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sábado, 5 de fevereiro de 2011

A Pedra e o Joio- J. Herculano Pires

 

Índice do Blog

J. HERCULANO PIRES

A PEDRA

E O JOIO

Vanitas vanitatum, et omnia vanitas.

(Eclesiastes I:2.)

EDIÇÕES CAIRBAR

Rua Dr. Bacelar 505 — (04026)

São Paulo, 1975

1.ª Edição — 1975

Capa: ROB. A pedra e o JoIo, junto à água pura de Kardec.

Rio Grande, em São João Batista do Glória (MG), na primavera de 1974.

Copyright by EDIÇÕES CAIRBAR, Rua Dr. Bacelar, 505 - São Paulo-Capital. Código postal 04026.

Impresso no Brasil


A PEDRA

O símbolo da pedra de toque é usado neste livro para representar a Codificação do Espiritismo. Qual­quer novidade que apareça no meio doutrinário pode revelar a sua le­gitimidade ou a sua falsidade num simples toque dos seus princípios com os da doutrina codificada. Na crítica aprofundada que faz da Teoria Corpuscular do Espírito oferece um modelo seguro de análise a que devem ser submetidas todas as inovações propostas. De posse desse modelo os estudiosos terão um roteiro eficiente para sua ori­entação no uso do bom senso e da razão crítica.

A palavra crítica é aqui usada no sentido clássico de avaliação de uma obra ou de uma teoria, e não no sentido popular de censu­ra ou maledicência. A crítica como avaliação é indispensável ao desen­volvimento da cultura, ao aprimo­ramento da inteligência. Sem a justa apreciação de livros e dou­trinas estamos sujeitos a enganos que nos levarão a situações desas­trosas. Há doutrinas apresentadas com roupagem literária e científi­ca enganadora. Precisamos despi-las para chegar à verdade que, segundo a tradição, só pode ser conhecida em sua nudez.


O JOIO

O joio é uma excelente de gramí­nea que nasce no meio do trigo, prejudicando a seara. No Evangelho ele aparece como símbolo de doutrinas errôneas. O autor utilizou dessa imagem para caracteri­zar as pretensas renovações dou­trinárias que surgem no meio es­pírita. Passa em revista as que mais se destacam no momento, ad­vertindo o leitor contra os perigos que apresentam, e aprofunda a sua crítica, de maneira minuciosa e severa, ao tratar da que lhe pa­rece mais representativa.

Seu objetivo é mostrar a neces­sidade de encarar-se o Espiritismo como uma doutrina apoiada em métodos seguros de pesquisa e in­terpretação da realidade, que não pode ser tratada com leviandade. Oferece ao leitor uma exposição do método de Kardec, até hoje prati­camente não analisado, e chama a atenção dos estudiosos para a im­portância de conhecerem esse mé­todo, a fim de não se deixarem enganar pelo joio e poderem exa­minar de maneira eficaz as novi­dades que surgem no meio doutrinário.

Um pequeno livro de grande o profundo conteúdo, indispensável a todos os que desejam evitar cofusões no estudo da doutrina.

ÍNDICE

Na Hora do Toque............................................................................................ 7

A Questão Metodológica.................................................................................. 17
O Método de Kardec........................................................................................ 23
A Teoria Corpuscular....................................................................................... 29
Atualização do Espiritismo............................................................................... 35
Conceitos Mecanicistas.................................................................................... 39
Quem não Pode o Menos.................................................................................. 43
Autocriação do Espírito................................................................................... 47
O Comparsa da Matéria................................................................................... 50

Reforma Doutrinária Total............................................................................... 53


Na Hora do Toque

O toque é a forma mais comum de verificação da verdade. Usa-se o toque na Medicina, na Agricultura, na Joalheria — onde é tão conhecida a função da pedra de toque — e praticamente em todas as atividades humanas. Foi pelo toque dos dedos nas chagas que Tomé reconheceu a legitimidade da aparição de Jesus ressuscitado. No Espiritismo a pe­dra de toque é a obra de Kardec.

Mas porque essa obra e não outra? É bom que se deixe bem esclarecido esse porquê, pois há multas pessoas que não entendem a razão disso e acham que se dá preferência a Kardec por motivos emocionais e até por fanatismo. Vamos tentar esclarecer o assunto da maneira mais rápida e ra­cional.

1.º) A obra de Kardec não é pessoal, não é só dele. Era preciso alguém responder pela obra. O Prof. Denizard Rivail, como se sabe, resolveu assumir essa responsabilidade e assinou-a com um pseudônimo: Allan Kardec, nome que ha­via possuído em encarnação anterior, quando sacerdote druida, entre os celtas. A obra é dos Espíritos Superiores da luminosa falange do Consolador ou Espírito da Verdade, que Jesus prometeu enviar à Terra quando os homens estivessem aptos para compreender a sua doutrina em essência. Por isso Kardec deu ao livro básico da doutrina o título de O Livro dos Espíritos e à própria doutrina o nome de Espiritismo. Por isso também os demais livros da Codificação trazem como subtítulo esta expressão: Segundo o Espiritismo, ou seja, de acordo com a Doutrina dos Espíritos.

A doutrina, portanto, não é de Kardec, mas dos Espíritos Superiores que a revelaram a Kardec. Não obstante, Kardec fez a sua parte, quer através das perguntas que fazia aos Espíritos, quer através dos comentários explicativos que escreveu em todos esses livros. Esses comentários foram sempre


submetidos por Kardec ao exame dos Espíritos, que os aprovavam ou emendavam. Kardec submetia tudo ao exa­me da razão, realizando um trabalho de cerca de quinze anos, sempre assistido pelos Espíritos Superiores dirigidos pelo Es­pírito da Verdade.

2.º) Desde 1857, quando foi publicado O Livro dos Es­píritos, até hoje, nenhum dos princípios do Espiritismo foi desmentido pela Ciência ou pela Filosofia. Pelo contrário, todos eles têm sido sistematicamente confirmados por am­bas. Quanto à Religião, nunca teve condições para contra­dizer o Espiritismo de maneira positiva, tentando sempre fazê-lo de maneira autoritária ou dogmática, sempre no in­teresse particular dos princípios de cada seita.

Hoje o avanço das Ciências e da Filosofia confirma de maneira inegável e impressionante a legitimidade da Dou­trina Espírita. As descobertas mais recentes da Parapsicologia, da Física e da Biologia nada mais fazem do que com­provar a verdade dos princípios espíritas, sem que os investigadores tivessem essa intenção. Até mesmo quando pensam haver negado o Espiritismo, os investigadores, sem o saber, o estão comprovando. Isso prova a solidez da obra de Kardec.

3.º) A Bíblia, livro religioso dos judeus, anunciou a vinda de Jesus. Os Evangelhos, que formam o livro reli­gioso do Cristianismo, anunciaram a vinda do Espírito da Verdade. Os Espíritos Superiores que hoje se manifestam são unânimes em afirmar que Kardec foi o discípulo de Jesus enviado à Terra para realizar a codificação do Espiritismo, doutrina que representa a continuação histórica do Cristianismo e restabelece os ensinos do Cristo em espírito e verdade.

As reformas religiosas por que passam hoje as Igrejas estão se processando de acordo com a orientação dada pelos princípios espíritas. As próprias pesquisas da Astronáutica, a ciência mais audaciosa do nosso tempo, estão confirmando o que os Espíritos disseram a Kardec sobre os mundos do Espaço, a infinitude do Universo, a inexistência do vácuo, a variedade infinita das formas da matéria e assim por diante.


4.º) Quanto mais avança o Conhecimento, mais se vão descobrindo as relações da obra de Kardec com as alegorias e simbologias religiosas da chamada Sabedoria Antiga, das mais velhas religiões da Índia, da China, do Egito, da Ba­bilônia e assim por diante. Com tudo isso, o Espiritismo se confirma dia a dia como a doutrina do futuro. Ainda há pouco os jornais e revistas do mundo inteiro noticiaram que os cientistas soviéticos, os mais materialistas do mundo, vi­ram-se obrigados a discutir a obra de Kardec num grande simpósio científico realizado na Rússia, e isso em virtude das recentes descobertas realizadas por eles na investigação da Física e da Biologia, com referência à antimatéria e ao corpo energético do homem, ou corpo bioplasmático, que na verdade confirma a teoria do perispírito ou corpo semimaterial do homem, que é um dos princípios fundamentais do Espiritismo. Nenhuma outra doutrina, em todo o mundo, tem recebido tão ampla e decisiva confirmação das pesquisas científicas modernas.

5.º) No campo da Filosofia passa-se a mesma coisa. A corrente filosófica que caracteriza o nosso século, a das chamadas Filosofias da Existência, não obstante suas diversas ramificações, confirmam no geral a teoria espírita da na­tureza transcendente do homem. E por outro lado seguem o caminho do Espiritismo no estudo e na investigação da natureza humana, partindo do homem na existência para chegar à compreensão progressiva dessa natureza. Tudo converge, no pensamento atual, para a comprovação da legitimidade da obra de Kardec.

Diante desse panorama positivo, qualquer obra que pretenda superar Kardec ou subestimar a Doutrina Espírita precisa ser submetida à prova do toque. E essa prova só pode ser feita de duas maneiras: de um lado, conferindo-se a pretensa superação com a obra de Kardec para verificar-se qual das duas está mais coerente e apresenta maior coesão, maior unidade e firmeza nos seus princípios; de outro lado, conferindo-se, como recomenda o próprio Kardec, os princípios da pretensa superação com as exigências do pensamento atual em todos os campos de nossa atividade mental.

A obra de Kardec tornou-se, após um século de sua negação e rejeição pelos adversários, na pedra de toque da legitimidade­


das novas obras e novas teorias que vão surgindo no mundo. É por isso que essa obra — a obra de Kardec — oferece-nos os elementos necessários a uma crítica válida e a uma apreciação verdadeira das novas doutrinas que pretendem modificá-la ou superá-la. Se alguém nos apresentar outra obra em melhores condições do que essa, para servir de pedra de toque, estaremos prontos a trocar a pedra. Mas enquanto a obra de Kardec continuar nessa posição, não temos razão para substituí-la.

Convém lembrar ainda este ponto importante: a falência total ou parcial da obra de Kardec representará a falência total ou parcial dos Espíritos Superiores, particularmente do Espírito da Verdade, e conseqüentemente a falência dos ensinos do Cristo.

Isso não quer dizer que o Espiritismo seja uma doutri­na cristalizada, incapaz de evoluir e se desenvolver. Quer dizer apenas que o Espiritismo realizou o toque da verdade na cultura humana, tocou nos pontos essenciais da compro­vação da realidade universal pelo homem. Seus princípios fundamentais são realmente inabaláveis, mas estão sujeitos a desenvolvimentos que se darão de acordo com a evolução do homem, que progride sem cessar e aumenta constantemente a sua capacidade de compreender melhor a natureza humana, o mundo e a vida.

As normas de Kardec

Mas o desenvolvimento dos princípios espíritas não pode ser feito de maneira atrabiliária, pois no campo do Conhecimento há leis de lógica e de logística que regem o processo cultural. Kardec estabeleceu as normas que temos de ob­servar para não cairmos nos enganos e nas ilusões tão comuns à nossa precipitação. Essas normas, elas mesmas, estão hoje sendo acrescidas de meios novos de verificação da realidade através da Ciência e da Filosofia. O bom senso, co­mo ensinou Kardec, é o fio de prumo que nos garante a construção de um Conhecimento mais amplo e mais rico, mas ao mesmo tempo mais preciso.

