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terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Memórias de um suicida-Parte 2-Yvone A. Pereira

 

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dentro em breve.

- Com efeito, alimentando ideais desmedida-mente ambiciosos, transferira-se para a América longínqua, abandonando até mesmo a esposa, a quem iludira com

falaciosas promessas, e a fim de furtar-se a conseqüências de revoltante caso passional, no qual mais uma vez assumira a qualidade de algoz, seduzindo, vilipendiando

e até induzindo ao suicídio pobre e simplória donzela de suas relações. Desinteressando-se, assim, completamente de sua mãe, abandonou-a para sempre, vindo a infeliz

velhinha ao extremo de arrastar-se miseravelmente pelas vias públicas, à mercê da caridade alheia, enquanto ele prosperava na livre e futurosa América!

Eram quadros dramáticos e repulsivos, que se sucediam em cenas, de um realismo comovedor, angustiando-nos a sensibilidade, desgostando os mentores presentes,

que baixavam a fronte, entristecidos.

Agenor, porém, que, a princípio, parecera sereno, exaltara-se gradativamente, até o desespero; e, chorando convulsivamente, agora bradava, em gritos alarmantes,

que o poupassem e dele se compadecesse o instrutor, repelindo as visões como se o próprio inferno ameaçasse devorá-lo, o semblante congesto, enlouquecido por suprema

angústia, atacado da fobia cem vezes torturadora dos remorsos!

"- Não! Não, meu mestre, mil vezes não! - vociferava entre lágrimas e gestos dramáticos de desesperada repulsa. - Basta, pelo amor de Deus! Não posso! Não

posso! Enlouqueço de dor, meu bom Deus! Mãe! Minha pobre mãe, perdoa-me! Aparece-me, minha mãe, para eu saber que não amaldiçoas o filho ingrato que te esqueceu,

e me sentir possa aliviado! Socorre-me com a esmola do teu perdão, já que não posso ir até onde estás a suplicar-te, pois vivo no inferno, sou um réprobo, condenado

pela sábia lei de Deus!... Não posso mais suportar a existência sem a tua presença, minha mãe! As mais angustiantes saudades desorientam o meu coração, onde tua

imagem humilde e vilipendiada por mim gravou-se em caracteres indeléveis, sob os fogos devoradores do remorso pelo mal que contra ti pratiquei! Oh! venha o teu vulto

triste clarear as trevas da desgraça em que se perdeu meu miserável ser, envenenado pelo fel de tantos crimes! Aparece-me ao menos em sonhos, ao menos em minhas

alucinações, para que ao menos eu obtenha o consolo de tentar um gesto respeitoso para contigo, que suavize a mágoa insuportável da tortura que me esmaga por te

haver ofendido! Aparece-me, para que Deus, por ti, perdoar-me possa todos os males de que vilmente te cumulei!... Perdão, meu Deus, perdão! Fui um filho infame,

ó Deus clemente! Sei que sou imortal, meu Deus! e que Tu és a misericórdia e a sabedoria infinitas! Concede-me então a graça de retornar à Terra a fim de expurgar

da consciência a abominação que a deturpa! Deixa-me reparar a falta monstruosa, Senhor! Dá-me o sofrimento! Quero sofrer por minha mãe, a fim de merecer o seu perdão

e o seu amor, que foi tão santo, e o qual não levei em consideração! Castiga-me, Senhor Deus! Eu me arrependo! Eu me arrependo! Perdoa-me, minha mãe! Perdoa-me!..

"

Retirou-lhe o lente sábio a faixa lucilante da fronte. Levanta-te, Agenor Peflalva!" - ordenou, autoritário.

Levantou-se o desgraçado, cambaleante, olhos desvairados, como atacado de embriaguez.

Haviam cessado as visões.

Inconsolável, porém, ele - mísero furioso consciente - rojou-se de joelhos, cobriu as faces transtornadas com as mãos crispadas e deixou continuar o pranto,

vencido pelo mais impressionante desalento que me fora dado presenciar em nosso Instituto até aquela data...

Olivier de Guzman não interveio, tentando consolá-lo. Apenas levantou-o e, amparando-o paternalmente, reconduziu-o aos seus apartamentos. Em ali chegando recompôs

sobre a mesa de estudo um grande álbum, cujas páginas diz-se-iam amarfanhadas; e, numa folha em branco, escreveu um titulo e um subtítulo cuja profundidade abalançou

nossa alma num frémito de grande, de penosa emoção:

- TESE: O 4º Mandamento da Lei de Deus: -"Honrai o vosso pai e a vossa mãe, a fim de viverdes longo tempo na Terra que o Senhor vosso Deus vos dará." -

Relação dos deveres dos filhos para com seus pais.

Em seguida, afastou-se. Não mais articulara uma palavra! Outro discípulo esperava-o. Nova tarefa requisitava seus desvelados desempenhos...

Padre Anselmo torceu o botão minúsculo do aparelho. Findara igualmente a nossa visão!

Não me pude conter e, quase mal-humorado, perquiri:

Com que, então, deixam o infeliz assim desamparado, entregue a tão desesperadora situação?... Haverá em tal gesto suficiente caridade . da parte dos obreiros da

magnânima Legião que nos acolhe, incumbidos de sua proteção?.. ."

Carlos e Roberto sorriram vagamente, sem responder, enquanto o velho sacerdote iniciado satisfazia, bondosamente, minha indiscreta ansiedade:

"- Os mentores conhecem minuciosamente os seus discípulos e as tarefas a que se dedicam. Sabem o que fazem, quando ....... De outro modo, quem vos disse que

o penitente ficará só e desamparado?... Ao contrário, não se encontra sob a tutela maternal de Maria de Nazaré?..

Quando os portões da fortaleza se fecharam sobre nós, a fim de iniciarmos a marcha de retorno, ouvíamos ainda, ecoando angustiosamente em nossas mentes atordoadas,

a grita do mau filho entre as convulsões rábicas do remorso:

"- Perdoa-me, minha mãe! Perdoa-me, ó meu Deus!"

3

O Manicômio

"Se a vossa mão ou o vosso pé vos é objeto de escândalo, cortai-os e lançai-os longe de vós; melhor será para vós que entreis na vida tendo um só pé ou uma

só mão, do que, tendo dois, serdes lançados no fogo eterno.'

JESUS CRISTO - O Novo Testamento. (13)

Não nos furtaremos ao desejo de transcrever as sensacionais impressões suscitadas ao nosso raciocínio pela segunda visita da série programada pela previdência

do Irmão Teócrito, a bem da nossa instrução, na tarde do dia imediato ao em que visitaremos a Torre

Abriram-se de par em par os magníficos portões do Manicômio, permitindo-nos passagem como se fôramos personagens gradas.

Como tão bem indiciava a sua denominação, o Manicômio recolhia as individualidades cujo estado mental excessivamente deprimido pelas repercussões originadas do

efeito do suicídio lhes impossibilitasse a faculdade de raciocinar normalmente.

Era o diretor do Manicômio antigo psiquista natural da velha Índia - berço da sabedoria espiritual da Terra -, conhecedor profundo da ciência esotérica da alma

humana, lúcido e experiente alienista, cujos cabelos nevados a escaparem em torno de alvo turbante afiguravam

(13) Mateus, capítulo 18, versículos 6 a 10; 5, 27 a 30.

formosa coroa de louros comprovando-lhe os méritos adquiridos no trabalho e no devotamento a seus irmãos infelizes. Seu nome - um nome cristão - adotado após a iniciação

na luz redentora do Cristianismo, seria João, o mesmo do apóstolo venerando que lhe desvendara os arcanos radiosos da Doutrina Imaculada a que para sempre se devotara,

desde então. E como Irmão João, simplesmente, foi que conhecemos essa encantadora personagem sobre cujos ombros pesava a tremenda responsabilidade dos enfermos mais

graves de toda a Colônia! Suficientemente materializado, a fim de melhor permitir-nos compreensão, Irmão João acusava tez amorenada, como geralmente a têm os hindus;

grandes olhos perscrutadores, fronte ampla e inteligente, cabelos completamente encanecidos e estatura elevada. Ao dedo anelar da sinistra a esmeralda, que indiciava

sua qualidade de médico, assim como ao alto do turbante, pois, em verdade, não víramos ainda um só daqueles sábios iniciados que se não trajasse com as mesmas particularidades

apresentadas pelos demais companheiros, exceção feita dos sacerdotes, que preferiam conservar a alva sacerdotal atendendo a injunções circunstanciais.

Extremamente simpatizados por essa figura veneranda, rodeamo-lo sem mais cerimônias, como se de longa data o conhecêssemos, atraídos pelas esplêndidas vibrações

que lhe eram naturais, enquanto ia ele demandando o interior do importante estabelecimento que comprovávamos rigorosamente montado sob os reclamos da Fraternidade

inspirada no divino amor cristão, assim como nas exigências da ciência médico-psíquica.

"- Antes de tratarmos de qualquer assunto interessante - esclareceu, gentil e atencioso -, deverei certificar-vos de que meus queridos pupilos são inofensivos,

como entidades anormalizadas pelo sofrimento, que são. Alguns existem ainda em estado de alucinação; outros imersos em prostração impressionante, a requisitarem

de nossos cuidados zelos especiais, conforme vereis. Digo, porém, que são inofensivos, tomando por base um louco terreno, pois os meus pobres pupilos não agravariam

quem quer que fosse, conscientemente; não agrediriam, não atacariam, como geralmente acontece com os loucos dos manicômios terrenos. Todavia, são portadores dos

mais nefandos perigos - não só para homens encarnados, mas até para Espíritos não ainda imunizado. pelas atitudes mentais sadias e vigorosas -, razão pela qual temo-los

separados de vós outros, mantendo-os isolados. Seus deploráveis estados vibratórios, rebaixados a nível superlativo de depressão e inferioridade, são de tal sorte

prejudiciais que, se se aproximassem de um homem encarnado, junto dele permanecendo vinte e quatro horas, e se esse homem, ignorante em assuntos psíquicos, lhes

oferecesse analogias mentais, prestando-se à passividade para o domínio das sugestões, poderia suceder que o levassem ao suicídio, inconscientes de que o faziam,

ou o prostrassem gravemente enfermo, alucinado, mesmo louco! Junto a uma criança poderão matá-la de uni mal súbito, se o pequenino ser não tiver ao redor de si alguém

que, por disposições naturais, para si atraia tão perniciosas irradiações, ou uma terapêutica espiritual imediata, que o salvaguarde do funesto contágio, que, no

caso, será o efeito lógico de uma peste que se propagou..."

Impressionado, Belarmino perquiriu, carregando o cenho:

"- Como poderia dar-se um caso melindroso desse, Irmão João!... Com que então existem tais possibilidades sob as vistas da Lei Sábia do Criador?... Como hei

de compreendê-las sem prejudicar meu respeito pelas mesmas!...

O interlocutor esboçou gesto de indefinível amargura e retrucou, com sabedoria:

"- A Lei da Divina Providência, meu filho, estatuiu e preconizou o Bem, assim o Belo, como padrão supremo para a harmonia em todos os setores do Universo. Distanciando-se

desse magnífico princípio - trilha evolutiva incorruptível -, o homem responsabilizar-se-á por toda a desarmonia em que se reconhecer enredado! Tais casos, como

os de que tratamos, têm possibilidades de se verificar e são resultantes de infrações cometidas pelos nossos estados de imperfeição, prejuízos desagra dáveis e constantes

da inferioridade do planeta em que se dão. Convém notificar, porém, que não estou afirmando que tais casos sejam freqUentes, mas que poderão acontecer, têm mesmo

acontecido! E assim acontecerá quando exista semelhança de tendências - afinidades - entre as duas partes, ou seja, entre o desencarnado e o encarnado. Quanto à

criança, ser melindroso e impressionável por excelência, convenhamos que será suscetível de molestar-se por bem insignificantes fatores, bastando não estejam estes

concordes com sua delicada natureza. Não ignoramos, por exemplo, que um susto, uma impressão forte, um sentimento dominante, como a saudade de alguém muito querido,

poderão igualmente levá-la a adoecer e abandonar o pequeno fardo carnal!

A mesma Lei, sob a contradita da qual aquelas possibilidades poderão subsistir, também faculta aos homens meios eficazes de defesa!

Através da higienização mental, no reajustamento dos sentimentos à prática do verdadeiro Bem, assim como no cumprimento do Dever; nas harmoniosas vibrações originadas

da comunhão da mente com a Luz que do Alto irradia em tonos de beneficência para aqueles que a buscam, poderá a individualidade encarnada imunizar-se de tal contágio,

assim como o homem se imuniza de males epidêmicos, próprios do físico-terrestre, com as substâncias profiláticas apropriadas à organização carnal, isto é, vacinas...

Em se tratando de um vírus psíquico, é claro que o antídoto será análogo, harmonizado em energias opostas, também psíquicas... Por nossa vez, existindo, na Lei que

orienta a Pátria Invisível, ordens perenes para que calamidadeø de tal vulto sejam evitadas o mais possível, todos os esforços empregamos a fim de bem cumpri-las,

constituindo dever sagrado, para nós, o preservarmos os homens em geral, e a criança em particular, de acidentes dessa natureza.

Infelizmente, porém, nem sempre somos compreendidos e auxiliados em nossos intuitos, porqüanto os homens se entregam voluntariamente, através de atitudes ímpias

e completamente desgovernadas, a tais possibilidades, as quais conforme vimos afirmando, conquanto anormais, poderão verificar-se...

Para aquele que se deixou vencer pelo assédio da entidade desencarnada, os males daí resultantes serão a conseqüência da invigilância, da inferioridade de costumes

e sentimentos, do acervo de atitudes mentais subalternas, do alheamento da idéia de Deus, em que se prefere estagnar, esquecido de que a idéia de Deus é o manancial

imarcescível a fornecer elementos imprescindíveis ao bem-estar, à vitória, em qualquer setor em que se movimente a criatura! Para o causador "inconsciente" do mal

positivado, será o demérito de um ônus a mais, derivado do seu ato de suicídio, e cuja responsabilidade irá juntar-se às demais que o sobrecarregam..."

"- E não existirá, porventura, meio seguro de prevenir o homem do nefando perigo a que se encontra exposto, como se pisasse ele em terreno falso, solapado por

explosivos mortíferos?..." - interroguei, pensativo, entrevendo muitos dramas terrenos cuja causa estaria na exposição que nos faziam.

"- Sim, existem! - replicou vivamente o esclarecido doutor. - Existem vários meios pelos quais são eles avisados, e até posso mesmo assegurar que o alarme é

permanente, incansável, ininterrupto, eterno! - e não dirigido a este ou àquele grupo de cidadãos, apenas, mas à Humanidade inteira!

Os avisos de que carecem os homens para se desviarem não só desse ominoso resultado, como dos demais tormentos que poderão atingi-los durante os ensaios terrenos

para o progresso, estão nas advertências da própria consciência de cada um, a qual é o porta-voz da legislatura por que se deverá pautar, esboçando-lhe a prática

do Dever como proteção contra todo e qualquer malogro que possa surpreendê-lo na sociedade terrena como na espiritual! Estampam-se nos dispositivos que as crenças

e tradiçôes sagradas de todos os povos popularizam através das gerações, assim como se encontram nas resenhas da moral educativa legada ao gênero humano, como aos

Espíritos pertencentes à Terra, pelo Grande Mestre Nazareno, a qual, longe de ser fruto do misticismo hiperbólico de um povo apaixonado e fantasista, como presumem

os supostos espíritos fortes, é, ao contrário, a norma lógica e viva, cuja aplicação nos atos da vida prática diária virá garantir ao homem - à Humanidade - os estados

felizes com que há milênios sonha, pelos quais se debate através de lutas incessantes e inglórias, mas para a conquista das quais tem desperdiçado tempo valioso

deixando de abraçar os únicos elementos que o ajudariam na heróica odisséia, isto é, o respeito às leis que regem o Universo e presidem ao seu destino, a auto-reforma

indispensável e dali conseqüente! E presentemente, com absoluta eficiência, estão nos códigos luminosos da chamada Nova Revelação que preside, nos tempos atuais,

sobre a Terra, à transformação social que se esboça no mencionado planeta. Facultando francas relações entre os planos objetivo e invisível; estabelecendo e popularizando

a comunhão de idéias entre nós, os Espíritos desencarnados, e os homens ainda retidos na armadura carnal, a Nova Revelação instruirá a quantos se interessarem pelos

edificantes e magnos assuntos da sua especialidade, assim permitindo aos homens receberem do Invisível tudo o de que necessitarem realmente, a fim de se fortalecerem

para a ciência da Vitória. Assim sendo, necessariamente o homem conhecerá todos os aspectos da vida do Invisível que o estado do seu progresso moral e mental permitir!

Suas glórias e belezas ser-lhe-ão desvendadas; os supostos segredos que envolviam a morte, em planos indevassáveis, serão solucionados por fatos clarividentes e

elucidativos, assim como os perigos que o cercam -como os de que tratamos -' os abismos, as calamidades de que poderia ser vítima por parte de habitantes do Invisível,

ainda inferiorizado. Tudo quanto os Espíritos têm podido tentar para despertar a atenção dos homens no intuito de instruí-los, advertindo-os no que concerne aos

seus destinos espirituais, há sido tentado através da Nova Revelação. Mas os homens só atendem de boamente aos imperativos das paixões! Interessam-lhes tão-somente

as opiniões pessoais, os gozos do momento! De preferência atendem à satisfação dos próprios caprichos, embora deprimentes, como às exigências do egoísmo gerador

de quedas ....... e, por isso mesmo, freqüentemente se dissuadem de tudo que os poderia levantar para Deus evitando-lhes desgraças e decepções - possibilidades pavorosas

como as que acabei de mencionar pois não será desvirtuando-se diariamente, ao embalo das ruins paixões, que se imunizarão contra uma espécie de males cujo único

antídoto se encontra na prática das virtudes reais, como na ascensão mental para os domínios da Luz! Fazem-se propositadamente surdos aos apelos do Protetor Divino,

que deseja resguardá-los das investidas do mal à sombra do Seu Evangelho de Amor, assim como ao verbo da Revelação Nova, que, em Seu nome, a todos convoca para a

sublime transformação, ao advertir:

- Ó Homem, criatura forjada dos haustos radiosos do Foco Divino: - lembra-te de que és imortal!... Pensa em que tudo o que vês, tudo o que apalpas e possuía

- as conquistas hodiernas que em teu seio fomentam o orgulho, as vaidades que te cortejam o egoísmo, as loucas paixões que te arrasam o caráter, comprometendo-te

o futuro; as fictícias glórias mundanas que te embalam e bajulam as presunções, escravizando-te à materialidade - tudo passará, desaparecendo um dia, destruindo-se

aos fogos implacáveis da realidade, mergulhadas que serão no olvido das coisas insustentáveis que não poderão prevalecer no seio de uma Criação Perfeita. Mas tu

persistirás para sempre! Ficarás de pé para contemplares os deploráveis escombros dos teus próprios enganos, aguardando pavidamente a aurora de novos sucessos do

porvir! Lembra-te de que os mundos que rolam no infinito azul, esses focos de luz e energia, que te lenificam as idéias quando, à noite, desfrutando o merecido repouso

após as lides diuturnas, te abandonas a namorá-los fulgurando em distâncias impenetráveis; os planetas longínquos, que em diversas paragens siderais do Universo

Ilimitado crescem, progridem e se abrilhantam no carreiro dos milênios, carregando em seus dorsos generosos outras humanidades, tuas irmãs, em ascensão constante

para o Eterno Distribuidor de Vida, e arrastando em sua órbita formosa plêiades de outras tantas jóias do inimitável escrínio do Universo; o próprio Astro Rei que

te viu nascer e renascer tantas vezes sobre a Terra, emprestando-te vida, guiando e aquecendo teus passos, sorrindo às tuas vitórias de Espírito em marcha, velando

por tua saúde e protegendo-te na noite dos milênios, colaborando contigo nas batalhas dos aprendizados necessários à tua educação de herdeiro divino -igualmente

passarão, morrerão para serem substituidos por outros exemplares novos e melhores, que por sua vez atingirão idênticos destinos! Tu, no entanto, não passarás! Resistirás

à sucessão dos evos, como Aquele que te criou e te tornou eterno como Ele próprio, dotando-te com a essência da Vida que é Ele mesmo, e de cujo seio promanaste!

Acautela-te por isso mesmo, ó Homem! Sendo tu, por direitos de filiação, fadado à glória divina no seio da Eternidade, não poderás fugir aos serviços da evolução

que é imprescindível faças, dos movimentos de ascensão próprios da tua natureza, a fim de atingires a órbita de que descendes!... e, nesse longo trajeto que te será

indispensável, quantas vezes infringires os dispositivos que determinam a harmoniosa escala da tua elevação, tantas sofrerás os efeitos da dissonância que criaste

contrariando a Lei a que estás sujeito como criatura de um Ser Perfeito!... Cuida de ti enquanto é tempo!... enquanto estás a caminho do trajeto normal, que te solicita

apenas realizações benemerentes... Não vá a Dor visitar-te, obrigando-te a estágios penosos, por negligência tua no cumprimento do Dever, forçando-te a lixiviar

a consciência, com reparações inapeláveis, a par daquelas realizações!... Aprende com teu Pai Altíssimo, que tão bem te prendou para a glória do Seu Reino, o amor

e o respeito ao Bem, base inconfundível em que te deverás apoiar para atingires a magnífica vitória que és convidado a concretizar em honra de ti mesmo, felicidade

que, por lei, é apanágio do teu Espírito imortal!... Trata, pois, de modelar teu caráter abrilhantando de virtudes essa alma que deverá refletir, em algum dia da

Eternidade, a imagem e semelhança do seu Criador!

Para a consecução de tão glorioso alvo foi-te concedido pelo Céu Magnânimo - o Modelo Ideal, o Instrutor Insuperável, capaz de guiar-te à culminância do destino

que te é reservado: - Jesus de Nazaré, o Cristo de Deus!

Ama-o! Segue-o! Imita-o!... e alcançarás o Reino do Pai Altíssimo!..."

Assim fala a Revelação Nova, que os Invisíveis proclamam sobre a Terra.

Quem, no entanto, se dispõe a ouvi-la com reverência, porfiando em aceitar os sublimes convites que o Céu, abrindo-se através dela, aos homens dirige!...

Os filhos do infortúnio, de preferência! Aqueles, cujas almas abatidas pelas supremas desilusões do mundo, tiveram os corações revivescidos ao influxo das verdades

celestes que seus ensinamentos preciosos deixam entrever! Os bondosos idealistas de almas sensíveis e humildes, enamoradas do Bem e do Belo, os cérebros pensadores,

não contaminados de indigestas teorias filhas de falíveis opiniões pessoais, e cujos surtos mentais ultrapassaram as barreiras terrestres, na ânsia incontida e generosa

de se afinarem com as harmoniosas vibrações que se irradiam do Perfeito!... Os grandes e poderosos, porém, os mandatários endeusados pelas boas situações terrenas,

cuja bolsa bem provida e mesa lauta desafiam preocupações: o caudal imenso que só em si mesmo crê e só a si mesmo adora, porque todos os caprichos poderá comprar,

todas as paixões conseguirá regaladamente saciar, refocilando no engodo das ruins alegrias que enganam os sentidos enquanto envenenam a alma - esses preferem nada

disso entender, voltando as costas a tudo quanto tenderia a deter-lhes a marcha para o precipício... Até que, com efeito, lá se despenham, não obstante os reiterados

avisos esparsos desde milênios pelo mundo todo... Lá se enredam, reduzindo-se a este deplorável estado... Quereis verificar?...

Disse e, adiantando-se, encaminhou-se para um varandim que deitava vistas para extenso pátio, espécie de claustro pitoresco onde arbustos graciosos dispunham

agradavelmente a paisagem limitada.

Alguns bancos artísticos enfeitavam as pequenas alamedas, onde vultos tristes e impressionantes, de entidades sofredoras que, como nós, haviam sido homens, sentavam-se

para, em silêncio, descansar.

Irmão João convidou-nos a debruçar sobre o varandim, que se elevava cerca de um metro acima do nível do pátio, e continuou:

"- Estas estranhas figuras que daqui contemplareis, pois não convém que delas vos aproximeis, chegaram, como vós outros, do Vale dos Suicidas. Enquanto, porém,

recuperastes a serenidade, conseguindo condições satisfatórias para tentativas prometedoras, estes pobres irmãozinhos apenas lograram desvencilhar-se das exasperações

de que se perseguiam para caírem em apatia, o que indicará serem bem diferentes o vosso nível moral e o grau de responsabilidades no suicídio... Estão atordoados,

entorpecidos sob impressões muito chocantes e, por enquanto, invencíveis! Não podem raciocinar como seria de desejar em um Espírito desencarnado; não conseguem refletir

com a plenitude do senso, e apenas compreendem o que em derredor se passa como se do fundo de um sarcófago entrevissem a realidade!

