximo. Ninguém ilude a justiça. As reparações podem ser transferidas no tempo, mas são sempre fatais.

O ensinamento era simples, contudo, a terrível situação do enfermo fatigado e triste infundia-nos justificável espanto.

Estudando sempre, Hilário considerou:

— Se Pedro, no entanto, é ainda um médium torturado, que poderá fazer num agrupamento como este?

O instrutor sorriu e obtemperou:

O acaso não consta dos desígnios superio­res. Não nos aproximamos uns dos outros sem razão. Decerto, nosso amigo possui aqui ligações afetivas do pretérito com o dever de auxiliá-lo. Se não pode, desse modo, ser um elemento valioso ao conjunto, de imediato, pode e precisa receber o concurso fraterno, imprescindível ao seu justo soer­guimento.

— Curar-se-á, contudo, em tempo breve? —indaguei por minha vez.

— Quem sabe? — retrucou Áulus, sereno.

E, com o grave entono de quem pesa a subs­tância das próprias palavras, prosseguiu:

— Isso dependerá muito dele e da vítima com quem se encontra endividado. A assimilação de princípios mentais renovadores determina mais al­tas visões da vida. Todos os dramas obscuros da obsessão decorrem da mente enfermiça. Aplicando-se com devotamento às novas obrigações de que será investido, caso persevere no campo de nossa Consoladora Doutrina, sem dúvida abreviará o tem­po de expiação a que se acha sujeito, de vez que, em se convertendo ao bem, modificará o tonus men­tal do adversário, que se verá arrastado à própria renovação pelos seus exemplos de compreensão e renúncia, humildade e fé. Ainda assim, depois de se extinguirem os acessos de possessão, Pedro sofrerá os reflexos do desequilíbrio em que se en­volveu, a se exprimirem nos fenômenos mais leves da epilepsia secundária, que emergirão, por algum tempo, ante as simples recordações mais fortes da luta que vem atravessando, até o integral rea­juste do corpo perispirítico.

— E isso é trabalho de longa duração? — in­quiriu Hilário, algo aflito.

Nosso interlocutor estampou significativa ex­pressão fisionômica e ponderou:

— Quem poderá penetrar a consciência alheia? Com o esforço da vontade é possível apressar a solução de muitos enigmas e reduzir muitas dores. O assunto, porém, é de foro íntimo... Esteja­mos entretanto convencidos de que as sementes da luz jamais se perdem. Os médiuns que hoje se enlaçam a tremendas provas, se persistirem na plantação de melhores destinos, transformar-se-ão em valiosos trabalhadores no futuro que a todos aguarda em abençoadas reencarnações de engrandecimento e progresso...

E, ante a nossa admiração, concluiu:

— O problema é de aprender sem desanimar e de servir ao bem sem esmorecer.


10

Sonambulismo torturado

Tornamos ao recinto.

Dona Eugênia acabava de socorrer pobre com­panheiro recém-desencarnado, a retirar-se sob o fraterno controle dos vigilantes.

Fomos recebidos por Clementino, generoso, que nos aproximou de jovem senhora, concentrada em oração, seguida por distinto cavalheiro, na peque­na fila dos enfermos que naquela noite receberiam assistência.

Afagando-lhe a cabeça, o supervisor notificou:

— Favoreceremos a manifestação de infeliz companheiro que a vampiriza, não somente com o objetivo de socorrê-lo, mas também com o pro­pósito de estudarmos alguma coisa, com respeito ao sonambulismo torturado.

Observei a dama, ainda muito moça, inclinada para o homem irrepreensívelmente trajado que a amparava de perto.

O mentor do recinto afastou-se em tarefa de governança, mas Áulus tomou-lhe o lugar, pas­sando a esclarecer-nos com a bondade que lhe era característica.

Indicando-nos o casal, informou:

— São ambos marido e mulher num enlace de provação redentora.

A essa altura, porém, os guardas espirituais permitiram o acesso do infortunado amigo:

Achamo-nos positivamente frente a frente com um louco desencarnado.

Perispírito denso, trazia todos os estigmas da alienação mental, indiscutível.

Olhar turvo, fisionomia congesta, indisfarçável Inquietação...

A presença dele inspiraria repugnância e ter­ror aos menos afeitos à enfermagem.

Além da cabeça ferida, mostrava extensa úl­cera na garganta.

Precipitou-se para a jovem doente, à maneira de um grande felino sobre a presa.

A simpática senhora começou a gritar, trans­figurada.

Não se afastara espiritualmente do corpo. Era ela própria a contorcer-se, em pranto convulsivo, envolta, porém, no amplexo fluídico da entidade que lhe empolgava o campo fisiológico, integralmente.

Lágrimas quentes lhe corriam dos olhos semi­cerrados, o organismo relaxara-se como embarca­ção à matroca e a respiração se tornara sibilante e opressa.

Tentava falar, contudo a voz era um assobio desagradável.

As cordas vocais revelavam-se incapazes de articular qualquer frase inteligível.

Raul, sob o comando de Clementino, abeirou-se da dupla em aflitivo reencontro e aplicou energias magnéticas sobre o tórax da médium, que conse­guiu expressar-se em clamores roufenhos:

— Filha desnaturada!... Criminosa! crimino­sa!... nada te salva! Descerás comigo às trevas para que me partilhes a dor... Não quero socor­ro... quero estar contigo para que estejas comigo! Não te perdoarei, não te perdoarei!...

E, do pranto convulso, passava incompreensívelmente a gargalhadas de vingador.

Agora, não podíamos saber se estávamos àfrente de uma vítima que se lastimava ou de um palhaço que escarnecia.

— A justiça está em mim! — prosseguia bra­dando por entre silvos. — Sou o advogado de mi­nha própria causa! e a desforra é o meu único recurso...

Raul, sob a inspiração do benfeitor que o acom­panhava, passou a falar-lhe dos valores e vanta­gens da humildade e do perdão, do entendimento e do amor, procurando renovar-lhe a atitude.

E, enquanto desenvolvia o trabalho da doutri­nação, buscamos contacto com o orientador diligente.

Ante as nossas primeiras perguntas, Aulus acentuou:

— É um caso doloroso como o de milhares de criaturas.

— Vê-se bem — aduziu Hilário, sob forte im­pressão —, que é a nossa própria irmã quem fala e gesticula...

— Sim — aprovou o Assistente —, entretan­to, encontra-se imantada ao companheiro espiritual, cérebro a cérebro.

— Poderá, todavia, recordar-se com precisão do que lhe sucede agora? — inquiri, por minha vez.

— De modo algum. Tem as células do córtex cerebral totalmente destrambelhadas pelo desven­turado amigo em sofrimento. Nos transes, em que se efetua a junção mais direta entre ela e o per­seguidor dementado, cai em profunda hipnose, qual acontece à pessoa magnetizada, nas demonstrações comuns de hipnotismo, e passa, de imediato, a re­tratar-lhe os desequilíbrios.

E, designando a garganta da médium, repen­tinamente avermelhada e intumescida, continuou:

— Nesta hora, tem a glote dominada por per­turbação momentânea. Não consegue exprimir-se senão em voz rouquenha, quebrando as palavras. Isso porque o nosso irmão torturado, ao qual se liga pelos laços mais íntimos, lhe transmite as pró­prias sensações, compelindo-a a copiar-lhe o modo de ser.

— Tão entranhada se revela a associação de ambos — alegou Hilário —, que sou levado a indagar de mim mesmo se na vida comum não serão eles, a bem dizer, duas almas num só corpo, assim como duas plantas distintas uma da outra a se desenvolverem num vaso único... Na experiência diária, vulgar, não será nossa irmã constantemente influenciada, de maneira positiva, embora indireta, pelo companheiro que a obsidia?

— Você examina o assunto com acertado cri­tério. Nossa amiga, na equipe doméstica, é um enigma para os familiares. Moça de notável pro­cedência, possui belas aquisições culturais, entretanto, sempre se comporta de modo chocante, evi­denciando desequilíbrios ocultos. A princípio, com­pareciam a insatisfação e a melancolia ocasionando crises de nervos e distúrbios circulatórios. Doente, desde a puberdade, em vão opinaram clínicos de renome sobre o caso, até que um cirurgião, cren­do-a prejudicada por desarmonias da tireóide, sub­meteu-a a delicada intervenção, da qual saiu com seus padecimentos inalterados. Logo após, conhe­ceu o cavalheiro sob nossa observação, que a des­posou convencido de que o matrimônio lhe cons­tituiria renovação salutar. Ao invés disso, porém, a situação se lhe agravou. A gravidez cedo se verificou, consoante a planificação de serviço, tra­çada na Vida Superior. Nossa irmã doente deveria receber o perseguidor nos braços maternos, afagando-lhe a transformação e auxiliando-lhe a aqui­sição de novo destino, mas, sentindo-lhe a apro­ximação, recolheu-se a insopitável temor, adiando o trabalho que lhe compete. Impermeável às su­gestões da própria alma, provocou o aborto com rebeldia e violência. Essa frustração foi a brecha que favoreceu mais ampla influência do adversá­rio invisível no círculo conjugal. A pobre criatura passou a sofrer multiplicadas crises histéricas, com súbita aversão pelo marido. Principalmente à noi­te, é colhida, de assalto, por fenômenos de sufo­cação e de angústia, amargurando o consorte de­solado. Médicos foram trazidos, no entanto os hipnóticos foram empregados em vão... Em fran­ca demência, a enferma foi conduzida à casa de saúde, todavia, a insulina e o electrochoque não lhe solucionaram o problema. Presentemente, atra­vessa um período de repouso em família, deliberando o esposo experimentar o concurso do Espi­ritismo.

Enquanto Silva e Clementino procuravam sos­segar a médium e o comunicante, reunidos numa simbiose de extremo desespero, Hilário e eu con­tinuávamos famintos de esclarecimento maior.

— E se ela conseguisse nova maternidade? — inquiriu meu colega, estudioso.

— Sim — concordou Áulus, convicto —, se­melhante reconquista ser-lhe-á uma bênção, contu­do, pela trama de sentimentos contraditórios em que se emaranhou, na fuga das obrigações que lhe cabem, não pode receber, de pronto, esse privi­légio.

Lembrei-me de mulheres que se fazem mães nos hospícios, mas, analisando-me os pensamentos, o orientador explicou:

— A posição de alienada mental não lhe re­tira os favores da Natureza, mas a crueldade me­ditada com que se afastou dos compromissos as­sumidos, imprimiu certo desequilíbrio ao centro genésico. Nossas defecções mais íntimas, embora desconhecidas dos outros, prejudicam-nos o veícu­lo sutil e não podemos trair o tempo nas reparações necessárias, ainda mesmo quando o remorso nos ajude a restaurar as boas intenções. A per­feita entrosagem dos elementos psicofísicos filia-se à mente. A vida corpórea é a síntese das irradiações da alma. Não há órgãos em harmonia sem pensamentos equilibrados, como não há ordem sem inteligência.

O serviço de socorro espiritual, porém, conti­nuava inquietante.

A entidade vingadora, jungida à médium, de­morava-se contida pelos assessores de Clementino, ao passo que a moça, refletindo-lhe as emoções e os impulsos, tinha o peito arfante e gemia em soluços:

— Para mim não há recurso!... Sou um re­negado!...

— Perdoa, meu irmão, e o caminho ser-te-á renovado — dizia Raul, com inflexão de amor. —Desculpando, somos desculpados. Todos temos dí­vidas... Não se inclinará, porventura, ao auxílio para que seja igualmente ajudado?

— Não posso, não posso... — chorava o in­feliz.

E, à frente daquele par de Espíritos sofredo­res num só corpo, Aulus prosseguiu esclarecendo:

— A fim de examinar com serenidade as agru­ras da obsessão na mediunidade torturada, não podemos esquecer as causas do suplício de hoje a se enraizarem nas sombras de ontem. Os templos espíritas vivem repletos de dramas comoven­tes, que se prendem ao passado remoto e próximo.

Apontando o casal com a destra, continuou:

— O esposo de agora foi no pretérito um com­panheiro nocivo para a nossa irmã obsidiada, induzindo-a a envenenar o pai adotivo, hoje meta­morfoseado no verdugo que a persegue. Herdeira de considerável fortuna, com testamento garantido, em sua condição de filha adotiva e única, viu que o velho tutor pretendia alterar decisões. Isso acon­teceu em aristocrática mansão do século que pas­sou. O viúvo abastado, que a criara com desvelado carinho, não concordou com a escolha feita. O moço não lhe agradava. Parecia mais interessado em pilhar-lhe as finanças que em fazer a felicidade da jovem desprevenida e insensata. Procurou, en­tão, subtrai-la à influência do noivo, verificando que debalde lhes buscava a separação. Indignado, mobilizava medidas legais para deserdá-la, quan­do o rapaz, explorando a paixão de que a moça se via possuída, induziu-a a eliminá-lo, através de entorpecentes contínuos. Anulado o velhinho, por duas semanas de falsa medicação, o serviço da morte foi completado por diminuta dose de corro­sivo. Findo ligeiro período de luto, a jovem her­deira enriqueceu o marido ao casar-se, contudo, em pouco tempo, viu-se presa de aflitivas desilu­sões, porque o esposo depressa se revelou jogador inveterado e libertino confesso, relegando-a a pro­funda miséria moral e física. Não lhe bastou esse gênero de aniquilamento gradativo. O tutor desen­carnado imantou-se a ela, com desvairada fome de vingança, submetendo-a a horríveis tormentos ín­timos. Em verdade, o parricídio permaneceu ignorado na Terra, mas foi registrado nos tribunais divinos e longo trabalho expiatório vem sendo le­vado a efeito, porqüanto, ainda aqui, estamos ob­servando esse trio de consciências entrelaçadas nos fios dilacerantes da provação redentora.

O infortunado perseguidor recolhia afetuosas admoestações de Raul Silva e, depois de breve in­tervalo, o Assistente continuou:

— Como vemos, a tragédia de nossa irmã en­ferma vem de longe. Nos planos inferiores da vida espiritual, vagueou por muito tempo na faixa de ódio da vítima que se lhe fez vingativo credor e, na atualidade, em nova etapa de luta, tem o pen­samento enovelado ao dele. Atravessou a infância e a puberdade, experimentando-lhe o assédio a distância,­ todavia, quando o inimigo de outrora rea­pareceu na condição de marido atual, com a tarefa de ajudar a companheira e reeducá-la, e fraque­jando nossa amiga nos primeiros tentames da responsabilidade maternal, o obsessor aproveitou-se do ascendente magnético sobre a pobrezinha, gol­peando-lhe o equilibrio.

Sensibilizados com o quadro de justiça a des­dobrar-se sob nossos olhos, não conseguíamos fugir à indagação para melhor fixar ensinamentos.

Fixando a atenção no esposo da vitima, que a amparava carinhosamente, Hilário considerou:

— Com que, então, nosso amigo tem o seu débito a saldar para com a mulher doente...

— Sem dúvida — confirmou Aulus com grave entono —, o Poder Divino não nos aproxima uns dos outros sem fins justos. No matrimônio, no lar ou no círculo de serviço, somos procurados por nossas afinidades, de modo a satisfazer aos impe­rativos da Lei de Amor, seja na ampliação do bem, ou no resgate de nossas dívidas, resultantes do nosso deliberado contacto com o mal. Nossa irmã sofre os efeitos do parricídio a que se entregou pelo anseio de desfrutar prazeres que lhe desajus­taram o plano consciencial, e o amigo que lhe ins­pirou a ação deplorável é agora chamado a aju­dá-la na restauração imprescindível.

Olhei penalizado o cavalheiro tristonho e pen­sei na frustração a que devia sentir-se preso.

Bastou a reflexão para que o orientador me explicasse, solícito:

— Decerto, nosso companheiro na atualidade não se sente feliz. Recapitulando a antiga fome de sensações, abeirou-se da mulher que desposou, procurando instintivamente a sócia de aventura pas­sional do pretérito, mas encontrou a irmã doente que o obriga a meditar e a sofrer.

— Transferindo nossos interesses de estudo para este caso — comentou Hilário —, ainda assim poderemos classificar a enferma à conta de médium?

— Como não? É um médium em aflitivo pro­cesso de reajustamento. E’ provável se demore ainda alguns anos na condição de doente necessi­tada de carinho e de amor. Encarcerada nas teias fluídicas do adversário demente, purifica-se, atra­vés das complicações do sonambulismo torturado. Desse modo, por enquanto é um instrumento para a criação de paciência e boa-vontade no grupo de trabalhadores que visitamos, mas sem qualquer perspectiva de produção imediata, no campo do auxílio, de vez que se revela extremamente neces­sitada de concurso fraternal.

— Naturalmente, porém — aleguei —, mesmo agora, a presença dela aqui não será inútil.

— De modo algum — acrescentou o instru­tor —; primeiramente, ela e o esposo constituem valioso núcleo de trabalho em que nossos compa­nheiros de serviço podem adestrar suas qualidades de semeadores da luz. Além disso, o impacto da doutrinação não é perdido. Noite a noite, de reu­nião a reunião, na intimidade da prece e dos apon­tamentos edificantes, o trio de almas renovar-se-á, pouco a pouco. O perseguidor compreenderá a ne­cessidade de perdão para melhorar-se, a enferma fortalecer-se-á em espírito para recuperar-se como é preciso e o esposo adquirirá a paciência e a cal­ma, a fim de ser realmente feliz.

Nessa altura, com a colaboração de amigos espirituais da casa, o hóspede foi retirado do ambiente psíquico da jovem senhora, que voltou ànormalidade, e, atendendo-nos à inquirição, o Assis­tente anotou, bondoso:

— Quando nosso irmão Clementino convocou-nos a observar o problema, indubitavelmente quis salientar os imperativos de trabalho e tolerância, compreensão e bondade para construirmos a me­diunidade completa no mundo. Médiuns repontam em toda parte, entretanto, raros já se desvencilha­ram do passado sombrio para servir no presente à causa comum da Humanidade, sem os enigmas do caminho que lhes é particular. E como ninguém avança para diante, com a serenidade possível, sem pagar os tributos que deve à retaguarda, saibamos tolerar e ajudar, edificando com o bem...

A conversação, contudo, foi interrompida.

Clementino, diligente, chamava-nos a cooperar em outros setores.


11

Desdobramento em serviço

Chegara a vez do médium Antônio Castro.

Profundamente concentrado, denotava a con­fiança com que se oferecia aos objetivos de serviço.

Aproximou-se dele o irmão Clementino e, à ma­neira do magnetizador comum, impôs-lhe as mãos aplicando-lhe passes de longo circuito.

Castro como que adormeceu devagarinho, in­teiriçando-se-lhe os membros.

Do tórax emanava com abundância um vapor esbranquiçado que, em se acumulando à feição de uma nuvem, depressa se transformou, à esquerda do corpo denso, numa duplicata do médium, em tamanho ligeiramente maior.

Nosso amigo como que se revelava mais de­senvolvido, apresentando todas as particularidades de sua forma física, apreciavelmente dilatadas.

Desejei ensaiar algumas indagações, contudo, a dignidade do serviço impunha-me silêncio.

O diretor espiritual da casa submetia o me­dianeiro a delicada intervenção magnética que não seria lícito perturbar ou interromper.

O médium, assim desligado do veículo carnal, afastou-se dois passos, deixando ver o cordão va­poroso que o prendia ao campo somático.

Enquanto o equipamento fisiológico descansa­va, imóvel, Castro, tateante e assombrado, surgia, junto de nós, numa cópia estranha de si mesmo. porqüanto, além de maior em sua configuração ex­terior, apresentava-se azulada à direita e alaran­jada à esquerda.

Tentou movimentar-se, contudo, parecia sen­tir-se pesado e inquieto...

Clementino renovou as operações magnéticas e Castro, desdobrado, recuou, como que se justa-pondo novamente ao corpo físico.

Verifiquei, então, que desse contacto resultou singular diferença. O corpo carnal engulira, instintivamente, certas faixas de força que imprimiam manifesta irregularidade ao perispírito, absorven­do-as de maneira incompreensível para mim.

Desde esse instante, o companheiro, fora do vaso de matéria densa, guardou o porte que lhe era característico.

Era, agora, bem ele mesmo, sem qualquer de­formidade, leve e ágil, embora prosseguisse encadeado ao envoltório físico pelo laço aeriforme, que parecia mais adelgaçado e mais luminoso, à me­dida que Castro-Espírito se movimentava em nosso meio.

Enquanto Clementino o encorajava com pala­vras amigas, o nosso orientador, certamente assinalando-nos a curiosidade, deu-se pressa em es­clarecer:

— Com o auxílio do supervisor, o médium foi convenientemente exteriorizado. A principio, seu perispírito ou “corpo astral” estava revestido com os eflúvios vitais que asseguram o equilíbrio entre a alma e o corpo de carne, conhecidos aqueles, em seu conjunto, como sendo o «duplo etérico», for­mado por emanações neuropsíquicas que perten­cem ao campo fisiológico e que, por isso mesmo, não conseguem maior afastamento da organização terrestre, destinando-se à desintegração, tanto quan­to ocorre ao instrumento carnal, por ocasião da morte renovadora. Para melhor ajustar-se ao nos­so ambiente, Castro devolveu essas energias ao corpo inerme, garantindo assim o calor indispen­sável à colmeia celular e desembaraçando-se, tan­to quanto possível, para entrar no serviço que o aguarda.

— Ah! — disse Hilário, com expressão admi­rativa — aqui vemos, desse modo, a exteriorização da sensibilidade!...

— Sim, se algum pesquisador humano ferisse o espaço em que se situa a organização perispirítica do nosso amigo, registraria ele, de imediato, a dor do golpe que se lhe desfechasse, queixando-se disso, através da língua física, porque, não obs­tante liberto do vaso somático, prossegue em co­munhão com ele, por intermédio do laço fluídico de ligação.

Observei atentamente o médium projetado ao nosso círculo de trabalho.

Não envergava o costume azul e cinza de que se vestia no recinto, mas sim um roupão esbranquiçado e inteiriço que descia dos ombros até o solo, ocultando-lhe os pés, e dentro do qual se mo­via, deslizante.

Aulus registrou-me as anotações íntimas e es­clareceu:

- Nosso irmão, com a ajuda de Clementino, está usando as forças ectoplásmicas que lhe são próprias, acrescidas com os recursos de cooperação do ambiente em que nos achamos. Semelhantes energias transudam de nossa alma, conforme a den­sidade específica de nossa própria organização, va­riando desde a sublime fluidez da irradiação lu­minescente até a substância pastosa com que se operam nas crisálidas os variados fenômenos de metamorfose.

Depois de fitar o médium hesitante alguns momentos, prosseguiu:

— Castro é ainda um iniciante no serviço. Ámedida que entesoure experiência, manejará possibilidades mentais avançadas, assumindo os as­pectos que deseje, considerando que o perispírito é constituído de elementos maleáveis, obedecendo ao comando do pensamento, seja nascido de nossa própria imaginação ou da imaginação de inteligên­cias mais vigorosas que a nossa, mormente quando a nossa vontade se rende, irrefletida, à dominação de Espíritos tirânicos ou viciosos, encastelados na sombra.

— Nosso amigo, então, se pudesse... — co­mentou Hilário, curioso.

Mas, cortando-lhe a frase, o Assistente com­pletou-a, ajuntando:

— Se pudesse pensar com firmeza fora do cam­po físico, se já tivesse conquistado uma boa po­sição de autogoverno, com facilidade imprimiria sobre as forças plásticas de que se reveste a ima­gem que preferisse, aparecendo ao nosso olhar como melhor lhe aprouvesse, porque é possível es­tampar em nós mesmos o desenho que nos agrade.

— Sim — ponderei —, importa reconhecer, con­tudo, que esse desenho, embora vivo, não é compa­rável ao vestuário em nosso plano...

Aulus percebeu que minhas indagações in­cluíam sempre o imperativo de maior esclarecimen­to para Hilário, ainda neófito em nosso campo de ação e, talvez por isso, procurou fazer-se tão claro e minucioso quanto possível, acrescentando:

— De modo nenhum. O pensamento modelará a forma que nos inclinamos a adotar, no entanto, os apetrechos de nossa apresentação na esfera diferente de vida a que fomos trazidos, segundo vocês já conhecem, variarão em seus tipos diver­sos. Lembremo-nos, para exemplificar, de um ho­mem terrestre tatuado. Terá ele escolhido um de­senho, através do qual a sua forma, por algum tempo, se faz mais facilmente identificável, mas envergará a vestimenta que mais lhe atenda ao bom gosto, conforme as usanças do quadro social a que se ajusta.

E, sorrindo, acentuou:

— Pela concentração mental, qualquer Espíri­to se evidenciará na expressão que deseje, todavia, empregando nossa imaginação criadora, podemos e devemos mobilizar os recursos ao nosso alcance, aprimorando concepções artísticas no campo de nos­sas relações, uns com os outros. A Arte, tanto quanto a Ciência, entre nós, é muito mais rica que no círculo dos encarnados e, por ela, a educação se processa mais eficiente, no que tange à beleza e à cultura. Assim como não podemos conceber uma sociedade terrestre digna e enobrecida, tão-somente composta por homens e mulheres em nu­dismo absoluto, embora com maravilhosos primores de tatuagem, é preciso considerar que os indivíduos de nossa comunidade, não obstante dispondo de um veículo prodigiosamente esculpido pelas forças mentais, não menoscabam as excelências do ves­tuário, por intermédio das quais selecionamos emo­ções e maneiras distintas. Não podemos esquecer que progresso é trabalho educativo. A ascensão do Espírito não seria regresso ao empirismo da taba.

Aulus silenciou.

O médium, mais à vontade fora do corpo den­so, recebia as instruções que Clementino lhe administrava, paternal.

Dois guardas aproximaram-se dele e lhe apli­caram à cabeça um capacete em forma de antolhos.

— Para a viagem que fará — avisou-nos o Assistente —, Castro não deve dispersar a atenção. Incipiente ainda nesse gênero de tarefa, precisa instrumentação adequada para reduzir a própria capacidade de observação, de modo a interferir o menos possível na tarefa a executar.

Vimos o rapaz plenamente desdobrado alçar-se ao espaço, de mãos dadas com ambos os vigilantes.

O trio volitou em sentido oblíquo, sob nossa confiante expectação.

Desde esse momento, demonstrando manter se­gura comunhão com o veículo carnal, ouvimo-lo dizer através da boca física:

— Seguimos por um trilho estreito e escuro!

Oh! tenho medo, muito medo... Rodrigo e Sérgio amparam-me na excursão, mas sinto receio!... Tenho a idéia de que nos achamos em pleno ne­voeiro...

Estampando no rosto sinais de angústia e es­tranheza, continuava:

— Que noite é esta?... A escuridão parece pesar sobre nós!... Ai de mim! Vejo formas des­conhecidas agitando-se em baixo, sob nossos pés!... Quero voltar! voltar!... Não posso prosseguir!... não suporto, não suporto!...

Mas Raul, sob a inspiração do mentor da casa, elevou o padrão vibratório do conjunto, numa pre­ce fervorosa em que rogava do Alto forças mul­tiplicadas para o irmão em serviço.

Junto de nós, Aulus informou:

— A oração do grupo, acompanhando-o na excursão e transmitida a ele, de imediato, consti­tui-lhe abençoado tônico espiritual.

— Ah! sim, meus amigos — prosseguia Cas­tro, qual se o corpo físico lhe fosse um aparelho radiofônico para comunicações a distância —, a prece de vocês atua sobre mim como se fosse um chuveiro de luz... Agradeço-lhes o benefício!... Estou reconfortado... Avançarei!...

Interpretando os fatos sob nossa observação, o Assistente explicou:

— Raros Espíritos encarnados conseguem ab­soluto domínio de si próprios, em romagens de Serviço edificante fora do carro de matéria densa. Habituados à orientação pelo corpo físico, ante qualquer surpresa menos agradável, na esfera de fenômenos inabituais, procuram instintivamente o retorno ao vaso carnal, à maneira do molusco que se refugia na própria concha, diante de qualquer impressão em desacordo com os seus movimentos rotineiros. Castro, porém, será treinado para a prestação de valioso concurso aos enfermos de qual­quer posição.

Enquanto assinalávamos o apontamento, a voz do médium se elevava no ar, vigorosa e cristalina.

— Que alívio! Rompemos a barreira de tre­vas!... A atmosfera está embalsamada de leve aro­ma!... Brilham as estrelas novamente... Oh! éa cidade de luz... Torres fulgurantes elevam-se para o firmamento! Estamos penetrando um gran­de parque!... Oh! meu Deus, quem vejo aqui a sorrir-me!... É o nosso Oliveira! Como está dife­rente! Mais moço, muito mais moço...

Lágrimas copiosas banharam o rosto do mé­dium, comovendo-nos a todos.

No gesto de quem se entregava a um abraço carinhoso, de coração a coração, o medianeiro con­tinuou:

— Que felicidade! que felicidade!... Oliveira, meu amigo, que saudades de você!... por que razão teríamos ficado assim, sem a sua cooperação? Sabemos que a Vontade do Senhor deve prevalecer, mas a distância tem sido para nós um tormento!... a lembrança de seu carinho vive em nossa casa... Seu trabalho permanece entre nós como inesque­cível exemplo de amor cristão!... Volte! venha incentivar-nos na sementeira do bem!... amado amigo, nós sabemos que a morte é a própria vida, no entanto, sentimos sua falta!...

A voz do viajante, que se fazia ouvir de tão longe, entrecortava-se agora de doloridos soluços.

O próprio Raul Silva mostrava igualmente os olhos marejados de pranto.

Aulus deu-nos a conhecer quanto ocorria.

— Oliveira foi um abnegado trabalhador neste santuário do Evangelho — explicou. — Desencar­nou há dias, e Castro, com aquiescência dos orien­tadores, foi apresentar-lhe as afetuosas saudações dos companheiros. Demora-se em refazimento, ain­da inapto a comunicação mais intima com os irmãos que ficaram. Mas poderá enviar a sua men­sagem, por intermédio do companheiro que o visita.

— Abrace-me, sim, querido amigo! — prosse­guia Castro, com inenarrável inflexão de ternura fraterna. — Estou pronto!... direi o que você deseja... Fale e repetirei!...

E, recompondo-se, na atitude de quem se devia fazer intermediário digno, modificou a expressão fisionômica, falando cadenciadamente para os cir­cunstantes:

— Meus amigos, que o Senhor lhes pague. Estou bem, mas na posição do convalescente, incapaz de caminhada mais difícil... Sinto-me re­confortado, quase feliz! Indiscutívelmente, não mereço as dádivas recebidas, pois me vejo no Grande Lar, amparado por afeições inolvidáveis e subli­mes! As preces do nosso grupo alcançam-me cada noite, como projeção de flores e bênçãos! Como expressar-lhes gratidão se a palavra terrestre é sempre pobre para definir os grandes sentimentos de nossa vida? Que o Pai os recompense!... Aqui, onde me encontro, vim reconhecer, mais uma vez, a minha desvalia e agora concluo que todos os nossos sacrifícios pela causa do bem são bagatelas, comparados à munificência da Divina Bondade... Meus amigos, a caridade é o grande caminho! Trabalhemos!... Jesus nos abençoe!...

A voz de Castro apagou-se-lhe nos lábios e, dai a instantes, vimo-lo regressar, amparado pelos irmãos que o haviam conduzido, retomando o corpo denso, com naturalidade.

Reajustando-se, qual se o vaso físico o absor­vesse, de inopino, acordou na esfera carnal, na posse de todas as suas faculdades normais, esfre­gando os olhos, como quem desperta de grande sono.

O desdobramento em serviço estava findo e com a tarefa terminada havíamos recolhido pre­ciosa lição.


12

Clarividência e clariaudiência

Notei que a reunião atingia a fase terminal.

Duas horas bem vividas haviam corrido céle­res para nós.

Raul Silva consultou o relógio e cientificou os companheiros de haver chegado o momento das preces de despedida.

Os amigos sofredores, aglomerados no recinto, poderiam receber vibrações de auxilio, enquanto os elementos do grupo recolheriam, através da ora­ção, o refazimento das próprias forças.

Pequeno cântaro de vidro, com água pura, foi trazido à mesa.

E porque Hilário perguntasse se iríamos as­sistir a alguma cerimônia especial, o Assistente explicou, afável:

— Não, nada disso. A água potável destina-se a ser fluidificada. O líquido simples receberá recursos magnéticos de subido valor para o equilíbrio psicofísico dos circunstantes.

Com efeito, mal acabávamos de ouvir o apon­tamento, Clementino se abeirou do vaso e, de pen­samento em prece, aos poucos se nos revelou co­roado de luz.

Daí a instantes, de sua destra espalmada sobre o jarro, partículas radiosas eram projetadas sobre o líquido cristalino que as absorvia de maneira total.

— Por intermédio da água fluidificada — con­tinuou Aulus —, precioso esforço de medicação pode ser levado a efeito. Há lesões e deficiências no veículo espiritual a se estamparem no corpo físico, que somente a intervenção magnética con­segue aliviar, até que os interessados se disponham à própria cura.

O Assistente silenciou, porqüanto a palavra de Silva se fez ouvir, recomendando aos médiuns observassem, através da vidência e da audição, os ensinamentos que porventura fossem, naquela noi­te, ministrados ao grupo pelos amigos espirituais da casa.

Reparamos que Celina, Eugênia e Castro agu­çaram as suas atenções.

Clementino, findo o preparo da água medica­mentosa, consagrou-lhes maior carinho, aplicando-lhes passes na região frontal.

— Nosso amigo — esclareceu o Assistente —procura ajudar aos nossos companheiros de mediu­nidade, favorecendo-lhes o campo sensório. Não lhes convêm, por agora, a clarividência e a clari­audiência demasiado abertas. Na esfera dos Espí­ritos reencarnados, há que dosar observações para que não venhamos a ferir os impositivos da ordem. Cada qual de nós deve estar em sua faixa de ser­viço, fazendo o melhor ao seu alcance. Imagine­mos um aparelho radiofônico terrestre, coletando todas as espécies de onda, em movimento de cap­tação simultânea, O proveito e a harmonia da transmissão seriam realmente impraticáveis, e não haveria propósito construtivo na mensagem. Um médium, pois, não deve demorar-se com todas as solicitações do meio em que se situa, sob pena de arrojar as suas impressões ao desequilíbrio, a me­nos quando, por sua própria evolução, consiga sobrepairar ao campo do trabalho, dominando as influências do meio e selecionando-as, segundo o elevado critério de quem já consegue orientar-se para o bem e orientar aqueles que o acompanham.

Hilário refletiu um momento e indagou:

— Os trabalhos mediúnicos, porém, são rigo­rosamente iguais nos três instrumentos sob nosso exame?

— Isso não. O círculo de percepção varia em cada um de nós. Há diferentes gêneros de mediu­nidade; contudo, importa reconhecer que cada Es­pírito vive em determinado degrau de crescimento mental e, por isso, as equações do esforço mediú­nico diferem de indivíduo para indivíduo, tanto quanto as interpretações da vida se modificam de alma para alma. As faculdades medianímicas po­dem ser idênticas em pessoas diversas, entretanto, cada pessoa tem a sua maneira particular de em­pregá-las. Um modelo, em muitas ocasiões, é o mesmo para grande assembléia de pintores, toda­via, cada artista fixá-lo-á na tela a seu modo. Uma lâmpada exibirá claridade lirial, em jacto con­tínuo, mas, se essa claridade for filtrada por focos múltiplos, decerto estará submetida à cor e ao potencial de cada um desses filtros, embora con­tinue sendo sempre a mesma lâmpada a fulgurar em seu campo central de ação. Mediunidade é sin­tonia e filtragem. Cada Espírito vive entre as forças com as quais se combina, transmitindo-as segundo as concepções que lhe caracterizam o modo de ser.

Notando o cuidado que o irmão Clementino empregava na preparação dos médiuns, meu colega inquiriu ainda:

— A clarividência e a clariaudiência acaso estão localizadas exclusivamente nos olhos e nos ouvidos da criatura reencarnada?

