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sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Contos e Apólogos-Francisco Cândido Xavier

Nota do Blog: Apesar de estar integralmente apresentado. Esse livro ainda não está totalmente formatado nesse blog, para uma leitura mais prazerosa.
CARO AMIGO: Caso você tenha gostado do livro e tenha condições de comprá-lo, faça-o, pois os direitos autorais são doados.

Muita Paz

FRANCISCO CANDIDO XAVIER

CONTOS E

APÓLOGOS

PELO ESPÍRITO IRMÃO X

OFERENDA

Meu amigo:

A maneira dos velhos peregrinos que jornadeiam sem repouso, busco-te os ouvidos pelas portas do coração.

Senta-te aqui por um momento.

Somos poucos junto à árvore seivosa da amizade perfeita.

Muitos passaram traçando-te o caminho...

Visitaram-te muitos outros, compelindo-te a dobrar os joelhos perante o Céu...

Não te imponho um figurino para atitudes exteriores.

Ofereço-te o lume da experiência.

Não te aponto normas para a contemplação das estrelas.

Rogo veja no firmamento a presença divina da Divina Bondade.

Trago-te apenas as histórias simples e humildes, que ouvi de outros viajares.

Recebe-as, elas são nossas.

Guardam o sorriso dos que ensinam no templo do amor e as lágrimas dos que aprendem na

escola do sofrimento.

Assemelham-se a flores pobres entretecidas de júbilo e pranto, dor e benção, que deponho

em tua alma para a viagem do mundo.

Acolhe-as com tolerância e benevolência! Dir-te-ão todas elas que, além da morte, floresce

a vida, tanto quanto da noite ressurge o esplendor solar, e que se há flagelação e desespero,

ante o infortúnio dos homens, fulgem, sempre puras e renovadas, a esperança e a alegria,

ante a glória de Deus.

Irmão X

Pedro Leopoldo , 30 de outubro de 1957

01 - A CAPA DE SANTO

Certo discípulo, extremamente aplicado ao Infinito Bem, depois de largo tempo ao lado do

Divino Mestre recebeu a incumbência de servi-lo entre os homens da Terra.

Desceu da Esfera Superior em que se demorava e nasceu entre as criaturas para ser

carpinteiro.

Operário digno e leal, muita vez experimentou conflitos amargurosos, mas, fervoroso,

apegava-se à proteção dos santos e terminou a primeira missão admiravelmente.

Tornou ao céu, jubiloso, e recebeu encargos de marinheiro.

Regressou à carne e trabalhou assíduo, em viagens inúmeras, espalhando benefícios em

nome do Senhor.

Momentos houve em que a tempestade o defrontou ameaçador, mas o aprendiz, nas lides

do mar, recorria aos Heróis Bem-Aventurados e entesourou forças para vencer.

Rematou o serviço de maneira louvável e voltou à Casa Celeste, de onde retornou ao

mundo para ser copista.

Exercitaram-se, então, pacientemente, nos trabalhos de escrita, gravando luminosos

ensinamentos dos sábios; e, quando a aflição ou o enigma lhe visitaram a alma, lembrava-se

dos Benfeitores Consagrados e nunca permaneceu sem o alívio esperado.

Novamente restituído ao Domicílio do Alto, sempre louvado pela conduta irrepreensível,

desceu aos círculos de luta comum para ser lavrador.

Serviu com inexprimível abnegação à gleba em que renascera e, se as dores lhe buscavam

o coração ou o lar, suplicava os bons ofícios dos Advogados dos Pecadores e jamais ficou

desamparado.

Depois de precioso descanso, ressurgiu no campo humano para exercitar-se no domínio das

ciências e das artes.

Foi aluno de filosofia e encontrou numerosas tentações contra a fé espontânea que lhe

sustentava a alma simples e estudiosa; todavia em todos os percalços do caminho,

implorava a cooperação dos Grandes Instrutores da Perfeição, que haviam conquistado a

láurea da santidade, nas mais diversas nações, e atravessaram ilesas, as provas difíceis.

Logo após, foi médico e surpreendeu padecimentos que nunca imaginara. Afligiram-se

milhares de vezes ante as agruras de muitos destinos lamentáveis; refugiou-se na paciência,

pediu socorro dos Protetores da Humanidade e, com o patrocínio deles, venceu, mais uma

vez.

Tamanha devoção adquiriu que não sabia mais trabalhar sem recurso imediato ao concurso

dos Espíritos Glorificados na própria sublimação.

Para ela, semelhantes benfeitores seriam campeões da graça, privilegiados do Pai Supremo

ou súdito favorecidos do Trono Eterno. E, por isso, prossegui trabalhando, agarrando-se-lhes

à colaboração.

Foi alfaiate, escultor, poeta, músico, escritor, professor, administrador, condutor, legislador e

sempre se retirou da Terra com distinção.

Vitorioso em tantos encargos foi chamado pelo Mestre, que lhe falou, conciso:

- Tens vencido em todas as provas que te confiei e, agora, podes escolher a própria tarefa.

O discípulo, embriagado de ventura, considerou sem detença:

- Senhor, tantas graças tenho recebido dos Benfeitores Divinos, que, doravante, desejaria

ser um deles, junto da Humanidade...

- Pretenderias, porventura, ser um santo?- indagou o Celeste Instrutor, sorrindo.

- Sim... - confirmou o aprendiz extasiado.

O senhor, em tom grave, considerou:

- O fruto que alimenta deve estar suficientemente amadurecido... Até hoje, na forma de

operário, de artista, de administrador e orientador, tens estado a meu serviço, junto dos

homens, junto de mim. Há muita diferença...

Mas, o interlocutor insistiu, humilde, e o mestre não lhe negou a concessão.

Renasceu, desse modo, muito esperançoso, e, aos vinte anos de corpo físico, recebeu do

Alto o manto resplandecente da santidade.

Manifestaram-se nele dons sublimes.

Adivinhava, curava, esclarecia, consolava.

A inteligência, a intuição e a ternura nele eram diferentes e fascinantes.

E o povo, reconhecendo-lhe a condição, buscou-lhe, em massa, as bênçãos e diretrizes.

Bons e maus, justos e injustos, ignorantes e instruídos, jovens e velhos, exigiram-lhe, sem

consideração por suas necessidades naturais, a saúde, o tempo, a paz e a vida.

Na categoria de santo, não podia subtrair-se à luta, nem desesperar, e por mais que fosse

rodeado de manjares e flores, por parte dos devotos e beneficiários reconhecidos, não podia

comer, nem dormir, nem pensar, nem lavar-se. Devia dar, sem reclamação, as próprias

forças, à maneira da vela, mantendo a chama por duas pontas.

Não valiam escusas, lágrimas, cansaço e serviço feito.

O povo exigia sempre.

Depois de dois anos de amargosa batalha espiritual, atormentado e desgostoso, dirigiu-se

em preces ao Senhor e alegou que a capa de santo era por demais espinhosa e pesava

excessivamente.

Reparando-lhe o pranto sincero, o Mestre ouviu-o, compadecido, e explicou:

- Olvidaste que, até agora, agiste no comando. Na posição de carpinteiro, modelavas a

madeira; lavrador determinava o solo; médico, ordenavas aos enfermos; filósofo

arregimentava idéias; músico. Tangias o instrumento; escultor cinzelava a pedra; escritor

dispunha sobre as letras; professor instruía os menos sábios que tu mesmo; administrador e

legislador interferiam nos destinos alheios. Sempre te emprestei autoridade e recurso para os

trabalhos de determinação... Para envergares a capa de santo, porém, é necessário

aprender a servir...

A fim de alcançares esse glorioso fim, serás, de ora em diante, modelado, brunido,

aprimorado e educado pela vida.

E enquanto o Mestre sorria complacente e bondoso, o discípulo em pranto, mas

reconfortado, esperava novas ordenações para ingressar no precioso curso de obediência.

02 - O CANDIDATO INTELECTUAL

Conta-se que Jesus, depois de infrutíferos desentendimentos com doutores da lei, em

Jerusalém, acerca dos serviços da Bom-Nova, foi procurado por um candidato ao novo

Reino, que se caracterizava pela profunda capacidade intelectual.

Recebeu-o o Mestre, cordialmente, e, em seguida às interpelações do futuro aprendiz,

passou a explicar os objetivos do empreendimento. O Evangelho seria a luz das nações e

consolidar-se-ia à custa da renúncia e do devotamento dos discípulos. Ensinaria aos homens

a retribuição do mal com o bem, o perdão infinito com a infinita esperança. A Paternidade

Celeste resplandeceria para todos. Judeus e gentios converter-se-iam em irmãos, filhos do

mesmo Pai.

O candidato inteligente, fixando no Senhor os olhos arguciosos, indagou:

-A que escola filosófica obedecerá?

-A escola do céu respondeu complacente, o Divino Amigo.

E outras perguntas choveram, improvisadas.

-Quem nos presidirá à organização?

-Nosso Pai Celestial.

-Em que base aceitará a dominação política dos romanos?

-Nas do respeito e do auxílio mútuos.

-Na hipótese de sermos perseguidos pelo Cinéreo, em nossas atividades, como proceder?

-Desculparemos a ignorância, quantas vezes for preciso.

-Qual o direito que competirá aos adeptos da Revelação Nova?

-O direito de servir sem exigências.

O rapaz arregalou os olhos aflitos e prosseguiu indagando:

-Em que consistirá desse modo, o salário do discípulo?

-Na alegria de praticar a bondade.

-Estaremos arregimentados num grande partido?

-Seremos, em todos os lugares, uma assembléia de trabalhadores atenta à Vontade Divina.

-O programa?

-Permanecerá nos ensinamentos novos de amor, trabalho, esperança, concórdia e perdão.

-Onde a voz imediata de comando?

-Na consciência.

-E os cofres mantenedores do movimento?

-Situar-se-ão em nossa capacidade de produzir o bem.

-Com quem contaremos de imediatos?

-Acima de tudo com o Pai e, na estrada comum, com as nossas próprias forças.

-Quem reterá a melhor posição no ministério?

-Aquele que mais servir.

O candidato coçou a cabeça, francamente desorientado, e continuou, finda a pausa:

-Que objetivo fundamental será o nosso?

Respondeu Jesus, sem se irritar:

-O mundo regenerado, enobrecido e feliz.

-Quanto tempo gastará?

-O tempo necessário.

-De quantos companheiros seguros dispomos para início da obra?

-Dos que puderem compreender-nos e quiserem ajudar-nos.

-Mas não teremos recursos de constranger os seguidores à colaboração ativa?

-No Reino Divino não há violência.

-Quantos filósofos, sacerdotes e políticos nos acompanharão?

-Em nosso apostolado, a condição transitória não interessa e a qualidade permanece acima

do número.

-A missão abrangerá quantos países?

-Todas as nações.

-Fará diferença entre senhores e escravos?

-Todos os homens são filhos de Deus.

-Em que sítio se levanta as construções de começo? Aqui em Jerusalém?

-No coração dos aprendizes.

-Os livros de apontamento estão prontos?

-Sim.

-Quais são?

-Nossas vidas...

O talentoso adventício continuou a indagar, mas Jesus silenciou sorridente e calmo.

Após longa série de interrogativas sem resposta, o afoito rapaz inquiriu ansioso:

-Senhor, por que não esclareces?

O Cristo afagou-lhe os ombros inquietos e afirmou:

-Busca-me quando estiveres disposto a cooperar.

E, assim dizendo, abandonou Jerusalém na direção da Galiléia, onde procurou os

pescadores rústicos e humildes que, realmente nada sabiam da cultura grega ou do Direito

Romano, mantendo-se, contudo, perfeitamente prontos a trabalhar com alegria e servir por

amor, sem perguntar.

03 - JUSTIÇA DE CIMA

Quatro operários solteiros quase todos da mesma idade compareceram ao tribunal de

Justiça de Cima, depois de haverem perdido o corpo físico, num acidente espetacular.

Na Terra, foram analisados por idêntico padrão.

Excelentes rapazes, aniquilados pela morte, com as mesmas homenagens sociais e

domésticas.

Na vida espiritual, contudo, mostravam-se diferentes entre si, reclamando variados estudos

e diversa apreciação.

Ostentando, cada qual, um halo de irradiações específicas, foi conduzido ao juiz que lhes

examinara o processo, durante alguns dias, atenciosamente.

O magistrado convidou um a um a lhe escutarem as determinações, em nome do Direito

Universal, perante numerosa assembléia de interessados nas sentenças.

Ao primeiro deles, cercados de pontos escuros, como se estivesse envolvido numa

atmosfera pardacenta, o compassivo julgador disse, bondoso:

-De tuas notas, transparecem os pesados compromissos que assumiste, utilizando os teus

recursos de trabalho para fins inconfessáveis. Há viúvas e órfãos, chorando no mundo,

guardando amargas recordações de tua influência.

E porque o interpelado inquirisse quanto ao futuro que o aguardava, o árbitro amigo

observou, sem afetação:

-Volta à paisagem onde viveste e recomeça a luta de redenção, reajustando o equilíbrio

daqueles que prejudicaste. És naturalmente obrigado a restituir-lhes a paz e a segurança.

Aproximou-se o segundo, que se movimentava sob irradiações cinzentas, e ouviu as

seguintes considerações:

-Revelam os apontamentos a teu respeito que lesaste a fábrica em que trabalhavas.

Detiveste vencimento e vantagens que não correspondem ao esforço que despendeste.

E, percebendo-lhe as interrogações mentais, acrescentou:

-Torna ao teu antigo núcleo de serviço e auxilia os teus companheiros e as máquinas que

exploraste em mau sentido. É indispensável resgates os débitos de alguns milhares de

horas, junto deles, em atividade assistencial.

Ao terceiro que se aproximou, a destoar dos precedentes pelo aspecto em que se

apresentava, disse o juiz, generoso:

-As informações de tua romagem no Planeta Terrestre explicam que demonstraste louvável

correção no proceder. Não te valeste das tuas possibilidades de serviço para prejudicar os

semelhantes, não traíste as próprias obrigações e somente recebeu do mundo aquilo que te

era realmente devido. A tua consciência está quite com a Lei. Podes escolher o teu novo tipo

de experiência, mas ainda na Terra, onde precisas continuar no curso da própria sublimação.

Em seguida, surgiu o último. Vinha nimbado de belo esplendor. Raios de safira claridade

envolviam-no todo, parecendo emitir felicidade e luz em todas as direções.

O juiz inclinou-se, diante dele, e informou:

-Meu amigo, a colheita de tua sementeira confere-te a elevação. Serviços mais nobres

esperam-te mais alto.

O trabalhador humilde, como que desejoso de ocultar a luz que o coroava, afastou-se em

lágrimas de júbilo e gratidão, nos braços de velhos amigos que o cercavam, contentes, e, em

razão das perguntas a explodirem nos colegas despeitados, que asseveravam nele conhecer

um simples homem de trabalho, o julgador esclareceu persuasivo e bondoso:

-O irmão promovido é um herói anônimo da renúncia. Nunca impôs qualquer prejuízo a

alguém, sempre respeitou a oficina em que se honrava com a sua colaboração e não se

limitou a ser correto para com os deveres, através dos quais conquistava o que lhe era

necessário à vida. Sacrificava-se pelo bem de todos. Soube ser delicado nas situações mais

difíceis. Suportava o fígado enfermo dos colegas, com bondade e entendimento. Inspirava

confiança. Distribuía estímulo e entusiasmo. Sorria e auxiliava sempre. Centenas de

corações seguiram-no, além da morte, oferecendo-lhe preces, alegrias e bênçãos.

A Lei Divina jamais se equivoca.

E porque o julgamento fora satisfatoriamente liquidado, o tribunal da Justiça de Cima,

encerrou a sessão.

04 - O FAROLEIRO DESPREVENIDO

O soldado Teofrasto, homem de excelente coração, fora nomeado faroleiro por Alcebíades,

na expedição da Sicília, a fim de orientar as embarcações em zona perigosa do mar.

Por ali, rochedos pontiagudos esperavam sem piedade as galeras invigilantes. Ainda mesmo

fora da tempestade, quando a fúria dos deuses não soprava sibilante sobre a Terra,

derribando casas e arvoredo, os pequenos e grandes barcos eram como que atraídos aos

penhascos destruidores, qual ovelhas precipitadamente conduzidas ao matadouro.

Quantos viajantes havia já perdido a vida e os bens na traiçoeira passagem? Quantos

pescadores incautos não mais regressaram à benção do lar? Ninguém sabia.

Preservando, porém, a sorte de seus comandados, o grande general situou Teofrasto no

farol que se erguia na costa, com a missão de iluminar o caminho equóreo, dentro da noite.

Para garantir-lhe o êxito, mandou-lhe emissários com vasta provisão de óleo puro. O

servidor, honrado com semelhante mandato, permaneceria no ministério da luz contra as

trevas, defendendo a salvação de todos os que transitassem pelas águas escuras.

De início, Teofrasto desenvolveu, sem dificuldade, a tarefa que lhe competia. Findo o

crepúsculo, mantinha a luz acesa, revelando a rota libertadora.

Quando os vizinhos, porém, souberam que o soldado guardava um coração terno e

bondoso, passaram a visitá-lo, amiúde. Realmente estimavam nele a cordialidade e a

doçura, mas o que procuravam, no fundo, era a concessão de óleo destinado às pequenas

necessidades que lhes eram próprias.

O soldado, a breve tempo, era cercado de envolventes apelos.

Antifon, o lavrador, veio pedir-lhe meio barril do combustível para os serões de sua fazenda.

Eunice, a costureira, rogou-lhe duas ânforas cheias para terminar a confecção de algumas

túnicas, além das horas do dia.

Embolo, o sapateiro, alegando que o pai agonizava, implorou-lhe a doação de alguns pratos

de azeite, a fim de que o genitor não morresse às escuras. Crisóstomos, o fabricante de

ungüentos, reclamou cinco potes destinados à manipulação de remédios. Cor Ciro, o

negociante, implorou certa cota mais elevada para sustento de algumas tochas.

Todos os afeiçoados das redondezas, interessados em satisfazer as exigências domésticas,

relacionaram solicitações simpáticas e comoventes.

Teofrasto, atingido na sensibilidade, distribuiu o combustível precioso pela ordem das

rogativas.

Não podia sofrer o quadro angustioso, afirmava. As requisições, no seu parecer, eram justas

e oportunas.

Assim foi que, ao término de duas semanas, se esgotou a reserva de doze meses.

O funcionário não pôde comunicar-se facilmente com os postos avançados de comando e,

tão logo se apagou o farol solitário, por várias noites consecutivas os penhascos espatifaram

embarcações de todos os matizes.

Prestigiosos contingentes de tropas perderam a vida.

Confiados pescadores jamais tornaram ao ninho familiar.

Comerciantes diversos, portadores de valiosas soluções e problemas inquietantes da luta

humana, desceram aflitos ao abismo do mar.

Alcebíades, naturalmente indignado, exonerou o servidor do elevado encargo,

recomendando lhe fosse aplicado às penas da lei.

O médium cristão é sempre um faroleiro com as reservas de óleo das possibilidades divinas,

a benefício de todos os que navegam a pleno oceano da experiência terrestre, indicandolhes

os rochedos das trevas e descerrando-lhes o rumo salvador: todavia, quantos deles

perdem a oportunidade de serviço vitorioso pela prisão indébita nos casos particulares que

procedem geralmente de bagatelas da vida?

05 - "EU " CONTRA "EU"

Quando o Homem ainda jovem desejou cometer o primeiro desatino, aproximou-se o Bom

Senso e observou-lhe.

-Detém-te! Por que te confias assim ao mal?

O interpelado, porém respondeu orgulhoso:

-Eu quero.

Passando, mais tarde, à condição de perdulário e adotando a extravagância e a loucura por

normas de viver, apareceu a Ponderação e aconselhou-o:

-Pára! Por que te consagras, desse modo, ao gasto inconseqüente?

Ele, contudo, esclareceu jactancioso:

-Eu posso.

Mais tarde, mobilizando os outros a serviço da própria insensatez, recebeu a visita da

Humildade, que lhe rogou, piedosa:

-Reflete! Por que te não compadeces dos mais fracos e dos mais ignorantes?

O infeliz, todavia, redargüiu colérico.

-Eu mando.

Absorvendo imensos recursos, inutilmente, quando poderia beneficiar a coletividade,

abeirou-se dele o Amor e pediu:

-Modifica-te! Sê caridoso! Como podes reter o rio das oportunidades sem socorrer o campo

das necessidades alheias?

E o mísero informou:

-Eu ordeno.

Praticando atos condenáveis, que o levaram ao pelourinho da desaprovação pública, a

Justiça acercou-se dele e recomendou?

-Não prossigas! Não te dói ferir tanta gente?

O infortunado, entretanto, acentuou implacável:

-Eu exijo.

E assim viveu o Homem, acreditando-se o centro do Universo, reclamando, oprimindo e

dominando, sem ouvir as sugestões das virtudes que iluminam a Terra, até que, um dia, a

Morte o procurou e lhe impôs a entrega do corpo físico.

O desditoso entendeu a gravidade do acontecimento, prosternou-se diante dela e

considerou:

-Morte, por que me buscas?

-Eu quero-disse ela.

-Por que me constranges a aceitar-te?-gemeu triste.

-Eu posso-retrucou a visitante.

-Como podes atacar-me deste modo?

-Eu mando.

-Que poderes te movem?

-Eu ordeno.

-Defender-me-ei contra ti -clamou o Homem, desesperado-, duelarei e receberás a minha

maldição!...

Mas a Morte sorriu imperturbável, e afirmou:

-Eu exijo.

E, na luta do "eu", contra "eu", conduziu-o à casa da Verdade para maiores lições.

06 - O BENDITO AGUILHÃO

Atendendo a certas interrogações de Simão Pedro, no singelo agrupamento apostólico de

Cafarnaum, Jesus explicava solícito:

-Destina-se a Boa-Nova, sobretudo, à vitória da fraternidade.

Nosso Pai espera que os povos do mundo se aproximem uns dos outros e que a maldade seja

esquecida para sempre.

Não é justo combatam as criaturas reciprocamente, a pretexto de exercerem domínio indébito

sobre os patrimônios da vida, dos quais somos todos simples usufrutuários.

Operemos, assim, contra a inveja que ateia o incêndio da cobiça, contra a vaidade que

improvisa a loucura e contra o egoísmo que isola as almas entre si....

Naturalmente, a grande transformação não surgirá do inesperado.

Santifiquemos o verbo que antecipa a realização.

No pensamento bem conduzido e na prece fervorosa, receberemos as energias imprescindíveis

à ação que nos cabe desenvolver.

A paciência no ensino garantirá êxito à sementeira, a esperança fiel alcançará o Reino divino, e

a nossa palavra, aliada ao amor que auxilia, estabelecerá o império da infinita Bondade sobre o

mundo inteiro.