Usar do bom senso é o primeiro preceito da normativa de Kardec. Examinar com rigor a linguagem dos Espíritos


comunicantes, submetê-los a testes de bom senso e conhecimento, verificar a relação de realidade dos conceitos por eles enunciados (relação do seu pensamento com os fatos, as coisas e os seres), enquadrar os seus ensinos e revelações no contexto cultural da época, verificando o alcance abusivo ou não das afirmações mais audaciosas — eis os elementos que temos de observar no trato da mediunidade, se não quisermos cair em situações difíceis, a que fatalmente nos levariam espíritos imaginosos ou pseudo-sábios. E ao lado disso submeter tudo quanto possível à comprovação experimental, à pesquisa.

Bem sabemos que tudo isso requer espírito metódico, um fundo básico de conhecimentos gerais, capacidade normal de discernimento, superação da curiosidade doentia, controle rigoroso da ambição e da vaidade, equilíbrio do raciocínio, maturidade intelectual, critério científico de observação e pesquisa e firme decisão de não se deixar levar pelas aparências, aprofundando sempre o exame de todos os aspectos dos problemas e das circunstâncias. Sim, tudo isso é difícil, mas sem isso não faremos ciência e sem ciência não teremos Espiritismo. Se alguém notar que não dispõe dessas qualidades deve reconhecer-se inábil para a investigação espírita. É melhor aceitar com humildade as próprias limitações do que aventurar-se a realizações impossíveis.

A luta necessária

Infelizmente a maioria das criaturas não gosta de reconhecer os seus limites. A vaidade e a ambição levam muita gente a dar passos mais largos do que as pernas permitem. É o que hoje vemos, de maneira assustadora, em nosso meio espírita. Os casos de fascinação multiplicam-se ao nosso redor. Pessoas que podiam ser úteis se transformam em focos de confusão e perturbação, entravando a marcha do Espiritismo com a sustentação de teorias absurdas que levam a doutrina ao ridículo. Em nosso país esses casos se tornam mais graves por causa da falta geral de cultura. As pessoas incultas e ingênuas se deixam levar muito facilmente ao fanatismo, ante o brilho fictício de pessoas inteligentes e cultas, mas dominadas por fascinações perigosas.


A mania do cientificismo vem produzindo grandes es­tragos em nosso movimento espírita. Qualquer possuidor de diplomas de curso superior se julga capacitado a trans­formar-se em cientista do dia para a noite. E logo consegue uma turma de adeptos vaidosos, prontos a seguir o iluminado que lhes empresta um pouco do seu falso brilho. O desejo de elevar-se acima dos outros, conhecendo mais e sabendo mais, é praticamente incontrolável na maioria das pessoas. O resultado é o que vemos. Há mais joio do que trigo em nossa seara espírita.

A luta contra essa situação é das mais árduas. Mas, árdua ou não, tem de ser enfrentada pelos que vêem as coisas de maneira mais clara. Temos de ferir susceptibilidades, magoar o amor próprio de amigos e companheiros, levantar no próprio meio espírita inimigos gratuitos, provocar revides apaixonados. Mas, de duas, uma: ficamos com a verdade ou ficamos com o erro, defendemos a doutrina ou nos acomodamos na falsa tolerância, clamando por uma paz de pantanal, que nada mais é do que covardia e traição à verdade. Aí estão, diante de nossos olhos, as fascinações da vaidade nos empantanando os caminhos da evolução natural e necessária da doutrina. Ou lutamos contra elas ou incentivaremos a sua propagação e proliferação.

Podemos enumerar as mais acentuadas e nefastas: o roustainguismo, defendido e semeado sob o prestígio da FEB; o Divinismo ou Espiritismo Divinista, que contradiz a própria essência racional do Cristianismo e do Espiritismo; o ramatisismo, que conseguiu envenenar a própria FEESP e ainda hoje não foi completamente eliminado da sua estrutura; o heterodoxismo ou armondismo (mistura de doutrinas ocultistas com o Espiritismo), que anda de mãos dadas com o ramatisismo; a teoria do continuum mediúnico, que vem de fora, com ares de teoria sociológica, estabelecendo confusões, com suposto apoio científico, entre Espiritismo e Umbanda; o andreluizismo, que à revelia de André Luiz é sustentado por instituições que se apóiam na caridade para desviar adeptos ingênuos da verdadeira compreensão dou­trinária. E outras subcorrentes que amanhã se tornarão fortes e dominadoras, se não forem sustadas a tempo.


Todos esses movimentos se valem de uma arma contra os que perseveram no campo limpo da doutrina: a acusação de sectarismo. Fazem seitas e acusam os outros de sectários. Clamam pelo direito de alargar e arejar os concei­tos fundamentais de Kardec, sem que os seus expoentes se lembrem de que não possuem condições culturais para essa tarefa de gigantes. Afrontam e amesquinham Kardec na vaidosa suposição de que o estão auxiliando, quando não o agridem abertamente, com o menosprezo à sua missão es­piritual e à sua qualificação cultural. Não foram ainda capazes de encarar a missão de Kardec e a obra de Kardec sem pensar primeiro em si mesmos e nas suas supostas capacidades culturais ou supostas habilitações espirituais.

Em meio a esse panorama de confusões, mutilado em suas pretensões iniciais, mas ainda atuando em desvios es­tratégicos, subsiste a ameaça do Espiritismo Corpuscular. E ao seu lado surgem outros movimentos pseudoculturais, como o atual Massenismo da antiga e veneranda Sociedade de Medicina e Espiritismo do Rio de Janeiro, com sua dire­ção entregue às mãos de um leigo, a suscitar inovações a­berrantes na prática doutrinária, em nome de uma suposta evolução, e uma onda de culturalismo místico que se opõe à restauração do verdadeiro Espiritismo nos quadros de ins­tituições representativas da doutrina.

O desenvolvimento da Parapsicologia e a falta de ca­pacidade de nossos meios universitários para acompanha­rem essa evolução científica deu motivo a ampla e escanda­losa exploração desse novo ramo das Ciências psicológicas em nossa terra. Uma exploração dirigida em dois sentidos: o combate pseudocientífico ao Espiritismo e o comércio de­senfreado de cursos deformantes sobre o assunto. A rea­ção espírita surgiu de maneira acertada: colocar o proble­ma em seus devidos termos, mostrando as ligações naturais entre Espiritismo e Parapsicologia, sem misturar as duas Ciências nem deturpá-las. Mas não tardou a surgir no próprio meio espírita os que se aproveitaram da situação para a defesa de seus pontos de vista pessoais, aumentando a confusão e torcendo a realidade parapsicológica a favor de suas teorias pseudo-espíritas. A falta de formação cultural­


do nosso povo ofereceu condições propícias ao desen­volvimento dessa contrafacção, tão nefasta como a outra, a facção deformadora da nova ciência.

Panorama desolador

Foi tendo em vista todo esse panorama desolador que resolvemos lançar esta nova edição da Crítica à Teoria Cor­puscular do Espírito, sob novo título capaz de abranger toda a área conflitiva. Lançada a primeira edição há doze anos, em volumes de pequeno formato e composição em tipo miú­do, produziu ela os seus efeitos, mas já se encontra há multo esgotada. Muitas pessoas interessadas reclamam a reedi­ção. Examinando o texto, vimos que ele ainda se apresenta como necessário no panorama atual. Foi a primeira crítica, rigorosamente crítica, oferecida ao meio doutrinário como um exemplo de como se deve desmontar uma doutrina ab­surda. Muitos dos seus tópicos se aplicam a outras formas de pretensa reformulação da doutrina. É um texto já clássi­co, modelo único de exame atento e minucioso de uma falsa teoria, não lhe faltando o exemplo de comedimento e de res­peito humano ao responsável pela sua formulação e divul­gação. Não teremos a falsa modéstia de negar o seu valor nesse sentido, mormente agora que o movimento da Edu­cação Espírita atinge o plano universitário e exige a exis­tência de textos dessa natureza, capazes de orientar os es­tudantes universitários no manejo da crítica espírita. Há momentos em que devemos ter a coragem de reconhecer e sustentar o valor das próprias obras elaboradas em favor da doutrina. Investimo-nos dessa coragem e lançamos o texto em nova edição, com endereço mais amplo e adapta­do às exigências atuais. Não negaremos às novas gerações de estudantes universitários espíritas esse modelo ainda im­perfeito, porque escrito sem o tempo necessário, mas valioso por seu acerto no enfoque do problema e por sua eficácia indiscutivelmente provada.

Não buscamos nenhum efeito de interesse pessoal. A imprensa espírita ainda não está em condições de avaliar esforços desta natureza e a imprensa comum nem sequer tomará conhecimento desse trabalho. O que nos interessa é devolver à circulação um texto que tem a sua oportunidade


e o seu valor relativo, atendendo a uma necessidade evi­dente do movimento espírita brasileiro. Ao lado de O Ver­bo e a Carne, cuja edição foi lançada recentemente, este pe­queno volume poderá contribuir para orientar e estimular novas críticas dessa natureza. Nenhuma cultura se desen­volve sem crítica e sem exercício acurado do espírito críti­co. O Espiritismo, ele mesmo, é um movimento crítico em favor do desenvolvimento da Civilização do Espírito, como vemos na obra gigantesca de Kardec. Todas as reações que esta reedição provocar serão benéficas, mesmo quando possam parecer o contrário. A defesa da verdade está sem­pre acima dos melindres pessoais.

São Paulo, 18 de abril de 1974.


A Questão Metodológica

Expostos, nos cinco pontos anteriores, os motivos his­tóricos, espirituais e escriturísticos que nos asseguram a le­gitimidade da obra de Kardec, demonstrada a sua integra­ção na cultura contemporânea, a confirmação científica, fi­losófica e religiosa dos seus princípios fundamentais na a­tualidade e as perspectivas que abre para a renovação cul­tural, parece-nos inegável a importância fundamental do Espiritismo em nossos dias. Bastaria isso para exigir de todos nós o maior respeito por essa obra ainda tão mal co­nhecida e mal estudada entre nós. Em conseqüência, as tentativas de reformulação dessa obra não encontram justi­ficativa e as pretensões de superá-la chegam às raias (nos dois extremos do processo lógico) da ignorância e da irres­ponsabilidade.

Mas para que isso fique mais claro é conveniente tratar­mos do problema do método em Kardec. A chamada ques­tão metodológica, de importância basilar em todos os cam­pos do pensamento, passa completamente despercebida en­tre os opositores, os críticos e os pretensos reformadores da obra de Kardec. É isto o suficiente para mostrar a insu­ficiência, a incapacidade e o empirismo (no mau sentido do termo) de todos os que defendem teorias e obras refor­mistas no campo do Espiritismo ou pretendem que certos ramos das Ciências atuais tenham superado a posição es­pírita, ou, ainda, supõem que suas experiências pessoais, no geral corriqueiras e sem obediência às exigências metodo­lógicas, estão em condições de abrir novos caminhos à pes­quisa espírita.