Aulus acariciou-lhe a cabeça e acentuou:

— Hilário, vê-se que você está começando a jornada no conhecimento superior. Os olhos e os ouvidos materiais estão para a vidência e para a audição como os óculos estão para os olhos e o ampliador de sons para os ouvidos — simples apa­relhos de complementação. Toda percepção é men­tal. Surdos e cegos na experiência física, conve­nientemente educados, podem ouvir e ver, através de recursos diferentes daqueles que são vulgar-mente utilizados. A onda hertziana e os raios 10º vão ensinando aos homens que há som e luz muito além das acanhadas fronteiras vibratórias em que eles se agitam, e o médium é sempre alguém do­tado de possibilidades neuropsíquicas especiais que lhe estendem o horizonte dos sentidos.

Meu companheiro fixou o gesto de quem apro­veitara a lição, mas objetou, reverente:

— Desejava, porém, saber se Dona Celina, por exemplo, está enxergando o irmão Clementino e ouvindo-o, tão-somente pelo processo curial de per­cepção na Terra.

— Sim, isso acontece, por uma questão de cos­tume cristalizado. Celina pensa ouvir o supervisor, através dos condutos auditivos, e supõe vê-lo, como se o aparelho fotográfico dos olhos estivesse fun­cionando em conexão com o centro da memória, no entanto, isso resulta do hábito. Ainda mesmo no campo de impressões comuns, embora a cria­tura empregue os ouvidos e os olhos, ela vê e ouve com o cérebro, e, apesar de o cérebro usar as cé­lulas do córtex para selecionar os sons e imprimir as imagens, quem vê e ouve, na realidade, é a mente. Todos os sentidos na esfera fisiológica per­tencem à alma, que os fixa no corpo carnal, de conformidade com os princípios estabelecidos para a evolução dos Espíritos reencarnados na Terra.

Sorrindo, ajuntou:

— Vocês possuem uma prova disso, quando o homem se encontra naturalmente desdobrado, cada noite, durante o sono, vendo e ouvindo, a despeito da inatividade dos órgãos carnais, na experiência a que chamam “vida de sonho”.

E, baixando o tom de voz, acrescentou:

— Somos receptores de reduzida capacidade, à frente das inumeráveis formas de energia que nos são desfechadas por todos os domínios do Uni­verso, captando apenas humilde fração delas. Em suma, nossa mente é um ponto espiritual limitado, a desenvolver-se em conhecimento e amor, na es­piritualidade infinita e gloriosa de Deus.

Decorreram mais alguns instantes.

— Centralizemos mais atenção na prece, ades­trando-nos para o serviço do bem!

Essa frase foi pronunciada por Clementino, em voz clara e pausada, como a oferecer uma base única para a convergência de nossas cogitações.

Atento, porém, aos nossos objetivos de estudo, acompanhei os médiuns mais diretamente interes­sados no apelo.

Dona Celina registrara as palavras com preci­são e guardava a atitude do aluno disciplinado.

Dona Eugênia assimilara-as, em forma de or­dem intuitiva, e mostrava-se na condição do apren­diz criterioso.

Castro, contudo, não as recolhera nem de leve.

Com permissão do supervisor, pusemo-nos em tarefa de análise.

Observei que sutilmente ligados à faixa fluí­dica de Clementino, os três médiuns, cada qual a seu modo, lhe acusavam a presença.

Dona Celina anotava-lhe os mínimos movimen­tos, à maneira do discípulo diante do professor, Dona Eugênia lhe assinalava a vizinhança com me­nos facilidade, qual se o distinguisse imperfeitamente, através dum lençol de nebulosidade, e Cas­tro, embora o visse com perfeição, parecia com­pletamente alheio à influência do instrutor.

— As possibilidades de Celina e Castro, na clarividência e na clariaudiência, são por enquanto mais vastas que em nossa irmã Eugênia — escla­receu Aulus, prestimoso. — Acham-se os três levemente submetidos ao comando magnético de Cle­mentino e podem Identificar-lhe a presença com analogia de observações, porque, nas circunstân­cias em que operam, estão agindo como pessoas comuns, utilizando-se da percepção habitual.

— Entretanto — aduziu Hilário —, se o trio foi colocado sob a ordenação magnética do super-visor, por que motivo nossas amigas lhe acataram o convite, enquanto Castro se mantém visívelmente impermeável a ele?

— O mentor do recinto exerce apenas branda influência, abdicando de qualquer pressão mais for­te, suscetível de provocar viciosa irmanação, em desfavor de nossos amigos — disse Aulus, convic­to. — Além disso, a mente de Castro passou, de súbito. a alimentar propósitos diferentes. Incapaz de concentrar a atenção, de modo irrepreensível, na região superior do trabalho que nos compete levar a efeito, de momento não mais se revela in­teressado em satisfazer ao programa de Clementi­no, mas sim em provocar um reencontro com a progenitora desencarnada. Enxerga o orientador do conjunto, como quem é constrangido a ver al­guém de passagem, todavia, sem qualquer preocu­pação de escutá-lo ou servi-lo, confinado como se encontra às emoções do jardim doméstico. Basta a indiferença mental para que nada ouça do que mais interessa agora ao esforço coletivo da reunião.

Evidentemente desejoso de definir a lição, no quadro de nossos conhecimentos terrestres, acres­centou:

— É uma antena que se insensibilizou, de improviso, recusando sintonizar-se com a onda que a procura.

Nesse instante, vimos que um companheiro simpático de nosso plano avançou do círculo de espectadores, abeirando-se de Dona Celina e cha­mando-a, discreto.

A nobre criatura ouviu-lhe a voz, mas não se voltou para trás. Entretanto, respondeu-lhe em pensamento, numa frase que se fez perfeitamente audível para nós: — “Encontrar-nos-emos mais tarde.”

Aulus informou, presto:

— É o esposo desencarnado de nossa irmã que a visita, com afetuosa solicitação, contudo, discipli­nada quanto é, Celina sabe renunciar ao conforto de ouvi-lo, a fim de colaborar no êxito da reunião com maior segurança.

Logo após, vimos Castro desdobrar-se de novo, auxiliado agora simplesmente pelo forte desejo de ausentar-se do círculo e, revestido das emanações que lhe desfiguravam o perispírito, caminhou, he­sitante, ao encontro de uma entidade amiga que o aguardava a pequena distância.

— Nosso cooperador — falou o Assistente —, menos habituado à disciplina edificante, julga que já fez o possível, em favor dos trabalhos progra­mados para esta noite, e põe-se no encalço da mãezinha, que vem sendo beneficiada em nossa or­ganização.

Não nos foi, porém, possível alongar anota­ções.

Clementino, à cabeceira da assembléia, esten­deu os braços e colocou-se em prece.

Cintilações de safirino esplendor revestiam-lhe agora o busto, dando-nos a impressão de que o abnegado benfeitor se convertera num anjo sem asas.

Em momentos ligeiros, verdadeiro jorro solar desceu do Alto, coroando-lhe a fronte e, de suas mãos, passou a irradiar-se prodigiosa fonte de luz, que nos alcançava a todos, encarnados e desencar­nados, prodigalizando-nos a sensação de indescri­tível bem-estar.

Nada consegui dizer, não obstante as perqui­riçôes que me esfuziavam o pensamento.

O êxtase do mentor impelia-nos a respeitosa mudez.

Aqueles minutos de vibração sem palavras re­presentavam precioso manancial de energias restauradoras para quantos lhe abrissem as portas do espírito.

É o que eu conseguia depreender pelo revi­goramento de minhas próprias forças.

Terminada que foi a operação inesquecível, Raul solicitou ainda alguns instantes de tranqüi­lidade e expectativa.

Competia ao grupo aguardar a manifestação de algum dos orientadores da casa, à guisa de ins­trução geral no encerramento.

Dona Celina rogou licença para notificar que vira surgir no recinto um ribeiro cristalino, em cuja corrente muitos enfermos se banhavam, e Dona Eugênia seguiu-a, explicando que chegara a contemplar um edifício repleto de crianças, entoando hinos de louvor a Deus.

Registramos semelhantes comunicados com sur­presa.

Nada víramos ali que pudesse recordar sequer de longe um córrego de águas curativas ou algum pavilhão de serviço à infância.

A sala era demasiado estreita para comportar tais cenários.

Fitando-me, intrigado, Hilário parecia pergun­tar se as duas médiuns não estariam sob o influxo de alguma perturbação momentânea.

Assinalando-nos a estranheza, o Assistente considerou, prestimoso:

— Importa não esquecer que ambas se encon­tram reunidas na faixa magnética de Clementino, fixando as imagens que a mente dele lhes sugere. Viram-lhe os pensamentos, relacionados com a obra de amparo aos doentes e com a formação de uma escola, que a instituição pretende, em breve, mo­bilizar no socorro ao próximo. Idéias, elaboradas com atenção, geram formas, tocadas de movimen­to, som e cor, perfeitamente perceptíveis por to­dos aqueles que se encontrem sintonizados na onda em que se expressam. Não podemos olvidar que há fenômenos de clarividência e clariaudiência que partem da observação ativa dos instrumentos me­diúnicos, identificando a existência de pessoas, pai­sagens e coisas exteriores a eles próprios, qual acontece na percepção terrestre vulgar, e existem aqueles que decorrem da sugestão que lhes é tra­zida pelo pensamento criador dos amigos desencar­nados ou encarnados, estímulos esses que a mente de cada médium traduz, segundo as possibilidades de que dispõe, favorecendo, por isso mesmo, as mais díspares interpretações.

— Oh! — exclamou Hilário, entusiasmado —temos aí a técnica dos obsessores quando impro­visam para as suas vítimas variadas impressões alucinatórias...

— Sim, sim... — confirmou o Assistente. É isso mesmo No entanto, evitemos a conver­sação agora. O trabalho da reunião vai terminar.


13

Pensamento e mediunidade

O silêncio se fez profundo e respeitoso.

O grupo esperava a mensagem terminal.

Senti que o ambiente se fizera mais leve, mais agradável.

Sobre a cabeça de Dona Celina apareceu bri­lhante feixe de luz. Desde esse instante, vimo-la extática, completamente desligada do corpo físico, cercada de azulíneas irradiações.

Admirado com o belo fenômeno, enderecei um gesto de interrogação ao nosso orientador, que ex­plicou sem detença:

— Nossa irmã Celina transmitirá a palavra de um benfeitor que, apesar de ausente daqui, sob o ponto de vista espacial, entrará em comunhão conosco através dos fluidos teledinâmicos que o ligam à mente da médium.

— Mas Isso é possível? — indagou Hilário, discretamente.

Aulus ponderou, de imediato:

— Lembre-se da radiofonia e da televisão, hoje realizações amplamente conhecidas no mundo. Um homem, de cidade a cidade, pode ouvir a mensagem de um companheiro e vê-lo ao mesmo tempo, desde que ambos estejam em perfeita sintonia, através do mesmo comprimento de onda. Celina conhece a sublimidade das forças que a envolvem e entre­ga-se, confiante, assimilando a corrente mental que a solicita. Irradiará o comunicado-lição, automati­camente, qual acontece na psicofonia sonambúlica, porque o amigo espiritual lhe encontra as células cerebrais e as energias nervosas quais teclas bem ajustadas de um piano harmonioso e dócil.

O Assistente emudeceu, de súbito, fixando o olhar no jacto de safirina luz, que se fizera mais abundante, a espraiar-se em todos os ângulos do recinto.

Contemplei os circunstantes.

O rosto da médium refletia uma ventura mis­teriosa e ignorada na Terra.

O júbilo que a possuía como que contagiara todos os presentes.

Dispunha-me a prosseguir observando, mas a destra do Assistente tocou-me, de leve, recordan­do-me a quietude e o respeito.

Foi então que a voz diferenciada de Dona Ce­lina ressoou, clara e comovente, mais ou menos nestes termos:

— Meus amigos — começou a dizer o instru­tor que nos acompanhava o trabalho a longa distancia —, guardemos a paz que Jesus nos legou, a fixa de que possamos servi-lo em paz.

Em matéria de mediunidade, não nos esque­çamos do pensamento.

Nossa alma vive onde se lhe situa o coração.

Caminharemos, ao influxo de nossas próprias criações, seja onde for.

A gravitação no campo mental é tão incisiva, quanto na esfera da experiência física.

Servindo ao progresso geral, move-se a alma na glória do bem. Emparedando-se no egoísmo, arrasta-se, em desequilíbrio, sob as trevas do mal.

A Lei Divina é o Bem de Todos.

Colaborar na execução de seus propósitos sá­bios é iluminar a mente e clarear a vida. Opor-lhe entraves, a pretexto de acalentar caprichos perni­ciosos, é obscurecer o raciocínio e coagular a som­bra ao redor de nós mesmos.

É indispensável ajuizar quanto à direção dos próprios passos, de modo a evitarmos o nevoeiro da perturbação e a dor do arrependimento.

Nos domínios do espírito não existe a neu­tralidade.

Evoluímos com a luz eterna, segundo os desíg­nios de Deus, ou estacionamos na treva, conforme a indébita determinação de nosso «eu».

Não vale encarnar-se ou desencarnar-se sim­plesmente. Todos os dias, as formas se fazem e se desfazem.

Vale a renovação interior com acréscimo de visão, a fim de seguirmos à frente, com a verdadeira noção da eternidade em que nos deslocamos no tempo.

Consciência pesada de propósitos malignos, re­vestida de remorsos, referta de ambições desvaira­das ou denegrida de aflições não pode senão atrair forças semelhantes que a encadeiam a torvelinhos infernais.

A obsessão é sinistro conúbio da mente com o desequilíbrio comum às trevas.

Pensamos, e imprimimos existência ao objeto idealizado.

A resultante visível de nossas cogitações mais íntimas denuncia a condição espiritual que nos é própria, e quantos se afinam com a natureza de nossas inclinações e desejos aproximam-se de nós, pelas amostras de nossos pensamentos.

Se persistimos nas esferas mais baixas da ex­periência humana, os que ainda jornadeiam nas linhas da animalidade nos procuram, atraídos pelo tipo de nossos impulsos inferiores, absorvendo as substâncias mentais que emitimos e projetando so­bre nós os elementos de que se fazem portadores.

Imaginar é criar.

E toda criação tem vida e movimento, ainda que ligeiros, impondo responsabilidade à consciên­cia que a manifesta. E como a vida e e movimento se vinculam aos princípios de permuta, é indispen­sável analisar o que damos, a fim de ajuizar quan­to àquilo que devamos receber.

Quem apenas mentalize angústia e crime, mi­séria e perturbação, poderá refletir no espelho da própria alma outras imagens que não sejam as da desarmonia e do sofrimento?

Um viciado entre os santos não lhes reconhe­ceria a pureza, de vez que, em se alimentando das próprias emanações, nada conseguiria enxergar se­não as próprias sombras.

Quem vive a procurar pedras na estrada, cer­tamente não encontrará apenas calhaus subservientes.

Quem se detenha indefinidamente na medição de lama está ameaçado de afogamento no lodo.

O viajante fascinado pelos sarçais, à beira do caminho, sofre o risco de enlouquecer entre os espinheiros do mato inculto.

Vigiemos o pensamento, purificando-o no tra­balho incessante do bem, para que arrojemos de nós a grilheta capaz de acorrentar-nos a obscuros processos de vida inferior.

É da forja viva da idéia que saem as asas dos anjos e as algemas dos condenados.

Pelo pensamento, escravizamo-nos a troncos de suplício infernal, sentenciando-nos, por vezes, a séculos de peregrinação nos trilhos da dor e da morte.

A mediunidade torturada não é senão o enlace de almas comprometidas em aflitivas provações, nos lances do reajuste.

E, para abreviar o tormento que flagela de mil modos a consciência reencarnada ou desencarnada, quando nas grades expiatórias, é imprescin­dível atender à renovação mental, único meio de recuperação da harmonia.

Satisfazer-se alguém com o rótulo, em matéria religiosa, sem qualquer esforço de sublimação in­terior, é tão perigoso para a alma quanto deter uma designação honorifica entre os homens com menosprezo pela responsabilidade que ela impõe.

Títulos de fé não constituem meras palavras, acobertando-nos deficiências e fraquezas. Expres­sam deveres de melhoria a que não nos será lícito fugir, sem agravo de obrigações.

Em nossos círculos de trabalho, desse modo, não nos bastará o ato de crer e convencer.

Ninguém é realmente espírita à altura desse nome, tão-só porque haja conseguido a cura de uma escabiose renitente, com o amparo de entida­des amigas, e se decida, por isso, a aceitar a intervenção do Além-Túmulo na sua existência; e ninguém é médium, na elevada conceituação do ter­mo, somente porque se faça órgão de comunicação entre criaturas visíveis e invisíveis.

Para conquistar a posição de trabalho a que nos destinamos, de conformidade com os princípios superiores que nos enaltecem o roteiro, é necessá­rio concretizar-lhes a essência em nossa estrada, por intermédio do testemunho de nossa conversão ao amor santificante.

Não bastará, portanto, meditar a grandeza de nosso idealismo superior. É preciso substanciali­zar-lhe a excelsitude em nossas manifestações de cada dia.

Os grandes artistas sabem colocar a centelha do gênio numa simples pincelada, num reduzido bloco de mármore ou na mais ingênua composição musical. As almas realmente convertidas ao Cristo lhe refletem a beleza nos mínimos gestos de cada hora, seja na emissão de uma frase curta, na igno­rada cooperação em favor dos semelhantes ou na renúncia silenciosa que a apreciação terrestre não chega a conhecer.

Nossos pensamentos geram nossos atos e nos­sos atos geram pensamentos nos outros.

Inspiremos simpatia e elevação, nobreza e bon­dade, junto de nós, para que não nos falte amanhã o precioso pão da alegria.

Convicção de imortalidade, sem altura de es­pírito que lhe corresponda, será projeção de luz no deserto.

Mediação entre dois planos diferentes, sem ele­vação de nível moral, é estagnação na inutilidade.

O pensamento é tão significativo na mediu­nidade, quanto o leito é importante para o rio. Ponde as águas puras sobre um leito de lama pú­tnida e não tereis senão a escura corrente da vi­ciação.

Indubitavelmente, divinas mensagens descerão do Céu à Terra. Entretanto, para isso, é imperioso construir canalização adequada.

Jesus espera pela formação de mensageiros humanos capazes de projetar no mundo as mara­vilhas do seu Reino.

Para atingir esse aprimoramento ideal é im­prescindível que o detentor de faculdades psíquicas não se detenha no simples intercâmbio. Ser-lhe-áindispensável a consagração de suas forças às mais altas formas de vida, buscando na educação de si mesmo e no serviço desinteressado a favor do próximo o material de pavimentação de sua pró­pria senda.

A comunhão com os orientadores do progresso espiritual do mundo, através do livro, nos enrique­ce de conhecimento, acentuando-nos o valor men­tal; e a plantação de bondade constante traz con­sigo a colheita de simpatia, sem a qual o celeiro da existência se reduz a furna de desespero e desânimo.

Não basta ver, ouvir ou incorporar Espíritos desencarnados, para que alguém seja conduzido à respeitabilidade.

Irmãos ignorantes ou irresponsáveis enxa­meiam, como é natural, todos os departamentos da Terra, em vista da posição evolutiva deficitá­ria em que ainda se encontram as coletividades do Planeta e, muita vez, sem qualquer raiz de perversidade propriamente dita, milhares de almas, despidas do envoltório denso, praticam o vampi­rismo junto dos encarnados invigilantes, simples­mente no intuito de prosseguirem coladas às sen­sações do campo físico das quais não se sentem com suficiente coragem para se desvencilharem.

Toda tarefa, para crescer, exige trabalhadores que se dediquem ao crescimento, à elevação de si mesmos.

Isso é demasiado claro em todos os planos da Natureza.

Não há frutos na árvore nascente.

A madeira não desbastada é incapaz de servir, com eficiência, ao santuário doméstico.

A areia movediça não garante a sustentação.

Não se faz luz na candeia sem óleo.

O carro não transita com êxito onde a picare­ta ainda não estruturou a estrada conveniente.

Como esperardes o pensamento divino, onde o pensamento humano se perde nas mais baixas cogitações da vida?

Que mensageiro do Céu fará fulgir a mensa­gem celestial em nosso entendimento, quando o espelho de nossa alma jaz denegrido pelos mais in­feriores dos interesses?

Em vão buscaria a estrela retratar-se na lama de um charco.

Amigos, pensemos no bem e executemo-lo.

Tudo o que existe dentro da Natureza é a idéia exteriorizada.

O Universo é a projeção da Mente Divina e a Terra, qual a conheceis em seu conteúdo político e social, é produto da Mente Humana.

Civilizações e povos, culturas e experiências constituem formas de pensamento, através das quais evolvemos, incessantemente, para esferas mais altas.

Atentemos, pois, para a obrigação de auto-aperfeiçoamento.

Sem compreensão e sem bondade, irmanar-nos-emos aos filhos desventurados da rebeldia. Sem estudo e sem observação, demorar-nos-emos indefinidamente entre os infortunados ex­poentes da ignorância.

Amor e sabedoria são as asas com que faremos nosso vôo definitivo, no rumo da perfeita comunhão com o Pai Celestial.

Escalemos o plano superior, instilando pensa­mentos de sublimação naqueles que nos cercam.

A palavra esclarece.

O exemplo arrebata.

Ajustemo-nos ao Evangelho Redentor.

Cristo é a meta de nossa renovação.

Regenerando a nossa existência pelos padrões dEle, reestruturaremos a vida íntima daqueles que nos rodeiam.

Meus amigos, crede!...

O pensamento puro e operante é a força que nos arroja do ódio ao amor, da dor à alegria, da Terra ao Céu...

Procuremos a consciência de Jesus para que a nossa consciência lhe retrate a perfeição e a beleza!...

Saibamos refletir-lhe a glória e o amor, a fim de que a luz celeste se espelhe sobre as almas, como o esplendor solar se estende sobre o mundo.

Comecemos nosso esforço de soerguimento es­piritual desde hoje e, amanhã, teremos avançado consideravelmente no grande caminho!..

Meus amigos, meus irmãos, rogando a Jesus que nos ampare a todos, deixo-vos com um até breve.

A voz da médium emudeceu.

Sensibilizados, reparamos que, no alto, se apa­gara o jorro brilhante.

Raul Silva, em prece curta, encerrou a reunião.

Enlaçamos Clementino às despedidas.

— Voltem sempre — convidou-nos gentil.

Sim, sim, continuaríamos aprendendo.

E, lado a lado com o nosso orientador, reti­ramo-nos, felizes, como quem sorvera a água viva da paz, na taça da alegria.


14

Em serviço espiritual

Distanciávamo-nos da instituição, quando o marido desencarnado de Dona Celina, cuja presen­ça assinaláramos no decurso da reunião, se apro­ximou de nós.

Demonstrava conhecer nosso orientador, por­que estacou ao nosso lado e exclamou:

— Meu caro Assistente, por obséquio... Áulus apresentou-nos o novo amigo:

É o nosso irmão Abelardo Martins. Foi o esposo de nossa cooperadora Celina e vem-se adaptando aos nossos regimes de ação.

Via-se, de pronto, que Abelardo não era uma entidade de escol. As maneiras e a voz traíam-lhe a condição espiritual de criatura ainda profunda­mente arraigada aos hábitos terrestres.

— Meu caro Assistente — continuou, inquie­to —, venho rogar-lhe auxílio em favor de Libório.

O socorro do grupo melhorou-lhe as disposições, mas agora é a mulher que piorou, perseguindo-o...

— Conte conosco — aderiu o orientador, de boa-vontade —, contudo, é importante que Celina nos ajude.

E, afagando-lhe os ombros, concluiu:

— Volte à companheira e, tão logo se desligue Cellna do corpo, pela influência do sono, traga-a em sua companhia, a fim de que possamos seguir todos juntos. Aguardá-los-emos no jardim próximo.

O interlocutor afastou-se, contente, enquanto penetrávamos enorme praça arborizada.

Detivemo-nos, à espera dos companheiros, e, aproveitando os minutos, Aulus se reportou à so­licitação recebida.

Abelardo interessava-se por Libério dos San­tos, o primeiro comunicante daquela noite, que vi­ramos amparado, por intermédio de Dona Eugênia.

E, alongando explicações, informou-nos que o esposo de Dona Celina vagueara por muito tempo, em desespero.

Na experiência física, fora um homem tempe­ramental e não se resignara, de imediato, às impo­sições da morte.

Atrabiliário e voluntarioso, desencarnara mui­to cedo, em razão dos excessos que lhe minaram a força orgânica.

Tentou, em vão, obsidiar a esposa, cujo con­curso reclamava qual se lhe fora simples serva.

Reconhecendo-se incapaz de vampirizá-la, ex­cursionou, alguns anos, no domínio das sombras, entre Espíritos rebelados e irreverentes, até que as orações da companheira, coadjuvadas pela inter­cessão de muitos amigos, conseguiram demovê-lo.

Curvara-se, enfim, à evidência dos fatos.

Reconheceu a impropriedade da intemperança mental em que se comprazia e, depois de conve­nientemente preparado pela assistência do grupo de amigos que acabávamos de deixar, foi admitido numa organização socorrista, em que passou a ser­vir como vigilante de irmãos desequilibrados.

Tão logo o Assistente completou a rápida bio­grafia, Hilário considerou, curioso:

— O contacto com Abelardo suscita indaga­ções interessantes... Continuará ele, porventura, em comunhão com a esposa?

— Sim — elucidou o orientador —, o amor entre ambos tem profundas raízes no pretérito.

— Apesar da diferença em que se exprimem?

— Por que não? Acaso, o Pai Celestial deixa de amar-nos, não obstante as falhas com que pau­tamos, ainda, a vida que nos é própria?

— Realmente — concordou meu colega, um tanto desapontado —, este argumento é indiscutível. Entretanto, Abelardo religou-se à mulher?

— Perfeitamente. Nela encontra valioso in­centivo ao trabalho de auto-recuperação em que estagia.

— Mas, na posição de Espírito desencarnado, chega a partilhar-lhe o templo doméstico?

— Tanto quanto lhe é possível. Por haver descido consideravelmente à indisciplina e à perturbação, ainda sofre as conseqüências desagradá­veis do desequilíbrio a que se rendeu e, por esse motivo, o lar terreno, com a ternura da esposa, éo maior paraíso que poderá receber por enquanto. Diariamente se entrega ao serviço árduo, na obra assistencial em favor de companheiros ensandeci­dos, mas descansa, sempre que oportuno, no jardim familiar, ao lado da companheira. Uma vez por semana, acompanha-lhe o culto intimo de oração, e-lhe firme associado nas tarefas mediúnicas e, todas as noites em que se sentem favorecidos pelas circunstâncias, consagram-se ambos ao trabalho de auxílio aos doentes. Não foram apenas cônjuges, conforme as disposições da carne. São infinita­mente amigos e Abelardo agora procura aproveitar o tempo, a benefício do seu reajuste, sonhando receber a esposa com novos títulos de elevação, quando Celina for novamente trazida à pátria es­piritual.

— Isso, porém, é comum? A separação dos casais é apenas imaginária?

— Um caso não faz regra — ponderou o As­sistente bem-humorado. — Onde não prevalecem as afinidades do sentimento, o matrimônio terrestre é um serviço redentor e nada mais. Na maioria das situações, a morte do corpo somente ratifica uma separação que já existia na experiência vulgar. Nesses casos, o cônjuge que abandona o en­voltório físico se retira da prova a que se subme­teu, à maneira do devedor que atingiu a paz do resgate. Todavia, quando os laços da alma sobre-pairam às emoções da jornada humana, ainda mes­mo que surja o segundo casamento para o cônjuge que se demora no mundo, a comunhão espiritual continua, sublime, em doce e constante permuta de vibrações e pensamentos.

Hilário refletiu alguns momentos e conjec­turou:

— A travessia pelo túmulo impõe efetivamente ao Espírito singulares modificações... Cada viajor em sua estrada, cada coração com seu problema...

— Bem-aventurados os que se renovam para o bem! — exclamou Aulus, satisfeito. — O verdadeiro amor é a sublimação em marcha, através da renúncia. Quem não puder ceder, a favor da alegria da criatura amada, sem dúvida saberá que­rer com entusiasmo e carinho, mas não saberá co­roar-se com a glória do amor puro. Depois da morte, habitualmente aprendemos, no sacrifício dos próprios sonhos, a ciência de amar, não segundo nossos desejos, mas de conformidade com a Lei do Senhor: mães obrigadas a entregar os filhinhos a provas de que necessitam, pais que se vêem com­pelidos a renovar projetos de proteção à família, esposas constrangidas a entregar os maridos a ou­tras almas irmãs, esposos que são impelidos a acei­tar a colaboração das segundas núpcias, no lar de que foram desalojados... Tudo isso encontramos na vizinhança da Terra. A morte é uma intimação ao entendimento fraternal... E quando lhe não acei­tamos o desafio, o sofrimento é o nosso quinhão...

E, com largo sorriso, ajuntou:

— Quando o amor não sabe dividir-se, a feli­cidade não consegue multiplicar-se.

A conversação prosseguia valiosa e animada, quando Abelardo e Celina chegaram até nós.

Vinham reconfortados, felizes.

Em companhia da esposa, o novo amigo pa­recia mais leve e radiante, como se lhe absorvesse a vitalidade e a alegria.

Notei que Hilário, pela expressão fisionômica, trazia consigo um novo mundo de indagações a exteriorizar.

Contudo, Aulus advertiu:

— Sigamos! É necessário agir com presteza.

A breve tempo, penetramos nebulosa região, dentro da noite.

Os astros desapareceram a nossos olhos.

Tive a impressão de que o piche gaseificado era o elemento preponderante naquele ambiente.

Em derredor, proliferavam soluços e impre­cações, mas a pequenina lâmpada que Abelardo agora empunhava, auxiliando-nos, não nos pernitia enxergar senão o trilho estreito que nos cabia percorrer.

Findos alguns minutos de marcha, atingimos uma construção mal iluminada, em que vários enfermos se demoravam, sob a assistência de enfer­meiros atenciosos.

Entramos.

Aulus explicou que estávamos ali diante de um hospital de emergência, dos muitos que se es­tendem nas regiões purgatoriais.

Tudo pobreza, necessidade, sofrimento...

— Este é o meu templo atual de trabalho —disse-nos Abelardo, orgulhoso de ser ali uma peça importante na máquina de serviço.

O irmão Justino, diretor da instituição, veio até nós e cumprimentou-nos.

Pediu escusas por lhe não ser possível acom­panhar-nos. A casa jazia repleta de psicopatas desencarnados e não poderia, dessa forma, deter-se naquele momento.

Deu-nos, porém, permissão para agir com ple­na liberdade.

A desarmonia era efetivamente tão grande no local que não pude sopitar meu espanto.

Como cogitar de reajuste num meio atormen­tado quanto aquele?

O Assistente, contudo, amparou-me, aclarando:

— Importa reconhecer que este pouso é um refúgio para desesperados. Segundo a reação que apresentam, são conduzidos, de pronto, a estabele­cimentos de recuperação positiva ou regressam às linhas de aflição de que procedem. Aqui apenas atravessam pequeno estágio de recuperação.

Alcançáramos o leito simples em que Libério, de olhar esgazeado, se mostrava distante de qual­quer interesse pela nossa presença.

Enxergava-nos, impassível.

Exibia o semblante dos loucos, quando trans­figurados por ocultas flagelações.

Um dos guardas veio até nós e comunicou a Abelardo que o doente trazido à internação denotava crescente angústia.

Aulus auscultou-o, paternalmente, e, em segui­da, informou:

— O pensamento da irmã encarnada que o nosso amigo vampiriza está presente nele, atormentando-o. Acham-se ambos sintonizados na mes­ma onda. E’ um caso de perseguição recíproca. Os benefícios recolhidos no grupo estão agora eclip­sados pelas sugestões arremessadas de longe.

— Temos então aqui — aleguei — um símile perfeito do que verificamos comumente na Terra, nos setores da mediunidade torturada. Médiuns existem que, aliviados dos vexames que recebem por parte de entidades inferiores, depressa como que lhes reclamam a presença, religando-se a elas automaticamente, embora o nosso mais sadio pro­pósito de libertá-los.

— Sim — aprovou o orientador —, enquanto não lhes modificamos as disposições espirituais, favorecendo-lhes a criação de novos pensamentos, jazem no regime da escravidão mútua, em que ob­sessores e obsidiados se nutrem das emanações uns dos outros. Temem a separação, pelos hábitos cris­talizados em que se associam, segundo os princí­pios da afinidade, e daí surgem os impedimentos para a dupla recuperação que lhes desejamos.

O doente fizera-se mais angustiado, mais pá­lido.

Parecia registrar uma tempestade interior, pa­vorosa e incoercível.

— Tudo indica a vizinhança da irmã que se lhe apoderou da mente. Nosso companheiro se reve­la mais dominado, mais aflito...

Mal acabara o orientador de formular o seu prognóstico e a pobre mulher, desligada do corpo físico pela atuação do sono, apareceu à nossa fren­te, reclamando feroz:

— Libório! Libório! por que te ausentaste? Não me abandones! Regressemos para nossa casa! Aten­de, atende!...

— Que vemos? — exclamou Hilário, intrigado.

— Não será esta a criatura que o serviço desta noite pretende isolar das más influências?

E porque o orientador respondesse de modo afirmativo, meu colega continuou:

— Deus de bondade! mas não está ela inte­ressada no reajustamento da própria saúde? não roga socorro à instituição que freqUenta?

— Isso é o que ela julga querer — explicou Aulus, cuidadoso —, entretanto, no íntimo, alimen­ta-se com os fluidos enfermiços do companheiro desencarnado e apega-se a ele, instintivamente. Mi­lhares de pessoas são assim. Registram doenças de variados matizes e com elas se adaptam para mais segura acomodação com o menor esforço. Dizem-se prejudicadas e inquietas, todavia, quando se lhes subtrai a moléstia de que se fazem portadoras, sentem-se vazias e padecentes, provocando sinto­mas e impressões com que evocam as enfermida­des a se exprimirem, de novo, em diferentes ma­nifestações, auxiliando-as a cultivar a posição de vítimas, na qual se comprazem. Isso acontece na maioria dos fenômenos de obsessão. Encarnados e desencarnados se prendem uns aos outros, sob vigorosa fascinação mútua, até que o centro de vida mental se lhes altere. É por esse motivo que, em muitas ocasiões, as dores maiores são chama­das a funcionar sobre as dores menores, com o objetivo de acordar as almas viciadas nesse gênero de trocas inferiores.

A esse tempo, a recém-chegada conseguira abeirar-se mais intimamente de Libório, que pas­sou a demonstrar visível satisfação. Sorria ele ago­ra à maneira de uma criança contente.

Identificando, porém, a presença de Dona Ce­lina, a infeliz bradou, colérica:

— Quem é esta mulher? dize! dize!...

Nossa abnegada amiga avançou para ela com simplicidade e implorou:

— Minha irmã, acalme-se! Libório está fati­gado, enfermo! Ajudemo-lo a repousar!...

A interlocutora não lhe suportou o olhar doce e benigno e, longe de reconhecer a prestimosa mé­dium do grupo a que se associara, enceguecida de ciúme, gritou para o enfermo palavras amargas, que não seria licito reproduzir, e abandonou o re­cinto, em desabalada carreira.

Libório mostrou evidente contrariedade. Áulus, contudo, aplicou-lhe passes, restituindo-lhe a calma.

Em seguida, o Assistente nos disse, amorável:

— Como vemos, a Bondade Divina é tão gran­de que até os nossos sentimentos menos dignos são aproveitados em nossa própria defesa. O despeito da visitante, encontrando Celina junto do en­fermo, dar-nos-á tréguas valiosas, de vez que te­remos algum tempo para auxiliá-lo nas reflexões necessárias. Quando acordar no corpo carnal, pela manhã, nossa pobre amiga lembrar-se-á vagamente de haver sonhado com Libório, ao lado de uma companheira, pintando um quadro de impressões a seu bel-prazer, porqüanto cada mente vê nos ou­tros aquilo que traz em si mesma.