Os empuxões dramáticos que os surpreenderam nas procelas das próprias inconsequências e a truculência dos males de que desde muito se circundaram, elevaram-se

a extensão tal que lhes adormentou a vivacidade própria do Espírito, do ser consciente que se originou de um impulso divino!

Aqui, na desoladora estreiteza deste pátio, que a misericórdia sempiterna do Senhor de Todas as Coisas permitiu fosse dotado de conforto e expressões agradáveis,

encontram-se, em grande penúria moral, muitas entidades que foram homens ilustres na Terra, aos quais admiradores solícitos teceram necrológios eloqüentes em páginas

de jornais importantes e em memória de quem exéquias pomposas se celebraram; que tudo possuíram do que de melhor existe sobre a Terra... mas que, iafelizmente, se

esqueceram de que nem tudo no Universo Ilimitado se resume em prazeres, em fausto; nem sempre as elevadas posiÇões sociais ou as riquezas materiais serão garantias

para aqueles que as associou aos erros; nem sempre a prática de abominações ou as inconseqüências da imoralidade, assim como as odiosas atitudes do egoísmo, ficarão

impunes, abandonados seus dispensadores na descida irreparável para as trevas!

Encontram-se, aqui, orgulhosos e sensuais que julgaram poder dispor levianamente dos próprios corpos carnais, entregando-se à dissolução dos costumes, saciando

os sentidos com mil gozos funesto, deletérios, sabendo, no entanto, que prejudicavam a saúde e se levariam ao túmulo antes da época oportuna prevista nos códigos

da Criação, porque disso mesmo lhes preveniam os facultativos a quem recorriam quando os excessos de toda ordem traíam indisposições orgânicaz em suas armaduras

carnais - caso não se detivessem a tempo, corrigindo os distúrbios com a prática da temperança.

Todos estes, sabiam-no também! No entanto, continuavam praticando o crime contra si mesmos! Sentiam os efeitos depressores que o vício nefando produzia em suas

contexturas físicas, como em suas contexturas morais. Mas prosseguiam, sem qualquer tentativa para a emenda! Mataram-se, pois, lentamente, conscientemente, certos

do ato que praticavam, porqüanto tiveram tempo para refletir! Suicidaram-se fria e indignamente, obcecados pelos vícios, certos de que se supliciavam, desrespeitando

a prenda inavaliável que do Sempiterno receberam com aquele corpo que lhes ensejava progressos novos!

Observareís, meus caros amigos, que, dentre tantos, muitos quereriam esquecer pesados infortúnios no adormecimento cerebral provocado pelas libações. Que, inconsoláveis,

premidos por angústias irremediáveis, buscariam supremo consolo na embriaguez que os levaria, possívelmente, a desejada trégua ao sofrimento. Mas esse suposto atenuante

é sofisma próprio do inveterado rebelde, porque o convite ao alivio dos pesares, que afligem e perseguem a Humanidade, há dois milênios ressoa pelos recôncavos do

Planeta, e posso mesmo garantir-vos que nem um só homem, desde que foi proferido pelo Grande Expoente do Amor que se deu em sacrifício no alto do Calvário, deixou

de conhecê-lo, seja quando investido do indumento carnal ou durante o estágio no Invisível à espera da reencarnação, e, por isso, certamente, também estes pobres

que aqui se acham tiveram ocasião de ouvi-lo em algum local da Terra ou da Pátria

Espiritual:

"- Vinde a mim, vós que sofreis e vos achais sobrecarregados, e eu vos aliviarei..." (14)

... Como, pois, quiseram esquecer mágoas e infortúnios pungentes nas libações viciosas, desmoralizadoras e deprimentes, as quais não só não poderiam socorrê-los

como até lhes agravaram a situação, tornando-os suicidas cem vezes responsáveis?!... Pois ficai sabendo que infratores desta ordem carregam ainda mais vultoso grau

de responsabilidade do que o desgraçado que, atraiçoado pela violência de uma paixão, num momento de supremo desalento se deixa arrebatar para o abismo!

Atentai, porém, para esta nova espécie: - são os cocainômanos, os amantes do ópio e entorpecentes em geral, viciados que se deixaram rebaixar ao derradeiro estado

de decadência a que um Espírito, criatura de Deus, poderia chegar! Encontram-se em lamentável estado de depressão vibratória, verdadeiros débeis mentais, idiotas

do plano espiritual, amesquinhados moral, mental e espiritualmente, pois seus vícios monstruosos não só deprimiram e mataram o corpo material como até comunicaram

ao físico-astral as nefastas conseqüências da abominável intemperança, contaminando-o de impurezas, de influenciações pestíferas que o macularam atrozmente -, a

essa constituição impressionável e delicada, entretecida de cintilações mimosas, a qual cumprirá ao homem alindar com a aquisição de virtudes sempre mais ativas

e meritórias, enobrecer e exaltar através de pensamentos

(14) Mateus, capítulo 11, versículos 28, 29 e 30.

puros, irradiados em impulsos nobilitantes que confinam com os haumtos divinos - mas, jamais! jamais rebaixar com a prática de tão entristecedores deméritos!...

"

Efetivamente, víamos, acompanhando com o olhar interessado as indicações que o emérito moralista nos fazia, individualidades desfiguradas pelo mal que em si conservavam,

conseqüências calantitosas da intemperança - atoleimadas, chorosas, doloridas, abatidas, cujas feições alteradas, feias, deprimidas, recordavam ainda os trágicos

panoramas do Vale Sinistro. Excessivamente maculadas, deixavam à mostra, em sua configuração astral, os estigmas do vício a que se haviam entregado, alguns oferecendo

mesmo a idéia de se acharem leprosos, ao passo que outros exalavam odores fétidos, repugnantes, como se a mistura do fumo, do álcool, dos entorpecentes, de que tanto

abusaram, fermentassem exalações pútridas cujas repercussões contaminasSem as próprias vibrações que, pesadas, viciadas, traduzissem o vírus que havia envenenado

o corpo material!

Os "retalhados" integravam a desgraçadísøima falange relegada ao Manicômio. Conservavam ainda a impressionante armadura de cicatrizes sanguinolentas. De quando

em quando espasmos cruciantes sacudiam-nos como se estertorassem à lembrança do passado. Pesados e tardos eram os movimentos que faziam; locomoviam-se a custo, dando

a entender carência de forças vibratórias para acionarem a mente e usarem das faculdades naturais ao homem como ao Espírito. Dir-se-iam reumáticos, enfermos a quem

ataduras envolvessem, tolhendo a agilidade das articulações...

Entristecidos à frente de tão ásperos sofrimentos, e tão espantosa decadência moral, interrogamos, cheios de angústia:

"- E que há de ser destas pobres criaturas?... Que futuro as aguarda?...

Em gesto rápido e em idêntico diapasão, o eminente chefe do singular estabelecimento satisfez-nos a ansiosa expectativa, traduzindo a indubitável tristeza que enternecia

sua nobre alma de discípulo do Evangelho, frente a tão lamentáveis manifestações de inferioridade:

- Oh! dramático futuro aguarda-as, na confusão expiatória de reencarnação próxima e inevitável! - respondeu ele. - Os exemplos que apresento neste momento

são irremediáveis na vida espiritual! Nada, aqui, poderá sanar as ferazes angústias que os oprimem, nem modificar a situação embaraçosa que para si mesmos entreteceram

com as atitudes selvagens da incontinência, da imprevidência sacrílega em que acharam por bem se locupletarem, no livre curso aos vícios com que se diminuíram! Eles

mesmos, unicamente eles, serão agentes de misericórdia para consigo próprios, já que voluntariamente se responsabilizaram pelos desvios de que se não quiseram furtar!

Mas isto lhes custará desgostos, opressões e dores infinitamente amargosas, diante dos quais uma individualidade normal se quedaria estarrecida! Para que se convençam

da situação própria, submetendo-se mais ou menos resignadamente às conseqüências futuras das passadas imprevidências, torna-se necessário da nossa parte, enquanto

aqui se demorarem, trabalho árduo de catequese, aplicações incansáveis de terapêutica moral e fluídica especial, carinhosa assistência de irmãos investidos de sagrada

responsabilidade. Acontece freqüentemente, no entanto, que muitos destes infelizes trazem a revolta no coração, a raiva impenitente pela desgraça de que se consideram

vítimas e não responsáveis. Não se resignam à evidência do presente e, inconformados, partem a tomar novo envoltório terreno, agravando a situação própria com a

má-vontade em que se entrincheiram, a insubmissão e a impaciência, acovardados. ante a expectativa dos embates tormentosos da expiação irremediável!

Tais como se encontram aqui, estes nada mais representam do que pequena malta de futuros leprosos que renascerão entre as amarguras das sombrias encostas

do globo terrestre, nos planos miseráveis da sociedade planetária; de cancerosos e paralíticos, de débeis mentais e idiotas, nervosos, convulsos, enfermos incuráveis

rodeados de complexos desorientadores para a medicina terrena, desafiando tentativas generosas da nobre ciência... enquanto pesarão desagradavelmente na sociedade

humana, pois são fruto dela, dos seus erros, a ela pertencem, sendo justo que ela própria os hospede e mantenha até quando necessário... até quando a calamitosa

situação for minorada!

Reencarnarão dentro em breve. Conosco permanecerão apenas o tempo necessário para se refazerem das crises mais violentas, sob os cuidados dos nossos dedicados

cooperadores incumbidos da sua vigilância. Partirão para o novo renascimento tais como se acham, pois não há outro remédio capaz de lhes minorar a profundidade dos

males que carregam. Levarão para o futuro corpo, que moldarão com a configuração maculada com que presentemente se encontram, todos os prejuízos derivados da dissolução

dos costumes de que se fizeram incontidos escravos... e ali, como ficou esclarecido, serão grandes desgraçados a se arrastarem penosamente em estações de misérias

e lágrimas...

Tão ardentes manifestações de sofrimento, no entanto, fá-los-ão colher boa messe de proveitos futuros. Sob os fogos redentores do infortúnio, as camadas impuras

que impedem o brilho desse corpo astral se adelgaçarão, dando lugar a que as vibrações se ativem, desentorpecendo-se para movimentações precisas no campo das reparações.

Seus corações, impulsionado. pela dor educadora, ascenderão em haustos de súplicas frementes àprocura da Causa Suprema da Vida, num crescendo constante de veemência

e de fé, até atingirem as camadas luminosas da Espiritualidade, onde se farão refletir, afinando-se ao amparo de vibrações generosas e superiores, que, lentamente,

educarão as suas... Pouco a pouco, assim sendo, o vírus se irá desfazendo até que, com a desagregação do envoltório carnal, se encontrem aliviados e em condições

de algo aprenderem aqui conosco, incentivando a própria reeducação, depois de receberem alta do nosso estabelecimento. .

"- Se bem compreendi, então, a reencarnação punitiva que aguarda esses desgraçados lhes é imposta, simplesmente, como tratamento médico hospitalar desta seção do

nosso Departamento?... Trata-se de um anti

doto... um remédio, pois?..." - perquiri, sacudido por penoso desaponto.

"- Sim! - retornou tristemente o lúcido conferencista. - Medicamentação, apenas! Um gênero de tratamento que a urgência e a gravidade do mal impõem ao enfermo!

Operação dolorosa que nos pesa fazer, mas à qual não vacilamos em conduzir os pacientes, certos de que somente depois de realizada é que entrarão eles em convalescença.

Unicamente, não será propriamente uma punição, conforme considerada, pois ninguém infligiu o castigo ou determinou a sentença, senão que, todos quantos aqui servimos

a Lei nos esforçamos, tanto quanto nos esteja ao alcance, por lenificar-lhes a insidiosa situação. Será antes - isso sim! - o efeito da causa que o próprio paciente

criou com os excessos em que se deleitou... Como tivestes ocasião de saber, porém, a solicitude maternal de Maria, submetida à lei áurea da Fraternidade preconizada

pelo Amigo Incansável que nos conduz à redenção, confere-lhes assistência desvelada e constante. Reencarnados, mergulhados nas ondas terrestres da expiação, continuarão

sob nossa dependência, da mesma forma hospitalizados e registrados em nosso Departamento, visitados e assistidos por nossos médicos e vigilantes como se aqui ainda

permanecessem... enquanto que será para aqui mesmo que tornarão, ao findar o terrível degredo para que os preparamos."

Seguimos, não obstante, a visitar os gabinetes médicos no interior do edifício. De passagem, porém, Irmão João fez-nos penetrar nas enfermarias onde se localizavaxn

aqueles que continuavam presas de prostração impressionante desde o ingresso no Vale Sinistro, uma vez que, deprimidas por excessos de toda a natureza, notadamente

os de caráter sexual, suas faculdades anímicas se haviam amesquinhado, reduzindo-os àquela insólita situação - atestado indubitável dos instintos a que se apegaram!

Deitados em leitos que a bondade excelsa de Jesus lhes conferia o direito de usar, através dos dispositivos amorosos das leis de Caridade que inspiravam todos

os serviços da Colônia, achavam-se eles isolados dos de mais, em recintos extensos, superlotados. Pertenciam a todas as classes sociais e nacionalidades comportadas

na circunscrição da Colônia. Pesadelos atrozes traziam-nos em constantes sobressaltou, sem que, apesar disso, lograssem despertar do angustiante marasmo. Incapazes

de se locomoverem, de externar a palavra, expondo as atormentações que lhes turbilhonavam no cérebro, apenas gemidos débeis proferiam, de envolta com repugnantes

contorsões, como se atacados de vírus desconhecido.

Emocionados, passamos entre as filas dos leitos, ligeiramente observando-os às indicações do hïcido mentor, que ilustrava a impressionante apresentação com o

verbo atraente que tão bem sabia usar.

"- Se possuísseis bastante desenvolvimento da visão espiritual - ia elucidando -, verificaríeis terríveis emanações se levantarem de suas mentes, dando-se a contemplar

em figuras e cenas deprimentes e vergonhosas, resultado da dissolução dos costumes que lhes foram próprios, dos atos praticados contra a decência e a moral, pois

ficai sabendo que tanto os atos praticados pelos homens como os pensamentos evolados de sua mente imprimem-se em caracteres indeléveis na sua estrutura perispiritual,

escapando-se depois, em flagrantes deploráveis, aos nossos olhos, quando, à revelia da Lei, se bandeiam para este lado da vida! Nestes leitos existem suicidas de

todos os tipos: - desde os que empunharam a arma ou o tóxicos fatais até aqueles que se consumiram vitimados pelos próprios vícios! Une-os a mais ignóbil afinidade,

isto é, a da inferioridade do caráter e dos sentimentos!..."

Com efeito! Se não podíamos perceber as cenas mentais indicadas, como outrora no Vale Sinistro, quando destacamos as relacionadas com o ato violento do suicídio,

no entanto percebíamos vapores escuríssimos, quais nuvens espessãs, evolarem de seus cérebros, espalhando-se em ondas volumosas pelo ambiente, o qual se toldava

envolvendo os aposentos em penumbra crepuscular acentuada, como se as sombras noturnas ali fossem eternas... o que será o mesmo que afirmar que, para aquelas pobres

vítimas de si mesmas, não raiaria ainda a aurora confortadora que para nós já se destacava nos horizontes do futuro. Aliás, como não ser assim se ali portavam grandes

criminosos morais, algozes que tanto perverteram e infelicitaram o próximo, impelidos pela torpeza dos instintos, monstros humanos que tantas vezes se saciaram na

calamidade que faziam desabar sobre o coração e o destino alheios!... Como não se encontrarem contaminados de trevas os recintos em que se abrigavam, se as trevas

de que se rodeavam eram oriundas deles próprios, pois sempre se regalaram em suas dobras, provocando-as, produzindo-as, nelas se locupletando durante a vida social

e íntima que viveram, acentuando-as com o remate acerbo do suicídio ..... Ali os víamos, tais quais eram, outrora, na Terra, homens galantes, sedutores, insinuantes,

hipócritas, mentirosos, desmoralizados, muitas vezes suspensos aos melhores postos sociais, devassos, beberrões, descrentes do Bem, descrentes de Deus, servos do

mal, escravos da animalidade, rastejando na lama dos instintos, a se ombrearem com o verme, esquecidos de que eram criaturas de Deus e que a Deus deveriam dar contas,

um dia, do abuso que faziam da liberdade em que a Criação mantém o ser humano! Agora, porém, aniquilados, estigmatizados pelo passado vergonhoso, cuja imagem os

seguia qual fantasma acusatório, atestando a situação de indigência, única que lhes cabia suportar como resultante do indébito procedimento!

Observando nosso interesse, o expositor prosseguiu, fiel à solicitação de Teócrito, para permitir-nos instrução:

"- Será a reencarnação o único corretivo assaz enérgico para levantar-lhes corajosamente as forças deprimidas. Aqui, só muito fracamente assimilarão os fluidos

tônicos perenemente esparsos no recinto das enfermarias, pois muito espessas se encontram as camadas de impurezas que envolvem suas faculdades para que se permitam

benefícios, como acontece a outros internos em nosso Instituto.

Tais como seus cômpares destes estabelecimento, freqüentemente são conduzidos à Terra a fim de lograrem benefícios ao contacto de médiuns moralmente aptos a favorecerem

irradiações fluidicas capazes de agirem beneficamente, auxiliando-os no despertar...

E quando reencarnarão eles?... Como se apresentarão na sociedade em que viveram outrora?..." - indagou de chofre o antigo estudante de Coimbra, com os

grandes olhos acesos pelo interesse.

"- No momento em quê se atenue o estado de prostração, encaminhá-los-emos a novos renascimentos, sem que na realidade dêem por isso, o que equivale dizer que

serão incapazes de algo solicitarem para a existência nova (ainda porque para tanto lhes escasseariam méritos), de colaborarem nas providências para o importante

certame em que hão de desempenhar o principal papel - atendeu, bondoso, o servo de Maria. - Somente nós outros, portanto, os governadores do Manicômio, assim os

técnicos do Departamento de Reencarnação, trataremos dos acontecimentos em torno deles, de acordo com a justiça das leis estatuídas pelo Criador e sob os ditames

da amorosa caridade do Mestre Salvador, que a todos os desgraçados procura socorrer com o alívio da Sua imarcescível ternura, e a quem todos os obreiros devem submissão,

respeito e veneração!

Que lúgubre falange emigrará então, em retorno expiatório, para as arenas da Terra, com meus pobres pacientes! Não poderei ainda precisar minúcias. Mas os conhecimentos

por mim adquiridos em assuntos espirituais conferem-me o direito de prever aqui retardados mentais, loucos, epilépticos, possívelmente surdos-mudos de nascença e

até cegos - todos deploravelmente ferreteados pela infâmia de que se rodearam, no grau equivalente aos delitos praticados!"

Não seria demasiadamente severo o castigo citado, venerando Sr. diretor?... partindo do princípio de que toda a Humanidade erra, cometendo crimes diariamente?..

" - perquiri inconformado, enquanto à minha visão interior se desenrolavam panoramas análogos às sugestões apresentadas pelo eminente moralista e por mim outrora

verificados diariamente, nos cenários terrenos.

"- Não acrediteis assim, meu amigo! - retrucou gravemente. - Refleti antes no que expus sobre as leis de causa e efeito, estatuídas pelo Legislador Supremo no

intuito de advertir o homem, como os Espíritos, dos erros que praticam em oposição à harmonia das demais leis. Vede o castigo imposto pelo próprio dissoluto, que

violou aquelas leis, colocando-se na situação de lhes sofrer o ricochete, pois as faculdades radiosas, pelo Sempiterno concedidas às criaturas, jamais serão contaminadas

de impurezas pelo mau uso que delas faça o seu possuidor, sem que o atinjam dolorosamente conseqüências inevitáveis! Sendo o Bem a base suprema da Vida, em que amarga

situação se colocarâ o ente que o conspurcou, dando-se ao mal, desarticulando-se todos os dias do trajeto natural que ascende para a Perfeição, arrastado por atos

opostos aos que o Senhor estatuiu como carreiro normal na sublime jornada?... Esqueceis então as lágrimas que estes infelizes fizeram derramar a seus irmãos, aos

quais infligiram tormentos oriundos do egoísmo e demais expressões vis que deixavam extravasar do coração denegrido?... Das difamações com que feriram suas vítimas,

aprazendo-se em atirá-las ao descrédito das pessoas conceituadas?... Das delações, das críticas ferinas, das ignomínias com que muitas vezes enxovalharam a pessoa

respeitável do próximo, valendo-se das faculdades do raciocínio e da inteligência apenas para infelicitar a outrem, preparando outrossim, para si mesmos, os abismos

em que se haviam de despenhar?... Pensastes nas ingratidões e traições impostas aos simplórios corações femininos, que enredaram em suas garras abomináveis, forjadas

em instintos sórdidos?... na inocência infantil e juvenil, que muitos destes que aqui vedes conspurcaram monstruosamente ?... nas cenas degradantes por eles criadas

e praticadas comumente, durante a existência terrena, levando a corrupção e a perversão aos circunstantes dos planos objetivo e invisível que as presenciassem, e

infelicitando as correntes fluídico-magnéticas que sobem da Terra para o Invisível, a nós outros sobrecarregando de preocupações por obrigarem-nos a exaustivos serviços

de saneamento e higienização, a fim de que nossas próprias colônias não fossem corrompidas ....

Ah! meus filhos! Como vos adinirais, agora, de que renasçam estes pobres tolhidos por incapacidades invencíveis se da existência que lhes foi concedida, a fim

de tratarem de progredir, fizeram arma contra os ditames sagrados do próprio Criador de Todas as Coisas, a quem muito e muito ofenderam, ofendendo a si mesmos e

ao próximo!... Ao demais, não estarão eternamente precipitados nos pélagos cheios das iniqüidades que cavaram!...

A dor educadora corrigirá as anomalias de que se cercaram, reconciliando-os com a Lei! Oh! Deus é a Misericórdia Infinita, meus amigos! E deseja as criaturas

harmonizadas com a beleza eterna das suas leis! E se sabemos que essas leis são incorruptíveis, cumpre-nOS observá-las e respeitá-las a fim de não virmos a tragar

o fel irremediável das conseqüênciaS que por nossa própria vontade criarmos com os desvios da rota natural e luminosa..

Baixei a fronte, como sempre, em presença da lógica irretorquível de mais aquele discípulo do Mestre Nazareno...

Pelas galerias e antecâmaras próximas aos santuários, isto é, aos gabinetes médicos, onde a distribuição de eflúvios minorativos era sábia e caridosamente operada,

vimos que enfermeiros iam e vinham, amparando doentes fracos e atemorizados provindos do pátio que acabáramos de visitar e de outras dependências, a fim de serem

beneficiados. Pelos "retalhados" observamOS que votavam especial comiseração, dado que mui penosamente se podiam locomover. A julgar pelas exposições do Irmão João,

que tecia considerações importanteS a respeito de quanto se nos deparava, seriam eles futuros paralíticos e enfermos de nascença, desde a infância revelando anormalidades

impressionantes.

Com efeito! Suas atitudes eram tolhidas por dificuldades extremas de vibrações, dispérsadal que foram estas pelo choque terrível; seus gestos pesados e desin teligentes,

como que peados pelas sombras dos golpes e contragolpes que se fotografaram tragicamente no espelho sensível da organização astral! Choravam ininterruptamente, como

se o choro houvesse degenerado em hábito atroz criado pela intensidade do martírio, inquietos sempre sob a cruciante angústia de perene mal-estar, conquanto submissos,

incapazes de blasfemar, como geralmente sucede aos suicidas muito desgraçados.

Deixando, porém, para trás os santuários, onde não penetramos, atingimos salão amplo, espécie de auditório singelo e sugestivo, onde ensinamentos moralizadores

eram ministrados por um jovem servo que, em existência remota, trouxera mui dignamente o feio burel de religioso franciscano, mas cuja alma se iluminara sob as virtudes

hauridas nos ensinamentos redentores do Testamento do Divino Missionário, tão fielmente servido pelo seu patrono.

Usando daquela inconfundível doçura, apanágio dos caracteres moldados na verdadeira escola da iniciação cristã, esse novo legionário expunha singelamente, como

quem aconselhasse ou ensinasse a observar, a idéia de Deus e de Sua paternidade sobre toda a Criação, bem assim a missão messiânica e suas dilatadas conseqüências

beneficiando o gênero humano.