É simplesmente assombrosa a leviandade com que es­píritas e não espíritas, entre gente do povo e homens de cul­tura, formulam críticas a Kardec sem o conhecerem, sem ha­verem realmente estudado a sua obra e meditado sobre ela. O próprio Kardec já notara, no seu tempo, a estranha leviandade­


de homens de ciência que se propunham a opinar sobre questões espíritas sem nada saberem do assunto. A situação continua a mesma em nossos dias. E é evidente que essa continuidade não desmerece a doutrina, mas sim os que se mostram incapazes de compreendê-la.

Em face dessa situação somos obrigados a tratar do assunto de maneira que muitas vezes parecerá primária a pessoas afeitas a estudos superiores. Somos forçados a lem­brar conceitos já considerados vulgares nos meios culturais, a aplicar esquemas analíticos rudimentares (como fizemos em O Verbo e a Carne, no exame do roustainguismo) e a descer a explicações banais de problemas que na verdade não podiam nem deviam existir, mormente no meio espí­rita. Este problema de método é um deles. Do ponto de vista cultural é simplesmente vergonhoso que o tenhamos de recolocar constantemente ante os olhos de dirigentes de grupos, de centros e de instituições representativas do movimento doutrinário.

Quem se atreve a afirmar, por exemplo, que o roustain­guismo é simples questão de opinião e por isso não deve ser discutido, ou que este ou aquele pretenso cientista tem o direito de formular suas teorias, dá uma prova espontânea de sua ignorância do problema espírita em sua inelutável po­sição epistemológica. Como obra evidente de mistificação, um decalque malfeito e deformador da obra de Kardec, vi­sando a ridicularizar a doutrina verdadeira, o roustainguis­mo não pode (absolutamente não pode) ser aceito por ne­nhum espírita consciente, a não ser por efeito de fascina­cão. O direito de uma pessoa formular teorias em qual­quer campo do conhecimento está sujeito a uma exigência elementar e básica: a de conhecer a fundo esse campo. Sem isso, e sem dar provas disso, ninguém, por mais aparente­mente culto que possa ser considerado ou que se diga, não tem o direito de formular e divulgar teorias a respeito. Isso é ponto pacífico em todo o mundo.

Vamos a exemplos concretos:

Quando o Snr. Oswaldo Polidoro, na sua incultura e na sua ingenuidade, se propõe a fazer um Espiritismo do Sé­culo XX, chamando-o de Espiritismo Divinista — pois entende­


que Kardec sujeitou-se à Ciência humana e negou a divina —, só os que ignoram a posição metodológica de Kardec e sua importância cultural podem aceitar esse ab­surdo. No outro extremo, quando Hernani Andrade elabora em bases físicas uma Teoria Corpuscular do Espíri­to para superar o suposto mecanicismo de Kardec, só as pes­soas incapazes de compreender a posição kardeciana e a função cultural do Espiritismo podem bater palmas a essa tenta­tiva absurda.

Esclareçamos um pouco mais, se possível:

Quando o Snr. Luciano dos Anjos, representando toda a Diretoria da Federação Espírita Brasileira, sustenta e propaga o roustainguismo e nega aos espíritas o direito de instituir cursos de doutrina e de organizar instituições culturais espíritas (defendendo ridiculamente o autodidatis­mo como ideal de formação cultural), só os que nada enten­dem dos problemas culturais podem apoiá-lo nessa proposta de retorno ao primitivismo. Nenhuma pessoa de bom sen­so e de certa cultura poderá aceitar esse ilogismo a menos que esteja sujeita a um processo de fascinação, essa forma aguda de obsessão que afeta a capacidade de julgar.

Quando o Snr. Artur Massena, presidente leigo da So­ciedade de Medicina e Espiritismo do Rio de Janeiro, acha que as suas experiências de 36 anos no trato da mediunida­de (não como cientista, que não é, mas como um prático, um curioso e no máximo um amador) lhe dá o direito de contradizer Kardec e introduzir novidades no assunto, só os que ignoram por completo o que seja Ciência e o que seja Cultura podem aprovar essa temeridade.

É necessário compreendermos o absurdo dessas po­sições, se quisermos prestar algum serviço, por mínimo que seja, à causa espírita. Ainda neste caso aplica-se admira­velmente a recomendação de Erasto a Kardec: é preferível rejeitar dez possíveis verdades ou acertos nesse terreno do que aceitar uma única mentira. Porque essa única mentira porá o Espiritismo em má situação perante os ho­mens de bom senso. E porque, como advertiu Kardec, de­vemos pisar no terreno sólido da realidade, deixando as utopias,


por mais fascinantes que se apresentem, que se submetam à prova inexorável do tempo. Não somos utópicos, somos realistas. Não jogamos com possibilidades, mas com fatos. E fora dos fatos e da sua pesquisa rigorosa não te­mos Espiritismo.

Quem não compreender isso pode aderir a qualquer das formas de utopia que levaram o Espiritualismo ao descrédito no século passado e continuam a se propagar em nossos dias com ampla liberdade. Quem quiser permanecer no Es­piritismo terá de submeter-se às exigências culturais da doutrina, que são sobretudo de ordem metodológica.

Até agora, o Espiritismo só foi conhecido no Brasil atra­vés dos cinco volumes da Codificação. Só agora dispomos da coleção da “Revista Espírita” do tempo de Kardec, tão im­portante que ele mesmo a incluiu no rol das leituras necessá­rias para o bom conhecimento da doutrina, como vemos em “O Livro dos Médiuns”. Ninguém, entre nós, conhece Kar­dec em profundidade. Homens de cultura, considerados co­mo grandes conhecedores da doutrina, publicaram trabalhos que provam a superficialidade espantosa desse conhecimen­to. Se leram e estudaram, não aprenderam, não assimila­ram.

Dirigentes de grandes instituições doutrinárias mos­tram-se ignorantes do sentido e da natureza da doutrina, en­xertando-a com estranhos conceitos provindos da época an­terior ao aparecimento do Espiritismo. Chega-se a combater, como perigoso, o desenvolvimento cultural do Espiritis­mo, e isso nas altas rodas das instituições de cúpula.

Essa situação desoladora favorece o aparecimento de pre­tensos reformadores e atualizadores da doutrina, que tanto surgem do meio do povo — através de médiuns a serviço de espíritos mistificadores — quanto das elites culturais, atra­vés de teóricos improvisados, que se aproveitam de seus títu­los universitários ou posições sociais para impor ao povo suas idéias pessoais, não raro tão absurdas como as dos mís­ticos sertanejos. E há também, para maior espanto das pes­soas sensatas, os que exercendo funções de responsabilidade


no meio espírita, mostram-se admirados com os prodígios de mediunismo nas formas de sincretismo religioso afro-brasi­leiro — como a Umbanda, a Quimbanda, o Candomblé — e bandeiam-se para os terreiros.

Tudo isso resulta de uma fonte única: a ignorância da doutrina. As molas secretas da vaidade, da auto-suficiên­da e das obsessões encorajam essa proliferação de tolices, cuja finalidade evidente é a ridicularização do Espiritismo. Urge, pois, que os espíritas sensatos e responsáveis tomem posição contra essa avalanche de absurdos, tenham a cora­gem e a franqueza de falar a verdade em defesa do Espiritis­mo doa a quem doer.


O Método de Kardec

Kardec nasceu no início do século XIX, numa fase de aceleramento do processo cultural em nosso mundo. For­mou-se na cultura do século, sob a orientação de Pestalozzi, o mestre por excelência. Especializou-se em Pedagogia, que podemos chamar de Ciência da Cultura, e até aos cinqüen­ta anos de idade exerceu intensas atividades pedagógicas, tornando-se o sucessor de Pestalozzi na Europa. Não se fez padre nem pastor, mas cientista e filósofo, na despretensão e na humildade de quem não procurava elevadas posições, mas aprimorar os seus conhecimentos. Adquiriu no estu­do, nas atividades teóricas e na prática, o mais amplo co­nhecimento dos problemas culturais do seu tempo.

Vivendo em Paris, considerada então como o cérebro do mundo, impôs-se ao consenso geral como homem de elevada cultura, um intelectual por excelência. Colocado num mo­mento crucial da evolução terrena, viu e viveu o drama cul­tural da época. E só aos 50 anos de idade, maduro e culto, deparou com o problema nodal do tempo e procurou solu­cioná-lo em termos culturais. Esse problema se resumia no seguinte: a cultura clássica, religiosa e filosófica, desabava ao impacto do desenvolvimento das Ciências, sem a menor capacidade para enfrentar o realismo científico e salvar os seus próprios valores fundamentais.

Formado na tradição cultural do Século XVIII, herdei­ro de Francis Bacon, René Descartes e Rousseau, compre­endeu claramente que o problema do seu tempo repousava na questão do método. Os fenômenos espíritas se verifi­cavam com intensidade, como uma espécie de reação natural aos excessos do empirismo, no bom sentido do termo, que era a aplicação do método experimental a todo o Conhecimento. A tradição espiritual rejeitava esses excessos mas não dispu­nha de armas para combatê-los. Kardec resolveu aplicar o método experimental ao estudo dos fenômenos espíritas.


Logo aos primeiros resultados verificou que o nó do problema estava no seguinte: o método experimental se aplicava ape­nas à matéria, excluindo-se o espírito que era considerado como imaterial e portanto inverificável.

Mas se havia fenômenos espíritas era evidente que o espírito, manifestando-se na matéria, tornava-se acessível à pesquisa. Tudo dependia, pois, do método. Era necessá­rio descobrir um método de investigação experimental dos fenômenos espíritas. Era claro que esse método não podia ser o mesmo aplicado à pesquisa dos fenômenos materiais, considerados como os únicos naturais. Mas porque os úni­cos? Porque as manifestações do espírito eram considera­das como sobrenaturais, regidas por leis divinas.

Já Descartes, no Século XVII, lutando contra o dogma­tismo escolástico, mostrara a unidade de alma e corpo na manifestação do ser humano e advertira contra o perigo de confusão entre esses dois elementos constitutivos do ho­mem. Kardec se sentia bem esteiado na tradição metodológica e conseguiu provar que os fenômenos espíritas eram tão naturais como os fenômenos materiais. Ambos estavam na Natureza, espírito e matéria correspondiam a força e ma­téria, os dois elementos fundamentais de tudo quanto existe.

Daí sua conclusão, até hoje inabalada, e confirmada na época pelas manifestações dos próprios Espíritos que o as­sistiam: a Ciência do Espírito correspondia às exigências da época. Mas era necessário desenvolvê-la segundo a orien­tação metodológica da Ciência da Matéria, pois essa orien­tação provara a sua eficiência. A questão era simples: na investigação dos problemas espirituais o método dedutivo teria de ser substituído pelo método indutivo. Mas essa questão se tornava complexa porque a tradição espiritualista, cristalizada nos dogmas das igrejas, repelia como heré­tica e profanadora a aplicação da pesquisa científica aos problemas espirituais.