Há sombras e moléstias por toda a parte, como se a existência na Terra fosse uma corrente de

águas viciadas. É imperioso reconhecer, porém, que, se regenerarmos a fonte, aparece

adequada solução ao grande problema.

Restaurado o espírito, em suas linhas de pureza, sublimam-se-lhe as manifestações.

Em face da pausa natural que se fizera, espontânea, na exposição do Mestre, Pedro interferiu,

perguntando:

-Senhor, as tuas afirmativas são sempre imagens da verdade. Compreendo que o ensino da

Bom-Nova estenderá a felicidade sobre toda a Terra... No entanto, não concordas que as

enfermidades são terríveis flagelos para a criatura? E se curássemos todas as doenças? Se

proporcionássemos duradouro alívio a quantos padecem aflições do corpo? Não acreditas que,

assim instalaríamos bases mais seguras ao Reino de Deus?

E Filipe, ajuntou algo tímido?

-Grande realidade!... Não é fácil concentrar idéias no Alto, quando o sofrimento físico nos

incomoda.

É quase impossível meditar nos problemas da alma, se a carne permanece abatida de

achaques...

Outros companheiros se exprimiram, apoiando o plano de proteção integral aos sofredores.

Jesus deixou que a serenidade reinasse de novo, e, louvando a piedade, comunicou aos amigos

que, no dia imediato, a título de experiência, todos os enfermos seriam curados, antes da

pregação.

Com efeito, no outro dia, desde manhãzinha, o Médico Celeste, acolitado pelos apóstolos, impôs

suas milagrosas mãos sobre os doentes de todos os matizes.

No curso de algumas horas, foram libertados mais de cem prisioneiros da sarna, do cancro, do

reumatismo, da paralisia, da cegueira, da obsessão...

Os enfermos penetravam o gabinete improvisado ao ar livre, com manifesta expressão de

abatimento, e voltavam jubilosos.

Tão logo reapareciam, de olhar fulgurante, restituídos à alegria, à tranqüilidade e ao movimento,

formulava Pedro o convite fraterno para o banquete da verdade e luz.

O Mestre, em breves instantes, falaria com respeito à beleza da Eternidade e à glória do Infinito;

demonstraria o amor e a sabedoria do Pai e descortinaria horizontes divinos da renovação,

desvendando segredos do Céu para que o povo traçasse luminoso caminho de elevação e

aperfeiçoamento na Terra.

Os alegres beneficiados, contudo, se afastavam céleres, entre frases apressadas de

agradecimento e desculpa. Declaravam-se alguns ansiosamente esperados no ambiente

doméstico e outros se afirmavam interessados em retomar certas ocupações vulgares, com

urgência.

Com a cura da última feridenta, a vasta margem do lago contava apenas com a presença do

Senhor e dos doze aprendizes.

Desagradável silêncio baixou sobre a reduzida assembléia.

O pescador de Cafarnaum endereçou significativo olhar de tristeza e desapontamento ao

Mestre, mas o Cristo falou compassivo:

-Pedro, estuda a experiência e aguarda a lição. Aliviemos a dor, mas não nos esqueçamos de

que o sofrimento é criação do próprio homem, ajudando-o a esclarecer-se para a vida mais alta.

E sorrindo, expressivamente, rematou:

-A carne enfermiça é remédio salvador para o espírito envenenado. Se o bendito aguilhão da

enfermidade corporal é quase impossível tanger o rebanho humano do lodaçal da Terra para as

culminâncias do Paraíso.

07 - A FICHA

João Mateus, distinto pregador do Evangelho na seara espírita, na noite em que atingiu meio

século de idade no corpo físico, depois de orar enternecidamente com os amigos, foi deitarse.

Sonhou que alcançava as portas da Vida Espiritual, e, deslumbrado com a leveza de que

se via possuído, intentava alçar-se para melhor desfrutar a excelsitude do Paraíso, quando

um funcionário da Passagem Celeste se aproximou, a lembrar-lhe, solícito:

- João, para evitar qualquer surpresa desagradável no avanço, convém uma visita de olhos

em sua ficha...

E o viajante recebeu primoroso documento, em cuja face leu espantadiço:

-João Mateus.

-Renascimento na Terra em 1904.

-Berço manso.

-Pais carinhosos e amigos.

-Inteligência preciosa.

-Cérebro claro.

-Instrução digna.

-Bons livros.

-Juventude folgada.

-Boa saúde.

-Invejável noção de conforto.

-Sono calmo.

-Excelente apetite.

-Seguro abrigo doméstico.

-Constante proteção espiritual.

-Nunca sofreu acidentes de importância.

-Aos 20 anos de idade, empregou-se no comércio.

-Casou-se aos 25, em regime de escravização da mulher.

-Católico romano até os 26.

-Presenciou, sem maior atenção, 672 missas.

-Aos 27 de idade, transferiu-se para as fileiras espíritas.

-Compareceu a 2.195 sessões de Espiritismo, sob a invocação de Jesus.

-Realizou 1.602 palestras e pregações doutrinárias.

- Escreve cartas e páginas comoventes.

-Notável narrador.

-Polemista cauteloso.

-Quatro filhos.

-Boa mesa em casa.

-Não encontra tempo para auxiliar os filhos na procura do Cristo.

-Efetuou 106 viagens de repouso e distração.

-Grande intolerância para com os vizinhos.

-Refratário a qualquer mudança de hábitos para a prestação de serviço aos outros.

-Nunca percebe se ofende o próximo, através da sua conduta, mas revela extrema

suscetibilidade ante a conduta alheia.

-Relaciona-se tão-somente com amigos do mesmo nível.

-Sofre horror às complicações da vida social, embora destaque incessantemente o

imperativo da fraternidade entre os homens.

-Sabe defender-se com esmero em qualquer problema difícil.

-Além dos recursos naturais que lhe renderam respeitável posição e expressivo reconforto

doméstico, sob o constante amparo de Jesus, através de múltiplos mensageiros, conserva

bens imóveis no valor de Cr$ 600.000,00 e guarda em conta de lucro particular a importância

de Cr$ 302.000,00.

-Para Jesus, que o procurou na pessoa de mendigos, de necessitados e doentes, deu

durante toda vida 90 centavos.

-Para cooperar no apostolado do Cristo, já ofereceu 12 cruzeiros em obras de assistência

social.

-Débito.............................................................

Quando ia ler o item referente às próprias dívidas, fortemente impressionado, João acordou.

Era manhãzinha...

À noite, bem humorado, reuniu-se aos companheiros, relatando-lhes a ocorrência.

Estava transtornado, dizia. O sonho o modificara-lhe o modo de pensar. Consagrar-se-ia

doravante a trabalho mais vivo no movimento espírita. Pretendia renovar-se por dentro,

reuniria agora palavra e ação.

Para isso, achava-se disposto a colaborar substancialmente na construção de um lar

destinado à recuperação de crianças desabrigadas que, desde muito, desejava socorrer.

A experiência daquela noite inesquecível era, decerto, um aviso precioso. E, sorridente,

despediu-se dos irmãos de ideal, solicitando-lhes novo reencontro para o dia seguinte.

Esperava assentar as bases da obra que se propunha levar efeito.

Contudo, na noite imediata, quando os amigos lhe bateram à porta, vitimado por um

acidente das coronárias, João Mateus estava morto.

08 - O REMÉDIO OBJETIVO

Isidoro Vianna, colaborador nos serviços da caridade cristã, não obstante o devotamento

com que se entregara aos princípios evangélicos torturava-se, infinitamente, ante os golpes

da crítica.

Nas sessões do grupo, vivia em queixas constantes.

Tão logo se incorporava Policarpo, o benfeitor espiritual que dirigia a casa, intervinha

Isidoro, reclamando:

-Irmão Policarpo, está exausto! Que me aconselha? O mau juízo sufoca-me. Se cumpro

minhas obrigações, chamam-me bajulador; se me afasto do dever durante alguns minutos,

acusam-me de preguiçoso. Toma-se a iniciativa do bem, declaram-me afoito, e, se aguardo a

cooperação de alguém, classificam-me de tardio. Que fazer?

O mentor desencarnado contornava o problema, delicadamente, e acabava asseverando:

-O plano Terrestre, meu amigo, ainda é de enormes contrastes. A luz é combatida pelas

trevas, o mal pelo bem. A hostilidade que a ignorância nos abre favorece o trabalho geral de

esclarecimento. Tenhamos calmas e prossigamos a serviço de Nosso Senhor, que nos

ajudou até à cruz.

O companheiro choramingava e, na próxima reunião, voltava a pedir:

-Irmão Policarpo, que tentar em favor da harmonia? Minha boa-vontade é inexcedível,

entretanto, como proceder ante os adversários gratuitos? O cerco dessa gente é

insuportável. Não consigo caminhar em paz. Renda-se culto à gentileza, abrindo o espírito à

ternura dos amigos, dizem que sou explorador da confiança alheia e, se busco isolar-me,

atento aos compromissos que assumi, afirmam que não passo de orgulhoso e mau irmão.

O protetor respondia tolerante:

-

A tarefa, meu amigo, será mesmo assim. Quem conhece Jesus deve desculpar a leviandade

daqueles que ainda o não conheço. Aliás, a obra de evangelização das almas demanda

paciência e perdão, com o sacrifício de nós mesmos. Se não nos dispusermos a sofrer, de

algum modo, pela causa do bem vitorioso, quem nos libertará do mal? Tenhamos suficiente

valor e imitemos o exemplo da suprema renúncia, do Mestre.

Isidoro gemia, concordando a contragosto; contudo, na semana seguinte, repisava:

-Irmão Policarpo, que será de mim? A opinião do mundo é obstáculo intransponível. Não

agüento mais. Em tudo a censura castiga. Dão-se recursos materiais, contribuindo nas obras

da compaixão fraternal, sou apontado por vaidoso com mania de ostentação, e, se procuro

retrair-me, de alguma sorte, gritam por aí que tenho um coração empedernido e gangrenado.

A incompreensão dá para enlouquecer. Como agir?

O amigo generoso replicava sereno:

-Semelhantes conflitos são injunções da luta santificante. Quem muito fala aprenderá, mais

tarde, a calar-se... Não se prenda às desarmonias alheias. Ligue-se ao bem e acompanhe as

sugestões mais nobres. Enquanto a imperfeição dominar as almas, a crítica será um estilete

afiado convocando-nos à demonstração das mais altas virtudes. Coloque sua mente e seu

coração na Vontade do Senhor e caminhe para frente. As árvores ressequidas ou estéreis

jamais recebem pedradas, Não têm fruto que tente os que passam. Avancemos corajosos no

trabalho cristão.

Isidoro lamentava-se e o assunto transferia-se à reunião imediata.

De semana a semana, o aprendiz chorão multiplicava perguntas, até que, certa noite,

agastado talvez com os incessantes apelos à serenidade que o instrutor lhe propunha,

exclamou desesperado:

-O que eu desejo irmão Policarpo, é uma orientação decisiva contra os ataques indébitos.

Que medida adotar para não sermos perturbados? Como anular a reprovação

desalentadora? Por que processo nos livrar-nos dela?

Como furtar-nos ao remoque, à deturpação, à maldade?

O benfeitor espiritual sorriu magnânimo, e acentuou:

-Ah! Já sei... Você pede um remédio objetivo...

-Isto mesmo! -tornou Isidoro, ansioso.

- Pois bem - concluiu o amigo espiritual, benevolente-, a única medida aconselhável é a

paralisia da consciência. Tome meio quilo de anestésicos por dia, descanse o corpo em

poltronas e leitos, durma o resto da existência, despreocupe-se de todos os deveres, fuja à

aspiração de elevar-se, resigne-se à própria ignorância e cole-se a ela, tanto quanto a ostra

se agarra ao penedo, e, desde que você se faça completamente inútil, por mais nada fazer, a

crítica baterá em retirada. Experimente e verá.

Isidoro escutou a estranha fórmula, de olhos arregalados e, daí em diante, começou a servir

sem perguntar.

09 - O CAÇADOR PROVIDENCIAL

Conversávamos acerca do sofrimento, quando o orientador hindu que nos acompanhava

contou uma simplicidade infantil:

- O Anjo da Libertação desceu do Paraíso a este mundo, pousando num cômoro verdejante,

a reduzida distância do mar.

Aproximaram-se dele um melro, um abutre, uma tartaruga e uma borboleta.

Reconhecendo que essa era a assembléia de que podia dispor para a revelação que trazia,

o iluminado peregrino começou ali mesmo, a exalar as virtudes do Alto, convidando-os à

Vida Superior.

Com frases convincentes, esclareceu que o melro, guindando aos cimos de luz, transformarse-

ia num pombo alvo, que o abutre seria metamorfoseado numa ave celestial, que a

tartaruga receberia nova forma, suave e leve, em que lhe seria possível planar na imensidão

azul e que a borboleta converter-se-ia em estrela luminescente...

Os ouvintes assinalaram as promessas com emoção; no entanto, assim que o silêncio voltou

a reinar, o melro alegou:

-Anjo bom, escuse-me! Um ninho espera-me no arvoredo... Meus filhotes não me

entenderiam a ausência...

E afastou-se, apressado.

O abutre confessou em tom enigmático:

-Comovente é a vossa descrição do Plano Divino, entretanto, possuo interesses valiosos no

mundo. Preciso voar...

E partiu, batendo as asas, a fim de arrojar-se sobre carniça próxima.

A tartaruga moveu-se lentamente e explicou:

-Quisera seguir-vos, abandonando o cárcere sob o qual me arrasto no solo, contudo, tenho

meus ovos na praia...

E regressou pachorrenta, à habitação que lhe era própria.

A borboleta achegou-se ao pregador da bem-aventurança e disse delicada:

-Santo, não pode viajar convosco. Moro num tronco florido e meus parentes não me

desculpariam a fuga.

E tornou à frescura do bosque.

O anjo, que não podia violentá-los, marchou sozinho, para adiante...

A borboleta, porém, apenas avançara alguns metros, na volta a casa, viu-se defrontada por

hábil caçador que lhe cobiçava as asas brilhantes.

Após longa resistência, tentou alcançar a árvore em que residia, mas, perseguida,

presenciou a morte de alguns dos familiares que repousavam. Chorosa, buscou refugiar-se

em velha furna, sendo facilmente desalojada pelo implacável verdugo. Ensaiou, debalde,

esconder-se entre velhos barcos esquecidos na areia... Tudo em vão, porque o homem tenaz

era astucioso e sabia frustrar-lhe todas as tentativas de defesa, armando-lhe ciladas cada

vez mais inquietantes.

Quando a pobre vítima se sentia fraquejar, lembrou-se do Anjo da Libertação e voou ao

encontro dele.

O mensageiro divino recebeu-a, contente, e, oferecendo-lhe asilo nos próprios braços,

garantiu-lhe a salvação.

O narrador fez pequena pausa e considerou:

-O sofrimento é assim como um caçador providencial em nossas experiências. Sem ele, a

Humanidade não se elevaria à renovação e ao progresso. Quem se acomoda com os planos

inferiores, dificilmente consegue descortinar a Vida Mais Alta, sem o concurso da dor.

Saibamos, assim, tolerar a aflição e aproveitá-la. Quando a criatura se vê na condição da

borboleta aflita e desajustada, aprende a receber na Terra o socorro do céu.

Calou-se o mentor sábio, e, porque ninguém comentasse o formoso apólogo, passamos

todos a refletir.

10 - PARÁBOLA SIMPLES

Diversos aprendizes rodeavam o Senhor, em Cafarnaum, em discussão acesa, com respeito

ao poder da palavra, acentuando-lhes os bens e os males.

Propunham alguns o verbo contundente para a regeneração do mundo, enquanto outros

preconizavam a frase branda e compreensiva.

Reparando o tom de azedia nos companheiros irritadiços, o Mestre interferiu e contou uma

parábola simples.

¯ Certa feita ¯ narrou, com doçura ¯, o Gênio do Bem, atendente à prece de um lavrador

de vida singela, emitiu um raio de luz e insuflou-o sobre o coração dele, em forma de

pequenina observação carinhosa e estimulante, através de uma boca otimista. No peito do

modesto homem do campo, a fagulha acentuou-se, inflamando-lhe os sentimentos mais

elevados numa chama sublime de ideal do Bem, derramando-se para todas as pessoas que

povoavam a paisagem.

Em breve tempo, o raio minúsculo era uma fonte de claridade a criar serviço edificante em

todos os círculos do sítio abençoado; sob a sua atuação permanente, os trigais cresceram

com promessas mais amplas e a vinha robusta anunciava abundância e alegria.

Converteu-se o raio de luz em esperança e felicidade na alma dos lavradores e a seara bem

provida avançou, triunfal, do campo venturoso para todas as regiões que o cercavam, à

maneira de mensagem sublime de paz e fartura.

Muita gente ocorreu aquele recanto risonho e calmo, tentando aprender a ciência da

produção fácil e primorosa e conduziu para as zonas mais distantes os processos pacíficos

de esforço e colaboração, que o lume da boa vontade ali instalara no ânimo geral.

Ao fim de alguns poucos anos, o raio de luz transformara-se numa época de colheitas sadias

para a tranqüilidade popular.

O Mestre fez ligeiro intervalo e continuou:

¯Veio, porém, um dia em que o povo afortunado, orgulhando –se agora do poderio obtido

com o auxílio oculto da gratidão que devia à magnanimidade celeste e pretendeu humilhar

uma nação vizinha. Isso bastou para que grande brecha se abrisse à influência do Gênio do

Mal, que emitiu um estilete de treva sobre ao coração de uma pobre mulher do povo, por

intermédio de uma boca maldizente.

A infortunada criatura não mais sentiu a claridade interior da harmonia e deixou que o traço

de sombra se multiplicasse indefinidamente em seu íntimo de mãe enceguecida... Logo

após, despejou a sua provisão de trevas, já transbordante, na alma de dois filhos que

trabalhavam num extenso vinhedo e ambos, envenenados por pensamentos escuros de

revolta, facilmente encontraram companheiros dispostos a absorver-lhes os espinhos

invisíveis de indisciplina e maldade, incendiando vasta propriedade e empobrecendo vários

senhores de rebanhos e terras, dantes prósperos.

A perversa iniciativa encontrou vários imitadores e, em tempo curto, estabeleceram-se

estéreis conflitos em todo o reino.

Administradores e servos confiaram-se, desvairados, a duelo mortal, trazendo o domínio da

miséria que passou a imperar, detestada e cruel para todos.

O Divino amigo silenciou por minutos longos e acrescentou:

¯ Nesta parábola humilde, temos o símbolo da palavra preciosa e da palavra infeliz. Uma

frase de incentivo e bondade é um raio de luz, suscetível de erguer uma nação inteira, mas

uma sentença perturbadora pode transportar todo um povo à ruína...

Pensou, pensou e concluiu:

¯ Estejamos certos de que se lhe oferece à paisagem, a treva rola também, enegrecendo o

que vai encontrando. Em verdade, a ação é dos braços, mas a direção vem sempre do

pensamento, através da língua. E sendo todo homem filho de Deus e herdeiro dEle, na

criação e na extensão da vida, ouça quem tiver “ouvidos de ouvir”.

11 - SEARA DE ÓDIO

- Não! Não te quero em meus braços! - dizia a jovem mãe, a quem a Lei do Senhor conferira

a doce missão da maternidade, para o filho que lhe desabrochava do seio - não me furtarás a

beleza! Significas trabalho, renúncia, sofrimento...

- Mãe, deixa-me viver!... Suplicava-lhe a criancinha no santuário da consciência - estamos

juntos! Dá-me a bênção do corpo! Devo lutar e regenerar-me. Sorverei contigo a taça de suor

e lágrimas, procurando redimir-me... Completar-nos-emos. Dá-me arrimo, dar-te-ei alegria.

Serei o rebento de teu amor, tanto quanto serás para mim a árvore de luz, em cujos ramos

tecerei o meu ninho de paz e de esperança...

- Não, não...

- Não me abandones!

- Expulsar-te-ei.

- Piedade mãe! Não vês que procedemos de longe, alma com alma, coração a coração?

- Que importa o passado? Vejo em ti tão-somente o intruso, cuja presença não pedi.

- Esqueces-te, mãe, de que Deus nos reúne? Não me cerres a porta!...

- Sou mulher e sou livre. Sufocar-te-ei antes do berço...

- Compadece-te de mim!...

- Não posso. Sou mocidade e prazer, és perturbação e obstáculo.

- Ajuda-me!

- Auxiliar-te seria cortar em minha própria carne. Disputo a minha felicidade e a minha leveza

feminil...

- Mãe, ampara-me! Procuro o serviço de minha restauração...

Dia a dia, renovava-se o diálogo sem palavras, até que, quando a criança tentava vir à luz,

disse-lhe a mãezinha cega e infortunada, constrangendo-a a beber o fel da frustração:

- Torna à sombra de onde vens! Morre! Morre!

- Mãe, mãe! Não me mates! Protege-me! Deixa-me viver...

- Nunca!

- Socorre-me!

- Não posso.

Duramente repelido, caiu o pobre filho nas trevas da revolta e, no anseio desesperado de

preservar o corpo tenro, agarrou-se ao coração dela, que destrambelhou, à maneira de um

relógio desconsertado...

Ambos, então, ao invés de continuarem na graça da vida, precipitaram-se no despenhadeiro

da morte.

Desprovidos do invólucro carnal, projetaram-se no Espaço, gritando acusações recíprocas.

Achavam-se, porém, ligados um ao outro, pelas cadeias magnéticas de pesados

compromissos, arrastando-se por muito tempo, detestando-se e recriminando-se

mutuamente...

A sementeira de crueldade atraía a seara de ódio. E a seara de ódio lhes impunha nefasto

desequilíbrio.

Anos e anos desdobraram-se, sombrios e inquietantes, para os dois, até que, um dia,

caridoso Espírito de mulher recordou-se deles em preces de carinho e piedade, como a

ofertar-lhes o próprio seio. Ambos responderam, famintos de consolo e renovação, aceitando

o generoso abrigo...

Envolvidos pela caricia maternal, repousaram enfim.

Brando sono pacificou-lhes a mente dolorida.

Todavia, quando despertaram de novo na Terra, traziam o estigma do clamoroso débito em

que se haviam reunido, reaparecendo, entre os homens, como duas almas apaixonadas pela

carne, disputando o mesmo vaso físico, no triste fenômeno de um corpo único, sustentando

duas cabeças.

12 - O EXAME DA CARIDADE

Em populosa cidade do Brasil, os três amigos, Ribeiro, Pires e Martins, inspirados no

Espiritismo consolador, fundaram prestigioso núcleo doutrinário, exclusivamente consagrado

a estudos da caridade cristã.