Abelardo estava satisfeito. Acariciava o doen­te, antevendo-lhe as melhoras.

Hilário, semi-espantado, considerou:

— O que me assombra é reconhecer o serviço incessante por toda a parte. Na vigilia e no sono, na vida e na morte...

Respondeu Aulus, sorrindo:

— Sim, a inércia é simplesmente ilusão e a preguiça é fuga que a Lei pune com as aflições da retaguarda.

Mas, nossa tarefa estava agora cumprida. E, por isso, afastamo-nos.

Daí a minutos, despedindo-nos, prometeu o As­sistente reencontrar-nos, para a continuidade de nossas observações, na noite seguinte.


15

Forças viciadas

Caía a noite...

Após o dia quente, a multidão desfilava na via pública, evidentemente buscando o ar fresco.

Dirigíamo-nos a outro templo espírita, em com­panhia de Aulus, segundo o nosso plano de traba­lho, quando tivemos nossa atenção voltada para enorme gritaria.

Dois guardas arrastavam, de restaurante ba­rato, um homem maduro em deploráveis condições de embriaguez.

O mísero esperneava e proferia palavras rudes, protestando...

— Observem o nosso infeliz irmão! — deter­minou o orientador.

E porque não havia muito tempo entre a por­ta ruidosa e o carro policial, pusemo-nos em observação.

Achava-se o pobre amigo abraçado por uma entidade da sombra, qual se um polvo estranho o absorvesse.

Num átimo, reparamos que a bebedeira alcan­çava os dois, porqüanto se justapunham completa­mente um ao outro, exibindo as mesmas pertur­bações.

Em breves instantes, o veículo buzinou com pressa e não nos foi possível dilatar anotações.

— O quadro daria ensejo a valiosos aponta­mentos...

Ante a alegação de Hilário, o Assistente con­siderou que dispúnhamos de tempo bastante para a colheita de alguns registros interessantes e con­vidou-nos a entrar.

A casa de pasto regurgitava...

Muita alegria, muita gente.

Lá dentro, certo recolheríamos material ade­quado a expressivas lições.

Transpusemos a entrada.

As emanações do ambiente produziam em nós indefinível mal-estar.

Junto de fumantes e bebedores inveterados, criaturas desencarnadas de triste feição se demoravam expectantes.

Algumas sorviam as baforadas de fumo arre­messadas ao ar, ainda aquecidas pelo calor dos pulmões que as expulsavam, nisso encontrando alegria e alimento. Outras aspiravam o hálito de alcoólatras impenitentes.

Indicando-as, informou o orientador:

— Muitos de nossos irmãos, que já se desven­cilharam do vaso carnal, se apegam com tamanho desvario às sensações da experiência física, que se cosem àqueles nossos amigos terrestres tempora­riamente desequilibrados nos desagradáveis costu­mes por que se deixam influenciar.

— Mas por que mergulhar, dessa forma, em prazeres dessa espécie?

— Hilário — disse o Assistente, bondoso —, o que a vida começou, a morte continua... Esses nossos companheiros situaram a mente nos apeti­tes mais baixos do mundo, alimentando-se com um tipo de emoções que os localiza na vizinhança da animalidade. Não obstante haverem freqüentado santuários religiosos, não se preocuparam em aten­der aos princípios da fé que abraçaram, acreditan­do que a existência devia ser para eles o culto de satisfações menos dignas, com a exaltação dos mais astuciosos e dos mais fortes. O chamamento da morte encontrou-os na esfera de impressões de­lituosas e escuras e, como é da Lei que cada alma receba da vida de conformidade com aquilo que dá, não encontram interesse senão nos lugares onde podem nutrir as ilusões que lhes são peculiares, porqüanto, na posição em que se vêem, temem a verdade e abominam-na, procedendo como a coruja que foge à luz.

Meu colega fez um gesto de piedade e indagou:

— Entretanto, como se transformarão?

— Chegará o dia em que a própria Natureza lhes esvaziará o cálice — respondeu Áulus, convicto. — Há mil processos de reajuste, no Univer­so Infinito em que se cumprem os Desígnios do Senhor, chamem-se eles aflição, desencanto, can­saço, tédio, sofrimento, cárcere...

— Contudo — ponderei —, tudo indica que esses Espíritos infortunados não se enfastiarão tão cedo da loucura em que se comprazem...

— Concordo plenamente — redargüiu o ins­trutor —, todavia, quando não se fatiguem, a Lei poderá conduzi-los a prisão regeneradora.

— Como?

A pergunta de Hilário ecoou, cristalina, e o Assistente deu-se pressa em explicar:

— Há dolorosas reencarnações que significam tremenda luta expiatória para as almas necrosadas no vício. Temos, por exemplo, o mongolismo, a hidrocefalia, a paralisia, a cegueira, a epilepsia secundária, o idiotismo, o aleijão de nascença e muitos outros recursos, angustiosos embora, mas necessários, e que podem funcionar, em benefício da mente desequilibrada, desde o berço, em plena fase infantil. Na maioria das vezes, semelhantes processos de cura prodigalizam bons resultados pelas provações obrigatórias que oferecem...

— No entanto — comentei —, e se os nossos irmãos encarnados, visívelmente confiados à de­vassidão, resolvessem reconsiderar o próprio ca­minho?... se voltassem à regularidade, através da renovação mental com alicerces no bem?...

— Ah! isso seria ganhar tempo, recuperando a si mesmos e amparando com segurança os ami­gos desencarnados... Usando a alavanca da von­tade, atingimos a realização de verdadeiros milagres... Entretanto, para isso, precisariam despen­der esforço heróico.

Observando os beberrões, cujas taças eram partilhadas pelos sócios que lhes eram invisíveis, Hilário recordou:

— Ontem, visitamos um templo, em que de­sencarnados sofredores se exprimiam por intermédio de criaturas necessitadas de auxílio, e ali es­tudamos algo sobre mediunidade... Aqui, vemos entidades viciosas valendo-se de pessoas que com elas se afinam numa perfeita comunhão de forças superiores... Aqui, tanto quanto lá, seria lícito ver a mediunidade em ação?

— Sem qualquer dúvida — confirmou o orien­tador —; recursos psíquicos, nesse ou naquele grau de desenvolvimento, são peculiares a todos, tanto quanto o poder de locomoção ou a faculdade de respirar, constituindo forças que o Espírito encar­nado ou desencarnado pode empregar no bem ou no mal de si mesmo. Ser médium não quer dizer que a alma esteja agraciada por privilégios ou conquistas feitas. Muitas vezes, é possível encon­trar pessoas altamente favorecidas com o dom da mediunidade, mas dominadas, subjugadas por en­tidades sombrias ou delinqüentes, com as quais se afinam de modo perfeito, servindo ao escândalo e à perturbação, em vez de cooperarem na exten­são do bem. Por isso é que não basta a mediu­nidade para a concretização dos serviços que nos competem. Precisamos da Doutrina do Espiritis­mo, do Cristianismo Puro, a fim de controlar a energia medianímica, de maneira a mobilizá-la em favor da sublimação espiritual na fé religiosa, tan­to quanto disciplinamos a eletricidade, a benefício do conforto na Civilização.

Nisso, Aulus relanceou o olhar pelos aposentos reservados mais próximos, qual se já os conhe­cesse, e, fixando certa porta, convidou-nos a atra­vessá-la.

Seguimo-lo, ombro a ombro.

Em mesa lautamente provida com fino conha­que, um rapaz, fumando com volúpia e sob o do­mínio de uma entidade digna de compaixão pelo aspecto repelente em que se mostrava, escrevia, escrevia, escrevia...

— Estudemos — recomendou o orientador.

O cérebro do moço embebia-se em substância escura e pastosa que escorria das mãos do triste companheiro que o enlaçava.

Via-se-lhes a absoluta associação na autoria dos caracteres escritos.

A dupla em trabalho não nos registrou a pre­sença.

— Neste instante — anunciou Aulus, atencio­so —, nosso irmão desconhecido é hábil médium psicógrafo. Tem as células do pensamento inte­gralmente controladas pelo infeliz cultivador de crueldade sob a nossa vista. Imanta-se-lhe à ima­ginação e lhe assimila as idéias, atendendo-lhe aos propósitos escusos, através dos princípios da in­dução magnética, de vez que o rapaz, desejando produzir páginas escabrosas, encontrou quem lhe fortaleça a mente e o ajude nesse mister.

Imprimindo à voz significativa expressão, ajuntou:­

— Encontramos sempre o que procuramos ser. Finda a breve pausa que nos compeliu à re­flexão, Hilário recomeçou:

— Todavia, será ele um médium na acepção real do termo? Será peça ativa em agrupamento espírita comum?

— Não. Não está sob qualquer disciplina es­piritualizante. É um moço de inteligência vivaz, sem maior experiência da vida, manejado por enti­dades perturbadoras.

Após inclinar-se alguns momentos sobre os dois, o instrutor elucidou com benevolência:

— Entre as excitações do álcool e do fumo que saboreiam juntos, pretendem provocar uma re­portagem perniciosa, envolvendo uma família em duras aflições. Houve um homicídio, a cuja margem aparece a influência de certa jovem, aliada às múltiplas causas em que se formou o deplorável acontecimento, O rapaz que observamos, amigo de operoso lidador da imprensa, é de si mesmo dado à malícia e, com a antena mental ligada para os ângulos mais desagradáveis do problema, ao aten­der um pedido de colaboração do cronista que lhe é companheiro, encontrou, no caso de que hoje se encarrega, o concurso de ferrenho e viciado per­seguidor da menina em foco, interessado em exa­gerar-lhe a participação na ocorrência, com o fim de martelar-lhe a mente apreensiva e arrojá-la aos abusos da mocidade...

— Mas como? — indagou Hilário, espantadiço.

— O jornalista, de posse do comentário calu­nioso, será o veículo de informações tendenciosas ao público. A moça ver-se-á, de um instante para outro, exposta às mais desapiedadas apreciações, e decerto se perturbará, sobremaneira, de vez que não se acumpliciou com o mal, na forma em que se lhe define a colaboração no crime, O obsessor, usando calculadamente o rapaz com quem se afina, pretende alcançar o noticiário de sensação, para deprimir a vida moral dela e, com isso, amolecer-lhe o caráter, trazendo-a, se possível, ao charco vicioso em que ele jaz.

— E conseguirá? — insistiu meu colega, as­sombrado.

— Quem sabe?

E, algo triste, o orientador acrescentou:

— Naturalmente a jovem teria escolhido o gê­nero de provações que atravessa, dispondo-se a lutar, com valor, contra as tentações.

— E se não puder combater com a força pre­cisa?

— Será mais justo dizer se não quiser», por­que a Lei não nos confia problemas de trabalho superiores à nossa capacidade de solução. Assim, pois, caso não delibere guerrear a influência des­trutiva, demorar-se-á por muito tempo nas pertur­bações a que já se encontra ligada em princípio.

— Tudo isso por quê?

A pergunta de Hilário pairou no ar por afli­tiva interrogação, todavia, Aulus asserenou-nos o ânimo, elucidando:

— Indiscutívelmente, a jovem e o infeliz que a persegue estão unidos um ao outro, desde muito tempo... Terão estado juntos nas regiões inferio­res da vida espiritual, antes da reencarnação com que a menina presentemente vem sendo beneficia­da. Reencontrando-a na experiência física, de cujas vantagens ainda não partilha, o desventurado com­panheiro tenta incliná-la, de novo, à desordem emo­tiva, com o objetivo de explorá-la em atuação vam­pirizante.

Aulus fez ligeiro intervalo, sorriu melancólico e acentuou:

— Entretanto, falar nisso seria abrir as pá­ginas comoventes de enorme romance, desviando-nos do fim que nos propomos atingir. Detenha­mo-nos na mediunidade.

Buscando aliviar a atmosfera de indagações que Hilário sempre condensava em torno de si mesmo, ponderei:

— O quadro sob nossa análise induz à medi­tação nos fenômenos gerais de intercâmbio em que a Humanidade total se envolve sem perceber...

— Ah! sim! — concordou o orientador —faculdades medianímicas e cooperação do mundo espiritual surgem por toda parte. Onde há pen­samento, há correntes mentais e onde há corren­tes mentais existe associação. E toda associação é interdependência e influenciação recíproca. Daí concluímos quanto à necessidade de vida nobre, a fim de atrairmos pensamentos que nos enobreçam. Trabalho digno, bondade, compreensão fra­terna, serviço aos semelhantes, respeito à Natureza e oração constituem os meios mais puros de assi­milar os princípios superiores da vida, porque da­mos e recebemos, em espírito, no plano das idéias, segundo leis universais que não conseguiremos iludir.

Em silencioso gesto com que nos recordava o dever a cumprir, o Assistente convidou-nos à retirada.

Retomamos a via pública.

Mal recomeçávamos a avançar, quando passou por nós uma ambulância, em marcha vagarosa, si­renando forte para abrir caminho.

A frente, ao lado do condutor, sentava-se um homem de grisalhos cabelos a lhe emoldurarem a fisionomia simpática e preocupada. Junto dele, po­rém, abraçando-o com naturalidade e doçura, uma entidade em roupagem lirial lhe envolvia a cabeça em suaves e calmantes irradiaçôes de prateada luz.

— Oh! — inquiriu Hilário, curioso — quem será aquele homem tão bem acompanhado?

Aulus sorriu e esclareceu:

— Nem tudo é energia viciada no caminho comum. Deve ser um médico em alguma tarefa salvacionista.

— Mas, é espírita?

— Com todo o respeito que devemos ao Es­piritismo, é imperioso lembrar que a Bênção do Senhor pode descer sobre qualquer expressão reli­giosa — afirmou o orientador com expressivo olhar de tolerância. — Deve ser, antes de tudo, um pro­fissional humanitário e generoso que por seus há­bitos de ajudar ao próximo se fez credor do auxílio que recebe. Não lhe bastariam os títulos de espí­rita e de médico para reter a influência benéfica de que se faz acompanhar. Para acomodar-se tão harmoniosamente com a entidade que o assiste, precisa possuir uma boa consciência e um coração que irradie paz e fraternidade.

— Contudo, podemos qualificá-lo como mé­dium? — perguntou meu companheiro algo desapontado.

— Como não? — respondeu Aulus, convicto.

— É médium de abençoados valores humanos, mormente no socorro aos enfermos, no qual incor­pora as correntes mentais dos gênios do bem, con­sagrados ao amor pelos sofredores da Terra.

E, com significativa inflexão de voz, acrescentou:

— Como vemos, influências do bem ou do mal, na esfera evolutiva em que nos achamos, se es­tendem por todos os lados e por todos os lados registramos a presença de faculdades medianímicas, que as assimilam, segundo a direção feliz ou infeliz, correta ou indigna em que cada mente se localiza. Estudando, assim, a mediunidade, nos santuários do Espiritismo com Jesus, observamos uma força realmente peculiar a todos os seres, de utilidade geral, se sob uma orientação capaz de discipliná-la e conduzi-la para o máximo aproveitamento no bem. Recordemos a eletricidade que, pouco a pouco, vai transformando a face do mundo. Não basta ser dono de poderosa cachoeira, com o potencial de milhões de cavalos-vapor. É preciso instalar, jun­to dela, a inteligência da usina para controlar-lhe os recursos, dinamizá-los e distribuí-los, conforme as necessidades de cada um... Sem isso, a queda dágua será sempre um quadro vivo de beleza feno­mênica, com irremediável desperdício.

O tempo, contudo, não nos permitia maior delonga na conversação e rumamos, desse modo, para um agrupamento em que os nossos estudos da véspera encontrariam o necessário prosseguimento.


16

Mandato mediúnico

Eram quase vinte horas, quando estacamos à frente de sóbrio edifício, ladeado por vários veículos.

Muita gente ia e vinha.

Desencarnados, em grande cópia, congregavam-se no recinto e fora dele.

Vigilantes de nosso plano estendiam-se, aten­ciosos, impedindo o acesso de Espíritos impeniten­tes ou escarnecedores.

Variados grupos de pessoas ganhavam ingresso à intimidade da casa, mas no pórtico experimen­tavam a separação de certos Espíritos que as se­guiam, Espíritos que não eram simples curiosos ou sofredores, mas blasfemadores e remtentes no mal.

Esses casos, porém, constituíam exceção, por­que em maioria o séquito de irmãos desencarnados se formava de gente agoniada e enferma, tão necessitada de socorro fraterno como os doentes e aflitos que passavam a acompanhar.

Entramos.

Grande mesa, ao centro de vasta sala, encon­trava-se rodeada de largo cordão luminoso, de iso­lamento.

Em derredor, reservava-se ampla área, onde se acomodavam quantos careciam de assistência, encarnados ou não, área essa que se mostrava igualmente protegida por faixas de defesa magné­tica, sob o cuidado cauteloso de guardas perten­centes à nossa esfera de ação.

A frente, na parte oposta à entrada, vários benfeitores espirituais conferenciavam entre si e, junto deles, respeitável senhora ouvia, prestimosa, diversos pacientes.

Apresentava-se a matrona revestida por ex­tenso halo de irradiações opalinas, e, por mais que projeções de substância sombria a buscassem, atra­vés das requisições dos sofredores que a ela se dirigiam, conservava a própria aura sempre lúci­da, sem que as emissões de fluidos enfermiços lhe pudessem atingir o campo de forças.

Designando-a com a destra, o Assistente in­formou:

— É a nossa irmã Ambrosina, que, há mais de vinte anos sucessivos, procura oferecer à me­diunidade cristã o que possui de melhor na exis­tência. Por amor ao ideal que nos orienta, renun­ciou às mais singelas alegrias do mundo, inclusive o conforto mais amplo do santuário doméstico, de vez que atravessou a mocidade trabalhando, sem a consolação do casamento.

Ambrosina trazia o semblante quebrantado e rugoso, refletindo, contudo, a paz que lhe vibrava no ser.

Na cabeça, dentre os cabelos grisalhos, salien­tava-se pequeno funil de luz, à maneira de delicado adorno.

Intrigados, consultamos a experiência de nos­so orientador e o esclarecimento não se fez esperar:

— É um aparelho magnético ultra-sensível com que a médium vive em constante contacto com o responsável pela obra espiritual que por ela se realiza. Pelo tempo de atividade na Causa do Bem e pelos sacrifícios a que se consagrou, Am­brosina recebeu do Plano Superior um mandato de serviço mediúnico, merecendo, por isso, a res­ponsabilidade de mais intima associação com o instrutor que lhe preside às tarefas. Havendo cres­cido em influência, viu-se assoberbada por solicitações de múltiplos matizes. Inspirando fé e espe­rança a quantos se lhe aproximam do sacerdócio de fraternidade e compreensão, é, naturalmente, assediada pelos mais desconcertantes apelos.

— Vive então flagelada por petitórios e sú­plicas? — indagou Hilário, inevitavelmente curioso.

— Até certo ponto sim, porque simboliza uma ponte entre dois mundos, entretanto, com a paciên­cia evangélica, sabe ajudar aos outros para que os outros se ajudem, porqüanto não lhe seria possível conseguir a solução para todos os problemas que se lhe apresentam.

Abeiramo-nos da médium respeitável e modes­ta e vimo-la pensativa, não obstante o vozerio aba­fado, em torno.

Não longe, o pensamento conjugado de duas pessoas exteriorizava cenas lamentáveis de um cri­me em que se haviam embrenhado.

E, percebendo-as, Dona Ambrosina refletia, fa­lando sem palavras, em frases audíveis tão-somen­te em nosso meio:

— “Amados amigos espirituais, que fazer? Identifico nossos irmãos delinqüentes e reconheço-lhes os compromissos... Um homem foi eliminado... Vejo-lhe a agonia retratada na lem­brança dos responsáveis... Que estarão buscando aqui nossos infortunados companheiros, foragidos da justiça terrestre?”

Reparávamos que a médium temia perder a harmonia vibratória que lhe era peculiar.

Não desejava absorver-se em qualquer preo­cupação acerca dos visitantes mencionados.

Foi então que um dos mentores presentes se aproximou e tranqüilizou-a:

— Ambrosina, não receie. Acalme-se. É pre­ciso que a aflição não nos perturbe. Acostume-se a ver nossos irmãos infelizes na condição de cria­turas dignas de piedade. Lembre-se de que nos achamos aqui para auxiliar, e o remédio não foi criado para os sãos. Compadeça-se, sustentando o próprio equilíbrio! Somos devedores de amor e respeito uns para com os outros e, quanto mais desventurados, de tanto mais auxílio necessitamos. É indispensável receber nossos irmãos comprome­tidos com o mal, como enfermos que nos reclamam carinho.

A médium aquietou-se.

Passou a conversar naturalmente com os fre­qüentadores da casa.

Aqui, alguém desejava socorro para o coração atormentado ou pedia cooperação em beneficio de parentes menos felizes. Ali, suplicava-se concurso fraterno para doentes em desespero, mais além, surgiam requisições de trabalho assistencial.

Dona Ambrosina consolava e prometia. Quan­do Gabriel, o orientador, chegasse, o assunto lhe seria exposto. Decerto, traria a colaboração ne­cessária.

Não decorreram muitos minutos e Gabriel, o mais categorizado mentor da casa, deu entrada no recinto, acompanhado por grande séquito de amigos.

Acomodaram-se em palestra afetiva à frente da mesa. Aí reunidas, as entidades de vida mental mais nobre estabeleciam naturalmente larga faixa de luz inacessível às sombras que senhoreavam a maioria dos encarnados e desencarnados da grande reunião.

Gabriel e os assessores abraçaram-nos gene­rosos.

Dir-se-ia partilhávamos brilhante festividade, tão vivo se mostrava o júbilo dos instrutores e fun­cionários espirituais da instituição. O trato com doentes e sofredores dos dois planos não lhes rou­bava a esperança, a paz, o otimismo... Compa­reciam ali, com o abnegado e culto orientador, a quem Aulus não regateava os seus testemunhos de veneração, médicos e professores, enfermeiros e auxiliares desencarnados, prontos para servir na lavoura do bem.

Irradiavam tanta beleza e alegria, que Hilário, tão deslumbrado quanto eu, retornou às perguntas que lhe caracterizavam o temperamento juvenil.

Aqueles amigos, considerando as mensagens de luz e simpatia que projetavam de si mesmos, se­riam altos embaixadores da Divina Providência? Desfrutavam, acaso, o convívio dos santos? Vive­riam em comunhão pessoal com o Cristo? Teriam alcançado a condição de seres impecáveis?

O Assistente sorriu bem-humorado, e escla­receu:

— Nada disso. Com todo o apreço que lhes devemos, é preciso considerar que são vanguardei­ros do progresso, sem serem infalíveis. São gran­des almas em abençoado processo de sublimação, credoras de nossa reverência pelo grau de elevação que já conquistaram, contudo, são Espíritos ainda ligados à Humanidade terrena e em cujo seio se corporificarão, de novo, no futuro, através do ins­tituto universal da reencarnação, para o desempe­nho de preciosas tarefas.

— No entanto, à frente da assembléia de cria­turas torturadas que observamos, são eles lumina­res isentos de errar?

— Não — acentuou Aulus, compreensivo. —Não podemos exigir deles qualidades que somente transparecem dos Espíritos que já atingiram a su­blimação absoluta. São altos expoentes de fraternidade­ e conhecimento superior, porém, guardam ainda consigo probabilidades naturais de desacerto. Primam pela boa-vontade, pela cultura e pelo pró­prio sacrifício no auxilio incessante aos companhei­ros reencarnados, mas podem ser vítimas de equí­vocos, que se apressam, contudo, a corrigir, sem a vaidade que, em muitas circunstâncias, prejudica os doutos da Terra. Aqui temos, por exemplo, va­riados médicos sem o envoltório da experiência fí­sica. Apesar de excelentes profissionais, devotados e beneméritos na missão que esposaram, não seria, contudo, admissível fossem promovidos, de um ins­tante para outro, da ciência fragmentária do mundo à sabedoria integral. Com a imersão nas realidades da morte, adquirem novas visões da vida, alargam-se-lhes os horizontes da observação. Compreen­dem que algo sabem, mas esse algo é muito pouco daquilo que lhes compete saber. Entregam-se, des­se modo, a preciosas cruzadas de serviço e, dentro delas, ajudam e aprendem. Trabalhadores de ou­tros círculos da experiência humana encontram-se no mesmo regime. Auxiliam e são auxiliados. Não poderia ser de outro modo. Sabemos que o milagre não existe como derrogação de leis da Natureza. Somos irmãos uns dos outros, evolvendo juntos, em processo de interdependência, no qual se des­taca o esforço individual.

Nessa altura do esclarecimento que registráva­mos, felizes, Dona Ambrosina sentara-se ao lado do diretor da sessão, um homem de cabelos grisa­lhos e fisionomia simpática que havia organizado a mesa orientadora dos trabalhos com catorze pes­soas, em que transpareciam a simplicidade e a fé.

Enquanto Gabriel se postava ao lado da mé­dium, aplicando-lhe passes de longo circuito, como a prepará-la com segurança para as atividades da noite, o condutor da reunião pronunciou sentida prece.

Em seguida, foi lido um texto edificante de livro doutrinário, acompanhado por breve anotação evangélica, em cuja escolha preponderou a influên­cia de Gabriel sobre o orientador da casa.

Da leitura global distinguia-se a paciência por tema vivo.

E, realmente, a assembléia, examinada no todo mostrava-se flagelada de problemas inquietantes, reclamando a chave da conformação para alcançar o reequilíbrio.

Dezenas e dezenas de pessoas aglomeravam-se, em derredor da mesa, exibindo atribulações e difi­culdades.

Estranhas formas-pensamentos surgiam de gru­po a grupo, denunciando-lhes a posição mental.

Aqui, dardos de preocupação, estiletes de amar­gura, nevoeiros de lágrimas... Acolá, obsessores enquistados no desânimo ou no desespero, entre agressivos propósitos de vingança, agravados pelo temor do desconhecido...

Desencarnados em grande número suspiravam pelo céu, enquanto outros receavam o inferno, de­sajustados pela falsa educação religiosa recolhida no plano terrestre.

Vários amigos espirituais, junto aos componen­tes da mesa diretora, passaram a ajudá-los na pre­dicação doutrinária, com bases no ponto evangélico da noite, espalhando, através de comentários bem feitos, estímulos e consolos.

Fichas individuais não eram declinadas, entre­tanto percebíamos claramente que as pregações eram arremessadas ao ar, com endereço exato. Aqui, levantavam um coração caído em desalen­to, ali, advertiam consciências descuidadas, mais além, renovavam o perdão, a fé, a caridade, a esperança...

Não faltavam quadros impressionantes de Es­píritos perseguidores, que procuravam hipnotizar as próprias vitimas, precipitando-as no sono pro­vocado, para que não tomassem conhecimento das mensagens transformadoras, ali veiculadas pelo verbo construtivo.

Muitos médiuns funcionavam no recinto, cola­borando em favor dos serviços de ordem geral a se processarem harmoniosos, todavia, observáva­mos que Dona Ambrosina era o centro da confian­ça de todos e o objeto de todas as atenções.

Figurava-se, ali, o coração do santuário, dando e recebendo, ponto vivo de silenciosa junção entre os habitantes de duas esferas distintas.

Junto dela, em oração, foram colocadas nume­rosas tiras de papel.

Eram requerimentos, anseios e súplicas do povo, recorrendo à proteção do Além, nas aflições e aperturas da existência.

Cada folha era um petitório agoniado, um ape­lo comovedor.

Entre Dona Ambrosina e Gabriel destacava-se agora extensa faixa elástica de luz azulínea, e ami­gos espirituais, prestos na solidariedade cristã, nela entravam e, um a um, tomavam o braço da me­dianeira, depois de lhe influenciarem os centros corticais, atendendo, tanto quanto possível, aos pro­blemas ali expostos.

Antes, porém, de começarem o trabalho de res­posta às questões formuladas, um grande espelho fluídico foi situado junto da médium, por traba­lhadores espirituais da instituição e, na face dele, com espantosa rapidez, cada pessoa ausente, no­meada nas petições da noite, surgia ante o exame dos benfeitores que, a distância, contemplavam-lhe a imagem, recolhiam-lhe os pensamentos e especi­ficavam-lhe as necessidades, oferecendo a solução possível aos pedidos feitos.

Enquanto cultos companheiros de fé ensinavam o caminho da pacificação interior, sob a inspiração de mentores do nosso plano, Dona Ambrosina, sob o comando de instrutores que se revezavam no ser­viço assistencial, psicografava sem descanso.

Equilibrara-se o trabalho no recinto e, com isso, entendemos que havia reaparecido ocasião ade­quada para as nossas indagações.

Hilário foi o primeiro na inquirição que não conseguíamos sopitar, e, indicando o enorme laço fluídico que ligava Dona Ambrosina ao orientador que lhe presidia à missão, perguntou:

— Que significa essa faixa, através da qual a médium e o dirigente se associam tão intimamen­te um ao outro?

Aulus, com a tolerância e a benevolência ha­bituais, elucidou:

— O desenvolvimento mais amplo das faculda­des medianímicas exige essa providência. Ouvindo e vendo, no quadro de vibrações que transcendem o campo sensório comum, Ambrosina não pode es­tar à mercê de todas as solicitações da esfera es­piritual, sob pena de perder o seu equilíbrio. Quan­do o médium se evidencia no serviço do bem, pela boa-vontade, pelo estudo e pela compreensão das responsabilidades de que se encontra investido, re­cebe apoio mais imediato de amigo espiritual expe­riente e sábio, que passa a guiar-lhe a peregrinação na Terra, governando-lhe as forças. No caso pre­sente, Gabriel é o perfeito controlador das energias de nossa amiga, que só estabelece contacto com o plano espiritual de conformidade com a super­visão dele.

— Quer dizer que para efetuarmos uma co­municação por intermédio da senhora, sob nosso estudo, será preciso sintonizar com ela e com o orientador ao mesmo tempo?

— Justamente — respondeu Áulus, satisfeito.

— Um mandato mediúnico reclama ordem, segu­rança, eficiência. Uma delegação de autoridade hu­mana envolve concessão de recursos da parte de quem a outorga. Não se pedirá cooperação siste­mática do médium, sem oferecer-lhe as necessárias garantias.

— Isso, porém, não dificultará o processo de intercâmbio?

— De modo algum. Perante as necessidades respeitáveis e compreensíveis, com perspectivas de real aproveitamento, o próprio Gabriel se incumbe de tudo facilitar, ajudando aos comunicantes, tanto quanto auxilia a médium.

Assinalando a perfeita comunhão entre o men­tor e a tutelada, indaguei por minha vez se uma associação daquela ordem não estaria vinculada a compromissos assumidos pelos médiuns, antes da reencarnação, ao que Áulus respondeu, prestimoso:

— Ah! sim, semelhantes serviços não se efe­tuam sem programa. O acaso é uma palavra inventada pelos homens para disfarçar o menor esfor­ço. Gabriel e Ambrosina planejaram a experiência atual, muito antes que ela se envolvesse nos den­sos fluidos da vida física.

E por que dizer — continuei, lembrando ao Assistente as suas próprias palavras — «quando o médium se destaca no serviço do bem recebe apoio de um amigo espiritual», se esse amigo espiritual e o médium já se encontram irmanados um ao outro, desde muito tempo?

O instrutor fitou-me de frente e falou:

— Em qualquer cometimento, não seria licito desvalorizar a liberdade de ação. Ambrosina com­prometeu-se: isso, porém, não a impediria de cancelar o contrato de serviço, não obstante reconhe­cer-lhe a excelência e a magnitude. Poderia desejar imprimir novo rumo ao seu idealismo de mulher, embora adiando realizações sem as quais não se erguerá livremente do mundo. Os orientadores da Espiritualidade procuram companheiros, não escra­vos. O médium digno da missão do auxílio não é um animal subjugado à canga, mas sim um irmão da Humanidade e um aspirante à Sabedoria. Deve trabalhar e estudar por amor... É por isso que muitos começam a jornada e recuam. Livres para decidir quanto ao próprio destino, muitas vezes pre­ferem estagiar com indesejáveis companhias, cain­lo em temíveis fascinações. Iniciam-se com entusiasmo na obra do bem, entretanto, em muitas circunstâncias dão ouvidos a elementos corruptores

que os visitam pelas brechas da invigilância. E, assim, tropeçam e se estiram na cupidez, na preguiça, no personalismo destruidor ou na sexuali­dade delinqüente, transformando-se em joguetes dos adversários da luz, que lhes vampirizam as forças, aniquilando-lhes as melhores possibilidades. Isso é da experiência de todos os tempos e de todos os dias...

— Sim, sim... — concordei — mas não seria possível aos mentores espirituais a movimentação de medidas capazes de pôr cobro aos abusos, quan­do os abusos aparecem?

Meu interlocutor sorriu e obtemperou:

— Cada consciência marcha por si, apesar de serem numerosos os mestres do caminho. Devemos a nós mesmos a derrota ou a vitória. Almas e coletividades adquirem as experiências com que se redimem ou se elevam, ao preço do próprio esforço. O homem constrói, destrói e reconstrói destinos, como a Humanidade faz e desfaz civilizações, bus­cando a melhor direção para responder aos chama­mentos de Deus. É por isso que pesadas tribula­ções vagueiam no mundo, tais como a enfermidade e a aflição, a guerra e a decadência, despertando as almas para o discernimento justo. Cada qual vive no quadro das próprias conquistas ou dos pró­prios débitos. Assim considerando, vemos no Pla­neta milhões de criaturas sob as teias da mediu­nidade torturante, milhares detendo possibilidades psíquicas apreciáveis, muitas tentando o desenvol­vimento dos recursos dessa natureza e raras ob­tendo um mandato mediúnico para o trabalho da fraternidade e da luz. E, segundo reconhecemos, a mediunidade sublimada é serviço que devemos edificar, ainda que essa gloriosa aquisição nos custe muitos séculos.

— Mas, ainda num mandato mediúnico, o ta­refeiro da condição de Dona Ambrosina pode cair?

— Como não? — acentuou o interlocutor —um mandato é uma delegação de poder obtida pelo crédito moral, sem ser um atestado de santificação. Com maiores ou menores responsabilidades, é im­prescindível não esquecer nossas obrigações peran­te a Lei Divina, a fim de consolidar nossos títulos de merecimento na vida eterna.

E, com significativo tom de voz, acrescentou:

— Recordemos a palavra do Senhor: “muito se pedirá de quem muito recebeu”.

A conversação, à margem do serviço, oferece­ra-me suficiente material de meditação.

As valiosas anotações do Assistente, em se reportando à mediunidade, impeliam-me a silenciar e refletir.

Isso, porém, não acontecia com o meu compa­nheiro, porque Hilário, fixando o espelho fluídico em que os benfeitores do nosso plano recolhiam informações rápidas para respostas às consultas, solicitou de nosso orientador alguma definição so­bre o delicado instrumento, que funcionava às mil maravilhas, mostrando quadros com pessoas an­gustiadas ou enfermas, de momento a momento.

— É um televisor, manobrado com recursos de nossa esfera.

— Entretanto — inquiriu Hilário, minucioso —‘ a face do espelho mostra o veículo de carne ou a própria alma?

— A própria alma. Pelo exame do perispírito, alinham-se avisos e conclusões. Muitas vezes, é imprescindível analisar certos casos que nos são apresentados, de modo meticuloso; todavia, recolhendo apelos em massa, mobilizamos meios de atender a distância. Para isso, trabalhadores das nossas linhas de atividade são distribuídos por di­versas regiões, onde captam as imagens de acordo com os pedidos que nos são endereçados, sintoni­zando as emissões com o aparelho receptor sob nossa vista. A televisão, que começa a estender-se no mundo, pode oferecer uma idéia imediata de semelhante serviço, salientando-se que entre nós essas transmissões são muito mais simples, exatas e instantâneas.