Kardec enfrentou a questão com extraordinária cora­gem. Enfrentou sozinho, sem o apoio de nenhum poder ter­reno, todo o poderio religioso da época. Teve então de co­locar-se entre os fogos cruzados da Religião, da Filosofia e da Ciência. Os teólogos o atacavam na defesa de seus dogmas,­


a Filosofia o considerava um intruso e a Ciência o con­denava como um reativador de superstições que ela já ha­via praticamente destruído. A vitória de Kardec definiu-se bem cedo. A Ciência Psíquica Inglesa, a Parapsicologia Alemã e a Metapsíquica Francesa nasceram da sua cora­gem e das suas pesquisas. Mais de cem anos depois, Rhine e Mac Dougal fundariam nos Estados Unidos a Parapsicolo­gia moderna, seguindo a mesma orientação metodológica de Kardec. E a sua vitória se confirmou plenamente em nossos dias, quando as pesquisas parapsicológicas endossa­ram as conclusões de Kardec e logo mais a própria Física e a Biologia fizeram o mesmo. A palavra paranormal, criada por Frederic Myers e hoje adotada na Parapsicologia, subs­tituiu em definitivo, no campo científico, a classificação errônea de sobrenatural dada aos fenômenos espirituais.

O espírito como objeto

Kardec transformou o espírito, entidade metafísica, em objeto específico da pesquisa científica. Nem mesmo a reação kantiana, nos séculos XVIII e XIX, com a crítica da razão, estabelecendo os supostos limites do conhecimento em termos do Empirismo inglês, impediu essa transformação. Na pró­pria Alemanha o Prof. Frederico Zollner, da Universidade de Leipzig, submeteu o espírito à investigação kardeciana e Schrenck Von Notzing, em Berlim, instalou o primeiro la­boratório de pesquisa espírita do mundo. Hoje os cientis­tas soviéticos, na maior fortaleza ideológica do materialis­mo no mundo, provaram sem querer a existência do espírito e de seu corpo espiritual, a que passaram a chamar de cor­po bioplasmático. As pesquisas realizadas com o fenômeno da morte mostrou-lhes que o corpo material é vitalizado por ele e por ele mantido em função. A última novidade da Biologia soviética é essa descoberta que atenta contra o ma­terialismo de Estado.

O espírito convertido em objeto de investigações físi­cas e biológicas é hoje a prova inegável da vitória de Kar­dec. Mas Kardec avançou além dessa posição atual. Ele não se limitou a pesquisar o espírito como objeto acessível à percepção sensorial. Da mesma maneira por que o pen­samento, na Lógica, é um objeto não-físico — e hoje na


Parapsicologia um objeto extrafísico — Kardec submeteu o espírito a pesquisas psicológicas e provou a sua realidade energética, a sua natureza dupla, de energia espiritual pu­ra manifestada no corpo espiritual, de natureza semimate­rial. Os instrumentos de que se serviu para essa audaciosa pesquisa constituem hoje os campos de força da percepção extra-sensorial, cuja realidade palpável foi demonstrada pe­las experiências de laboratório dos mais eminentes parapsicólogos. A aparelhagem mediúnica das pesquisas de Kardec, ridicularizadas pelos sabichões do tempo, como Ri­chet os classificou, é hoje cientificamente reconhecida, tan­to nos Estados Unidos como na Inglaterra, na Alemanha quanto na URSS.

Kardec desenvolveu o seu método de pesquisa tendo por base o processo de comunicação. Hoje estamos na é­poca da comunicação e essa palavra adquiriu um valor cien­tífico de importância básica. Mas a palavra comunicação já era, no tempo de Kardec, uma categoria da Filosofia Es­pírita e designava um elemento fundamental da pesquisa espírita. A comunicação mediúnica abriu para o homem uma nova dimensão na sua concepção do mundo e da vida. E Kardec dedicou-lhe todo um tratado, com O Livro dos Mé­diuns, estabelecendo as regras metodológicas da comunica­ção entre os vivos da Terra e os supostos mortos do Além. Nenhum tratado atual de Parapsicologia conseguiu superar o que Kardec descobriu e expôs nesse volume.

Com essa descoberta Kardec revolucionou o campo cen­tral das estruturas religiosas. O problema da Revelação, que representava uma fortaleza aparentemente inexpugná­vel da Religião, o seu mistério essencial e fundamental, foi cruamente esclarecido. E a posição metodológica de Kar­dec enriqueceu-se com a possibilidade de investigar as pró­prias bases da Religião. Mostrando que a fonte da Reve­lação é a comunicação mediúnica, Kardec pôde estabelecer a relação entre Ciência e Religião de maneira definitiva. Existe, explicou ele, a Revelação Espiritual, que consiste no ensino de leis do mundo espiritual através da comunicação mediúnica, e existe a Revelação Científica, que consiste na explicação de leis do mundo material através da comunica­ção científica, feita pelos pesquisadores. A Ciência Espírita­


utilizou-se dessas duas formas de revelação e estabele­ceu a conjugação de ambas para o controle do conhecimen­to da realidade, que é o objetivo direto da Ciência.

Foi assim que Kardec, adotando uma orientação me­todológica segura e nunca dela se afastando, conseguiu, fi­nalmente, desdobrar a moderna concepção do mundo, reve­lando a face oculta da própria Terra em que vivemos e ani­quilando o último reduto do maravilhoso ou sobrenatural. Graças a ele, ao seu trabalho gigantesco e ao sacrifício total da sua existência, os cientistas atuais poderão prosseguir no desenvolvimento das Ciências, sem tropeçar nas barreiras supersticiosas, mitológicas, mágicas e teológicas do passa­do. Kardec completou a Ciência com a sua contribuição espantosa. Fez, praticamente sozinho, no campo do espí­rito, e em apenas quinze anos de trabalho, o que milhares de equipes de cientistas, no campo da matéria, realizaram através de pelo menos três séculos.

E a precisão do seu método se confirma nas conclusões inabaladas e inabaláveis a que chegou sozinho, muitas ve­zes criticado pelos seus próprios companheiros, que o acu­savam de personalismo centralizador. Faltava aos próprios companheiros o espírito científico que o sustentou na ba­talha sem tréguas. Os que hoje desejam confundir as coi­sas, ignorando o problema metodológico em Kardec, acei­tando mistificações grosseiras de espíritos pseudo-sábios, ser­vem apenas para provar, ainda em nossos dias, como e quan­to Kardec avançou no futuro, superando de muito o seu tempo e o nosso tempo.

Só a ignorância orgulhosa ou a inteligência vaidosa e interesseira podem hoje querer superar Kardec, quando a própria Ciência e a própria Filosofia atuais estão ainda ras­treando as conquistas de Kardec, nos rumos de futuras descobertas. O Espiritismo evolui, como tudo evolui no Uni­verso. Esse é um axioma espírita. Mas a obra de supe­ração de Kardec pertence às gerações do amanhã, pois a geração atual não revelou ainda condições sequer para compreender Kardec. Por outro lado, é bom lembrar que a superação de Kardec não será mais do que o prossegui­mento do seu trabalho, o desdobramento da sua obra, na


medida em que o homem se torne mais apto a compreender o que Kardec ensinou. O atraso atual do movimento espí­rita nos sugere, mesmo, que talvez o próprio Kardec tenha de voltar à Terra, como os Espíritos lhe disseram na ocasião em que esteve entre nós, para completar a sua obra, que homem nenhum foi capaz até o momento de ampliar em qualquer sentido.

Os leitores que desejarem verificar as comprovações pa­rapsicológicas atuais das pesquisas de Kardec poderão fazê­-lo em duas fontes: a nossa tradução anotada de O Livro dos Médiuns e o nosso livro Parapsicologia Hoje e Amanhã, em sua quarta edição. Neste último encontrarão um capitulo especial sobre a descoberta do corpo bioplasmático pelos fí­sicos e biólogos soviéticos.

Fotografias da aura das coisas e dos seres têm sido apre­sentadas como fotografias da alma e justamente rejeitadas pelas pessoas de bom senso. Essas fotos pertencem à fase da efluviografia nas experiências com as câmaras Kyrillian. As fotografias do corpo bioplasmático são as que realmente correspondem à alma.


A Teoria Corpuscular

Os artigos aqui reunidos constituem uma crítica espí­rita ao livro do sr. Hernani Guimarães Andrade, “A Teoria Corpuscular do Espírito”, louvado por diversos confrades, que o consideraram como verdadeiro acontecimento doutrinário do ano de 1961. Crítica espírita, e não apenas crí­tica, porque elaborada à luz dos princípios doutrinários, com a finalidade exclusiva de verificar o enquadramento ou não da teoria nesses princípios. Foram publicados na se­ção espírita do “Diário de S. Paulo”.

O livro criticado é apenas o primeiro volume de uma sé­rie, cujo segundo volume já está circulando há algum tempo. Alguns leitores poderão pensar que a nossa crítica é preci­pitada, que devíamos esperar a conclusão da série. Mas não é assim. Porque, nesse primeiro volume, o autor apre­senta as bases da sua teoria corpuscular do espírito. Os de­mais volumes servirão somente para completar a exposição. A nossa crítica é formulada aos fundamentos da teoria, sendo válida, portanto, para toda a sua estrutura.

As intenções do sr. Guimarães Andrade são boas. Seu desejo expresso é o de colaborar para que o Espiritismo se firme no meio científico. Não obstante, verá o leitor que a teoria corpuscular se propõe a reformar a doutrina espírita e a substituí-la. Toda a codificação kardeciana é considerada como coisa do passado. Essa a razão que nos levou a exa­minar a teoria. Se ela, realmente, abrisse perspectivas no­vas para o Espiritismo, não teríamos dúvida em reconhecê-lo.

Deixemos bem claro esse ponto. Em primeiro lugar, co­mo o leitor verá no correr dos artigos, somos amigo pessoal do confrade Guimarães Andrade. Bater palmas a um amigo é um dever que se cumpre com alegria. Em segundo lugar, no Espiritismo não existem motivos de ordem sectária, ecle­siástica, financeira, política, ou de qualquer outra espécie,


que nos impeçam de reconhecer a verdade nos opositores, quanto mais nos colaboradores. Esta crítica não é ditada, pois, senão pela consciência das responsabilidades doutri­nárias. Consciência que, como sabem todos os espíritas, im­plica permanente atitude de vigilância e de defesa dos prin­cípios do Espiritismo.

Kardec nos legou a codificação há pouco mais de cem anos. De lá para cá, o mundo evoluiu rapidamente e os conhecimentos humanos se alargaram de maneira espantosa. A vertigem do progresso atordoa os homens, e desse atordoa­mento não escapam os espíritas. Nada mais natural que o aparecimento, em nossas dias, de tantas tentativas de refor­ma do Espiritismo. Entendendo que a codificação já foi ultrapassada pelo desenvolvimento das ciências, muitos confrades se esforçam para ajudá-la a recuperar o terreno perdido. As intenções, como vemos, são boas.

Acontece, porém, que o Espiritismo é doutrina do futu­ro e não do passado ou do presente. Como os Evangelhos, que depois de dois mil anos continuam a nos empurrar para a frente, a codificação está ainda muito longe de ter sido su­perada. Pelo contrário, somente agora as ciências estão dan­do os primeiros sinais de se aproximarem do Espiritismo. Dessa maneira, os confrades aflitos, que se esfalfam na du­ra tarefa de “atualizar o Espiritismo”, estão apenas equivo­cados.