Expressivo número de companheiros se lhes agregaram ao ideal e entidades amigas,

através de médiuns devotados à Causa, se revelaram simpáticas, ao trabalho que se

propunham desenvolver, colaborando brilhantemente para que a melhor compreensão do

Evangelho reinasse no grupo; dentre elas, salientava-se a benfeitora Custódia, que tomou a

si o encargo maternal de orientar os três companheiros que haviam entrelaçado esperanças

e aspirações, em torno da redentora virtude.

Irmã Custódia ensaiava as mais belas tarefas verbais, na condição de iluminada instrutora; e

Ribeiro, Pires e Martins completavam-lhe a obra, proferindo comentários luminosos, junto à

comunidade acolhedora.

Livros edificantes eram interpretados com inimitável brilho.

A protetora invisível aos trabalhadores encarnados rejubilava-se, feliz. Explicava-nos,

exultante, que encontrara, finalmente, uma sementeira promissora, que lhe dava direito à

mais ampla expectativa. A caridade, ali, seria, a breve tempo, árvore abençoada e frondosa,

resultando em fonte para sedentos, mesa farta aos famintos e refúgio calmo aos sofredores.

Conferências evangélicas multiplicavam-se em admiráveis torneios oratórios.

Convertera-se a casa num florilégio precioso.

Cada irmão na fé, amparando-se, sobretudo, nas convicções dos três fundadores,

incansáveis nas preleções reconfortantes, era portador de observações fraternas e

convincentes.

Inúmeros estudiosos visitaram, com enlevo, aquele reduto iluminativo e, ao se despedirem,

quase sempre tinham lágrimas copiosas, ante a emoção recolhida nos discursos sublimes.

Autores quais Richet, Delanne e Crookes, inclinados às perquirições cientificas, quando lidos

em semelhante parlamento de amor, soavam estranhamente, porque, no fundo, a instituição

era um templo exclusivamente dedicado ao evangelismo salvador.

Avizinhando-se o décimo aniversário da instalação, Custódia, a benfeitora, pediu que

fizessem orações comemorativas, especiais.

As irradiações da caridade do Alto visitariam os três pilares humanos daquela obra divina e,

por isso, convidava o trio a solenizar o acontecimento com palavras de louvor ao Mestre dos

mestres.

Ribeiro, Pires e Martins exultaram de contentamento.

Combinaram pronunciar três palestras diferentes, no dia indicado. Um deles falaria sobre o

tema “Caridade e Humanidade”, o segundo discorreria sobre “Caridade e Iluminação” e o

último sobre “Caridade e Harmonia”.

Chegada a noite de paz e luz, no templo ornado de flores, a trindade orientadora encantou os

ouvintes com as suas dissertações renovadoras e inspiradas.

Houve preces tocantes, de mistura com lágrimas insofreáveis.

A mentora espiritual da casa comunicou-se, através de conceitos construtivos e comoventes,

esclarecendo que, por haver reservado pequena tarefa para si mesma, durante as horas

próximas, tornaria ao agrupamento na semana seguinte, de maneira a apreciar os júbilos da

efeméride com a desejável amplitude.

E a notável sessão foi encerrada com indisfarçáveis sensações de ventura no espírito

coletivo.

Ribeiro, Pires e Martins, não cabendo em si de contentes, evitaram o bonde, para melhor se

entregarem à conversação íntima e longa, no retorno ao ambiente domestico.

Não haviam caminhado um quilômetro, quando foram defrontados por uma senhora de

humilde expressão. Não se lhe viam os traços fisionômicos, com suficiente nitidez, mas os

pés calçados pobremente, a roupa modesta e limpa e o chalé escuro infundiam-lhe dignidade

venerável.

Abordou-os, franca e reverente:

– Senhores! ajudem-me, em nome da caridade! Estou sozinha e é mais de meia-noite...

Tenho trabalho urgente em arrabalde próximo, entretanto, na posição em que me vejo, sou

desconhecida na cidade.

E, em tom súplice, acentuou:

– Qual dos três me concederá um abrigo até manhãzinha? Somente até o nascer do Sol...

Os cavalheiros entreolharam-se, assustadiços.

Ribeiro, constrangido, manifestou-se, hesitante:

– Infelizmente, não posso. Minha mulher não compreenderia.

Pires, encorajado, ajuntou:

– Eu também sinto dificuldade. Sem dúvida, estou pronto a praticar o bem; contudo, a

senhora, apesar de credora de todo o meu respeito, é mulher, e meus vizinhos não me

perdoariam, notando-lhe a presença, junto de mim...

Martins, por último, falou, firme:

– Por minha vez, nada posso fazer. Realmente não sou um homem sem lar. Minha família,

entretanto, não entenderia a concessão que a senhora está pedindo. Aliás, não é mesmo

razoável o que solicita a uma hora destas...

Não posso arriscar...

Enorme silêncio abateu-se, ali, sobre os quatro, mas Ribeiro lembrou que se cotizassem,

oferecendo-se-lhe um leito, por algumas horas, num hotel barato. Cada qual ofereceu cinco

cruzeiros e a senhora afastou-se, com palavras de agradecimento.

Acontece, no entanto, que nem Ribeiro, nem Pires, nem Martins conseguiram repousar.

Preocupados com o incidente, ergueram-se, antes do amanhecer, e encontraram-se,

infinitamente surpreendidos, à porta da pensão modesta que haviam indicado à forasteira.

Algo lhes feria a consciência e o coração. Desejavam saber como havia passado a senhora

que lhes dirigira a palavra com tão grande confiança e intimidade. Não conseguiram, porém,

a mínima notícia, até que, na reunião da semana seguinte, consoante a promessa que

formulara, Custódia apareceu e, muito bem humorada, através do médium, explicou ao trio

assombrado:

– Sim, meus amigos, aquela senhora era eu mesma.

Com a graça de Jesus, materializei-me, em plena rua, a fim de examinar-lhes o progresso

em matéria de caridade.

Reparei que para vocês ainda é muito difícil abrir a porta do lar. Mas, se com dez anos de

estudo, puderam desatar a bolsa e ceder quinze cruzeiros, sentir-me-ei muito feliz se

conseguirem abrir o coração ao verdadeiro amor fraterno, daqui a cem anos...

Sorriu, expressivamente, embora um tanto desapontada, e rematou:

– O essencial, porém, é não interromperem, de nenhum modo, o estudo e o trabalho na

direção do Alto...

Não há motivo para desânimo!

Vamos continuar.

13 - LOUVORES RECUSADOS

Conta-se no plano espiritual que Vicente de Paulo oficiava num templo aristocrático da

França, em cerimônia de grande gala, à frente de ricos senhores coloniais, capitães do mar,

guerreiros condecorados, políticos ociosos e avarentos sórdidos, quando, a certa altura da

solenidade, se verificou à frente do altar inesperado louvor público.

Velho corsário abeirou-se da sagrada mesa eucarística e bradou, contrito:

– Senhor, agradeço-te os navios preciosos que colocaste em meu roteiro. Meus negócios

estão prósperos, graças a ti, que me designaste boa presa. Não permitas, ó Senhor, que teu

servo fiel se perca de miséria. Dar-te-ei valiosos dízimos. Erguerei uma nova igreja em tua

honra e tomo os presentes por testemunhas de meu voto espontâneo.

Outro devoto adiantou-se e falou em voz alta:

– Senhor, minhalma freme de júbilo pela herança que enviaste à minha casa pela morte de

meu avô que, em outro tempo, te serviu gloriosamente no campo de batalha. Agora

podemos, enfim, descansar sob a tua proteção, olvidando o trabalho e a fadiga.

Seja louvado o teu nome para sempre.

Um cavalheiro maduro, exibindo o rosto caprichosamente enrugado, agradeceu:

– Mestre Divino, trago-te a minha gratidão ardente pela vitória na demanda provincial. Eu

sabia que a tua bondade não me desprezaria. Graças ao teu poder, minhas terras foram

dilatadas. Construirei por isso um santuário em tua memória bendita, para comemorar o

triunfo que me conferiste por justiça.

Adornada senhora tomou posição e exclamou:

– Divino Salvador, meus campos da colônia distante, com o teu auxílio, estão agora

produzindo satisfatoriamente. Agradeço os negros sadios e submissos que me mandaste e,

em sinal de minha sincera contrição, cederei à tua igreja boa parte dos meus rendimentos.

Um homem antigo, de uniforme agaloado, acercou-se do altar e clamou estentórico :

– A ti, Mestre da Infinita Bondade, o meu regozijo pelas gratificações com que fui quinhoado.

Os meus latifúndios procedem de tua bênção. É verdade que para preservá-los sustentei a

luta e alguns miseráveis foram mortos, mas quem senão tu mesmo colocaria a força em

minhas mãos para a defesa indispensável? Doravante, não precisarei cogitar do futuro... De

minha poltrona calma, farei orações fervorosas, fugindo ao imundo intercâmbio com os

pecadores. Para retribuir-te, ó Eterno Redentor, farei edificar, no burgo onde a minha fortuna

domina, um templo digno de tua invocação, recordando-te os sacrifícios na cruz!

Os agradecimentos continuavam, quando Vicente de Paulo, assombrado, reparou que a

imagem do Nazareno adquiria vida e movimento...

Extático, viu-se à frente do próprio Senhor, que desceu do altar florido, em pranto.

O abnegado sacerdote observou que Jesus se afastava a passo rápido; contudo, em se

sentindo junto dele, em se, sentindo e perguntou-lhe, igualmente em lágrimas: – Senhor,

por que te afastas de nós?

O Celeste Amigo ergueu para o clérigo a face melancólica e explicou:

– Vicente, sinto-me envergonhado de receber o louvor dos poderosos que desprezam os

fracos dos homens válidos que não trabalham, dos felizes que abandonam os infortunados...

O interlocutor sensível nada mais ouviu. Cérebro turbilhão desmaiou, ali mesmo, diante da

assembléia intrigada, sendo imediatamente substituído, e, febril, delirou alguns dias,

prisioneiro de visões que ninguém entendeu.

Quando se levantou da incompreendida enfermidade vestiu-se com a túnica da pobreza,

trabalhando incessantemente na caridade, até ao fim de seus dias.

Os adoradores do templo, entretanto, continuaram agradecendo os troféus de sangue, ouro e

mentira, diante do mesmo altar e afirmaram que Vicente de Paulo havia enlouquecido.

14 - A LIÇÃO DO DISCERNIMENTO

Finda a cena brutal, em que o povo pretendia lapidar a mulher infeliz, na raça pública, Pedro,

que seguia o Senhor, de perto, interpelou-o, zelosamente:

- Mestre, desculpando os erros das mulheres que fogem ao ministério do lar, não estaremos

oferecendo apoio à devassidão? Abrir os braços no espetáculo deprimente que acabamos de

ver não será proteger o pecado?

Jesus meditou, meditou... e respondeu:

- Simão, seremos sempre julgados pela medida com que julgarmos os nossos semelhantes.

- Sim - clamou o apóstolo, irritado -, compreendo a caridade que nos deve afastar dos juízos

errôneos, mas porventura conseguiremos viver sem discernir? Uma pecadora, trazida ao

apedrejamento, não perturbará a tranqüilidade das famílias? Não representará um quadro de

lama para as crianças e para os jovens? Não será uma excitação à prática do mal?

Ante as duras interrogações, o Messias observou, sereno:

- Quem poderá examinar agora o acontecimento, em toda a extensão dele?

Sabemos, acaso, quantas lágrimas terá vertido essa desventurada mulher até à queda fatal

no grande infortúnio? Quem terá dado a esse pobre coração feminino o primeiro impulso

para o despenhadeiro? E quem sabe, Pedro, essa desditosa irmã terá sido arrastada à

loucura, atendendo a desesperadoras necessidades?

O discípulo, contudo, no propósito de exalçar a justiça, acrescentou:

- De qualquer modo, a corrigenda é inadiável imperativo. Se ela nos merece compaixão e

bondade, há então, noutros setores, o culpado ou os culpados que precisamos punir. Quem

terá provocado a cena desagradável a que assistimos?

Geralmente, as mulheres desse naipe são reservadas e fogem à multidão... Que motivos

teriam trazido essa infeliz ao clamor da praça?

Jesus sorriu, complacente, e tornou:

- Quem sabe a pobrezinha andaria à procura de assistência?

O pescador de Cafarnaum acentuou, contrariado:

- O responsável devia expiar semelhante delito. Sou contra a desordem e na gritaria que

presenciamos estou convencido de que o cárcere e os açoites deveriam funcionar...

Nesse ponto de entendimento, velha mendiga que ouvia a conversação, caminhando

vagarosamente, quase junto deles, exclamou para Simão, surpreendido:

- Galileu bondoso, herdeiro da fé vitoriosa de nossos pais, graças sejam dadas a Deus,

nosso Poderoso Senhor! A mulher apedrejada é filha de minha irmã paralítica e cega.

Moramos nas vizinhanças e vínhamos ao mercado em busca de alimento. Abeirávamo-nos

daqui, quando fomos assaltadas por um rapaz que, depois de repelido por ela, em luta corpo

a corpo, saiu indicá-la ao povo para a lapidação, simplesmente porque minha infeliz

sobrinha, digna de melhor sorte, não tem tido até hoje uma vida regular... Ambas estamos

feridas e, com dificuldade, tornaremos para a casa... Se é possível, galileu generoso,

restabelece a verdade e faze a justiça!

- E onde está o miserável? - gritou Simão, enérgico, diante do Mestre, que o seguia,

bondoso.

- Ali!... Ali!... - informou a velhinha, com júbilo de uma criança reconduzida repentinamente à

alegria. E apontou uma casa de peregrinos, para onde o apóstolo se dirigiu, acompanhado

de Jesus que o observava, sereno.

Por trás da antiga porta, escondia-se um homem, trêmulo de vergonha.

Pedro avançou de punhos cerrados, mas, a breves segundos, estacou, pálido e abatido.

O autor da cena triste era Efraim, filho de Jafar, pupilo de sua sogra e comensal de sua

própria mesa.

Seguira o Messias com piedosa atitude, mas Pedro bem reconhecia agora que o irmão

adotivo de sua mulher guardava intenção diferente.

Angustiado, em lágrimas de cólera e amargura, Simão adiantou-se para o Cristo, à maneira

do menino necessitado de proteção, e bradou:

- Mestre, Mestre!... Que fazer?!...

Jesus, porém, acolheu-o amorosamente nos braços e murmurou:

- Pedro, não julguemos para não sermos julgados. Aprendamos, contudo, a discernir.

15 - O ENIGMA DA OBSESSÃO

Comentávamos em circulo íntimo o inquietante enigma da obsessão na Terra, alinhando

observações e apontamentos.

Por que motivo se empenham criaturas encarnadas e desencarnadas em terríveis duelos no

santuário mental? Que a vítima arrancada ao corpo, em delito recente, prossiga imantada ao

criminoso, quando a treva da ignorância lhe situa o espírito a distância do perdão, é

compreensível, mas como interpretar os processos de metodizada perseguição no tempo?

Como entender o ódio de certas entidades, em torno de crianças e jovens, de enfermos e

velhinhos? Por que a ofensiva persistente dos gênios perversos, através de reencarnações

numerosas e incessantes?

No mundo, os assalariados do mal comprometem-se ao redor de escuros objetivos...

Há quem se renda às tentações do dinheiro, do poder político, das honras sociais e dos

prazeres subalternos, mas em derredor de que razões lutam as almas desenfaixadas da

carne se para elas semelhantes valores convencionais de posse não mais existem?

Longa série de “porquês” empolgava-nos a imaginação, quando Menés, otimista ancião do

nosso grupo, à maneira de carinhoso avô, falou bem humorado:

– A propósito do assunto, contarei a vocês um apólogo que nos pode conferir alguma idéia

acerca do nosso imenso atraso moral.

E, tranqüila, narrou:

– Em épocas recuadas, numa cidade que os séculos já consumiram, os bois sentiram que

também eram criaturas feitas por nosso Pai Celestial, não obstante inferiores aos homens.

Sentindo essa verdade, começaram a observar a crueldade com que eram tratados. O

homem que, pela coroa de inteligência, devia protegê-los e educá-los, deles se valia para

ingratos serviços de tração, sob golpes sucessivos de aguilhões e azorragues. Não se

contentando com essa forma de exploração, escravizava-lhes as companheiras, furtandolhes

o leite dos próprios filhos, reservando-lhes à família e a eles próprios horrível destino no

açougue, Se alguns deles hesitavam no trabalho comum, sofrendo com a tuberculose ou

com a hepatite, eram, de pronto, encaminhados à morte e ninguém lhes respeitava o martírio

final. Muitas pessoas compravam-lhes as vísceras cadavéricas ainda quentes, tostando-as

ao fogo para churrascos alegres, enquanto outras lhes mergulhavam os pedaços sangrentos

em panelas com água temperada, convertendo-os em saborosos quitutes para bocas

famintas. Não conseguiam nem mesmo o direito à paz do túmulo, porque eram sepultados,

aqui e ali, em estômagos malcheirosos e insaciáveis. Apesar de trabalharem

exaustivamente para o homem, não conseguiam a mínima recompensa, de vez que, depois

de abatidos, eram despojados dos próprios chifres e dos próprios ossos, para fortalecimento

da indústria... Magoados e aflitos, começaram a reclamar; contudo, os homens, embora

portadores de belas virtudes potenciais, receavam viver sem o cativeiro dos bois. Como

enfrentarem, sozinhos, as duras tarefas do arado? Como sustentarem a casa sem o leite?

Como garantirem a tranqüilidade do corpo sem a carne confortadora dos seres bovinos? O

petitório era simpático, mas os bichos se mostravam tão nédios e tão tentadores que

ninguém se arriscava à solução do problema. Depois de numerosas súplicas sem resposta,

as vítimas da voracidade humana recorreram aos juízes; entretanto, os magistrados

igualmente cultivavam a paixão do bife e do chouriço e não sabiam servir à Justiça, sem as

utilidades do leite e do couro dos animais. Assim, o impasse permaneceu sem alteração e

qualquer touro mais arrojado que se referisse ao assunto, a destacar-se da subserviência em

que se mantinha o rebanho, era apedrejado, espancado e conduzido, irremediavelmente, ao

matadouro...

O venerável amigo fez longa pausa e acrescentou:

– Essa é a luta multissecular entre encarnados e desencarnados que se devotam ao

vampirismo. Sem qualquer habilitação para a vida normal, fora do vaso físico, temem a

grandeza do Universo e recuam apavorados, ante a glória do Espaço Infinito, procurando a

intimidade com os irmãos ainda envolvidos na carne, cujas energias lhes constituem precioso

alimento à ilusão. E desse modo que as enfermidades do corpo e da alma se espalham nos

mais diversos climas. Os homens, que se julgam distantes da harmonia orgânica sem o

sacrifício dos animais, são defrontados por gênios invisíveis que se acreditam incapazes de

viver sem o concurso deles. O enigma da obsessão, no fundo, é problema educativo.

Quando o homem cumprir em si mesmo as leis superiores da bondade a que teoricamente

se afeiçoa, deixará de ser um flagelo para a Natureza, convertendo-se num exemplo de

sublimação para as entidades inferiores que o procuram... Então, a consciência particular

inflamar-se-á na luz da consciência cósmica e os tristes espetáculos da obsessão recíproca

desaparecerão da Terra... Até lá – concluiu, sorrindo –, reclamar contra a atuação dos

Espíritos delinqüentes, conservando em si mesmo qualidades talvez piores que as deles, é

arriscar-se, como os bois, à desilusão e ao espancamento. O ímã que atrai o ferro não atrai a

luz. Quem devora os animais, incorporando-lhes as propriedades ao patrimônio orgânico,

deve ser apetitosa presa dos seres que se animalizam. Os semelhantes procuram os

semelhantes. Esta é a Lei.

Afastou-se Menés, com a serenidade sorridente dos sábios, e a nossa assembléia, dantes

excitada e falastrona, calou-se, de repente, a fim de pensar.

16 - O COMPANHEIRO DOS ANJOS

Quando Benjamim Paixão atingiu as bodas de prata com a filosofia Consoladora dos

Espíritos, experimentou indizível amargura.

Vinte e cinco anos de casamento com o Espiritismo Cristão e ainda se reconhecia

impossibilitado de partilhar-lhe os serviços.

Em seu modo de ver, fora defrontado, em toda a parte, pela incompreensão, pelo desengano

e pela discórdia.

Jamais pudera firmar-se em agrupamento algum.

Em razão disso, nessa noite, ao invés de procurar o clube, segundo o velho hábito, dirigiu-se

a certa instituição, em que pontificavam a boa-vontade e a dedicação de Malásio, venerando

guia espiritual.

Depois da prece de abertura dos trabalhos e quando o abnegado amigo invisível passou a

comandar a assembléia, por intermédio de uma senhora, Benjamim exclamou em voz súplice

:

– Malásio, a data de hoje assinala o vigésimo quinto aniversário de meu ingresso na

Doutrina. Prestimoso irmão, oriente-me, ensine-me! Onde encontrarei a comunidade que se

afine comigo? Onde estão aqueles com os quais devo realizar a tarefa que me cabe?

A entidade benevolente meditou alguns minutos e acentuou, sem qualquer sinal de

reprimenda:

– Vinte e cinco anos de Espiritismo Evangélico, sem trabalho definido, é condição muito

grave para a alma.

E modificando o tom de voz, observou:

– Benjamim, alguns passos além de seu lar, há um templo de caridade...

Paixão interceptou-lhe a palavra e clamou:

– Já sei. E um posto avançado de personalismo em dissidências constantes. Entre os que ali

ensinam e aprendem, não se sabe qual o pior.

O guia refletiu, por instantes, e obtemperou:

– Dentre seus amigos você tem o Pereira, que vem trabalhando, com valor, a benefício dum

orfanato...

O interlocutor aparteou, irreverente:

– Ah! o Pereira! Nunca vi homem mais agarrado ao dinheiro. É avarento sórdido.

Melásio não se deu por aborrecido e aventou:

– Não sei se já entrou em contacto com os serviços de Dona Soledade, a estimada médium

da pobreza.

Reside justamente no caminho de sua repartição...

Benjamim fixou um gesto de enfado e desabafou:

– Dona Soledade mata a paciência de qualquer um. É mulher despótica e arbitrária. Não

posso entender a sua referência.

O benfeitor silenciou, por momentos, e voltou a dizer:

– O irmão Carvalho, seu vizinho, organizou interessantes atividades de cura para obsidiados.

Quem sabe...

Paixão, contudo, alegou, irônico:

– O Carvalho é homem de moral duvidosa. É mesmo incrível não se saiba, na vida espiritual,

que ele possui mais de uma família.

O guia, porém, considerou com a mesma calma :

– A senhora Silva, não longe de sua residência, vem protegendo os velhos de um asilo e...

– Aquela dama é um poço de vaidade – atalhou Benjamim, intempestivo –, entrincheirou-se

dentro do próprio “eu” e não aceita a cooperação de ninguém.