Meu colega refletiu alguns momentos, como se grave problema lhe aflorasse à cabeça, e considerou:

— O que vemos sugere importantes pondera­ções. Imaginemos que alguém expeça determinada solicitação ao mandato mediúnico, sujeita a certa demora entre a requisição e a resposta... Figure­mos que o interessado, situado longe, desencarne e permaneça, em Espírito, como acontece em muitas ocasiões, num aposento doméstico ou em algum lei­to de hospital, embora já liberado do corpo físi­co... Num caso desses, a resposta dos benfeitores espirituais será fornecida como se fosse dedicada ao encarnado autêntico?

— Isso pode ocorrer em várias circunstâncias — acrescentou o Assistente —, de vez que não nos achamos num serviço automático ou milagroso. Agimos com espírito de cooperação e boa-vontade, dependendo o êxito do auxílio mútuo, porque uma só peça não solucionará os problemas da máquina inteira. Funcionários que recolhem anotações re­clamam o concurso eficiente daqueles que as trans­mitem. Muita vez, a longa distância, a criatura em sofrimento é mostrada aos que se propõem socorrê-la e os samaritanos da fraternidade, em virtude do número habitualmente enorme dos afli­tos, com a obrigação de ajudar, de improviso, não podem, de momento, ajuizar se estão recebendo informes acerca de um encarnado ou de um desen­carnado, mormente quando não se acham laurea­dos por vastíssima experiência. Em certas situa­ções, os necessitados exigem auxílio intensivo em pequenina fração de minuto. Assim sendo, qualquer equívoco desse jaez é perfeitamente admissível.

— Mas, isso — tornou Hilário — não seria perturbar o serviço da fé? Se fossemos nós, os en­carnados, não julgaríamos tal acontecimento como sendo inútil resposta enviada a um morto?

— Não, Hilário, não podemos situar a questão nestes termos. Quem busca sinceramente a fé, en­contra o prêmio da compreensão clara e pacífica das coisas, sem prejudicar-se diante de contradições superficiais e aparentes.

Nesse ponto do diálogo, o Assistente meditou um instante e observou:

— Mas se os consulentes são exemplares de leviandade e má-fé, abeirando-se do trabalho me­diúnico no propósito deliberado de estabelecer a descrença e a secura espiritual, semelhantes resul­tados, quando se verificam, servem para eles como justa colheita dos espinhos que plantam, de vez que abusam da generosidade e da paciência dos Espí­ritos amigos e recolhem para si mesmos a negação e a tortura mental. Quem procura a fonte límpida, arremessando-lhe lodo à face, não pode, em segui­da, obter a água pura.

Hilário, satisfeito, silenciou.

E porque dois médiuns de cura passassem a socorrer doentes em sala próxima, enquanto Dona Ambrosina e os oradores cumpriam seus edifican­tes deveres, procuramos o serviço de passes mag­néticos, à cata de novos conhecimentos.


17

Serviço de passes

Atravessamos a porta e fomos defrontados por ambiente balsâmico e luminoso.

Um cavalheiro maduro e uma senhora respei­tável recolhiam apontamentos em pequeno livro de notas, ladeados por entidades evidentemente vin­culadas aos serviços de cura.

Indicando os dois médiuns, o Assistente in­formou:

— São os nossos irmãos Clara e Henrique, em tarefa de assistência, orientados pelos amigos que os dirigem.

— Como compreender a atmosfera radiante em que nos banhamos? — aventurou Hilário, curioso.

— Nesta sala — explicou Aulus, amigavelmen­te — se reúnem sublimadas emanações mentais da maioria de quantos se valem do socorro magnético, tomados de amor e confiança. Aqui possuímos uma espécie de altar interior, formado pelos pensamen­tos, preces e aspirações de quantos nos procuram trazendo o melhor de si mesmos.

Não dispúnhamos, todavia, de muito tempo para a conversação isolada.

Clara e Henrique, agora em prece, nimbavam­-se de luz.

Dir-se-ia estavam quase desligados do corpo denso, porque se mostravam espiritualmente mais livres, em pleno contacto com os benfeitores pre­sentes, embora por si mesmos não no pudessem avaliar.

Calmos e seguros, pareciam haurir forças re­vigorantes na intimidade de suas almas. Guarda­vam a idéia de que a oração lhes mantinha o es­pírito em comunicação com invisível e profundo manancial de energia silenciosa.

Ante a porta ainda cerrada, acotovelavam-se pessoas aflitas e bulhentas, esperando o término da preparação a que se confiavam.

Os dois médiuns, porém, afiguravam-se-nos espiritualmente distantes.

Absortos, em companhia das entidades irmãs, registravam-lhes as instruções, através dos recur­sos intuitivos.

Pelas irradiações da personalidade magnética de Henrique, reconhecia-se-lhe, de imediato, a su­perioridade sobre a companheira. Era ele, dentre os dois, o ponto dominante.

Por isso, decerto, ao seu lado se achava o orien­tador espiritual mais categorizado para a tarefa.

Aulus abraçou-o e no-lo apresentou, gentil.

O irmão Conrado, nosso novo amigo, enlaçou-nos acolhedor.

Anunciou que o serviço estaria à nossa dis­posição para os apontamentos que desejássemos.

E o nosso instrutor, colocando-nos à vontade, autorizou-nos dirigir a Conrado qualquer indaga­ção que nos ocorresse.

Hilário, que nunca sopitava a própria espon­taneidade, começou, como de hábito, a inquirição, perguntando respeitosamente:

— O amigo permanece freqüentemente aqui?

— Sim, tomamos sob nossa responsabilidade os serviços assistenciais da instituição, em favor dos doentes, duas noites por semana.

— Dos enfermos tão-somente encarnados?

— Não é bem assim. Atendemos aos necessi­tados de qualquer procedência.

— Conta com muitos cooperadores?

— Integramos um quadro de auxiliares, de acordo com a organização estabelecida pelos mentores da Esfera Superior.

— Quer dizer que, numa casa como esta, há colaboradores espirituais devidamente fichados, as­sim como ocorre a médicos e enfermeiros num hos­pital terrestre comum?

— Perfeitamente. Tanto entre os homens como entre nós, que ainda nos achamos longe da perfei­ção espiritual, o êxito do trabalho reclama expe­riência, horário, segurança e responsabilidade do servidor fiel aos compromissos assumidos. A Lei não pode menosprezar as linhas da lógica.

— E os médiuns? são invariavelmente os mesmos?

— Sim, contudo, em casos de impedimento jus­to, podem ser substituidos, embora nessas circuns­tâncias se verifiquem, inevitavelmente, pequenos prejuízos resultantes de natural desajuste.

Meu colega passeou o olhar inquieto pelos dois companheiros encarnados, em oração, e continuou:

— Preparam-se nossos amigos, à frente do trabalho, com o auxílio da prece?

— Sem dúvida. A oração é prodigioso banho de forças, tal a vigorosa corrente mental que atrai. Por ela, Clara e Henrique expulsam do próprio mundo interior os sombrios remanescentes da ati­vidade comum que trazem do círculo diário de luta e sorvem do nosso plano as substâncias renovadoras de que se repletam, a fim de conseguirem operar com eficiência, a favor do próximo. Desse modo, ajudam e acabam por ser firmemente aju­dados.

— Isso significa que não precisam recear a sua exaustão...

— De modo algum. Tanto quanto nós, não comparecem aqui com a pretensão de serem os se­nhores do benefício, mas sim na condição de bene­ficiários que recebem para dar. A oração, com o reconhecimento de nossa desvalia, coloca-nos na posição de simples elos de uma cadeia de socorro, cuja orientação reside no Alto. Somos nós aqui, neste recinto consagrado à missão evangélica, sob a inspiração de Jesus, algo semelhante à singela tomada elétrica, dando passagem à força que não nos pertence e que servirá na produção de ener­gia e luz.

A explicação não podia ser mais clara.

E enquanto Hilário sorria satisfeito, Conrado afagou os ombros de Henrique, como a recordar-lhe o horário estabelecido, e o médium, apesar de não lhe assinalar o gesto no campo das sensações fí­sicas, obedeceu, de pronto, encaminhando-se para a porta e descerrando-a aos sofredores.

Pequena multidão de encarnados e desencar­nados aglomerou-se à entrada, todavia, companhei­ros da casa controlavam-lhes os movimentos.

Conrado entregou-se ao trabalho que lhe com­petia e, em razão disso, tornamos à intimidade do Assistente.

Ambos os médiuns atacaram a tarefa.

Enfermos de variada expressão entravam es­perançosos e retiravam-se, depois de atendidos, com evidentes sinais de reconforto. Das mãos de Clara e Henrique irradiavam-se luminosas chispas, comu­nicando-lhes vigor e refazimento.

Na maioria dos casos, não precisavam tocar o corpo dos pacientes, de modo direto. Os recursos magnéticos, aplicados a reduzida distância, penetravam assim mesmo o «halo vital» ou a aura dos doentes, provocando modificações subitâneas.

Os passistas afiguravam-se-nos como duas pi­lhas humanas deitando raios de espécie múltipla, a lhes fluírem das mãos, depois de lhes percorre­rem a cabeça, ao contacto do irmão Conrado e de seus colaboradores.

O quadro era efetivamente fascinador pelos jogos de luz que apresentava.

Hilário sondou o ambiente e, em seguida, in­dagou de nosso orientador:

— Por que motivo a energia transmitida pelos amigos espirituais circula primeiramente na cabeça dos médiuns?

— Ainda aqui — disse Áulus —, não podemos subestimar a importância da mente. O pensamento influi de maneira decisiva, na doação de princípios curadores. Sem a idéia iluminada pela fé e pela boa-vontade, o médium não conseguiria ligação com os Espíritos amigos que atuam sobre essas bases.

— Entretanto — ponderei —, há pessoas tão bem dotadas de força magnética perfeitamente des­preocupadas do elemento moral!...

— Sim — redargüiu o Assistente —, refere-se você aos hipnotizadores comuns, muita vez porta­dores de energia excepcional. Fazem belas demons­trações, impressionam, convencem, contudo, movi­mentam-se na esfera de puro fenômeno, sem apli­cações edificantes no campo da espiritualidade. É imperioso não esquecer, André, que o potencial magnético é peculiar a todos, com expressões que se graduam ao infinito.

— Mas semelhantes profissionais podem igual­mente curar! — frisou meu companheiro, comple­tando-me as observações.

— Sim, podem curar, mas acidentalmente, quando o enfermo é credor de assistência espiri­tual imediata, com a intervenção de amigos que o favorecem. Fora disso, os que abusam dessa fonte de energia, explorando-a ao seu bel-prazer, quase sempre resvalam para a desmoralização de si mes­mos, porque interferindo num campo de forças que lhes é desconhecido, guiados tão-somente pela vai­dade ou pela ambição inferior, fatalmente encon­tram entidades que com eles se afinam, precipi­tando-se em difíceis situações que não vêm à baila comentar. Se não possuem um caráter elevado, suscetível de opor um dique à influenciação viciosa, acabam vampirizados por energias mais acentua­das que as deles, porqüanto, se considerarmos o assunto apenas sob o ponto de vista da força, somos constrangidos a reconhecer que há imenso número de vigorosos hipnotizadores espirituais, nas linhas atormentadas da ignorância e da crueldade, de onde se originam os mais aflitivos processos de obsessão.

E, sorrindo, acrescentou:

— Recordemos a Natureza. A serpente é um dos maiores detentores de poder hipnótico.

— Então — disse Hilário —, para curar, serão indispensáveis certas atitudes do espírito...

— Indiscutívelmente não prescindimos do co­ração nobre e da mente pura, no exercício do amor, da humildade e da fé viva, para que os raios do poder divino encontrem acesso e passagem por nós, a benefício dos outros. Para a sustentação de um serviço metódico de cura, isso é indispensável.

— Entretanto, para o esforço desse tipo pre­cisaremos de pessoas escolhidas, com a obrigação de efetuarem estudos especiais?

— Importa ponderar — disse Aulus, convicto — que em qualquer setor de trabalho a ausência de estudo significa estagnação. Esse ou aquele co­operador que desistam de aprender, incorporando novos conhecimentos, condenam-se fatalmente às atividades de subnível, todavia, em se tratando do socorro magnético, tal qual é administrado aqui, convém lembrar que a tarefa é de solidariedade pura, com ardente desejo de ajudar, sob a invo­cação da prece. E toda oração, filha da sincerida­de e do dever bem cumprido, com respeitabilidade moral e limpeza de sentimentos, permanece tocada de incomensurável poder. Analisada a questão nes­tes termos, todas as pessoas dignas e fervorosas, com o auxílio da prece, podem conquistar a simpa­tia de veneráveis magnetizadores do Plano Espiri­tual, que passam, assim, a mobilizá-las na extensão do bem. Não nos achamos à frente do hipnotismo espetacular, mas sim num gabinete de cura, em que os médiuns transmitem os benefícios que reco­lhem, sem a presunção de doá-los de si mesmos. É importante não esquecer essa verdade para dei­xarmos bem claro que, onde surjam a humildade e o amor, o amparo divino é seguro e imediato.

O ministério da cura, porém, a desdobrar-se eficiente e pacífico, reclamava-nos atenção.

Os doentes entravam dois a dois, sendo cari­nhosamente atendidos por Clara e Henrique, sob a providencial assistência de Conrado e seus cola­boradores.

Obsidiados ganhavam ingresso no recinto,

acompanhados de frios verdugos, no entanto, com

o toque dos médiuns sobre a região cortical, de­pressa se desligavam, postando-se, porém, nas vizinhanças, como que à espera das vítimas, com

a maioria das quais se reacomodavam, de pronto. Alinhando apontamentos, começamos a repa­rar que alguns enfermos não alcançavam a mais leve melhoria.

As irradiações magnéticas não lhes penetravam o veículo orgânico.

Registrando o fenômeno, a pergunta de Hilário não se fez esperar.

— Por quê?

— Falta-lhes o estado de confiança — escla­receu o orientador.

— Será, então, indispensável a fé para que registrem o socorro de que necessitam?

— Ah! sim. Em fotografia precisamos da cha­pa impressionável para deter a imagem, tanto quanto em eletricidade carecemos do fio sensível para a transmissão da luz. No terreno das vantagens espirituais, é imprescindível que o candidato apre­sente uma certa “tensão favorável”. Essa tensão decorre da fé. Certo, não nos reportamos ao fa­natismo religioso ou à cegueira da ignorância, mas sim à atitude de segurança íntima, com reverência e submissão, diante das Leis Divinas, em cuja sabedoria e amor procuramos arrimo. Sem recolhi­mento e respeito na receptividade, não conseguimos fixar os recursos imponderáveis que funcionam em nosso favor, porque o escárnio e a dureza de co­ração podem ser comparados a espessas camadas do gelo sobre o templo da alma.

A lição fora simples e bela.

Hilário calou-se, talvez para refletir sobre ela, em silêncio.

Sem descurar dos nossos objetivos de estudo, Aulus considerou a conveniência de nosso contacto direto com o serviço em ação. Seria interessante para nós a auscultação de algum dos casos em foco.

Para isso, aproximou-se de idosa matrona que acabava de entrar, à cata de auxilio e, com permissão de Conrado, convidou-nos a examiná-la com cuidado possível.

A senhora, aguardando o concurso de Clara, sustentava-se dificilmente de pé, com o ventre vo­lumoso e o semblante dolorido.

— Observem o fígado!

Utilizamo-nos dos recursos ao nosso alcance passamos a analisar.

Realmente, o órgão mencionado demonstrava a dilatação característica das pessoas que sofrem de insuficiência cardíaca. As células hepáticas pa­receram-me vasta colmeia, trabalhando sob enorme perturbação. A vesícula congestionada impeliu-me a imediata inspecção do intestino. A bile compri­mida atingira os vasos e assaltava o sangue. O colédoco interdito facilitava o diagnóstico. Ligeiro exame da conjuntiva ocular confirmava-me a im­pressão.

A icterícia mostrava-se insofismável.

Após ouvir-me, Conrado reafirmou:

— Sim, é uma icterícia complicada. Nasceu de terrível acesso de cólera, em que nossa amiga se envolveu no reduto doméstico. Rendendo-se, de­sarvorada, à irritação, adquiriu renitente hepatite, da qual a icterícia é a conseqüência.

— E como será socorrida?

Conrado, impondo a destra sobre a fronte da médium, comunicou-lhe radiosa corrente de forças e inspirou-a a movimentar as mãos sobre a doente, desde a cabeça até o fígado enfermo.

Notamos que o córtex encefálico se revestiu de substância luminosa que, descendo em fios tenuíssimos, alcançou o campo visceral.

A senhora exibiu inequívoca expressão de alí­vio, na expressão fisionômica, retirando-se visível­mente satisfeita, depois de prometer que voltaria ao tratamento.

Hilário fixou os olhos interrogadores no Assis­tente que nos acompanhava, solícito, e indagou:

— Nossa irmã estará curada?

— Isso é impossível — acentuou Áulus, pa­ternal —; temos aí órgãos e vasos comprometidos. O tempo não pode ser desprezado na solução.

— E em que bases se articula semelhante pro­cesso de curar?

— O passe é uma transfusão de energias, al­terando o campo celular. Vocês sabem que na pró­pria ciência humana de hoje o átomo não é mais o tijolo indivisível da matéria... que, antes dele, encontram-se as linhas de força, aglutinando os princípios subatômicos, e que, antes desses princípios, surge a vida mental determinante... Tudo é espírito no santuário da Natureza. Renovemos o pensamento e tudo se modificará conosco. Na assistência magnética, os recursos espirituais se entrosam entre a emissão e a recepção, ajudan­do a criatura necessitada para que ela ajude a si mesma. A mente reanimada reergue as vidas microscópicas que a servem, no templo do corpo, edificando valiosas reconstruções. O passe, como reconhecemos, é importante contribuição para quem saiba recebê-lo, com o respeito e a confiança que o valorizam.

— E pode, acaso, ser dispensado a distância?

— Sim, desde que haja sintonia entre aquele que o administra e aquele que o recebe. Nesse caso, diversos companheiros espirituais se ajustam no trabalho do auxílio, favorecendo a realização, e a prece silenciosa será o melhor veículo da força curadora.

O serviço, em torno, prosseguia intenso.

Aulus considerou que a nossa presença talvez sobrecarregasse as preocupações de Conrado, e que não seria lícito permanecer junto dele por mais tempo, já que havíamos recolhido os apontamen­tos rápidos que nos propúnhamos obter e, à vista disso, despedimo-nos do supervisor, buscando o sa­lão central para a continuidade de nossas aben­çoadas lições.


18

Apontamentos à margem

Dona Ambrosina continuava psicografando vá­rias mensagens, endereçadas aos presentes.

E um dos oradores, sob a influência de benigno mentor da Espiritualidade, salientava a necessidade de conformação com as Leis Divinas para que a nossa vida mental se refaça, fazendo jus a bênçãos renovadoras.

Alguns encarnados jaziam impermeáveis e so­nolentos, vampirizados por obsessores caprichosos que os acompanhavam de perto, entretanto, muitos desencarnados de mediana compreensão ouviam, so­lícitos, e sinceramente aplicados ao ensino conso­lador.

Gabriel, de olhos percucientes e lúcidos, a tudo presidia com firmeza.

Nenhuma ocorrência, por mínima que fosse, lhe escapava à percepção.

Aqui, a um leve sinal seu, entidades escame­cedoras eram exortadas à renovação de atitude, ali, socorriam-se doentes que ele indicava com si­lencioso gesto de recomendação.

Era o pulso de comando, forte e seguro, sus­tentando a harmonia e a ordem, na exaltação do trabalho.

Contemplamos a mesa enorme em que a dire­ção se processava com equilíbrio irrepreensível e, fitando a médium, rodeada de apetrechos do ser­viço, em atividade constante, Hilário perguntou ao nosso orientador:

— Por que tantas mensagens pessoais dos Es­píritos amigos?

— São respostas reconfortantes a companhei­ros que lhes solicitam assistência e consolo.

— E essas respostas — continuou meu colega

— traduzem equação definitiva para os problemas que expõem?

— Isso não — aclarou o Assistente, convic­to —; entre o auxílio e a solução vai sempre alguma distância em qualquer dificuldade, e não podemos esquecer que cada um de nós possui os seus próprios enigmas.

— Se é assim, por que motivo o intercâmbio? se os desencarnados não podem oferecer uma con­clusão pacífica aos tormentos dos irmãos que ainda se demoram na carne, por que a porta aberta entre eles e nós?

— Não te esqueças do impositivo da cooperação na estrada de cada ser — disse Aulus com grave entono. — Na vida eterna, a existência no corpo físico, por mais longa, é sempre curto período de aprendizagem. E não nos cabe olvidar que a Terra é o campo onde ferimos a nossa batalha evolutiva. Dentro dos princípios de causa e efeito, adquirimos os valores da experiência com que estruturamos a nossa individualidade para as Esferas Superiores. A mente, em verdade, é o ca­minheiro buscando a meta da angelitude, contudo, não avançará sem auxílio. Ninguém vive só. Os pretensos mortos precisam amparar os companhei­ros em estágio na matéria densa, porqüanto em grande número serão compelidos a novos mergu­lhos na experiência carnal. É da Lei que a sabe­doria socorra a ignorância, que os melhores ajudem aos menos bons. Os homens, cooperando com os Espíritos esclarecidos e benevolentes, atraem sim­patias preciosas para a vida espiritual, e as enti­dades amigas, auxiliando os reencarnados, estarão construindo facilidades para o dia de amanhã, quan­do de volta à lide terrestre.

— Sim, sim, compreendo... — exclamou Hi­lário, reconhecido. — Entretanto, colocando-me na situação da criatura vulgar, recordo-me de que no mundo habituamo-nos a esperar do Céu uma solu­ção decisiva e absoluta para inúmeros problemas que se nos deparam...

— Semelhante atitude, porém — acentuou o orientador —, decorre de antiga viciação mental no Planeta. Para maior clareza do assunto, reme-moremos a exemplificação do Divino Mestre. Jesus, o Governador Espiritual do Mundo, auxiliou a doen­tes e aflitos, sem retirá-los das questões funda­mentais que lhes diziam respeito. Zaqueu, o rico prestigiado pela visita que lhe foi feita, sentiu-se constrangido a modificar a sua conduta. Maria de Magdala, que lhe recebeu carinhosa atenção, não ficou livre do dever de sustentar-se no árduo com­bate da renovação interior. Lázaro, reerguido das trevas do sepulcro, não foi exonerado da obrigação de aceitar, mais tarde, o desafio da morte. Paulo de Tarso foi por Ele distinguido com um apelo pes­soal, às portas de Damasco, entretanto, por isso, o apóstolo não obteve dispensa dos sacrifícios que lhe cabiam no desempenho da nova missão. Se­gundo reconhecemos, seria ilógico aguardar dos de­sencarnados a liquidação total das lutas humanas. Isso significaria furtar o trabalho que corresponde ao sustento do servidor, ou subtrair a lição ao aluno necessitado de luz.

A essa altura, não longe de nós, simpática senhora monologava em pensamento:

— Meu filho! meu filho! se você não está mor­to, visite-me! Venha! venha! Estou morrendo de saudade, de angústia!... fale-me alguma palavra pela qual nos entendamos... Se tudo não está acabado, aproxime-se da médium e comunique-se! É impossível que você não tenha piedade...

As frases amargas, embora inarticuladas, atin­giam-nos a audição, qual se fossem arremessadas ao ambiente em voz abafadiça.

Leve rumor à retaguarda feriu-nos a atenção. Um rapaz desencarnado apresentou-se em lastimáveis condições e avançou para a triste mulher, dominado por invencível atração.

Da boca amarfanhada escorria a amargura em forma de palavras comovedoras.

— Mãe! mãe! — gritava de joelhos, qual se fora atormentada criança, conchegando-se-lhe ao regaço — não me abandone!... Estou aqui, ouça-me! não morri... perdoe-me, perdoe-me!... sou um renegado, um náufrago!... Busquei a morte quando eu deveria viver para o seu carinho! Ago­ra sim! Vejo o sofrimento de perto e desejaria ani­quilar-me para sempre, tal a vergonha que me aflige o coração!...

A matrona não lhe via a figura agoniada, con­tudo, registrava-lhe a presença, através de intradu­zível ansiedade, a constringir-lhe o peito.

Dois vigilantes aproximaram-se, arrebatando o moço ao colo materno, e, ladeando por nossa vez o Assistente, que se deu pressa em socorrer a se­nhora em lágrimas, ouvimo-la clamar, mentalmente:

— «Não será melhor segui-lo? Morrer e des­cansar!... Meu filho, quero meu filho!...

Aulus aplicou-lhe recursos magnéticos, com o que a desventurada criatura experimentou grande alívio, e, em seguida, informou:

— Anotemos o caso desta pobre mãe desar­vorada. O filho suicidou-se, há meses, e ainda não consegue forrar-se à flagelação Intima. Em sua devoção afetiva, reclama-lhe a manifestação pessoal sem saber o que pede, porque a chocante po­sição do rapaz constituir-lhe-ia pavoroso martírio. Não poderá, desse modo, recolher-lhe a palavra direta, entretanto, ao contacto do trabalho espiri­tual que aqui se processa, incorporará energias no­vas para refazer-se gradualmente.

— Decerto — acrescentou Hilário, com inteli­gência —, não terá resolvido o problema crucial da sensibilidade ferida, no entanto, adquire forças para recuperar-se...

— Isso mesmo.

— Aliás — considerei a meu modo —, a me­diunidade de hoje é, na essência, a profecia das religiões de todos os tempos.

— Sim — aprovou Aulus, prestimoso —, com a diferença de que a mediunidade hoje é uma con­cessão do Senhor à Humanidade em geral, consi­derando-se a madureza do entendimento humano, à frente da vida, O fenômeno mediúnico não é novo. Nova é tão-somente a forma de mobilização dele, porque o sacerdócio de várias procedências jaz, há muitos séculos, detido nos espetáculos do culto ex­terior, mumificando indebitamente o corpo das re­velações celestiais. Notadamente o Cristianismo, que deveria ser a mais ampla e a mais simples das escolas de fé, há muito tempo como que se enquis­tou no superficialismo dos templos. Era preciso, pois, libertar-lhe os princípios, a benefício do mun­do que, cientificamente, hoje se banha no clarão de nova era. Por esse motivo, o Governo oculto do Planeta deliberou que a mediunidade fosse tra­zida do colégio sacerdotal à praça pública, a fim de que a noção da eternidade, através da sobrevi­vência da alma, desperte a mente anestesiada do povo. É assim que Jesus nos reaparece, agora, não como fundador de ritos e fronteiras dogmáticas, mas sim em sua verdadeira feição de Redentor da Alma Humana. Instrumento de Deus por excelência, Ele se utilizou da mediunidade para acender a luz da sua Doutrina de Amor. Restaurando en­fermos e pacificando aflitos, em muitas ocasiões esteve em contacto com os chamados mortos, al­guns dos quais não eram senão almas sofredoras a vampirizarem obsidiados de diversos matizes. E, além de surgir em colóquio com Moisés materia­llzado no Tabor, Ele mesmo é o grande ressus­citado, legando aos homens o sepulcro vazio e acompanhando os discípulos com acendrado amor, para que lhe continuassem o apostolado de bên­çãos.

Hilário esboçou o sorriso de um estudante sa­tisfeito com a lição, e exclamou:

— Ah! sim, tenho a impressão de começar a compreender...

Os trabalhos da reunião tocavam a fase ter­minal.

Nosso orientador percebeu que Gabriel se dispunha a grafar a mensagem do encerramento e, respeitoso, pediu-lhe cunhar alguns conceitos em derredor da mediunidade, ao que o supervisor aquiesceu, gentil.

Dona Ambrosina entrara em pausa ligeira para alguns momentos de recuperação.

O diretor da reunião rogou silêncio para o re­mate dos serviços, e, tão logo reverente quietação se fez na assembléia, o condutor da casa controlou o cérebro da medianeira e tomou-lhe o braço, es­crevendo aceleradamente.

Em minutos rápidos, os apontamentos de Ga­briel estavam concluídos.

A médium levantou-se e passou a lê-los em voz alta:

— “Meus amigos — dizia o mentor —, é in­dispensável procurar na mediunidade não a chave falsa para certos arranjos inadequados na Terra, mas sim o caminho direito de nosso ajustamento à vida superior.

«Compreendendo assim a verdade, é necessário renovar a nossa conceituação de médium, para que não venhamos a transformar companheiros de ideal e de luta em oráculos e adivinhos, com esqueci­mento de nossos deveres na elevação própria.

«O Espiritismo, simbolicamente, é Jesus que retorna ao mundo, convidando-nos ao aperfeiçoa­mento individual, por intermédio do trabalho cons­trutivo e incessante.

«Dentro das leis da cooperação, será justo acei­tar o braço amigo que se nos oferece para a jor­nada salvadora, entretanto é imprescindível não esquecer que cada qual de nós transporta consigo questões essenciais e necessidades intransferíveis.

«Desencarnados e encarnados, todos palmilha­mos extenso campo de experimentações e de pro­vas, condizentes com os impositivos de nosso cres­cimento para a imortalidade.

«Não atribuamos, assim, ao médium obrigações que nos competem, em caráter exclusivo, e nem aguardemos da mediunidade funções milagreiras, porqüanto só a nós cabe o serviço árduo da pró­pria ascensão, na pauta das responsabilidades que o conhecimento superior nos impõe.

«Diante de nossas assertivas, podereis talvez indagar, segundo os velhos hábitos que nos carac­terizam a preguiça mental na Terra: — Se o Es­piritismo e a Mediunidade não nos solucionam os enigmas de maneira absoluta, que estarão ambos fazendo no santuário religioso da Humanidade?

«Responder-vos-emos, todavia, que neles reen­contramos o pensamento puro do Cristo, auxiliando-nos a compreensão para mais amplo discernimento da realidade. Neles recolhemos exatos informes, quanto à lei das compensações, eqüacionando afli­tivos problemas do ser, do destino e da dor e dei­xando-nos perceber, de alguma sorte, as infinitas dimensões para as quais evolvemos. E a eles de­veremos, acima de tudo, a luz para vencer os te­nebrosos labirintos da morte, a fim de que nos consorciemos, afinal, com as legítimas noções da consciência cósmica.

«Alcançadas semelhantes fórmulas de raciocí­nio, perguntaremos a vós outros por nossa vez:

— «Acreditais seja pouco revelar a excelsitu­de da Justiça? Admitis seja desprezível descortinar a vida em suas ilimitadas facetas de evolução e eternidade?

«Reverenciemos, pois, o Espiritismo e a Me­diunidade como dois altares vivos no templo da fé, através dos quais contemplaremos, de mais alto, a esfera das cogitações propriamente terrestres, compreendendo, por fim, que a glória reservada ao espirito humano é sublime e infinita, no Reino Divino do Universo .

A comunicação psicográfica tratou de outros assuntos e, finda a sua leitura, breve oração de reconhecimento foi pronunciada. E, enquanto os assistentes tornavam à conversação livre, Hilário e eu, ante os conceitos ouvidos, passamos a pro­funda introversão para melhor aprender e meditar.


19

Dominação telepática

Dispúnhamo-nos à despedida, quando simpática senhora desencarnada abeirou-se de nós, cumpri­mentando o Assistente com respeitosa afetividade.

Aulus incumbiu-se da apresentação.

— É a irmã Teonília, uma de nossas diligen­tes companheiras no trabalho assistencial.

A nova amiga correspondeu-nos às saudações com gentileza e explicou ao nosso orientador o objetivo que a trazia.

Contou, então, que Anésia, devotada compa­nheira da instituição em que nos achávamos, sorvia o fel de dura prova.

Além das preocupações naturais com a educa­ção das três filhinhas e com a assistência imprescindível à mãezinha doente, em vésperas de desen­carnação, sofria tremenda luta íntima, de vez que Jovino, o esposo, vivia agora sob a estranha fas­cinação de outra mulher. Esquecera-se, invigilante, das obrigações no santuário doméstico. Parecia, de todo, desinteressado da companheira e das fi­lhas. Como que voltara às estroinices da primei­ra juventude, qual se nunca houvesse abraçado a missão de pai.

Dia e noite, deixava-se dominar pelos pensa­mentos da nova mulher que o enlaçara na armadilha de mentirosos encantos.

Em casa, nas atividades da profissão ou na via pública, era ela, sempre ela a senhorear-lhe a mente desprevenida.

Transformara-se o mísero num obsidiado au­têntico, sob a constante atuação da criatura que lhe anestesiava o senso de responsabilidade para consigo mesmo.

Não poderia Aulus interferir?

Não seria justo afastar semelhante influência, como se extirpa uma chaga com o socorro operatório?

O Assistente ouviu-a com calma e falou, con­ciso:

— Conheço Anésia e nela estimo admirável ir­mã. Há meses, não disponho de oportunidade para visitá-la como venho desejando. Decerto, não me negarei ao concurso fraterno, entretanto, não será conveniente estabelecer medidas drásticas sem uma auscultação do caso em si. Sabemos que a obses­são entre desencarnados ou encarnados, sob qual­quer prisma em que se mostre, é uma enfermidade mental, reclamando por vezes tratamento de longo curso. Quem sabe se o pobre Jovino não estará na condição de um pássaro hipnotizado, não obs­tante o corpanzil que lhe confere aparências de robustez no plano físico?

— Do que posso perceber — anotou a inter-locutora —, vejo tão-somente um homem compro­metido em trabalho digno, ameaçado por perversa mulher...

— Oh! não! — atalhou o nosso instrutor con­descendente —, não a classifique com semelhante adjetivação. Acima de tudo, é imperioso aceitá-la por infeliz irmã.

— Sim, sim... concordo — exclamou Teoní­lia, reajustando-se. — De qualquer modo, rogo-lhe a caridosa intercessão. Anésia tem sido uma cola­boradora providencial em nossa tarefa. Não me sentiria satisfeita, cruzando os braços...

— Faremos quanto se nos afigure viável no círculo de nossas possibilidades, contudo, é impres­cindível analisar o passado para concluir sobre as raízes da ligação indébita a que nos reportamos.

E, imprimindo grave tonalidade à voz, o Assis­tente enunciou:

— Estará descendo Jovino a impressões do pretérito? não será uma provação que o nosso amigo terá traçado à própria consciência, com fina­lidade redentora, e à qual não sabe agora como resistir?

Teonília esboçou um gesto de humildade silen­ciosa, enquanto Aulus rematava, afagando-lhe os ombros:

— Guardemos otimismo e confiança. Amanhã, à noitinha, conte conosco no lar de Anésia. Son­daremos, de perto, quanto nos caiba fazer.

Nossa amiga, expressou reconhecimento e des­pediu-se sorrindo.

A sós conosco, durante o regresso ao nosso templo de trabalho e de estudo, Aulus salientou a nossa oportunidade de prosseguir observando. O assunto prendia-se naturalmente a problema de influenciação e teríamos ensejo de examinar fenô­menos mediúnicos importantes, na esfera vulgar da experiência de muitos.

Com efeito, em momento preestabelecido, reu­nimo-nos no dia seguinte para a excursão progra­mada.

Atingimos a estação de destino ao anoitecer.

Teonília aguardava-nos no pórtico de domicilio confortável, sem ser luxuoso.

Pequeno roseiral à entrada dizia sem palavras dos belos sentimentos dos moradores.

Guiados por nossa amiga, alcançamos o interior doméstico.

A família entregava-se à refeição.

Uma senhora jovem servia atenciosamente a um cavalheiro maduro e bem-posto, ladeado por três meninas, das quais a mais moça revelava a graça primaveril dos catorze a quinze anos.

Claro que o entendimento da véspera dispen­sava novas informações. Aulus, no entanto, esclareceu, minucioso:

— Anésia e Jovino acham-se aqui com as fi­llinhas Marcina, Marta e Márcia.

A palestra familiar desdobrava-se afetuosa, mas o dono da casa parecia contrafeito. Doces apontamentos das meninas não lhe arrancavam o mais leve sorriso. Contudo, enquanto o genitor timbrava em mostrar-se aborrecido, a mãezinha se fazia mais terna e mais contente, incentivando a conversação das duas filhas mais velhas que co­mentavam episódios humorísticos do bazar de quinquilharias em que trabalhavam juntas.