No caso do confrade Guimarães Andrade o equívoco é tanto maior, quanto se trata de uma tentativa de enquadrar o Espiritismo na sistemática das ciências materialistas. Pra­ticamente, uma tentativa de prender a doutrina espírita nu­ma gaiola de conceitos físicos, materiais. Os confrades que louvaram o livro o fizeram por espírito fraterno, ou por não terem compreendido a teoria que nele se expõe. Tendo tido o cuidado de examinar a teoria, podemos oferecer a esses confrades uma contribuição sincera, para que melhor ponderem a respeito. Os que não aceitarem a nossa contribuição deverão pelo menos reexaminar o livro, com suas próprias luzes, pois trata-se de grave problema que está surgindo no movimento espírita brasileiro.

Na verdade, esse problema não deveria tomar corpo, uma vez que a teoria corpuscular não oferece nenhuma consistência­


do ponto de vista científico. Mas, como o livro é escrito para o povo, e o povo nada conhece das questões científicas nele tratadas, o perigo é evidente. O sr. Guima­rães Andrade, apoiado ainda pelos confrades que o louvam na imprensa espírita, vai fazendo adeptos. Já está surgindo entre nós uma corrente de “espiritismo corpuscular”, que ao lado de outras correntes em desenvolvimento poderá comple­tar a obra de enfraquecimento do movimento espírita bra­sileiro.

Para que o leitor possa bem avaliar o que isso representa, queremos lembrar a situação ridícula em que se colocaria um cidadão de poucas letras que se propusesse a discutir numa assembléia de letrados. O movimento espírita brasileiro ainda não dispõe de um corpo de sábios, de homens de ciência, capazes de enfrentar o problema doutrinário neste ou naquele campo das especializações científicas. Propor­mo-nos a apresentar uma teoria científica do espírito, sem as credenciais necessárias para isso, sem nos servirmos do apa­rato técnico indispensável, é simplesmente querermos provocar o riso.

A fragilidade da teoria corpuscular é evidente. A aná­lise rápida que fizemos, em artigos de jornal, revela numero­sas contradições. Que diríamos de uma análise mais pro­funda, realizada por especialistas dos vários ramos da ciência em que a teoria se apóia? Mesmo no plano filosófico, de nossa especialidade, a análise aprofundada da teoria seria de­sastrosa. O pouco que dissemos mostrará isso aos que ti­verem “ouvidos de ouvir”. Mas um físico, um matemático, um biólogo, o que diriam, num exame aprofundado da teo­ria?

Nossa intenção não foi a de esmiuçar o livro, mas tão-somente a de mostrar as suas incongruências mais gritantes, e de fazê-lo, não no plano filosófico ou científico, mas no plano espírita. Escrevemos para o meio doutrinário. Mesmo porque o livro só interessa ao nosso meio. Fora dele, não terá repercussão. Não há nada, nessa tentativa de formula­ção teórica, que possa interessar aos homens de ciência. Des­sa maneira, o livro só tem, na realidade, um sentido: o de lançar confusão no meio espírita e levá-lo a uma posição de­sairosa.


Não acusamos desse crime o confrade Guimarães An­drade. Pelo contrário, já dissemos que as suas intenções são boas. Mas o apóstolo Paulo exclamava, em Romanos, 7:24: “Não faço o bem que desejo; mas o mal que não quero, esse faço”. Se a Paulo aconteceu assim, depois da visão na Estrada de Damasco, não é demais que aconteça a nós, quan­do tentamos avançar além das nossas forças. A teoria cor­puscular do espírito não faz o bem que o autor pretende, mas o mal que ele por certo não queria. Isso decorre, evidente­mente, da fonte espiritual que o impulsiona nesse difícil caminho das formulações científicas. Seríamos felizes se o nosso trabalho servisse de advertência ao confrade, quanto aos perigos a que se expõe.

Depois da publicação dos nossos artigos, alguns confra­des lançaram novos louvores à teoria e ao seu autor, às ve­zes sem nenhum propósito. Ao que parece, quiseram apenas oferecer-lhe o testemunho da sua solidariedade. Gesto nobre, sem dúvida, mas extemporâneo. Sim, pois não ata­camos o confrade, nem quisemos diminuí-lo. Gostaríamos que esses companheiros, em vez de elogiarem com palavras retumbantes a nova teoria, ou de a defenderem com golpes de ironia, fizessem o que fizemos: uma análise objetiva da mesma. Porque, em matéria de ciência, não valem os louvo­res. Por mais que louvemos um trabalho errado, não o emendaremos.

Deixamos, pois, a nossa crítica em mãos dos leitores desapaixonados, que não se empolgam facilmente com formu­lações de aparência brilhante. Oferecemo-la aos confrades conscientes da gravidade da hora que atravessamos e da se­riedade do Espiritismo. Se estivermos errados, que nos reve­lem o nosso erro. Não teremos dúvida em voltar atrás. Será mesmo com alegria que nos penitenciaremos. Seria mil ve­zes preferível termos errado por excesso de zelo, na defesa da doutrina, a vermos confirmada a posição difícil do autor da teoria.

Para terminar, queremos lembrar que, na própria Psi­cologia, as teorias elementares ou atômicas já estão supera­das. Wilhelm Dithey, o grande filósofo e psicólogo alemão, reagindo contra as correntes elementaristas do século passado,


dizia em seu livro “O Mundo do Espírito”, edição Aubier de 1947: “A vida psíquica é originalmente e sempre, de suas formas primarias até as mais elevadas, uma unidade. Não é feita de partes; não se compõe de elementos; não é uma composição; não é um resultado da junção de átomos sensí­veis ou afetivos: é uma unidade primitiva e fundamental que se encontra em toda parte”.

Quando, na própria Psicologia, — que trata do espírito em sua manifestação no plano material, — considera-se inad­missível a concepção atômica, derivada das ciências físicas, como admitirmos semelhante atitude no plano real do Es­pírito?

S. Paulo, 1962.


Atualização do Espiritismo

Desde que o confrade Hernani Guimarães Andrade pu­blicou o seu livro, “A Teoria Corpuscular do Espírito”, vimos sendo consultados por pessoas que não sabem como encarar a obra. Num texto que aparece nas orelhas do volume, o prof. Victor Magaldi refere-se à teoria, como sendo uma “Verdadeira revolução no Neo-Espiritismo”. No primeiro ca­pítulo, o autor declara que o Espiritismo precisa progredir, superar os velhos conceitos mecanicistas do século passado, e que: “Os adeptos da doutrina devem ter a coragem de vol­tar atrás, se preciso; reformar conceitos velhos; sacudir o pó da suposição para descobrir a realidade soterrada; abrir mão do dogmatismo comodista e ignorante, que se aferra à forma e esquece o espírito”.

Todas essas coisas preocupam os adeptos, não comodi­stas nem ignorantes, mas ciosos da pureza da doutrina. Quer o confrade Guimarães Andrade reformar o Espiritismo? Ao que se refere o confrade Victor Magaldi, quando proclama a existência de uma revolução no “Neo-Espiritismo”? Existe isso? Existe um Neo-Espiritismo, e no seu seio já se proces­sa uma revolução? Por outro lado, a terminologia doutriná­ria estará mesmo superada, será arcaica, necessitará de re­visão? Estaremos em condições de enfrentar essa tarefa? Disporá o autor do livro de meios e recursos para sacudir a poeira dos conceitos kardecistas e revelar uma possível rea­lidade oculta?

Confessamos que era nosso intento, desde a publicação de “A Teoria Corpuscular do Espírito”, escrever sobre essa obra. Mas, encontrando esses mesmos problemas referidos pe­los leitores, resolvemos estudar o livro com tempo e vagar, não aventurando a respeito nenhuma opinião. Além disso, o autor anuncia outros volumes, que completarão sua teoria. Diante porém, da insistência dos leitores e amigos, e uma vez que já aparece até mesmo a idéia, em certos núcleos, de


tratar do problema da “Nova nomenclatura espírita” (por analogia certamente com a “Nova nomenclatura gramati­cal”) resolvemos tratar do assunto.

Nossa atitude é a mesma dos leitores. Estamos com um pé atrás. Conhecemos o confrade Guimarães Andrade, sa­bemos ser uma pessoa honesta e sincera, mas desconfiamos dos rumos da sua imaginação, no campo doutrinário. Pri­meiramente, não vemos razões para o ataque à terminologia kardecista. Ela é tão válida hoje como há cem anos. A própria negação do “conceito mecanicista de ‘éter’” precisa ser examinada. E isso por dois motivos: porque o debate sobre o problema do éter espacial ainda não se encerrou, na própria Física; e porque o éter do Espiritismo não correspon­de exatamente, mas apenas analogicamente, ao da Física. O mesmo acontece com os conceitos de “fluido” e de “vibra­ção”. Kardec não formulou uma teoria científica, da mes­ma maneira por que Jesus não criou um sistema filosófico. A revisão dos conceitos doutrinários, na base das falíveis teo­rias científicas modernas, equivale, ao nosso ver, a uma re­visão dos conceitos evangélicos, na base dos sistemas filo­sóficos instáveis do nosso tempo.

Em segundo lugar, a tentativa de criar uma teoria cien­tífico-espírita, como quer o autor, parece-nos prematura. Suas dificuldades começam ao procurarmos situar o Espiri­tismo no quadro das ciências. Kardec acentuou que o Espi­ritismo deve evoluir com as ciências, mas esclareceu tam­bem que a natureza científica do Espiritismo não é a mesma das ciências da matéria. Foi mais longe, ao negar às ciên­cias qualquer competência para se pronunciar sobre as ques­tões espíritas, e afirmou taxativamente que: “O Espiritismo não é da alçada da ciência”. (Cap. VII da “Introdução ao Estudo da Doutrina Espírita”). Quando ele, trata, pois, da Ciência Espírita, não o faz em termos de ciência material, mas esclarece mesmo que o objeto e os métodos de ambas são diferentes.

Ora, o que o confrade Guimarães Andrade pretende fa­zer, é exatamente o que Kardec condenou. Ou seja, para usarmos as expressões textuais do codificador: “sujeitar (o Espiritismo) aos processos ordinários de investigação, es­tabelecendo analogias que não existem”. O mesmo aconte­ceu


com a Psicologia, quando Wundt, Fechner, Binet e ou­tros quiserem reduzi-la a processos de mensuração física. O mesmo com a Sociologia, inicialmente chamada “Física So­cial”, mais tarde ligada à Biologia, e hoje liberta dessas inadequações conceptuais e metodológicas. O Espiritismo não pode sujeitar-se a esses processos de amoldagem. No pró­prio campo da Filosofia, os Espíritos e o próprio Kardec fi­zeram questão de esclarecer que ele devia desenvolver-se “li­vre dos prejuízos do espírito de sistema”.

Ainda agora, ao esclarecer a utilização de conceitos da ciência moderna, em seu livro “Mecanismos da Mediunida­de”, André Luiz adverte: “As notas dessa natureza, neste vo­lume, tomadas naturalmente ao acervo de informações e de­duções dos estudiosos da atualidade terrestre, valem aqui por vestimenta necessária, mas transitória, da explicação es­pírita da mediunidade, que é, no presente livro, o corpo de idéias a ser apresentado”. Aplicando essa explicação ao ca­so de “O Livro dos Espíritos”, compreenderemos que o que nos interessa, no seu texto, não é a vestimenta, mas a subs­tância, não é a terminologia, mas “o corpo de idéias”.