O tolerante amigo ponderou então:

– Em seu trabalho, você conhece o Ladeira, que mantém valioso culto doméstico do

Evangelho, junto ao qual muitos doentes encontram alívio...

– O Ladeira? – gritou Paixão, sarcástico. – Aquilo é a petulância em pessoa. Absorveu o

Espiritismo todo.

A Doutrina é ele só.

Com invejável bondade, o condutor da reunião interrogou cristãmente:

– Conhece você as sessões do Soares, em seu bairro?

– Há muito tempo – redargüiu, azedamente, o descortês visitante. – Soares é um

espertalhão. Quando os guias da casa não aparecem, dispõe-se a substituí-los, sem

qualquer escrúpulo. Vive de infindáveis trapaças, morando num palácio, à custa da

ingenuidade alheia.

Nesse ponto do diálogo, Melásio entrou em profundo silêncio, e, não se acreditando vencido

na argumentação, Benjamim voltou a pedir em voz enternecedora:

– Dedicado amigo, ajude-me! Preciso trabalhar e progredir na obra da verdade e do bem.

Não me negue as diretrizes necessárias!...

O benfeitor, contudo, embora se mostrasse sorridente, respondeu, com inflexão de energia:

– Paixão, ofereci a você sete sugestões de trabalho que foram recusadas. Segundo os

ensinamentos de que dispomos, o remédio se destina ao doente e o socorro àqueles que o

reclamam pela posição de ignorância ou sofrimento. O Espiritismo solicita o esforço e o

concurso dos homens de boa-vontade e de entendimento fraternal que se amparem uns aos

outros; entretanto, ao que me parece, você é o companheiro dos anjos e os anjos, meu

amigo, estão muito distanciados de nós. É provável possamos colaborar no roteiro de ação

para o seu Espírito, contudo, é mais razoável que você nos procure quando tiver duas asas.

17 - O HOMEM QUE NÃO SE IRRITAVA

Existiu um rei, amigo da sabedoria, que, depois de grande trabalho para subjugar a natureza

inferior, convidou um filósofo para socorrê-lo no aperfeiçoamento da palavra. Conseguira

indiscutível progresso na arte de sublimar-se. Fizera-se portador de primorosa cultura e,

tanto no ministério público, quanto na vida privada, caracterizava-se por largos gestos de

bondade e inteligência. Fazia quanto lhe era possível para exercer a justiça, segundo os

padrões da reta consciência, e demonstrava inexcedível carinho na defesa e proteção do

povo, através de reiteradas distribuições de lã e trigo, a fim de que as pessoas menos

favorecidas pela fortuna não sofressem frio ou fome. Não sabia acumular tesouros

exclusivamente para si e, em razão disso, obedecendo às virtudes sociais de que se fizera o

exemplo vivo, instituíra escolas e abrigos e incentivara a indústria e a lavoura, desejando que

todos os súditos, ainda os mais humildes, encontrassem acesso à educação e à

prosperidade.

No circulo das manifestações pessoais, contudo, o valoroso monarca se sentia atrasado e

hesitante.

Não sabia disfarçar a cólera, não continha a franqueza rude e nem sopitava o mau humor.

Admirado e querido pelas qualidades sublimes que pudera fixar na personalidade, sofria, no

entanto, a mágoa e a desconfiança de muitos que passaram a temer-lhe a frase

contundente.

Interessado, porém, na própria melhoria, solicitou ao filósofo que lhe acompanhasse a lide

cotidiana.

Quando se descontrolava, caindo nas amargas conseqüências do verbo impensado, o

orientador observava, com humildade :

– Poderoso senhor, tenha paciência e continue trabalhando no aprimoramento das próprias

manifestações.

A expressão serena e sábia revela grandeza interior que reclama tempo para ser

devidamente consolidada. Quem alcança a ciência de falar, pode conviver com os anjos,

porque a palavra é, sem dúvida, a continuação de nós mesmos.

O monarca não se conformava e, em desespero passivo, confiava-se a rigoroso silêncio, que

prejudicava consideravelmente os negócios do reino.

De semelhante posição vinha roubá-la o filósofo, advertindo, respeitoso:

– Amado soberano, a extrema quietude pode traduzir traição aos nossos deveres. A pretexto

de nos reformarmos espiritualmente, não será lícito desprezar os nossos compromissos com

o progresso comum. Fale sempre e não desdenhe agir! O verbo é a projeção do pensamento

criador.

O rei voltava a conversar, beneficiando o extenso domínio que lhe cabia dirigir, mas lá

chegava outro momento em que se perdia na indignação excessiva, humilhando e ferindo

ministros e vassalos a que desejaria ajudar sinceramente.

Lamentando-se, aflito, vinha o filósofo conselheiral, afirmando, prestimoso:

– Grande soberano, tenha paciência consigo mesmo.

O reajustamento da alma não é obra para um dia. Prossiga, esforçando-se. Toda realização

pede o concurso abençoado das horas... O rio deixaria de existir sem a congregação das

gotas... Guarde calma, muita calma e não desanime...

O monarca, no entanto, desacoroçoado, depois de regular experimentação com o filósofo,

exonerou-o das funções que ocupava e expediu doía emissários às suas províncias extensas

para que lhe trouxessem a palácio algum homem incapaz de se irritar. Pretendia entrar em

contacto com o espírito mais equilibrado de suas terras, a fim de melhor orientar-se no

autoburilamento.

Os mensageiros iniciaram as investigações, mas impacientavam-se desiludidos. O homem

que observavam ponderado na via pública era colérico no lar. Quem se revelava gentil em

casa, costumava irar-se na rua. Alguns se mostravam distintos e agradáveis junto da família

consangüínea, todavia, eram azedos no trato social.

Diversos exibiam formosa máscara de serenidade com os estranhos, no entanto, dirigiam-se

aos domésticos com deplorável aspereza.

Depois de trinta dias de porfiada pesquisa, descobriram, jubilosos, o homem que nunca se

exasperava.

Seguiram-no, cuidadosamente, em toda parte.

Nunca falava alto e mantinha silêncio comovedor, no domicílio que lhe era próprio e fora

dele.

Durante quatro semanas foi examinado sob atenção vigilante, não perdendo um til na

conduta irrepreensível.

Trabalhava, movimentava-se, alimentava-se e atendia aos menores deveres,

imperturbavelmente.

Apressaram-se os mensageiros em levar a boa-nova ao monarca, e o rei, satisfeito,

convocou assessores e áulicos de sua casa para receber a personagem admirável, com a

dignidade que lhe era devida.

O vassalo venturoso foi trazido à real presença, entretanto, quando o soberano lhe dirigiu a

palavra, esperando encontrar um anjo num corpo de carne, verificou, sob indefinível

assombro, que o homem incapaz de irritar-se era mudo.

Sob o respeito manifesto de todos, o rei sorriu, desapontado, e mandou buscar novamente o

filósofo, resignando-se a ter paciência consigo mesmo, a fim de aprender a conquistar-se

pouco a pouco.

18 - NO CAMINHO DO AMOR

Em Jerusalém, nos arredores do Templo, adornada mulher encontrou um nazareno, de olhos

fascinantes e lúcidos, de cabelos delicados e melancólicos sorriso, e fixou-o estranhamente.

Arrebatada na onda de simpatia a irradiar-se dele, corrigiu as dobras da túnica muito alva;

colocou no olhar indizível expressão de doçura e, deixando perceber, nos meneios do corpo

frágil, a visível paixão que a possuíra de súbito, abeirou-se do desconhecido e falou, ciciante:

-Jovem, as flores de Séforis encheram-me a ânfora do coração com deliciosos perfumes.

Tenho felicidade ao teu dispor, em minha loja de essências finas...

Indicou extensa vila, cercada de rosas, à sombra de arvoredo acolhedor, e ajuntou:

-Inúmeros peregrinos cansados me buscam a procura do repouso que reconforta. Em minha

primavera juvenil, encontram o prazer que representa a coroa da vida. E' que o lírio do vale

não tem a carícia dos meus braços e a romã saborosa não possui o mel de meus lábios.

Vem e vê! Dar-te-ei leito macio, tapetes dourados e vinho capitoso ... Acariciar-te-ei a fronte

abatida e curar-te-ei o cansaço da viagem longa! Descansarás teus pés em água de nardo e

ouvirás, feliz, as harpas e os alaúdes de meu jardim. Tenho a meu serviço músicos e

dançarinas, exercitados em palácios ilustres!...

Ante a incompreensível mudez do viajor, tornou, súplice, depois de leve pausa:

-Jovem, porque não respondes? Descobri em teus olhos diferentes chama e assim procedo

por amar-te. Tenho sede de afeição que me complete a vida. Atende! Atende!...

Ele parecia não perceber a vibração febril com que semelhantes palavras eram pronunciadas

e, notando-lhe a expressão fisionômica indefinível, a vendedora de essências acrescentou

uma tanto agastada:

-Não virás?

Constrangido por aquele olhar esfogueado, o forasteiro apenas murmurou:

-Agora, não. Depois, no entanto, quem sabe?!...

A mulher, ajaezada de enfeites, sentindo-se desprezada, prorrompeu em sarcasmos e partiu.

Transcorridos dois anos, quando Jesus levantava paralítico, ao pé do Tanque de Betesda,

venerável anciã pediu-lhe socorro para infeliz criatura, atenazada de sofrimento.

O Mestre seguiu-a, sem hesitar.

Num pardieiro denegrido, um corpo chagado exalava gemido angustioso.

A disputada marcadora de aromas ali se encontrava carcomida de úlceras, de pele

enegrecida e rosto disforme. Feridas sanguinolentas pontilhavam-lhe a carne, agora

semelhante ao esterco da terra. Exceção dos olhos profundos e indagadores, nada mais lhe

restava da feminilidade antiga. Era uma sombra leprosa, de que ninguém ousava aproximar.

Fitou o Mestre e reconheceu-o.

Era o mesmo mancebo nazareno, de porte sublime e atraente expressão.

O Cristo estendeu-lhe os braços, tocados de intraduzível ternura e convidou:

-Vem a mim, tu que sofres! Na Casa de Meu Pai, nunca se extingue a esperança.

A interpelada quis recuar, conturbada de assombro, mas não conseguiu mover os próprios

dedos, vencida de dor.

O Mestre, porém, transbordando compaixão, prosternou-se fraternal, e conchegou-a, de

manso...

A infeliz reuniu todas as forças que lhe sobravam e perguntou, em voz reticenciosa e dorida

-Tu?... O Messias nazareno?... O Profeta que cura, reanima e alivia?!... Que viste fazer, junto

de mulher tão miserável quanto eu?

Ele, contudo, sorriu benevolente, retrucando apenas:

-Agora, venho satisfazer-te os apelos.

E, recordando-lhe a palavra do primeiro encontro, acentuou, compassivo:

-Descubro em teus olhos diferentes chama e assim procedo por amar-te

19 - A DIVINA VISÃO

Muitos anos orara certa devota, implorando uma visão do Senhor.

Mortificava-se. Aflitivas penitências alquebraram-lhe o corpo e a alma. Exercitava não

somente rigorosos jejuns. Confiava-se a difícil adestramento espiritual e entesourara no

íntimo preciosas virtudes cristãs. Em verdade, a adoração impelira-a ao afastamento do

mundo. Vivia segregada, quase sozinha. Mas, a humildade pura lhe constituía cristalina

fonte de piedade. A oração convertera-se-lhe na vida em luz acesa. Renunciara às posses

humanas. Mal se alimentava. Da janela ampla de seu alto aposento, convertido em

genuflexório, fitava a amplidão azul, entre preces e evocações. Muitas vezes notava que

largo rumor de vozes vinha de baixo, da via pública. Não se detinha, porém, nas tricas dos

homens. Aprazia-lhe cultivar a fé sem mácula, faminta de integração com o Divino Amor.

Em muitas ocasiões, olhos lavados em lágrimas inquiria, súplice, ao Alto:

- Mestre, quando virás?

Findo o colóquio sublime, voltava aos afazeres domésticos. Sabia consagrar-se ao bem das

pessoas que lhe eram queridas. Carinhosamente distribuía a água e o pão à mesa. Em

seguida, entregava-se a edificante leitura de páginas seráficas. Mentalizava o exemplo dos

santos e pedia-lhes força para conduzir a própria alma ao Divino Amigo.

Milhares de dias alongaram-lhe a expectação.

Rugas enormes marcavam-lhe, agora, o rosto. A cabeleira, dantes basta e negra, começava

a encanecer.

De olhos pousados no firmamento, meditava sempre, aguardando a Visita Celestial.

Certa manhã ensolarada, sopitando a emoção, viu que um ponto luminoso se formara no

Espaço, crescendo... Crescendo... Até que se transformou na excelsa figura do Benfeitor

Eterno.

O Inesquecível Amado como que lhe vinha ao encontro.

Que preciosa mercê lhe faria o Salvador? Arrebatá-la-ia ao paraíso? Enriquecê-la-ia com o

milagre de santas revelações?

Extática, balbuciando comovedora súplica, reparou, no entanto, que o Mestre passou junto

dela, como se lhe não percebesse a presença. Entre o desapontamento e a admiração, viu

que Jesus parara mais adiante, na intimidade com os pedestres distraídos.

Incontinente, contendo a custo o coração no peito, desceu até à rua e, deslumbrada, abeirouse

dele e rogou, genuflexa:

- Senhor, digna-te receber-me por escrava fiel!... Mostra-me a tua vontade! Manda e

obedecerei!...

O Embaixador Divino afagou-lhe os cabelos salpicados de neve e respondeu:

- Ajuda-me aqui e agora!... Passará, dentro em pouco, pobre menino recém-nascido. Não

tem pai que o ame na Terra e nem lar que o reconforte. Na aparência, é um rebento infeliz

de apagada mulher. Entretanto, é valioso trabalhador do Reino de Deus, cujo futuro nos

cabe prevenir. Ajudemo-lo, bem como a tantos outros irmãos necessitados, aos quais

devemos amparar com o nosso amor e dedicação.

Logo após, por mais se esforçasse, ela nada mais viu.

O Mestre como que se fundira na neblina esvoaçante...

De alma renovada, porém, aguardou o momento de servir. E, quando a infortunada mãe

apareceu, sobraçando um anjinho enfermo, a serva do Cristo socorreu-a, de pronto, com

alimentação adequada e roupa agasalhante.

Desde então, a devota transformada não mais esperou por Jesus, imóvel e zelosa, na janela

do seu alto aposento. Depois de prece curta, descia para o trabalho à multidão

desconhecida, na execução de tarefas aparentemente sem importância, fosse para lavar a

ferida de um transeunte, para socorrer uma criancinha doente, ou para levar uma palavra de

ânimo ou consolo.

E assim procedendo, radiante, tornou a ver, muita vezes, o Senhor que lhe sorria

reconhecido...

20 - IDÉIAS

Otávio Pereira, antigo orientador da sementeira evangélica, presidia simpática associação

espiritista. Certa feita, violenta reação lhe assaltou a direção pacífica e produtiva.

– Aquelas diretrizes “carro de boi” – criticavam alguns – não serviam.

– Era necessário criar vida nova, dentro da Instituição, projetando-a além das quatro paredes

– pontificavam outros.

– Otávio é orientador antiquado – asseveravam muitos – e vive circunscrito a preces, passes,

comentários religiosos e sessões invariáveis.

Surpreendido, mas sereno, Pereira assentou medidas para a realização de uma assembléia,

onde os companheiros pudessem opinar livremente.

Concordava com os méritos do movimento e ele mesmo – repetia bondoso e humilde – seria

o primeiro a colaborar na renovação imprescindível.

Constituída a grande reunião, o velho condutor assumiu a presidência dos trabalhos e abriu o

debate franco, rogando aos amigos expusessem as idéias de que se faziam portadores.

O primeiro a falar foi o Senhor Fonseca que, enxugando frequentemente o suor da larga

testa, expôs o plano de um orfanato modelar, através do qual a agremiação pudesse

influenciar o ânimo do povo.

Finda a explanação veemente e florida, Pereira indagou, sem afetação, se o autor da idéia

estava disposto a dirigir-lhe a realização, mas Fonseca afirmou, sem preâmbulos, que não

contava com tempo para isso. Era empregado de uma companhia de seguros, e oito bocas,

em casa, aguardavam dele o pão de cada dia.

Em seguida, levantou-se Dona Malvina e falou largamente sobre a conveniência de

fundarem uma escola, à altura moral da casa, com setores de alfabetização e ensino

profissional.

Interpelada, porém, pelo orientador, quanto ao empenho de sua responsabilidade feminina

no empreendimento, exclamou, célere:

– Oh! eu? que graça! Tenho idéias, mas não tenho forças... Sou uma pecadora, um Espírito

delinqüente! Não tenho capacidade para ajudar ninguém.

Logo após, toma a palavra o Senhor Fernandes, que encareceu a edificação de um

departamento para a cura de obsidiados; contudo, quando Pereira lhe pediu aceitasse a

incumbência da orientação, Fernandes explicou, desapontado:

– A idéia é minha, mas eu não disse que posso executá-la. Estou excessivamente fraco e,

além disso, sinto-me inapto. Sou um doente, e há muito tempo estou de pé, em razão do

socorro da Misericórdia Divina.

Mal havia terminado, ergueu-se o irmão Ferreira, que lembrou a organização de um trabalho

metódico de assistência aos enfermos e necessitados, com uma pessoa responsável e

abnegada à frente da iniciativa.

Quando pelo mentor da instituição foi consultado sobre as probabilidades de sua atuação

pessoal no feito em perspectiva, Ferreira informou, sem detença:

– Minha idéia resultou de inspiração do Alto, entretanto, sou portador de um carma pesado.

Tenho a resgatar muitos crimes de outras encarnações. Não posso, não tenho

merecimento...

E, de cérebro a cérebro, as idéias pululavam, sublimes e coloridas, entusiásticas e

fascinantes, mas, de boca em boca, as confissões de ineficiência se sucediam, multiformes.

Alguns se revelavam doentes, outros cansados, muitos se declaravam absorvidos de

inquietações domésticas e não poucos se diziam dominados por monstruosas imperfeições.

A assembléia parecia trazer fogo no raciocínio e gelo no sentimento.

Quando os trabalhos atingiram a fase final, depois de compridas conversações, sem

proveito, Pereira, sorrindo, comentou breve :

– Meus irmãos, nossa casa, sem dúvida, precisa movimentar-se, avançar e progredir;

entretanto, como poderá o corpo adiantar-se, quando as mãos e os pés se mostram inertes?

Todos possuímos idéias fulgurantes e providenciais, todavia, onde está a nossa coragem de

materializá-las? Quando os membros se demoram paralíticos, o pensamento não faz outra

coisa senão imaginar, orar, vigiar e esperar... Sou o primeiro a reconhecer o imperativo de

nossa expansão, lá fora, no grande mundo das consciências, no entanto, até que sejamos o

conjunto harmonioso de peças vivas, na máquina da caridade e da educação, como veículos

irrepreensíveis do bem, não disponho de outro remédio senão aguardar o futuro, no

Espiritismo das quatro paredes...

E, diante da estranha melancolia que dominou a sala, apagou-se o brilho faiscante das

idéias, sob o orvalho das lágrimas com que Pereira encerrou a sessão.

21 - O ENCONTRO DIVINO

Quando o cavaleiro D'Arsonval, valoroso senhor em França, se ausentou do medievo

domicílio, pela primeira vez, de armadura fulgindo ao Sol, dirigia-se à Itália para solver

urgente questão política.

Eminente cristão, trazia consigo um propósito central - servir ao Senhor, fielmente, para

encontrá-lo.

Não longe de suas portas, viu surgir, de inesperado, ulceroso mendigo a estender-lhe as

mãos descarnadas e súplices.

Quem seria semelhante infeliz a vaguear sem rumo?

Preocupava-o serviço importante, em demasia, e, sem se dignar fixá-lo, atirou-lhe a bolsa

farta.

O nobre cavaleiro tornou ao lar e, mais tarde, menos afortunado nos negócios, deixou, d&

novo, a casa.

Demandava a Espanha, em missão de prelados amigos, aos quais se devotara.

No mesmo lugar, postava-se, o infortunado pedinte, com os braços em rogativa.

O fidalgo, intrigado, revolveu grande saco de viagem e dele retirou pequeno brilhante,

arremessando-o ao triste caminheiro que parecia devorá-lo com o olhar.

Não se passou muito tempo e o castelão, menos feliz no círculo das finanças, necessitou

viajar para a Inglaterra, onde pretendia solucionar vários problemas, alusivos à organização

doméstica.

No mesmo trato de solo, é surpreendido pelo amargurado leproso, cuja velha petição se

ergue no ar.

O cavaleiro arranca do chapéu estimada jóia de subido valor e projeta-a sobre o conhecido

romeiro, orgulhosamente.

Decorridos alguns meses, o patrão feudal se movimenta na direção de porto distante, em

busca de precioso empréstimo, destinado à própria economia, ameaçada de colapso fatal, e,

no mesmo sitio, com rigorosa precisão, é interpelado pelo mendigo, cujas mãos, em chaga

aberta, se voltam ansiosas para ele.

D'Arsonval, extremamente dedicado à caridade, não hesita. Despe fino manto e entrega-o,

de longe, receando-lhe o contacto.

Depois de um ano, premido por questões de imediato interesse, vai a Paris invocar o socorro

de autoridades e, sem qualquer alteração, é defrontado pelo mesmo lázaro, de feição

dolorida, que lhe repete a antiga súplica.

O Castelão atira-lhe um gorro de alto preço, sem qualquer pausa no galope, em que seguia,

presto.

Sucedem-se os dias e o nobre senhor, num ato de fé, abandona a respeitada residência,

com séqüito festivo.

Representará os seus, junto à expedição de Godofredo de Bonillon, na cruzada com que se

pretende libertar os Lugares Santos.

No mesmo ângulo da estrada, era aguardado pelo mendigo, que lhe reitera a solicitação em

voz mais triste.

O ilustre viajor dá-lhe, então, rico farnel, sem oferecer-lhe a mínima atenção.

E, na Palestina, D'Arsonval combateu valorosamente, caindo, ferido, em poder dos

adversários.

Torturado, combalido e separado de seus compatriotas, por anos a fio, padeceu miséria e

vexame, ataques e humilhações, até que, um dia, homem convertido em fantasma, torna ao

lar que não o reconhece.

Propalada a falsa notícia de sua morte, a esposa deu-se pressa em substituí-lo, à frente da

casa, e seus filhos, revoltados, soltaram cães agressivos que o dilaceraram, cruelmente, sem

comiseração para com o pranto que lhe escorria dos olhos semimortos.

Procurando velhas afeições, sofreu repugnância e sarcasmo.

Interpretado, agora, à conta de louco, o ex-fidalgo, em sombrio crepúsculo, ausentou-se, em

definitivo, a passos vacilantes...

Seguir para onde? O mundo era pequeno demais para conter-lhe a dor.

Avançava, penosamente, quando encontrou o mendigo.