Findo o jantar, a senhora dirigiu-se à mais moça e recomendou com carinho:

— Márcia, minha filha, volte à vovó e espere por mim. Nossa doente não deve estar a sós.

A pequena obedeceu de bom grado e, trans­corridos alguns instantes, Marcina e Marta demandaram sala próxima, em palestra mais Intima.

Dona Anésia reajustou a copa e a cozinha, operando em silêncio, enquanto o marido se esparramava numa poltrona, devorando os jornais ves­pertinos. Reparando, todavia, que o esposo se le­vantara para sair, endereçou-lhe olhar inquieto e indagou, delicadamente:

— Poderemos, acaso, esperar hoje por você?

— Hoje? hoje?... — redargüiu o interlocutor, sem fixá-la.

E o diálogo prosseguiu, animadamente.

— Sim, um pouco mais tarde; faremos nossas preces em conjunto...

— Preces? para que isso?

— Sinceramente, Jovino, creio no poder da ora­ção e suponho que nunca precisamos tanto como agora de usá-la em favor de nossa tranqüilidade doméstica.

— Não concordo com a sua opinião.

E, sarcástico, a exibir estranho sorriso, con­tinuou:

— Não disponho de tempo para lidar com os seus tabus. Tenho compromissos inadiáveis. Estu­darei, junto de amigos, excelente negócio.

Nesse instante, contudo, surpreendente imagem de mulher surgiu-lhe à frente dos olhos, qual se fora projetada sobre ele a distância, aparecendo e desaparecendo com intermitências.

Jovino fez-se mais distraído, mais enfadado.

Fitava agora a esposa com indiferença irônica, demonstrando inexcedível dureza espiritual.

Intrigados com o fenômeno sob nossa vista, ouvimos Anésia que, enlaçada por Teonília, dizia quase suplicante:

— Jovino, você não concorda que temos esta­do mais ausentes um do outro, quando precisamos estar mais juntos?

— Ora, ora! deixe de pieguices! Sua preocupa­ção seria própria, há vinte anos, quando não éra­mos senão tolos colegiais!

— Não, não é bem isso... Inquietam-me nosso lar e nossas filhas...

— De minha parte, não vejo como torturar-me. Creio que a casa está bem provida e não estou dormindo sobre nossos interesses familiares. Meus negócios estão em movimento. Preciso de di­nheiro e, por essa razão, não posso perder tempo com beatices e petitórios, endereçados a um Deus que, sem dúvida, deve estar muito satisfeito em morar no Céu, sem lembrar-se deste mundo...

Anésia dispunha-se a revidar, no entanto, a atitude do marido era tão flagrantemente escamecedora que, decerto, julgou mais oportuno silenciar.

O chefe da família, depois de apúrar o nó da gravata vivamente colorida, bateu a porta estrepi­tosamente sobre os próprios passos e retirou-se.

A companheira humilhada caiu em pranto si­lencioso sobre velha poltrona e começou a pensar, articulando frases sem palavras:

— «Negócios, negócios... Quanta mentira so­bre mentira! Uma nova mulher, isso sim!... Mulher sem coração que não nos vê os problemas... Dívidas, trabalhos, canseiras! Nossa casa hipoteca­da, nossa velhinha a morrer!... Nossas filhas cedo arremessadas à luta pela própria subsistência!»

Enquanto as reflexões dela se faziam audíveis para nós, irradiando-se na sala estreita, vimos de novo a mesma figura de mulher que surgira àfrente de Jovino, aparecendo e reaparecendo ao re­dor da esposa triste, como que a fustigar-lhe o coração com invisíveis estiletes de angústia, porque Anésia acusava agora indefinível mal-estar.

Não via com os olhos a estranha e indesejável visita, no entanto, assinalava-lhe a presença em forma de incoercível tribulação mental. De ines­perado, passou da meditação pacífica a tempestuosos pensamentos.

— «Lembro-me dela, sim — refletia agora em franco desespero —, conheço-a! é uma boneca de perversidade... Há muito tempo vem sendo um veículo de perturbação para a nossa casa. Jovino está modificado... Abandona-nos, pouco a pouco. Parece detestar até mesmo a oração... Ah! que horrível criatura uma adversária qual essa, que se imiscui em nossa existência à maneira da víbora traiçoeira! Se eu pudesse haveria de esmagá-la com os meus pés, mas hoje guardo uma fé religiosa, que me forra o coração contra a violência...

Á medida, porém, que Anésia monologava in­timamente em termos de revide, a imagem projetada de longe abeirava-se dela com maior inten­sidade, como que a corporificar-se no ambiente para infundir-lhe mais amplo mal-estar.

A mulher que empolgava o espírito de Jovi­no ali surgia agora visívelmente materializada aos nossos olhos.

E as duas, assumindo a posição de francas inimigas, passaram à contenda mental.

Lembranças amargas, palavras duras, recípro­cas acusações.

A esposa atormentada passou a sentir desa­gradáveis sensações orgânicas.

O sangue afluia-lhe com abundância à cabeça, impondo-lhe aflitiva tensão cerebral.

Quanto mais se lhe dilatavam os pensamentos de revolta e amargura, mais se lhe avultava o de­sequilíbrio físico.

Teonília afagou-a, carinhosa, e informou ao nosso orientador:

— Há muitas semanas diariamente se repete o conflito. Temo pela saúde de nossa companheira.

Aulus deu-se pressa em aplicar-lhe recursos magnéticos de alívio e, desde então, as manifesta­ções estranhas diminuíram até completa cessação.

Efetivado o reajustamento relativo de Anésia e percebendo-nos a curiosidade, o Assistente escla­receu:

— Jovino permanece atualmente sob imperio­sa dominação telepática, a que se rendeu facilmen­te, e, considerando-se que marido e mulher respi­ram em regime de influência mútua, a atuação que o nosso amigo vem sofrendo envolve Anésia, atin­gindo-a de modo lastimável, porqüanto a pobrezinha não tem sabido imunizar-se com os benefícios do perdão incondicional.

Hilário, intrigado, perguntou:

— Examinamos, porém, um fenômeno comum?

— Intensamente generalizado. É a influen­ciação de almas encarnadas entre si que, às vezes, alcança o clima de perigosa obsessão. Milhões de lares podem ser comparados a trincheiras de luta, em que pensamentos guerreiam pensamentos, as­sumindo as mais diversas formas de angústia e repulsão.

— E poderíamos enquadrar o assunto nos do­minios da mediunidade?

— Perfeitamente, cabendo-nos acrescentar ain­da que o fenômeno pertence à sintonia. Muitos processos de alienação mental guardam nele as ori­gens. Muitas vezes, dentro do mesmo lar, da mes­ma família ou da mesma instituição, adversários ferrenhos do passado se reencontram. Chamados pela Esfera Superior ao reajuste, raramente con­seguem superar a aversão de que se vêem possui­dos, uns à frente dos outros, e alimentam com paixão, no imo de si mesmos, os raios tóxicos da antipatia que, concentrados, se transformam em venenos magnéticos, suscetíveis de provocar a en­fermidade e a morte. Para isso, não será neces­sário que a perseguição recíproca se expresse em contendas visíveis. Bastam as vibrações silencio­sas de crueldade e despeito, ódio e ciúme, violência e desespero, as quais, alimentadas, de parte a par­te, constituem corrosivos destruidores.

Finda ligeira pausa, o Assistente continuou:

— O pensamento exterioriza-se e projeta-se, formando imagens e sugestões que arremessa so­bre os objetivos que se propõe atingir. Quando benigno e edificante, ajusta-se às Leis que nos re­gem, criando harmonia e felicidade, todavia, quan­do desequilibrado e deprimente, estabelece aflição e ruína. A química mental vive na base de todas as transformações, porque realmente evoluimos em profunda comunhão telepática com todos aqueles encarnados ou desencarnados que se afinam co­nosco.

— E como solucionar o problema da antipatia contra nós? — indagou meu companheiro com in­teresse.

Aulus sorriu e respondeu:

— A melhor maneira de extinguir o fogo é recusar-lhe combustível. A fraternidade operante será sempre o remédio eficaz, ante as perturbações dessa natureza. Por isso mesmo, o Cristo aconse­lhava-nos o amor aos adversários, o auxílio aos que nos perseguem e a oração pelos que nos caluniam, como atitudes indispensáveis à garantia de nossa paz e de nossa vitória.

Nesse instante, porém, Anésia consultara o relógio e reerguera-se.

Vinte horas.

Era o momento preciso de suas preces junto da mãezinha doente, e acompanhamo-la, atenciosos, a fim de igualmente orarmos.


20

Mediunidade e oração

Em estreito aposento, uma senhora, aparen­tando setenta anos de idade, acusava aflitiva dispnéia.

A pequena Márcia, agitando um leque impro­visado, propiciava-lhe ar fresco.

Ao lado da enferma, porém, uma entidade de aspecto desagradável exibia estranha máscara de perturbação e sofrimento, imantando-se a ela e agravando-lhe os tormentos físicos.

Tratava-se de um homem desencarnado, de­monstrando no olhar a alienação mental evidente.

Enquanto Anésia se acomodava, junto à doen­te, com inexcedível ternura, procurando esquecer-se de si mesma para ajudá-la, Aulus informou, pres­timoso:

— Temos aqui nossa irmã Elisa, em avançado processo liberatório... Vive as últimas horas no corpo carnal...

— E este homem de triste apresentação que lhe guarda a cabeceira? — perguntou Hilário, indicando a entidade que não nos via.

— Este é um infortunado filho de nossa vene­randa amiga, há muitos anos distanciado da experiência física. Teve a infelicidade de chafurdar no vicio da embriaguez e foi assassinado numa noite de extravagância. A genitora, porém, dele se re­corda, como a um herói, e, a evocá-lo incessantemente, retém o infeliz ao pé do próprio leito.

— Ora essa! Por quê?

O Assistente modificou o tom de voz e reco­mendou-nos serenidade. Analisaríamos o caso em momento oportuno. O problema de Anésia pedia colaboração imediata.

Realmente, a pobre senhora, de fisionomia fa­tigada, acariciava a enferma com palavras de amor, mas Dona Elisa parecia aloucada, distante...

Anésia desfez-se em lágrimas.

— Por que chorar, mãezinha? Vovó não está pior...

A voz meiga de Márcia ressoou no quarto, mo­dulada com inefável carinho.

A menina, que nem de longe poderia perceber a tortura materna, enlaçou a genitora convidando-a à oração.

Dona Anésia desejou a presença das filhas mais velhas, contudo, Marcina e Marta alegaram que o natalício de uma companheira de trabalho lhes impunha a necessidade de sair por alguns mi­nutos.

A dona da casa sentou-se rente à enferma e, acompanhada pela atenção da filhinha, pronunciou sentida prece.

A medida que orava, funda modificação se lhe Imprimia ao mundo interior. Os dardos de tristeza, que lhe dilaceravam a alma, desapareceram ante os raios de branda luz a se lhe exteriorizarem do coração. Desde esse instante, qual se houvera acen­dido uma lâmpada em plena obscuridade, vários desencarnados sofredores penetraram o quarto, abei­rando-se dela, à maneira de doentes, solicitando medicação.

Nenhum deles nos assinalava a presença e, diante da nossa curiosidade silenciosa, Aulus aclarou:

— São companheiros que trazem ainda a men­te em teor vibratório idêntico ao da existência na carne. Na fase em que estagiam, mais depressa se ajustam com o auxílio dos encarnados, em cuja faixa de impressões ainda respiram. Quantos se encontram em semelhante estado, dentro do raio de ação das preces de nossa amiga, recebem o to­que de espiritualidade que emana do serviço dessa natureza e, quando sensíveis ao bem ou sedentos de renovação interior, dão-se pressa em responder ao apelo de elevação que os visita, aderindo à ora­ção, de cujo sublime poder recolhem esclarecimento e consolo, amparo e benefício.

— Quanto valor num insignificante ato de fé!

O Assistente afagou a fronte inquieta de Hi­lário e concordou:

— Sim o homem terrestre criou enormes com­plicações ao seu caminho, contudo, a morte cons­trange-o a regressar aos alicerces da simplicidade para a regeneração da própria vida.

A essa altura, Anésia abriu precioso livro de meditações evangélicas, acreditando agir ao acaso, mas o tema, em verdade, foi escolhido por Teoní­lia, que lhe vigiava, bondosa, os movimentos.

Com surpresa, a dona da casa notou que o texto se reportava à necessidade do trabalho e do perdão.

Dócil, correspondendo à influenciação da men­tora espiritual, a esposa de Jovino começou a falar sabiamente sobre os impositivos do serviço e da tolerância construtiva, em favor da edificação jus­ta do bem.

A voz dela, fluente e suave, transmitia, sem que ela mesma percebesse, o pensamento de Teonília­ que, com isso, buscava socorrer-lhe o coração atormentado.

Numa pausa mais longa, Márcia reparou com inteligência:

— Continue, mãezinha! Continue... Tenho a idéia de que nos achamos à frente de enorme multidão...

E sem refletir que estava pregando, acima de tudo, para si mesma, Anésia adiantou:

— Sim, minha filha, estamos sozinhas porque a vovó, fatigada, não nos ouve. Isso, porém, é só na aparência. Muitos irmãos desencarnados, decer­to, permanecem aqui conosco e acompanham nosso culto de oração.

E prosseguiu nos comentários que, efetiva­mente, acendiam novo ânimo nas almas presentes, ávidas de luz, tanto quanto sequiosas de paz e refazimento.

Terminada a tarefa, Márcia despediu-se da mãezinha com um beijo.

O serviço escolar da manhã exigia o repouso mais cedo.

Depois de afetuosas recomendações à menina, viu-se Anésia a sós com a genitora semi-incons­ciente.

Acariciou-lhe o rosto pergaminhado e pálido, acomodou-lhe a cabeça suarenta nos travesseiros e estirou-se ao lado dela, como que procurando pensar, pensar..

Aulus fez significativo gesto a Teonilia e ex­clamou:

— Este é o momento exato.

Cuidadosamente, começaram ambos a aplicar-lhe passes sobre a cabeça, concentrando energia magnética ao longo das células corticais.

Anésia viu-se presa de branda hipnose, que ela própria atribuía ao cansaço e não relutou.

Em breves instantes, deixava o corpo denso na prostração do sono, vindo ao nosso encontro em desdobramento quase natural.

Não parecia, contudo, tão consciente em nosso plano quanto seria de desejar.

Centralizada no afeto ao marido, Jovino cons­tituía-lhe obcecante preocupação. Reconheceu Teo­nília e Aulus por benfeitores e lançou-nos signifi­cativo olhar de simpatia, no entanto, mostrava-se atordoada, ....... Queria ver o esposo, ouvir o esposo...

O Assistente deliberou satisfazê-la.

Amparada pelos braços da admirável amiga, tomou a direção que lhe pareceu acertada, como quem possuía, de antemão, todos os dados necessá­rios à localização do marido.

Aulus conosco explicou que as almas, quando associadas entre si, vivem ligadas uma às outras pela imanação magnética, superando obstáculos e distâncias.

Em vasto salão de um clube noturno, surpre­endemos Jovino e a mulher que se fizera nossa conhecida nos fenômenos telepáticos, integrando um grupo alegre, em atitudes de profunda intimidade afetiva.

Rodeando o conjunto, diversas entidades, es­tranhas para nós, formavam vicioso círculo de vam­piros que não nos registraram a presença.

O anedotário menos edificante prendia as aten­ções.

Ao defrontar o companheiro na posição em que se achava, Anésia desferiu doloroso grito e caiu em pranto.

Seguida por nós, recuou ferida de aflição e assombro e tão logo nos vimos na via pública. bafejados pelo ar leve da noite, o Assistente abra­çou-a, paternal.

Notando-a mais senhora de si, embora o sofri­mento lhe transfigurasse o rosto, falou-lhe com extremado carinho:

— Minha irmã, recomponha-se. Você orou, pe­dindo assistência espiritual, e aqui estamos, trazendo-lhe­ solidariedade. Reanime-se! Não perca a esperança!.

— Esperança? — clamou a pobre criatura em lágrimas. — Fui traída, miseravelmente traida...

E o entendimento, entre os dois, prosseguiu comovente e expressivo.

— Traída por quem?

— Por meu esposo, que falhou aos compro­missos do casamento.

— Mas você admite, porventura, que o casa­mento seja uma simples excursão no jardim da carne? supôs que o matrimônio terrestre fosse ape­nas a música da ilusão a eternizar-se no tempo? Minha amiga, o lar é uma escola em que as almas se reaproximam para o serviço da sua própria re­generação, com vistas ao aprimoramento que nos cabe apresentar de futuro. Você ignora que no edu­candário há professores e alunos? desconhece que os melhores devem ajudar aos menos bons?

A interlocutora, chamada a brios, sustou a lamentação. Ainda assim, após fitar o nosso orien­tador com entranhada confiança, alegou, triste:

— Mas Jovino...

Aulus, porém, cortou-lhe a frase, acrescen­tando:

— Esquece-se de que seu esposo precisa muito mais agora de seu entendimento e carinho? Nem sempre a mulher poderá ver no companheiro o ho­mem amado com ternura, mas sim um filho espi­ritual necessitado de compreensão e sacrifício para soerguer-se, como também nem sempre o homem conseguirá contemplar na esposa a flor de seus primeiros sonhos, mas sim uma filha do coração, a requisitar-lhe tolerância e bondade, a fim de que se transfira da sombra para a luz. Anésia, o amor não é tão-somente a ventura rósea e doce do sexo perfeitamente atendido. É uma luz que brilha mais alto, inspirando a coragem da renúncia e do perdão incondicionais, em favor do ser e dos seres que nós amamos. Jovino é uma planta que o Senhor lhe confiou às mãos de jardineira. É compreen­sível que a planta seja assaltada pelos parasitas ou pelos vermes da morte, todavia, nada há a re­cear se a jardineira está vigilante...

Nesse ponto das belas palavras do instrutor, a mãezinha de Márcia voltou-se para ele, à maneira de uma doente agarrando-se ao médico, e rogou em voz súplice:

— Sim, sim... Reconheço... Entretanto, não me deixe sozinha... Sinto-me atribulada. Que fa­zer da mulher que o domina? Nela vejo a pertur­bação e o fel de nossa casa... Assemelha-se a um Espírito diabólico, fascinando-o e destruindo-o...

— Não se refira a ela assim, com palavras amargas! É também nossa irmã, vitimada por lastimáveis enganos!...

— Mas como aceitá-la? Percebo-lhe a influên­cia maligna... Parece uma serpente invisível, trazendo consigo pavorosos monstros para junto de nós... Nosso templo doméstico, por isso, transfor­mou-se num inferno em que não mais nos enten­demos... Tudo agora é fracasso, desarmonia e insegurança... Que fazer de semelhante criatura?

— Compadeçamo-nos dela! Terrível ser-lhe-á o despertamento.

— Compaixão?

— E que outra melhor represália senão essa?

— Não seria mais justo situá-la na reparação dos próprios erros? não seria mais certo relegá-la ao lugar escuro que merece?

Aulus, porém, tomou-lhe a destra inquieta e esclareceu:

— Abstenhamo-nos de julgar. Consoante a li­ção do Mestre que hoje abraçamos, o amor deve ser nossa única atitude para com os adversários. A vingança, Anésia, é a alma da magia negra. Mal por mal significa o eclipse absoluto da razão. E, sob o império da sombra, que poderemos aguardar senão a cegueira e a morte? Por mais aflitiva lhe seja a lembrança dessa mulher, recorde-a em suas preces e em suas meditações, por irmã necessitada de nossa assistência fraterna. Ainda não readqui­rimos nossa memória integral do passado e nem sabemos o que nos ocorrerá no futuro... Quem terá sido ela no pretérito? alguém que ajudamos ou ferimos? Quem será para nós no porvir? Nossa mãe ou nossa filha? Não condene! O ódio é como o incêndio que tudo consome, mas o amor sabe como apagar o fogo e reconstruir. Segundo a Lei, o bem neutraliza o mal, que se transforma, por fim, em servidor do próprio bem. Ainda que tudo pareça conspirar contra a sua felicidade, ame e ajude sempre, porque o tempo se incumbirá de expulsar as trevas que nos visitam, à medida que se nos aumente o mérito moral.

Anésia, assemelhando-se a uma criança resig­nada, pousou no benfeitor os olhos límpidos, como a prometer-lhe obediência, e Aulus, afagando-a, re­comendou:

— Volte ao lar e use a humildade e o perdão, o trabalho e a prece, a bondade e o silêncio, na

defesa de sua segurança. A mãezinha enferma e as filhinhas reclamam-lhe amor puro, tanto quanto

o nosso Jovino, que voltará, mais experiente, ao refúgio de seu coração.

Anésia ergueu a cabeça para o firmamento constelado de luz, pronunciando uma oração de lou­vor e, em seguida, tornou a casa.

Vimo-la despertar no corpo carnal, de alma renovada, quase feliz...

Enxugou as lágrimas que lhe banhavam o ros­to e tentou ansiosamente recordar, ponto a ponto, a entrevista que tivera conosco.

Em verdade, não conseguiu alinhar senão frag­mentárias reminiscências, mas reconheceu-se recon­fortada, sem revolta e sem amargura, como se mãos intangíveis lhe houvessem lavado a mente, confe­rindo-lhe uma compreensão mais clara da vida.

Recordou Jovino e a mulher que o hipnoti­zava, compadecidamente, como pessoas a lhe exi­girem tolerância e piedade.

Profundo entendimento brotava-lhe agora do espírito. A compreensão da irmã superara o dese­quilíbrio da mulher.

E pensava: «que lhe adiantaria a revolta ou o desânimo, quando lhe competia a defesa do lar? fazendo justiça com as próprias mãos, não preju­dicaria aqueles que lhe constituíam a riqueza do coração? Em qualquer parte, o escândalo é a ruí­na da felicidade... Não devia render graças a Deus por sentir-se na condição da esposa digna? Sim, decerto a pobre criatura que lhe perturbava o marido não havia acordado ainda para a responsa­bilidade e para o discernimento. Necessitava, pois, de compaixão e de amparo, ao invés de crítica e azedume...»

Consolada e satisfeita, passou à medicação da genitora.

Hilário, admirado, exaltou os méritos da ora­ção, ao que Áulus enunciou:

— Em todos os processos de nosso intercâm­bio com os encarnados, desde a mediunidade tor­turada à mediunidade gloriosa, a prece é abençoada luz, assimilando correntes superiores de força men­tal que nos auxiliam no resgate ou na ascensão.

Indicando a dona da casa, agora em serviço no aposento, meu colega observou:

— Vemos, então, em nossa amiga preciosa me­diunidade a desenvolver-se...

— Como acontece a milhões de pessoas — disse o orientador —, ela detém consigo recursos medianímicos apreciáveis, que podem ser inclinados para o bem ou para o mal, competindo-lhe a obri­gação de construir dentro de si mesma a fortaleza de conhecimento e vigilância, na qual possa des­frutar, em pensamento, as companhias espirituais que mais lhe convenham à felicidade.

— E pela prece busca solução para os enig­mas que lhe flagelam a existência...

Aulus sorriu e ajuntou:

— Encontramos aqui precioso ensinamento acerca da oração... Anésia, mobilizando-a, não conseguiu modificar os fatos em si, mas logrou modificar a si mesma. As dificuldades presentes não se alteraram. Jovino continua em perigo, a casa prossegue ameaçada em seus alicerces morais, a velhinha doente aproxima-se da morte, entre­tanto, nossa irmã recolheu expressivo coeficiente de energias para aceitar as provações que lhe ca­bem, vencendo-as com paciência e valor. E um espírito transformado, naturalmente transforma as situações.

O Assistente, contudo, interrompeu-se e lem­brou-nos o horário de volta.

Por solicitação de Teonília, examinou a doente e concluiu que a desencarnação de Dona Elisa es­tava próxima.

Externei o desejo de analisar-lhe o campo or­gânico; todavia, o instrutor recordou-nos a hora avançada e prometeu voltar conosco, em tarefa de assistência à velhinha na noite próxima.


21

Mediunidade no leito de morte

Na noite seguinte, voltamos ao lar de Anésia, com o objetivo particular de socorrer-me a mãezinha doente.

Dona Elisa piorara.

Encontramo-la agitada, a desligar-se do corpo físico.

O médico da família examinava-lhe o quadro orgânico, evidenciando preocupação e desalento.

O estetoscópio dava-me a conhecer a posição difícil do coração exausto. Além disso, o elevado teor de uréia favorecia a intoxicação alarmante. Previa o fim próximo da resistência física, entre­tanto, o delírio da enferma desnorteava-o. Dona Elisa via-se presa de estranha perturbação mental.

Superexcitada, aflita, declarava-se perseguida por um homem que se propunha abatê-la a tiros, clamava pelo filho desde muito na vida espiritual e dizia ver serpentes e aranhas ao pé do leito.

A despeito do suor pastoso de quem se apro­xima da morte e da extrema palidez que lhe desfigurava a máscara fisionômica, fazia supremo esforço para continuar falando em voz alta.

O facultativo convidou a dona da casa a en­tendimento reservado e comunicou-lhe as péssimas impressões de que se via possuido.

A enferma deveria prosseguir com medicação de emergência, à face da crise, contudo, a noite ser-lhe-ia sacrificial. A uremia avançava célere, o coração era um barco desgovernado e, por isso, o colapso poderia surpreendê-la de momento para outro.

Anésia acolheu a palavra do clínico, enxugan­do as lágrimas que teimavam em lhe saltar dos olhos.

Despediu-se dele e colocou-se em oração, con­fiando-se à influência de Teonília, que lhe seguia os passos, qual se lhe fora abnegado nume pro­tetor. Sem conseguir explicar a si mesma a serenidade balsâmica que lhe tomou gradativamente a alma, aquietou-se entre a fé e a paciência, na cer­teza de que não lhe faltaria o amparo do Plano Superior. Longe de perceber a ternura de que era objeto, por parte da devotada amiga, recebia-lhe os apelos confortadores em forma de sublimes pen­samentos de esperança e de paz.

Demorou-se na contemplação da anciã que pe­dia socorro em voz arrastadiça e fitou-lhe os olhos desmesuradamente abertos, sem expressão...

Profunda piedade assenhoreou-lhe o carinho filial.

Mãezinha — disse, afetuosa —, sente-se agora melhor?

A interpelada tomou-lhe as mãos, como se fora uma criança medrosa, e sussurrou:

— Minha filha, não estou melhor, porque o assassino me espreita... Não sei como escapar... estou igualmente cercada de aranhas enormes... que fazer para salvar-me?...

E, em seguida, elevando o tom de voz, gritou com lamentosa inflexão:

— Ai! as serpentes !... as serpentes!... Amea­çam-me da porta... Que será de mim?

Escondia o rosto nas mãos descarnadas e de­balde tentava erguer o corpo, movimentando a cabeça trêmula.

— Mãezinha, acalme-se! — rogava a filha co­movida. — Confiemos na Providência. Jesus é o nosso Amigo Vigilante. Por que não esperar pela proteção dele? A senhora vai recuperar-se... Re­pare com atenção. Nosso quarto está em paz...

Asserenava-se a enferma de algum modo, com a desconfiança e o medo a se lhe estamparem nos olhos e, logo após, constrangendo Anésia a incli­nar-se, segredava-lhe aos ouvidos:

— Sinto que o nosso Olímpio está conosco... Meu filho desceu do Céu e veio buscar-me... Não tenho dúvida... é meu filho, sim... meu filho...

A carinhosa enfermeira acreditou no que ou­via, compreendendo, porém, que a presença do irmão não seria de desejar e convidou a genitora ao serviço da prece. Não seria melhor que se unis­sem ambas em prece, pedindo o socorro celestial?

E enquanto Anésia se fazia intérprete da as­sistência de Teonília, a esforçar-se por envolver a velhinha em fluidos calmantes, Aulus convidou-nos a reparar a comunhão entre o filho desencarnado e a pobre mãe a desencarnar.

Olímpio, o rapaz assassinado noutro tempo, jungia-se a ela, à maneira de planta parasitária asfixiando um arbusto raquítico.

— Nossa amiga — explicou o Assistente —, em sua doce afetividade, supõe no filho um gênio guardião, quando a realidade é que o infeliz se deixou dominar, mesmo depois de perder o veículo carnal, pelo vício da embriaguez. Alcoólatra im­penitente, caiu ante o revólver de um companheiro, tão desvairado quanto ele mesmo, numa noite de insânia. Desligado da carne e já intensamente minado pelo “delirium tremens”, não teve forças para mentalizar a recuperação que lhe é imprescindível e prosseguiu em companhia daqueles que lhe pu­dessem facultar o prolongamento dos excessos em que se compraz... Evocado, contudo, pela insis­tência materna, veio parar neste quarto, onde se encontra enleado pelas requisições da irmã Elisa. Acontece, no entanto, que, em se libertando gradualmente do vaso físico, nossa irmã transfere o campo emotivo, do círculo da carne para a esfera do Espírito, passando compulsoriamente a sofrer ó influxo pernicioso da entidade que ela própria trouxe para junto de si, usando a vontade e o pen­samento. Na posição em que se colocam, são am­bos, assim, por força das circunstâncias, duas men­tes sintonizadas na mesma faixa de impressões, porque, enfraquecida qual se encontra, a enferma se submete facilmente ao domínio do rapaz, cujo pavor e cujo desequilíbrio se lhe transfundem na alma submissa e afetuosa.

Analisando o fenômeno, perguntei se a asso­ciação sob nossa vista poderia ser comparada à incorporação mediúnica, qual a conhecemos.

- Sem qualquer dúvida — confirmou o orien­tador. — Elisa, atraindo o filho, num estado de passividade profunda, que lhe sobrevém por motivo de natural desgaste nervoso e sem experiência que lhe outorgue discernimento e defesa, assimila-lhe, de modo espontâneo, as correntes mentais, retra­tando-lhe a desarmonia interior. Estando a de­sencarnar-se, devagarinho, reflete-lhe as reminiscências do pretérito e as terríveis visões Intimas que lhe são agora familiares, de vez que, à dis­tância das libações costumeiras, o infortunado ami­go padece as alucinações comuns às vítimas do alcoolismo crônico.

— Céus! — exclamou Hilário, compadecido como relegar uma velhinha doente a provação dessa ordem? não significará isso clamorosa in­justiça?

— Concordo em que é lamentável o quadro sob nosso exame — obtemperou o Assistente —, entretanto, ninguém trai as leis que nos regem a vida. Elisa, com a presença do filho, recebeu aquilo que procurou ardentemente. Certo, apresen­ta-se na configuração passageira de uma anciã penetrando a antecâmara da morte, todavia, na rea­lidade, é um Espírito imperecível e responsável, manejando os valores mentais que se expressam e se conjugam, segundo princípios claros e definidos.

Finda ligeira pausa, acentuou:

— Muita vez, pedimos o que não conhecemos, recolhendo o que não desejamos. No fim, porém, há sempre lucro, porque o Senhor nos permite retirar, de cada situação e de cada problema, os preciosos valores da experiência.

Aulus, contudo, não perdeu tempo em divagações.

Conferenciou reservadamente com Teonília quanto ao serviço programado, em favor da enferma e, aceitando-nos a colaboração, desligou o rapaz, usando para isso avançados potenciais mag­néticos.

Tão logo se afastou o desventurado Olímpio, identificamos curioso fenômeno. Dona Elisa, que falava singularmente animada. entrou em absoluta prostração, qual se houvera sido manietada.

Assinalando-nos a curiosidade, o orientador es­clareceu:

— A atuação do filho desencarnado alimen­tava-lhe a excitação mental a incidir sobre o cam­po nervoso. Agora, está confinada às energias que lhe são próprias.

A doente, emitindo sons guturais, calara-se, de súbito.

Debalde tentou Anésia arrancar-lhe uma pa­lavra.

Dona Elisa, embora vendo e ouvindo, não mais logrou articular uma frase. Buscou inutilmente mover os braços, ante a dor aguda que passou a registrar no peito, todavia, não teve forças para tanto.

Aulus deu-se pressa em administrar-lhe passes calmantes, contudo, não obteve grande resultado.

— É a contração final das coronárias — ex­clamou, comovido. — Elisa não resistirá, O mio­cárdio não mais reage ao nosso influxo magnético. O processo anginoso alcançou o fim.

Reparei que a agonizante estimaria conversar com a filha, no entanto, incoercível sofrimento constringia-lhe o tórax.

A língua não mais lhe obedecia ao comando intimo.

Teve a noção de que lhe cabia fazer a viagem do túmulo... Como se um relâmpago lhe rasgasse a noite mental, num desses raros minutos que va­lem séculos para a alma, reviu apressadamente o passado. Todas as cenas da infância, da moci­dade e da madureza reapareceram de inesperado no templo da memória, como que a convidá-la a escrupuloso exame de consciência.

A enferma não vacilou.

Seus momentos na carne estavam contados.

Incapaz de entender-se com a filha, desejou despedir-se de velha irmã que residia a longa distância.

Vimo-la, num supremo esforço, concentrando os próprios pensamentos para satisfazer a essa derradeira aspiração...

Anésia, por sua vez, sob a influência de Teo­nília, percebeu que a genitora atingira a estação terminal da existência terrestre e, enlaçando-a, ca­rinhosamente, orava em pranto silencioso.

A agonizante entendeu-a, mas apenas derra­mou comoventes lágrimas como resposta.

Demorando na filha o olhar dorido e ansioso, Dona Elisa projetou-se, por fim, em nosso meio, mantendo-se, porém, ainda ligada ao veículo físico por um laço de prateada substância.

Enquanto se lhe inteiriçavam os membros, um só pensamento lhe predominava no espírito — dizer adeus à última irmã consangüínea que lhe restava na Terra.

Envolvida na onda de forças, nascida de sua própria obstinação, afastou-se, ligeira, volitando automaticamente no rumo da cidade em que se lhe situava a parenta.

Correspondendo à ordem de Aulus, passamos a segui-la de perto.

Dezenas de quilômetros foram instantaneamen­te vencidos.

Em plena noite alta, colocamo-nos ao lado dela, num aposento mal iluminado, em que venerável anciã dormia tranqüila.

— Matilde! Matilde!...

A recém-chegada tentou despertá-la, à pressa, mas em vão. Consciente de que não dispunha se­não de rápidos instantes, vibrou algumas pancadas no leito da irmã, que acordou de chofre, entrando, de imediato, em sua esfera de influência.

Dona Elisa passou a falar-lhe, atormentada. Dona Matilde, contudo, não lhe escutava as palavras pelos condutos auditivos do vaso carnal e sim pelo cérebro, através de ondas mentais, em forma de pensamentos a lhe remoinharem ao redor da cabeça.

Reerguendo-se, inquieta, falou de si para con­sigo: — «Elisa morreu».

Indicando-nos as duas irmãs juntas, o Assis­tente explicou:

— Temos aqui uni dos tipos habituais de co­municação nas ocorrências de morte. Pela persistência com que se repetem, os cientistas do mundo são constrangidos a examiná-los. Alguns atribuem esses fatos a transmissões de ondas telepáticas, ao passo que outros neles encontraram os chama­dos «fenômenos de monição. Isso tudo, porém, reduz-se na Doutrina do Espiritismo à verdade simples e pura da comunhão direta entre as almas imortais.

— Todas as pessoas, desde que o desejem —perguntou meu colega —, podem efetuar semelhan­tes despedidas, quando partem da Terra?

— Sim, Hilário, você diz bem quando afirma «desde que o desejem», porque semelhantes comu­nicações, no instante da morte, somente se reali­zam por aqueles que concentram a própria força mental num propósito dessa espécie.

Todavia, não dispúnhamos de tempo para maio­res conversações.

Dona Elisa, após liberar-se do anseio que lhe inquietava o campo Intimo, qual se o corpo distante lhe reclamasse a presença, à feição do que ocorre num caso de desdobramento vulgar, voltou, de imediato, a casa.