A tentativa do confrade Guimarães Andrade deve ser encarada, pois, com o cuidado que Kardec recomendava sem­pre, para todas as inovações. Procuremos conter os entusias­tas, que já pretendem erigir o autor em reformador doutri­nário. O próprio Ernesto Bozzano chegou a propor uma teoria do Éter-Deus, para explicar de maneira física o Ser Supremo, o que era evidentemente absurdo e não teve acei­tação. Fazer avançar o Espiritismo não é subjugá-lo a conceitos da ciência material, mas dar-lhe maior desenvolvi­mento espiritual em nossa compreensão. E trabalhar assim, espiritualmente, para apressar aquele momento, pre­visto por Kardec, em que “os sábios se renderão à evidência”. Serão eles, então, os que terão de modificar os seus concei­tos, sacudindo a poeira das suas hipóteses instáveis.


Conceitos Mecanicistas

Ao tentar a elaboração da sua teoria corpuscular do es­pinto, o confrade Hernani Guimarães Andrade (como vi­mos em nosso artigo de domingo passado) partiu de uma pre­missa falsa: a de que o Espiritismo deve sujeitar-se às ciên­cias materiais. O trecho de Kardec, citado na página 16 do seu livro, para justificar essa premissa, pertence ao parágra­fo 55, capítulo primeiro, de “A Gênese”. Nesse parágrafo, Kardec esclarece que o Espiritismo, como doutrina progres­siva: “assimilará sempre todas as doutrinas progressivas, de qualquer espécie, que tenham chegado ao estado de VERDA­DES PRÁTICAS, deixando o domínio da utopia”.

Para explicar melhor o seu pensamento, Kardec, entre­tanto, acrescenta que: “Deixando de ser o que é (o Espiri­tismo) mentiria à sua origem e ao seu fim providencial”. Como se vê, Kardec adverte, com o bom-senso que o caracterizava, que o Espiritismo não podia converter-se num sis­tema estático, devendo acompanhar o desenvolvimento na­tural do conhecimento. Acompanhá-lo, porém, no plano da realidade, das VERDADES PRÁTICAS, e não das utopias, das conjecturas. E acentuava, ao fazer isso, que o Espiri­tismo não podia trair-se a si mesmo. Quer dizer, ao acom­panhar o progresso geral, devia entretanto manter a sua inte­gridade doutrinária.

Não compreendendo essa posição de Kardec, o confrade Guimarães Andrade pretende fazer com o Espiritismo o que Augusto Comte fez com a Filosofia, sujeitá-lo às ciências. Para isso, entretanto, vê-se obrigado a um malabarismo in­telectual que o coloca em situações contraditórias. Porque, segundo o próprio Kardec já advertia, a Ciência Espírita é de natureza diversa da Ciência da Matéria. Tem objeto di­verso e exige métodos especiais. Não compreendendo esse

fato, o sr. Guimarães Andrade procura amoldar, na retorta da sua teoria corpuscular, os dois elementos diversos, o que não é possível. Disso resultam as incongruências que pode­mos notar em seu livro.

A pretensão reformista do autor chega às raias do extre­mismo. Vejamos este trecho, das páginas 16 e 17 de “A Teo­ria Corpuscular do Espírito”, em que ele define sua posi­ção: “Por conseguinte, a Ciência Espírita tem campo aberto à pesquisa e ao desenvolvimento de seus princípios básicos, os quais podem e devem evoluir paralelamente à Ciência Ofi­cial. E, tal como esta, precisa progredir, até mesmo, se ne­cessário, à custa de reforma dos seus postulados”. Isto quer dizer que o Espiritismo deve modificar os seus princípios bá­sicos, para sujeitar-se aos novos enunciados das ciências ma­teriais.

Kardec, em “A Gênese”, no mesmo trecho que citamos acima, lembra que as ciências materiais são apenas “a ex­posição das leis da natureza, com relação a certa ordem de fatos”. E esclarece que se trata dos fatos materiais. Estes interessam ao Espiritismo, pois estão na ordem geral das leis de Deus, mas não são o objeto da doutrina. Submeter a ci­ência espiritual aos enunciados de leis materiais é simples absurdo. Aliás, na “Introdução ao Estudo da Doutrina Espírita”, que abre “O Livro dos Espíritos”, Kardec observa: “Quando a ciência sai da observação material dos fatos, e trata de apreciá-los e explicá-los, abre-se para os cientistas o campo das conjeturas: cada um constrói o seu sistema­zinho, que deseja fazer prevalecer, e o sustenta encarniçada­mente”.

O confrade Guimarães Andrade refere-se ao perigo de um dogmatismo espírita, mas oferece-nos um perigo maior, que é o do dogmatismo científico, de natureza materialista. Amarrar o Espiritismo a esses “sistemazinhos”, referidos por Kardec, é muito mais perigoso do que sustentar os postula­dos doutrinários que têm na sua base a “autoridade dos fatos” e não das conjeturas explicativas. Aliás, nenhum pro­gresso das ciências afetou até agora os postulados doutriná­rios.

Pelo contrário, só os tem confirmado. Como pre­tender-se então, modificar esses postulados? No tocan­te aos conceitos da Física Nuclear, o que parece evidente é que eles se aproximam dos conceitos espíritas, como ve­mos no caso de negação da matéria, de transformação do mundo material em mundo energético, de redução dos fenô­menos físicos a simples aparência e assim por diante.

As próprias contradições do sr. Guimarães Andrade pro­vam isso. Condenando, por exemplo, a terminologia meca­nicista de Kardec, vê-se ele obrigado, logo mais, a usá-la. É o que se verifica no seu capítulo intitulado “Das Bases da Teoria”, em que os conceitos de “vibração” e de “fluido vi­tal” são empregados, e este último com a agravante de jun­tar-se ao conceito hinduísta de “prana”. Também o con­ceito de “matéria inerte”, nada corpuscular, ali aparece. Ve­mos, assim, que a reforma pretendida pelo autor é mais difí­cil do que ele mesmo supunha. Não chega a efetuar-se nem sequer no plano da terminologia, quanto mais no plano men­tal dos conceitos, propriamente ditos, que permanece inal­terado.

Por outro lado, o sr. Guimarães Andrade, para poder misturar as ciências físicas e os princípios espíritas na sua retorta, foi obrigado a voltar vinte e cinco séculos atrás, adotando o esquema de Demócrito para a explicação atômica do espírito. Os seus corpúsculos modernos, denominados “bion”, “mentalton” e “intelecton”, não são mais do que adaptações dos chamados “átomos de fogo”, do atomismo grego, que explicavam inclusive a percepção extra-sensorial. Demócrito admitia átomos especiais para a percepção senso­rial e átomos mais sutis para a percepção intelectual. E considerava o espírito como um “arranjo atômico”, exata­mente como o faz o sr. Guimarães Andrade. Esse arranjo, naturalmente, podia desarranjar-se com a morte, e o espí­rito voltaria ao “todo universal”. O sr. Guimarães Andrade não escapa a esse fatalismo lógico da teoria atômica do espírito, caindo numa posição materialista, como veremos mais tarde.

Ao expor a natureza do “bion”, que seria “a partícula correspondente à vida em si mesma, independente de pré­via organização, o agente vivificador da matéria”, o autor se choca frontalmente com o princípio estabelecido no cap. quarto de “O Livro dos Espíritos”, onde o fluido vital: “sem a matéria, não é vida, da mesma maneira que a matéria não pode viver sem ele”. Ainda aqui, o erro decorre da po­sição materialista, que não admite o espírito como agente não-físico. Embora o autor, nesse terreno, às vezes admita o conceito doutrinário de espírito, no geral permanece com o conceito mecanicista do atomismo grego. É uma das suas contradições, que procuraremos esclarecer nos próximos tra­balhos.

Quem não pode o menos

Os investigadores científicos dos fenômenos espíritas operam no campo da matéria. Não são espíritas, mas cien­tistas interessados pela fenomenologia que dá base concreta à doutrina. Por isso já dissemos, há tempos, a respeito, que a ciência espírita, no que toca às manifestações mate­riais do espírito, vêm sendo construída pelos adversários do Espiritismo. É este um fato único na história do conheci­mento, e uma das maiores glórias da doutrina espírita. Crookes, Richet, Geley, Crawford, ao iniciarem suas pesqui­sas, não eram espíritas, como Price, Rhine e Bjorkhem, das Universidade de Oxford, de Duke (EE. UU.), e de Upsala (Suécia), respectivamente, não são espíritas. Mas todos con­tribuem para a ciência espírita.

Não cabe a nós, espíritas, formular nenhuma teoria científica para investigação dos fenômenos supranormais ou pa­ra demonstração da realidade da sobrevivência. O Espiri­tismo, nos seus três aspectos, o científico, o filosófico e o religioso, possui métodos próprios de observação e investi­gação, e já provou há muito a realidade da sobrevivência. Os cientistas materialistas, ou pelo menos céticos, é que devem tratar de provar, através de suas teorias e de seus mé­todos, que o Espiritismo se encontra em erro. Querer, pois, dotar o Espiritismo de “teorias que lhe facultem o avanço seguro na estrada da pesquisa metódica de laboratório”, co­mo pretende o sr. Guimarães Andrade, em sua “Teoria Corpuscular do Espírito”, é invadir atribuições alheias. E dizer que o Espiritismo não possui teorias orientadoras de pesqui­sas científicas, é negar a própria doutrina e esquecer os seus efeitos no mundo científico.

Humberto Mariotti, o conhecido escritor espírita argen­tino, encerra o seu livro “Dialéctica e Metapsíquica”, réplica a um livro materialista de Emilio Troise, com esta advertên­cia: “A filosofia espírita, sempre pronta a renovar-se, espera,

pois, para o fazer, uma prova científica de seu opositor: o materialismo. Enquanto isso, continuará forjando o aço desse novo mundo espiritual, que vem assomando por entre os fatos da psicologia supranormal, até que a prova mencio­nada seja produzida”. A teoria espírita, como a chamaram os cientistas, não é apenas teoria, mas toda uma doutrina, solidamente construída sobre um vasto e profundo alicerce de fatos, comprovados por adeptos e adversários, crentes ou descrentes. Ela se impõe por si mesma, ou “pela força mes­ma das coisas”, como dizia Kardec. Não espera as nossas elaborações teóricas para cumprir a sua missão.

Grande e belo exemplo é o que nos dá Richet, na carta que dirigiu a Ernesto Bozzano, rendendo-se à evidência es­pírita. Construtor, ele mesmo, de uma teoria, exclama, dian­te dos argumentos espíritas de Bozzano: “Eles formam um estranho contraste com as nebulosas teorias que atravan­cam a nossa ciência”. Ao contrario disso, o sr. Guimarães Andrade pretende que deixemos de lado, considerando-os obsoletos, os conceitos clássicos da doutrina, para construir­mos mais uma teoria nebulosa, e com ela aumentarmos o atravancamento científico.

Nós, espíritas, temos por acaso alguma dúvida a res­peito da sobrevivência do espírito e da sua possibilidade de ação sobre a matéria? Precisamos de novas teorias para in­vestigar os fenômenos impropriamente chamados de supranormais? Não. Logo, não compete a nós a formulação de teorias novas. Por outro lado, duvidamos da solidez das provas e do acervo gigantesco de fatos da biblioteca espírita, sempre aberta ao possível interesse dos materialistas? Tam­bém não. Logo, a estes é que compete, e não a nós, quebrar a cabeça de encontro à rocha em que nos firmamos. Nosso papel, pelo contrário, é o de continuarmos firmes sobre a rocha, que tem resistido, até aqui, a todos os cabeçudos.