Relembrou a passada grandeza e atentou para ai mesmo, qual se buscasse alguma coisa

para dar.

Contemplou o infeliz pela primeira vez e, cruzando com ele o olhar angustiado, sentiu que

aquele homem, chagado e sozinho, devia ser seu irmão.

Abriu os braços e caminhou para ele, tocado de simpatia, como se quisesse dar-lhe o calor

do próprio sangue. Foi, então, que, recolhido no regaço do companheiro que considerava

leproso, dele ouviu as sublimes palavras:

- D'Arsonval, vem a mim! Eu sou Jesus, teu amigo. Quem me procura no serviço ao próximo,

mais cedo me encontra... Enquanto me buscava à distância, eu te aguardava, aqui tão perto!

Agradeço o ouro, as jóias, o manto, o agasalho e o pão que me deste, más há muitos anos te

estendia os meus braços, esperando o teu próprio coração!.. .

O antigo cavaleiro nada mais viu senão vasta senda de luz, entre a Terra e o Céu... Mas, no

outro dia, quando os semeadores regressavam às lides do campo, sob a claridade da aurora,

tropeçaram no orvalhado caminho com um cadáver.

D'Arsonval estava morto.

22 - A CONDUTA CRISTÃ

Ibraim ben Azor, o cameleiro, entrou na residência acanhada de Simão e, à frente do Cristo,

que o fitava de olhos translúcidos, pediu instruções da Boa-Nova, ao que Jesus respondeu

com a doçura habitual, tecendo considerações preciosas e simples, em torno do Reino de

Deus no coração dos homens.

– Mestre – perguntou Ibraim, desejando conhecer as normas evangélicas –, na hipótese de

aceitar a nova revelação, como me comportarei. perante as criaturas de má-fé?

– Perdoarás e trabalharás sempre, fazendo quanto possível para que se coloquem no nível

de tua compreensão, desculpando-as e amparando-as, infinitamente.

– E se me cercarem todos os dias?

– Continuarás perdoando e trabalhando a benefício delas.

– Mestre – invocou Ibraim, admirado –, a calúnia é um braseiro a requeimar-nos o coração...

Admitamos que tais pessoas me vergastem com frases cruéis e apontamentos injustos...

Como proceder quando me enlamearem o caminho, atirando-me flechas incendiadas?

– Perdoarás e trabalharás sem descanso, possibilitando a renovação do pensamento que a

teu respeito fazem.

– E se me ferirem? Se a violência sujeitar-me à poeira e a traição golpear-me pelas costas?

Se meu sangue correr, em louvor da perversidade?

– Perdoarás e trabalharás, curando as próprias chagas, com a disposição de servir,

invariavelmente, na certeza de que as leis do Justo Juiz se cumprirão sem prejuízo dum

ceitil.

– Senhor – clamou o consulente desapontado –, e se a pesada mão dos ignorantes

ameaçar-me a casa? se a maldade perseguir-me a família, dilacerando os meus nos

interesses mais caros?

– Perdoarás e trabalharás a fim de que a normalidade se reajuste sem ódios,

compreendendo que há milhões de seres na Terra fustigados por aflições maiores que a tua,

cabendo-nos a obrigação de auxiliar, não somente os que se fazem detentores do nosso

bem-querer, mas também a todos os irmãos em Humanidade que o Pai nos recomenda amar

e ajudar, incessantemente.

Ibraim, assombrado, indagou, de novo :

– Senhor, e se me prenderem por homicida e ladrão, sem que eu tenha culpa?

– Perdoarás e trabalharás, agindo sempre segundo as sugestões do bem, convencido de

que o homem pode encarcerar o corpo, mas nunca algemará a idéia pura, nobre e livre.

– Mestre – prosseguiu o cameleiro, intrigado –, e se me prostrarem no leito? Se me crivarem

de úlceras, impossibilitando-me qualquer ação? Como trabalhar de braços imobilizados,

quando nos resta apenas o direito de chorar?

– Perdoarás e trabalharás com o sorriso da paciência fiel, cultivando a oração e o

entendimento no espírito edificado, confiando na Proteção do Pai Celestial que envia socorro

e alimento aos próprios vermes anônimos do mundo.

– Mestre, e se, por fim, me matarem? se depois de todos os sacrifícios aparecer a morte por

estrada inevitável?

– Demandarás o túmulo, perdoando e trabalhando na ação gloriosa, em benefício de todos,

conservando a paz sublime da consciência.

Entre estupefato e aflito, Ibraim voltou a indagar depois de alguns instantes:

– Senhor, e se eu conseguir tolerar os ignorantes e os maus, ajudando-os e recebendo-lhes

os insultos como benefícios, oferecendo a luz pela sombra e o bem pelo mal, se encarar,

com serenidade, os golpes arremessados contra os meus, se receber feridas e sarcasmos

sem reclamação e se aceitar a própria morte, guardando sincera compaixão por meus

algozes? Que lugar destacado me caberá, diante da grandeza divina? que título honroso

exibirei?

Jesus, sem alterar-se, considerou :

– Depois de todos os nossos deveres integralmente cumpridos, não passamos de meros

servidores, à face do Pai, a quem pertence o Universo, desde o grão de areia às estrelas.

distantes.

Ibraim, conturbado, levantou-se, chamou o dono da casa e perguntou a Pedro se aquele

homem era realmente o Messias. E quando o pescador de Cafarnaum confirmou a

identidade do Mestre, o cameleiro, carrancudo, qual se houvesse recebido grave ofensa,

avançou para fora e seguiu para diante, sem dizer adeus.

23 - DÍVIDA E RESGATE

Na antevéspera do Natal de 1856, Dona Maria Augusta Correia da Silva, senhora de

extensos haveres, retornava à fazenda, às margens do Paraíba, após quase um ano de

passeio repousante na Corte.

Acompanhada de numerosos amigos que lhe desfrutariam a festiva hospitalidade, a

orgulhosa matrona, na tarde chuvosa e escura, recebia os sessenta e dois cativos de sua

casa que, sorridentes e humildes, lhe pediam a bênção.

Na sala grande, nobremente assentada em velha poltrona sobre largo estrado que lhe

permitisse mais amplo golpe de vista, fazia um gesto de complacência, à distância, para

cada servidor que exclamava de joelhos:

- Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo, “sinhá”!

- Louvado seja! – acentuava Dona Maria com terrível severidade a transparecer-lhe da voz.

Velhinhos de cabeça branca, homens rudes do campo, mulheres desfiguradas pelo

sofrimento, moços e crianças desfilavam nas boas-vindas.

Contudo, em ângulo recuado, pobre moça mestiça, sustentando nos braços duas crianças

recém-nascidas, sob a feroz atenção de capataz desalmado, esperava a sua vez.

Foi a última que se aproximou para a saudação.

A fazendeira soberana levantou-se, empertigada, chamou para junto de si o Cérbero humano

que seguia de perto a jovem escrava, e, antes que a pobrezinha lhe dirigisse a palavra, faloulhe,

duramente:

- Matilde, guarde as crias na senzala e encontre-me no terreiro. Precisamos conversar.

A interpelada obedeceu sem hesitação.

E afastando-se do recinto, na direção do quintal, Dona Maria Augusta e o assessor de

azorrague em punho cochichavam entre si.

No grande pátio que a noite agora amortalhava em sombra espessa, a mãezinha infortunada

veio atender à ordenação recebida.

- Acompanhe-nos! - determinou Dona Maria, austeramente.

Guiadas pelo rude capitão do mato, as duas mulheres abordaram a margem do rio

transbordante.

Nuvens formidandas coavam no céu os medonhos rugidos de trovões remotos...

Derramava-se o Paraíba, em soberbo espetáculo de grandeza, dominando o vale extenso.

Dona Maria pousou o olhar coruscante na mestiça humilhada e falou:

- Diga de quem são essas duas “crias” nascidas em minha ausência!

- De “Nhô” Zico “sinhá”!

- Miserável! – bradou a proprietária poderosa – meu filho não me daria semelhante desgosto.

Negue essa infâmia!

- Não posso! Não posso!

A patroa encolerizada relanceou o olhar pela paisagem deserta e bramiu, rouquenha:

- Nunca mais verá você essas crianças que odeio...

- Ah! “Sinhá” – soluçou a infeliz -, não me separe dos meninos! Não me separe dos meninos!

Pelo amor de Deus!...

- Não quero você mais aqui e essas crias serão entregues à venda.

- Não me expulse, “sinhá”! Não me expulse!

- Desavergonhada, de hoje em diante você é livre!

E depois de expressivo gesto para o companheiro, acentuou, irônica:

- Livre, poderá você trabalhar noutra parte para comprar esses rebentos malditos.

Matilde sorriu, em meio do pranto copioso, e exclamou:

- Ajude-me, “sinhá”... Se é assim, darei meu sangue para reaver meus filhinhos...

Dona Maria Augusta indicou-lhe o Paraíba enorme e sentenciou:

- Você está livre, mas fuja de minha presença. Atravesse o rio e desapareça!

- “Sinhá”, assim não! Tenha piedade de sua cativa! Ai, Jesus! Não posso morrer...

Mas, a um sinal da patroa, o capataz envilecido estalou o chicote no dorso da jovem, que

oscilou, indefesa, caindo na corrente profunda.

- Socorro! Socorro, meu Deus! Valei-me, Nosso Senhor! – gritou a mísera, debatendo-se nas

águas.

Todavia, daí a instantes, apenas um cadáver de mulher descia rio a baixo, ante o silêncio da

noite...

Cem anos passaram...

Na antevéspera do Natal de 1956, Dona Maria Augusta Correia da Silva, reencarnada estava

na cidade de Passa-Quatro, no sul de Minas Gerais.

Mostrava-se noutro corpo de carne, como quem mudara de vestimenta, mas era ela mesma,

com a diferença de que, ao invés de rica latifundiária, era agora apagada mulher, em

rigorosa luta para ajudar o marido na defesa do pão.

Sofria no lar as privações dos escravos de outro tempo.

Era mãe, padecendo aflições e sonhos... Meditava nos filhinhos, ante a expectação do Natal,

quando a chuva, sobre o telhado, se fez mais intensa.

Horrível temporal desabava na região.

Alagara-se tudo em derredor da casa singela.

A pobre senhora, vendo a água invadir-lhe o reduto doméstico, avançou para fora, seguida

do esposo e das crianças...

As águas, porém, subiam sempre em turbilhão envolvente e destruidor, arrastando o que se

lhes opusesse à passagem.

Diante da ex-fazendeira erguia-se um rio inesperado e imenso e, em dado instante,

esmagada de dor, ante a violenta separação do companheiro e dos pequeninos, tombou na

caudal, gritando em desespero:

- Socorro! Socorro, meu Deus! Valei-me Nosso Senhor!

Todavia, decorridos alguns momento, apenas um cadáver de mulher descia corrente a baixo,

ante o silêncio da noite...

A antiga sitiante do Vale do Paraíba resgatou o débito que contraíra perante a Lei.

24 - O AVISO OPORTUNO

– Não há maior alegria que a de doutrinar os Espíritos perturbados – dizia Noé Silva, austero

orientador de antiga instituição destinada à caridade –, e não existe para mim lição maior que

a dos campeões da mentira e da treva, quando desferem gritos de dor, ante a realidade.

Com a volúpia do pescador que recolhe o peixe, depois de longa expectativa, exclamava,

gritante:

– Afinal de contas, outro destino não poderiam esperar os sacripantas do mundo, agarrados ao

ouro e aos prazeres, senão os padecimentos atrozes da incompreensão, além da morte.

Sorrindo, triunfante, rematava:

– E, acima de tudo, devem agradecer a Deus a possibilidade de encontrarem a minha palavra

sincera e clara.

Tenho bastante paciência para aturá-los e conduzi-los ara a luz.

Era assim o rígido mentor das sessões. Alma franca e rude, demasiadamente convencido quanto

aos próprios méritos.

Mas, na vida comum, Noé Silva transformava a lealdade em vestimenta agressiva. Junto dele,

respirava-se uma atmosfera pesada, como se estivesse repleta de espinhos invisíveis.

Analfabeto da gentileza, atirava os pensamentos que lhe vinham à cabeça qual se houvera

recebido do Céu a triste missão de salientar os defeitos do próximo.

A palavra dele era uma chuva de seixos.

Se um companheiro demorava-se para a reunião, clamava, colérico:

– Que estará fazendo esse hipócrita retardatário?

Se um médium não conseguia recursos para interpretar, com segurança, as tarefas que lhe

cabiam nos trabalhos de assistência, indagava, irritadiço:

– Que faltas terá cometido esse infeliz?

Se o condutor do ônibus parecia vacilar em certos momentos, bradava, impulsivo:

– Desgraçado, cumpra o seu dever!

Se o rapaz de serviço, no café, cometia qualquer leve deslize, protestava, exigente:

– Moço, veja lá onde tem a cabeça!... O senhor permanece aqui para servir...

Se alguém lhe trazia alguma confidência dolorosa, buscando entendimento e consolo, repetia,

severo:

– Meu irmão, quem planta, colhe. Você não estaria sofrendo se não houvesse praticado o mal.

Na via pública, não hesitava. Se algum transeunte lhe impedia o passo rápido, dava serviço aos

cotovelos e em seus trabalhos profissional era sobejamente conhecido pelas frases fortes com

que despejava a sua vocação de fazer inimigos.

Se um irmão de ideal lhe exprobrava o procedimento, respondia, célere:

– Se essa gente não puder entender-me as boas intenções, esperá-la-ei nas minhas preces.

Depois da morte, todas as pessoas compreendem a verdade...

O tempo rolava, infatigável, quando, no vigésimo aniversário do agrupamento que dirigia, um dos

orientadores desencarnados se manifesta, em sinal de regozijo, felicitando a todos.

Um carinho aqui, um abraço ali, o amigo espiritual confortava os presentes, mas, em se

despedindo sem dizer palavra ao mentor da casa, Noé, desapontado, perguntou, ansiosamente:

– E para mim, meu irmão, não há qualquer mensagem?

O visitante sorriu e falou, bem humorado:

– Tenho sim, tenho um recado para o seu coração.

Não espere a morte para extinguir os desafetos. Cultive a plantação da simpatia, desde hoje. A

nossa fé representa a Doutrina do Amor e a cordialidade é o princípio dela. Não se esqueça do

verbo silencioso do bom exemplo, das lições de renúncia e dos ensinamentos vivos com

adequadas demonstrações. Se você estima o Espiritismo prático, não olvide o Espiritismo

praticado. Você está sempre disposto a doutrinar os ignorantes e os infelizes do Espaço, mas

está superlotando o seu espaço mental com adversários que esperam gostosamente o tempo de

doutriná-lo.

E num gesto de carinhosa fraternidade, rematou em seguida a pequena pausa:

– Noé, esvazie o cálice de fel, desde agora; diminua a reprovação e reduza a extensão do

espinheiral...

O nosso problema, meu caro, é o de não encher...

A sessão foi encerrada.

E enquanto os companheiros permutavam expressões de Júbilo, o arrojado doutrinador, com a

cabeça mergulhada nas mãos, permaneceu sozinho, sentado á mesa, pensando, pensando...

25 - AS ROSAS DO INFINITO

Em deslumbrante paisagem da Esfera superior, diversos mensageiros se congregavam em

curioso certame. Procediam de lugares diversos e traziam flores para importante aferição de

mérito.

Na praça enorme, pavimentada de substância semelhante ao jade, colunas multicores

exibiam guirlandas de soberana beleza.

Rosas de todos os feitios e cravos soberbos, gerânios e glicínias, lírios e açucenas, miosótis

e crisântemos exaltavam a Sabedoria do Criador em festa espetacular de cores e perfumes.

Envergando túnicas resplendentes, servidores espirituais iam a vinham, à espera dos juizes

angélicos.

A exposição singular destinava-se à verificação da existência de luz divina, nos múltiplos

exemplares que aí se alinhavam, salientando-se que os espécimes com maior teor de

claridade celeste seriam conduzidos ao Trono do Eterno, como preito de amor e

reconhecimento dos trabalhadores do bem.

Os julgadores não se fizeram esperados.

Quando a expectação geral se mostrava adiantada, três emissários da Majestade Sublime

atravessaram as portas de dourada filigrana e, depois das saudações afetuosas, iniciaram o

trabalho que lhes competia. Aquele que detinha mais elevada posição hierárquica trazia nas

mãos uma toalha de linho translúcido, o único apetrecho que certamente utilizaria na tarefa

de análise das preciosidades expostas.

Cada ramo era seguido de pequena comissão representativa do serviço espiritual em que

fora elucidando.

Aproximou-se o primeiro grupo, trazendo uma braçada de rosas, tecidas com as emoções do

carinho materno que, lançadas à toalha surpreendente, expediram suaves irradiações em

azul indefinível, e os anjos abençoaram o devotamento das mães, que preservam os

tesouros de Deus, na posição de heroínas desconhecidas.

Logo após, brilhante conjunto de Espíritos jubilosos deitou ao pano singular uma coroa de

lírios, formados pelas vibrações de fervor das almas piedosas que se devotam nos templos

ao culto da fé. Safirinas emanações cruzaram o espaço e os celestes embaixadores

louvaram os santos misteres de todos os religiosos do mundo.

Em seguida, alegre comissão juvenil trouxe a exame delicado ramalhete de açucenas,

estruturadas nos sonhos e nas esperanças dos noivos que sabem guardar a Bênção Divina,

e raios verdes de brilho intraduzível se projetaram em todas as direções, enquanto os

emissários do Todo-Misericordioso entoaram encômicos aos afetos santificantes das almas.

Lindas crianças foram portadoras de formosa auréola de jasmins, nascidos da ternura

infantil, e que, depostos sobre a toalha miraculosa, emitiram alvíssima luz, semelhante a fios

de aurora, incidindo sobre a neve.

Depois, pequeno agrupamento de criaturas iluminadas colocou, sob os olhos dos anjos, bela

grinalda de cravos rubros, colhidos na renunciação dos sábios e dos heróis, a serviço da

Humanidade, que exteriorizaram vermelhas emanações, quais se fossem constituídas de

eterizados rubis.

E, assim, cada comissão submeteu ao trabalho seletivo as jóias que trazia.

O devotamento dos pais, os laços esponsalícios, a dedicação dos filhos, o carinho dos

verdadeiros amigos, a devoção de vários matizes ali se achavam magnificamente

representados pelas flores cuja essência lhes correspondia.

Em derradeiro lugar, compareceu a mais humilde comissão da festa.

Quatro almas, revelando características de extrema simplicidade, surgiram com um ramo feio

e triste. Eram rosas mirradas, de cor arroxeada, mostrando pontos esbranquiçados a guisa

de manchas, a desabrocharem ao longo de hastes espinhosas e repelentes. Depostas, no

entanto, sobre a mágica toalha, inflamaram-se de luz solar, a irradiar-se do recinto à

imensidão dos Céus.

Os três anjos puseram-se de joelhos. Inesperada comoção encheu de lágrimas os olhos

espantados da enorme assembléia. E porque alguns dos presentes chorassem, com

interrogações imanifestas, o grande juiz do certame esclareceu, emocionado:

-Estas flores são as rosas de amor que raros trabalhadores do bem cultivam nas sombras do

inferno. São glórias do sentimento puro, da fraternidade real, da suprema consagração à

virtude, porque somente as almas libertas de todo o egoísmo conseguem servir a Deus, na

escória das trevas. Os acúleos que se destacam nas hastes agressivas simbolizam as

dificuldades superadas, as pétalas roxas simbolizam o arrependimento e a consolação dos

que já se transferiram da desolação para a esperança, e os pontos alvos expressam o pranto

mudo e aflitivo dos heróis anônimos que sabem servir sem reclamar...

E, entre cânticos de transbordante alegria, as rosas estranhas subiram rutilantes do Paraíso.

Ó vós, que lutais no caminho empedrado de cada dia, enxugai as lágrimas e esperai! As

flores mais sublimes para o Céu nascem na Terra, onde os companheiros de boa-vontade

sabem viver para a vitória do bem, com o suor do trabalho incessante e com as lágrimas

silenciosas do próprio sacrifício.

26 - A ÚLTIMA TENTAÇÃO

Dizem que Jesus, na hora extrema, começou a procurar os discípulos, no seio da agitada

multidão que lhe cercava o madeiro, em busca de algum olhar amigo em que pudesse

reconfortar o espírito atribulado...

Contemplou, em silêncio, a turba enfurecida.

Fustigado pelas vibrações de ódio e crueldade, qual se devera morrer, sedento e em chagas,

sob um montão de espinhos, começou a lembrar os afeiçoados e seguidores da véspera...

Onde estariam seus laços amorosos da Galiléia?...

Recordou o primeiro contacto com os pescadores do lago e chorou.

A saudade amargurava-lhe o coração.

Por que motivo Simão Pedro fora tão frágil? que fizera ele, Jesus, para merecer a negação

do companheiro a quem mais se confiara?

Que razões teriam levado Judas a esquecê-lo? Como entregara, assim, ao preço de míseras

moedas, o coração que o amava tanto?

Onde se refugiara Tiago, em cuja presença tanto se comprazia?

Sentiu profunda saudade de Filipe e Bartolomeu, e desejou escutá-los.

Rememorou suas conversações com Mateus e refletiu quão doce lhe seria poder abraçar o

inteligente funcionário de Cafarnaum, de encontro ao peito...

De reminiscência a reminiscência, teve fome da ternura e da confiança das criancinhas

galiléias que lhe ouviam a palavra, deslumbradas e felizes, mas os meninos simples e

humildes que o amavam perdiam-se, agora, à distância...

Recordou Zebedeu e suspirou por acolher-se-lhe à casa singela.

João, o amigo abnegado, achava-se ali mesmo, em terrível desapontamento, mas precisava

socorro para sustentar Maria, a angustiada Mãe, ao pé da cruz.

O Mestre desejava alguém que o ajudasse, de perto, em cujo carinho conseguisse encontrar

um apoio e uma esperança...

Foi quando viu levantar-se, dentre a multidão desvairada e cega, alguém que ele, de pronto,

reconheceu.

Era a mesmo Espírito perverso que o tentara no deserto, no pináculo do templo e no cimo do

monte.

O Gênio da Sombra, de rosto enigmático, abeirou-se dele e murmurou:

– Amaldiçoar, os teus amigos ingratos e dar-te-ei o reino do mundo! Proclama a fraqueza dos

teus irmãos de ideal, a fim de que a justiça te reconheça a grandeza angélica e descerás,

triunfante, da cruz!... Dize que os teus amigos são covardes e duros, impassíveis e traidores

e unir-te-ei aos poderosos da Terra para que domines todas as consciências. Tu sabes que,

diante de Deus, eles não passara de míseros desertores...

Jesus escutou, com expressiva mudez, mas o pranto manou-lhe mais intensamente da olhar

translúcido.