Seguindo-a de perto, notamo-la menos aflita, embora fatigada.

No aposento familiar, quis reaver o veículo físico, satisfazendo aos velhos hábitos, como se a realidade lhe constituísse tão-somente estranho pesadelo, contudo, abatida e atormentada, flutuou sobre o leito, ligada aos despojos pelo tênue fio a que nos referimos.

A recém-desencarnada, de alma opressa, re­sistia à fome de repouso que lhe castigava o pensamento, indecisa e agoniada, sem saber definir se estava viva dentro da morte ou se estava morta dentro da vida.

Outros amigos espirituais penetraram a câmara.

Aulus consultou o horário e acrescentou:

— Voltemos. Nada mais nos cabe fazer.

Hilário fixou o laço prateado entre o corpo hirto e a nossa amiga recém-liberta e indagou:

— Não poderemos colaborar no desfazimento desse cordão incômodo?

— Não — explicou o orientador —, esse elo tem a sua função específica no reequilíbrio da

alma. Morte e nascimento são operações da vida eterna que demandam trabalho e paciência. Além disso, há companheiros especializados no serviço da libertação última. A eles compete o toque final.

E, acompanhando o instrutor, retiramo-nos do lar de Anésia, onde havíamos recolhido preciosas lições.

22

Emersão do passado

Em companhia do Assistente, tornamos à segunda reunião semanal do grupo presidido pelo irmão Raul Silva, a cuja organização nosso orien­tador não regateava simpatia e confiança.

O conjunto de trabalhadores não se alterara na constituição que lhe era característica.

A pequena fila dos obsessos, todavia, apresen­tava modificações.

Duas senhoras, seguidas pelos respectivos es­posos, e um cavalheiro de fisionomia fatigada inte­gravam a equipe dos que receberiam assistência.

Os médiuns da casa desempenharam caridosa tarefa, emprestando as suas possibilidades para a melhoria de várias entidades transviadas na som­bra e no sofrimento, com a colaboração eficiente de Dona Celina à frente do serviço.

Solucionados diversos problemas alusivos ao programa da noite, eis que uma das senhoras enfermas cai em pranto convulsivo, exclamando:

— Quem me socorre? quem me socorre?... E comprimindo o peito com as mãos, acrescentava em tom comovedor:

— Covarde! por que apunhalar, assim, uma in­defesa mulher? serei totalmente culpada? meu san­gue condenará seu nome infeliz...

Raul, com a serenidade habitual, abeirou-se dela e consolou-a, com carinho:

— Minha irmã, o perdão é o remédio que nos recompõe a alma doente... Não admita que o de­sespero lhe subjugue as energias !... Guardar ofen­sas é conservar a sombra. Esqueçamos o mal para que a luz do bem nos felicite o caminho...

— Olvidar? nunca... O senhor sabe o que vem a ser uma lâmina enterrada em sua carne? sabe o que seja a calamidade de um homem que nos suga a existência para arremessar-nos à mi­séria, comprazendo-se, depois disso, em derramar-nos o próprio sangue?

— Sim, sim, ninguém lhe contraria o direito à justiça, segundo as suas afirmações, entretanto, não será mais aconselhável aguardar o pronuncia­mento da Bondade Divina? Quem de nós estará sem mácula?

— Esperar, esperar? há quanto tempo não faço outra coisa! Em vão procuro reaver a alegria... Por mais me dedique ao trabalho de rom­per com o pretérito, vivo a carregar a sombra de minhas recordações, como quem traz no próprio peito o sepulcro dos sonhos mortos... Tudo por causa dele... Tudo pelo malvado que me arruinou o destino...

E a pobre criatura prorrompeu em soluços, enquanto um homem desencarnado, não longe, fitava-a com inexprimível desalento.

Perplexos, Hilário e eu lançamos um olhar in­dagador ao Assistente, que nos percebeu a estranheza, porqüanto a enferma, sem a presença da mulher invisível que parecia personificar, prosse­guia em aflitiva posição de sofrimento.

— Não vejo a entidade de quem a nossa irmã se faz intérprete — alegou Hilário, curioso.

— Sim — disse por minha vez —; observo em nossa vizinhança um triste companheiro desencar­nado, mas se ele estivesse telepaticamente ligado à nossa amiga, decerto a mensagem definiria a palavra de um homem, sem as características fe­mininas da lamentação que registramos... Em ver­dade, não notamos aqui qualquer laço magnético que nos induza a assinalar fluidos teledinâmicos sobre a mente da médium...

Aulus afagou a fronte da doente em lágrimas, como se lhe auscultasse o pensamento, e explicou:

— Estamos diante do passado de nossa com­panheira. A mágoa e o azedume, tanto quanto a personalidade supostamente exótica de que dá tes­temunho, tudo procede dela mesma... Ante a aproximação de antigo desafeto, que ainda a per­segue de nosso plano, revive a experiência dolorosa que lhe ocorreu, em cidade do Velho Mundo, no século passado, e entra em seguida a padecer insopitável melancolia.

Recomeçou a luta na carne, na presente reen­carnação, possuída de novas esperanças, contudo, tão logo experimenta a visitação espiritual do an­tigo verdugo, que a ela se enleia, através de vigo­rosos laços de amor e ódio, perturba-se-lhe a vida mental, necessitada de mais ampla reeducação. É um caso no qual se faz possível a colheita de valiosos ensinamentos.

— Isso quer dizer, então...

A frase de Hilário ficou, porém, no ar, porque o instrutor lhe, definiu o pensamento, acrescentando:

— Isso quer dizer que nossa irmã imobilizou grande coeficiente de forças do seu mundo emo­tivo, em torno da experiência a que nos referimos, a ponto de semelhante cristalização mental haver superado o choque biológico do renascimento no corpo físico, prosseguindo quase que intacta. Fixando-se­ nessa lembrança, quando instada de mais perto pelo companheiro que lhe foi irrefletido al­goz, passa a comportar-se qual se estivesse ainda no passado que teima em ressuscitar. E’ então que se dá a conhecer como personalidade diferente, a referir-se à vida anterior.

Sorrindo, paternal, considerou:

— Sem dúvida, em tais momentos, é alguém que volta do pretérito a comunicar-se com o presente, porque ao influxo das recordações penosas de que se vê assaltada, centraliza todos os seus recursos mnemônicos tão-somente no ponto nevrál­gico em que viciou o pensamento. Para o psiquia­tra comum é apenas uma candidata à insullnote­rapia ou ao electrochoque, entretanto, para nós, é uma enferma espiritual, uma consciência torturada, exigindo amparo moral e cultural para a renova­ção Intima, única base sólida que lhe assegurará o reajustamento definitivo.

Analisei-a, com atenção, e concluí:

— Mediunicamente falando, vemos aqui um processo de autêntico animismo. Nossa amiga supõe encarnar uma personalidade diferente, quando apenas exterioriza o mundo de si mesma...

— Poderíamos, então, classificar o fato no quadro da mistificação inconsciente? — interferiu Hilário, indagador.

Aulus meditou um minuto e ponderou:

— Muitos companheiros matriculados no ser­viço de implantação da Nova Era, sob a égide do Espiritismo, vêm convertendo a teoria animista num travão injustificável a lhes congelarem preciosas oportunidades de realização do bem; portanto, não nos cabe adotar como justas as palavras «mistifi­cação inconsciente ou subconsciente, para batizar o fenômeno. Na realidade, a manifestação decorre dos próprios sentimentos de nossa amiga, arroja­dos ao pretérito, de onde recolhe as impressões deprimentes de que se vê possuída, externando-as no meio em que se encontra. E a pobrezinha efetua isso quase na posição de perfeita sonâmbula, porqüanto se concentra totalmente nas recordações que já assinalamos, como se reunisse todas as ener­gias da memória numa simples ferida, com inteira despreocupação das responsabilidades que a reen­carnação atual lhe confere. Achamo-nos, por esse motivo, perante uma doente mental, requisitando-nos o maior carinho para que se recupere. Para sanar-lhe a inquietação, todavia, não nos bastam diagnósticos complicados ou meras definições téc­nicas no campo verbalista, se não houver o calor da assistência amiga.

Nosso orientador fez ligeira pausa, acariciando a enferma, e, enquanto Raul Silva continuava a doutriná-la e a consolá-la, notificou-nos, bondoso:

— Deve ser tratada com a mesma atenção que ministramos aos sofredores que se comunicam. É também um Espírito imortal, solicitando-nos con­curso e entendimento para que se lhe restabeleça a harmonia. A idéia de mistificação talvez nos im­pelisse a desrespeitosa atitude, diante do seu pade­cimento moral. Por isso, nessas circunstâncias, é preciso armar o coração de amor, a fim de que possamos auxiliar e compreender. Um doutrinador sem tato fraterno apenas lhe agravaria o problema, porque, a pretexto de servir à verdade, talvez lhe impusesse corretivo inoportuno ao invés de socor­ro providencial. Primeiro, é preciso remover o mal, para depois fortificar a vítima na sua própria de­fesa. Felizmente, o nosso Raul assimila as cor­rentes espirituais que prevalecem aqui, tornando-se o enfermeiro ideal para as situações dessa ordem.

Hilário, tanto quanto eu, edificado com os en­sinamentos ouvidos, perguntou respeitoso:

— E podemos considerá-la médium, mesmo assim?

— Como não? Um vaso defeituoso pode ser consertado e restituido ao serviço. Naturalmente, agora a paciência e a caridade necessitam agir para salvá-la. Nossa irmã deve ser ouvida na posição­ em que se revela, como sendo em tudo a des­venturada mulher de outro tempo, e recebida por nós nessa base, para que use o remédio moral que lhe estendemos, desligando-se enfim do pas­sado... O assunto não comporta desmentido, por­que indiscutívelmente essa mulher existe ainda nela mesma. A personalidade antiga não foi tão eclip­sada pela matéria densa como seria de desejar. Ela renasceu pela carne, sem renovar-se em espírito...

O Assistente fixou o gesto de quem mergu­lhava na própria consciência a sonda de suas reflexões e falou, qual se o fizesse de si para consigo:

— Ela representa milhares de criaturas aos nossos olhos... Quantos mendigos arrastam na Terra o esburacado manto da fidalguia efêmera que envergaram outrora! quantos escravos da necessidade e da dor trazem consigo a vaidade e o orgulho dos poderosos senhores que já foram em outras épocas!... quantas almas conduzidas à li­gação consangüínea caminham do berço ao túmulo, transportando quistos invisíveis de aversão e ódio aos próprios parentes, que lhes foram duros adver­sários em existências pregressas!... Todos pode­mos cair em semelhantes estados se não aprende­mos a cultivar o esquecimento do mal, em marcha incessante com o bem...

Nessa altura, Raul Silva, na condição de hábil psicólogo, convidou a doente ao benefício da prece.

Competia-lhe a ela suplicar ao Céu a graça do olvido. Cabia-lhe expungir o passado da imaginação, de maneira a pacificar-se. E, singular-mente comovido, recomendou-lhe repetir em compa­nhia dele as frases sublimes da oração dominical.

A pobre senhora acompanhou-o docilmente.

Ao término da súplica, mostrava-se mais tran­qüila.

O prestimoso amigo, traduzindo a colaboração do mentor que o acompanhava, solícito, rogou-lhe considerar, acima de tudo, o impositivo do perdão aos inimigos para a reconquista da paz e, em lá­grimas, a enferma desligou-se das impressões que a imobilizavam no pretérito, tornando à posição normal.

Enquanto Silva lhe aplicava passes de recon­forto, o Assistente comentou:

— Outra não pode ser, por enquanto, a in­tervenção assistencial em seu benefício. Pela enfermagem espiritual bem conduzida, reajustar-se-ápouco a pouco, retomando o império sobre si mes­ma e capacitando-se para o desempenho de valio­sas tarefas mediúnicas mais tarde.

Estimaríamos a possibilidade de continuar ana­lisando o caso sob nossa vista, contudo, a outra senhora doente passou de improviso ao transe agi­tado e era preciso estudar, fazendo o melhor.


23

Fascinação

Levantara-se a dama, de esquisita maneira, e, rodopiando sobre os calcanhares, qual se um motor lhe acionasse os nervos, caiu em convulsões, inspi­rando piedade.

Jazia sob o império de impassíveis entidades da sombra, sofrendo, contudo, mais fortemente, a atuação de uma delas que, ao enlaçá-la, parecia interessada em aniquilar-lhe a existência.

A infortunada senhora, quase que uivando, à semelhança de loba ferida, gritava a debater-se no piso da sala, sob o olhar consternado de Raul que exorava a Bondade Divina em silêncio.

Coleando pelo chão, adquiria animalesco aspec­to, não obstante sob a guarda generosa de senti­nelas da casa.

Aulus e o irmão Clementino, usando avança­dos recursos magnéticos, interferiram no deplorável duelo, constrangendo o obsessor a desvencilhar-se, de certo modo, da enferma que continuou, ainda assim, dominada por ele, a estreita distância.

Após reerguer a doente, auxiliando-a a sentar-se, rente ao marido, nosso instrutor deu-se pressa em explicar-nos:

— É um problema complexo de fascinação. Nossa irmã permanece controlada por terrível hip­notizador desencarnado, assistido por vários com­panheiros que se deixaram vencer pelas teias da vingança. No ímpeto de ódio com que se lança sobre a infeliz, propõe-se humilhá-la, utilizando-se da sugestão. Não fosse o concurso fraternal que veio recolher neste santuário de prece, em transes como este seria vítima integral da licantropia de­formante. Muitos Espíritos, pervertidos no crime, abusam dos poderes da inteligência, fazendo pesar tigrina crueldade sobre quantos ainda sintonizam com eles pelos débitos do passado. A semelhantes vampiros devemos muitos quadros dolorosos da pa­tologia mental nos manicômios, em que numero­sos pacientes, sob intensiva ação hipnótica, imitam costumes, posições e atitudes de animais diversos.

Ao passo que a doente gemia de estranho modo, amparada pelo esposo e por Raul, que se esmerava no auxílio, Hilário, espantado, indagou:

— Tão doloroso fenômeno é comum?

— Muito generalizado nos processos expiató­rios em que os Espíritos acumpliciados na delin­qUência descambam para a esfera vibratória dos brutos — esclareceu nosso orientador, coadjuvando em benefício da enferma, cujo cérebro prosseguia governado pelo insensível perseguidor como brin­quedo em mãos de criança.

— E por que não separar de vez o algoz da vítima?

— Calma, Hilário! — ponderou o Assistente. Ainda não examinamos o assunto em sua es­trutura básica. Toda obsessão tem alicerces na re­ciprocidade. Recordemos o ensinamento de nosso Divino Mestre. Não basta arrancar o joio. É pre­ciso saber até que ponto a raiz dele se entranha no solo com a raiz do trigo, para que não venhamos a esmagar um e outro. Não há dor sem razão. Atendamos, assim, à lei da cooperação, sem o pro­pósito de nos anteciparmos à Justiça Divina.

Raul, sob o controle do mentor da casa, tenta­va sossegar o agitado comunicante, recordando-lhe as vantagens do perdão e incutindo-lhe a conve­niência da humildade e da prece.

Aflito, como não querendo perder o fio da lição, meu colega abeirou-se de nosso orientador e alegou:

— Todavia, para colaborar em favor desses irmãos em desespero, será suficiente o concurso verbalista?

— Não lhes estendemos simplesmente pala­vras, mas acima de tudo o nosso sentimento. Toda frase articulada com amor é uma projeção de nós mesmos. Portanto, se é incontestável a nossa impossibilidade de oferecer-lhes a libertação prema­tura, estamos doando, em favor deles, a nossa boa-vontade, através do verbo nascido de nossos co­rações, igualmente necessitados de plena redenção com o Cristo.

E, num tom demasiado significativo, Aulus acrescentou:

— Analisando o pretérito, ao qual todos nos ligamos, através de lembranças amargas, somos enfermos em assistência recíproca. Não seria lícito guardarmos a pretensão de lavrar sentençaS defi­nitivas pró ou contra ninguém, porque, na pOSiÇãO em que ainda nos achamos, todos possuímos con­tas maiores ou menores por hquidar.

Interrompendo a conversação, nosso instrutor lançou-se ao amparo eficiente da dupla em deses­perada contenda.

Para o cuidado fraterno de que dava teste­munho, a doente e o perseguidor mereciam igual carinho.

Aplicou passes de desobstrução à garganta da enferma e, em breves instantes, o verdugo começou a falar, através dela, numa algaravia, cujo sentido literal não conseguíamos perceber.

Entretanto, pela onda de pensamento que lhe caracterizava a manifestação, sabíamos que a ira se lhe extravasava do ser.

Raul Silva, a seu turno, recolhendo impressões idênticas, pela dura inflexão da voz com que as palavras eram pronunciadas, procurava asserená-lo quase em vão.

Observando a enferma completamente trans­figurada e assinalando-nos a muda interrogação,

Aulus se deteve por alguns minutos a auscultar o cérebro do comunicante e o da médium, como

a sondar-lhes o mundo intimo, e, em seguida, vol­tou para junto de nós.

Diante da profunda apreensão que passou a dominar-lhe o rosto, Hilário tomou-me a dianteira, inquirindo, assombrado:

— A que causa atribuir semelhante conflito?

— Tentei alguma penetração no passado a fim de algo saber — respondeu o orientador, entriste­cido. — As raízes da desavença vêm de longa dis­tância no tempo. Não obstante o dever de não relacionar pormenores, para não conferir maior sa­liência ao mal, posso dizer-lhe que o enigma per­dura vai já em pouco mais de um milênio. Nosso infeliz irmão fala um antigo dialeto da velha Tos­cana, onde, satisfazendo a obsidiada de hoje, se fez cruel estrangulador. Era legionário de Ugo, o poderoso duque da Proveriça, no século X... Pela exteriorização a que se confia, acompanho-lhe as terríveis reminiscências... Reporta-se ao saque de que participou na época a que nos referimos, no qual, para satisfazer à mulher que lhe não corres­pondeu ao devotamento, teve a infelicidade de ani­quilar os próprios pais... Tem o coração como um vaso transbordante de fel..

Porque o Assistente se interrompera, meu co­lega, naturalmente tão interessado quanto eu em maiores revelações, pediu-lhe mais ampla incursão no passado, ao que Áulus nos recomendou aquie­tássemos o espírito de consulta.

A volta aos quadros terrificantes, largados ao longe por aquelas almas em sofrimento, a ninguém edificaria.

Eram dois corações desesperados, no inferno estabelecido por eles mesmos. Não convinha ana­lisar-lhes o sepulcro de fogo e lama, nas sombras da retaguarda.

Restaurando a atenção no estudo que nos ca­bia fazer, lembrei a questão do idioma.

Achávamo-nos no Brasil e a obsidiada ensaia­va frases num dialeto já morto.

Por que motivo não assimilava o pensamento da entidade, a empolgar-lhe o cérebro em ondas insofreáveis, transformando-o em palavras do por­tuguês corrente, qual acontecera em numerosos processos de intercâmbio sob nossa observação?

— Estamos à frente de um caso de mediu­nidade poliglota ou de xenoglossia — explicou o Assistente. — O filtro mediúnico e a entidade que se utiliza dele acham-se tão intensamente afinados entre si que a passividade do instrumento é abso­luta, sob o império da vontade que o comanda de modo positivo. O obsessor, por mais estranho pa­reça, jaz ainda enredado nos hábitos por que pau­tava a sua existência, há séculos, e, em se expri­mindo pela médium, usa modos e frases que lhe foram típicos.

— Isso, entretanto — objetou Hilário —, e atribuível à mediunidade propriamente dita ou à sintonia mais completa?

— O problema é de sintonia — informou o Assistente.

— Contudo, se a doente não lhe houvesse partilhado da experiência terrestre, como legítima associada de seu destino, poderia o comunicante externar-se no dialeto com que se caracteriza?

— Positivamente não — esclareceu Aulus. —Em todos os casos de xenoglossia, é preciso lem­brar que as forças do passado são trazidas ao pre­sente, Os desencarnados, elaborando fenômenos dessa ordem, interferem, quase sempre, através de impulsos automáticos, nas energias subconscien­ciais, mas exclusivamente por intermédio de per­sonalidades que lhes são afins no tempo. Quando um médium analfabeto se põe a escrever sob o controle de um amigo domiciliado em nosso plano, isso não quer dizer que o mensageiro espiritual haja removido milagrosamente as pedras da igno­rância. Mostra simplesmente que o psicógrafo traz consigo, de outras encarnações, a arte da escrita já conquistada e retida no arquivo da memória, cujos centros o companheiro desencarnado conse­gue manobrar.

Hilário fez o gesto indagador do aprendiz e insistiu:

— Podemos concluir, então, que se a enferma fosse apenas médium, sem o pretérito de que dá testemunho, a entidade não se exprimiria por ela numa expressão cultural diferente da que lhe é própria...

— Sim, sem dúvida alguma — aprovou o ins­trutor —; em mediunidade há também o problema da sintonia no tempo...

E, de olhar vago, acentuou:

— O fato sob nossas vistas pode ser, de certo modo, comparado às correntes dágua. Cada qual tem o seu nível. As águas à flor da terra guardam a serventia e o encanto que lhes são peculiares, contudo, somente as águas profundas encerram o tesouro educado ou inculto das enormes forças latentes, que podem ser convenientemente utiliza­das quando aquelas são trazidas à superfície.

A lição era de subido valor, no entanto, fazia-se necessário agir no trabalho assistencial.

Conjugando nosso esforço, separamos, de alguma sorte, o algoz da vitima, conquanto, segun­do apontamento de nosso orientador, continuassem unidos pela fusão magnética, mesmo a distância.

Companheiros de nossa esfera retiraram o Es­pírito obsidente, encaminhando-o a certa organização socorrista.

Ainda assim, a doente gritava, afirmando es­tar à frente de medonho estrangulador em vias de sufocá-la.

Aplicando-lhe passes de reconforto, Áulus es­clareceu:

— Agora é apenas o fenômeno alucinatório, natural em processos de fascinação como este. Per­seguidor e perseguida jazem na mais estreita li­gação telepática, agindo e reagindo mentalmente um sobre o outro.

Gradativamente, a enferma acalmou-se.

Finda a crise, perguntei ao nosso orientador sobre o remédio definitivo à dolorosa situação, ao que respondeu com grave entono:

— A doente está sendo preparada, tendo-se em vista uma solução justa para o caso. Ela e o verdugo, em breve, serão mãe e filho. Não há ou­tra alternativa na obtenção do trabalho redentor. Energias divinas do amor puro serão mais profun­damente tocadas em sua sensibilidade de mulher e nossa irmã praticará o santo heroismo de aco­lhê-lo no próprio seio...

Em seguida, deixando-nos pensativos, caminhou no rumo de outro necessitado, enquanto exclamava:

— Louvado seja Deus pela glória do lar!


24

Luta expiatória

Junto de nós, o cavalheiro que se mantinha entre os enfermos caiu em estremeções coreiformes.

Não fosse a poltrona em que se apoiava e ter-se-ia arrojado ao chão.

Desferia gemidos angustiados e roucos, como se um guante invisível lhe constringisse a garganta.

Não longe, duas entidades de presença desa­gradável reparavam-lhe os movimentos, sem con­tudo interferir magneticamente, de maneira visível, na agitação nervosa de que ele se fazia portador.

O doente aparentava madureza física, mas Au­lus, esclarecendo-nos com mais segurança, infor­mou, comovido:

— É um pobre irmão em luta expiatória e na realidade mal atravessou a casa dos trinta anos, na presente romagem terrestre. Desde a infância, sofre o contacto indireto de companhias inferiores que aliciou no passado, pelo seu comportamento infeliz. E quando experimenta a vizinhança desses amigos transviados, ainda em nosso plano, com os quais conviveu largamente, antes do regresso à carne, reflete-lhes a influência nociva, entregando-se a perturbações histéricas, que lhe sufocam a alegria de viver. Tem sido aflitivo problema para o templo doméstico em que renasceu. Desde a me­ninice, vive de médico a médico. Ultimamente, a malarioterapia, a insulina e o electrochoque hão sido empregados em seu benefício, sem resultado prático. Os tratamentos dolorosos e difíceis, de certo modo, lhe castigaram profundamente a vida física. Parece um velho, quando poderia mostrar-se em pleno vigor juvenil.

Enquanto o enfermo tremia, pálido, nosso orientador e o irmão Clementino aplicavam-lhe re­cursos magnéticos de auxílio, asserenando-lhe o corpo conturbado.

Findo o acidente paroxístico, notamo-lo sua­rento e desmemoriado, qual se fora surdo às preces que Raul Silva pronunciava, implorando o socorro divino em seu favor.

Decorridos alguns minutos, a calma no am­biente refazia-se completa.

Abeirava-se a reunião da fase de encerramen­to, contudo, o rapaz que nos tomara, por último, a atenção, prosseguia apático, melancólico.

Registrávamos a esperança e o encorajamento, em variados tons, em todos os presentes, menos nele, que denotava tortura e introversão.

Aulus, com a tolerância habitual, dispusera-se a ouvir-nos.

— Como interpretar o caso de nosso amigo? indagou Hilário, curiosô. — Não lhe vimos o

desdobramento e, ao que nos foi concedido veri­ficar, não assimilou emissões fluídicas de qualquer habitante de nossa esfera... Enquadrar-se-lhe-áo transe em algum processo mediúnico que desconhecemos?

— O enigma de nosso irmão — elucidou o Assistente — é de natureza mental, considerando-se-lhe a origem pura e simples, mas está radicado à sensibilização psíquica, tanto quanto as ocorrên­cias de ordem mediúnica.

— Ainda assim — aleguei —, poderemos con­siderá-lo médium?

— De imediato, não. Presentemente, é um en­fermo que reclama cuidado assistencial, no entanto, sanada a desarmonia de que ainda é portador, poderá cultivar preciosas faculdades medianímicas, porque a moléstia, nesses casos, é fator impor­tante de experiência. A dor em nossa vida íntima é assim como o arado na terra inculta. Rasgando e ferindo, oferece os melhores recursos à produção.

— E a doença em si? — tornou meu compa­nheiro admirado — será do corpo ou da alma?

- É desequilíbrio da alma a retratar-se no corpo — falou o instrutor, comovido.

E, acariciando a fronte do moço triste, con­tinuou:

— Nosso amigo em reajuste, antes da presen­te imersão na carne, vagueou, por muitos anos, em desolada região de trevas. Aí foi vítima de hipno­tizadores cruéis com os quais esteve na mais es­treita sintonia, em razão da delinqüência viciosa a que se dedicara no mundo. Sofreu intensamente e voltou à Terra, trazendo certas deficiências no organismo perispiritual. É um histérico, segundo a justa acepção da palavra. Acolhido pelo heroís­mo de um coração materno e por um pai que lhe foi associado de insânia, hoje também na travessia de amargosas provas, vem procurando a própria recuperação. Aos sete anos da nova experiência terrena, quando se lhe firmou a reencarnação, sen­tiu-se tomado pela desarmonia trazida do mundo espiritual e, desde então, vem lutando no laborioso processo regenerativo a que se impôs. Algemado à perturbação em que se enleou, supõe haver nas­cido com o fracasso congenial. Não se acredita capaz de qualquer serviço nobre. Crê-se derrotado, antes de qualquer luta. Apraz-lhe tão-somente a solidão em que se nutre dos pensamentos enfer­miços que lhe são arremessados ao espírito pelos antigos companheiros de viciação. Enfim, vive em deploráveis condições patológicas do sistema ner­voso, numa crise de longo curso, a caracterizar-se por estranhas perturbações da intellgência e con­traturas repentinas, que o inutilizam temporaria­mente para o trabalho digno.

As preces terminais convidaram-nos ao si­lêncio.

Finda a reunião, ofereceu-se Aulus para acom­panhar o rapaz doente, até a casa, medida essa que Clementino aprovou, satisfeito.

O moço parecia anestesiado, inerte...

Depois de meia hora, durante a qual buscamos assisti-lo nas eventualidades da via pública, atin­gimos singela casinha suburbana.

Ao chamado insistente do rapaz, simpática ve­lhinha veio atender.

— Américo, meu filho, graças a Deus vejo-o de volta...

A ternura materna vibrava, iniludível, naquela voz clara e reconfortante.

E a genitora conduziu-o, sem delonga, para a intimidade doméstica, onde um rapaz embriagado desferia palavrões.

Fitando-o, disse preocupada:

— Márcio, infelizmente, excedeu-se de novo... E, porque reparasse a apatia do recém-chegado, ajuntou:

— Mas, primeiro, tratemos de acomodar você.

O moço não relutou.

Deixou-se arrastar pelo carinho materno e en­volveu-se nas cobertas do leito, em acanhado te­lheiro aos fundos.

Américo dormiu sem detença, surgindo junto de nós em desdobramento natural. Não nos pres­sentiu, porém, nem de longe. Registrava tão-so­mente a perturbação mental de que se via possuído. Amedrontado, espantadiço, avançou para es­treita câmara, a pequena distância, e rojou-se ao lado de um velho paralítico, choramingando:

— Pai, estou sozinho! sozinho!... quem me socorre? Tenho medo! medo!...

O doente, vigilante e calmo, assinalou-lhe a presença, de algum modo, porque mostrou no sem­blante dolorida expressão, como se lhe estivesse ouvindo as queixas.

Aulus recomendou-me auscultar a fronte pen­sadora do enfermo, atado ao catre limpo, e, bus­cando sintonizar-me com ele, escutei-lhe a mente, conversando de si para consigo:

— Ó Senhor, sinto-me cercado por Espíritos inquietos... Quem estará junto de mim? Dá-me forças para compreender-te a vontade e acatar-te os desígnios... Não me abandones! Tristes são a velhice, a doença e a pobreza quando nos avizi­nhamos da morte!...

E, sob a influência do rapaz, cujos pensamen­tos assimilava sem perceber, vimo-lo também do­brar a cabeça e chorar copiosamente.

Fixando-os, de maneira significativa, nosso orientador esclareceu:

— Achamo-nos à frente de pai e filho. Júlio, o genitor de Américo, foi acometido, faz muitos anos, de paralisia das pernas, vivendo assim amar­rado à cama, onde ainda se esforça pela subsistência dos seus, em trabalhos leves. Entregue àprovação e à soledade, começou a ler e a refletir com segurança. Apreendeu a verdade da reencar­nação, encontrou consolo e esperança nos ensina­mentos do Espiritismo e, com isso, tem sabido marchar com resignação e fortaleza nos dias ás­peros que vem atravessando...

Sentindo-nos a sede de maiores informes, o instrutor prosseguiu, depois de ligeira pausa:

— Sustentado pelo devotamento heróico da es­posa, trouxe ao mundo cinco filhos, dos quais uma jovem que lhe foi abençoada irmã noutra vida ter­restre, e os demais, inclusive Américo, são quatro rapazes de trato muito difícil. Márcio, que já co­nhecemos, é cliente da embriaguez, Guilherme e Benício estão consumindo a mocidade em extrava­gâncias noturnas, Laura que é abnegada companheira dos pais, e o nosso Américo, o primogênito, que ainda está longe de recuperar o equilíbrio completo...

— E observando o dono da casa em semelhan­te posição — interferiu Hilário —, somos levados a pensar nas dificuldades que se desenrolam aqui...

— Indubitavelmente, a expiação do grupo do­méstico sob nossa vista é rude e dolorosa... Em passado próximo, o paralítico de hoje era o diri­gente de pequeno bando de malfeitores. Extremamente ambicioso, asilou-se num sítio, onde se trans­formou em perseguidor de viajantes desprevenidos, dedicando-se ao furto e à vadiagem... Conseguiu convencer quatro amigos a acompanhá-lo nas aven­turas delituosas a que se entregou pela cobiça tiranizante, comprometendo-lhes a vida moral, e esses quatro companheiros são hoje os filhos que lhe recebem nova orientação, crivando-o de preo­cupações e desgostos. Desviou-os do caminho reto, agora busca recuperá-los para a estrada justa, achando-se, ele mesmo, em penosas inibições...

A torturada conformação do velhinho sensi­bilizava-nos as fibras mais Intimas.

Tivemos, contudo, nossa atenção atraida para novo fenômeno.

Uma jovem, de fisionomia nobre e calma, pe­netrou o quarto em Espírito, passou rente a nós sem notar-nos e, reanimando Américo, retirou-o para fora.

Percebendo-nos a silenciosa indagação, o As­sistente informou:

— É Laura, a filha generosa, que ainda mes­mo durante o sono físico não se descuida de am­parar o genitor doente.

— Então está domiciliada aqui mesmo? — per­guntou meu colega, admirado.

— Sim, dormindo em aposento próximo.

E, depois de ministrar recursos vitalizantes ao enfermo em lágrimas, o Assistente acrescentou:

— Quando o corpo terrestre descansa, nem sempre as almas repousam. Na maioria das ocasiões, seguem o impulso que lhes é próprio. Quem se dedica ao bem, de um modo geral continua tra­balhando na sementeira e na seara do amor, e quem se emaranha no mal costuma prolongar no sono físico os pesadelos em que se enreda...

— Pelo que analisamos — disse Hilário —, os fatos mediúnicos no lar são constantes...

— Justo! — confirmou o orientador. — Os pensamentos daqueles que partilham o mesmo teto agem e reagem uns sobre os outros, de modo par­ticular, através de incessantes correntes de assimi­lação. A influência dos encarnados entre si é ha­bitualmente muito maior que se imagina. Muita vez, na existência carnal, os obsessores que nos espezinham estão conosco, respirando, reencarnados, o mesmo ambiente. Do mesmo modo há pro­tetores que nos ajudam e elevam e que igualmente participam de nossas experiências de cada dia. É imprescindível compreender que, em toda a parte, acima de tudo, vivemos em espírito. O intercâmbio de alma para alma, entre pais e filhos, cônjuges e irmãos, afeiçoados e companheiros, simpatias e desafeições, no templo familiar ou nas instituições de serviço em que nos agrupamos, é, em razão disso, a bem dizer, obrigatório e constante. Sem perce­ber, consumimos idéias e forças uns dos outros.

Dispúnhamo-nos à retirada, quando Hilário, como quem se valia do ensejo, curiosamente indagou:

— Voltando, contudo, ao caso de Américo e reconhecendo-o como portador da histeria, haverá vantagem na freqüência dele ao grupo em que outros médiuns se aperfeiçoam?

— Como não? — obtemperou o Assistente. —O progresso é obra de cooperação. Consagrando-se à disciplina e ao estudo, à meditação e à prece, ele se renovará mentalmente, apressando a própria cura, depois da qual poderá cooperar em trabalhos mediúnicos dos mais proveitosos. Todo esforço dig­no, por mínimo que seja, recebe invariavelmente da vida a melhor resposta.

Aulus, a seguir, lembrou afazeres a distância e considerou por finda a valiosa lição.


25

Em torno da fixação mental

No caminho de volta procuramos, Hilário e eu, movimentar a conversação, no sentido de recolher da palavra de nosso orientador alguma lição a respeito da fixação mental.

Muita vez, anotara o fenômeno, buscando es­tudá-lo, entretanto, para colaborar com o amigo, mais novo que eu nos serviços da Espiritualidade, aderi ao assunto, animando-o com o melhor interesse.

Meu colega, sem disfarçar o espanto que lhe assomara à alma, desde a manifestação do estran­gulador da Toscana, falou preocupado:

— Sinceramente, por mais me esforce, grande é a minha dificuldade para penetrar os enigmas da cristalização do Espírito em torno de certas si­tuações e sentimentos. Como pode a mente deter­-se em determinadas impressões, demorando-se ne­las, como se o tempo para ela não caminhasse? Tomemos, por exemplo, o drama de nosso infortu­nado companheiro, há séculos imobilizado nas idéias de vingança... Estará nessa posição lamentável, por tantos anos, sem ter reencarnado?

Aulus ouviu com atenção e ponderou:

— É imprescindível compreender que, depois da morte no corpo físico, prosseguimos desenvol­vendo os pensamentos que cultivávamos na expe­riência carnal. E não podemos esquecer que a Lei traça princípios universais que não podemos trair. Subordinados à evolução, como avançar sem lhe acatarmos a ordem de harmonia e progresso? A idéia fixa pode operar a indefinida estagnação da vida mental no tempo.