O convite à prece, ao exame individual interior, era repetido e satisfatoriamente explicado todos os dias, antes do ingresso nos gabinetes para a higienização

fluídica operada pelos dedicados psiquistas. Esses os principais recursos a serem tentados na ocasião para tratamento dos enfermos, visto que seriam tentativas para

a reeducação mental, exercícios que levariam o paciente a estabelecer mais tarde correntes harmoniosas com os benéficos poderes do Alto; e tão transcendente ensinamento

era enunciado singelamente, ao critério de métodos ao alcance daquelas mentes conturbadas, e sob inspirações de uma doce e fraternal caridade cuja fragrância penetrou

até o âmago das nossas almas comovidas ante a visão de tão nobres corações devotados ao auxílio amoroso em torno do próximo!

O jovem obreiro, sincero, humilde no seu imensurável esforço pela caridade, não enxergava, naqueles réprobos feios e repulsivos a quem servia, o indivíduo maculado

pelos erros vergonhosos, nem a configuração astral execrável do que fora um homem dissoluto que dispersara a faculdade nobre dos sentidos no domínio dos gozos impuros.

O que ele via e piedosamente amava, desejando servir e engrandecer, eram irmãos menores do que ele, os quais mandava o Dever fossem ajudados pelos mais velhos a

galgar as escarpas do progresso; eram almas destinadas à glorificação da Luz, que necessitavam orientar-se na longa estrada em que realizariam o espinhoso trajeto

da ascensão para o Foco Sublime, gerador da Vida!

Poderemos ser informados das dêmarches também em torno desses companheiros para o notável acontecimento da volta ao corpo material!.. ." - solicitou novamente

o doutor de Coimbra, a quem interessavam mui vivamente as alusões ao assunto melindroso de um renascimento na Terra, porqüanto lhe afligiam incessantemente a consciência

fortes intuições quanto ao dever urgentíssimo, pendente do seu caso, de nova permanência num corpo de homem, a fim de se desobrigar, através da expiação, do crime

na pessoa indefesa daquela a quem amara.

Sim, meu jovem amigo - satisfez o amável guia -, será possível e até indispensável pó-los a par dos trabalhos gerais em torno desse importante assunto que tão

de perto interessa a todos vós. Todavia, não éa esta repartição que compete esclarecimentos mais amplos, visto existir em nosso Instituto o Departamento autorizado

aos serviços gerais do retorno às existências corporais. Certamente visitá-lo-eis ainda.

Nesse Departamento vereis que sobressaem, pela sua invulgar importância, os laboratórios onde se concertam planos para o melindroso certame, onde são preparados

os desenhos e mapas para os futuros corpos a serem habitados pelos delinqüentes cuja tutela nos seja temporariamente confiada. Se este for suscetível de renascer

com envoltório carnal deformado, ou adquirir enfermidade como a cegueira, por exemplo, na seqüência da existência, ou ainda acidentar-se em seu decurso, tornando-se

mutilado, o mapa que lhe seja destinado será traçado com as necessárias indicações, pois já sobre o seu organismo perispirítico existirá o sinal da fritura deformidade

física, porque o seu estado mental e vibratório, coagido pelos remorsos, imprimiu na poderosa sensibilidade daquela sutil organização a vontade de se tornar mutilado,

cego, mudo, etc., etc., a fim de expiar o mau passado, como vem sucedendo convosco mesmo, caro irmão Sobral, que vos tendes fortemente impressionado com o caso das

próprias mãos...

Necessariamente, a preparação de tais debuxos estará sempre a cargo de técnicos cônscios do alto encargo que lhes é conferido, o que indicará serem eles Espíritos

merecedores da plena confiança dos diretores desta Colônia.

Uma vez concluídos serão encaminhados à direção dos gabinetes de análises, os quais realizarão os serviços comparativamente com as premências expiatórias do

interessado, levantando a justiça dos méritos que tenha, curvando-se às injunções das desvantagens dos deméritos, tudo concorde com as conclusões anteriormente feztas

pela seção de "Programação das Recapitulações". Quanto seja possível para suavizar as penúrias das provações, será por lei concedido ao delinqüente que voltar a

renascer na Terra. De outro lado, suas forças morais e suas capacidades de resistência serão igualmente balanceadas.

Convém acentuar, meus caros amigos, que a reencarnação é concessão sublime feita pelo Pai Supremo às Suas criaturas para que progridam e se engrandeçam, preparando-se

para a herança que lhes estará reservada na glória do Seu reino. Ë de lei. E ninguém há que atinja o seu destino imortal sem palmilhar os degraus dos renascimentos,

na Terra ou em outros mundos planetários! Todavia, se a alma rebelde há desperdiçado longo tempo, abusando dessa concessão, com manifesto desrespeito à Lei Magnânima

que lhe permite tantas vezes o mesmo ensejo, tornar-se-á concessão ainda mais apreciável porque, geralmente, para tais casos, existira a intercessão do próprio Mestre

Redentor, que ao Criador Supremo suplicará novos ciclos de experimentações a fim de poder o rebelde reabilitar-se.. ."

"- Do exposto, respeitável irmão, só nos cumpre concluir que, sendo o corpo físico-terreno depósito sagrado, como verdadeira dádiva celeste que é, as criaturas

encarnadas procederiam com muito mais inteligência se se conduzissem à altura da concessão recebida, portando-se com respeito, consideração e prudência durante o

período em que se obrigassem a permanecer usufruindo as vantagens morais que a estada no planeta lhes confere?... e isso porque evitaria a repetição de existências

expiatórias, dolorosas e inevitáveis, resultantes que são do uso do desrespeito às leis veneráveis a que é submetida a Vida Universal?..." - intervim eu, algo contrafeito.

"- Assim é, meu amigo! Muitas dores seriam assim evitadas! - tornou o diretor do Manicômio. - E se o corpo físico-terreno é depósito sagrado que ao homem cumpre

respeitar e proteger, salvaguardando-o quanto possível de impurezas e danos, o físico-astral, que é o que trazeis no momento, não o será menos!... enquanto que nossa

Alma-Inteligência, Consciência, Razão, Sentimento, o Ser, enfim, é a própria essência do Criador, partícula Sua, centelha extraída do Seu Supremo Ser!

Por aí percebereis, meus caros amigos, que todos somos templos veneráveis, pois que possuimos a glória de trazer Deus em nós, e que, quer na Terra, como seres

humanos, ou no Invisível, como Espíritos libertos, devemos respeito e veneração a nós mesmos, bem assim aos nossos semelhantes, atendendo a que todas as criaturas

são perfeitamente iguais diante do seu Criador, jóias muito amadas do escrínio sempiterno dAquele que é a Suprema Razão da Vida! Daí certamente se origina a lei

básica divina:

"- Amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo."

Seguiu-se pausa dilatada enquanto o leal servidor atendia a injunções inadiáveis do seu cargo e durante a qual nos quedamos, pensativos e silenciosos, observando

quanto possível as figuras angustiosas dos pobres internos que nos eram dados a contemplar. À volta do mentor, Mário Sobral, insofrido e interessado, quebrou o silêncio,

exclamando de mansinho:

"- Gostaria, se possível, continuar ouvindo vossas explanações técnicas, venerável irmão. .

O velho servo de Jesus sorriu e, correspondendo à humilde solicitação com amigável gesto, continuou, atraindo novamente nossa atenção:

Todavia, consoante vos dizia, tem havido casos em que nossa Guardiã não permite a reencarnação tal como fora por nós ideada, concedendo-nos então o gracioso

favor da sua inspiração para programação mais acertada, condizente com o estado do postulante. De qualquer forma, porém, os planejamentos para as peripécias de uma

encarnação serão rigorosamente estudados, assentados, realizados e revistos, concordes sempre com a mais eqüitativa justiça... entrando em pleno cumprimento a alta

expressão da sentença imortal sancionada pelo Mestre Divino, a qual vem esclarecer também todos os grandes e irremediáveis problemas que afligem e decepcionam a

Humanidade:

"- A cada um será dado segundo as suas obras."

Comumente é o próprio pretendente ao renascimento que escolhe as provações por que passará, os acres espinhos que lhe irão dilacerar os dias da existência terrena,

e onde convirá que remedeie as conseqüências do pretérito culposo. Ele próprio suplicará às Potestades Guiadoras ensejos novos que lhe permitam testemunhar o arrependimento

de que se achar possuído, assim como o desejo de iniciar caminhada regeneradora, que lhe favoreça ocasião de corrigir-se dos impulsos inferiores que o arrastaram

ao mau procedimento... e tais testemunhos tanto poderão ser efetivados num corpo relativamente são, quando dominem os sofrimentos morais superlativos, como num mutilado

ou tolhido por enfermidades

irremediáveis, tais sejam os agravantes da falta, os de-méritos acumulados...

Assim sendo, o próprio paciente organizará o tragado dos mapas para o seu futuro estado corporal e a programação dos acontecimentos principais e inevitáveis que

deverá viver, efeitos lógicos e inseparáveis das causas criadas com as infrações cometidas, mas assistido sempre por seus mentores dedicados.

No que concerne aos internados nesta dependência hospitalar, não será, todavia, assim. Meus pobres pupilos não se encontram em condições de algo tentarem voluntariamente.

Sua volta ao renascimento carnal será então o cumprimento de um dispositivo da Grande Lei, que faculta novo ensejo ao infrator sempre que houver fracassado o ensejo

anterior... Será o movimento de impulsão para o progresso, o medicamento decisivo que há de colocá-los em situação de convalescentes, assinalando a alvorada de etapas

redentoras em seus destinos..."

Aturdido em presença de tão profunda quanto melindrosa tese, que, eu bem o percebia, caberia em muitos volumes, seguidamente perguntei ainda, enquanto caminhávamos

demandando o exterior, cogitando do regresso:

"- Desculpai minha insistência, venerável irmão diretor... Porém, o assunto que acabais de expor, por seu ineditismo, pela intensidade e profundeza dos raciocínios

que provoca e inexcedível surpresa que proporciona ao pensador, não só empolga como sinceramente comove... Seria acaso possível examinarmos desde já alguns desses

mapas, mesmo antes da preparação dos que nos disserem respeito ?... Como são eles .... Ou será tão nobre labor oculto a olhos profanos?..."

E sentia-me realmente comovido, acorvardado mesmo, lembrando-me de que também eu era réu, que me suicidara fugindo à cegueira dos olhos, que tudo indicava teria

o pobre Mário o seu futuro mapa corporal de mãos mutiladas, e que algo me segredava que eu deveria ser ainda cego, de qualquer forma cego!

Irmão João decerto percebeu a angústia que me ensombrava a mente e o coração, pois que assumiu expressão de inconfundível bondade ao responder:

- Certamente que um serviço de tanta responsabilidade não será realizado publicamente, para divertir curiosos, que também os há aqui. Não obstante, com recomendações

de autoridades competentes, as câmaras poderão ser franqueadas à visitação. Sereis encaminhados a elas, estou certo, visto tratar-se da necessidade de vos ministrar

instrução... Porfiai por vos nao desanimardes ante as perspectivas futuras, meu amigo! Confiai antes na inexcedível ternura de nosso Amado Mestre e Senhor, que é

o Guia infalível dos nossos destinos... Lembrai-vos outrossim de que Aquele que estabeleceu a sabedoria das leis que regem o Universo também vos saberá fortalecer

para a vitória sobre vós mesmos!..."

Tudo era suavidade em torno do Pavilhão Indiano, onde acabávamos de chegar. Aos nossos ouvidos soaram os doces convites para a meditação da noite. Era o momento

solene em que a Colônia se consagrava à comunhão mental com sua augusta tutelar Maria de Nazaré...

Minhas recordações assinalam ainda que, nessa tarde, nossas preces foram mais ternas, mais humildes, mais puras...

4

Outra vez Jerônimo e família

"Ai do mundo por causa dos escândalos; pois, é necessário que venham escândalos; mas, ai do homem por quem o escândalo venha."

JESUS CRISTO - O Novo Testamento. (15)

Carlos de Canalejas viera buscar-nos ao Pavilhão Indiano ainda cedo, e, após efusivos cumprimentos, dissera-nos:

"- Sou de opinião que a programação de hoje se inicie pelo Isolamento. Encontra-se ali vosso amigo Jerônimo de Araújo Silveira e aproveitareis o ensejo para fazer-lhe

a visita que há tanto vindes projetando. Sentir-se-á ele certamente confortado com vossa presença, enquanto tereis cumprido suave dever de solidariedade e fraternidade."

Não distava muito o Isolamento do edifício central, em cujas imediações nos encontrávamos albergados.

A perder de vista estendia-se o planalto onde a cidadela do importante Departamento se assentava, envolvida no seu triste sudário de neblinas. Ao longo dos caminhos

que trilhávamos destacavam-se tabuleiros de açucenas e rosas brancas, que se diriam ser as flores mais adaptáveis ao melancólico retiro. Vinha-nos a impressão de

que o Departamento Hospitalar, assim o da Vigilância, seriam arrabaldes bucólicos de uma grande

(15) Mateus, capítulo 18, versículos 6 a 10, 5, e 27 a 30.

metrópole, cujos ecos a distância nos não permitia suspeitar. E conversávamos familiarmente, pouco nos apercebendo de que já não éramos homens e sim Espíritos despojados

das vestiduras carnais.

A direção do Isolamento, assim como o tratamento fraternal dispensado aos penitentes, eram idênticos aos das demais filiais que visitáramos, inspirados na mais

convincente justiça, na caridade amorosa e fraterna.

Encontravam-se, com efeito, asilados além daqueles muros imensos, onde nem mesmo faltava a interdição de uma ponte levadiça, pobres colegas nossos a quem as

dores impostas pelo desânimo ou a revolta sobrepujavam às do arrependimento pelo mau ato praticado. Nestes corações desolados e inconsoláveis, o arrependimento limitava-se

ao insuportável pesar de concluírem que o suicídio para nada mais aproveitara senão para lhes dilatar e prolongar os sofrimentos antes julgados insuportáveis, além

de lhes apresentar, entre outras, a desalentadora decepção de se reconhecerem com vida, mas separados dos objetos de suas maiores predileções. Pode-se mesmo afirmar

que o Isolamento era especializado nos casos sentimentais... pois é sabido que o sentimentalismo levado ao excesso constitui gravíssimo complexo, enfermidade moral

capaz dos mais deploráveis resultados. E encontramos, com efeito, ali, os mais variados casos de suicídios sentimentais, em que o réprobo é agitado por vero sentimento

extraido do coração, não resta dúvida, conquanto desequilibrado, desde o amante ofegante de paixão e ciúmes pela felicidade concedida ao rival feliz até o chefe

de família desorientado por impasses dificúltosos ou o pai subjugado pelo desalento ante o esquife do adorado entezinho que era a razão da sua felicidade!

Consternação geral dominava o ambiente dessa filial do Hospital Maria de Nazaré. Invariavelmente insatisfeitos, seus hóspedes apresentavam o característico das

criaturas irresignadas e impacientadas por tudo, além de se entregarem à dor sem se animarem a esforços para vencê-la, retendo-a, antes, com o exagero de um sentimentalismo

doentio e piegas, enquanto engendravam no vos motivos para sofrer, através de auto-sugestões pesadas que lhes envenenavam todos os instantes.

A direção interna do Isolamento, tal como a da Torre, achava-se confiada a um sacerdote católico, ao invés de um daqueles atraentes iniciados a quem já nos habituáramos

ver à frente das organizações da Colonia.

Todo o corpo de auxiliares internos, aliás, era constituído de religiosos católicos, exceção feita do corpo clínico, que se compunha de psiquistas iniciados.

Não obstante, o cargo mais importante, isto é, o de diretor, conselheiro e educador, se era ocupado por um sacerdote, era este também iniciado nas altas doutrinas

secretas, Espírito de escol, possuidor de méritos assinalados perante a Lei, e benquisto na Legião dos Servos de Maria, além de honrosamente graduado no seio da

falange de cientistas que governava o Instituto Correcional Maria de Nazaré.

A disciplina era verdadeiramente conventual.

Urgia fossem afastadas daqueles eternos insatisfeitos e voluntariosos as atrações pelas paixões mundanas e pessoais, os arrastamentos impuros e caprichosos que

os perderam. Cumpria à instituição que os acolhia instrui-los para os ditames da resignação na desventura, para as resoluções decisivas, para as renúncias inalienáveis,

reconciliando-os ainda com a verdadeira fé cristã, que até então desprezavam conhecer à luz do devido critério.

Haviam sido, todos eles, educados, na Terra, sob os auspícios de ensinamentos católicos-romanos. Em seus corações e em suas mentes, nas concepções religiosas

que lhes dirigiam os pensamentos, não existia local para conceitos outros que não aqueles provindos da Igreja que acatavam desde a infância. Sentimentalistas fanatizados

e caprichosos, amolentados mentalmente pelo descuido no exercício do raciocínio sobre alevantados assuntos, alongavam a morbidez dos preconceitos que lhes eram próprios

às ilações religiosas fornecidas pelos catecismos, apaixonando-se intransigentemente por tudo quanto as tradições católicas houveram por bem infundir no senso pouco

amadurecido da Humanidade. Muitos nem mesmo crença definitiva possuíam. Incrédulos, mesmo ímpios, jamais se haviam preocupado com a feição religiosa ou divina das

coisas. Mas, habituados à Igreja pelo comodismo e a tradição, só a ela conferiam os direitos de guiar consciências, só a ela permitiriam sábedoria bastante para

os serviços de exegese.

Seria caridoso, pois, que a reeducação de tais mentalidades se fizesse à sombra de ambiente idêntico àquele que lhes inspirava confiança e respeito.

O próprio padre, portanto, lhes falaria do Evangelho da Verdade, para que aprendessem que acima do seu fanatismo dogmático pairava o eterno luzeiro de realidades

que necessitavam aceitar a fim de saberem venerar devidamente o Criador! O próprio padre instruí-los-ia sobre a vida do mundo astral, lecionando-lhes observações

e experiências, varrendo-lhes do cérebro as suposições tacanhas a que se amoldaram preguiçosamente, rasgando ao seu entendimento os véus do conhecimento verdadeiro,

a fim de que concluíssem por experiência própria que, tanto no seio da Religião como no da Ciência, poderá resplandecer o ardor daquela Fé que norteia o coração

para o Alto, purificando-o ao calor sempre vivo do Amor de Deus!

Cientificado do desejo que trazíamos de visitar um amigo ali retido, após a visitação, cujas minúcias omitiremos por apresentarem a generalidade das demais,

Padre Miguel de Santarém, maioral da comunidade, exclamou bondosamente, entre risonho e satisfeito:

"- Fizestes bem em vir, meus filhos!... Agradeço-vos o afetuoso interesse por um companheiro de jornada tão carecedor de reconforto como esse em questão. Visitar

um enfermo, reanimar, com a presença consoladora, o pobre detento entristecido pela angústia de remorsos implacáveis, é obra meritória sancionada pelo Modelo Divino,

amigo dos pobres e pequeninos... Jerônimo ficará satisfeito... Mandá-lo-ei chamar imediatamente.

Enquanto falava, reconhecêramos nele o religioso que confortara o antigo mercador de vinhos, na memorável tarde da visita à família havia cerca de três anos!

Irmão Teócrito, conforme estamos lembrados, requisitara-o a fim de assistir o revel, a pedido deste mesmo, e, desde então, encontravase Jerônimo sob as vistas do

competente conselheiro.

Enquanto aguardávamos a presença do companheiro de desditas, ia dizendo o diretor do Isolamento:

- Vosso amigo entra em fase de transição, precursora do restabelecimento. Podereis apreciar nas circunstâncias que o rodeiam o padrão dos demais internos

do nosso educandário, pois o Isolamento se interessa por casos que têm, mais ou menos, os mesmos fundamentos, como não deixa de também suceder com as demais organizações

do nosso Instituto.

Após vencer a apatia a que o conduziram as revoltas improfícuas resultantes de desilusões cruciantes, estará preparado para a repetição das experiências em que

fracassou.

Encontra-se sob assistência rigorosa, como é devido a todos que nos são confiados, pois seu invólucro perispiritual, assim a própria mente, carecem de profundos

cuidados. Ao corpo clínico destacado para os serviços deste posto está afeto o tratamento daquele, o qual se resume em aplicações magnéticas especiais; a esta, porém,

atendemos com as atenções inspiradas nos estatutos da Legião, que, no caso, aplica a reeducação, tratamento inteiramente moral, porque o mal que a Jerônimo infelicita,

como o que atormenta a vós outros, Somente com a renovação individual, operada interiormente pelo próprio paciente, será removido...

A paixão mórbida que desequilibradamente nutriu pela esposa e pelos filhos prestou-se a instrumento para as grandes expiações que os seus entes queridos tinham

em débito nos assentos da Lei de Justiça que rege os destinos humanos! Jerônimo amava egoisticamente desorientadamente, entrincheirando o coração contra toda a Possibilidade

de amparo que a razão e o lúcido raciocínio poderiam conferir... e, como não deveis ignorar, cumpre-nos estar sempre advertidos de que, nem mesmo aos próprios filhos,

deverá o homem amar discricionariamente, com os impulsos cegos da paixão!

Certamente que o devotamento à família conceder-lhe-á méritos diante do Legislador Supremo. Porém, mais honrosos se tornariam os lauréis se houvera encaminhado

os seres amados ao culto legítimo do cumprimento do Dever, e não proporcionando-lhes luxos e gozos mundanos enquanto descurava da educação moral que deveria prover

em primeiro lugar, ainda que bracejando contra os arremessos da pobreza adversa, uma vez que todas as criaturas do Senhor são aproveitáveis e que, justamente a fim

de auxiliá-las a progredir e educar-se em sentido benéfico, é que confere Deus a autoridade paterna ao homem encarnado. Se assim fizera, cumprindo o sagrado dever

de pai previdente e honrado, Jerônimo ter-se-ia furtado ao amargor de situações embaraçosas, pelas quais se tornou responsável com o ato dramático do suicídio...

Ei-lo, porém, que chega... Ele vos dirá coisas interessantes..."

Com efeito. Acompanhado por Irmão Ambrósio, um assistente religioso, o antigo negociante do Porto entrou no compartimento oilde nos achávamos e atirou-se em

nossos braços, comovidamente.

"- Obrigado, queridos companheiros! - exclamou -por vos terdes lembrado de minha humilde pessoa, tão gentilmente! Vossa visita cala-me docemente no coração!

Se soubésseis quão terríveis têm sido as minhas aflições'

Abraçamo-lo com efusão, apresentando votos pela sua felicidade pessoal, pois outra coisa não sabíamos, até então, dizer ou desejar aos amigos.

Pareceu-nos Jerônimo assaz modificado. Reconhecemo-lo sereno, senhor de maneiras tocadas de encantadora distinção, a qual não lhe conhecêramos antes. E pensamos

em que, certamente, o Isolamento, dirigido por virtuosos Espíritos de antigos sacerdotes, teria a missão de elevar também o nível da boa educação social, como internato

conventual que era!

Ardíamos pelo desejo de interrogar o antigo comparsa do Vale Sinistro, de recolhermos novas dos seus desgraçados filhos, que lá ficaram, na Terra, amortalhados

de lágrimas e desditas. Mas o receio de uma in discrição deteve-nos, o que fez que o silêncio se prolongasse após os cumprimentos. Logo, porém, o virtuoso mentor

Santarém encaminhou-nos a feliz ensejo, conhecendo a sinceridade que nos impelia.

"- Falávamos de ti, meu caro Jerônimo... Teus amigos desejam saber se te sentes melhor e mais reconfortado no amor de Deus, pois partirão em breve para outro

plano de nossa Colônia e, vindos para se despedirem, estimariam levar a impressão de que deixam para trás um amigo em vias de verdadeiro reerguimento.. ."

Aplaudimos, corroborando tais expressões com o incentivo de nos mostrarmos, a ele próprio, resignados e confiantes nos dias porvindouros, e acrescentamos:

"- Amparados por amigos tão desvelados como os que deparamos desde que para aqui nos encaminharam, sentir-nos-íamos até felizes, não fora a inclemência dos pesares

que nos perseguem pela desonra com que aviltamos nossa alma..."