– Sim – pensava –, Pedro negara-o, mas não por maldade. A fragilidade do apóstolo podia

ser comparada à ternura de uma oliveira nascente que, com os dias, se transforma no tronco

robusto e nobre, a desafiar a implacável visita dos anos. Judas entregara-o, mas não por máfé.

Iludira-se com a política farisaica e julgara poder substituí-lo com vantagem nos negócios

do povo.

Encontrou, no imo dalma, a necessária justificação para todos e parecia esforçar-se por dizer

o que lhe subia do coração.

Ansioso, o Espírito das Trevas aguardava-lhe a pronúncia, mas o Cordeiro de Deus, fixando

os olhos no céu inflamado de luz, rogou em tom inesquecível:

– Perdoa,-lhes, Pai! Eles não sabem o que fazem!...

O Príncipe das Sombras retirou-se apressado.

Nesse instante, porém, ao invés de deter-se na contemplação de Jerusalém dominada de

impiedade e loucura, o Senhor notou que o firmamento rasgara-se, de alto a baixo, e viu que

os anjos iam e vinham, tecendo de estrelas e flores o caminho que o conduziria ao Trono

Celeste.

Uma paz indefinível e soberana estampara-se-lhe no semblante.

O Mestre vencera a última tentação e seguiria, agora, radiante e vitorioso, para a claridade

sublime da ressurreição eterna.

27 - DAR E DEIXAR

Quando Cirilo Fragoso bateu às portas da Esfera Superior e foi atendido por um anjo que

velava, solícito, com surpresa verificou que seu nome não constava entre os esperados do

dia.

– Fiz muita caridade – alegou, irritadiço –, doei quanto pude. Protegi os pobres e os doentes,

amparei as viúvas e os órfãos. Quanto fiz lhes pertence. Oh! Deus, onde a esperança dos

que se entregaram às promessas do Cristo?

E passou a choramingar em desespero, enquanto o funcionário celestial,

compadecidamente, lhe observava os gestos.

Fragoso traduzia o próprio pesar com a boca, no entanto, a consciência, como que instalada

agora em seus ouvidos, instava com ele a recordar.

Inegavelmente, amontoara vultosos bens. Atingira retumbante êxito nos negócios a que se

afeiçoara e desprendera-se do corpo terrestre no cadastro dos proprietários de grande

expressão. Não conseguira visitar pessoalmente os necessitados, porque o tempo lhe

minguava cada dia, na laboriosa tarefa de preservação da própria fortuna, jamais obtivera

folgas para ouvir um indigente, nunca pudera dispensar um minuto às mulheres infelizes que

lhe recorriam à casa, entretanto, prevendo a morte que se avizinhava, inflexível, organizara

generoso testamento. E assim, agindo à pressa, não se esquecera das instituições piedosas

das quais possuía vago conhecimento, inclusive as que ele pretendia criar. Por isso, em

quatro dias, dotara-as todas com expressivos recursos, encomendando-se-lhes às preces.

Não se desfizera, pois, de tudo, para exercer o auxilio ao próximo? Não teria sido, porém,

mais aconselhável praticar a beneficência, antes da atribulada viagem para o túmulo?

Notando que o coração e a consciência duelavam dentro dele, rogou à entidade angélica

tornasse em consideração a legitimidade das suas demonstrações de virtude, reafirmando

que a caridade por ele efetuada deveria ser passaporte justo ao acesso ao paraíso.

O benfeitor espiritual declarou respeitar-lhe o argumento, informando, porém, que só

mediante provas tangíveis advogar-lhe-ia a causa, junto aos poderes celestes. Trouxesse

Fragoso a documentação positiva daquilo que verbalmente apontava e defender-lhe-ia a

entrada no Paço da Eterna Luz.

Cirilo deu-se pressa em voltar à Terra e, aflito, extraiu as notas mais importantes, com

referência aos legados que fizera às associações pias, presentes e futuras, nas derradeiras

horas do corpo, e retornou à presença do amigo espiritual, diante de quem leu em voz firme

e confiante:

– Para os velhinhos de diversos refúgios, deixei quatrocentos mil cruzeiros.

Para os doentes de várias agremiações, deixei oitocentos mil cruzeiros.

Para a instalação de um hospital de câncer, deixei seiscentos mil cruzeiros.

Para a fundação do Instituto São Damião, em favor dos leprosos, deixei trezentos mil

cruzeiros.

Para a assistência à infância desvalida, deixei quinhentos mil cruzeiros.

Para meus empregados, deixei quatro casas e seis lotes de terras, no valor de um milhão e

duzentos mil cruzeiros.

Em mãos do meu testamenteiro, deixei, desse modo, a importância total de três milhões e

oitocentos mil cruzeiros, para a realização de boas obras.

Terminada a leitura, reparou que o anjo não se mostrava satisfeito.

Em razão disso, perguntou, ansioso:

– Não terei cumprido, assim, os preceitos de Jesus?

O interpelado, porém, aclarou, triste:

– Fragoso, é preciso pensar. Segundo o Evangelho, bem-aventurado é aquele que dá com

alegria. Mas, realmente, você não deu. Suas anotações não deixam margem a qualquer

dúvida. Você simplesmente deixou. Deixou, porque não podia trazer.

E porque Cirilo entrasse em aflitiva expectação, o anjo rematou:

– Infelizmente, seu lugar, por enquanto, ainda não é aqui.

De conformidade com os ensinamentos do Mestre Divino, onde situamos o tesouro de nossa

vida aí guardaremos a própria alma. Seu testamento não exprime libertação. Quem dá, serve

e passa. Quem deixa, larga provisoriamente. Você ainda não se exonerou das

responsabilidades para com o dinheiro. Volte ao mundo e ampare aqueles a quem você

confiou os bens que lhe foram emprestados pela Providência Divina e, ajudando-os a usá-los

na caridade verdadeira, você conhecerá, com experiência própria, o desprendimento da

posse. A morte obrigou-o a deixar. Agora, meu amigo, cabe-lhe exercitar a ciência de dar

com alma e coração.

Foi assim que Cirilo Fragoso, embora acabrunhado, regressou à esfera dos homens, em

espírito, a fim de aprender a beneficência com alicerces na renúncia.

28 - O CONFERENCISTA ATRIBULADO

Naquela manhã ensolarada de domingo, Gustavo Torres, em seu gabinete de estudo,

alinhava preciosos conceitos sobre a arte de ajudar.

Espiritualista consciencioso, acreditava que a luta na Terra era abençoada escola de

formação do caráter e, por isso, atendendo às exigências do próprio ideal, enfileirava,

tranqüilo, frases primorosas para o comentário evangélico que pretendia movimentar na noite

seguinte.

Depois de renovadora prece, começou a escrever, sentidamente:

– O próximo, de qualquer procedência, é nosso irmão, credor de nosso melhor carinho.

– O caluniador é um teste de paciência.

– Quando somos vitimados pela ofensa, estamos recebendo de Jesus o bendito ensejo de

auxiliar.

– Desesperação é chuva de veneno invisível.

– A desculpa constante é garantia de paz.

– Não olvides que a irritação, em qualquer parte, é fermento da discórdia.

– Suporta a dificuldade com valor, porque a provação é recurso demonstrativo de nossa fé.

– Se um irmão transviado te prejudica o interesse, recebe nele a tua valiosa oportunidade de

perdoar.

– Se alguém aparece, como instrumento de aflição em tua casa, não fujas ao exercício da

tolerância.

– A calma tonifica o espírito...

Nesse momento, a velha criada veio trazer o chocolate, sobre o qual, sem que ela

percebesse, pousara pequena mosca, encontrando a morte.

Torres anotou o corpo estranho e, repentinamente indignado, bradou para a servidora:

– Como se atreve a semelhante desconsideração?

Acredita que eu deva engolir um mosquito deste tamanho?

Impressionada com o golpe que o patrão vibrara na bandeja, a pobre mulher implorou:

– Desculpe-me, senhor! A enfermidade ensombra-me os olhos...

– Se é assim – falou áspero –, fique sabendo que não preciso de empregados inúteis...

O conferencista da arte de ajudar ainda não dera o incidente por terminado, quando o recinto

foi invadido pelo estrondo de um desmoronamento.

O condutor de um caminhão, num lance infeliz, arrojara a máquina sobre um dos muros da

sua residência.

O dono da casa desceu para a via pública, como se fora atingido por um raio.

Abeirou-se do motorista mal trajado,e gritou, colérico:

– Criminoso! Que fizeste?

– Senhor – rogou o mísero –, perdoe-me o desastre. Pagarei as despesas da reconstrução.

Tenho a cabeça tonta com a moléstia de meu filhinho, que agonia, há muitos dias...

– Desgraçado! O problema é seu, mas o meu caso será entregue à polícia.

E quando Torres, possesso, usa o telefone, discando para o delegado de plantão, meninos

curiosos invadiam-lhe o jardim bem tratado, esmagando a plantação de cravos que lhe

exigira imenso trabalho na véspera.

Exasperado, avançou para as crianças, ameaçando:

– Vagabundos! Larápios! Rua, rua!... Fora daqui!... Fora daqui!...

Dai a instantes, policiais atenciosos cercavam-lhe o domicílio e Torres regressou ao

gabinete, qual se estivesse acordando de um pesadelo...

Da mesa, destacava-se minúsculo cartaz, em que releu o formoso dístico aí grafado por ele

mesmo: – “Quando Jesus domina o coração, a vida está em paz.”

Atribulado, sentou-se.

Deteve-se novamente, na frase preciosa que escrevera, reconheceu quão fácil é ensinar com

as palavras e quão difícil é instruir com os exemplos e, envergonhado, passou a refletir...

29 - NO REINO DAS BORBOLETAS

À beira de um charco, formosa borboleta, fulgurando ao crepúsculo, pousou sobre um ninho

de larvas e falou para as pequeninas lagartas, atônitas:

- Não temais! Sou eu... Uma vossa irmã de raça!... Venho para comunicar-vos

esperança. Nem sempre permanecereis coladas à erva do pântano! Tende calma, fortaleza,

paciência!... Esforçai-vos por sucumbir aos golpes da ventania que, de quando em quando,

varre a paisagem. Esperai! Depois do sono que vos aguarda, acordareis com asas de puro

arminho, refletindo o esplender solar... Então, não mais vos arrastareis, presas ao solo úmido

e triste. Adquirireis preciosa visão da vida! Subireis muito alto e vosso alimento será o néctar

das flores... Viajareis deslumbradas, contemplando o mundo, sob novo prisma!... Observareis

o sapo que nos persegue, castigado pela serpente que o destrói, e vereis a serpente que

fascina o sapo, fustigada pelas armas do homem!...

Enquanto a mensageira se entregava à ligeira pausa de repouso, ouviam-se

exclamações admirativas:

- Ah! Não posso crer no que vejo!

- Que misteriosa e bela criatura!...

- Será uma fada milagrosa?

- Nada possui de comum conosco...

Irradiando o suave aroma do jardim em que se demorava, a linda visitante sorriu e continuou:

- Não vos confieis à incredulidade! Não sou uma fada celeste! Minhas asas são parte

integrante da nova forma que a Natureza nos reserva. Ontem vivia convosco; amanhã,

vivereis comigo! Equilibrar-vos-eis no imenso espaço, desferindo vôos sublimes à plena luz!

Libertadas do chavascal, elevar-vos-eis, felizes! Libertadas do chavascal, elevar-vos-eis,

felizes! Conhecereis a beleza das copas floridas e o saboroso licor das pétalas perfumadas,

a delícia da altura e a largueza do firmamento!...

Logo após, lançando carinhoso olhar à família alvoroçada, distendeu o corpo colorido e,

voltando, graciosa, desapareceu.

Nisso chega ao ninho a lagarta mais velha do grupo, que andava ausente, e, ouvindo as

entusiásticas referências das companheiras mais jovens, ordenou, irritada:

- Calem-se e escutem! Tudo isso é insensatez... Mentiras, divagações... Fujamos aos sonhos

e aos desvarios. Nunca teremos asas. Ninguém deve filosofar... Somos lagartas, nada mais

que lagartas. Sejamos práticas, no imediatismo da própria vida. Esqueçam-se de pretensos

seres alados que não existem. Desçam do delírio da imaginação para as realidades do

ventre! Abandonaremos este lugar, amanhã. Encontrei a horta que procurávamos... Será

nossa propriedade. Nossa fortuna está no pé de couve que passaremos a habitar. Devorarlhe-

emos todas as folhas... Precisamos simplesmente comer, porque, depois, será o sono, a

morte e o nada... Nada mais...

Calaram-se as larvas, desencantadas.

Caiu a noite e, em meio à sombra, a lagarta-chefe adormeceu, sem despertar no outro

dia. Estava ela completamente imóvel.

As irmãs, preocupadas, observavam curiosas o fenômeno e puseram-se na expectativa.

Findo algum tempo, com infinito assombro, repararam que a orgulhosa e descrente

orientadora se metamorfoseara numa veludosa falena, voejante e leve...

Anotando a lição breve e simples, creio que há muitos pontos de contacto entre o reino

dos homens e o reino das borboletas.

30 - O ESCRIBA ENGANADO

Achava-se o Mestre em casa de Pedro, contudo, em localidades diversas, em derredor do

grande lago, propalava-se-lhe a Boa Nova. Comentavam-se-lhe as preleções qual se fora ele

um príncipe desconhecido, chamado à restauração nacionalista.

Se aparecia em público, era apontado como revolucionário em vias de levantar a bandeira de

antigas reivindicações e, quando no santuário doméstico, recebia visitas corteses e

indagadoras. Não surgiam, no entanto, tão-somente os que vinham consultá-lo acerca de

princípios libertários, mas também os que, inflados de superioridade, vinham discutir os

problemas da fé.

Foi assim que o escriba Datan se acercou familiarmente dele, sobraçando rolos volumosos e

guardando ares de mistério na palavra sigilosa e malevolente.

Fez solene preliminar, explicando os motivos de sua vinda.

Estudara muitíssimo. Conhecia o drama de Israel, desde os primórdios.

Possuía velhos escritos, referentes às perseguições mais remotas. Arquivara, cuidadoso,

preciosas tradições ocultas que relatavam os sofrimentos da raça na Assíria e no Egito.

Encontrava-se em ligação com vários remanescentes de sacerdotes hebreus de outros

séculos. Discutia, douto e perspicaz, sobre o passado de Moisés e Aarão, na pátria dos

faraós, e recolhera conhecimentos novos, com respeito à Terra da Promissão.

Em virtude da inteligência inata com que sabia tratar os problemas do revelacionismo,

declarava-se disposto a colaborar no restabelecimento da verdade.

Pretendia contribuir, não só com o verbo inflamado, mas também com a bolsa no banimento

sumário de todos os exploradores do Templo.

Depois de pormenorizada exposição que o Senhor ouviu em silêncio, aduziu o escriba

entusiasta:

- Mestre, não será indiscutível a necessidade de reforma da fé?

- Sim... - confirmou Jesus, sem comentários. Datan, extremamente loquaz, prosseguiu:

- Venho trazer-te, pois, a minha solidariedade sem condições. Dói-me contemplar a Casa

Divina ocupada por ladrões e cambistas sem consciência. Sou cultivador da Lei, rigorista e

intransigente. Tenho o Levítico de cor, para evitar o contacto de pessoas e alimentos

imundos. Cumpro as minhas obrigações e não suporto a presença de quantos dilapidam o

altar, sob pretexto de protegê-lo.

Fixou expressão colérica no olhar de raposa ferida, baixou o tom de voz, à maneira de

denunciador comum, e anunciou sussurrante:

- Tenho comigo a relação de todos os lagartos e corvos que insultam o santuário de Deus.

Ser-te-ei devotado colaborador para confundi-los e exterminá-los. Meus pergaminhos são

brasas vivas da verdade. Conheço os que roubam do povo miserável a benefício dos

próprios romanos que, nos dominam. O Templo está cheio de rapinagem. Há feras em forma

humana que ali devoram as riquezas do Senhor, lendo textos sagrados. São criaturas

melosas e escarninhas, untuosas e traidoras...

O Cristo ouvia sem qualquer palavra que lhe demonstrasse o desagrado e, ébrio de

maledicência, o visitante desdobrou um dos rolos, fixou alguns apontamentos e acrescentou:

- Vejamos pequena galeria de criminosos que, de imediato, precisamos conter.

O rabino Jocanan vive cercado de discípulos, administrando lições, mas é proprietário de

muitos palácios, conseguidos à custa de viúvas misérrimas; é um homem asqueroso pela

sovinice a que se confia.

O rabino Jafé, desde muito, é um explorador de mulheres desventuradas; do átrio da casa de

Deus para dentro é uma ovelha, mas do átrio para fora é um lobo, insaciável.

Nasson, o sacerdote, vale-se da elevada posição que desfruta para vender, a preços

infames, touros e cabras destinados aos sacrifícios, por intermédio de terceiros que lhe

enriquecem as arcas; já possui três casas grandes, cheias de escravos, em Cesaréia, com

vastos rebanhos de carneiros.

Agiel, um dos guardas do sagrado candeeiro, enverga túnica respeitável durante o dia e é

salteador, durante a noite; sei quantas pessoas foram por ele assaltadas no último ano

sabático.

Nenrod, o zelador do Santo dos Santos, tem sete assassínios nas costas; formula preces

comoventes no lugar divino, mas é malfeitor contumaz, evadido da Síria.

Manassés, o explicador dos Salmos de David, vende pombos a preços asfixiantes, criando

constrangimento às mulheres imundas que buscam a purificação, de maneira a explorar-lhes

a boa-fé.

Gad, o fiscal de carnes impuras, tem a casa repleta de utilidades do santuário, que cede

modicamente, enchendo-se-lhe os cofres de ouro e prata.

Efraim, o levita, que se insinua presentemente na casa do Sumo Sacerdote, é político sagaz;

a humildade fingida lhe encobre os tenebrosos planos de dominação.

Reparando, porém, que Jesus se mantinha mudo, o interlocutor interrompeu-se, fixou-o com

desapontamento, e concluiu:

- Senhor, aceita-me no ministério. Estou pronto. Informaram-me de que te dispões a fundar

um novo reino e uma nova ordem... Auxiliar-te-ei a massacrar os impostores, renovaremos a

crença de nosso povo...

Mas Jesus, sorrindo agora, compassivo e triste, retrucou muito calmo:

- Datan, equivocas-te, naturalmente, qual acontece a muitos outros. A Boa Nova é de

salvação. Não procuro delatores, nem carrascos, sempre valiosos nos tribunais. Estamos

buscando simplesmente homens e mulheres que desejam amar o próximo e ajudá-lo, em

nome de nosso Pai, a fim de que nos façamos melhores uns para com os outros.

O Mestre, sereno e persuasivo, ia continuar, mas o escriba eloqüente, tão profundo no

conhecimento das vidas alheias, enrolou os pergaminhos, apressado, franziu os lábios

amarelos de cólera inútil e atravessou a soleira da porta sem olhar para trás.

31 - JUDICIOSA PONDERAÇÃO

Dispúnhamos-nos a escrever uma série de apontamentos acerca de nossas ligeiras

excursões ao redor de outros mundos, com a intenção de trazê-los aos amigos terrestres,

quando abnegado orientador falou, sensato:

- Vocês não se desenvolveram suficientemente para tratar o assunto com a precisa

autoridade. Para relacionar as múltiplas manifestações da vida noutros planetas, não

podemos prescindir da consciência cósmica, que ainda estamos construindo, através de

sucessivos estágios na Terra, e, nesse sentido, quaisquer impressões de nossa parte serão

fragmentárias e imperfeitas, desnorteando a curiosidade sadia das almas bem intencionadas.

E, ilustrando a judiciosa observação, contou, sorridente:

- A Humanidade evolvida de um astro que se localiza a milhões de quilômetros da Terra,

contemplando-a na feição de minúscula estrela avermelhada, reuniu alguns dos seus sábios

mais eminentes, a fim de estudá-la com as minudências possíveis.

Guardando avançados conhecimentos, no domínio da força gravítica, os competentes

pesquisadores mobilizaram o tentame, enviando ao nosso mundo diversas expedições, de

tempos a tempos.

A primeira veio até nós, depois de complicadas peripécias no Espaço, condicionando-se,

como é lógico, à limitada provisão de recursos que trazia, elementos esses que lhe

asseguraram a permanência de três dias sobre a face do nosso globo.

Acontece, porém, que os viajantes alcançaram os céus de Paris e, depois de analisarem a

refinada capital da França, por mais de setenta horas, anotando-lhe os patrimônios artísticos

e culturais, voltaram ao ponto de origem, anunciando que o nosso mundo era centro de

notável civilização, com importantes agrupamentos humanos.

A idéia causou grande alvoroço e, tão logo se fel possível, nova comissão nos foi remetida

para a complementação de informes.

Os excursionistas, no entanto, em vez de alcançarem Paris, desceram sobre vasta e inculta

região africana e regressaram alarmados, desmentindo as conclusões existentes, porquanto,

para eles, a Terra era um simples formigueiro de criaturas primitivistas, singularmente

distanciadas da educação.

Ante as controvérsias, novo grupo de investigadores veio ao plano terrestre, examinando

justamente larga: extensão da Sibéria e, por isso, voltou asseverando que t nosso domicílio

não passava de um cemitério gelado.

Nova expedição foi levada a efeito. Contudo, dessa vez os estudiosos planaram sobre a

região triste e seca do Saara, sendo levados a crer que a Terra se reduzia a imenso deserto,

sob pavorosas tempestades de areia.

Outros pioneiros entraram em lide e, auscultando-nos a residência, esbarraram com as

águas do Pacífico, retomando a penates, comunicando a quem de direito que o nosso mundo

era puramente líquido, solitário e inabitável.

Diante das informações contraditórias e estranhas, a autoridade superior resolveu sustar as

expedições, de vez que os relatórios não concordavam entre si e que não valia ausentar-se

da intimidade doméstica para voltar com problemas insolúveis e inquietantes, alusivos à casa

alheia.

O orientador fez uma pausa, mergulhou em nós o olhar muito lúcido e rematou:

- Como vemos, não será bom precipitar noticiários e conclusões. Cada viajante pode falar

simplesmente daquilo que vê, e o que podemos observar é ainda muito pouco daquilo que,

mais tarde, nos será concedido ao conhecimento. Assim sendo, construamos com os

homens, nossos irmãos, pelo trabalho perseverante na cultura e no bem, as asas com que

remontaremos às esferas superiores, sem antecipar-nos às decisões divinas, porque o

Senhor sabe quando convirá modificar os programas de serviço, a nosso próprio respeito. "Ir

lá" é muito diferente de "lá estar". Quando pudermos estar nos cimos da evolução,

saberemos examinar e compreender, através do justo discernimento. Até lá, estudemos e

sirvamos.