Simbolizemos o estágio da alma, na Terra, através da reencarnação, como sendo valiosa linha de frente, na batalha pelo aperfeiçoamento indivi­dual e coletivo, batalha em que o coração deve armar-se de idéias santificantes para conquistar a sublimação de si mesmo, a mais alta vitória. A mente é o soldado em luta. Ganhando denodada­mente o combate em que se empenhou, tão logo seja conduzida às aferições da morte sobe verti­calmente para a vanguarda, na direção da Esfera Superior, expressando-se-lhe o triunfo por eleva­ção de nível. Entretanto, se fracassa, e semelhan­te perda é quase sempre a resultante da incúria ou da rebeldia, volta horizontalmente, nos acertos da morte, para a retaguarda, onde se confunde com os desajustados de toda espécie, para inde­terminado período de tratamento. Em qualquer frente de luta terrestre, a retaguarda é a faixa atormentada dos neuróticos, dos loucos, dos mu­tilados, dos feridos e dos enfermos de toda casta.

Ante o interesse com que lhe ouvíamos a ex­posição, Áulus prosseguiu, depois de ligeira pausa:

— Decerto, as legiões vitoriosas não se esque­cem dos que permaneceram no desequilíbrio e daí vemos as missões de amor e renúncia, funcionando diligentes onde estacionam a desarmonia e a dor.

— E o problema da imobilização da alma? — tornou meu colega, ávido de saber.

O interpelado sorriu e considerou:

— Em nossa imagem, podemos defini-la com a propriedade possível. É que o tempo, para nós, é sempre aquilo que dele fizermos. Para melhor compreensão do assunto, lembremo-nos de que as horas são invariáveis no relógio, mas não são sem­pre as mesmas em nossa mente. Quando felizes, não tomamos conhecimento dos minutos. Satisfa­zendo aos nossos ideais ou interesses mais íntimos, os dias voam céleres, ao passo que, em companhia do sofrimento e da apreensão, temos a idéia de que o tempo está inexoravelmente parado. E quando não nos esforçamos por superar a câmara lenta da angústia, a idéia aflitiva ou obcecante nos cor­rói a vida mental, levando-nos à fixação. Chegados a essa fase, o tempo como que se cristaliza dentro de nós, porque passamos a gravitar, em Espírito, em torno do ponto nevrálgico de nosso desajus­te. Qualquer grande perturbação interior, chame-se paixão ou desânimo, crueldade ou vingança, ciúme ou desespero, pode imobilizar-nos por tempo inde­finível em suas malhas de sombra, quando nos re­belamos contra o imperativo de marcha incessante com o Sumo Bem. Analisemos ainda o nosso sím­bolo do combate. O relógio inflexível assinala o mesmo horário para todos, entretanto, o tempo é leve para os que triunfaram e pesado para os que perderam. Com os vencedores, os dias são felici­dade e louvor e com os vencidos são amargura e lágrimas. Quando nós não desvencilhamos dos pensamentos de flagelação e derrota, através do tra­balho constante pela nossa renovação e progresso, transformamo-nos em fantasmas de aflição e de­salento, mutilados em nossas melhores esperanças ou encafurnados em nossas chagas íntimas. E quan­do a morte nos surpreende nessas condições, acentuando-se-nos­ então a experiência subjetiva, se a alma não se dispõe ao esforço heróico da suprema renúncia, com facilidade emaranha-se nos proble­mas da fixação, atravessando anos e anos, e por vezes séculos na repetição de reminiscências desa­gradáveis, das quais se nutre e vive. Não se interessando por outro assunto a não ser o da pró­pria dor, da própria ociosidade ou do próprio ódio, a criatura desencarnada, ensimesmando-se, é seme­lhante ao animal no sono letárgico da hibernação. Isola-se do mundo externo, vibrando tão-somente ao redor do desequilíbrio oculto em que se com­praz. Nada mais ouve, nada mais vê e nada mais sente, além da esfera desvairada de si mesma.

Revestia-se o assunto de imenso interesse para minhas observações pessoais.

Em multas ocasiões, sondara de perto as cons­ciências que dormitam, após a morte, quais mú­mias espirituais. E lembrei-as ao Assistente, que nos disse, atencioso:

— Sim, a mente estacionária na deserção da Lei, durante o repouso habitual em que se imobiliza, além do túmulo, sofre angustiosos pesadelos, despertando quase sempre em plena alienação, que pode persistir por muito tempo, cultivando apaixo­nadamente as impressões em que julga encontrar a própria felicidade.

— E qual o remédio mais adequado à situa­ção? — inquiri, respeitoso.

— Muitas dessas almas desorientadas — co­mentou o instrutor — por fim se entediam do mal e procuram a regeneração por si mesmas, ao passo que outras, em nossas tarefas de assistência, acordam para as novas responsabilidades que lhes competem no próprio reajuste. São os soldados feridos buscando corresponder às missões de amor que lhes visitam o pouso de restauração. Enten­dem o impositivo da luta dignificante a que foram chamados e, ajudando aos que os ajudam, regres­sam ao bom combate, em cujas linhas se acomodam com o serviço que lhes é possível desempenhar. Outras, porém, recalcitrantes e inconformadas, são docemente constrangidas ao retorno à batalha para que se desvencilhem da prostração a que se reco­lheram. A experiência no corpo de carne, em po­sição difícil, é semelhante a um choque de longa duração, em que a alma é convidada a restabele­cer-se. Para isso, tomamos o concurso de afeições do interessado que o asilam no templo familiar.

— Mas, nesses casos, a reencarnação será com­pulsória, assim• como um ato de violência? — per­guntou Hilário com atenção.

— Que fazemos na Terra — disse o Assistente — quando surge um louco em nossa casa? não passamos a assumir a responsabilidade do trata­mento? Aguardaremos qualquer resolução do alienado mental, no que tange às medidas indispen­sáveis à restauração do seu equilíbrio? É certo que nos cabe o dever de honrar a consciência livre, capaz de decidir por si mesma nos variados pro­blemas da luta evolutiva, entretanto, à frente do irmão irresponsável e enfermo, a nossa colaboração significa amizade fiel, ainda que essa colaboração expresse doloroso processo de reequilíbrio em seu favor.

Após ligeira pausa, continuou:

— A reencarnação, em tais circunstâncias, áo mesmo que conduzir o doente inerte a certa máquina de fricção para o necessário despertamento. Intimamente justaposta ao campo celular, a alma é a feliz prisioneira do equipamento físico, no qual influencia o mundo atômico e é por ele influenciada, sofrendo os atritos que lhe objetivam a recupe­ração.

Os significativos apontamentos convidavam-nos a meditar e aprender.

Impressionado, considerei:

— Em virtude de semelhantes fixações, é que vemos entidades padecendo deplorável amnésia. Quando se comunicam com os irmãos encarnados, não conservam exata lembrança senão dos assun­tos em que se lhes encravam as preocupações e, quando permutam impressões conosco, assemelham-se a psicósicos renitentes.

— Isso mesmo. Por esse motivo, requerem ha­bitualmente grande carinho em nosso trato pessoal.

— E quando encaminhadas à reencarnação, no desajuste em que se vêem, essas criaturas tornam à realidade, de súbito? — perguntei com interesse.

— Nem sempre.

E imprimindo novo entono à voz, o Assistente continuou:

— Na maioria das vezes, o soerguimento évagaroso. Podemos comprovar isso no estudo das crianças retardadas, que exprimem dolorosos enig­mas para o mundo... Somente o extremado amor dos pais e dos familiares consegue infundir calor e vitalidade a esses entezinhos que, não raro, se demo­ram por muitos anos na matéria densa, como apên­dices torturados da sociedade terrestre, curtindo sofrimentos que parecem injustificáveis e estranhos e que constituem para eles a medicação viável. É possível auscultar ainda a verdade de nossa assertiva, nos chamados esquizofrênicos e nos pa­ranóicos que perderam o senso das proporções, si­tuando-se em falso conceito de si mesmos. Quase todas as perturbações congeniais da mente, na cria­tura reencarnada, dizem respeito a fixações que lhe antecederam a volta ao mundo. E, em muitos casos, os Espíritos enleados nesses óbices seguem do berço ao túmulo em recuperação gradativa, ex­perimentando choques benéficos, através das tera­pêuticas humanas e das exigências domésticas, das imposições dos costumes e dos conflitos sociais, deles retirando as vantagens do que podemos considerar por «extroversão indispensável à cura das psicoses de que são portadores.

A conversação era instrutiva e sugeria-nos importantes estudos, entretanto, serviços outros aguardavam o Assistente, motivo por que a inter­rompemos.


26

Psicometria

O rápido curso de aprendizagem que vínhamos realizando atingia a sua fase final.

Aulus não dispunha de tempo para favorecer-nos com experiências mais amplas. Era um trabalhador comprometido em serviços diversos.

Embora isso compreendêssemos, Hilário e eu nos sentíamos algo melancólicos.

O Assistente, contudo, desenvolvia todas as possibilidades ao seu alcance para conservar-nos o entusiasmo habitual.

Atravessávamos ruas e praças, quando nos defrontamos com um museu, a que se acolhiam alguns visitantes retardatários.

E o nosso orientador, como quem se dispunha a aproveitar as horas que nos restavam para dilatar observações e apontamentos, convidou-nos a entrar, exclamando:

— Numa instituição como esta, é possível rea­lizar interessantíssimos estudos. Decerto, já ouvi­ram referências à psicometria. Em boa expressão sinonímica, como o é usada na Psicologia experi­mental, significa «registro, apreciação da atividade intelectual», entretanto, nos trabalhos mediúnicos, esta palavra designa a faculdade de ler impressões e recordações ao contacto de objetos comuns.

Passamos por longo portal e, no interior do edifício, reparamos que muitas entidades desencar­nadas iam e vinham, de mistura com as pessoas que anotavam utilidades de outro tempo, com cres­cente admiração.

— Muitos companheiros de mente fixa no pre­térito freqüentam casas como esta pelo simples pra­zer de rememorar... — comentou o Assistente.

Verifiquei que algumas preciosidades, excetuan­do-se uma que outra, estavam revestidas de flui­dos opacos, que formavam uma massa acinzentada ou pardacenta, na qual transpareciam pontos lu­minosos.

Notando-me a curiosidade, o instrutor aclarou, benevolente:

— Todos os objetos que você vê emoldurados por substâncias fluídicas acham-se fortemente lem­brados ou visitados por aqueles que os possuíram.

Não longe, havia curioso relógio, aureolado de luminosa faixa branquicenta.

Aulus recomendou-me tocá-lo e, quase instan­taneamente, me assomou aos olhos mentais linda reunião familiar, em que venerando casal se entretinha a palestrar com quatro jovens em pleno viço primaveril.

Com aquele quadro vivo a destacar-se ante a minha visão interior, examinei o recinto agradável e digno. O mobiliário austríaco imprimia sobrie­dade e nobreza ao conjunto, que jarrões de flores e telas valiosas enfeitavam.

O relógio lá se encontrava, dominando o am­biente, do cimo de velha parede caprichosamente adornada.

Registrando-me a surpresa, o Assistente adian­tou:

— Percebo a imagem sem o toque direto. O relógio pertenceu a respeitável família do século passado. Conserva as formas-pensamentos do casal que o adquiriu e que, de quando em quando, visita o museu para a alegria de recordar. É um objeto animado pelas reminiscências de seus antigos pos­suidores, reminiscências que se reavivam no tem­po, através dos laços espirituais que ainda susten­tam em torno do círculo afetivo que deixaram.

Hilário tateou a preciosidade e falou:

— Isso quer dizer que vemos imagens aqui impressas por eles, por intermédio de vibrações...

— Justamente — confirmou o orientador. —O relógio está envolvido pelas correntes mentais dos irmãos que ainda se apegam a ele, assim como o fio de cobre na condução da energia está sensi­bilizado pela corrente elétrica. Auscultando-o, na fase em que se encontra, relacionamo-nos, de ime­diato, com as recordações dos amigos que o es­timam.

Hilário refletiu alguns momentos e observou:

— Então, se estivéssemos interessados em co­nhecer esses companheiros e encontrá-los, um ob­jeto nessas condições seria um mediador para a realização de nossos desejos...

— Sim, perfeitamente — aprovou o instru­tor —; usaríamos, para isso, alguma coisa em que a memória deles se concentra. Tudo o que se nos irradia do pensamento serve para facilitar essa ligação.

— Muito importante o estudo da força mental — considerei, sob forte impressão. Aulus sorriu e comentou:

— O pensamento espalha nossas próprias ema­nações em toda parte a que se projeta. Deixamos vestígios espirituais, onde arremessamos os raios de nossa mente, assim como o animal deixa no pró­prio rastro o odor que lhe é característico, tornan­do-se, por esse motivo, facilmente abordável pela sensibilidade olfativa do cão. Quando libertados do corpo denso, aguçam-se-nos os sentidos e, em ra­zão disso, podemos atender, sem dificuldade, a esses fenômenos, dentro da esfera em que se nos limi­tam as possibilidades evolutivas.

— Somos, desse modo, induzidos a crer — con­siderou meu companheiro — que não dispomos de recursos para alcançar o pensamento daqueles que se fizeram superiores a nós...

— Sim, aqueles que atingiram uma elevação que não somos capazes de imaginar, remontaram a outros planos, transcendendo-nos o modo de ex­pressão e de ser. O pensamento deles vibra em outra freqüência. Naturalmente, podem acompa­nhar-nos e auxiliar-nos, porque é da Lei que o superior venha ao inferior quando queira, contudo, por nossa vez, não nos é facultado segui-los.

O Assistente refletiu um instante e prosseguiu:

— Simbolizemos, para discernir. O que ocorre, entre eles e nós, acontece entre nós e os seres que se nos localizam à retaguarda. Podemos, por exem­plo, cuidar dos interesses das tribos primitivas ou retardadas, sem que elas consigam fazer o mesmo em nosso favor. Penetramos os costumes e conhe­cimentos da taba, sem que a taba entenda patavina de nosso edifício cultural. O pensamento nos con­diciona ao circulo em que devemos ou merecemos viver e, só ao preço de esforço próprio ou de se­gura evolução, logramos aperfeiçoá-lo, superando li­mitações para fazê-lo librar em esferas superiores.

O Assistente fitou-nos com bondade e acres­centou:

— No entanto, evitemos digressões em desa­cordo com os nossos objetivos essenciais.

— Imaginemos — disse por minha vez — que nos propuséssemos fixar a atenção num exame mais circunstanciado. Poderíamos, assim, conhecer a história da matéria que serve à formação do re­lógio que analisamos?

— Sem dúvida. Isso demandaria mais traba­lho, mais tempo, contudo, é iniciativa perfeitamente viável.

— Cada objeto, então — concluiu Hilário —, pode ser um mediador para entrarmos em relação com as pessoas que se interessam por ele e um registro de fatos da Natureza...

— Sem mais nem menos — confirmou Áulus, seguro de si —; não podemos esquecer que o pa­leontologista pode reconstituir determinadas peças da fauna pré-histórica por um simples osso encon­trado a esmo. Quando se nos apura a sensibilidade de maneira mais intensiva, em simples objetos re­legados ao abandono podemos surpreender expres­sivos traços das pessoas que os retiveram ou dos sucessos de que foram testemunhas, através das vibrações que eles guardam consigo.

E, num sorriso, ajuntou:

— As almas e as coisas, cada qual na posição em que se situam, algo conservam do tempo e do espaço, que são eternos na memória da vida.

Logo após, detivemo-nos a estudar primorosa tela do século 18, que não apresentava qual­quer sinal de moldura fluídica.

Efetivamente, era uma preciosidade isolada. Por ela, não nos foi possível estabelecer qual­quer contacto espiritual de natureza exterior.

Aulus assumiu a atitude do professor benevo­lente que lhe era peculiar e explicou:

— Pesquisado mais intimamente, este quadro será interessante registro, oferecendo-nos informa­ções acerca dos ingredientes que o constituem, entretanto, não funciona como «mediador de rela­ções espirituais, por achar-se plenamente esque­cido pelo autor e por aqueles que provavelmente o possuíram...

Avançamos mais além.

Ao lado de extensa galeria, dois cavalheiros e três damas admiravam singular espelho, junto do qual se mantinha uma jovem desencarnada com expressão de grande tristeza.

Uma das senhoras teve palavras elogiosas para a beleza da moldura, e a moça, na feição de senti­nela irritada, aproximou-se tateando-lhe os ombros.

A matrona tremeu, involuntariamente, sob ines­perado calafrio, e falou para os companheiros:

— Aqui há um estranho sopro de câmara fu­nerária. É melhor que saiamos...

Confiou-se o grupo a manifestações de bom-humor e retirou-se, acompanhando-a noutro rumo. A entidade, que não nos assinalava a intro­missão, pareceu-nos contente com a solidão e pas­sou a contemplar o espelho, sob estranha fasci­nação.

Aulus acariciou-a, de leve, tocou o objeto com atenção e comentou:

— Anotaram o fenômeno? Do pequeno con­junto de visitantes, a irmã que registrou a aproximação da jovem, sob nosso exame, é portadora de notável sensibilidade mediúnica. Se educasse as suas forças e sondasse o espelho, entraria em re­lação imediata com a moça que ainda se apega a ele desvairadamente. Receber-lhe-ia as confidên­cias, conhecer-lhe-ia o drama intimo, porque ime­diatamente lhe assimilaria a onda mental, senho­reando-lhe as imagens...

Hilário, incapaz de sofrear a curiosidade que nos esfogueava o cérebro, indagou sobre a moça. Que fazia ali, naquele túmulo de recordações? por que se interessava, com tanta ânsia, por um sim­ples espelho, sem maior significação?

O Assistente, como quem já esperava por nos­so inquérito, respondeu sem pestanejar:

— Toquei o objeto para informar-me. Este espelho originalissimo foi confiado à jovem por um rapaz que lhe prometeu casamento. Vejo-lhe a fi­gura romântica nas reminiscências dela. Era filho de franceses asilados no Brasil, ao tempo da Fran­ça Revolucionária de 1791. Menino ainda, aportou no Rio e aí cresceu e se fez homem. Encontrou-a e conquistou-lhe o coração. Quando arquitetavam projetos de casamento, depois da mais Intima li­gação afetiva, a família estrangeira, animada com os sucessos de Napoleão, na Europa, deliberou o retorno à pátria. O moço pareceu desolado, mas não desacatou a ordem paterna. Despediu-se da noiva e lhe implorou guardasse a peça como lem­brança, até que pudesse voltar, e serem então fe­lizes para sempre... Contudo, distraído na França pelos encantos de outra mulher, não mais regres­sou... Depressa esqueceu responsabilidades e com­promissos, tornando-se diferente. A pobrezinha, no entanto, fixou-se na promessa ouvida e continua a esperá-lo. O espelho é o penhor de sua felici­dade. Imagino a longa viagem que terá feito no tempo, vigiando-o como sendo propriedade sua, até que a lembrança viesse por fim repousar no museu.

— O assunto — aventei, preocupado — com-pele-nos a refletir sobre as antigas histórias de jóias enfeitiçadas...

— Sim, sim — ponderou o Assistente —, a influência não procede das jóias, mas sim das forças que as acompanham.

Hilário, que meditava a lição maduramente, considerou:

— Se alguém pudesse adquirir a peça e con­duzi-la consigo...

— Decerto — atalhou o instrutor — arcaria também com a presença da moça desencarnada.

— E isso seria justo?

Aulus esboçou leve sorriso e obtemperou:

— Hilário, a vida nunca se engana. É pro­vável que alguém apareça por aqui e se extasie à frente do objeto, disputando-lhe a posse.

— Quem?

— O moço que empenhou a palavra, provo­cando a fixação mental dessa pobre criatura, ou a mulher que o afastou dos compromissos assumidos. Reencarnados, hoje ou amanhã, possívelmente um dia virão até aqui, tomando-a por filha ou compa­nheira, no resgate do débito contraído.

— Mas não podemos aceitar a hipótese de a jovem desencarnada ser atraIda por algum círculo de cura, desembaraçando-se da perturbação de que é vitima?

— Sim — concordou o orientador —, Isso é também possível; entretanto, examinada a harmo­nia da Lei, o reencontro do trio é inevitável. Todos os problemas criados por nós não serão resolvidos senão por nós mesmos.

A conversação era preciosa, contudo, a res­ponsabilidade impelia-nos para diante.

De saída, renteamos com o gabinete em que funcionava a direção da casa.

Vendo duas cadeiras vagas, junto a pequena mesa de trabalho, meu colega consultou, com o evidente intuito de completar a lição:

— Creio que os móveis sob nossa vista são utilizados por auxiliares da administração do museu... Se nos sentarmos neles, poderemos entrar em relação com as pessoas que habitualmente os ocupam?

— Sim, se desejarmos esse tipo de experiência — informou o orientador.

— E em nos referindo aos encarnados? —prosseguiu Hilário. — Qualquer pessoa, em se ser­vindo de objetos pertencentes a outros, tais como vestuários, leitos ou adornos, pode sentir os refle­xos daqueles que os usaram?

— Perfeitamente. Contudo, para que os re­gistrem devem ser portadores de aguçada sensibilidade psíquica. As marcas de nossa individualidade vibram onde vivemos e, por elas, provocamos o bem ou o mal naqueles que entram em contacto conosco.

— E tudo o que observamos é mediunidade?...

— Sim, apesar de os fatos dessa ordem serem arrolados, por experimentadores do mundo cientí­fico, sob denominações diversas, entre elas a “crip­testesia pragmática”, a «metagnomia tátil», a “de­lestesia”.

E, tomando-nos a dianteira para o retorno à via pública, rematou:

— Em tudo, vemos integração, afinidade, sin­tonia... E de uma coisa não tenhamos dúvida:

através do pensamento, comungamos uns com os outros, em plena vida universal.


27

Mediunidade transviada

Descera a noite totalmente, quando penetra­mos estreita sala, em que um círculo de pessoas se mantinha em oração.

Várias entidades se imiscuíam ali, em meio dos companheiros encarnados, mas em lamentáveis con­dições, de vez que pareciam inferiores aos homens e mulheres que se faziam componentes da reunião.

Apenas o irmão Cássio, um guardião simpático e amigo, de quem o Assistente nos aproximou, de­monstrava superioridade moral.

Notava-se-lhe, de imediato, a solidão espiritual, porqüanto desencarnados e encarnados da assem­bléia não lhe percebiam a presença e, decerto, não lhe acolhiam os pensamentos.

Ante as interpelações do nosso orientador, in­formou, algo desencantado:

— Por enquanto, nenhum progresso, não obs­tante os reiterados apelos à renovação. Temos sitiado o nosso Quintino com os melhores recursos ao nosso alcance, mobilizando livros, impressos e conversações de procedência respeitável, no entan­to, tudo em vão... O teimoso amigo ainda não se precatou quanto às duras responsabilidades que assume, sustentando um agrupamento desta natureza...

Aulus buscou reconfortá-lo com um gesto si­lencioso de compreensão e convidou-nos a observar.

Revestia-se o recinto de fluidos desagradáveis e densos.

Dois médiuns davam passividade a companhei­ros do nosso plano, os quais, segundo minhas pri­meiras impressões, jaziam convertidos em criados autênticos do grupo, assalariados talvez para ser­viços menos edificantes. Entidades diversas, nas mesmas condições, enxameavam em torno deles, subservientes ou metediças.

O fenômeno da psicofonia era ali geral.

Os sensitivos desdobrados se mantinham no ambiente, alimentando-se das emanações que lhes eram peculiares.

Raimundo, um dos comunicantes, sob as vistas complacentes do diretor da casa, conversava com uma senhora, cuja palavra leviana inspirava pie­dade

Raimundo — dizia —; tenho necessidade do dinheiro que há meses vem sendo acumulado no Instituto, do qual sou credora prejudicada. Que me diz você de semelhante demora?

— Espere, minha irmã — recomendava a en­tidade —, trabalharemos em seu benefício.

E a palestra continuava.

— A solução é urgente. Você deve ajudar-me com ação mais expedita. Tente uma volta pelo ga­binete do diretor ranzinza e desencrave o processo... Você quer o endereço das pessoas que precisamos influenciar?

— Não, não. Conheço-as e sei onde moram...

— Vejo, Raimundo, que você anda distraído. Não se interessou por meu caso, com a presteza justa.

— Não é bem assim... Tenho feito o que posso.

E enquanto a matrona baixava o tom de voz, cochichando, um cavalheiro maduro dirigia-se a Teotônio, o outro comunicante da noite, clamando, indiscreto:

— Teotônio, até quando me cabe aguardar?

A entidade, que parecia embatucar-se com a pergunta, silenciou, humilde, mas o interlocutor alongou-se, exigente:

— Vai para quatro meses que espero pela de­cisão favorável referente ao emprego que me foi prometido. Entretanto, até hoje!... Você não con­seguiria liquidar o problema?

— Que deseja que eu faça?

— Sei que o gerente da firma é do contra. Ajude-me, inclinando-o a simpatizar-se pela boa so­lução de meu caso.

Nisso, outra senhora ocupou a atenção de Rai­mundo, solicitando:

— Meu amigo, conto com o seu valioso con­curso. Sou mãe. Não me conformo em ver minha filha aceitar a proposta de um homem desbriado, para casar-se. Nossa posição em casa é das mais alarmantes. Meu marido não suporta o homem que nos persegue, e a menina revoltada tem sido para nós um tormento. Você não poderá afastar esse abutre?

Raimundo respondeu, subserviente, enquanto Quintino tomava a palavra, logo em seguida, pedindo uma prece, em conjunto, a fim de que os de­sencarnados se fortalecessem para corresponder à confiança do grupo, prestando-lhe os serviços soli­citados.

Entendimentos e conversas continuaram entre comunicantes e clientes da casa, todavia, não mais lhes dei atenção, considerando-lhes o obscuro as­pecto.

Em aflitivas circunstâncias, vira obsidiados e entidades endurecidas no mal, através de tremen­dos conflitos; contudo, em nenhum lugar sentia tanta compaixão como ali, vendo pessoas sadias e lúcidas a interpretarem o intercâmbio com o mun­do espiritual como um sistema de criminosa explo­ração, com alicerces no menor esforSo.

Aqueles homens e mulheres que se congrega­vam no recinto, com intenções tão estranhas, teriam coragem de pedir a companheiros encarnados os serviços que reclamavam dos Espíritos? Não esta­riam ultrajando a oração e a mediunidade para fugir aos problemas que lhes diziam respeito? Não dispunham, acaso, de veneráveis conhecimentos para mobilizar o cérebro, a língua, os olhos, os ouvidos, as mãos e os pés, no aprendizado enobrecedor? Que faziam da fé? seria justo que um trabalha­dor relegasse a outros a enxada que lhe cabia su­portar e mover na gleba do mundo?

Aulus registrou-me as reflexões amargas, por­que, generoso, deu-se pressa em reconfortar-me:

— Um estudo atual de mediunidade, mesmo rápido quanto o nosso, não seria completo se não perquiríssemos a região do psiquismo transviado, onde Espiritos preguiçosos, encarnados e desencar­nados, respiram em regime de vampirização recí­proca. Aliás, constituem produto natural da igno­rância viciosa em todos os templos da Humanidade. Abusam da oração tanto quanto menoscabam as possibilidades e oportunidades de trabalho digno, porqüanto espreitam facilidades e vantagens efê­meras para se acomodarem com a indolência, em que se lhes cristalizam os caprichos infantis.

— Mas, prosseguirão assim, indefinidamente? perguntei.

— André, sua dúvida está fora de propósito. Você possui bastante experiência para saber que a dor é o grande ministro da Justiça Divina. Vive­mos a nossa grande batalha de evolução. Quem foge ao trabalho sacrificial da frente, encontra a dor pela retaguarda. O Espírito pode confiar-se à inação, mobilizando delituosamente a vontade, con­tudo, lá vem um dia a tormenta, compelindo-o a agitar-se e a mover-se para entender os impositi­vos do progresso com mais segurança. Não adianta fugir da eternidade, porque o tempo, benfeitor do trabalho, é também o verdugo da inércia.

Hilário, que refletia, silencioso, junto de nós, inquiriu preocupado:

— Por que se entregam nossos irmãos encar­nados a semelhantes práticas de menor esforço? Há tantas lições de aprimoramento espiritual, há tantos apelos à dignificação da mediunidade, nas linhas doutrinárias do Espiritismo!... Por que o desequilíbrio?

Aulus pensou alguns instantes e redargüiu:

— Hilário, é imprescindível recordar que não nos achamos diante da Doutrina do Espiritismo. Presenciamos fenômenos mediúnicos, manobrados por mentes ociosas, afeiçoadas à exploração inferior por onde passam, dignas, por isso mesmo, de nossa piedade. E não ignoramos que fenômenos me­diúnicos são peculiares a todos os santuários e a todas as criaturas. Quanto à preferência de nossos amigos pela convivência com os desencarnados ain­da imensamente presos ao campo sensorial da vida física, incapazes ainda de mais ampla visão das rea­lidades do Espírito, isso é compreensível na Terra. É sempre mais fácil ao homem comum trabalhar com subalternos ou iguais, porque, servir ao lado de superiores exige boa-vontade, disciplina, corre­ção de proceder e firme desejo de melhorar-se. Sa­bemos que a morte não é milagre. Cada qual des­perta, depois do túmulo, na posição espiritual que procurou para si... Ora, o homem vulgar sente-se mais à solta junto das entidades que lhe lisonjeiam as paixões, estimulando-lhe os apetites, de vez que todos somos constrangidos a educar-nos, na vizi­nhança de companheiros evolutidos, que já apren­deram deram a sublimar os próprios impulsos, consagran­do-se à lavoura incessante do bem.

— Mas não será isso um abuso do homem encarnado? não será crime parasitar os desencar­nados de condição inferior? — indagou Hilário.

— Isso não padece dúvida — confirmou o ins­trutor.

— E esse delito ficará impune?

Aulus fixou leve expressão de bom humor e respondeu:

— Não se preocupem demasiado. Quando o erro procede da ignorância bem-intencionada, a Lei prevê recursos indispensáveis ao esclarecimento jus­to no espaço e no tempo, porqüanto a genuína caridade, sob qualquer título, é sempre venerável. Entretanto, se o abuso é deliberado, não faltará corrigenda.

Vagueou o olhar sobre o diretor da assembléia e sobre os medianeiros que incorporavam os comu­nicantes e acrescentou:

— Teotônio e Raimundo, tanto quanto alguns outros desencarnados da posição deles, e que aqui se aglomeram, realmente são mais vampirizados que vampirizadores. Fascinados pelas requisições de Quintino e dos médiuns que lhe prestigiam a obra infeliz, seguem-lhes os passos, como aprendizes no encalço dos mentores aos quais se devotam. Na hipótese de não se reajustarem no bem, tão logo se desencarnem o dirigente deste grupo e os ins­trumentos medianímicos que lhe copiam as atitu­des, serão eles surpreendidos pelas entidades que escravizaram, a lhes reclamarem orientação e so­corro, e, mui provavelmente, mais tarde, no gran­de porvir, quando responsáveis e vitimas estiverem reunidos no instituto da consangüinidade terres­tre, na condição de pais e filhos, acertando contas e recompondo atitudes, alcançarão pleno equilíbrio nos débitos em que se emaranharam.

Ante a nossa admiração silenciosa, o Assis­tente concluiu:

— Cada serviço nobre recebe o salário que lhe diz respeito e cada aventura menos digna tem o preço que lhe corresponde.

Logo após, Aulus concitou-nos a partir.

O ambiente não encorajava maior estudo e já havíamos assimilado a lição que ali poderíamos receber.


28

Efeitos físicos

Vinte horas haviam soado no relógio terrestre, quando entramos em acanhado apartamento, no qual se realizariam trabalhos de materialização.

Tanto Hilário quanto eu não desejávamos en­cerrar a semana de estudos sem observar algum serviço dessa natureza, em companhia do Assis­tente.

De outra feita, acompanháramos experiência dessa ordem, assinalando-a em registro de nossas impressões (1) contudo, os ensinamentos de Aulus eram sempre expressivos, e valiosos pelos funda­mentos morais de que se revestiam, e suspirei pelo instante de ouvi-lo discorrer sobre os fenômenos físicos que nos propúnhamos analisar.

(1) “Missionários da Luz”. — (Nota do Autor espiritual.)

O recinto destinado aos trabalhos constituía-se de duas peças, uma sala de estar ligada a estreita câmara de dormir.

O aposento íntimo, transformado em gabinete, albergava o médium, um homem ainda moço, e na sala espalhavam-se catorze pessoas, aparentemente bem-intencionadas, das quais se destacavam duas senhoras doentes, que representavam o motivo es­sencial da reunião, de vez que pretendiam recolher a assistência amiga dos Espíritos materializados.

Indicando-as, falou o orientador, com grave entonação de voz:

— Venho com vocês até aqui, considerando as finalidades do socorro aos enfermos, porque, embora sejam muitas as tentativas de materializa­ção de forças do nosso plano, na Terra, com raras exceções quase todas se desenvolvem sobre lasti­máveis alicerces que primam por infelizes atitudes dos nossos irmãos encarnados. Só os doentes, por enquanto, no mundo, justificam a nosso ver o es­forço dessa espécie, junto das raras experiências, essencialmente respeitáveis e dignas, realizadas pelo mundo científico, em beneficio da Humanidade.

Quiséramos alongar o entendimento, no en­tanto, renteando conosco, diversos obreiros iam e vinham, dando a perceber o início dos trabalhos daquela noite.

A higienização processava-se ativa.

O serviço reclamava cuidado.

Segundo apontamentos recolhidos por nós, em outras ocasiões, aqui surgiam aparelhos delicados para a emissão de raios curativos, acolá se efetuava a ionização do ambiente com efeitos bactericidas.

Alguns encarnados, como habitualmente acon­tece, não tomavam a sério as responsabilidades do assunto e traziam consigo emanações tóxicas, oriun­das do abuso de nicotina, carne e aperitivos, além das formas-pensamentos menos adequadas à tarefa que o grupo devia realizar.

Atento ao estudo, Aulus recomendou-nos cen­tralizar a atenção no gabinete do médium.

Obedecemos.

Ao redor, laboriosa atividade seguia adiante. Dezenas de entidades bem comandadas e evidenciando as melhores noções de disciplina, articu­lavam-se no esforço preparatório.

O instrumento medianímico já havia recebido eficiente amparo no campo orgânico.

A digestão e a circulação, tanto quanto o so­corro às vísceras já eram problemas solucionados.

Dispensar-nos-emos de maior rigor descritivo, porqüanto, em outras páginas (1), a materialização, de acordo com as nossas possibilidades de expressão, mereceu-nos meticuloso exame, no que respeita às substâncias, associações, recursos e mo­vimentos do plano espiritual.

Agora, interessava-nos a mediunidade em si. Intentávamos analisar-lhe o comportamento,

em suas relações com o ambiente e as pessoas. E, para isso, a nosso parecer, nenhuma oca­sião melhor que aquela, em que dispúnhamos da colaboração segura de um amigo competente e devotado qual o instrutor que nos acompanhava, solícito.

Apagada a luz elétrica e pronunciada a oração de início, o agrupamento, como de praxe, passou a entoar hinos evangélicos, para equilibrar as vi­brações do recinto.

Colaboradores desencarnados extraíam forças de pessoas e coisas da sala, inclusive da Natureza em derredor, que casadas aos elementos de nossa esfera faziam da câmara mediúnica precioso e com­plicado laboratório.

Correspondendo à atuação magnética dos men­tores responsáveis, desdobrou-se o médium, afastando-se­

(1) “Missionários da Luz”. — (Nota do Autor espiritual.)

do veículo físico, de modo tão perfeito que o ato em si mais se me afigurava a própria desencarnação, porque o corpo jazia no leito, como se fora um casulo de carne, largado e inerte.