O antigo comparsa curvou a fronte com enternecedora humildade, retorquindo:

"- Tendes razão, meus caros amigos! Será possível, sim! para nós outros, o alívio supremo na conquista da resignação e da fé, que levará à conformidade... Felizes,

porém, não creio que poderemos ser tão cedo, porque não será pelas vias do suicídio que a individualidade encontrará essa deusa Felicidade, que mais se afasta quanto

maiores forem a revolta e a insubmissão no coração que a deseja! Quisera eu que o suicídio me houvera para sempre exterminado o ser. Assim não foi porém!... E assim

não sendo compreendi que só me restava curvar ao inevitável, enfrentando com resignação e fortaleza de ânimo a amargosa situação por mim mesmo criada! Devo à solicitude

de Irmão de Santarém, a seus conselhos e exemplos edificantes, como aos seus abnegados imediatos e às regras verdadeiramente providenciais desta mansão educadora,

a transformação que em mim se vem operando. Tal como vós, sorvi o meu cálice de fel, traguei muitas amarguras entre uivos de desespero e blasfêmias de réprobo! Mas

hoje me sinto outro indivíduo, a quem a confiança no amor do Ser Supremo ressuscitou dos escombros da mais nefasta descrença, porque descrença mascarada com a hipocrisia

da falsa fé, da afetação da virtude, as quais se mostravam com a ostentação convencional, o que, se satisfaz à sociedade, não aproveita, no entanto, nem mesmo para

convencer o próprio que as simulou, quanto mais para edificar a sua alma perante o Criador!...

Eu poderia ser feliz, meus amigos, de algum modo, rodeado com a atenção destes nobres e excelentes protetores, instruído, fortalecido, confortado como me

vejo por sua incansável caridade, convencido das lutas e deveres que me cabem, disposto a enfrentá-los quanto me acho. Mas cometi um crime de duras conseqüências,

de conseqüências extensíssimas para mim e os meus! Contemplo-me carregado de falhas... e não me posso, de nenhum modo, sentir satisfeito em parte alguma, quando

o arrependimento vivo e ardente flagela minhas horas, exigindo resgate imediato a fim de que a serenidade me retorne ao coração, permitindo-me novos empreendimentos,

dignificantes e honrosos... justamente o oposto dos atos de antanho!

Devo confessar-vos que, como comerciante que fui, falido, arruinado, traindo a confiança de firmas honestas, com as quais mantivera compromissos, de instituições

bancárias, cuja honorabilidade não levei ao devido apreço, e até das autoridades municipais, pois grandes prejuízos dei também às fiscalizações legais, como aos

direitos alfandegários, visto que pratiquei não raras vezes o contrabando, envergonho-me de tal forma, por não me ter esforçado por sair honrosamente desse emaranhado

de inferioridades; pejo-me tanto de haver solvido tais compromissos acobertando-me sob a macabra ilusão do suicídio, que o rubor só me desaparecerá das faces quando

me for possível ser comerciante outra vez, a fim de solvê-los pessoalmente, digna, honestamente! Oh, que ato indecoroso cometi perante a sociedade, meus amigos!

Eu devo e não paguei! Eu defraudei os sacrossantos direitos da Pátria, da abençoada terra em que vivi! Tenho compromissos vencidos, empréstimos, contas e mais contas,

letras e mais letras a pagar!... E nada resgatei até hoje! O peso desta desonra converteu-me os dias em torturas ininterruptas, a par das desventuras que, por minha

incúria, atingiram meus filhos!..."

"- Felizmente, porém, a Lei da Sábia Providência confere ao Espírito falido meios honrosos para libertar-se de situações incômodas e vexatórias como essas, e

Jerônimo, em futuro não muito afastado, poderá reparar tais compromissos, recuperando o beneplácito da própria consciência, servindo-se de experiências novas e novos

ensejos, graças à reencarnação, que a todos é facultada como meio de progresso e reabilitação... e ele bastante animado se encontra para a jornada nova... - acudiu

irmão Santarém, cortando a expansividade humilhante para o próprio expositor.

"- Rejubilo-me sabendo-te confortado e decidido aos embates pela honra de uma vitória que encoberte de tua consciência a visão inglória da queda forte que também

a ti arrastou à desgraça, amigo Jerônimo!... Praza aos céus que as forças se centupliquem em tua alma quanto as minhas em mim se multiplicam a cada nova vibração

de minha própria dor... pois também me acho encorajado às mais rudes experimentações, contanto que se arrede de minhas íntimas visões o trágico fantasma dos remorsos

pelo monstruoso delito que pratiquei" - vibrou Mário Sobral, a quem impressionante estremecimento sacudiu, fazendo-o agitar as mãos como que se esforçando por desvencilhâ-las

de algo que o iaquietasse e afligisse.

"- A prece, que aprendi a praticar, tornando-a em manancial indispensável à minha pobre alma, guiado pelas férteis exortações de Irmão Santarém - continuou o

ex-comerciante do Porto -, as súplicas veementes que aprendi a dirigir a Maria - nossa Mãe e Guiadora - concederam-me a trégua precisa para reunir os pensamentos

atropelados pelo desespero e fixá-los no bom raciocínio... acontecimento que foi a chave áurea para a solução dos muitos problemas por mim considerados insolúveis...

A sorte imprevista de meus infelizes filhos, aos quais tanto e tanto amava, a conduta de Zulmira, prostituída e envilecida - como eu, incapaz de consagrar-se

ao Dever, vencendo honestamente as difíceis circunstâncias da miséria - eram fatos que me dementavam até à loucura e à blasfêmia, convertendo minhalma na de um réu

selvagem e danado como não o seria a fera dos sertões africanos! A prece, porém, continuada, humilde, tal como o bom conselheiro recomendava, corrigiu a anomalia;

e, pouco a pouco, recobrei a lucidez do senso, parecendo-me, ao depois de serenado o ânimo, que estivera durante séculos mergulhado nas trevas inferiores da irresponsabilidade!

Ainda assim, a situação de meus filhos, que haveis de recordar, levava-me a sofrimentos inconsoláveis!...

Ao vigor das evocações, Jerônimo reanimava-se. Nosso grupo quedara-se muito atento, vibrando homogeneamente com o emocionado narrador. E tais foram as tintas

vivas e sugestivas com que soube esboçar os acontecimentos que lhe diziam respeito, tais as expressões ardentes emitidas pelas vibrações com que traduzia as sutilezas

da memória, que julgamos rever com ele os episódios narrados. E será como se também os houvera assistido que os transmitiremos ao leitor.

"- Certo dia, ao entardecer - ia dizendo o enclausurado do Isolamento -, encontrava-me quase absolutamente só, perambulando tristemente pelas ruas melancólicas

do imenso parque que vedes... Aproximava-se o doce, emocionante momento do Ângelus. A unção religiosa - consolo e esperança dos desafortunados irremediáveis - sutilmente

infiltrou-se pelos escaninhos de meu ser, reportando-me o pensamento ao seio maternal de Maria, Mãe boníssima dos pecadores e aflitos... Não ignorais que o momento

da saudação a Maria é fielmente respeitado pelos seus legionários, homenageado com sinceras demonstrações de gratidão nesta Colônia, a qual se edificou, cresceu

e produziu excelentes frutos de amor e caridade, para servir-me das expressões que ouço dos meus bondosos instrutores, à sombra augusta da sua proteção.

Sentei-me na relva, disposto a recolher-me também. Com o coração palpitante de fé aguardei o solene momento da oração, o qual foi logo anunciado pelas dulçorosas

melodias que do Templo se ampliam para os recantos mais distantes desta habitação - ecos das vibrações dos varões diretores maiores da Colônia em comunhão com os

planos superiores - ainda me servindo das expressões dos mentores desta casa...

Orei, dessa vez, como nunca, jamais havia orado! Supliquei à amorosa Mãe do nosso Redentor assistência e misericórdia para meus filhos! Que intercedesse junto

a Jesus Nosso Senhor, no sentido de beneficiar as infelizes crianças por mim abandonadas aos inclementes arremessos da adversidade! Nomeei Margaridinha, minha pobre

caçula, atirada à lama das sarjetas pela orfandade em que se vira com o meu suicídio! Lembrei Albino, atirado a um cárcere no verdor dos anos, porque um pai não

tivera, digno bastante, para lhe prover caminhos e orientações honrosas, pois que eu! eu! que fora o pai, que perante Deus e a sociedade me comprometera ànobre missão

da paternidade, desonrara-me e desonrara-o com os maus exemplos deixados como única e pervertida herança! Bradei por sua maternal intervenção em torno da angustiosa

situação de ambos, ainda que meus próprios sofrimentos se dilatassem por indeterminado tempo! Oferecia-lhe, como penhor do meu reconhecimento por qualquer benefício

que lhes concedesse sua terna compassividade de Mãe, a renúncia a eles próprios, pois bem reconhecia eu não merecer a sacrossanta missão da paternidade! Afastar-me-ia

para sempre, se tanto fosse necessário... mas que Margaridinha, sob seu maternal amparo, fosse afastada do Cais da Ribeira e Albino não levasse o desespero até arrojar-se

ao suicídio, antes se resignasse ao cárcere, ao exílio, onde, mais tarde, poderia reabilitar-se, quem o saberia?!...

Irmão Ambrósio, vigilante incumbido de nos reunir ao anoitecer, veio encontrar-me lavado em lágrimas. Mais uma vez narrei-lhe minhas desventuras, pondo-o a par

das súplicas que acabava de dirigir a Maria. Concedeu-me ele enternecidas expressões de reconforto, alentando-me de esperanças o coração dolorido, concluindo, enquanto

bondosamente me amparava para o regresso à comunidade:

"- Deves perseverar nessas rogativas, meu caro Jerônimo! Faze-o com bom ânimo e coragem, exalçando energicamente, tanto quanto possível, o grau das tuas vibrações,

a fim de que repercutam harmoniosamente teus pedidos, no momento muito justos, nas superiores camadas astrais onde viceja, irradiando flores de auxílios e bênçãos,

a amorosa caridade da dulcíssima Guardiã de nossa Legião. Não obstante, aconselho-te ainda a orar em conjunto, reunindo a outros o teu pensamento, a fim de que tuas

forças, ainda inexperientes, se revigorem e avantagem ao calor dos demais... pois tuas súplicas deste momento são assaz importantes, representando verdadeira mensagem

dirigida a Maria... Falarei do ocorrido ao nosso bondoso conselheiro."

Na manhã seguinte, com efeito, Irmão Miguel de Santarém visitou-me discretamente, convidando-me a tomar parte em suas reuniões particulares, com mais alguns

afins, para que, fraternalmente unidos, solicitássemos os favores por mim desejados em torno dos fatos que mais me afligiam, porqüanto era justo que ajudassem, não

apenas por ser eu um discípulo do internato que dirigiam, mas, acima de tudo, porque seria caridoso assistir a quem sofria, dever que alegremente cumpririam dada

a justiça das aspirações por mim alimentadas em torno dos meus entes queridos.

Assim foi feito, realmente.

Sob as frondes farfalhantes, em certo recanto isolado do imenso parque, e quando as melodias da saudação diária a Maria enleavam de suaves sugestões a quietude

harmoniosa do crepúsculo, Irmão de Santarém alçava o pensamento fiel e, humildemente, transmitia em preces sentidas o meu pedido à celestial Senhora. Deixei, assim,

por várias vezes, minhalma arrastar-se através do traçado luminoso que iam deixando as mentes virtuosas dos meus boníssimos conselheiros, e acompanhava, vibrante

de confiança e de esperança, as expressões que, do âmago do ser, arrancavam em meu benefício. Repetiram-se estas simples e doces reuniões muito em segredo, durante

algumas vezes seguidas, e sempre generosas e ardentes. Os nomes saudosos de meus filhos eram ali pronunciados diariamente! E como era consolador ao meu compungido

Espírito ouvir que a eles caridosamente se referiam os amorosos seguidores do complacente Mestre e Senhor, que até alçado nos braços infamantes da cruz tratava de

regenerar os pecadores, condoído de suas grandes misérias!... E terna esperança, e humilde paciência, e respeitosa résignação visitaram os meandros do meu ser, qual

raio de sol levantando aleluias nas trevas angustiosas depois de uma noite de tormentas!

Passados que foram alguns poucos dias, tive a surpresa de ver reclamada minha presença no gabinete do Irmão Diretor. Apresentei-me inquieto e comovido, pois havia

muitos anos que me habituara a somente reconhecer dissabores em volta de meus passos. O Diretor, porém, serenou-me logo de início por apresentar-me pequeno rolo

de pergaminho, espécie de "papiro" estruturado em raios de luz compensada, enquanto era eu informado do que acontecia:

"- Antes de mais nada, dai graças ao Senhor Todo Bondoso e Misericordioso, caro Jerônimo! Vossas mensagens a Maria alcançaram êxitos perante as leis eternas e

incorruptíveis!... Aqui está a resposta de nossa Amável Senhora e Guardiã, a qual, em honra a seu Augusto Filho, atende à intervenção que lhe rogastes!... Do Templo,

onde militam os responsáveis por nossa Côlônia, e para onde chegam as instruções de Mais Alto, mandam os nossos orientadores estas instruções, espécie de programação

a ser efetuada em torno de vossos filhos Albino e Margarida... Com o visto de Irmão Teócrito, como se encontra, hoje mesmo poderemos iniciar a tarefa.

Aturdido com o inesperado da notícia, nada respondi de momento, deixando, porém, que minhalma, célere, externasse, no segredo do pensamento, o meu agradecimento

ao Deus Bom, ao Deus Misericórdia, que tão prontamente permitia fosse eu atendido nos meus mais fortes desejos do momento!

Segurei o pergaminho lucilante, voltando-o várias vezes entre as mãos, sem ousar abri-lo. O próprio diretor, porém, com a bondade que lhe é peculiar, veio em

meu auxílio, desdobrando-o cuidadosamente...

Eram quatro páginas destacadas, as quais cintilavam com reflexos de estrelas, em suas mãos. Caracteres azulados, como se estrigas do firmamento azul servissem

aos iluminados do Templo para transmitirem as sublimes inspirações que recebiam no sentido de beneficência aos sofredores, traduziam as ordens que a Magnânima Senhora

enviara para meu socorro supremo!

Ordenavam que minha pobre Margaridinha, assim como Albino, fossem, sem mais tardanças, atraidos a um posto de emergência mantido por este Instituto na Terra,

ou em suas imediações, a fim de se submeterem a um tratamento magnético especial, com vistas ao reajustamento psíquico dos sistemas nervoso e mental, ambos muito

enleados nas farpas do meio ambiente viciado em que se expandiam, desorganizados pela intensidade dos choques derivados das pelejas a que eram chamados a enfrentar

nos testemunhos diários. Que fossem os pobrezinhos aconselhados, advertidos, esclarecidos, porqüanto o de que mais careciam era da iluminação interior de si mesmos.

E que, em torno de ambos, caridosa corrente de amor, simpatia e proteção se estabelecesse, porque o Astral Superior se encarregaria de criar os ensejos necessários

aos acontecimentos...

Devo confessar-vos, no entanto, bondosos amigos, que bem pouco, até agora, entendo destas coisas... Narro-as como aquele que de um fato sabe por tê-lo presenciado,

sem aptidões para a necessária análise...

Quanto a Marieta e a Arinda, que me tranqüilizasse: - eram honestas e trabalhadoras, encontrando-se ambas harmonizadas com as situações que lhes cumpriam. Perseverássemos,

todavia, em socorrer o infeliz esposo da primeira -. por quem eu não rogara em minhas ardentes súplicas, mas que não fora esquecido pela Amável Mãe do Senhor Jesus

-, presa que era de arrastamentos inferiores, que dele faziam o tirano do lar. Severa vigilância se efetuasse em seu favor, pois seria dócil às influências generosas

que lhe dispensassem. Seus obsessores deveriam ser aprisionados e encaminhados às respectivas comunidades astrais... o que novos ensejos e benefícios novos lhes

proporcionariam.

"- Vemos que é bem árduo o labor conferido ao Isolamento e que esforços máximos requerem, de todos vós, boa-vontade sempre crescente - interrompeu Roberto de

Canalejas, também visívelmente interessado. -Já iniciastes o movimento regenerador?.. ."

Irmão de Santarém, a quem ele se dirigira, adiantou-se sorridente, satisfazendo a justa curiosidade.

"- Sim - disse ele -, e com muito bons êxitos, visto que temos a Mãe das Mães como patrocinadora destes casos de redenção... cujas excelentes conseqüências facilmente

entrevemos..."

"- Rogo esclarecimentos quanto ao desempenho de tão espinhosa quão nobre tarefa, Irmão Santarém" -tomou o moço doutor.

"- Com muito prazer, meu jovem amigo, visto reconhecer que falamos a amigos generosos e sinceros, que poderão até mesmo emprestar-nos o auxílio de suas fraternas

simpatias...

Conforme não poderia deixar de ser - continuou o nobre religioso -, assumi a direção do empreendimento, com ordens do Irmão Diretor do Departamento, certo de

que a intervenção de nossa augusta Protetora, assim como a generosa assistência dos nossos maiorais do Templo, não nos abandonariam à indecisão das próprias fraquezas.

Naquela mesma manhã foi encaminhada à direção do Departamento petição requerendo auxiliares voluntarios para o áspero certame, pois não ignorais que para essa

natureza de tarefas não existe obrigatoriedade em nosso núcleo. Os obreiros para serviços externos hão de oferecer espontaneamente o seu concurso, atendendo apenas

ao chamamento especial que se proclama... além de que são todos voluntários os próprios servidores da nossa Colônia...

Atendido sem tardança, entendi-me cordialmente com os preciosos colaboradores que se apresentaram, todos animados de interesse e boa-vontade pela causa do Bem,

ficando estabelecido que, antes da delineação do programa decisivo, visitássemos as personagens em questão, estudando todas as faces do assunto e comparando-as com

as nossas próprias possibilidades. Assim fizemos, até que, na noite do terceiro dia, após a homenagem que mui gratamente prestamos diariamente à nossa Guardiã, partimos

todos juntos, em demanda da Terra...

Fazia o plenilúnio. A luz doce e merencória da Lua - a humilde irmã da Terra - suavemente aclarava os caminhos tristes do astral inferior por onde deveríamos

transitàr. Para o transporte servimo-nos da levitação lenta, visto que as zonas pesadas por onde gravitaríamos não nos permitiriam o emprego da rapidez senão com

grande esforço de nossa parte, o que de modo algum conviria fazer porque necessitávamos reservas de energias para os serviços a realizar.

Oh, meus caros amigos! - continuou o antigo sacerdote com doçura intraduzível. - Não foi sem delicados frêmitos de emoção que avistamos os contornos da velha

cidade do Porto, envolta nos véus das ondas atmosféricas, que a tornavam como inundada de sutil torrente de fumaças esgazeadas aos nossos olhos de Espíritos, para

quem o vácuo é vocábulo inexpressivo!

Nosso preclaro irmão, o Conde Ramiro de Guzman, que, como sabeis, chefia as expedições missionárias no exterior de nossa Colônia, e que, como sempre, foi o primeiro

voluntário a se apressar em atender nosso humilde convite para o serviço extra, levou-nos a um giro pela cidade que tanto haviamos amado, pois também ele vivera

no Porto e se abrigara sob aqueles tetos amigos, cujas cimalhas e vidraças agora distinguíamos beijadas pelas ternas cintilas do luar...

Procurávamos Margarida Silveira pelas imediações do Cais da Ribeira. O Douro amigo marulhava docemente, retornando sua poesia à nossa audição de portugueses,

para quem as doçuras do antigo torrão natal - que o seria novamente, em posterior encarnação - não se extinguira ainda, muito apesar da longa permanência na Pátria

Espiritual, o Espaço!..."

"- E Jerônimo fez, de certo, parte da importante expedição!..." - indaguei, ansioso.

"- Oh, não! Não seria prudente que o fizesse! Cumpria-nos evitar-lhe o dissabor de realidades duríssimas... e mesmo seria Jerônimo um estorvo para nós, ao invés

de auxiliar...

Não me permitirei, no entanto, descrever, meus anligos, o espetáculo amargo em que deparamos Margaridinha representando o principal papel! Imaginai, contudo,

um daqueles antros de vícios e libertinagens, como tantos que, infelizmente, existem no sombrio globo terrestre, classificado policialmente como de quinta ordem,

como se pudessem existir vícios menos degradantes uns do que outros! Pensai no que seria o impudor ali reinante, o deboche, os torpes arrastamentos dos instintos

inferiorizados e deprimidos pela perversão dos costumes - e tereis pálida idéia do inferno de que deveríamos arredar Margarida Silveira - porque assim ordenara o

Astral Superior, solícito aos nossos apelos!

Como fazê-lo, porém?...

Ante as cenas lamentáveis que se nos deparavam, a angústia da repugnância intentou dominar nossas almas, tornando-se necessário da nossa parte a vigilância da

comunhão mental com nossos diretores do Templo e de Mais Alto, a fim de que nossas vontades não enfraquecessem, prejudicando a missão.

Torturada por infâmias inclementes, vilipendiada pela degradação, manietada ao miserável tronco de situação insolúvel para a sua inexperiência, Margaridinha

apareceu-nos como a grande vítima de um novo Calvário, onde também faltavam o conforto, o socorro de corações generosos dispostos a aliviar e consolar! Vimo-la,

mau grado suas próprias repugnâncias íntimas, imediatamente por nós reconhecidas, submetida aos torpes caprichos de verdugos desalmados, os quais forçavam-na a sorver

copázios de vinho, intoxicando-a, embebedando-a, impiedosamente! A desgraçada, seminua, pois trazia as vestes rotas pelas brutalidades infligidas pelos algozes,

e empapadas de vinho; cabelos desgrenhados, olhos alucinados pelos desvairamentos do álcool; boca espumante, desfigurada por trejeitos ridículos, via-se também forçada

a dançar ao som de guitarras enfadonhas, cantando as peças mais em voga, para divertir os ínfimos algozes. Sem que o pudesse fazer convenientemente, porém, dado

o lamentável estado em que se encontrava, sentia-se por esta ou aquela personagem duramente esbofeteada, enquanto os vestidos eram ainda uma vez dilacerados pelas

mesmas mãos brutais.

Lembrando-me de que as instruções recebidas de Mais Alto recomendavam fosse a pobre menina retirada com urgência daquele malsinado ambiente, não vacilei em tomar

providências imediatas, lançando mão de medidas extremas.

A um aprendiz da Vigilância, que comigo levara, justamente daqueles que iniciavam experiências regeneradoras através dos serviços de beneficência ao próximo,

indiquei a mísera jovem, dizendo:

- Será necessário arrebatá-la daqui... O Astral Superior recomenda assistência imediata em torno dela... Adormece-a, meu amigo, com uma descarga magnética forte,

servindo-te dos elementos fluídicos dos circunstantes... Dá-lhe aparências de doente ....... e afasta com presteza estes infelizes que a maltratam...

Este aprendiz sabia operar com certo desembaraço, não obstante serem parcos os seus conhecimentos e pequeno o cabedal moral que possuía. Fora, não havia muito,

chefe de falanges contrárias ao Bem e ao Amor. Convertido, porém, desde certo tempo, à aprendizagem sincera da Luz e da Verdade, agora se fazia obreiro submisso,

subordinado à direção de individualidades esclarecidas, capazes de guiá-lo à regeneração completa, as quais não só o ajudavam a instruir-se como a elevar-se moralmente,

oferecendo-lhe oportunidades de serviços reabilitadores. Chama-se Osôrio e, como é natural, ainda se encontra sob nossos cuidados. Outrora vivera nos sertões brasileiros,

onde praticara ritos e magias africanas.

O resultado da ordem por mim emitida não se fez esperar.

Aproximou-se ele da infeliz peixeira do Cais da Ribeira, passou-lhe as mãos ambas à altura dos joelhos, como laçando-os. A pobre menina cambaleou, amparando-se

a uma banca próxima. Quase sem interrupção, o mesmo "passe" repetiu-se à altura do busto e, em seguida, contornando a fronte, toda a cabeça! Margaridinha caiu estatelada

no chão, presa de convulsões impressionantes, levando a mão ao peito e gemendo sentidamente. Sem interromper-se no afã da sua competência, e enquanto eu distribuía

outras recomendações aos demais voluntários, Osório chegou-se a um dos comensais que se mantinham estupefatos ante o incidente, e segredou-lhe algo ao ouvido, com

veemência e emoção, interessado em sair-se bem da tarefa, O indivíduo sobressaltou-se subitamente, exclamando aterrado, criando pânico indescritível entre os boêmios:

- Céus! A coitadinha está a morrer por culpa nossa!... Fujamos! Fujamos antes que apareçam os beleguins!...

Saíram em confusão, empurrando-se mutuamente, deixando a pobre vítima de tantas brutalidades à mercê dos possíveis sentimentos de caridade do proprietário do

antro.

Margarida, com efeito, estrebuchava, parecendo nas vascas da agonia. Rodeamo-la, eu e meus dedicados auxiliares, no intuito de beneficiá-la com os bálsamos de

que no momento poderíamos dispor. Convém frisar, no entanto, que nem eu nem meus adjuntos éramos sequer pressentidos, quer por ela ou pelos demais circunstantes

do plano material, pois nossa qualidade de Espíritos desencarnados tornava-nos inatingíveis à visão deles.