Mais não disse o mentor, contudo expressara-se c bastante para que nos acomodássemos à

obrigação de prosseguir trabalhando na edificação do Reino do Espírito, de cuja luz

conquistaremos felizes, o galardão da Vida Maior.

32 - A CONSULTA

Ante o amigo que se responsabilizava pelas tarefas do templo espírita-cristão, a dama bemposta

rogava, afoita:

- Venho pedir-lhes socorro, porque minha vida está realmente transtornada... Ainda ontem,

sonhei que meu pai, desde muito no Além, veio a nossa casa, sustentando' comigo longa

palestra... Acordei, de súbito, e ainda pude ver-lhe o rosto, magro e vivo, rente a mim.

Acabrunhada, dirigi-lhe algumas indagações em pensamento e, com assombro, ouvi-lhe a

voz, explicando-me que a morte não existe, que a vida continua e que, além do sepulcro,

prossegue interessado em meu bem-estar... Entretanto, não pude furtar-me aos calafrios.

Horrível sensação de pavor assaltou-me o espírito e comecei a gritar, inconscientemente. ..

Que supõe vem a ser isso?

- Mediunidade, minha senhora, mediunidade. . . - comentou o orientador, calmo e prudente.

- Ah! sim - continuou a exaltada senhora -, muitas pessoas de minhas relações afirmam que,

de fato, sou médium... Desde criança, vejo coisas e, cada noite, antes do sono, embora cerre

as pálpebras, diviso vultos estranhos que me cercam o leito, sem dissipar o temor de que me

vejo possuída... Como interpretar esses fatos?

- São fenômenos de sua mediunidade - respondeu o ponderado interlocutor.

- Sim, sim - aduzia a visitante -, outras ocorrências me espantam. Muitas vezes, à sesta, ou

quando em conversação com amigas, noto que objetos se movem, junto de mim, sem

contacto físico. Pancadas nos móveis, como se pessoas invisíveis desejassem conversar

conosco, repetem-se ao meu lado, todos os dias. Em muitas ocasiões, vejo mãos, como se

fossem de névoa translúcida, a se movimentarem, agravando-me os sustos. Como classificar

esses casos?

- Mediunidade, minha irmã...

- E essa angústia que sinto, diariamente, qual se uma luva de sombra me buscasse a

garganta? Muitas vezes, fico parada, prestes a morrer... E essa asfixia vem de longe. . .

Debalde, tenho experimentado tratamentos diversos. Tenho a idéia de que forças

inexplicáveis me escaldam a cabeça, ao mesmo tempo em que me enregelam o corpo.

Nesses instantes, ouço vozes e lamentações que me torturam o pensamento... Como definir

essas impressões?

- Minha irmã, tudo isso é mediunidade - esclareceu o mentor, seguro de si.

E a dama contou novos sonhos, relacionando novos fatos, até que terminou por suplicar,

depois de longo tempo:

- Amparem-me, por amor de Deus!... Estou disposta a qualquer sacrifício.. .Darei o que for

preciso para desvencilhar-me dos obstáculos que me levam a semelhantes perturbações...

O dirigente da instituição deixou-a extravasar as promessas brilhantes que enf1leirava uma

sobre a outra, e acentuou, em seguida:

- A solução do problema está com você. Estude e trabalhe, minha irmã. Estude, aprimorando

a personalidade que lhe é própria, para dilatar os domínios do seu pensamento,

compreendendo a vida com mais largueza, e trabalhe na sementeira do bem, atraindo a

cooperação e a simpatia dos outros. Renovação mental, disciplina das emoções, esforço

persistente no bem e meditação sadia não devem ser desprezados na aquisição de nossa

paz, que não pode ser comprada a terceiros e sim construída por nós mesmos na intimidade

do coração. Para isso, o Espiritismo ser-lhe-á valioso campo de luta, no qual conhecerá, com

mais segurança, as suas energias psíquicas, enriquecendo-as pela cultura edificante e pela

caridade bem conduzida.

Todavia, quando a irrequieta senhora ouviu falar em estudo, trabalho, renovação, disciplina,

esforço, meditação, cultura e caridade, perdeu a eloqüência em que se distinguia.

Desapontada, tartamudeou, aflita:

- Julguei obter auxilio mais facilmente...

- Sim, a senhora será ajudada a fim de ajudar-se E porque o relógio modificasse a fisionomia

das horas o diretor convidou:

- Iniciemos agora, minha irmã. Nossos estudos vão começar, à luz da prece.

- Sim - falou a enferma, desencantada -, hoje não posso, mas virei amanhã...

E saiu sem despedir-se. Os dias correram apressados.

Contudo, por mais que os amigos do Grupo a esperassem, solícitos, a consulente não mais

voltou.

33 - A ESTRADA DE LUZ

Quando o primeiro homem desceu aos vales e aos montes da Terra, sentiu que a miséria lhe

entravava todos os passos. Entristecido, ante a contemplação de pântanos e desertos,

voltou, receoso, ao Trono do Senhor e rogou em voz súplice:

- Pai misericordioso, compadece-te de mim! A indigência persegue-me, socorre a minha

extrema- pobreza!...

E o Todo-Bondoso, prometendo-lhe proteção e carinho, recomendou-lhe o trabalho das

mãos.

O homem tornou à gleba escura e triste e agiu, corajosamente.

Improvisando utensílios rústicos, distribuiu as águas, drenou os charcos, selecionou as

plantas frutíferas e conseguiu edificar o primeiro ninho doméstico.

Instalado, porém, na casa simples, reconheceu que a ignorância lhe ensombrava a

Imaginação. Amedrontado com as inibições espirituais que o sufocavam, regressou ao Céu,

Implorando:

- Senhor, Senhor, minha cabeça jaz em trevas... Auxilia-me! Dá-me claridade ao

entendimento!...

E o Todo-Sábio, reafirmando-lhe o seu amor infinito, aconselhou-lhe o trabalho do

pensamento.

Atendendo a indicação, o homem passou a observar com redobrada paciência os fenômenos

que o cercavam, adquirindo preciosas lições da Natureza e criando, com o esforço próprio,

os primeiros livros de pedra.

Ilhado, todavia, em tarefas e estudos, experimentou o anseio de exteriorizar-se e voar... A

solidão amargava-lhe o espírito. Aspirava à comunhão com os outros seres, anelava penetrar

os segredos do firmamento. Depois de muitas lágrimas, retomou ao Paraíso e pediu em

pranto:

- Pai, estou sozinho... Ampara-me! Ajuda-me a fugir do cárcere de mim mesmo!...

O Todo-Poderoso, afagando-lhe a fronte, abençoou -lhe a presença e receitou-lhe o trabalho

dos sentidos.

O homem, surpreso, mobilizou os recursos dos olhos e dos ouvidos e, contemplando as

estrelas luzentes, mirando as flores, auscultando a beleza das pedras e dos metais e ouvindo

as vozes das fontes e dos ventos, descobriu a arte, em cuja companhia pôde afastar-se do

mundo, em espírito, na direção das Esferas Superiores.

Rodeado de enorme descendência, passou a ser visitado pelo cortejo de variadas

enfermidades. Espantado com a ruína física dos filhos e dos netos, recorreu, aflito, ao

Senhor, suplicando, lacrimoso:

- Pai Amado, as moléstias devastam-me a casa... Que será de mim? Assiste-nos com a tua

compaixão!...

O Todo-Amoroso sorriu, compassivo, reiterou-lhe a promessa de auxílio e recomendou-lhe o

trabalho do raciocínio.

Examinando detidamente as plantas e os minerais, o homem conseguiu a formação de

numerosos remédios para combater as doenças que o vergastavam.

Mais tarde, com o aprimoramento da paisagem e com a prosperidade dos seus bens, foi

assaltado por diversas tentações. A inveja, o orgulho e a vaidade sopravam-lhe aos ouvidos

os mais estranhos projetos.

Aflito, procurou o Trono Divino e solicitou, amargurado:

- Senhor, gênios perversos me atormentam a vida!...

Fortalece-me contra a loucura!...

O Todo-Generoso acariciou-lhe a cabeça trêmula e indicou-lhe mais trabalho para a atenção.

O homem tornou à Terra imensa e procurou fugir de si mesmo, através da atividade

incessante, instituindo novas colônias de serviço para a multiplicação das tarefas gerais,

garantindo, com isso, a sua harmonia mental.

Dias rolaram sobre dias... Depois de muitos anos, já encanecido, notou que os seus

inúmeros descendentes surgiam irritados e desarmônicos, a propósito de inutilidades e

ilusões. A discórdia armava entre eles perigosos abismos...

Torturado, o infeliz demandou à Casa do Senhor, mas reparou com surpresa que o Paraíso

elevara-se além das estrelas. . .

Triste e cansado, orou em lágrimas ardentes.

O Todo-Compassivo não veio pessoalmente ouvir-lhe a súplica, mas enviou-lhe um

mensageiro, aureolado de bondade e de luz, que lhe falou carinhosamente:

- Volta ao mundo, em nome do Senhor, e trabalha constantemente. Se teus filhos e netos se

desentendem uns com os outros, dá trabalho ao teu coração, amando, perdoando, servindo

e ensinando sempre...

E, porque o homem indagasse sobre a ocasião sublime em que lhe caberia repousar na

companhia do Eterno Pai, o emissário respondeu, delicado e solícito:

- Vai e constrói. Segue e atende ao progresso. Avança, marcando atua romagem com os

sinais imperecíveis das boas obras!... O trabalho, entre as margens do amor e da reta

consciência, é a estrada de luz que te reconduzirá ao Paraíso, a fim de que a Terra se

transforme no divino espelho da Glória de Deus.

34 - A ESCOLHA DO SENHOR

Conta-se que alguns apóstolos do bem tanto se ergueram na virtude que, pela extrema,

sublimação de suas almas, conseguiram atingir o limiar do Santuário Resplendente do Cristo.

Voltariam ao mundo, no prosseguimento da obra de amor em que se entrosavam, no

entanto, convocados pelos poderes angélicos, poderiam excursionar felizes pelas

vizinhanças do Lar Divino.

Bem-aventurados pela glória e pela bondade, constituíam provisoriamente no Céu toda uma

assembléia de beleza e sabedoria.

Missionários ocidentais ostentavam dalmáticas imponentes, lembrando as instituições

religiosas a que haviam pertencido, enquanto que os santos do Oriente exibiam túnicas

liriais. Veneráveis sacerdotes das igrejas católicas e protestantes confundiam-se com

patriarcas judeus e budistas. Admiráveis seguidores de Confúcio e insignes devotos de

Maomé entendiam-se uns com os outros.

Muito acima das interpretações humanas, tendentes à discórdia, alcançavam, enfim, a

suprema união na esfera dos princípios.

Exornava-se cada um com a mensagem simbólica dos templos que haviam representado.

Anéis, cruzes, báculos, auréolas, colares, medalhas e outras insígnias preciosas

destacavam-se do linho e da púrpura, da seda e do ouro, faiscando ao sol em que se

banhavam.

Entretanto, um deles destoava do brilhante conjunto. Era um antigo servidor do deserto que

não se filiara a igreja alguma. Ibraim Al-Mandeb fora apenas devotado irmão dos infelizes

que vagueavam nas planícies arenosas da Arábia.

Não possuía qualquer sinal que o recomendasse ao respeito e à consideração. Trazia os pés

descalços, em chaga e pó. Na veste rota, mostrava as manchas sanguinolentas das crianças

feridas que havia conchegado de encontro ao peito. As mãos magras e hirsutas pareciam

forradas em couro de camelo, tão calejadas se achavam no rude trabalho de assistência aos

viajantes perdidos. Os cabelos grisalhos e imundos falavam de longas peregrinações sob a

tempestade, e o rosto enrugado e rijo era a pesada moldura de dois olhos belos e lúcidos,

mas encovados e tristes, guardando pavorosas visões das dores alheias que ele havia

socorrido, abnegado e atento.

Isolado no festim, o ancião notou que dois anjos examinavam a assembléia, fazendo

anotações num pergaminho celestial.

Depois de analisarem todos os circunstantes, um por um, abeiraram-se dele, estranhandolhe

a desagradável presença.

Amigo - interrogou um dos emissários -, a que igreja pertenceste na Terra?

- Para que a pergunta? - inquiriu o forasteiro com humildade.

- O Senhor deseja entender-se com um dos visitantes do Lar Divino e estamos relacionando,

por ordem, os nomes daqueles que mais profundamente o amaram no mundo.

- Não se preocupem então comigo! - clamou o anônimo beduíno. - Nunca pude consagrarme

ao culto do Senhor e sinceramente ignoro por que razão fui guindado até aqui, quando

não posso ter lugar entre os eleitos da fé.

- Que fizeste entre os homens?

- Que o Senhor me perdoe à ingratidão e a dureza - suspirou o velhinho -, mas o sofrimento

de meus irmãos não me deu oportunidade de pensar nele. . . Nunca pude refletir na

sublimidade do Paraíso, porque o deserto estava cheio de aflição e lágrimas!...

Vendo que o estranho peregrino prorrompera em pranto, o anjo que se mantivera silencioso

opinou, compreensivo:

- Em verdade, não podemos situar-te na relação dos que amaram o Benfeitor Eterno, mas

colocaremos teu nome no pergaminho, como alguém que amou imensamente os

semelhantes.

O ancião, mergulhando a cabeça nas mãos ossudas, soluçou reconhecido, enquanto os

companheiros presentes comentavam o estranho procedimento daquele que fizera bem sem

se lembrar sequer da existência de Deus.

Contudo, depois de longos minutos de expectação, vasto grupo de mensageiros divinos

penetrou o átrio engalanado de flores, em cânticos de júbilo, trazendo larga faixa com um

nome grafado em caracteres de luz.

Era o nome do velho Ibraim Al-Mandeb. Pretendia o Senhor conversar com ele.

35 - QUESTÃO DE JUSTIÇA

E o velho amigo contou-nos, bem humorado, uma história em torno dos comentários que

enfileirávamos sobre a justiça do mundo:

- Um grande juiz, domiciliado num planeta onde o amor já solidificou suas bases nos

corações, foi indicado para vir à. Terra, a fim de verificar o progresso do Direito entre os

homens.

Grandes gênios da Espiritualidade Superior, desejando aferir os valores da evolução

terrestre, designaram-no para observar os fenômenos da consciência reta, no círculo das

criaturas.

Como estariam as nações terrestres, depois de Jesus - Cristo, o Celeste Orientador justiçado

na cruz? Achar-se-ia a comunidade social integrada no ensinamento do "amai-vos uns aos

outros"?

Grande civilização havia sido fundada, em nome do Mestre Inesquecível.

Sabia-se que a imagem do Senhor constava de múltiplos símbolos patrióticos, nos santuários

e nos parlamentos, nos lares e nas escolas...

Em nome do Cristo, lavravam-se documentos oficiais, expediam-se decretos e instituíam-se

programas educativos. . .

Como estaria sendo aplicada a substância do Evangelho na vida prática? Decerto, o

discernimento irrepreensível permanecia vigilante em todas as casas da direção espiritual.

Para examinar essa realidade, o mensageiro devidamente credenciado vinha ao mundo,

revestido de poder para exprimir-se quanto ao assunto.

Atendendo, desse modo, ao objetivo que o trazia, acompanhamo-lo a uma grande capital da

Civilização moderna, ingressando, de imediato, num tribunal movimentado, em que se

processavam os serviços do julgamento de um homem desvalido e sozinho.

O mísero comparecia, à frente do júri, por haver sido apanhado em delito de furto.

Nós e ó emissário do Plano Superior ficamos a par da verdadeira situação do réu.

Espíritos amigos sustentavam-lhe a coragem moral e a luz da prece coroava-lhe a fronte.

O desventurado pedia a Deus abençoasse a esposa doente e os quatro filhinhos menores

que curtiam dolorosas privações na furna de miséria que lhes servia de lar, rogando o perdão

da Providência Divina para o crime que cometera.

Roubara, sim... Assaltara um empório comercial, cedendo à tentação de apropriar-se de

alguns gêneros alimentícios para a subsistência da família, em negro momento da sorte.

Reconhecia-se, porém, arrependido. Esperava recuperar-se e trabalhar.

Ultrapassara os quarenta anos, e, havendo falido no singelo empreendimento agrícola a que

se afeiçoara por muitos anos, vira-se condenado ao desemprego e ao abandono. Ninguém

desejava contratar a cooperação de um homem considerado velho e inútil. Errara, por

semanas e semanas, à caça de trabalho digno, mas todas as portas cerravam-se,

inflexíveis...

Enquanto a saúde lhe garantira a casa, tivera forças para sobrenadar... Contudo, ante a

mulher enferma e as crianças famintas, não encontrava recurso senão o de mergulhar na

escura corrente das idéias deploráveis que o seduziam ao furto...

Desertara da virtude, caíra lamentavelmente; entretanto, confiaria no porvir. O Senhor ajudálo-

ia a levantar-se...

A oração do réu doía-nos a alma. O examinador da justiça, comovido tanto quanto nós,

aguardou o veredicto, na expectativa de uma corrigenda benéfica, vazada'- em estímulo à

restauração moral do culpado.

Aquele pai sofredor poderia materializar ainda, no mundo, santificantes bênçãos e a justiça

'não deveria incentivá-lo ao desespero e à revolta.

No entanto, com enorme desapontamento para nós, o infeliz foi sentenciado a vinte anos de

prisão.

-0uvindo os soluços convulsivos do infortunado, que reconhecia frustradas todas as

esperanças, o mensageiro do Alto tentou confortá-lo indiretamente e anunciou que visitaria o

dirigente do país, na suposição de conseguir um reajuste.

O tribunal parecia sombreado por estranhas perturbações. .

Provavelmente, inspiraria medidas adequadas à administração da metrópole que visitávamos

e a justiça surgiria no caso, nos moldes indispensáveis da compaixão.

Seguimo-lo, sem detença, atingindo o formoso palácio da governança.

Talvez por coincidência, o magnífico solar vivia um dia de festa. Muita gente ocupava-lhe as

dependências. Carros suntuosos, de altas personalidades, sucediam-se à porta. . .

Num salão, engalanado de flores, o governador foi identificado por nós, no instante preciso

em que, solene, à maneira de um semideus, chamava um homem de nariz adunco e de

olhos felinos e o condecorava sob aplausos gerais.

Alguém nos esclareceu em poucos segundos.

Era o homenageado um insensível oficial de guerra que planejara a morte de milhares de

homens, que depredara por conta própria, que se enriquecera à custa da pilhagem, que

espalhara o infortúnio em diversas direções e que manejara, cruel, variados instrumentos de

destruição.

Ao redor dele, centenas de entidades reclamavam, choravam, gritavam e gemiam, crivandoo

de maldições.

Era precisamente esse homem o herói da festa, glorificado pela autoridade máxima da

nação, com significativa medalha de honra.

O magistrado espiritual procurou comunicar-se, em espírito, com alguns dos responsáveis,

mas todas as atenções estavam centralizadas na ruidosa alegria do ambiente, regada por

numerosas taças de saborosa champanha,...

Vimos, então, o mensageiro do Alto, em atitude de profunda tristeza, a, despedir-se com um

gesto amável de adeus, remontando ao mundo feliz de onde viera.

O narrador fez longa pausa... Afinal, quebrando o silêncio, alguém perguntou:

- Mas nunca mais receberam notícias do emissário desencantado? Como teria ele

respondido aos instrutores quanto à missão que lhe fora confiada?

O velho companheiro sorriu, demoradamente, e esclareceu:

- Tivemos notícias, sim... As interpelações dos Mentores da Vida Mais Alta, notificou que

havia algo errado na máquina da justiça humana e que, por isso, rogava o prazo de

quinhentos anos para continuar observando os homens, a fim de responder...

Os comentários de nossa pequena assembléia continuaram acesos, mas o ancião entrou em

silêncio e, embora instado por nossas interrogações, calado e sorridente, despediu-se de

nós.

36 - DEUS SEJA LOUVADO

No recinto ataviado, aqueles dezenove companheiros da prece conversavam animadamente,

embora a noite gélida.

Comentava-se o devotamento de muitos, dos africanos -desencarnados que, não obstante

libertos do vaso físico, prosseguem nas mais nobres - tarefas de auxilio.

E, enquanto aguardavam o horário fixado para o início da sessão mediúnica, todas as

opiniões mantinham estreita afinidade nos pontos de vista.

- Realmente - afirmava Dona Celeste -, jamais pagarei o que devo a esses heróis anônimos

da humildade. Há muitos anos venho recebendo de todos eles os mais amplos testemunhos

de amor.

- Lembram-se daquela entidade que se fazia conhecer por "mãe Felícia"? - perguntou Dona

Ernestina ao grupo atento. - Desde que ela me administrou passes aos pulmões enfermos,

minha recuperação foi completa.

- E o nosso adorável Benedito? - considerou Félix, o fervoroso padeiro que dirigiria o culto da

noite - ainda não recorri a ele sem resultado. Em todas as circunstâncias é o mesmo

admirável amigo. Abnegado, diligente, sincero.. .

- Eu - aclarava Dona Adélia -, tenho como generoso protetor um ,velho africano que se dá a

conhecer por "pai Amâncio". É um modelo de paciência, ternura e bondade. Parece ter

trazido da escravidão todo um tesouro de sabedoria e carinho...

- Isso mesmo - ajuntou Fernandes, companheiro atencioso do círculo' -, é indispensável

saibamos que muitas dessas entidades, aparentemente apagadas e simples, são grandes

almas de escol no progresso da inteligência, que se vestiram de escravos, ao tempo do

cativeiro, conquistando a grandeza do coração. Quantos sábios de outrora surgem por trás

desses nomes humildes, lavando as nossas mazelas e curando as nossas chagas?

- Sim, sim... - ponderava Ernesto, caloroso defensor da caridade na pequena assembléia - e,

sobretudo, devemos aprender com eles a ciência do amor desinteressado e puro. Nunca os

vi desesperar à frente de nossos petitórios incessantes... Como lhes negar a nossa

admiração e respeito Incondicionais?

A conversa prosseguia, no mesmo tom, até que as oito pancadas do relógio fizeram que

Félix convocasse o pessoal ao silêncio e à oração.

Os dezenove amigos consagraram-se a alguns minutos de leitura e comentário de precioso

livro evangelizante e, em seguida, Dona Amália, a médium mais experiente da equipe,

albergou o irmão Benedito, denodado benfeitor do agrupamento, que, ao se apresentar, foi

logo interpelado de maneiras diversas pelos circunstantes.

Dona Celeste rogou-lhe amparo em favor de um mano desempregado, Dona Adélia pediu

ajuda para a solução de velha pendência que lhe levara o nome a um tribunal, Ernesto

solicitou concurso para deteml1nado tio, portador de úlcera gástrica... .

E não houve quem não formulasse requisições e perguntas.

O velho africano respondeu a todos com invariável benevolência e, afinal, encerrando a

reunião, falou, emocionado, pela médium:

- Meus amigos, há longos anos estamos juntos...