Pergunta o confrade Guimarães: “Será que já conhece­mos tudo a respeito do fascinante problema do espírito; das suas relações com o mundo físico; das suas propriedades; da sua natureza real?” Podemos responder com outra pergun­ta: “Conhecem os materialistas tudo o que se relaciona com o fascinante problema da matéria; das suas relações com

forças desconhecidas; das suas propriedades; da sua natu­reza real?” Estamos, e eles também o estão, absolutamente certos de que não. Então, como pretendermos colocar, na mesma mesa da ciência materialista, servindo-nos dos seus instrumentos rudimentares, ainda em elaboração, o proble­ma espiritual? Se ela é impotente para dizer tudo a res­peito da matéria, como querermos que o diga a respeito do espírito? O mais certo, o mais prudente, é admitirmos a explicação de Kardec: “O Espiritismo não é da alçada da ciência”. Sê-lo-á mais tarde. Mas, para tanto, a ciência precisa concluir a sua tarefa no terreno material, o que ainda está longe de fazer.

Poderão objetar-nos que as pesquisas dos sábios mate­rialistas concorreram para a comprovação da doutrina. Mas não dizemos o contrário. O que dizemos é que isso compete a eles. Quando os sábios, operando no campo da matéria, comprovam os princípios da ciência espírita, contribuem pa­ra esta, e só temos que agradecer-lhes. Aquilo que chama­mos, com Kardec, a Ciência Espírita, não é mais do que o aspecto científico da doutrina. Neste aspecto, há uma zona fronteiriça, em que a ciência material pode comprovar os fatos espíritas. A da fenomenologia mediúnica. Nesta zona é que o materialismo vem construindo, sem querer, a con­tragosto, a ciência espírita acessível à compreensão ma­terialista.

O confrade Guimarães Andrade quer que ajudemos os sábios oferecendo-lhes uma teoria espírita que eles possam aceitar. A intenção é boa, mas conduz a desvios perigosos, como já vimos e ainda veremos, na análise de “A Teoria Cor­puscular do Espírito”. Além disso, é conveniente lembrar­mos o velho adágio: “Cada macaco no seu galho”. O Espi­ritismo, como diz Mariotti, no mesmo livro acima citado: “é uma estrela de amor”. Essa estrela brilha sobre o atravan­camento de hipóteses nebulosas da ciência materialista, e ainda, segundo o mesmo autor: “ilumina os caminhos de to­dos os peregrinos que vão em busca da verdade”. Não basta isso? Queremos também acompanhar os peregrinos, ofere­cendo-lhes cajados que eles não nos pedem, e até mesmo re­jeitam com desprezo?

O livro do sr. Guimarães Andrade é simplesmente um equívoco. E como tal, só pode fazer mal à doutrina e ao movimento espírita. Pedimos perdão ao confrade, por esta rude franqueza. Mas, em questões doutrinárias, é preferível a dureza da verdade. Pensamos já haver demonstrado, até aqui, os vários enganos do autor. Mas prosseguiremos ain­da, para que não digam amanhã, como disseram certa vez, a respeito de outra crítica, que passamos de leve sobre o assunto.

Autocriação do Espírito

O livro do confrade Guimarães Andrade, “A Teoria Cor­puscular do Espírito”, vale como um exemplo da facilidade com que os críticos e reformadores de Kardec se perdem nas próprias contradições. Além da premissa falsa em que se baseia, — desenvolve o falso silogismo de que os conceitos espíritas, sendo mecanicistas, devem modificar-se, adaptan­do-se aos princípios quânticos e relativistas da física mo­derna. A conclusão não podia ser verdadeira, como não é, pois representa a própria negação do espírito.

Acusando Kardec, e os Espíritos que o orientaram, de se utilizarem de conceitos antiquados, o sr. Guimarães Andra­de acaba fazendo a mesma coisa. Mas, se Kardec empre­gava os conceitos científicos da época num sentido analógico, apresentando-nos uma visão do mundo e da vida que nada tem de mecanicista, o autor de “A Teoria Corpuscular do Espírito” faz o contrário. Tenta servir-se de conceitos rela­tivistas para nos oferecer uma concepção mecânica do uni­verso, da vida, do pensamento e do próprio espírito.

Em Kardec, como vemos em “O Livro dos Espíritos”, a natureza do espírito é definida como inteiramente diversa da natureza da matéria. O Universo se compõe de três elementos essenciais: Deus, Espírito e Matéria. Não é possível falar-se em mecanicismo, quando se apresenta essa trilogia. Na teoria corpuscular, pelo contrário, o Universo se compõe apenas de matéria. Deus está ausente, e o espírito não é mais do que uma conseqüência das ações e reações materiais.

Vejamos o que é o espírito na teoria corpuscular. O sr. Guimarães Andrade refere-se a dois tipos de arranjos atô­micos: as formações-espirituais-simples e as formações-espi­rituais-compostas. As primeiras se constituem da seguinte maneira: dois corpúsculos, o “mentalton” e o “intelecton”, se juntam, formando um núcleo que se denomina “môna­ton”, e em torno dele gira um “bion”. As segundas, “pela

combinação sucessiva de mônatons com mentaltons, forman­do átomos espirituais cada vez mais espiritualizados”. (Su­primimos os parênteses explicativos do texto, para maior clareza da nossa exposição. O leitor encontrará esse trecho nas paginas 43 e 44 do livro). Esclarece o autor: “Assim como os átomos materiais têm afinidade entre si, capaci­tando-os a se combinarem, a fim de formarem moléculas, as formações-espirituais-simples também poderão originar combinações, as quais levarão o nome de formações-espirituais-compostas”.

Temos aí o segredo atômico da formação do espírito, se­gredo que os próprios Espíritos orientadores de Kardec de­clararam desconhecer. A seguir, o sr. Guimarães Andrade completa o quadro, afirmando: “A evolução do espírito resulta do crescimento em complexidade de uma formação-espiritual-composta, e é processada, inicialmente, através da vida no mundo físico, onde as experiências adquiridas nos vários ciclos de reencarnações sucessivas tornam possível a constituição de formações-espirituais cada vez mais comple­xas”. (Isso na pagina 45 do livro).

Como vemos, o espírito se forma na matéria e nela se desenvolve, por um processo puramente mecânico. Depois do arranjo-atômico de que resultou a constituição do espí­rito, o autor explica o processo de desenvolvimento da inteligência. Esse processo é um novo arranjo mecânico. As sensações produzidas nos átomos pela vida material formam o que ele chama de “rudimentaríssimo rosário de percepções puntiformes”. São linhas de pontos sensoriais, que deverão juntar-se mais tarde para formarem tecidos sensoriais. Dessa tecelagem vai nascer a inteligência. O autor descobre que o homem é o mais perfeito psicossoma da terra, e que o espírito se cria a si mesmo.

O problema da autocriação espiritual é proposto na pá­gina oitenta do livro, quando o autor afirma ser o espírito “causa e efeito de si mesmo”. Para que assim seja, é claro que só podemos estar no plano do mecanicismo, que ele condenou em Kardec, como um dos motivos fundamentais da sua tentativa de reforma doutrinária. Arranjo de átomos, quanto à estrutura, e arranjo de sensações e percepções, no plano mental, o espírito é uma construção casual, semelhante­

à do atomismo grego. E dois elementos antiquados aí se reúnem: o empirismo filosófico e o elementarismo psi­cológico, ambos superados, que o autor procura juntar ao relativismo científico da física einsteiniana.

Feito esse arranjo, o sr. Guimarães Andrade enquadra o psicossoma na teoria do “continuum espaço-tempo”, de Einstein. Refere-se à quarta-dimensão, chamando os espíri­tos, quando livres do corpo material, de criaturas quadridimensionais. Mas acontece que a quarta-dimensão, para Eins­tein, é o tempo, que nada mais é senão uma continuação do espaço. As criaturas quadridimensionais, portanto, não são espirituais, no sentido espírita do termo, mas espaço-tempo­rais, ou mais simplesmente, materiais, no sentido físico do termo. O hiperespaço em que os espíritos vivem é o próprio mundo físico no seu aspecto quadridimensional.

Longe, portanto, de representar uma superação concept­ual da doutrina espírita, na sua formulação kardeciana, a teoria corpuscular do espírito representa um retrocesso. Re­duz o espírito à matéria e condiciona o seu aparecimento e o seu desenvolvimento às influências materiais. Além disso, a teoria se apresenta como um arranjo sincrético, uma mis­tura de concepções diversas, às vezes até contraditórias. Fal­ta-lhe orientação lógica. Empirismo filosófico, elementaris­mo psicológico, atomismo grego, monadismo leibniziano, misticismo induísta, espiritismo kardeciano e relativismo científico moderno, são misturados ao sabor das conve­niências.

Foi por isso que dissemos, na crônica anterior, conside­rarmos o livro do confrade Guimarães Andrade prejudicial ao movimento doutrinário. Dando-se ares de novidade, a teoria corpuscular do espírito pode impor-se aos confrades desprevenidos, e particularmente aos “novidadeiros”, como o último passo da ciência espírita. Entretanto, quando al­guém melhor informado das questões científicas e filosófi­cas da atualidade examinar o assunto, terá forçosamente de concluir que os espíritas não conseguem acertar o passo com a evolução do conhecimento. Se ficarmos, porém, com Kar­dec, estaremos avançando além dessa evolução, pois “O Li­vro dos Espíritos” abre perspectivas para a ciência moderna, em vez de ter sido ultrapassado por ela.

O Comparsa da Matéria

Estranharam alguns leitores a acusação de materialis­mo que fizemos à teoria corpuscular do espírito. Realmente, alguns trechos do livro do sr. Guimarães parecem contradi­zer-nos. Assim, por exemplo, na página 110, encontramos este: “Sem atribuir aos componentes da substância viva a intervenção de um princípio extramaterial, não conseguire­mos levar a bom termo a compreensão do enigma da vida”. (Suprimimos os trechos intercalados, para maior clareza).

Essa, entretanto, não é mais do que uma das muitas contradições do livro e da teoria. Enquanto o autor afirma tal coisa, através de palavras, propõe o contrário na sua ela­boração teórica. Preso àquilo que chamamos de “fatalismo lógico”, o sr. Guimarães Andrade quer seguir um caminho, mas na verdade segue outro. O princípio extramaterial não tem lugar nessa teoria corpuscular, tipicamente mecanicis­ta, irremediavelmente amarrada às ciências da matéria.

Na página 116, por exemplo (Cap. VI), vemos o autor equiparar os bions aos electrons. Suas palavras textuais são estas: “O bion seria um correspondente tetradimensional do electron. Suas propriedades se assemelham e são homólogas. Todavia, um tem quatro, e o outro, três dimensões. Talvez somente nisso resida a diferença entre eles”. Como vemos, a diferença é apenas dimensional. Mas quando nos lembra­mos de que a quarta dimensão é o tempo da concepção física de Einstein, chegamos a perguntar porque o autor se re­fere a espírito.