No entanto, a moça experimentava a ação nervosa produzida pela rispidez da descarga magnética necessária ao seu lamentável estado. Aplicamos bálsamos sedativos,

compungidos ante seus sofrimentos. Tornou-se inanimada, gradativamente acalmando-se, continuando, porém, estendida sobre as lajes do antro, enquanto o taverneiro,

apavorado com o acontecimento, providenciava socorros médicos e um leito no interior da casa, pois cumpria ocultar a verdade em torno do caso, por não desejar complicações

com a polícia, dada a ilegalidade do comércio.

Quanto a nós outros, os servos de Maria, desejávamos ve-la em um hospital e jamais num cárcere! Por essa razão afastamos a possibilidade da presença de policiais,

enquanto providenciávamos o concurso de algum facultativo cujos sentimentos de caridade nos inspirassem confiança.

Alguns minutos depois, chegando o facultativo, que a considerou gravemente doente em virtude de grande intoxicação pelo álcool, providências humanitárias foram

tomadas, pois tecêramos em torno dele corrente harmoniosa de sugestões compassivas...

E assim foi que, tal como desejáramos e tornava-se necessário, passadas que foram as sombras dramáticas daquela noite decisiva, a filha do nosso pupilo aqui presente

dava entrada em modesto hospital, caridoso bastante para resguardá-la enquanto providenciássemos quanto aos meus dias futuros, guiados pelas inspirações generosas

de Maria...

"- Se nosso Jerônimo não deveria tomar parte na expedição, a fim de que lhe fossem poupados cruciantes amargores, como está informado dos acontecimentos!... Não

te sentes compungido, chocado com estas descrições, meu amigo?... Principalmente porque são estranhos que as ouvem?..." - inquiri ousadamente, desejoso de tudo investigar.

"- Com efeito, sinto-me amargurado, e nem poderia deixar de ser assim... Aliás, a amargura e o pesar têm sido meus companheiros de todos os momentos... Não obstante,

o sofrimento e as instruções que venho aqui recebendo elucidaram-me o bastante para hoje melhor raciocinar do que em outro tempo... Convém reflitais, meu caro Sr.

Botelho, que, se Irmão de Santarém descreve, para vós outros, os acontecimentos que a mim dizem respeito, será porque aqui viestes para os serviços de instrução,

além de que sois amigos sinceros, irmãos afins capazes de atitudes fraternais não apenas em meu benefício, mas também daqueles que me são caros! Não data de hoje

a nossa afeição... lembro-me bem que estamos unidos por uma comovedora amizade desde as tristes peripécias do Vale Maldito..."

"- Sim! - cortou o lúcido instrutor -, ele deveria ser de tudo informado, em ocasião oportuna, embora a caridade houvesse aconselhado sua ausência do teatro dos

acontecimentos... Nada poderia mesmo ignorar, uma vez que se tornou responsável por tudo que resultou do abandono a que legou a família e porque ainda urgia meditar

sobre os delicados acontecimentos com vistas aos planos para as próximas reparações..."

Ao incidente seguiu-se pequena pausa, a qual foi quebrada pelo próprio Jerônimo, ao exclamar:

"- Rogo-vos continueis elucidando meus companheiros de jornada com a seqüência do meu drama pessoal, venerando Irmão Santarém, pois julgo-o bastante expressivo,

conforme tantas vezes me tendes feito analisar, para também a outrem edificar e instruir..

"- Sim, meu filho, estou certo de que calarão bem em suas almas o ouvirem o episódio que vimos narrando... - aquiesceu pacientemente o sacerdote, cujo sorriso

bondoso dulcificou o mal-estar criado pela minha impertinência. - Aliás, a vida de cada um de nós encerrará ensinamentos majestosos e sublimes, desde que nos demos

ao trabalho de compreendê-la à luz das leis divinas que regem os destinos humanos..

Interrompeu-se por um momento, como se concatenasse lembranças, continuando em seguida:

"- No instante em que Margarida Silveira tombava nas lajes da taverna, tratamos de remover o seu Espírito - parcial e temporariamente desligado do fardo carnal

- para o Posto de Emergência que este Instituto mantêm nas adjacências do globo terrestre.

Os serviços ali são variados e constantes como no interior da Colônia. Muitos enfermos encarnados são ali curados pela medicina do plano espiritual, muitas criaturas

transviadas no caminho do Dever hão recebido sob aqueles hospitaleiros abrigos forças e vigores novos para a emenda e conseqüente regeneração, enquanto que mui tos

corações aflitos e chorosos têm sido consolados, aconselhados, norteados para Deus, salvos do suicídio, reintegrados no plano das ações para que nasceram e do qual

se haviam afastado.

Para aí conduzida em Espírito, Margarida foi submetida a exame rigoroso, observando os nossos irmãos incumbidos do mandato as precárias condições em que se encontrava

sua organização - fluídica - o perispírito - e que urgente se fazia um tratamento a rigor. Enquanto isso o corpo carnal também o era pelo cientista terreno - o médico

assistente do hospital para onde fora transportado em estado comatoso.

Assentado ficara por nós outros que, a benefício do futuro de Margarida Silveira, o estado letárgico se prolongasse por vários dias, tantos quantos necessários

à assistência moral mais urgente que a premência da situação exigia. Por isso mesmo, todo o interesse, os cuidados mais delicados tributamos ao seu corpo físico-material,

ao qual transmitíamos as vitalidades necessárias à saúde e conservação. A jovem não se achava, ao demais, verdadeiramente doente, senão apenas intoxicada pelas forçadas

libações de álcool. Apresentava órgãos normais, exceção feita do sistema nervoso, que sofria os resultados da amargurosa anormalidade que vivia. Seus sofrimentos

graves, cuja natureza estava a requisitar desvelos abnegados, eram morais, razão por que os facultativos do hospital do Porto, onde se encontrava o fardo carnal,

a deixaram em observação, confundidos com o estado letárgico singular."

Irmão Santarém deteve-se durante alguns instantes, consultando se nos interessaria a seqüência da narrativa. Em coro suplicamos que se não detivesse, porqüanto,

não só a sorte da pobre menina nos preocupava muitíssimo, pois, à força de nela ouvirmos falar por seu pai, havia tantos anos, muito de coração a estimávamos agora,

como também o ensinamento nos atraía profundamente, calando em nosso âmago com fortes repercussões. De outro lado, o próprio Jerônimo animava a exposição dos passados

fatos, o que era o melhor incentivo para o narrador.

Agradeceu o bondoso conselheiro com amável sorriso e continuou, enquanto nossa atenção recrudescia.

Ficai sabendo, meus amigos, que Margaridinha não só não era má como não se amoldava de boamente ao vício. Repugnava-o até, ansiando libertar-se dele. No seu caso

doloroso, o que havia era tenebrosa expiação, seqüência funesta e imprescindível de arbitrárias ações por ela mesma praticadas em antecedentes encarnações e que

ficaram a clamar justiça e reparações através dos séculos, não apenas nos refolhos de sua própria consciência, mas também nos harmoniosos códigos da Lei Suprema,

que absolutamente não se harmoniza com quaisquer transvios do caminho reto!"

Poderíeis dar-nos pequena amostra das ações praticadas pelo Espírito dessa jovem em antecedentes encarnações e que dessem causa às graves situações que no

momento ela experimenta?" - atrevi-me a solicitar, levado por sincero desejo de aprender.

"- O estudo da Lei de Reencarnação é profundo e melindroso, meu amigo, ao mesmo tempo que singelo e fácil de compreensão, porqüanto nos apresenta o indício esclarecedor

de muitos problemas que perseguem a Humanidade, os quais aparentemente se apresentam insolúveis. Futuramente fá-lo-eis em vós próprios, relendo as páginas do livro

da consciencia... Até lá, no entanto, não haverá nenhum incónveniente em satisfazer-vos a natural curiosidade, uma vez que tereis a lucrar conhecendo mais um dos

seus multiplos aspectos.

Sim, meus amigos! A profundidade das leis divinas é vertiginosa, podendo mesmo apavorar os Espíritos medíocres, não ensaiados ainda para a sua compreensão! Mas

a justiça que ressalta dessas leis destila tanta sabedoria e tão grande misericórdia, que o pavor se transformará em respeitosa admiração, a um exame mais prudente

e minucioso!

Por mais incrível e incômodo que vos pareça, meus filhos, em antecedentes vidas planetárias, isto é, em mais de uma existência terrena, o Espírito que atualmente

conheceis sob o nome de Margarida Silveira andou reencarnando em corpos masculinos! Existindo como homem - porque o Espírito não é subordinado aos imperativos do

sexo, tal como na Terra se compreende - abusou da liberdade, das prerrogativas que a sociedade terrena concede aos varões em detrimento dos valores do Espírito,

e conspurcou deveres sagrados! Como homem, levou a desonra a lares respeitáveis, aviltou donzelas confiantes, espalhou o fel da prostituição em torno dos seus passos,

desgraçou e destruiu destinos que pareciam róseos, esperanças docemente acariciadas!... Mas... Veio um dia em que a Suprema Lei, que não quer a destruição do pecador,

mas que ele viva e se arrependa - impediu-o de continuar o execrável atentado à Sua Soberania! Cassou-lhe a liberdade, impôs-lhe ensejos favoráveis para se refazer

da anomalia de tantas iniqüidades, impelindo-o a renascer sob vestes carnais femininas, a fim de mais eficientemente provar o mesmo fel que fez a outrem sorver,

e a si mesmo poupar tempo precioso na programação dos resgates, por sujeitar-se ao rigor de penalidades idênticas às outrora impostas pelo seu mal orientado livre-arbítrio!

Reencarnou como mulher a fim de aprender, na desgraça de ser atraiçoada na sua castidade, desacreditada, vilipendiada, abandonada, a empolgante lição de que não

é em vão que se infringe um só dos mandamentos assinalados no alto do Sinal como padrão de honra para a Humanidade, que antes se deveria educar com vistas à finalidade

sublime do amor a Deus e ao próximo!"

Inquietante mal-estar trouxe emoções de pavor ànossa mente surpreendida com a expectante novidade. Estremecemos, enquanto sentimos como que porejar suores gelados

de nossa epiderme. Naquele momento lembrávamos, vivainente, de que fôramos homens, de que nossas consciências não acusavam apenas ações angelicais em torno do gravíssimo

assunto. Não obstante, fiel ao enraizado defeito de polemista, que teimava em acompanhar-me assustadoramente, até nas paragens além da morte, vibrei, decepcionado,

atordoado:

"- Se assim foi, como Jerônimo se tornou responsável pelos desastres da filha?..."

"- Ah, meu amigo! Bastaria pequena dose de raciocínio para compreender que nem por ser assim deixará a consciência do pobre pai de acusá-lo duramente !...

- suspirou tristemente o sacerdote iniciado. - "O escândalo há de vir, mais aí do homem por quem o escândalo venha" - asseverou nosso Mestre Sábio e educador

incomparável, visto que, se assim procedeu, era que ele se achava, positivamente, em desacordo com os ditames virtuosos da Lei Suprema! Margarida Silveira tinha

reparações a testemunhar, é certo; mas, infelizmente, o suicídio de seu pai, desamparando-a, foi a pedra de toque que a levou a se precipitar nos tristes acontecimentos!

A dívida tenebrosa deveria ser resgatada através do tempo. Poderia não ser obrigatória para a existência presente, permanecendo pendente de ocasião oportuna. O livre-arbítrio

de seu pai, no entanto, levando-o ao erro fatal do suicídio, precipitou acontecimentos cuja responsabilidade bem poderia deixar de pesar sobre seus ombros, a fim

de que, agora, não sofresse ele as conseqüências do remorso! Que me direis, caro amigo, de um homem que se tornasse causa da morte trágica de um ser amado, embora

não alimentasse intenção de assassiná-lo, abominando até a idéia de vê-lo morrer?!... Não sofreria, acaso .... Não viveria cor-roído de remorsos o resto dos seus

dias, amargurado, desolado para sempre?!... Margaridinha deveria expiar o passado, é certo. Mas não seria necessário que a pedra do escândalo que a devesse atingir

fosse engendrada pelas conseqüências de um ato praticado pela imprevidência de seu próprio pai!. .."

Desapontado, silenciei, enquanto Irmão Santarém continuava:

"- Uma vez que a jovem peixeira não se comprazia no vício, antes sofria a humilhante situação ansiando pela hora libertadora de a ele eximir-se, fácil foi a nós

outros ajudá-la a reerguer-se, convencê-la à regeneração, norteando-a para finalidade segura.

Durante os seis dias em que a hospedamos na mansão de repouso do mencionado Posto, longas conversações estabeleci com ela, já que, em torno da solução para esse

drama imenso, fui indicado como conselheiro e agente hierárquico dos verdadeiros Guias que trabalham a prol da regeneração da penitente. Ali albergada, era encaminhada

a certo gabinete apropriado ao gênero de confabulações que convinha promover, espécie de pafratório, em que ondas magnéticas, de excelência capital, favoreciam a

retenção de minhas palavras em sua consciência, agindo fielmente sobre sua memória e assim levando-a a colecionar, nas camadas caprichosas da subconsciência, todas

as recomendações que eu lhe fazia e que lhe convinha recordar quando desperta, na ocasião oportuna para a execução, o que, com efeito, veio a fazer mais tarde, sem

perceber, no entanto, que apenas cumpria as recomendações que haviam sido aconselhadas ao seu Espírito durante a letargia em que estivera mergulhado o corpo material,

pois, ao despertar, esquecera tudo, como era natural!

Exortei Margarida, em primeiro lugar, à prece. Fi-la orar, o que fez banhada em lágrimas! Dei-lhe a conhecer o recurso salvador da oração como luz redentora capaz

de arrancá-la das trevas em que se confundia, para guiá-la a paragens reabilitadoras. Ministrei-lhe, tanto quanto me permitiam a exigüidade do tempo de que dispunha,

e bem assim a circunstância incomum que me fora preciso provocar, rudimentos de educação moral religiosa, e ela, que jamais a recebera, falando dos deveres impostos

pelo Criador Supremo em Suas Leis, recordando ainda que, no amor do Divino Crucificado, encontraria ela fortaleza de ânimo a fim de remover as montanhas das iniqüidades

que a vinham escravizando à inferioridade, assim como bálsamos bastante eficazes para lenificar o fel que infelicitava sua vida. Infundi-lhe esperanças, novo ânimo,

coragem para uma segunda etapa que se fazia mister em seu destino, confiança no Amigo Celeste que estendia mão compassiva e protetora aos pecadores, amparando-os

na renovação de si mesmos... e convenci-a de que, se como mulher fora desgraçada, no entanto sua alma encerrava valores cuja origem divina da sua força de vontade

exigia ações nobres e heróicas, capazes de promoverem sua reabilitação perante sua própria consciência e no conceito dAquele que de Si mesmo extraiu estrigas de

luz para nos dar a Vida!

Fiel às observações que do Templo recebia por via telepática, concitei-a a envidar esforços para afastar-se do Porto, mesmo de Portugal! Continuar no berço natal

seria impossibilitar a reação da vontade para a consecução da emenda... quando ela necessitava até mesmo esquecer de que um dia vivera no Cais da Ribeira! Criasse,

com o esforço heróico da boa-vontade, um abismo entre si própria e o passado nefasto, a fim de iniciar nova fase de vida. Era imprescindível que confiasse em si

mesma, julgando-se boa e forte para vencer na peleja contra a adversidade!... porque o Céu enviaria ensejos propícios à renovação! O Brasil era terra hospitaleira,

amiga dos desgraçados, enquanto seus portos, como o coração de seus filhos, generosos bastante para acolhê-la sem cogitar de particularidades pretéritas... Que preferisse

o exílio em solo brasileiro, porque tal exílio converter-se-ia mais tarde em mansão confortadora... ainda porque o Espírito é cidadão universal e sua verdadeira

pátria é o infinito, o que o levará a entender que, onde quer que se encontre, o homem estará sempre em sua Pátria, à qual deverá sempre amar e servir, honrando-a

e engrandecendo-a para os altos destinos morais! Esquecesse! Esquecesse o passado! E, com alma e coração voltados para o Eterno Compassivo, esperasse a ação do tempo,

as dádivas do futuro: - a solicitude celeste não a deixaria órfã na experiência para a regeneração!"

Ouvíamos comovidos, apreciando o valor inerente à tese, vasta bastante para servir a quantos se vissem incursos em penalidades idênticas. Guardávamos todavia

silêncio, enquanto o digno educador, cujo fraseado mais se ameigava à proporção que se empolgava na preleção formosa, continuou, após alguns instantes de pausa:

"- Convinha despertar Margarida, isto é, fazer seu Espírito voltar ao templo sagrado do aparelho carnal, retorná-lo a fim de continuar as tarefas impostas pelo

curso da existência.

Como, realmente, não se achava doente, o despertar operou-se natural e suavemente, sob nossa desvelada assistência, tal como se voltasse de prolongado e benfazejo

sono. Médicos e enfermeiros confessaram-se atônitos. A jovem, porém, mostrava-se penalizada por haver tornado à vida objetiva, e derramava abundantes lágrimas. Incoercível

angústia pesava-lhe sobre o coração. Do que se passara com seu Espírito durante aqueles seis dias de sono magnético não se recordava, de modo algum. Apenas vaga

sensação de ternura imprimia-lhe no imo do ser misteriosa e doce saudade, que não poderia definir...

Após alguns dias de ansiosa expectação, deliberara transportar-se para Lisboa à procura de sua irmã Arinda, a quem sabia servindo num hotel de boa reputação.

A situação, porém, apresentava-se difícil para a desventurada jovem. Não possuía recursos a fim de empreender a viagem. Seu passado cheio de máculas e sua infeliz

reputação inibiam-na colocar-se em casas honestas, como criada de servir. Todavia, em torno dos desgraçados existem sempre anjos-tutelares prontos a intervir na

ocasião oportuna, remediando situações consideradas insolúveis. Em torno de Margaridinha a intervenção do Céu fez-se representar, para os recursos necessários ao

transporte, por suas pobres companheiras de enfermaria, as quais, vendo-a chorar freqüentemente, dela arrancaram a confissão da amargurosa situação. Pobres, humildes,

bondosas, sofredoras, e, por isso mesmo, podendo melhor interpretar as desditas alheias, as boas criaturas cotizaram-se, exigiram ajuda dos maridos e parentes e,

no fim de poucos dias, Margarida recebeu o necessário para transportar-se à capital do Reino.

Arinda acolheu a irmã. Perdoou-lhe os passados desvarios, compreendendo, finalmente, que em tão lamentável drama houvera mais ignorância e desgraça do que verdadeira

maldade, pois não possuía esclarecimentos filosóficos capazes de perceber, nos acontecimentos em torno da manazinha caçula, os antecedentes espirituais que acabei

de revelar.

Empregou-a no hotel, ao pé de si, procurando habilitá-la nos misteres domésticos visando a colocá-la futuramente em ambientes familiares. Acontece, porém, meus

amigos, que a filha de Jerônimo irá para o Brasil mais depressa do que se esperava... É que, neste hotel, hospeda-se atualmente uma família portuguesa residente

em S. Paulo - o grande centro industrial brasileiro. Visita a terra natal e excursiona pela capital, a qual só agora tem ocasião de conhecer... Margarida, guiada

pela irmã, serve-a com atenções e bondade... Há simpatias de parte a parte... A menina acaba de ser convidada a partir para o Brasil, em companhia da família, como

criada de servir... Arinda interveio, compreendendo as vantagens daí conseqüentes... Margaridinha concordou prazenteira... e dentro de alguns dias será encerrada

a página negra de sua existência para recomeçar experiências novas, com novos ensejos de progresso e realizações..."

Entreolhamo-nos ansiosos, como num singular desabafo, detendo-nos compungidamente a fitar Jerônimo, personagem que figurava na tormentosa odisséia que acabávamos

de ouvir, com a tremenda responsabilidade, perante a lei divina, de havê-la provocado com a ação relapsa do suicídio! O ex-comerciante de vinhos, porém, conservava-se

de fronte curvada, concentrado em pensamentos profundos.

De súbito, em meio do silêncio augusto que sucedera à comovedora exposição, uma voz compassiva, a revelar carinhosas entonações, interrogou, sinceramente interessada:

"- E Albino, Irmão Santarém?... Decerto o Céu concedeu-lhe também alguma dádiva?..."

Era Belarmino, cuja alma bondosa, convertida para a emenda, apresentava já os melhores e mais sólidos característicos de fraternidade, dentre os do nosso grupo.

Albino!... - disse sorridente o digno sacerdote, como absorvido em grata recordação. - Albino vai muito bem, melhor muitas vezes do que a irmã!... O insulamento

do cárcere foi-lhe propício à meditação, fazendo-o refletir maduramente e levando-o a procurar Deus através das asas remissoras do sofrimento! Tal como foi feito

à irmã, doutrinamo-lo em nosso campo de repouso, e, facilmente aceitando nossas admoestações, depressa resignou-se à dolorosa situação, compreendendo justa a punição,

pois que realmente errara no seio da sociedade! Dedicou-se a leituras e estudos educativos, guiado muito de perto por uma alma de escol em quem depositamos muita

confiança, e presentemente encarnada na Terra - nosso agente fiel e porta-voz sincero - isto é, um médium, um iniciado cristão da Terceira Revelação, por nome Fernando...

Pois bem, ainda nos serviços realizados no Posto de Emergência já citado, instruções foram dadas ao caro intérprete a respeito do que deveria fazer a fim de auxiliar-nos

em torno do jovem em apreço, transportado que fora para aquele local o seu Espírito operoso, durante sono profundo. Ora, assim sendo, Fernando, que exerce atividades

profissionais na própria inspetoria de polícia, como adepto que é da Terceira Revelação vem procurando, tanto quanto possível, testemunhar os preceitos do Divino

Missionário. Dentre os inúmeros atos generosos que vem evidenciando como espírita-cristão, destacaremos o interesse tomado pelos encarcerados e sentenciados, aos

quais procura assistir e servir. Leva-lhes um raio de amor em cada visita que lhes faz. Infunde-lhes esperanças aos corações desfalecidos. Acalma-lhes a revolta

interior com a suavidade fraterna e boa da sua palavra inspirada, de onde jorram esclarecimentos regeneradores para desalterar-lhes a sede de justiça e proteção!

Albino sentiu-se atraído por aquelas expressões maviosas que lhe revelaram as doçuras do Evangelho do Reino de Deus, como falando de um mundo novo, uma era nova

que surgiria em sua vida de rapaz desamparado! Os olhos grandes e sonhadores de Fernando, como refletindo o manancial de Luz que deslumbrava sua alma de escolhido

do Céu, impressionaram fortemente o filho de Jerônimo, que, aturdido e dominado por singular simpatia, lhe confiou a própria história atormentada! Nosso querido

agente comoveu-se sinceramente, Confortou o rapaz, ministrou-lhe educação moral-religiosa sob as inspirações da Terceira Revelação, tal como lho havíamos recomendado,

o que nos evitou grandes trabalhos em torno do jovem encarcerado...

Na solidão do próprio cárcere, assim, bem cedo Albino pôde receber diretamente nossos incentivos, pois, graças aos piedosos esforços do servo do Senhor e àboa-vontade

do próprio penitente, tornou-se possível a este falarmos tomando-lhe da mão e ditando-lhe preceitos educativos, dos quais tanto e tanto necessitava a fim de se fortalecer

para as caminhadas redentoras! E o próprio Albino escreveu o que lhe sussurrávamos ao pensamento através da intuição, banhado em lágrimas, protestando interiormente

continuada boa-vontade para o futuro!

Porém, não paralisou aí a solicitude verdadeiramente fraterna do nosso caro Fernando.

Possui ele relações de amizades sociais achegadas ao Paço das Necessidades. Desdobrou-se e obteve as atenções de Sua Majestade, a Rainha D. Amélia, para o infeliz

filho do nosso suicida. Fê-la compreender tratar-se da pessoa de um õrfão desamparado, a quem a inexperiência e seduções maléficas haviam infelicitado, mas a quem

se poderia auxiliar ainda, tornando-o útil à sociedade, com um pouco de proteção e ajuda fraterna.

Aqui, em o nosso Instituto, não se ignora que o Espírito dessa ilustre dama da sociedade terrena é assaz generoso, compassivo, desejoso sempre de acertar. Para

o progresso moral e espiritual de Albino, por sua vez, segundo as instruções que recebêramos de Mais Alto, seria dispensável a prova do cárcere a alongar-se ainda

por três anos. Coadjuvamos, portanto, no momento, os esforços de Fernando, fielmente inspirado por nós outros, no sentido de obtermos quanto antes a projetada remoção

do prisioneiro para a África, onde, consoante foi estabelecido, ficará em liberdade..."