Para nós, os irmãos desencarnados, esse largo convívio tem sido uma bênção...

Hoje, invocamos nossa amizade para suplicar-lhes sublime favor...

Com muita alegria, sentimo-nos ainda felizes escravos de vocês todos... Em todos vocês,

encontramos filhos do coração cujas dificuldades e dores nos pertencem... Ah! meus filhos,

mas, em verdade, temos também nossos descendentes na Terra! Nossos rebentos, nossos

netos... Quantos deles vagueiam sem rumo! Quantos suspiram pela graça do alfabeto!

Quantos se perdem nos morros de sofrimento ou nos vales de treva, entre a ignorância e a

miséria, a enfermidade e a viciação! Não seria melhor fossem eles cativos nas senzalas do

trabalho que prisioneiros nos charcos do crime?

É por isso que vimos rogar a vocês caridade para eles.. .

São milhares de criancinhas abandonadas, assim como folhas de arvoredo no vendaval!...

Peço-lhes, de joelhos, para que venhamos a iniciar uma cruzada de amor, na solução de

problema assim tão grave...

Se cada um de nossos amigos abrigar um só de nossos pequeninos, na intimidade do templo

doméstico, ofertando-lhes o nível de experiência em que sustentam a própria família, decerto

que, em pouco tempo, teremos resolvido o enigma doloroso...

Não lhes rogo a fundação de abrigos para meninos de pele escura. .. Isso seria alimentar a

discórdia de raça e dilatar a separação. Suplico-lhes um pedaço de lar para eles, um pouco

de carinho que nasça, puro, do coração.

Se vocês iniciarem semelhante trabalho, o bom exemplo estará vicejando e produzindo frutos

de educação e luz na prática fraterna...

O amigo espiritual entregou-se a longa pausa, como quem observava o efeito de suas

palavras; entretanto, como ninguém rompesse a quietude, insistiu, generoso: - Quem de

vocês desejará começar?

Constrangidos, assim, à resposta direta todos os companheiros se revelaram entre a

evasiva e a negação.

Dona Celeste alegou a condição de esposa sacrificada por marido exigente.

Dona Ernestina acusou-se velha demais para ser útil numa iniciativa de tão elevado alcance.

Dona Josefa explicou que tinha a existência presa aos caprichos de uma filha que lhe não

concedia o menor prazer.

Ernesto clamou que o tempo lhe fugia em carreira desabalada. . .

Ninguém poderia corresponder favoravelmente à petição. .

Estavam todos doentes, fatigados, velhos, sacrificados ou sem horário suficiente para a

lavoura do bem.

E o próprio Félix, a quem cabia o governo da casa, explicou em voz sumida:

- Quem sou eu, pequenino e miserável servo do Senhor, para encetar um empreendimento

assim tão grande?

Foi então que o benfeitor espiritual, sentindo talvez o frio ambiente, encerrou o assunto,

dizendo, resignado:

- Benedito compreende, meus irmãos! Sabemos que vocês nos ajudarão, quanto seja

possível..

Até a semana próxima, quando estaremos novamente aqui, aprendendo com vocês as lições

do Evangelho de Nosso Senhor...

E, sorrindo desapontado, despediu-se afirmando como sempre:

- Que Deus seja louvado!

37 - LENDA SIMBÓLICA

Existe no folclore de várias nações do mundo antiga lenda que exprime comumente a

verdade de nossa vida.

Certo homem que pervagava, infeliz, padecendo intempérie e solidão, encontrou valiosa

pedra em que se refugiou, encantado.

A maneira de concha em posição vertical, o minúsculo penhasco protegia-o contra as bagas

de chuva, ofertando-lhe, ao mesmo tempo, o colo rijo sobre o qual vasta porção de folhas

secas lhe propiciava adequado ninho.

O atormentado viajor agarrou-se, contente, a semelhante habitação e, longe de consagrar-se

ao trabalho honesto para renová-la e engrandecê-la, confiou-se à pedintaria.

Além, jornadeavam companheiros de Humanidade em provações mais aflitivas que as dele,

contudo, acreditava-se o mais infortunado de todos os seres e preferia examiná-los através

da inveja e da irritação.

Adiante, sorria a gleba luxuriosa, convidando-o à sementeira produtiva, no entanto, ocultava

as mãos nos andrajos que lhe cobriam a pele, alongando-as simplesmente para esmolar.

Na imensidão do céu, cada manhã, surgia o Sol, como glorioso ministro da Luz Divina,

exortando-o ao labor digno, mas o desditoso admitia-se incapacitado e enfermo de tal sorte,

que não se atrevia a deixar a pedra protetora.

Ouvia de lábios benevolentes incessantes apelos à própria renovação, a fim de exercitar-se

na prática do bem, a favor de si mesmo, mas, extremamente cristalizado na ociosidade e no

desalento, replicava com evasivas, definindo-se como sofredor irremediável, vomitando

queixas ou disparando condenações.

Não podia trabalhar por faltarem-lhe recursos, não estudava por fugir-lhe o dinheiro, não

ajudava de modo algum a ninguém por ser pobre até à miserabilidade completa, dizia entre

sucessivas lamentações.

Rogava pão, suplicava remédio, mendigava socorro de todo gênero, acusando o destino e

insultando o próximo. . .

Por mais de meio século demorou-se na pedra muda e hospitaleira, até que a morte lhe

visitou os farrapos, arrebatando-o da carne às surpresas do seu reino.

Foi então que mãos operosas removeram o enorme calhau para que a higiene retornasse à

paisagem, encontrando sob a pequena rocha granítica um imenso tesouro de moedas e

jóias, suscetível de assegurar a evolução e o conforto de grande comunidade.

O devoto da inércia experimentara desolação e necessidade, por toda a existência, sobre um

leito de inimaginável riqueza.

Assim somos quase todos nós, durante a reencarnação. .

Almas famintas de progresso e acrisolamento, colamo-nos ao grabato físico para a aquisição

de conhecimento e virtude, experiência e sublimação, mas, muito longe de entender a nossa

divina oportunidade, desertamos da luta e viajamos no mundo à feição de mendigos

caprichosos e descontentes, albergando amarguras e lágrimas, no culto disfarçado da

rebeldia.

E, olvidando nossos braços que podem agir para o bem, estendemo-los não para dar e sim

para recolher, pedindo, suplicando, retendo, reclamando e exigindo, até que chega o

momento em que a morte nos faz conhecer o tesouro que desprezamos.

Se a lenda que repetimos pode merecer-te atenção, aproveita o aconchego do corpo a que

te acolhes, entregando-te à construção do bem por amor ao bem, na certeza de que a tua

passagem na Terra vale por generosa bolsa de estudo, e de que amanhã regressarás para o

ajuste de contas em tua esfera de origem.

38 - A ESMOLA DA COMPAIXÃO

De portas abertas ao serviço da caridade, a casa dos Apóstolos em Jerusalém vivia repleta,

em rumoroso tumulto.

Eram doentes desiludidos que vinham rogar esperança, velhinhos sem consolo que

suplicavam abrigo. Mulheres de lívido semblante traziam nos braços crianças aleijadas, que

o duro guante do sofrimento mutilara ao nascer, e, de quando em quando, grupos de irmãos

generosos chegavam da via pública, acompanhando alienados mentais para que ali

recolhessem o benefício da prece. Numa sala pequena, Simão Pedro atendia,prestimoso.

Fosse, porém, pelo cansaço físico ou pelas desilusões hauridas ao contacto com as

hipocrisias do mundo, o antigo pescador acusava irritação e fadiga, a se expressarem nas

exclamações de amargura que não mais podia conter.

- Observa aquele homem que vem lá, de braços secos e distendidos? - gritava para Zenon, o

companheiro humilde que lhe prestava concurso - aquele é Roboão, o miserável que

espancou a própria mãe, numa noite de embriaguez... Não é justo sofra, agora, as

conseqüências? E pedia para que o enfermo não lhe ocupasse a atenção.

Logo após, indicando feridenta mulher que se arrasava, buscando-o, exclamou,

encolerizado:

- Que procuras, infeliz? Gozaste no orgulho e na crueldade, durante longos anos... Muitas

vezes, ouvi-te o riso imundo à frente dos escravos agonizantes que espancavas até à

morte... Fora daqui! Fora daqui!...

E a desmandar-se nas indisposições de que se via tocado, em seguida bradou para um

velho paralítico que lhe implorava socorro:

- Como não te envergonhas de comparecer no pouso do Senhor, quando sempre devoraste

o ceitil das viúvas e dos órfãos? Tuas arcas transbordam de maldições e de lágrimas. . . O

pranto das vítimas é grilhão nos teus pés. . .

E, por muitas horas, fustigou as desventuras alheias, colocando à mostra, com palavras

candentes e incisivas, as deficiências e os erros de quantos lhe vinham suplicar reconforto.

Todavia, quando o Sol desaparecera distante e a névoa crepuscular invadira o suave refúgio,

modesto viajante penetrou o estreito cenáculo, exibindo nas mãos largas nódoas

sanguinolentas.

No compartimento, agora vazio, apenas o velho pescador se dispunha à retirada, suarento é

abatido.

O recém-vindo, silencioso, aproximou-se, sutil, e tocou-o docemente.

O conturbado discípulo do Evangelho só assim lhe deu atenção, clamando, porém,

impulsivo:

- Quem és tu, que chegas a estas horas, quando o dia de trabalho já terminou?

E porque o desconhecido não respondesse, insistiu com inflexão de censura:

- Avia-te sem demora! Dize depressa a que vens...

Nesse instante, porém, deteve-se' a contemplar as rosas de sangue que desabotoavam

naquelas mãos belas e finas. Fitou os pés descalços, dos quais transpareciam, ainda vivos,

os rubros sinais dos cravos da cruz e, ansioso, encontrou no estranho peregrino o olhar que

refletia o fulgor das estrelas...

Perplexo e desfalecente, compreendeu que se achava diante do Mestre, e, ajoelhando-se,

em lágrimas, gemeu, aflito:

- Senhor! Senhor! Que pretendes de teu servo? Foi então que Jesus redivivo afagou-lhe a

atormentada cabeça e falou em voz triste:

- Pedro, lembra-te de que não fomos chamados para socorrer as almas puras... Venho rogarte

a caridade do silêncio quando não possas auxiliar! Suplico-te para os filhos de minha

esperança a esmola da compaixão...

O rude, mas amoroso pescador de Cafarnaum, mergulhou a face nas mãos calosas para

enxugar o pranto copioso e sincero, e quando ergueu, de novo, os olhos para abraçar o

visitante querido, no aposento isolado somente havia a sombra da noite que avançava de

leve.

39 - INFORTÚNIO MATERNO

Em pleno hospital da Espiritualidade, pobre criatura estendeu-nos o olhar suplicante e rogou:

- O senhor consegue escrever para a Terra?

- Quando mo permitem - repliquei entre pesaroso e assombrado.

Quem era aquela mulher que me interpelava desse modo?

A fisionomia escaveirada exibia recordações da morte. A face inundada de pranto tinha

esgares de angústia e as mãos esqueléticas e entrefechadas davam a idéia de garras em

forma de conchas.

Dante não conseguiria trazer do Inferno imagem mais desolada de sofrimento e terror.

- Escreva, escreva! - repetia chorando.

- Mas escrever a quem?

- As mulheres... - clamou a infeliz. - Rogue-lhes não fujam da maternidade nobre e digna...

peço não façam do casamento uma estação de egoísmo e ociosidade...

Os soluços a lhe rebentarem do peito induziam-nos a doloroso constrangimento.

E a infeliz contou em lágrimas:

- Estive na Terra, durante quase meio século... Tomei corpo entre os homens, após

entender-me com um amigo dileto que seguiu, antes de mim, no rumo da arena carnal, onde

me recebeu nos braços de esposo devotado e fiel. Com assentimento dos instrutores, cuja

bondade nos obtivera o retorno à escola física, comprometemo-nos a recolher oito filhinhos,

oito corações de nosso próprio passado espiritual, que por nossa culpa direta e indireta

jaziam nas fumas da crueldade e da indisciplina... Cabia-nos acolhê-los carinhosamente,

renovando-lhes o espírito, ao hálito de nosso amor... Suportar-lhes-íamos as falhas

renascentes, corrigindo-as pouco a pouco, ao preço de nossos exemplos de bondade e

renúncia... Nós mesmos solicitáramos semelhante serviço... Para alcançar mais altos níveis

de evolução, suplicamos a prova reparadora... Saberíamos morrer gradativamente no

sacrifício pessoal, para que os associados de nossos erros diante da Lei Divina

recuperassem a noção da dignidade.

A triste narradora fez longa pausa que não ousamos interromper e continuou:

- Entretanto, casando-me com Cláudio, o amigo a que me reportei, fui mãe de um filhinho,

cujo nascimento não pude evitar...

Paulo, o nosso primogênito, era uma pérola tenra em nossas mãos... Despertava em meu

ser comoções que o verbo humano não consegue reproduzir... Ainda assim, acovardada

perante a luta, por mais me advertisse o esposo abençoado, transmitindo avisos e apelos da

Vida

Superior, detestei a maternidade, asilando-me no prazer... Cláudio era compelido a gastar

largas somas para satisfazer-me nos caprichos da moda... Mas a frivolidade social não era o

meu crime. .. Nas reuniões mundanas mais aparentemente vazias pode a alma aprender

muito quando resolve servir ao bem. .. Cristalizada, contudo, na preguiça, qual flor inútil a

viver no luxo dourado, por doze vezes pratiquei o aborto confesso... Surda' aos ditames da

consciência que me ordenava o apostolado maternal, expulsei de mim os antigos laços que

em outro tempo se acumpliciavam comigo na delinqüência, assassinando as horas de

trabalho que o Senhor me havia facultado no campo feminino... E, após vinte anos de

teimosia delituosa, ante o auxílio constante que me era conferido pelo Amparo Celestial,

nossos Benfeitores permitiram, para minha edificação, fosse eu entregue aos resultados de

minha própria escolha... Enlaçada magneticamente àqueles que a Divina Bondade me

restituiria por filhos ao coração e aos quais recusei guarida em minha ternura, fui obrigada a

tolerar-lhes o assalto invisível, de vez que, seis deles, extremamente revoltados contra a

minha ingratidão, converteram-se em perseguidores de minha felicidade doméstica...

Fatigado de minhas exigências, meu esposo refugiou-se no vício, terminando a existência

num suicídio espetacular... Meu filho, ainda jovem, sob a pressão dos perseguidores ocultos

que formei para a nossa casa, caiu nas sombras da alienação mental,desencarnando em

tormento indescritível num desastre da via pública, e eu... pobre de mim, abordando a

madureza, conheci a dolorosa tumoração das próprias entranhas... A veste carnal, como que

horrorizada de minha presença, expulsou-me para os domínios da morte, onde me arrastei

largo tempo, com todos os meus débitos terrivelmente agravados, sob a flagelação e o

achincalhe daqueles a quem podia ter renovado com o bálsamo de meu leite e com a bênção

de minha dor...

A desditosa enferma enxugou as lágrimas com que nos acordava para violenta emoção e

terminou:

- Fale de minha experiência às nossas irmãs casadas e robustas que dispõem de saúde para

o doce e santo sacrifício de mãe! Ajude-as a pensar... Que não transformem o matrimônio na

estufa de flores inebriantes e improdutivas, cujo perfume envenenado lhes abreviará o passo

na direção das trevas... Escreva!... Diga-lhes algo do martírio que espera, além da morte,

quantos quiseram ludibriar. a vida e matar as horas.

A mísera doente, sustentada por braços amigos, foi conduzida a vasta câmara de repouso e,

impressionados com tamanho infortúnio, tentamos cumprir-lhe ri desejo e transmitir-lhe a

palavra; contudo, apesar do respeito que consagramos à mulher de nosso tempo, cremos

que o nosso êxito seria mais seguro se caminhássemos para um cemitério e assoprássemos

a mensagem para dentro de cada túmulo.

40 - NOS DOMÍNIOS DA SOMBRA

Em compacta assembléia do reino das sombras, um poderoso soberano das trevas, diante

de milhares de falangistas da miséria e da ignorância, explicava o motivo da grande reunião.

O Espiritismo com Jesus, aclarando a mente humana, prejudicava os planos infernais.

Em toda parte da Terra, as criaturas começavam a raciocinar menos superficialmente!

Indagavam, com segurança, quanto aos enigmas do sofrimento e da morte e aprendiam,

sem maior dificuldade, as lições da Justiça

Divina. Compreendiam, sem cadeias dogmáticas, os ensinamentos do Evangelho. Oravam

com fervor. Meditavam na reencarnação e passavam a interpretar com mais inteligência os

deveres que lhes cabiam no Planeta.

Muita gente entregava-se aos livros nobres, à caridade e à compaixão, iluminando a

paisagem social do mundo e, por isso, todas as atividades da sombra surgiam ameaçadas. .

.

Que fazer para conjurar o perigo?

E pediu para que os seus assessores apresentassem sugestões.

Depois de alguns momentos de expectativa, ergueu-se o comandante das legiões da

incredulidade e falou:

- Procuremos veicular a crença de que Deus não existe e de que as criaturas viventes estão

entregues a forças cruéis e fatais da Natureza...

O maioral das trevas, porém, objetou, desencantado:

- O argumento não serve. Quanto mais avançamos nos trilhos da inteligência mais

reconhece o homem a Paternidade de Deus, sendo atraído inelutavelmente para a fé ardente

e pura.

Levantou-se, no entanto, o orientador das legiões da vaidade e opinou:

- Espalharemos a notícia de que Jesus nada tem que ver com o Espiritismo, que as

manifestações dos desencarnados se resumem num caso fisiológico para as conclusões da

Ciência, e, desnorteando os profitentes da Renovadora Doutrina, faremos com que gozem a

vida no mundo, como melhor lhes pareça, sem qualquer obrigação para com o Evangelho e,

assim, serão colhidos no túmulo, com as mesmas lacunas morais que trouxeram do berço.

O rei das sombras anuiu, complacente:

- Sim, essa ilusão já foi muito importante, contudo, há milhares de pessoas despertando para

a verdade, na certeza de que as portas do sepulcro não se abririam para os vivos da Terra,

sem a intervenção de Jesus.

Nesse ponto, o diretor das falanges da discórdia pôs-se de pé e conclamou:

- Sabemos que a força dos espíritas nasce das reuniões em que se congregam para a

oração e para o aprendizado da Vida Espiritual, e nas quais tomam contacto com os

Mensageiros da Luz... Assim sendo, assopraremos acizânia entre os seguidores dessa

bandeira transformadora, exagerando-lhes a noção da dignidade própria. Separá-los-emos

uns dos outros com o invisível bastão da maledicência. Chamaremos em nosso auxílio os

polemistas, os discutidores, os carregadores de lixo social, os fiscais do próximo e os

examinadores de consciências alheias para que os seus templos se povoem de feridas e

mágoas incuráveis e, assim, os irmãos em Cristo saberão detestar-se uns aos outros, com

sorrisos nos lábios, inutilizando-se para as obras do bem.

O chefe satânico, todavia, considerou:

- Isso é medida louvável, contudo necessitamos de providência de efeito mais profundo,

porque sempre aparece um dia em que as brigas e os desacordos terminam com os

remédios da humildade e com o socorro da oração.

A essa altura, ergueu-se o condutor das falanges da desordem e ponderou:

- Se o problema é de reuniões, conseguiremos liquidá-lo em três tempos. Buscaremos

sugerir aos membros dessas instituições que o lugar dos conclaves é muito longe e que não

lhes convém afrontar as surpresas desagradáveis da via pública. Faremos que o horário das

reuniões coincida com o lançamento de filmes especiais ou com festividades domésticas de

data fixa. Improvisaremos tentações determinadas para os companheiros que possuam

maiores deveres e responsabilidades junto às assembléias, a fim de que os iniciantes não

venham a perseverar no trabalho da própria elevação. Organizaremos dificuldades para as

conduções e atrairemos visitas afetuosas que cheguem no momento exato da saída para os

cultos espiritas-cristãos. Tumultuaremos o ambiente nos lares, escondendo chapéus e

bolsas, carteiras e chaves para que os crentes se tomem de mau humor, desistindo do

serviço espiritual e desacreditando a própria fé.

O soberano das .trevas mostrou larga satisfação no semblante e ajuntou:

- Sim, isso é precioso trabalho de rotina que não podemos menosprezar. Entretanto,

carecemos de recurso diferente. . .

O responsável pelas falanges da dúvida ergueu-se e disse:

- As reuniões referidas são sempre mais valiosas com o auxílio de médiuns competentes.

Buscaremos desalentá-los e dispersá-los, penetrando a onda mental em que se comunicam

com os Benfeitores Celestes, fazendo-lhes crer que a palavra do Além resulta de um engano

deles próprios, obrigando-os a se sentirem mentirosos, palhaços, embusteiros e

mistificadores, sem qualquer confiança em si mesmos, para que as assembléias se vejam

incapazes e desmoralizadas...

O mentor do recinto aprovou a alegação, mas considerou:

- Indiscutivelmente, o combate aos médiuns não pode esmorecer, entretanto, precisamos de

providência mais viva, mais penetrante...

Foi então que o orientador das falanges da preguiça se levantou, tomou a palavra, e falou

respeitoso:

- Ilustre chefe, creio que a melhor medida será recordar ao pensamento de todos os

membros das agremiações espíritas que Deus existe, que Jesus é o Guia da Humanidade,

que a alma é imortal, que a Justiça Divina é indefectível, que a reencarnação é uma verdade

inconteste e que a oração é uma escada solar, reunindo a Terra ao Céu...

O soberano das sombras, porém, entre o espanto e a ira, cortou-lhe a palavra, exclamando:

- Onde pretende chegar com semelhantes afirmações?

O comandante dos exércitos preguiçosos acrescentou, sem perturbar-se:

- Sim, diremos que o Espiritismo com Jesus, pedindo às almas encarnadas para que se

regenerem, buscando o conhecimento superior e servindo à caridade, é, de fato, o roteiro da

luz, mas que há tempo bastante para a redenção, que ninguém precisa incomodar-se, que as

realizações edificantes não efetuadas numa existência podem ser atendidas em outras, que

tudo deve permanecer agora como está no íntimo de cada criatura na carne para vermos

como ficarão depois da morte, que a liberalidade do Senhor é incomensurável e que todos os

serviços e reformas da consciência, marcados para hoje, podem ser transferidos para

amanhã... Desse modo, tanto vale viverem no Espiritismo como fora dele, com fé ou sem fé,

porque o salário de inutilidade será sempre o mesmo...

O rei das sombras sorriu, feliz, e concordou:

- Oh! até que enfim descobrimos a solução!...

De todos os lados ouviam-se risonhas exclamações: - Bravos! Muito bem! Muito bem!

O argumento do astucioso condutor das falanges da inércia havia vencido.