Tudo se passa, como já demonstramos, no “continuum espaço-tempo”, que é um “continuum” material, o todo ma­terial do universo einsteiniano. O próprio autor chama o espírito de “comparsa da matéria”, chegando a falar num “conúbio entre o espírito e a matéria”. Mas por que esse conúbio, se a matéria pode explicar tudo, pois tudo se passa

nela? O espírito aparece por mero engano, como “peninha para atrapalhar”, pois o que importa é a matéria. E tanto assim, que o espírito, antes de se integrar na matéria, é apenas matéria em quarta dimensão.

Para sair da situação contraditória em que se colocou, o autor inventa um curioso processo de queda dos átomos espirituais, atraídos por um campo material. Mas nesse momento tem de reformar, não só o Espiritismo, como também a Física. Sua posição é então a de um reformador uni­versal. De um lado, quer modificar Kardec, de outro, modi­ficar Einstein e todos os teóricos da física nuclear. Sua teoria da queda dos átomos, entretanto, não é mais do que uma imitação da teoria da inclinação dos átomos, de Epi­curo. E sabemos que Epicuro foi acusado, por essa teoria da inclinação, de haver desfigurado o atomismo de Demócrito.

Vejamos como o autor propõe essa aparente novidade: “Para explicar o fenômeno (a vivificação da matéria), pre­cisamos transpor algumas barreiras conceptuais da própria Física, admitindo que o movimento dos electrons, quando cobrindo uma superfície fechada em torno do núcleo, possa desenvolver um momento magnético perpendicular, ao mes­mo tempo, aos três eixos cartesianos que definem um espaço físico”. Mais uma vez, como assinalamos anteriormente, o autor se utiliza dos conceitos alheios em função dos seus interesses teóricos. Amolda ao seu bel-prazer as próprias teorias da ciência moderna.

No final do volume, o sr. Guimarães Andrade se lembra da existência de Deus e declara que o excluiu intencionalmente da teoria, para o incluir mais tarde. O leitor que acompanhou o nosso estudo há de perguntar, porém, de que maneira Deus seria incluído nesse mundo mecânico, onde o próprio Espírito da concepção kardeciana foi também posto de lado e “cientificamente” substituído por um “comparsa da matéria”, que nada mais faz do que obedecer a leis de atração e repulsão.

Não existe, na teoria corpuscular do espírito, uma ante­rioridade do espírito. “Comparsa da matéria”, ele nasce com esta e nesta se desenvolve. Na página 134, ao tratar da re­encarnação, o autor reafirma a sua tese: “Como já fizemos

ressaltar nos capítulos anteriores, o espírito se forma e se aperfeiçoa através das suas experiências na matéria”. E na página 184, explica que a alma é simples “duplicata biomagnética”, que surge com o corpo e com ele desaparece.

Essa nova teoria da alma é outro ponto obscuro do livro. O sr. Guimarães Andrade faz absoluta distinção entre espí­rito e alma. Afirma que esta última desaparece com a morte do corpo. Mas acrescenta que ela fica “em estado latente, aguardando novo veículo fisiológico para manifestar-se”. Quer dizer que a alma desaparece, mas não desaparece. Ver­dadeiro jogo de esconde-esconde, perfeitamente dispensável, pois em nada influi na teoria. O autor se diverte, às vezes, jogando com a sua imaginação, na formulação de subteo­rias inteiramente inúteis, simples brinquedos de passa-tempo.

E o perispírito? perguntarão os leitores. E perguntarão com razão. Mas não podemos dar-lhes nenhuma resposta positiva. O perispírito existe, porque o autor se refere a ele, mas jamais o define. Aliás, parece que a omissão é determinada pelo “fatalismo lógico” a que já aludimos. Como explicar o perispírito, depois que toda a sua possível expli­cação foi aplicada ao espírito? O que o sr. Guimarães An­drade chama de espírito, desde o início do livro até o fim, seria mais aceitável se ele o chamasse de perispírito. Mas, por outro lado, se o fizesse, onde iria parar a teoria corpus­cular “do espírito”?

Pela exposição acima, parece-nos ter ficado claro que a teoria corpuscular do espírito, como já dissemos, é simples­mente um equívoco. O sr. Guimarães Andrade empregou mal a sua inteligência e a sua cultura, ao querer fazer ta­manha revolução no Espiritismo e na Ciência, pois não con­seguiu atingir a nenhum dos dois. Veremos ainda, no último artigo sobre o assunto, reproduzido logo a seguir que as intenções do autor não se limitam a contribuir para o desenvolvimento da ciência espírita. Vão bem mais longe. A teoria corpuscular pretende substituir a doutrina espírita, deixando Kardec e a codificação na retaguarda. É por isso, e não pelo gosto de divergir, que insistimos no esclarecimen­to do assunto.

Reforma Doutrinária Total

Chegamos agora ao fim do nosso exame da teoria corpuscular do espírito, e os leitores que nos acompanharam hão de lembrar-se que o iniciamos com esta declaração: “Conhecemos o confrade Guimarães Andrade, sabemos ser urna pessoa honesta e sincera, mas desconfiamos dos rumos da sua imaginação no campo doutrinário”. A esta altura, nossa desconfiança está justificada. Vimos que a teoria corpuscular não é mais do que uma nova tentativa de confusão doutrinária, a envolver o movimento espírita, desprevenido e desarmado, ante as numerosas investidas que vem sofrendo.

Companheiros dirigentes, cheios de boa-vontade fraterna, estranharam a nossa crítica. Sonham com a fraternidade sem jaça, o que é, naturalmente, muito louvável, e entendem que só devíamos ter palavras de estímulo para todos os que cuidam das coisas do espírito. Alguns chegaram mesmo a declarar que não devíamos desprestigiar “obras espíritas de valor”, por questões de ponto de vista. Mostramos, porém, de sobejo, numa análise serena e objetiva, que não se trata de “pontos de vista”, mas da própria defesa da dou­trina e do movimento espírita.

Os que batem palmas para tudo quanto se faz em nome do Espiritismo, nada mais fazem do que incentivar a onda de confusões deste momento de transição. O confrade Gui­marães Andrade é honesto, sincero, inteligente e culto. Mais do que isso, é uma criatura modesta, que não revela, pessoalmente, as ambições e as pretensões gigantescas do seu livro. Os que o conhecem pessoalmente, e não leram ou não puderam entender o livro, estranham que o acusemos de tamanha pretensão, qual a de reformador do Espiritismo e da Ciência. Não temos, porém, que examinar o homem, e sim o autor.

Já demonstramos suficientemente as pretensões da teo­ria corpuscular. Embora, no início do volume, o autor declare

que pretende apenas contribuir para a ciência espírita, logo mais ele se contradiz, investindo contra Kardec e o Espiritismo, para considerá-los obsoletos e propor-se a subs­tituí-los. No correr do livro (e este é apenas o primeiro de uma série de não sabemos quantos), o autor se empolga, de­lira, perde-se nos desvios da sua própria imaginação, para no final declarar que pretende apresentar “as conseqüências filosóficas da teoria corpuscular do espírito”. É o momento de repetirmos a advertência evangélica: “Quem tem ouvidos de ouvir, ouça”.

É inegável, porque declarado pelo próprio autor, que ele quer substituir toda a codificação kardeciana, consideran­do-a “empoeirada”, pela sua nova doutrina. A substituição começa na base, que é a ciência, continua no arcabouço dou­trinário, que é a filosofia, e acabará por certo na cúpula, que é a religião, mesmo que seja para negá-la ou apresen­tar-lhe um substitutivo científico, da natureza do Positivis­mo. É então possível aceitarmos tudo isso, batermos palmas e essas pretensões, descuidados de suas conseqüências? Quem compreende a responsabilidade de espírita não pode, absolutamente, assumir, diante de ameaças dessa espécie, uma atitude de falsa tolerância. Porque isso seria compro­misso no erro.

No capítulo final do volume o confrade Guimarães An­drade esclarece ainda mais, declarando textualmente “Espe­ramos criar adeptos”. Acentua que deseja adeptos cons­cientes, capazes de analisar os seus ensaios e ajudá-lo no seu aperfeiçoamento. A sua modéstia aparece de novo, enco­brindo as pretensões. Mas o véu da modéstia se torna, nesse momento. transparente como gase. Apontamos numerosas contradições no livro, e entre elas podemos incluir esta: uma atitude modesta, encobrindo ambições desmedidas. Acreditamos que esta contradição se explique por uma fra­se do prólogo: “Esperamos ter alcançado a primeira etapa do vasto programa que nos foi confiado”. De um lado, temo a modéstia do instrumento; e, de outro, a ambição daquele ou daqueles que o usam, que lhe confiaram o programa.

Outras contradições curiosas devem ser assinaladas. Pre­tende o autor apresentar uma teoria científica, mas não se dirige aos homens de ciência, em linguagem técnica, e sim

ao público, em termos de divulgação popular. Como divul­gar aquilo que ainda não está feito, que é apenas uma tenta­tiva? Proclama a necessidade de dar bases teóricas moder­nas à ciência espírita, mas não se utiliza de uma bibliografia rigorosa, e sim de obras comuns de divulgação científica. Apela para a necessidade de experiências científicas, fora do campo mediúnico, o que é simples absurdo, e apóia-se em fontes mediúnicas, alegando a honorabilidade do médium, que do ponto de vista científico não tem nenhum valor. Desaconselha entusiasmos imediatos, mas reclama adeptos. Acredita estar apenas tateando num terreno difícil, mas for­mula extenso programa de desenvolvimento da doutrina, e chega mesmo a referir-se a aproveitamento industrial do “bion” (página 34). Toma uma atitude de extremismo científico, a ponto de excluir a idéia de Deus da sua teoria, e cita experiências comuns de mediunidade, praticadas sem nenhum rigor científico, como modelos de experimentação mediúnica.

Somos forçados a declarar que a análise do livro “A Teoria Corpuscular do Espírito” surpreendeu-nos. Conhe­cendo pessoalmente o autor, a quem dedicamos amizade fra­terna, sabendo de suas possibilidades culturais e intelectuais, não podíamos supor tamanha fragilidade em sua obra. Des­sa maneira, fomos compelidos a tomar, no caso, atitude se­melhante a de Aristóteles, perante seu mestre e amigo Platão. Lamentamos que o confrade Guimarães Andrade não houvesse tomado uma atitude mais consentânea com a sua modéstia natural, pois estamos certos de que, assim, teria evitado o emaranhado de contradições em que se perdeu.

Concluímos, pois, esta análise, repetindo que não se tra­ta de nenhuma tentativa polêmica, e muito menos de qual­quer forma de desconsideração para com o autor de “A Teoria Corpuscular do Espírito”, que pessoalmente preza­mos bastante. Se fomos forçados a dizer algumas coisas aparentemente duras, isso aconteceu pela necessidade de definirmos firmemente a nossa posição, em defesa do Espiri­tismo. Se a teoria corpuscular fosse apresentada como dou­trina à parte, sem nenhuma ligação com o Espiritismo, pouco nos interessaria. Mas, tratando-se de uma nova tentativa de reforma doutrinária, somos obrigados a encará-la com a de­vida firmeza.

Este livro foi composto e impresso nas oficinas da Editora Policor Ltda.,

R. Almeida Torres, 119 - armazém 5, em São Paulo, em janeiro de 1975, para EDIÇÕES CAIRBAR.