"- Perdão, respeitável Padre Santarém! Preferiria eu que Albino fosse encaminhado para o estrangeiro... Para o Brasil, por exemplo, a segunda pátria dos portugueses,

onde gostamos tanto de viver e também de morrer, em deixando Portugal... Pobre Albino! A Afriea!... Inóspita e inclemente!. . ." - atreveu-se ingenuamente Mário

Sobral, sem medir a inconveniência que proferia.

Não, meu jovem amigo! Albino necessita ainda ser conservado em custódia, quer policial terrena quer espiritual, por parte dos que zelam por seu futuro...

No Brasil encontraria demasiadas facilidades, que poderiam afastá-lo da unção em a qual se vem conservando desde que conheceu Fernando e se filiou à magna Ciência

da Espiritualidade! Teria liberdade excessiva, pois a grande democracia brasileira não é o que lhe convém no momento... Arrastá-lo-ia, possívelmente, a desvios prejudiciais,

quando, ao iniciar a própria regeneração, rodeado de responsabilidades, se encontra ainda muito fraco para vencer tantas e tão grandes tentações, como as que se

lhe deparariam no seio daquele generoso país. A África inclemente ser-lhe-á mais propícia aos interesses espirituais! Há mais caridade encaminhando-o para ali do

que para ambientes contrários à emenda que lhe cumpre tentar a bem dos próprios destinos imortais!

Estamos, pois, na expectativa de vê-lo transportar-

-se para Lourenço Marques ou outra qualquer localidade africana...

Considerando que os acontecimentos descritos pelo verbo eloqüente e sugestivo do conselheiro do Isolamento necessariamente influiriam no coração aflito daquele

pai suicida, fornecendo-lhe a um mesmo tempo lembranças torturantes e esperanças reanimadoras, felicitei-o sinceramente pelo formoso êxito das suas rogativas de

prece, louvando ainda, com júbilo, a amorosa solicitude da Virgem de Nazaré, cuja intervenção remediara situações supostas definitivas. E concluí com uma interrogação,

cuja resposta tão interessante me pareceu, que não me furtarei ao desejo de ajuntá-la a estas notas, finalizando o capítulo. Indaguei de Jerônimo, abraçando-o fraternalmente,

enquanto os companheiros de caravana pareciam apoiar meu gesto, com sorrisos amistosos:

E agora, meu caro Jerônimo, resolvidos os mais prementes problemas que te ensombravam de amar guras o viver, não te sentirás, porventura, mais sereno a fim de

cuidares do futuro que, segundo depreendo, bastante prejudicado já foi pelas aflições constantes e impaciências contraproducentes, em que te trazia a recordação

dos filhos queridos?... Não exultas, sabendo o herdeiro do teu nome prestes a poder servir honradamente a sociedade, o coração aberto às auras celestiais de uma

fé religiosa que é como a bênção do Todo-Poderoso glorificando-lhe o futuro?... Não sorrirás, resignado, sabendo tua loira Margaridinha recebida no seio de uma família

respeitável, tão respeitável que foi honrada com as atenções da Virgem, a quem suplicaste, para encaminhá-la à reabilitação imorredoura?... Sim, Jerônimo, estarás

jubiloso! Todos nos congratulamos contigo, meu amigo!.. ."

Só então levantou o semblante entristecido, enquanto respondia com entonações lacrimosas:

- Sim, amigo Camilo! Tão vastos e de tão profundo alcance foram os benefícios por mim recebidos através da assistência dispensada aos meus entes mais caros,

que jamais serão bastante eloqüente quantas expressões possa eu ter para testemunhar à Mãe Santa do meu Salvador a gratidão que me enternece o seio... a não ser

que, por misericórdia ainda mais extensa, venha a me transformar em protetor de órfãos e abandonados, evitando que se despenhem pelos abismos em que vi submersos

meus queridos filhinhos!

Alenta-me a esperança de que um tal milagre se concretize, ó Camilo! Pois aprendi com meus dedicados mestres desta casa acolhedora que o Espírito vive sobre

a Terra sucessivas vidas, nascendo e renascendo em formas humanas quantas vezes sejam necessárias ao desenvolvimento do seu ser em busca da bênção de Deus! Espero,

portanto, aquilo mesmo fazer um dia, na Terra, com outra forma humana que me seja concedida! Se, como hoje ardente e sinceramente aceito, possuimos uma alma imortal,

marchando progressivamente para Deus, demonstrarei meu reconhecimento às Potestades Celestes, criando, reencarnado na Terra, orfanatos, internatos amorosos e acolhedores,

lares cristãos onde pequeninos órfãos estejam ao abrigo das dramáticas situações em que meu suicídio arremessou meus indefesos filhos!... Sim! Reconfortado, agradecido,

esperançado, eu estou! Mas, jubiloso, ainda não, porqüanto uma avalancha incômoda de dívidas a solver abrasa-me a consciência, requeimando-a com os fogos impiedosos

de mil razões para os remorsos! Oh! eu não acuso Zulxnira, porque também me sinto culpado da sua queda nefanda! A pobreza irremediável, as privações acumuladas,

a fome torturadora, foram algozes que a perseguiram e venceram, encontrando-a moralmente desaparelhada para a resistência necessária às pelejas diárias contra a

adversidade, pois a infeliz, que no lar paterno fora educada às brutas, por mim, que a amava tanto, habituada fora a conforto excessivo e contraproducente, a ociosidade

nefasta que o dinheiro mal dirigido produz! Se eu, o varão, a quem cabia o dever sagrado de velar pelo futuro da família, educando a prole, defendendo-a, honrando-a,

fraquejei desastrosamente, abandonando-a na desgraça, ocultando-me atrás de um suicídio a fim de evitar a luta honrosa, completamente desencorajado para o desempenho

da missão que até os seres inferiores da Criação observam com apego, ternura e satisfação; se eu, o chefe natural, que perante os homens com o Matrimônio, e perante

Deus com a Paternidade, comprometera-me a conduzir o rebanho da Família ao santuário da Honra e da Felicidade, abandonei-a ao fogo vivo das iniqüidades mundanas,

escondendo-me debaixo do túmulo cavado pela covardia de um suicídio - quem mais se obrigaria ao dever que era meu!... Que poderia fazer a pobre Zulmira, se eu, pior

que ela, cheguei a matar-me para evitar o cumprimento de deveres inalienáveis!... Oh! para que Zuhnira vencesse à frente da desgraça, defendendo e honrando quatro

filhos menores, seria preciso que se houvesse habilitado à luz de princípios elevados, sob orientação de adiantada compreensão cristã, como tantas vezes asseverou

Irmão de Santarém, vendo-me sofredor e inconformado com o seu procedimento! Pobre Zulmira; porém, que, como eu, ignorava até mesmo se, com efeito, era criação divina!...

não obstante a afetação religiosa exigida pela sociedade herética e hipócrita em que vivíamos! A oração é o meu conforto, assim como os estudos que venho fazendo

em torno da pretensão à nova concessão de um corpo terreno... E rendo graças a Deus por tudo isso, meu amigo, pois já é muito para quem, absolutamente, nada fez

para merecer tanta misericórdia..."

"- Podeis prestar-nos alguns informes quanto às condições em que se verificarão as experiências novas do nosso caro Jerônimo, Irmão de Santarém?" - inquiri, atraído

pela sucessão dos ensinamentos que de todos aqueles fatos se depreendiam.

Será raciocínio simples, meu amigo, ao alcance de todo aprendiz aplicado.

Quando, na sociedade terrena, praticamos delitos irremediáveis ao voltarmos à Pátria Espiritual havemos de nos preparar para mais tarde tornar ao teatro das nossas

infrações, em existências posteriores, a fim de recapitular o passado operando de modo contrário ao em que fracassamos. Partindo dessa regra, no caso vertente veremos,

necessariamente, meu pupilo em apreço novamente defrontar-se com a ruína financeira, a desonra comercial, tal como a Terra considera a falência de uma firma comercial;

com a pobreza, com o descrédito - motivos estes que ontem o levaram ao suicídio -, a fim de que prove o arrependimento de que se acha possuído e os valores morais

que a amarga experiência de além-túmulo levou-o a adquirir. Para que assim seja, a ruína deverá positivar-se, no entanto, a despeito dos seus esforços por evitá-la

e apesar da sua probidade, mas nunca pela incúria de que acaba de dar provas, depredando em gozo. e vaidades mundanas o empréstimo da fortuna que o Distribuidor

Supremo lhe confiara com vistas a amplas possibilidades de progresso para ele próprio, como para seus semelhantes... Restará o grave impasse criado com a família,

a quem abandonou em situação espinhosa, fugindo ao dever sagrado de lutar para defendê-la... A consciência aconselhá-lo-á as particularidades do desempenho de tão

melindrosa reparação, de acordo com os seus próprios sentimentos, pois ele possui o livre-arbítrio. As pelejas da expiação, no entanto, os testemunhos amaros, os

dramas que será levado a viver no âmbito das reparações inadiáveis serão agravados por um precário estado de saúde orgânica e moral, males indefiníveis, que a ciência

dos homens não removera, porque serão repercussões danosas das vibrações do perispírito prejudicado pelo traumatismo, resultante do suicídio, sobre o sistema nervoso

do envoltório físico-material, que então possuirá. Ë possível que até mesmo a surdez e uma paralisia parcial, que poderá afetar o aparelho visual, assinale seu futuro

estado de reencarnado... porqüanto preferiu ele matar-se dilacerando o aparelho auditivo com um projetil de arma de fogo... e sabeis, meus amigos, que o corpo astral

- o Perespírito -, sendo, como é, organização viva e semimaterial, também se ressentirá, forçosamente, com a bruteza de um suicídio... e assim modelará o futuro

corpo padecendo mentalmente dos mesmos prejuízos..

Despedimo-nos do Irmão Santarém com as lágrimas a oscilarem em nossas pálpebras. Não tínhamos expressões com que agradecer a gentileza das elucidações proporcionadas.

Abraçamos Jerônimo e saímos, penalizados com a gravidade da situação que o premia, pois, apesar de tudo quanto acabáramos de saber, o pobre companheiro não passava

de um solitário circunscrito ao Isolamento, de onde não se afastaria nem mesmo a fim de visitar os filhos, senão para se instruir dentro da medida das próprias capacidades,

e sob vigilância severa dos mentores. Carregado de vibrações pesadas e chocantes, o contacto com os seres amados poderia sugestioná-los angustiosamente, arrastando-os

a possibilidades desastrosas.

"- Deveis encerrar esta série de visitas com uma pequena demora pelo Departamento de Reencarnação - advertiu o velho doutor de Canalejas -, pois, dentro de alguns

dias mais, devereis realizar o antigo sonho, revendo a Pátria e o antigo lar...

Pequeno veículo esperava-nos. Sobre nós fechou-se a imensa ponte levadiça. Saímos para o extenso campo marchetado de açucenas. Indefinível amargura cruciou nossos

corações, enquanto eu mesmo traduzia as impressões de todos os meus pobres cômpares, ao exclamar:

- Adeus, pobre Jerônimo! Não sei se nos veremos ainda, antes que a grande e inevitável jornada da reencarnação nos separe!... Que o Celeste Benfeitor se

amerceie do teu Espírito, iluminando com os favores da Sua paternal demência a rota por onde peregrinarás rodeado de espinhos e decepções! A tua história é também

a nossa, eu bem o sei!... Quando o nobre Irmão de Santarém ilustrava os teus problemas com o seu verbo sugestivo e elucidador, bem percebia eu que, caridosamente,

ele desejava advertir-nos quanto aos momentos difíceis que a nós outros também esperam..."

5

Prelúdios de reencarnação

"Na verdade, na verdade, te digo que aquele que não nascer de novo não pode ver o reino de Deus."

"Não te maravilhes de te ter dito: Necessário vos é nascer de novo.

JESUS CRISTO - O Novo Testamento. (16)

O Departamento de Reencarnação localizava-se no extremo da Colônia Correcional Maria de Nazaré, limitando com as regiões propriamente consideradas espirituais,

ou zona educacional. E isso será facilmente compreendido ao raciocinarmos que, tanto da zona inferior como da regeneradora da Colônia, batiam à sua porta, freqüentemente,

grupos de pretendentes aos grandes testemunhos do estágio na carne, isto é, da reencarnação planetária.

Compunha-se o importante núcleo de serviços das seguintes seções, todas exercendo funções destacadas, conquanto interdependentes:

1 - Recolhimento.

2 - Análise - (Gabinete secreto, inacessível aos visitantes).

3 - Programação das recapitulações.

4 - Pesquisas.

5 - Planejamento dos envoltórios físico-terrenos.

6 - Laboratório de restringimento - (Gabinete secreto, inacessível aos visitantes).

(16) João, capítulo 3, versículos 3 a 7.

Começava então a aparecer o elemento feminino, pois grande parte dos obreiros e funcionários, que ali dedicavam energias, era composta de Espíritos que se engrandeceram

na hierarquia espiritual insistindo nas encarnaçoes em corpos femininos. Todavia, os postos chaves, assim como a direção-geral do Departamento, ainda cabiam a iniciados

da plêiade brilhante que conhecemos.

Ao transpormos os seus limites demarcados por muralhas intransponíveis para visitantes não credenciados, a luz suave do Sol ofereceu-nos grata surpresa, pois

deu-nos a contemplar os primeiros tons coloridos que nos foram dados perceber em quatro anos de hospitalização.

Com surpresa, verificamos tratar-se de metrópole movimentadíssima, onde se elevavam edifícios soberbos, em apurado estilo hindu. A Índia lendária, de tão sábias

sugestões, surgia naquelas avenidas pitorescas e encantadoras, parecendo convidar à meditação, ao estudo, ao elevado cultivo das coisas sagradas da Espiritualidade,

dos destinos da Alma!

Naqueles palácios circundados de colunas ou enfeitados de cúpulas típicas, bem assim nas mansões residenciais, graciosas e sugestivas, miniaturas formosas daqueles,

e onde residiam servidores dedicados à Causa Redentora do Mestre de Jerusalém, imprimia-se a beleza grave e indescritível do ambiente sacrossanto do Invisível, servido

por entidades de escol cujo ideal era a observação da Lei Suprema, os serviços de Jesus e a proteção aos fracos e pequeninos. Dir-se-ia encontrar-se ali a verdadeira

civilização hindu, a que só foi entrevista entre os êxtases dos iniciados dos antigos santuários secretos, e que nunca foi compreendida e, por isso mesmo, jamais

praticada sobre a Terra!

Sentíamo-nos bem. Emoções alvissareiras falaram de reconforto e de esperanças às nossas almas. E para maior realce da nossa satisfação, o Sol formoso, reunindo

nas mesmas dulçorosas expressões de beleza parques e jardins, lagos e cascatas faiscantes, o casario como o horizonte que se alongava infinito, acariciando-os com

tonalidades mansas, como se a sua luz de ouro fluído se coasse através de véus esgazeados, adelgaçando o volume do panorama lindo como se tudo fora construído em

finíssima. porcelanas...

Guiados por nossos caros amigos de Canalejas, penetramos o belo edifício onde se estabelecia o governo central do Departamento.

A bondade e gentileza do eminente governador iniciado, Irmão Demétrio, houveram por bem conceder-nos até mesmo um instrutor local, capacitado a prestar esclarecimentos

possíveis à nossa assimilação de iniciantes na vida espiritual. Era este uma jovem dama, cujo semblante risonho e atraente nos infundiu imediata confiança. De tão

amável personagem nada mais logramos saber senão que se chamara Rosália e vivera em Portugal sua última romagem terrena.

Fazia-se dispensável a presença de Carlos e Roberto. Entregaram-nos, pois, aos cuidados de Rosália e despediram-se a fim de atenderem a labores mais urgentes,

com a promessa de virem ao nosso encontro, para o retorno ao Pavilhão onde residíamos.

Reuniu-nos a dama em seu redor, e, centralizando o grupo, disse-nos, já descendo as escadarias do edifício:

"- Principiarei a pequena tarefa ordenada por nosso querido chefe, Irmão Demétrio, meus caros amigos, adiantando-vos ser imensamente grato ao meu coração o servir

à vossa instrução, tal se o fizesse a irmãos estremecidos. Sinto que louvável desejo de examinar para aprender e progredir floresce em vossas mentes. Por isso mesmo,

auguro-vos compensador futuro no âmbito de nossa agremiação, cuja finalidade é servir para engrandecer o próximo carente de amor e auxílio! Todavia, deixo de apresentar

quaisquer felicitações, porque seriam prematuras. Almejo antes, para vós, o alento misericordioso do Alto, a fim de ajudar-vos na permanência dos bons propósitos

atuais.

Agradecemos, encantados. Seguimos caminhando por uma daquelas magníficas avenidas orladas de tufos de caprichosas folhagens, enquanto iam e vinham, cruzando conosco,

funcionários e obreiros apressados, emprestando grande animação ao ambiente. Singular silêncio continuava a reinar nesse novo núcleo, tal como sucedia aos demais

já conhecidos, o que não deixou de despertar nossa atenção.

A jovem senhora continuou, enquanto sensível corrente de superioridade se desprendia de sua personalidade, infiltrando-se em nosso âmago e assim despertando as

melhores atitudes de respeito e veneração de que éramos capazes:

"- Conforme verificareis, ninguém que, acolhido neste Instituto, como tutelado temporário, necessite recapitular experiências terrenas, poderá fazê-lo sem antes

ingressar em nosso Departamento para um estágio que varia de um a dois anos, conforme seja o seu estado, antes de se providenciarem as atividades relacionadas com

o corpo que será chamado a animar. Diariamente comparecem aqui Espíritos ansiosos por voltarem ao teatro das próprias quedas, pressurosos de repararem o passado

cuja lembrança os desespera, de expiarem faltas, de recapitularem o drama íntimo, a fim de conseguirem vencer o remorso esmagador que lhes estorce a consciência

- fantasmas sangrentos de si mesmos, atados ao infamante resultado do suicídio!

Obtendo o beneplácito do Templo para a reencarnação que traz em mira, o qual, por sua vez, já o recebeu de Mais Alto, onde paira a direção soberana da Legião,

o pretendente, apresentando-se à chefia deste Departamento, será encaminhado, primeiramente, à seção do Recolhimento, onde se farão seus registros relativos à Terra,

e em cujo internato será admitido, sob os cuidados paternais de guias que o assistirão fielmente a partir daquela data, acompanhando-o incondicionalmente e sem esmorecimentos

durante sua "via crucis" expiatória nos proscênios terrenos.

Resolvido o primeiro problema, acudirão os técnicos da seção de Análises, os quais deverão estudar, naqueles internos, as tendências características, fazendo-lhes

pormenorizadamente a psicologia. Sua alma, seu ser, os refolhos mais remotos da sua consciência serão perscrutados por esses criteriosos operários do Senhor, os

quais, invariavelmente, por serem iniciados superiores da falange brilhante, se encontram à altura da delicada incumbência. Para isso, servindo-se das faculdades

magnéticas superiores que possuem, obrigam o paciente a desdobrar as páginas do livro imenso da Alma, nele recapitulando o pretérito, e assim se revelando tal como

realmente é, pois, ficai sabendo - caso o ignoreis ainda - que todas as criaturas trazem a história de si mesmas impressa em caracteres indeléveis nos labirintos

do ser, sendo capazes de, em determinadas circunstâncias, revivê-la em minúcias e da-las a outrem para igualmente examinar, quer se encontrem presas aos laços carnais,

quer estejam deles libertadas.

Existe exceção, no entanto, para os asilados do Manicômio. Estes, infelizmente, reencarnarão tais como se encontram! Nada será possível tentar a fim de beneficiá-los

a não ser o retorno ao estágio na carne, que então passará a figurar como terapêutica imposta para corretivo do descontrole geral das vibrações, criando, assim,

ensejos para novas tentativas futuras. Essa terapêutica, balsamizada pela prece que diariamente lhes será ministrada em correntes simpáticas, dulçorosaz e benéficas,

partidas daqui, em seu favor, é tudo quanto, no momento, lograrão aqueles infelizes obter, não obstante o grande desejo que temos de vê-los serenos e ditosos!

Uma vez concluídos os trabalhos analíticos do caráter de cada um, os mesmos técnicos farão relatório do que verificarem, minucioso e rigorosamente exato, passando

então o caso à seção de Programação das Recapitulações.

Pelo exposto tereis compreendido que estas análises justamente serão indispensáveis por fornecerem o cabedal para o programa da existência a seguir. Os méritos

e os deméritos do reencarnante, as quedas pretéritas mais graves e que, por isso mesmo, mais urgência exigirão na reparação; as concessões balsamizadoras que se

lhe possam fazer, a urdidura, enfim, da existência projetada, será estabelecida através da investigação descrita. Preciso será esclarecer, todavia, que tão importante

laboração destaca-se em duas partes distintas, ocasionando sensível diferença na forma de operar. Será dificultosa, exigindo até várias experiências, torturante.

mesmo até para o próprio operador, quando o condenado à galé da carne provém da zona inferior da Colônia, isto é, dos departamentos hospitalares, assim como das

prisões da Torre; ao passo que será simples revisão para efeito de técnica, constatação indispensável aos relatórios quando o pretendente haja sido interno do Instituto

propriamente dito, ou seja, da região regeneradora onde se efetivam os estágios para a reeducação, o Colégio da Iniciação, etc., para os quais não tardareis a ser

encaminhados. De qualquer forma, esse trabalho será grandemente facilitado pelos informes derivados do Templo e pelo concurso dos Guias missionários indicados pelo

Astral Superior, sem a presença dos quais absolutamente nada será tentado para a finalidade da reencarnação.

Estabelecida a programação, concluído o esboço das lutas expiatórias ou reparadoras do reencarnante, de acordo com suas forças de resistência moral - possibilidades

de que disponha para a vitória -; previstos os empreendimentos que possa concretizar a par das expiações; as realizações para que possua capacidade; as facilidades

que deva encontrar pelo caminho, justo efeito dos méritos anteriormente conquistados; ou as dificuldades que, a seu próprio benefício, venha a deparar durante o

desenrolar da existência, justa conseqüência de deméritos que arraste do mau passado; firmado, enfim, o panorama da vida que o espera dentro da reencarnação terrena,

que tanto lhe convém, e a qual, geralmente, tão desejada é pelo próprio pecador batido pelo arrependimento, será o belíssimo trabalho, verdadeira epopéia sabiamente

traçada, encaminhando à direção-geral da Colônia, que o examinará. (17)

(17) Não se deverá fazer conclusões exageradas dessa exposição. Antes da encarnação, o Espírito poderá escolher as provações da pobreza, por exemplo, sujeitando-se

então às peripécias do grau de pobreza que lhe convenha acarretar para sua existência. Não se inferirá, portanto, que no além-túmulo houvessem sido discriminados

minuciosamente todos os detalhes e acidentes da pobreza prevista. Se houver de cegar ou tornar-se mutilado, Isso virá a acontecer sem que se torne necessário apontar

na programação feita antes da volta ao corpo carnal o acidente ou enfermidade que o conduzirá ao estado conveniente de provado. Isto o que se depreende das obras

básicas da Doutrina. - (Nota da médium)

Existem casos em que serão necessárias emendas. Estas, tanto poderão referir-se à diminuição das provas, retardando para futuro remoto a solução de alguns problemas,

da concessão de um acréscimo de misericórdia, portanto, como do aumento do volume das reparações para um período mais curto, tais sejam as possibilidades gerais

do tutelado! O próprio Templo, porém, só expedirá ordens deste último teor quando de Mais Alto receba autorização. Como, no entanto, Guias missionários do penitente,

assim os técnicos do Departamento da Reencarnação, são Espíritos de elevada linhagem nas regiões virtuosas do Além, portadores de grande saber e gloriosa inspiração

a serviço da causa da redenção humana, geralmente os programas estabelecidos por eles conquistam o beneplácito do Governo Geral da Legião a que pertencemos, o qual,

por intermédio do Templo, autoriza a preparação do aparelho físico-terreno para o aprendizado na crosta do planeta..."

Havíamos estacionado sob as frondes dos arvoredos ao longo da avenida por onde palmilhávamos, e ouvíamos tais exposições interessadíssimos, lembrando-nos ainda

das notícias que nos forneciam certos livros antigos sobre aulas ministradas por Pitágoras, Sócrates e Platão, rodeados de discípulos, e mais ou menos baseadas em

princípios análogos, à sombra dos cortinados dos plátanos, nos parques de Atenas.