O veículo físico, assim prostrado, sob o domí­nio dos técnicos do nosso plano, começou a expelir o ectoplasma, qual pasta flexível, à maneira de uma geléia viscosa e semilíquida, através de todos os poros e, com mais abundância, pelos orifícios naturais, particularmente da boca, das narinas e dos ouvidos, com elevada percentagem a exterio­rizar-se igualmente do tórax e das extremidades dos dedos. A substância, caracterizada por um cheiro especialíssimo, que não conseguimos descre­ver, escorria em movimentos reptilianos, acumu­lando-se na parte inferior do organismo medianí­mico, onde apresentava o aspecto de grande massa protoplásmica, viva e tremulante.

Companheiros nossos prestavam carinhosa as­sistência ao médium separado da vestimenta física, como se ele fora um doente ou uma criança.

À margem da ação, Aulus esclareceu presti­moso:

— O ectoplasma está em si tão associado ao pensamento do médium, quanto as forças do filho em formação se encontram ligadas à mente ma­ternal. Em razão disso, toda a cautela é indispen­sável na assistência ao medianeiro.

Hilário que ouvia, reverente, indagou:

— Tal cuidado decorre da possibilidade de in­conveniente intervenção do médium nos trabalhos?

— Exatamente.

E Aulus prosseguiu:

— Se pudéssemos contar com mais ampla edu­cação do instrumento, decerto menos teríamos a temer, de vez que a própria individualidade do ser­vidor colaboraria junto de nós, evitando-nos preo­cupações e contratempos prováveis. A materializa­ção de criaturas e objetos de nosso plano, para ser mais perfeita, exige mais segura desmaterialização do médium e dos companheiros encarnados que o assistem, porque, por mais nos consagremos aos trabalhos dessa ordem, estamos subordinados à cooperação dos amigos terrestres, assim como a água, por mais pura, permanece submetida às qualidades felizes ou infelizes do canal por onde se escoa.

— Isso nos deixa entrever — acentuou meu colega — que o pensamento mediúnico pode influir nas formas materializadas, mesmo quando essas formas se encontrem sob rigoroso controle de ami­gos da nossa esfera...

— Sim — confirmou o Assistente —, ainda quando o médium não consiga senhoreá-las de todo, pode perturbar-lhes a formação e a projeção, pre­judicando-nos conseqüentemente o serviço. Dai, o impositivo da completa isenção de ânimo, por par­te de quantos se devotam a semelhantes realizações.

Hilário, não obstante satisfeito, continuou pon­derando:

— As faculdades de materialização, desse mo­do, não traduzem privilégio para os seus portadores...

— De modo algum.

E, depois de breve pausa:

— O próprio verbo referente ao assunto, em sentido literal, não encoraja qualquer interpretação em desacordo com a verdade. Materializar signifi­ca corporificar. Ora, considerando-se que mediuni­dade não traduz sublimação e sim meio de serviço, e reconhecendo, ainda, que a morte não purifica, de imediato, aquele que se encontra impuro, como atribuir santidade a médiuns da Terra ou a comu­nicantes do Além pelo simples fato de modelarem formas passageiras, entre dois planos?

— Então, essa força...

Meu companheiro não terminou.

Aulus percebeu-lhe o pensamento e atalhou, asseverando:

— Essa força materializante é como as outras manipuladas em nossas tarefas de intercâmbio. Independe do caráter e das qualidades morais da­queles que a possuem, constituindo emanações do mundo psicofísico, das quais o citoplasma é uma das fontes de origem. Em alguns raros indivíduos, encontramos semelhante energia com mais alta per­centagem de exteriorização, contudo, sabemos que ela será de futuro mais abundante e mais facil­mente abordável, quando a coletividade humana atingir mais elevado grau de maturação.

— Até lá, desse modo...

— Até lá, utilizar-nos-emos dessas possibilida­des como quem aproveita um fruto ainda verde, em circunstâncias especiais da vida, suportando, porém, o assédio de mil surpresas desagradáveis ao recolhê-lo, de vez que, em experiências como esta, submetemo-nos a certas interferências mediú­nicas indesejáveis, tanto quanto a influências me­nos edificantes de companheiros encarnados, fran­camente inaptos para os serviços dessa espécie.

Hilário que escutava, atencioso, a lição, pon­derou ainda:

— Imaginemos que o médium esteja possuído de interesses inferiores, seja em matéria de afeti­vidade mal conduzida, de ambição desregrada ou de pontos de vista pessoais, nos diversos departa­mentos das paixões comuns...

E, depois da alegação reticenciosa, indagou:

— Nessa posição poderá influir nos fenômenos em estudo?

— Sem dúvida alguma — elucidou Aulus, com naturalidade —, consciente ou inconscientemente.

— E os amigos do grupo? se imbuidos de pro­pósitos malsãos conseguem perturbar-nos?

— Certamente!

— E por que nos sujeitarmos a fatores inca­pazes, assim?

Os olhos do Assistente brilharam, expressivos.

E, afagando o meu colega, Áulus falou, com sensatez:

— Não diga “fatores incapazes”. Digamos “fa­tores insipientes”. Simbolizemos a necessidade co­mo sede escaldante e a mediunidade imperfeita ou mal comandada como sendo a água menos limpa. A falta do liquido puro, não podemos hesitar. Uti­lizamo-nos da água nas condições em que a encon­tramos. E, em seguida, que fazer? Teremos pa­ciência com a fonte, decantando-lhe, pouco a pou­co, a corrente poluida. A mediunidade sublimada, através de instrumentos dignos e conscientes no mandato que lhes corresponde, é algo de eterno e divino que a Humanidade está edificando. Isso não é obra de afogadilho. A improvisação não é ali­cerce para os santuários da sabedoria e do amor que desafiam o tempo.

Meu colega e eu sorrimos, encantados com aquele monumento de compreensão e tolerância.

Em derredor, grande massa de substância ecto­plásmica leitosa-prateada, da qual se destacavam alguns fios escuros e cinzentos, amontoava-se, abun­dante.

Técnicos de nosso plano manipulavam-na, com atenção.

Aulus fixou a paisagem de trabalho ativo e explicou-nos:

— Aí temos o material leve e plástico de que necessitamos para a materialização. Podemos dividi-lo em três elementos essenciais, em nossas rápidas noções de serviço, a saber — fluidos “A”, representando as forças superiores e sutis de nos­sa esfera, fluidos “B”, definindo os recursos do médium e dos companheiros que o assistem, e fluidos “C”, constituindo energias tomadas à Natureza ter­restre. Os fluidos “A” podem ser os mais puros e os fluidos “C” podem ser os mais dóceis; no entanto, os fluidos “B”, nascidos da atuação dos companheiros encarnados e, muito notadamente, do médium, são capazes de estragar-nos os mais nobres projetos. Nos círculos, aliás raríssimos, em que os elementos “A” encontram segura colaboração das energias “B”, a materialização de ordem elevada assume os mais altos característicos, raiando pela sublimidade dos fenômenos; contudo, onde predominarn os elemen­tos “B”, nosso concurso é consideravelmente reduzi­do, porqüanto nossas maiores possibilidades pas­sam a ser canalizadas na dependência das forças inferiores do nosso plano, que, afinadas aos poten­ciais dos irmãos encarnados, podem senhorear-lhes os recursos, invadindo-lhes o campo de ação e in­clinando-lhes as experiências psíquicas no rumo de lastimáveis desastres.

As elucidações não poderiam ser mais claras.

Dispúnhamo-nos a prosseguir no entendimento, todavia, Garcez, um dos técnicos espirituais do serviço, veio até nós, invocando o auxilio magné­tico de Aulus.

O campo fluídico na sala se fizera demasiado espesso. Os pequenos jactos de força ectoplásmica, arremessados até lá, em caráter experimental, tor­navam ao gabinete, revelando forte teor de toxinas de variada classificação.

As catorze pessoas assembleadas no recinto eram catorze caprichos diferentes.

Não havia ali ninguém com bastante compre­ensão do esforço que se reclamava do mundo espi­ritual e cada companheiro, ao invés de ajudar o instrumento mediúnico, pesava sobre ele com mau­ditas exigências.

Em razão disso, o médium não contava com suficiente tranqüilidade. Figurava-se-nos um animal raro, acicatado por múltiplos aguilhões, tais os pensamentos descabidos de que se via objeto.

— Não atingiremos, então, a materialização de ordem superior... — falou o Assistente, algo preocupado.

— De modo algum — informou Garcez com desapontamento. — Teremos tão-só o médium des­dobrado, incorporando a nossa enfermeira para socorro às irmãs doentes. Nada mais. Não dispomos do concurso preciso.

Aulus atendeu à solicitação que lhe era diri­gida e auxiliou magneticamente a transferência de certo coeficiente de energias do vaso físico ao cor­po perispiritual que se mostrou vivamente reanimado.

O veículo de matéria densa, no leito, desceu à mais funda prostração, mas o médium, em seu perispírito, evidenciava maior vitalidade e maior lucidez.

Amigos espirituais envolveram-no em extenso roupão ectoplásmico e a enfermeira uniu-se a ele, comandando-lhe os movimentos.

O médium, não obstante ausente do corpo car­nal, achava-se controlado pela benfeitora, à manei­ra de um médium psicofônico, diferenciado apenas pela roupagem singular, estruturada com apetre­chos ectoplásmicos imprescindíveis à permanência dele no recinto, onde explodiam pensamentos per­turbados e inquietantes.

Vendo-o caminhar, inseguro, abraçado~ pela enfermeira que o movimentava para o serviço as­sistencial, Hilário, ciciante, falou para o nosso orientador:

— O médium está consciente durante o fenô­meno?

— Fora do corpo sim, mas, possívelmente, não guardará qualquer lembrança, logo regresse ao cam­po físico.

Meu colega ainda aventurou:

— Vemo-lo avançar com indumentos materia­lizados e sob a orientação da enfermeira amiga. Entretanto, caso alimente, nessas condições, qual­quer desejo menos digno, pode interferir no traba­lho, prejudicando-o?

— Perfeitamente — disse Aulus —, ele está sob controle, mas controle não significa anulação. Qualquer impulso infeliz do nosso companheiro cor­rerá por conta do serviço. Daí, a inconveniência das atividades dessa espécie, sem alto objetivo moral.

O medianeiro das curas, enlaçado pela entidade generosa, alcançou o estreito aposento, exibindo a roupagem delicada, semelhante a uma túnica de luar, emitindo prateada luz. No entanto, à medida que varava a atmosfera reinante no recinto, a cla­ridade esmaecia, chegando a apagar-se quase de todo.

Diante do nosso olhar indagador, o Assistente esclareceu:

— A posição neuropsíquica dos companheiros encarnados que nos compartilham a tarefa, no mo­mento, não ajuda. Absorvem-nos os recursos, sem retribuição que nos indenize, de alguma sorte, a despesa de fluidos laboriosamente trabalhados.

A convite do orientador, penetramos a sala. Efetivamente, escuras emissões mentais esguichavam contínuas, entrechocando-se de maneira las­timável.

Os amigos, ainda na carne, mais se nos figu­ravam crianças inconscientes.

Pensavam em termos Indesejáveis, expressando petições absurdas, no aparente silêncio a que se acomodavam, irrequietos.

Exigiam a presença de afeições desencarnadas, sem cogitarem da oportunidade e do merecimento imprescindíveis, criticavam essa ou aquela parti­cularidade do fenômeno ou prendiam a imaginação a problemas aviltantes da experiência vulgar.

O concurso dos amigos espirituais era ali re­cebido, não como gentileza de benfeitores, mas como espetáculo fútil a ser obrigatoriamente ela­borado por servos ínfimos.

Ainda assim, os obreiros do nosso plano ofe­reciam o melhor pelo êxito da tarefa.

A enfermeira devotada socorreu as doentes, aplicando-lhes raios curativos. Várias vezes, deixou o recinto e tornou a ele, porqüanto, à simples aproximação dos pensamentos inadequados que lhe senhoreavam as vibrações, toda a matéria ecto­plásmica se ressentia, obscurecendo-se ao bombar­deio das formações mentais nascidas da assistência.

Terminado que foi o trabalho medicamentoso, um risonho companheiro de nossa esfera tomou pequena porção das forças materializantes do mé­dium sobre as mãos e afastou-se para trazer, daí a instantes, algumas flores que foram distribuídas com os irmãos encarnados, no intuito de sossegar-lhes a mente excitadiça.

Calmando-nos a curiosidade, Áulus esclareceu:

— É o transporte comum, realizado com re­duzida cooperação das energias medianímicas. Nos­so amigo — e designou com a destra o emissário das flores — apenas tomou diminuta quantidade de força ectoplásmica, formando somente pequeni­nas cristalizações superficiais do polegar e do in­dicador, em ambas as mãos, a fim de colher as flores e trazê-las até nós.

— É importante observar — disse Hilário —a facilidade com que a energia ectoplásmica atravessa a matéria densa, porque o nosso companhei­ro, usando-a nos dedos, não encontrou qualquer obstáculo na transposição da parede.

— Sim — comentou o instrutor —, o elemento sob nossa vista é extremamente sutil e, aderindo ao nosso modo de ser, adquire renovada feição dinâmica.

— E se fosse o médium o objeto do trans­porte? traspassaria a barreira nas mesmas circunstâncias?

— Perfeitamente, desde que esteja mantido sob nosso controle, intimamente associado às nossas forças, porque dispomos entre nós de técnicos bas­tante competentes para desmaterializar os elemen­tos físicos e reconstitui-los de imediato, cônscios da responsabilidade que assumem.

E sorrindo:

— Você não pode esquecer que as flores trans­puseram o tapume de alvenaria, penetrando aqui com semelhante auxilio. De idêntica maneira, caso encontrássemos utilidade num lance dessa natureza, o instrumento que nos serve de base ao tra­balho poderia ser removido para o exterior com a mesma facilidade. As cidadelas atômicas, em qualquer construção da forma física, não são for­talezas maciças, qual acontece em nossa própria esfera de ação. O espaço persiste em todas as for­mações e, através dele, os elementos se interpe­netram. Chegará o dia em que a ciência dos homens poderá reintegrar as unidades e as consti­tuições atômicas, com a segurança dentro da qual vai aprendendo a desintegrá-las.

Logo após, os amigos presentes, sempre inte­ressados em acordar os irmãos encarnados para as realidades do espírito, acomodaram o médium, religando-o ao corpo carnal.

O rapaz esfregou o rosto, estremunhado; con­tudo, sob a atuação de passes calmantes, arrojou-se, de novo, à hipnose profunda.

Forças ectoplásmicas recomeçaram a surgir das narinas e dos ouvidos, revitalizadas e abundantes.

Alguns companheiros passaram a comparti­mento vizinho, seguidos por nós.

Nesse aposento, sobre pequeno fogão elétrico grande balde de parafina fervente requisitava-nos a atenção.

Um amigo de semblante simpático cobriu a destra com a pasta dúctil que manava fartamente do médium e materializou-a com perfeição, mer­gulhando-a, logo após, na parafina superaquecida, deixando aos componentes da reunião o primoroso molde como lembrança.

Uma jovem que nos saudou, cordial, trabalhou igualmente o ectoplasma, modelando três flores que, submersas no vaso, ficaram, depois, em mesa próxima para os assistentes, à guisa de doce recordação daquela noite de tolerância e carinho.

Afeiçoados da casa trouxeram do exterior di­versas conchas marinhas, em que se viam delicados perfumes que se volatizaram no recinto em vagas deliciosas.

Reparando que os tarefeiros espirituais sub­metiam o instrumento medianímico a complicadas operações magnéticas, através das quais a subs­tância materializante era restituída ao corpo físico, inteiramente purificada, crivamos o instrutor de questões e perguntas.

Realmente todas as pessoas, na Terra, pos­suíam consigo a energia que examinávamos? seria lícito esperar no futuro mais amplas manifestações dela? essa força era invariavelmente influenciável ou, em alguma circunstância, conseguia organizar-se por si?

Aulus deixou aos demais obreiros as medidas atinentes à fase terminal dos trabalhos e elucidou:

— O ectoplasma está situado entre a matéria densa e a matéria perispirítica, assim como um pro­duto de emanações da alma pelo filtro do corpo, e é recurso peculiar não somente ao homem, mas a todas as formas da Natureza. Em certas or­ganizações fisiológicas especiais da raça humana, comparece em maiores proporções e em relativa madureza para a manifestação necessária aos efei­tos físicos que analisamos. É um elemento amor­fo, mas de grande potência e vitalidade. Pode ser comparado a genuína massa protoplásmica, sendo extremamente sensível, animado de princípios cria­tivos que funcionam como condutores de eletrici­dade e magnetismo, mas que se subordinam, inva­riavelmente, ao pensamento e à vontade do médium que os exterioriza ou dos Espíritos desencarnados ou não que sintonizam com a mente mediúnica, senhoreando-lhe o modo de ser. Infinitamente plás­tico, dá forma parcial ou total às entidades que se fazem visíveis aos olhos dos companheiros ter­restres ou diante da objetiva fotográfica, dá con­sistência aos fios, bastonetes e outros tipos de formações, visíveis ou invisíveis nos fenômenos de levitação, e substancializa as imagens criadas pela imaginação do médium ou dos companheiros que o assistem mentalmente afinados com ele. Exige-nos, pois, muito cuidado para não sofrer o domínio de Inteligências sombrias, de vez que manejado por entidades ainda cativas de paixões deprimentes po­deria gerar clamorosas perturbações.

E, apontando o mediador que despertava sono­lento, enunciou:

— Nosso amigo, polarizando as energias do nosso plano, funciona como entidade maternal, de cujas possibilidades criativas os Espíritos materia­lizados totalmente, ou não, retiram os recursos imprescindíveis às suas manifestações, sendo, a prazo curtíssimo, autênticos filhos dele.

Assinalando a conceituação, Hilário falou en­tusiástico:

— Isso dá a entender que nas forças gerado­ras extravasadas do médium e dos cooperadores de nossa esfera poderemos surpreender igualmente os princípios fundamentais da genética humana, em figurações que a ciência terrena ainda não conhece...

— Sim, sem dúvida — confirmou o Assisten­te —, os princípios são os mesmos, embora os aspectos sejam diferentes, O futuro nos reserva admiráveis realizações nesse ponto. Trabalhemos e estudemos.

Nossas disponibilidades de tempo, contudo, ha­viam terminado. E, por isso, Aulus encerrou a notável conversação, convidando-nos a voltar.


29

Anotações em serviço

De retorno ao lar de Áulus, ocorreu-me auscul­tar-lhe a opinião com respeito a diversos proble­mas. sempre vivos ao redor de quantos se dedicam ao estudo de questões mediúnicas, na atualidade terrestre.

Em companhia do orientador, havíamos toca­do de relance, mas seguramente, palpitante material, que nos facultara excelente curso educativo.

ExamináramoS, de perto, entre encarnados e desencarnados, a assimilação de correntes mentais, a psicofonia, a possessão, o desdobramento, a cla­rividência, a clariaudiência, as forças curativas, a telepatia, a psicometria e a materialização, além de alguns dos temas de importância central da me­diunidade, como sejam o poder da prece, a fixação mental, a emersão do subconsciente, a licantropia, a obsessão, a fascinação, a lei de causa e efeito, o desdobramento no leito de morte e as energias viciadas, tudo isso sem necessidade de recurso a complicações terminológicas.

Não obstante nosso respeito à ciência humana, indagávamos intimamente por que motivo tanto em­baraço verbalistico em sucessos comuns a todos, quando a simplificação seria bem mais interessan­te. Os metapsiquistas chamavam “criptestesia” à sensibilidade oculta, criptica, e batizaram o conhe­cimento de fatos sem o concurso dos sentidos car­nais com a palavra “metagnomia”... Dividiam os médiuns (sujets, na terminologia de alguns inves­tigadores) em duas categorias, os de «faculdades psicológicas inabituais» e os de «faculdades mecâ­nico-físico-químicas»... E por aí afora...

Por que não aplainar tais dificuldades de ex­pressão? Afinal — refletia eu —, a mediunidade, na essência, consulta o interesse da Humanidade inteira...

Acalentava tais pensamentos, quando Áulus, observando-me, por certo, a crítica meditada, con­siderou:

— A mediunidade, indubitavelmente, é patri­mônio comum a todos, entretanto, cada homem e cada grupo de homens no mundo registram-lhe a evidência a seu modo. De nossa parte, é possível abordá-la com a simplicidade evangélica, baseados nos ensinamentos claros do Mestre, que esteve em contacto incessante com as potências invisíveis ao homem vulgar, curando obsidiados, levantando en­fermos, conversando com os grandes instrutores materializados no Tabor, ouvindo os mensageiros celestiais em Getsemani e voltando Ele próprio a comunicar-se com os discípulos, depois da morte na cruz, entretanto, a ciência terrestre, por agora, não pode analisá-la sem o rigor da experimentação.

O Assistente fez ligeira pausa e prosseguiu:

— Não importa que os aspectos da verdade recebam vários nomes, conforme a índole dos es­tudiosos. Vale a sinceridade com que nos devota­mos ao bem. O laborioso esforço da Ciência é tão sagrado quanto o heroísmo da fé. A inteligência, com a balança e com a retorta, também vive para servir ao Senhor. Esmerilhando os fenômenos me­diúnicos e catalogando-os, chegará ao registro das vibrações psíquicas, garantindo a dignidade da Re­ligião na Era Nova.

Não desejava, porém, situar a conversação nos domínios científicos. Nosso aprendizado atingia o marco final. Aquela era a última noite em que podíamos desfrutar a sábia companhia do orien­tador e propunha-me ouvi-lo quanto à mediuni­dade em si.

Por essa razão, provoquei o diálogo que passarei a desdobrar.

— É justo que a Ciência não examine o cam­po mediúnico por nosso prisma — aleguei. — A lógica e a experimentação positiva caminham por estradas muito diferentes daquelas que conhecemos no itinerário da intuição. No entanto, nas próprias correntes do Espiritualismo, vemos a mediunidade atormentada pelas mais diversas interpretações...

— Que pretende você dizer, André? — falou o instrutor, com brandura.

— Lembro-me daqueles irmãos que acoimam os médiuns de insanos e loucos, aconselhando a segregação dos estudantes da verdade em templos de iniciação, a deliberada distância dos sofredores e dos ignorantes que contamos no mundo por le­giões inumeráveis...

— Ah! sim, o santuário de iniciação religiosa, qualquer que ele seja, é para nós venerável como posto avançado de distribuição da luz espiritual; entretanto, os que fogem dentro dele à lei da co­operação, isolam-se na torre de marfim do orgulho que lhes é próprio, fixando-se em discussões bri­lhantes e estéreis. Tais companheiros assemelham­-se a viajantes agrupados em perigosa ilha de re­pouso, enquanto os nautas corajosos do bem suam e sofrem na descoberta de rotas seguras para o continente da fraternidade e da paz. Descansam sob o arvoredo, confortados pela caça abundante e pela água refrescante, pesquisando a grandeza do céu ou filosofando sem proveito, mas sempre che­ga um dia em que a maré brava lhes invade o provisório domicilio, arrebatando-os ao mar alto, para que recomecem a experiência que lhes é necessária.

— Muitos estudiosos da nossa esfera de reali­zação no mundo asseveram que será licito cultivar tão-somente o convivio com os gênios superiores da Espiritualidade, relegando as manifestações mediú­nicas vulgares à fossa da obsessão e da enfermi­dade, que, na opinião deles, devem ser entregues a si mesmas, sem qualquer atenção de nossa parte.

— Isso é comodismo sob o rótulo de cultura. Não podemos negar que a obsessão seja moléstia da mente, contudo, poderá a Medicina curar al­guém à força de usar o esquecimento do dever que lhe cabe? Os gênios realmente superiores da Espi­ritualidade jamais abandonam os sofredores e os pequeninos. À maneira do Sol que clareia o palácio e a furna, com o mesmo silencioso devotamento auxiliam a todos, em nome da Providência.

— Há companheiros no Espiritualismo que não suportam qualquer manifestação primitivista no terreno mediúnico. Se o médium não lhes cor­responde à exigência, revelando-se em acanhado círculo de compreensão ou competência, afastam-se dele, agastadiços, categorizando por fraude ou mistificação valiosas expressões da fenomenologia.

Aulus sorriu e comentou:

— Serão esses, provavelmente, os campeões do menor esforço. Ignoram que o sábio não dispensou a alfabetização no começo da existência e, decerto, amaldiçoam a criancinha que não saiba ler. Seme­lhantes amigos, André, olvidaram o socorro que receberam da escola primária e, solicitando facili­dades, à maneira do morfinômano que reclama en­torpecentes, viciam-se em atitudes deploráveis àfrente da vida, de vez que tudo exigem para si, desrespeitando a obrigação de ajudar aos que am­da se encontram na retaguarda.

— Há quem diga que o Espiritismo age erra­damente, abrigando os desequilibrados e os enfermos, porque, com isso, oferece a impressão de uma Doutrina que, à força de ombrear com a loucura para socorrê-la, vai convertendo seus templos de oração em vastos refúgios de alienados mentais.

— Simples disparate dos que desertam do ser­viço ao próximo. A Medicina não sofre qualquer diminuição por prestar auxilio aos enfermos. Hon­rada pelos hospitais em que atua, engrandece-se à medida que se agiganta na obra assistencial aos doentes. O Espiritismo não pode responsabilizar-se pelos desequilíbrios que lhe pedem amparo, tanto quanto não podemos imputar ao médico a autoria dos males que lhe requisitam a intervenção. Aliás, temos nele o benfeitor da mediunidade torturada e da mente doentia. propiciando-lhes o bálsamo e o esclarecimento indispensáveis ao reajuste. É muito fácil inventar teorias que nos exonerem do dever de servir, e muito difícil aplicar os princípios superiores que esposamos, utilizando-nos, para isso, de nossa cabeça e de nossas próprias mãos. Se a recuperação do mundo e de nós mesmos estivesse circunscrita a lindas palavras, o Cristo, que nos constitui o padrão de todos os dias, não precisaria ter vindo ao encontro dos necessitados da Terra. Bastaria que enviasse proclamações angélicas à Hu­manidade, sem padecer-lhe, de perto, a incompre­ensão e os problemas. Felizmente, porém, os espi­ritualistas conscientes e sensatos estão aprendendo que o nosso escopo é reviver o Evangelho em suas bases simples e puras e que o Senhor não nos con­cede o tesouro da fé apenas para que possamos crer e falar, mas também para que estejamos habi­litados a estender o bem, começando de nós mesmos.

— Há igualmente quem afirme que em todos os processos da obsessão funciona, implacável, a lei de causa e efeito, e que, por isso, não vale interferir­ em favor da mediunidade atormentada...

— Mera argumentação do egoísmo bem nutri­do. Isso seria o mesmo que abandonar os doentes, sob o pretexto de que são devedores perante a Lei. Todos lutamos por ressarcir compromissos do pre­térito, compreendendo que não há dor sem justi­ficação; e se sabemos que só o amor puro e o serviço incessante são capazes de garantir-nos a redenção, uns à frente dos outros, como desprezar o companheiro que sofre, em nome de princípios a cujo funcionamento estamos submetidos por nos­sa vez? Hoje, é o vizinho que amarga as conse­qüências de certas ações efetuadas a distância, amanhã seremos nós a colher os resultados de ges­tos que nos desabonavam o passado e que agora nos afligem o presente. Se falece a cooperação entre as vítimas do espinheiro, decerto será muito mais longa e difícil para cada um a tarefa sal­vadora.

— Não faltam igualmente os que supõem não devamos atender a qualquer problema de mediu­nidade complexa, porque, dizem eles, cada criatura deve procurar a verdade por si. Admitem que as religiões não passam de muletas e que a ninguém assiste a faculdade de socorrer-se de instrutores em assuntos da própria orientação.

Aulus esboçou um gesto de bom humor e re­dargüiu:

— Isso seria suprimir a escola e vilipendiar o amor imanente na Criação Inteira. A religião digna, qualquer que seja o templo em que se ex­presse, é um santuário de educação da alma, em seu gradativo desenvolvimento para a imortalidade. Imaginemos um país imenso, em que milhões de crianças fossem relegadas ao abandono pelos pais e mestres, sob a alegação de que lhes cabe o dever de procurar a virtude e a sabedoria por si, furtan­do-se-lhes toda espécie de apoio moral e cultural... Imaginemos um campo enorme superlotado de en­fermos, aos quais eminentes médicos recomendassem procurar a saúde por si mesmos, confiando-os à própria sorte... Onde estaria a lógica de seme­lhantes medidas? A interdependência mora na base de todos os fenômenos da vida. O forte é tutor do fraco. O sábio responsabilizar-se-á pelo igno­rante. A criancinha na Terra não prescinde do concurso dos pais.

O instrutor fez ligeiro interValo e prosseguiu:

— É preciso considerar que nem todos pos­suem idêntica idade espiritual e que a Humanidade Terrestre, em sua feição de conjunto, ainda se en­contra tão longe da angelitude quanto a agressiva animalidade ainda está distante da razão perfeita­mente humana. É muito cedo para que o homem se arrogue o direito de apelar para a Verdade Total... Por agora, é imprescindível trabalhe intensivamente, com devoção ardente e profunda ao bem, para atingir mais amplo discernimento das realidades fragmentárias ou provisórias que o cer­cam na vida física e, considerada a questão nesse aspecto, estejamos convictos de que a ausência de escolas do espírito ou a supressão dos instrutores constituíram a multiplicação dos hospícios e o re­baixamento do nível moral, porque sem o apelo à dignificação da individualidade, em processo de crescimento mental e de sublimação no tempo, não poderíamos contar senão com a estagnação nas linhas inferiores da experiência.

Havíamos, contudo, atingido o fim da viagem.

O lar-santuáriO em que o Assistente residia levantava-se, agora, ao nosso olhar.

— Trabalhemos com bom ânimo — disse-nos ainda o orientador —; o tempo conjugado com o serviço no bem é o alicerce de nossa vitória.

No dia imediato, Aulus deveria partir no rumo de elevada missão a distância. Por isso, prometeu-nos o abraço de adeus para a manhã seguinte.


30

Últimas páginas

Acompanhávamos o Assistente, refletindo ago­ra em nossa separação...

Achávamo-nos, Hilário e eu, preocupados e comovidos.

Ante o Sol renascente, o campo terrestre bri­lhava em plena manhã clara.

Mudos e expectantes, renteamos com um ho­mem do campo manobrando a enxada na defesa do solo.

Aulus apontou-o com a destra e rompeu o si­lêncio, murmurando:

— Vejam! A mediunidade como instrumenta­ção da vida surge em toda a parte. O lavrador é o médium da colheita, a planta é o médium da frutificação e a flor é o médium do perfume. Em todos os lugares, damos e recebemos, filtrando os recursos que nos cercam e moldando-lhes a mani­festação, segundo as nossas possibilidades.

Avançávamos e, em breves momentos, víamo-nos defrontados por singela oficina de carpinteiro. Nosso orientador indicou o operário que aplai­nava enorme peça e observou:

— Possuímos no artífice o médium de precio­sas utilidades. Da devoção com que se consagra ao trabalho, nasce elevada percentagem de recon­forto à Civilização.

Não longe, surpreendemos pequena marmora­ria, à porta da qual um jovem envergava o escopro, ferindo a pedra.

— Eis o escultor — disse Áulus —, o médium da obra-prima. A Arte é a mediunidade do Belo, em cujas realizações encontramos as sublimes vi­sões do futuro que nos é reservado.

O Assistente prosseguiu enunciando importan­tes considerações sobre o assunto, quando passamos por alguns empregados da higiene pública, remo­vendo o lixo de extensa praça.

— Aqui temos os varredores — disse com res­peitoso acento —, valiosos médiuns da limpeza.

Logo após, contornamos um edifício em que funcionava um tribunal de justiça e nosso instru­tor adiantou:

— Vemos aqui o fórum onde o juiz é o mé­dium das leis. Todos os homens em suas atividades, profissões e associações são instrumentos das for­ças a que se devotam. Produzem, de conformidade com os ideais superiores ou inferiores em que se inspiram, atraindo os elementos invisíveis que os rodeiam, conforme a natureza dos sentimentos e idéias de que se nutrem.

Atingíramos, no entanto, o lar em que Hilário e eu nos dedicaríamos ao socorro de uma criança doente.

Nesse ponto da excursão, o orientador, espe­rado a distância, separar-se-ia de nós, por fim.

Aulus seguiu-nos, paternal.

Na intimidade doméstica, um cavalheiro ma­duro e a esposa tomavam café em companhia de três petizes.

Ladeando a mesa limpa e sóbria, descansava em larga poltrona o menino abatido e pálido que nos recolheria o esforço assistencial.

O instrutor fixou os olhos no quadro expres­sivo que nos tomava a atenção e exclamou:

— A família consangüínea é uma reunião de almas em processo de evolução, reajuste, aperfeiçoamento ou santificação. O homem e a mulher, abraçando o matrimônio por escola de amor e tra­balho, honrando o vínculo dos compromissos que assumem perante a Harmonia Universal, nele se transformam em médiuns da própria vida, respon­sabilizando-se pela materialização, a longo prazo, dos amigos e dos adversários de ontem, converti­dos no santuário doméstico em filhos e irmãos. A paternidade e a maternidade, dignamente vividas no mundo, constituem sacerdócio dos mais altos para o Espírito reencarnado na Terra, pois, atra­vés delas, a regeneração e o progresso se efetuam com segurança e clareza. Além do lar, será difícil identificar uma região onde a mediunidade seja mais espontânea e mais pura, de vez que, na po­sição de pai e de mãe, o homem e a mulher, real­mente credores desses títulos, aprendem a buscar a sublimação de si mesmos na renúncia em favor das almas que, por intermédio deles, se manifes­tam na condição de filhos.

E, num sopro de bela inspiração, concluiu:

— A família física pode ser comparada a uma reunião de serviço espiritual no espaço e no tempo, cinzelando corações para a imortalidade.

Em seguida, o Assistente leu o mostrador de um relógio e observou:

— Quem caminha com a responsabilidade não deve esquecer as horas.

Retirou-se, precipite, e seguimo-lo até a praça próxima.

Aulus fixou o céu azul em que o Sol como que se desfazia em chuva de ouro quintessenciado, e dispunha-se a enlaçar-nos, quando me percebeu o propósito mais intimo, falando com humildade:

— Faça a prece por nós, André! Reverente, pedi em voz alta:

— Senhor Jesus!

Faze-nos dignos daqueles que espalham a verdade e o amor!

Acrescenta os tesouros da sabedoria nas almas que se engrandecem no amparo aos semelhantes.

Ajuda aos que se des preocupam de si mesmos, distribuindo em Teu Nome a esperança e a paz...

Ensina-nos a honrar-te os discípulos fiéis com o respeito e o carinho que lhes devemos

Extirpa do campo de nossas almas a erva daninha da indisciplina e do orgulho, para que a simplicidade nos favoreça a renovação.

Não nos deixes confiados à própria ce­gueira e guia-nos o passo, no rumo daqueles companheiros que se elevam, humilhando-se, e que por serem nobres e grandes, diante de Ti, não se sentem diminuídos, em se fazendo pequeninos, a fim de auxiliar-nos...

Glorifica-os, Senhor, coroando-lhes a fron­te com os teus lauréis de luz!...

O orientador devia saber que ele próprio per­sonificava para nós os benfeitores a cuja grandeza nos reportávamos; entretanto, não ousei pronun­ciar-lhe o nome, tal a veneração que nos merecia.

Terminada a oração, fitei-o de olhos úmidos.

Aulus não disse uma palavra.

Revestido de radiações luminescentes, dando-nos a entender que se despedia de nós igualmente em prece, recolheu-nos num só abraço e partiu...

À maneira de crianças, Hilário e eu, em pranto mudo de reconhecimento, contemplamo-lo, até que se lhe apagou o vulto ao longe.

Lembramo-nos, então, do trabalho que nos aguardava e, louvando o serviço que em toda a parte é a nossa bênção, passamos a socorrer a criança enferma, como quem se incorporava ao grande futuro...

Fim