Pensativo, interveio Belarmino, que sorvia as palavras de Rosália com manifesto fervor:

- Depreender-se-á de vossas asserções, minha senhora... minha irmã! que os dramas da vida humana, as desgraças, as tragédias que diariamente sacodem o Globo,

fazendo da Humanidade um como joguete de forças cegas e superiores, são dirigidas por uma fatalidade irreprimível?.. ."

Sorrindo com encantadora singeleza, a lúcida serva de Maria retrucou, enquanto acenava, convidando-nos a subir a escadaria de nobre edifício rodeado de colunas

e velado por aprazíveis rendilhados de arbustos floridos e arvoredos frondosos, em cujos pórticos se lia esta simples inscrição - "Recolhimento"

Não, meu amigo! O senso indica que não poderá a Humanidade ser regida pela cegueira de uma fatalidade abominável! Deveríeis antes ter compreendido que aquilo

a que chamais fatalidade não é senão o efeito de uma causa que o próprio homem criou no enredo das ações praticadas na Terra, quando nela viveu divorciado do bem,

da moral e do dever, ou, no Além, como Espírito desnorteado da Lei, embrutecido nas trevas de que se rodeou, pois é ele mesmo, através dos atos bons ou maus que

pratica, que determina a natureza, consoladora ou punitiva, do próprio futuro! A fatalidade existirá, se assim o quiserdes, não cegamente, reduzindo a Humanidade

a mero joguete, mas como seqüência lógica, inteligentemente corretiva, de desvios delituosos, programada por seu próprio livre-arbítrio ao preferir 'o erro aos ditames

da razão e da consciência! Tratando-se, pois, de um corretivo, esse estado de coisas desaparecerá no momento em que se corrigir a causa que lhe forneceu origem,

ou seja, o traço inferior da maldade em que se estribaram os atos praticados. Assim também, nos programas que se elaboram aqui, visando ao futuro do delinqüente,

não se incluirão os pormenores, as atividades diárias, que será chamado a desenvolver nas operosidades da vida terrena, assim como não se cogitarão das particularidades

que lhe sejam necessárias a fim de atingir o inevitável! Apenas os pontos capitais serão por nós anotados, os que constituam reparação, trechos decisivos, seqüências

que marcarão justamente a lógica dos antecedentes acontecimentos, isto é, da Causa! A própria expiação encontra-se de tal forma arraigada na consciência do pecador,

como efeito dos remorsos, das necessidades de progresso de um passado criminoso, que ele mesmo, sob o impulso de sua vontade livre, dar-lhe-ia cumprimento, ainda

que não fosse delineada sob O critério dos nossos relatos. Convém, porém, que assim o façamos, porque, entregue a si mesmo, resvalaria para excessos prejudiciais,

criando possibilidades desastrosas.

Outrossim, as capacidades que tenha para realizações meritórias serão também anotadas, e estas poderão até mesmo ser discriminadas, indicadas... pois nenhum Espírito,

encarnado ou não, só porque se encontre jungido ao ergástulo das provações, será inibido de auxiliar o progresso próprio com a dedicação às causas nobres, devotando-se

aos empreendimentos generosos para o bem do próximo. Ele, porém, o reencarnado, será livre de efetuar ou não aquelas realizações, que, antes da reencarnação, quando

se preparavam as linhas do seu futuro, se comprometeu a atender. Será livre, sim. Mas, no caso de se desviar do compromisso assumido, grandes pesares o angustiarão

mais tarde, ao sentir que, além de ter faltado com a palavra empenhada com seus Guias, deixou de se aureolar com méritos que muito poderiam ter abreviado as caminhadas

ríspidas das recapitulações a ....... Como vê, meu amigo, não se trata de fatalidade, senão encadeamento harmonioso de "causas" e "efeitos. .

Penetramos vasta antecâmara, cujas portas jamais eram trancadas, velando-se apenas o ingresso no interior de cada uma com discretos reposteiros de suavíssimo

tecido azul-celeste. Silêncio impressionante continuou ali despertando nossa atenção, fazendo-nos julgar o nobre edifício imerso em solidão. Aroma delicado e sugestivo,

no entanto, emprestava encanto indefinível a esse interior cheio de atrativos, onde luz docemente aloirada penetrava por ogivas graciosas engrinaldadas de rosas

brancas. Ramalhetes das mesmas flores ornavam discretamente o recinto, deixando entrever o gosto feminino inspirando a ornamentação.

A um ângulo do salão, destacamos uma como tribuna talhada em meia-lua. Uma senhora de idade indefi nível ergueu-se imediatamente ao avistar-nos, e, deixando aflorar

nos lábios bondoso sorriso, saudou-nos com esta fórmula singular, enquanto caminhava em nossa direção, estendendo gentilmente a destra:

"- Seja convosco a paz do Divino Mestre!"

Rosália apresentou-nos a ela, amavelmente:

"- Eu vos esperava, meus amigos! Irmão Teócrito comunicou-se comigo esta manhã, cientificando-me de vossa necessidade de esclarecimentos rápidos, relativamente

a este núcleo... Acompanhar-vos-ei eu mesma pelo interior do nosso albergue... este Recolhimento, que a todos vós receberá um dia, pois ninguém há, internado nesta

Colônia, que deixe de passar sob seus umbrais..."

Era uma religiosa. Seu hábito níveo, como esbatido por fosforescências de ouro pálido, que se diriam provindas da luz que se projetava sobre o aprazível recinto,

era muito belo, assemelhando-se à túnica de uma virgem lendária glorificada por poema sacro arrebatador.

Não cogitei saber a que congregação religiosa pertenceria, quando na Terra, essa dama encantadora que, agora, no mundo espiritual, nos surpreendia como funcionária

de uma Colônia auxiliar para correção de suicidas, colaborando, ao lado de ilustres iniciados das Doutrinas Secretas, nos serviços da Vinha do Senhor. Sei, porém,

que, honrando certamente o hábito humilde no desempenho de tarefas terrenas nobilitantes, eu a via agora sublimá-lo no Além, no seio de congregação fraterna e modelar,

onde merecia dirigir uma das mais importantes seções, tal como a seção do Recolhimento, como fiel iniciada cristã que era!

Gentil e bondosa, convidou-nos a repousar por alguns instantes, oferecendo a cada um de nós, assim como a Rosália, uma das suas belas rosas, enquanto falava,

risonha e simples como gracil menina:

"- Na época em que vivi, reclusa e quieta, no Convento de Santa Maria, em o nosso exílio terreno, cultivava rosas em minhas horas de lazer, quando um ou outro

enfermo não requisitava meus serviços para além dos muros que me insuLavam... Foi esse o único passatempo que fruí no mundo das sombras, durante minha última romagem

nele realizada! Eu falava às rosas, como às outras demais flores! Entendia-as, educava-as, criava-as como se o fizesse a seres pensantes muito queridos, divertia-me

com elas, e com elas confidenciava, depositando em suas corolas perfumosas as lágrimas que os infortúnios oriundos das desilusões e das saudades ternas me extraiam

do coração! Na comunidade não se permitia possuir sequer um animalzinho, um pássaro que fosse, nada que pudesse desviar o afeto e as atenções das reclusas dos deveres

austeros a que eram obrigadas ou da contemplação íntima a que se deveriam invariavelmente quedar, no intuito de alimpar caráter e sentimentos para a boa sintonização

com os eflúvios divinos... Mesmo as flores, não eram para mim que cultivava, senão para a comunidade... Mas eu seguia as normas estatuídas por Francisco de Assis

e estava certa de não haver nenhum mal em dedicar um pouco dos meus afetos também às mimosas flores que despontavam dos canteiros sob meus cuidados... Habituei-me

a elas, desde então... e não só não me impediram de harmonizar vibrações com os planos do Amor e do Bem, como até as continuo cultivando em plena intensidade da

vida espiritual, sem jamais esquecê-las.. ."

Bem impressionado com os encantos que se desprendiam da virgem religiosa, Belarmino aventou uma interrogação, que reputei indiscreta e de muito mau-gosto.

"- Sim - disse ele -, vejo que continuais cultivando rosas nestas paragens do mundo invisível... Sínto-me, porém, confuso... Ë, pois, possível uma tal coisa,

irmã..."

"-... irmã Celestina... para vos servir, caro irmão Belarmino! Como assim?!... Não vedes aí as flores?... Como não ser, então, possível? Oh! e por que não se cultivariam

flores no Além-túmulo, se é aqui, e não nos mundos materiais, que existe o verdadeiro padrão da Vida, enriquecido cada dia com os progressos de cada um de seus habitantes?...

Acaso existirá na Terra alguma coisa, no que concerne ao Bem e ao Belo, que não seja pálida reminiscência conservada da Pátria Espiritual pelos precitos ali retidos....

O fluído da Vida, que faz germinar as flores e plantas terrenas, perfumando-as, alindando-ás, encantando-as, não é porventura o mesmo que fecunda e anima a quintessência

e suas derivações, das quais nos utilizamos nestas regiões?... O Artista Divino que enfeitou a Terra, com tantos motivos galantes, não é o mesmo, porventura, que

vivifica e embeleza o Universo todo?. .

Agradecemos a dádiva mimosa, que parecia refulgir e vibrar, possuída de ignotos princípios magnéticos. Aspiramos o aroma sutil que impregnava o salão, enquanto

a interlocutora nos fazia passar a extensa galeria, sus-tida por colunatas majestosas. Dir-se-ia um claustro. De um lado e outro, portas esculpidas em motivos clássicos

hindus alinhavam-se. E, de cima, a mesma claridade fluida e doce, acendendo tonalidades aloiradas, a cada passo infundindo confiança e alegria.

Guiou-nos a gentil senhora a algumas daquelas portas e, enquanto entrávamos, surpreendidos verificávamos pertencerem, a extensos dormitórios. Esclarecia ela:

"- Quando se positivam a necessidade e a época de o asilado desta Colônia retornar ao aprendizado da carne, a fim de completar o compromisso da existência interrompida

com o suicídio, apresenta-se ele ao Departamento de Reencarnação acompanhado dos mentores pelos quais vem sendo assistido e oferecendo as recomendações e autorizações

necessárias, provenientes da chefia do Departamento em que fez o estágio entre nós.

Do gabinete, pois, de Irmão Demétrio, será encaminhado a esta seção e aqui passará a residir como interno. Hospedamo-lo com afeto e satisfação, procurando tornar

o estágio o mais consolador e reanimador possível... porqüanto, geralmente, o suicida é um triste a quem coisa alguma alegrará, um inconsolável que, sabendo que

não tardará a voltar à arena terrestre em duríssimas condições, mais se angustia ao penetrar estes umbrais...

Aqui se demorará enquanto durarem os preparativos para a grande caminhada. Suas apreensões, as meditações acerca do que passará futuramente, enclausurado novamente

na vestimenta carnal, vão-se dilatando a cada minuto decorrido, pois ele não ignora, antes percebe com clareza, o que o aguarda na arena em que deverá representar

o heróico papel daquele que se deverá habilitar para a conquista de si mesmo, para os planos do verdadeiro Bem! Tal estado de ansiedade, agravando-se à proporção

que se vão formando os preparativos, torna-se verdadeiramente angustioso, provocando lágrimas freqüentes de seus corações dilacerados pelo arrependimento, pelo temor,

pelas saudades... pois, desde o dia que um pretendente à reencarnação transpõe os umbrais do Recolhimento, despede-se da Colônia ou do Instituto, dos mestres que

o instruíram, dos companheiros e amigos que ali adquiriu, só os reencontrando mais tarde, ao findar o exílio... Ê bem verdade que, uma vez reencarnado, não estará

destes separado, tal como à primeira vista se poderia supor. Ao contrário, continuará alvo das atenções de quantos por ele zelaram durante a internação na Colônia,

porqüanto a permanência no plano físico não diminuirá o dever destes para com ele, nem estará, por isso, desligado dela. Poderá mesmo continuar a ser recebido aqui,

aconselhado, instruído, confortado por seus antigos mentores, graças ao sono do corpo físico, que lhe facultará relativa liberdade para tanto, e o fará, necessariamente,

pois não se desligou ainda de nossa tutela, está da mesma forma internado em nosso Instituto porque a reencarnação a que se submete não é senão um dos recursos com

que contamos para o trabalho de educação que se torna necessário para a sua recuperação ao plano normal da marcha gloriosa para o Progresso!

Mas... eles sabem que, uma vez de posse do pesado fardo de limo terrestre, já não serão tão lúcidos, esquecerão o convívio fraterno, as benfazejas bênçãos da

presença daqueles que lhes foram como anjos-tutelares a enxugar-lhes as lágrimas da desgraça, e, por isso, se angustiam e sofrem!

Eu e meus auxiliares velaremos por eles aqui, no Recolhimento, ajudando-os à readaptação às coisas da Terra, despertando-lhes o gosto pela existência no seio

generoso do planeta tão bem dotado pela Sabedoria do Todo-Misericordioso, e que só os desvarios do homem tornaram inclemente e ingrato!... pois convém não esquecer

que o suicida desencantou-se da permanência na sociedade terrena, ele a detesta e quisera afinar-se com outra que lhe falasse melhor aos anseios íntimos! Muitos,

apavorados com as perspectivas das expiações, que só passam a conhecer minuciosamente depois que aqui são internados, arrependem-se do intuito que traziam e, acovardados,

pedem para dilatar um pouco mais a época do renascimento, no que são atendidos. Em lágrimas, são reconduzidos, então, ao local de onde vieram e entregues a seus

tutores locais, lá ficando sem outros progressos até que se decidam ao único recurso que lhes conferirá, com efeito, possibilidades de dias melhores: -a reencarnação!

Uma vez aqui recolhidos, porém, não permanecerão inativos, à espera de quem lhes prepare a moradia terrena do futuro. Com seus instrutores trabalham nos preparativos

para o renascimento próprio, colaboram no exaustivo labor das pesquisas para a escolha dos genitores que melhor convenham à espécie de testemunhos que deverão apresentar

à frente das leis sacrossantas que infrigiram, porqüanto, geralmente, os suicidas não reencarnam, para a expiação, nos círculos de afetos que lhes são mais caros,

e sim fora deles; estudam, sob orientação dos guias missionários, a programação de suas atividades na Terra, aprendendo, numa espécie de aula prática, fornecida

através de quadros inteligentes e movimentados quais cenas teatrais ou cinematográficas, a desenvolvê-las, realizá-las, remediá-las, levá-las a finalidade heróica,

agindo com acerto e prudência; viajam assiduamente à Terra, onde se demoram, sempre acompanhados de seus tutelares generosos, procurando orientar-se nos hábitos

a que terão de se adaptar, conforme se iam os ambientes em que arrastarão a condenação vergonhosa que consigo levam, porqüanto, a eles mesmos convém que se resignem

à situação antes do ingresso no corpo carnal, para que não sintam demasiadamente ardente a mudança dos hábitos que a convivência conosco forneceu; e, depois das

pesquisas ultimadas e es colhido o meio familiar em que ingressarão, demorar-se-ão ainda em torno dos futuros pais, procurando com eles se afinar, conhecê-los melhor,

adaptarem-se aos seus modos, principalmente se couber como punição ou necessidade para o progresso a difícil situação de aceitarem para o renascimento um meio hostil,

onde existirão apenas, rodeando-os no decorrer dos dias, inimigos de existências pretéritas, Espíritos estranhos, indiferentes portanto aos infortúnios que os sacudirão...

"- Quer dizer, minha irmã, que essas pesquisas a que vos referis.. ." - perquiri eu, aproveitando pequena pausa da eloqüente interlocutora.

"-... movimentam-se em torno da procura de uma família, de um ambiente, de genitores principalmente, caridosos bastante para concordarem em receber em seu seio

um rebento estranho, que lhes será motivo de constantes preocupações, pois que condenado aos dolorosos testemunhos que acompanham a reencarnação de um suicida! Existem

mesmo casos penosos, difíceis de serem resolvidos, meus amigos! E é quando desgraçados, como aqueles que vistes no Manicômio, ficam aqui, detidos no Recolhimento,

esperando que se lhes consigam genitores, pois, como sabeis, eles, além de incapacitados para a colaboração com seus mentores em torno da causa própria, o estado

que arrastam é de tal forma precário que, para o renascimento, só lhes permitirá a possibilidade de um invólucro material entorpecido por achaques insolúveis, inacessível

ao estado normal da criatura encarnada, constituindo angustiosa provação para os pais que os receberem! Consoante já foi explanado perante vosso entendimento, muitos

daqueles infelizes voltarão àvida planetária ocupando corpos carnais paralíticos, dementes, possívelmente surdos-mudos, enfermos incuráveis, etc., etc., e apenas

deverão planar em ambientes onde existam grandes provações a serem expiadas pelos pais. Então, seus guias e dedicados mentores estabelecem, com aqueles que têm possibilidade

de se tornarem genitores e possuam débitos gravosos a solverem perante a Divina Justiça, comoventes convênios, acordos supremos como este:

"- Que concordem em receber em seu seio aqueles desditosos, como filhos, e os amparem na "via crucis" da expiação, pois eles necessitam da reencarnação a fim

de voltarem a si do entorpecimento a que o suicídio os arrojou, e, assim, melhorarem de situação.

"- Que pratiquem, pelo amor do Divino Cordeiro, imolado no alto do Calvário por muito amar os pecadores e desejar reavê-los para as aleluias da Vida Imortal,

tão sagrada caridade, porque a Suprema Lei do Amor ao Próximo lhes conferirá o mérito da Boa Obra, favorecendo-lhes oportunidades dignificantes para realizações

rápidas no plano da evolução, para os estados compensadores e felizes.

"- Que consintam em se tornarem temporariamente agentes da Legião de Maria, agasalhando em seu lar generoso pupilos seus, dos mais infelicitados pelo passado

pecaminoso, até que finde a expiação necessária, a qual lhe sobrou da lição pavorosa do suicídio!... Pois, determina a Lei que a Caridade cubra uma multidão de pecados...

e eles, genitores, que também faliram contra a supremacia da Incorruptível Lei, veriam muitos delitos levados à conta dessa sublime virtude que bem poderiam praticar,

servindo aos sagrados desígnios do Criador!

No entanto, meus amigos, se alguns bondosamente concordam em se desincumbirem da honrosa quão amarga tarefa, outros existem que as rejeitam, preferindo reparar

as próprias faltas até o último ceitil, a contribuírem com seus préstimos para que um destes infelizes repare a conseqüência do gesto macabro que preferiu, sob um

teto amoroso e honradamente constituído. Não se sentindo a isso obrigados por lei, preferem as asperezas das próprias provações, ao lado de prole sadia e graciosa,

à suavização das penas, com a concessão de oportunidades generosas e compensadoras, sob a condição de exercerem a sublime caridade de se prestarem àpaternidade de

pequenos monstrengos e anormais, que só lhes acarretariam desgostos e inquietações..."

"- E como, pois, reencarnarão esses miseráveis companheiros de desgraça, ó Deus do Céu?... Como nos reencarnaremos então, nós, a quem tudo faltará, até mesmo

pais?.. ." - inquiri, impressionado e ansioso, lembrando-me de que eu voltaria ao corpo certamente cego, Mário sem as mãos, Belarmino enfermiço e infeliz desde o

berço. .

"- Obtereis novos informes na Seção de Pesquisas, meus caros irmãos! Por agora, porém, visitemos estas dependências que também a vós abrigarão um dia, ao iniciardes

as jornadas reparadoras.. ."

Era o Recolhimento como enorme internato, compondo-se de quatro pavimentos bem distintos, conquanto não existissem quaisquer diferenciações nas disposições internas.

No primeiro, reuniam-se Espíritos provenientes de regiões menos infelizes da Colônia, ou seja, os internos e aprendizes do Instituto, já iniciados na Ciência

da Espiritualidade propriamente dita. No segundo, permaneCia"' os abrigados do Hospital Maria de Nazaré que preferiram reencarnação imediata, bem assim os do Isolamento,

ao passo que o terceiro abrigava os prisioneiros da Torre, e o quarto era reservado aos do Manicômio. Ao elemento feminino reservava-se hospedagem idêntica, localizada,

porém, em sítio vizinho ao nosso, em edifício separado.

Celestina levou-nos a tudo esmiuçar. O reencarnante seria ali registrado: - seu nome, o local onde renasceria, a data do acontecimento, o nome dos pais, o período

que deveria passar investido da existência planetária, etc., etc., tudo, em torno dele, ficaria modelar-mente arquivado!

Os internos viviam ali irmanados por idênticas preocupações, orientados pelos assistentes incansáveis, que tudo tentavam a fim de vê-los vitoriosos nas pelejas

dos testemunhos das lides terrenas. A qualquer parte a que as obrigações do momento os requisitassem, isto é, a Terra, os gabinetes de Análises, onde eram submetidos

à melindrosa intervenção já descrita; as seções de Programação das Recapitulações e de Pesquisas, seria o Recolhimento o ponto de retorno, para onde convergiriam

todos até o término dos preparativos e para onde gravitariam mais tarde, quando extinguida a existência corporal para que então se preparavam. Estes, isto é, os

preparativos, freqüentemente se dilatavam por algum tempo, exceção feita aos pupilos do Manicômio, cujas providências para o retorno à gleba terrestre eram sucintas,

resumindo-se quase que exclusivamnente aos trabalhos de pesquisas.

Uma vez concluídos os penosos prelúdios, advinham as fases das realizações. Era quando a chefia do Departamento expedia ordens à direção do Laboratório de Restringimento

para iniciar a operação magnética necessária ao caso do renascimento, assim como a respectiva atração para o feto, cujos elementos biológicos já se encontrariam

em processo de desenvolvimento no óvulo fecundado, no santuário das entranhas maternas, as quais mais não seriam, então, do que o prosseguimento do mesmo Laboratório,

uma como dependência temporária, ou de emergência, do Departamento de Reencarnação, sujeita à vigilância dos técnicos incumbidos do magnificente serviço e dos guias

missionários do Espírito que, assim constrangido e restringido em suas vibrações normais, ia modelando o corpo à proporção que se adiantava o fenômeno da gestação.

E explicaram-nos, ainda, que o molde ideal para se definir a forma desse feto em elaboração seria justamente o corpo astral que no momento trazíamos - o perispírito

-, o que amplamente ao nosso entendimento esclareceu quanto ao que viria a ser o futuro corpo que ocuparíamos, estruturado sob o magnetismo doentio de vibrações

oriundas de grandes desgraçados, como nós, segundo o que, com efeito, já nos haviam participado os pacientes mentores!

Não nos permitiram entrada no "Laboratório de Restringimento", assim como não fora permitida a visita aos gabinetes de Análises. No entanto, informaram-nos de

que, ao se internar no Laboratório, não se prenderia a ele o condenado. Ao contrário, poderosas correntes magnéticas que partiriam das próprias forças ilimitadas

e divinas, que mantêm o Universo, impeliam-no para o corpo que deveria habitar, afinando-o com este, ao mesmo tempo que harmonizava o seu perispírito ao daquela

que consentira, voluntariamente ou constrangida por um dispositivo da Grande Lei, em ser sua mãe, para com ele sofrer e chorar a conseqüência dramática e irremediável

do suicídio, de delitos graves e desonrosos! Que, durante a época dessa atração, que se opera lentamente, à proporção que a gestação progride, vai o condenado perdendo

a pouco e pouco a faculdade das recordações do próprio passado, uma vez que seu corpo astral sofreu restringimentos necessários ao fenômeno da modelagem do feto,

coisa que se verifica também graças ao auxílio magnético e vibratório dos psiquistas afetos ao delicado certame, sobre a vontade e sobre as vibrações mentais do

paciente. Que, à proporção que se adianta o estado de gestação no seio materno, suas vibrações, mais e mais se comprimindo, vão calcando mui profundamente, na organização

astral, as lembranças, as recordações, as impressões vivazes dos dramas dolorosos por ele vividos no pretérito, produzindo-se então o Esquecimento imposto como acréscimo

de Misericórdia pelo Legislador Supremo, condoído das desgraças que adviriam se os homens pudessem recordar livremente os verdadeiros motivos por que nascem na Terra

em condições lastimosas, muitas vezes lutando e chorando do berço ao túmulo! Que, ao entrar para ali, inicia-se em seu amargurado ser um como estado pré-agônico,

fácil de ser compreendido em virtude do constrangimento que sofrem todas as suas faculdades, a sua mente, as suas vibrações! Que tal estado, mui penoso para qualquer

Espírito, torna-se odioso a um suicida, dado que sua organização astral se encontra angustiosamente abalada com o choque sofrido pela violência nele operada pelo

suicídio, e do qual só será aliviado muitos anos mais tarde, quando se verificar o desenlace natural e lento das cadeias magnéticas que o prendem ao corpo, ao qual

ele começa a estar ligado desde a intervenção no Laboratório. Soubemos ainda que toda essa epopéia, digna de uma Criação Divina, será facilitada em seu cumprimento,

e suavizada em suas perspectivas, quando o paciente demonstrar arrependimento sincero pelo mau passado que andou vivendo, e boa-vontade e humildade para reparar

erros cometidos e progredir em busca dos beneplácitos dignificantes da consciência, pois, então, sua vontade se tornará maleável sob a ação protetora dos Guias desvelados,

os quais, bem certo, todos os esforços empregarão a fim de levá-lo a sair vitorioso e reabilitado desse feio enredo de quedas e delitos contra a Lei Incorruptível

do Todo-Poderoso!

Passando, assim, por todas as dependências e obtendo sempre, ora de Irmã Celestina, ora de Rosália, ou de um e outro chefe de gabinete, valiosas elucidações,

chegamos aos recintos reservados à Programação de Recapitulações, cuja finalidade foi razoavelmente descrita neste mesmo capitulo. Acrescentaremos apenas que, ao

ingressarmos no confortável edifício onde se estabelecia aquela seção, fomos colhidos por agradável surpresa: - eram senhoras, jovens algumas, mesmo moçoilas mal

saídas da infância; outras já em plena maturidade e até anciãs veneráveis, que compunham o corpo de funcionários! Ativas, lúcidas, perfeitamente capazes do alto

desempenho que lhes era confiado, consultavam as notas provindas dos gabinetes de Análises e as ordens do Templo e traçavam com sabedoria o esquema fecundo da existência

que cotiviria a cada pupilo da Colônia que àTerra voltasse em vestes carnais. Eram, porém, dirigidas por sábios iniciados e Guias missionários de cada um, aos quais

prestavam filial obediência. Conforme já foi assinalado, vimos que muitos dos próprios pretendentes colaboravam nesses mesmos mapas que constituiriam, nada mais,

nada menos, do que o extremo rosário de suas expiações, os dias de angústias que lhes arrancariam lágrimas escaldantes do oprimido coração; os testemunhos decisivos

que todo delinqüente sente necessidade de apresentar a si mesmo a fim de desagravar a consciência da desonra que a entenebrece, mormente um suicida, mais que qualquer

outro inconsolável diante do abismo por si mesmo criado.

Não me pude conter. Diante de um exemplar dos mesmos esquemas - verdadeiro compêndio de salvação que, a ser observado, faria do pecador o homem ideal, convertido

à sublime ciência do Dever -, perquiri, dirigindo-me a um dos ilustres técnicos que dirigiam o importante estabelecimento:

E todos nós, os suicidas, uma vez reencarnados, chegaremos a observar perfeitamente tal programação?. .

Sorriu o insigne psiquista, não encobrindo, no entanto, certa expressão melancólica, ao tempo que respondia:

"- Se tudo quanto aí fica, meu amigo, se deriva de uma causa, é evidente que a mesma causa deva ser corrigida a fim de que os respectivos efeitos se harmonizem

com a lei incorruptível que rege a Criação! Se há uma programação a ser observada, é que a Justiça Suprema pôde ditá-la, e, por isso, será observada a despeito de

quaisquer conveniências ou sacrifícios! A legislação que fundamenta os princípios desta instituição éa mesma que move o Universo Absoluto! Daí o serem as nossas

determinações concordes com a mais perfeita equanimidade, o que equivale dizer que não será possível o deixar de ser rigorosamente cumprida pelo penitente uma programação

destas, uma vez que, se ela existe, éporque o próprio paciente a originou com as causas que forneceu com seu mau proceder! Ela, pois, existe com ele! Está nele,

tomando parte na sua personalidade! E será preciso que a observe para libertar-se do cortejo de sombras que sua inobservância em sua alma projeta! Aliás, ele pode

observá-la, tendo para isso todas as possibilidades. Se nem sempre, porém, o faz, será porque se deixou novamente desviar da boa rota! Então, adquirirá novas responsabilidades,

e repetirá duas, três, quatro romagens planetárias para que possa pagar, até o último ceitil, os débitos que haja adquirido para com a Suprema Lei, segundo a advertência

do Mestre Insigne!..."

A essa altura despedimo-nos da amável cultivadora de flores, deixando a seção de Programação de Recapitulações para atingirmos a de Pesquisas.

Grande número de funcionários emprestavam ali eficiente colaboração, sob a direção de um chefe e vários subchefes, pois os serviços haviam de ser elaborados por

comissões compostas de duas a quatro personagens e um dirigente, os quais recebiam incumbência da preparação de possibilidades para a reencarnação de determinado

grupo de asilados.

Havia, porém, como não ignoramos, escassez de trabalhadores. Assim foi que encontramos, prestando valiosos concursos a mais esse Departamento, algumas personagens

nossas conhecidas de outras localidades, tais como o próprio Teócrito, dirigindo pequena caravana de investigações, cujas operações se desenvolveriam, como sabemos,

sobre a crosta terrestre, e composta de seus discípulos Romeu e Alceste; o Conde Ramiro de Guzman, chefiando outra comissão, da qual faziam parte os dois Canalejas;

Olivier de Guzman, o emérito educador da Torre, ao lado de Padre Anselmo; Irmão João, venerável no seu porte impressionante de oriental, e vários outros, eficientemente

prudentes e esclarecidos para o desempenho da alta missão conferida.

Reconhecíamos comovidamente a benevolência insofismável desses servos do Meigo Nazareno, os quais, a exemplo do Mestre que tanto amavam - que não desdenhara em

se apresentar à Terra trajando a configuração humana, por servir à instrução das criaturas confiadas pelo Pai Supremo à Sua Guarda -, diminuíam-se também, detinham

as próprias vibrações, materializavam-se, tomando-se densos e quase humanizados, no intuito de servirem à causa esposada por Aquele Mestre inesquecível e incomparável!

Admirava-nos o fato de merecermos da parte deles tão expressivas demonstrações de fraternidade, enquanto, enternecidas, nossas almas murmuravam ao nosso senso que

cumpriria correspondessemos a tão amorosas solicitações, dispondo-nos a atitudes passivas, dignas de tão nobres instrutores. Irmão Teócrito desviou-nos de tais cogitações,

encaminhando-se até nós e saudando-nos, após o que interrogou, sorrindo:

"- Segundo o que venho observando, meus amigos, tendes aproveitado bastante das instruções que vos têm sido ministradas... Estou informado do vosso interesse por

tudo, o que a mim causa excelente impressão, por prenunciar modificação compensadora em vossas resoluções e, necessariamente, em vossos destinos... Que deduzis do

quanto até agora observastes?..."

Foi Belarmino de Queiroz e Sousa quem se fez portador da opinião geral:

"- Deduzimos, eminentíssimo irmão - disse com veemência -, que, se nos fora dado conhecer estas coisas quando homens, seria mais que provável termos evitado o suicídio,

conduzindo-nos por sistemas opostos aos que nos perderam!... Quanto ao que a mim particularmente concerne, entendo que serei forte para as conseqüências que terei

de arrostar destino em fora... até cobrir os déficits que me enxovalham a consciência! Oh! caro Irmão Teócrito! Conquanto sofra, sinto-me agora um outro homem...

ou seja, um outro Espírito! Acenderam-se em meu ser fachos de esperanças inapagáveis, que me fortalecem e reanimam poderosamente, induzindo-me a partir em busca

do futuro, seja qual for! Saber positivamente que Existo, que Sois, que Serei, convencendo-me de que nem um só dos meus afetos mais santos, de minhas aspirações,

meus ideais, assim como dos esforços empregados para o enriquecimento de meus cabedais intelectuais e morais se perderão jamais, triturados nas crenas execráveis

da morte, por mim julgada outrora o ponto final de tudo quanto existe; certo de que a Eternidade é a minha sublime herança, à qual me assistem direitos legítimos,

pela filiação divina de que, como Espírito, descendo; e, por isso, também capacitado de que deverei alcançar a sucessão dos evos progredindo incessantemente, enriquecendo

minhas faculdades com atributos que me levarão a atingir honrosamente planos magníficos da Espiritualidade, com a conquista de mim mesmo para a realização do ideal

divino, é para mim felicidade arrebatadora, que fará escurecer sacrifícios e lágrimas, domar fadigas, arrostar todas as conseqüências delituosas do passado, para

só me ocupar da conquista do futuro, ainda que tenha de galgar calvários dolorosos, excruciantes! Jamais, como homem, concebi possibilidades de tornar-me herói de

tão sublime epopéia! Estou disposto a lutar, Irmão Teócrito! A lutar e so frer, para aprender, realizar e vencer! Sei o que me aguarda no embater das existências

que se sucederão no meu trajeto! Sei que de horas amargas hão de sacudir-me as potências da alma, nos séculos que se dobarão no carreiro de minha jornada evolutiva.

Mas não importa! Não importa! Eu sou imortal! E se um Deus Todo-Poderoso me destinou à Eternidade, será para a realização de um ideal sublime, cuja verdadeira perfeição

escapa às minhas concepções ainda bisonhas de precito de uma Colônia Correcional; não, porém, para errar e sofrer sempre, porqüanto o Criador Onipotente não se limitaria

a deixar à sua descendência tão parece recursos de ação!... Oh, venerável Teócrito! Sinto-me inferiorizado ainda! Ainda não me despojei sequer dos bacilos que corroeram

minha última organização animal, por mim destruída antes que o vírus da tuberculose terrível a apodrecesse de vez, enervado que fiquei ao vê-la nauseabunda e detestável!

Sei que terei de voltar à Terra muito brevemente, pobre, órfão, tuberculoso ainda, tolhido por decepções diárias, precito a quem não acalentará o calor de uma só

ilusão! Sei disso! Mas estou disposto a tudo levar de vencida! Regozijo-me até, com a severidade dessa Justiça Soberana, porque a lógica irrefragável que a proclama

revela-a também oriunda de uma sabedoria que impõe com a força do Direito! E curvo-me, então, resignado e respeitoso!. .

Teócrito sorriu. Passou, complacentemente, a destra sobre o ombro do interlocutor e observou, paternalmente

Tens o verbo inflamado e luzido, meu caro Belarmino!... e, enquanto falavas, estive a pensar em como seriam belos os discursos que proferias em tuas aulas clássicas

de Dialética!... Que perseveres em tão formosas quanto edificantes resoluções- são os meus mais sinceros votos... pois que, assim sendo, os caminhos do progresso

que serás compelido a realizar serão aplainados e fáceis de vencer!... Todavia, não te deixes arrebatar demasiadamente pelo esplendor do panorama divino da Vida

que, a muitos outros, antes de ti, ofuscou... A evolução do Espírito para a Luz é bela e grandiosa, não resta dúvida. A vida do homem, na sua incessante escalada

para o melhor até ao divino, é gloriosa epopéia que honra aquele que a vive! Mas o trajeto é duro, meu amigo! Os espinhos e as urzes semeiam essas estradas redentoras,

exigindo do peregrino da Luz as mais ativas energias, os mais edificantes sacrifícios! Reconheço-te sincero, idealista animado de dignificante boa-vontade, e isso

muito me satisfaz! Contudo, o entusiasmo por si só não levará ninguém à vitória real, senão à aventura duvidosa! Pondera na necessidade de te aprestares com armas

morais sólidas, para a travessia tumultuosa a que te obrigarás a fim de conquistares o primeiro degrau dessa imensa espiral evolutiva do teu destino, e o qual há

de ser, simplesmente, a próxima existência que tomarás na arena terrestre... Vieste de uma encarnação em que foste primogênito de família conceituada, no seio da

qual não te faltaram atenções e respeito! Foste indivíduo culto, vivendo facilmente entre gozos e confortos vários, emprestados pelo ouro e pelas solicitudes insofismáveis

de uma mãe terna e dedicada... Apesar de tudo isso, faliste, não suportando sequer as aflições de uma enfermidade física, patrimônio comum de toda a Humanidade!

Pensa, agora, meu caro Belarmino, no que será a tua vida, sendo tu, como desejas, órfão, pobre, doente, baldo de consolações e esperanças, perseguido por adversidade

irremovível!... Será também uma epopéia, não pequena e nem despida de sublime grandeza, a ser vivida e vencida - pois tu queres vencer! - porque será um calvário

de redenção que deverás palmilhar com resignação e dignidade, jamais entre revoltas e ultrajes à Providência, porqüanto isso empalideceria a vitória, se não a anulasse!...

Será necessário algo mais do que o entusiasmo, Belarmino, muito mais!... e convém que te prepares antes da peleja iniciada.. ."

Mário Sobral aproximou-se, intranqüilo como sempre:

"- Dignai-vos atender-me um instante, Irmão Teócrito?. .

"- Aqui me tens, filho! Dize tudo, confiante..."

"- É que... desejo tomar uma resolução... tomei-a já... mas preciso ser auxiliado... sinto-me um tanto desorientado..."

"- Bem sei, Mário, continua..." - tornou enternecido o diretor do Hospital Maria de Nazaré.

"- Irmão Teócrito! Quem é o responsável direto por mim, nesta Colônia Correcional em que me vejo internado?...

"- Sou eu, Mário!...

"- Ainda bem! Espero, assim, encontrar facilidades para os projetos que me empolgam... Senhor... Irmão... Por quem sois, apiedai-vos de mim, não posso mais!

Providenciai meu retorno à sociedade terrena, quero ser homem outra vez! Quero desafrontar-me dos ultrajes por mim mesmo levados a efeito no seio de minha família!...

à minha mãe, Deus do Céu, a quem cobri de desgostos, desde o berço até o túmulo, à minha esposa, a quem atraiçoei e abandonei às vicissitudes diárias! A meus filhos,

os quais rejeitei e esqueci... e a Eulina... Quero forrar-me da obsessão exercida em minhas recordações pelo remorso do crime cometido contra aquela pobre mulher!

Preciso esquecer, Irmão Teócrito, oh! acima de tudo, esquecer, a fim de lograr tréguas, serenidade, para desenvolver ações apaziguadoras, capazes de amansarem as

angústias que me aferventam a consciência! Tudo quero tentar, a fim de que eu também progrida - já que a Lei é progresso incessante para toda a Criação, conforme

as instruções que aqui recebemos. Quero expiar e reparar!

A imagem humilhada e frágil de Eulina, indefesa sob minha brutalidade, debatendo-se na agonia malvada do estrangulamento entre minhas mãos, absorve minhas faculdades,

anulando ensejos para quaisquer outras ponderações, obsidiando-me as idéias, enlouquecendo as fibras mais íntimas do meu ser! E eu preciso afastar da mente esse

quadro satânico a fim de poder sentir o perdão do Céu orvalhar de esperanças a minha consciência inconsolável! Quero sofrer, Irmão Teócrito! A trágica tormenta do

Vale Sinistro não bastou! Não foi por Eulina que ali me debati, mas por mim mesmo, seguindo os escalões dissonantes do meu ato de suicídio! Prometi, de joelhos,

à sombra dolorosa de Eulina agonizante, ser outra vez homem, arrastar uma existência, do berço à velhice e ao túmulo, destituído das mãos que a estrangularam!...

Eu mesmo me darei tal punição, como testemunho do meu sincero arrependimento! Não é o Senhor Deus que ma impõe! Não é a Lei que ma exige: sou eu que, voluntariamente,

suplico ao Pai Todo-Misericórdia que ma conceda como supremo reconforto à minha desventura de trânsfuga da Sua Lei de Amor ao Próximo, como supremo ensejo de reabilitação

em meu próprio conceito, já que a morte é quimera a iludir os incautos que se arrojam pelas brenhas do suicídio! Sim! Passarei sem as mãos que serviram para assassinar

uma pobre mulher indefesa! Que se volte contra mim o crime cometido contra Eulina! E que eu me veja tão indefeso, destituído das mãos, como Eulina destituída de

forças, naquela noite abominável, acometida de surpresa ante minha ferocidade! Creio, Irmão Teócrito, que somente assim obterei alívio para, depois, encarar de frente

os demais débitos a serem saldados, com a ajuda paternal de meu Deus e meu Criador!. .

O antigo boêmio de Lisboa discorria desfeito em prantos, ao passo que nosso digno tutor espiritual, enternecido, obtemperou gravemente:

"- Já refletiste maduramente na extensão das responsabilidades que arrostarás com semelhante reencarnação, meu pobre Mário?..."

"- Já, Irmão Teócrito !"

"- Sim! Reconheço-te sincero e forte para o resgate, plenamente arrependido do passado culposo! Realmente, esse será o recurso aconselhável para o teu caso,

medida drástica que te moverá com muito menor morosidade à reabilitação honrosa que de ti exige a consciência! Pondera, no entanto, que foste também suicida e, por

isso, necessariamente, as condições precárias em que se encontra tua presente organização, teu envoltório fluídico, modelador que será da tua futura estruturação

carnal, levar-te-á a receberes, com o renascimento, um corpo enfermo, debilitado por achaques irreparáveis no plano objetivo ou terreno..."

"- Eu o desejo, Irmão Teócrito!... Tudo, tudo ser-me-á preferível ao suplício deste remorso que me man tém agrilhoado ao inferno que se alastrou por minhalma!...

Ao menos, como homem, quando tudo me faltar, para só as desgraças me flagelarem, terei um consolo, o qual a Misericórdia do Todo Generoso Pai concederá como esmola

suprema à minha irremediável situação:

o Esquecimento!..."

Condoído, o belo iniciado prometeu interessar-se imediatamente pela sua pretensão, acrescentando paternal-mente:

"- No momento que se concluam as instruções que vos temos propiciado, visita-me, no meu Departamento, Mário, a fim de estabelecermos entendimentos para os preparativos

de tão melindrosas relações..."

Em seguida convidou-nos a tomar parte na comitiva que sob seus cuidados buscaria pesquisar meios para a reencarnação, já ordenada e programada, de alguns pupilos

seus, os quais se submeteriam, assim, à terapêutica por excelência, ainda sob sua vigilância, muito embora vários deles já se não encontrassem dependentes do Hospital

Maria de Nazaré. Iríamos, no entanto, como simples observadores, visto nossas condições não permitirem colaboração de qualquer natureza.

Já de posse das instruções necessárias e pronto para encetar a espinhosa missão, o abnegado paladino de Maria voltou-se para nós outros, exclamando:

"- Temos ainda muito tempo, pois os serviços que me estão afetos somente serão realizáveis pela calada da noite. Ide repousar, meus caros amigos, até que vos

mande buscar a fim de seguirmos para o local indicado, uma vez que só pela alta madrugada estaremos de volta..

Roberto e Carlos de Canalejas aproximavam-se, no intuito de reconduzir-nos ao Pavilhão onde residíamos. Rosália despedira-se, prometendo reencontrar-nos no mesmo

local, já no dia imediato, para o prosseguimento das recomendações do nosso muito querido tutor, Irmão Teócrito.

6

"A cada um segundo suas obras"

"Digo-vos, em verdade, que dali não saireis, enquanto não houverdes pago o Último ceitil."

JESUS CRISTO - O Novo Testamento. (18)

Foi com emoção que, cerca de zero hora, deixamos o Pavilhão Indiano atendendo ao chamamento do nosso paternal amigo, por intermédio dos dois Canalejas.

Até então não saíramos jamais à noite. A disciplina rigorosa das mansões hospitalares, verdadeiro método correcional, impunha-nos o dever de nos recolhermos às

seis da tarde, não sendo permitido jamais a um interno a permanência fora dos muros do seu albergue depois dessa hora. Somente o diretor do Departamento poderia

ordenar uma exceção, e muito raramente era que o fazia, e unicamente para fins de instrução.

Os locais por onde transitaríamos até ao bairro da Vigilância, assim como os demais núcleos e Departamentos, não se encontravam, no entanto, em trevas, mas aclarados

por um sistema de iluminação a que nenhuma outra concepção congênere pudéssemos comparar. Não compreendíamos qual a natureza dessa luz que se estendia através das

alamedas imensas contornadas de arvoredos recobertos de neblinas. Mais tarde, no entanto, chegamos à dedução de que seria a própria eletricidade condicionada de

modo favorável ao ambiente astral. O

(18) Mateus, capítulo 5, versículos 25 e 26.

que era certo é que esse fulgor, não obstante sóbrio, discreto, irisava-se ao sereno produzindo efeitos cristalinos muito apreciáveis, mesmo belos, sobre a estruturação

nívea local.

Aguardava-nos um veículo dos que comumente usavam os internos para giros locais. Ao chegarmos todavia à sede da Vigilância, vimos que enorme caravana se dispunha

a partir, enquanto milicianos e lanceiros a integravam, zelando pela tranqüilidade geral.

Durante algum tempo sentimo-los deslizar suave-mente, sem que adviesse qualquer incômodo. E tanta a naturalidade que de forma alguma daríamos conta da verdadeira

natureza do meio de tração.

Subitamente estacou o veículo, enquanto, atencioso, um vigilante nos convidava a descer, o que fizemos, curiosos e satisfeitos.

Encontrávamo-nos em vasto pátio cercado de possantes muralhas, o qual, apesar do adiantado da hora, apresentava grande movimentação de transeuntes, desencarnados

e até de encarnados, conquanto se apresentassem estes apenas com suas configurações astrais, enquanto os corpos materiais jaziam descansados em seus leitos, entregues

a sono reparador. Ao fundo, o edifício, imenso, fartamente iluminado, todo branco e lucilante à claridade de possante lampadário, afigurou-se-nos hotel ou repartição

pública destinada a expedientes noturnos. Na verdade tratava-se apenas de um apêndice da Colônia, aldeamento necessário à variedade de serviços afetos àquela nobre

instituição, posto de emergência móvel de que falara o chefe de nosso Departamento, e o qual não nos era totalmente estranho por dele ouvirmos referências no caso

de Margaridinha Silveira. Milicianos da Legião postavam-se de sentinela nos portões de entrada, ainda contornando a vigilância pelos arredores.

Cada grupo de caravaneiros possuía nesse edifício dependências particulares, onde estabeleciam gabinetes de trabalho. Em chegando ao local reservado a Teócrito,

observamos resumirem-se tais dependências em um gabinete de trabalho com aparelhamentos variados, já conhecidos da Colônia, e um palratório secreto. Teócrito reuniu

Romeu e Alceste e, enquanto nos fazia sentar nas confortáveis poltronas que guarneciam a antecâmara, entregou-lhes dois endereços diferentes, observando:

"- Há cerca de duas horas que estas damas, cujos endereços vos confio, conciliaram sono reparador. Trazei-mas aqui, depois de prevenir-lhes o corpo físico com

reservas magnéticas... Porfiai por trazerdes com elas seus respectivos esposos ou companheiros... Todavia, não é indispensável esta última recomendação. .

Forneceu-lhes auxiliares retirados da guarnição do próprio Posto e milicianos para as garantias necessárias, despedindo-os com animadoras palavras. Em seguida,

voltou-se para nós e, sentando-se ao nosso lado, iniciou conosco animada palestra.

Sentíamo-nos grandemente satisfeitos. A presença dessa atraente personagem, cujas atitudes democráticas tanto nos desvaneciam, infundia em nosso imo tão suaves

e benévolas impressões, que nos confessávamos revivescidos e encantados. Natural timidez, no entanto, inibia-nos dirigir-lhe a palavra antes de sermos interpelados.

Ele, porém, lendo em nossos pensamentos as ânsias que flutuavam, não se fez esperar, vindo ao nosso encontro com esclarecimentos utilíssimos, bondoso e sorridente:

Bem sei - disse ele - a interrogação que desde hoje à tarde vos excita a curiosidade, louvável curiosidade no caso vertente, porqüanto vejo irradiar de vossas

cogitações o desejo nobre de aprender. Enquanto esperamos o regresso dos meus caros discípulos em missão, aproveitaremos o ensejo para pequenas observações. Estou

ao vosso dispor, interrogai-me."

Foi Mário, como sempre, que se atreveu, pois, como sabemos, agitava-se todas as vezes que ouvia referências à Terra e aos renascimentos em seus proscênios:

"- Poderíamos saber, caro mestre, o que foram fazer à Terra os vossos discípulos?..."

"- Sim, meu amigo! Nem eu aqui vos traria senão para proporcionar-vos algumas observações em torno dos nossos trabalhos de pesquisas. Romeu e Alceste foram à ilha

de S. Miguel e a um lugarejo do Nordeste brasileiro - locais onde a penúria do infortúnio atinge proporções inconcebíveis aos felizes habitantes dos centroS civilizados

- à procura de duas irmãs nossas cujos nomes estão registrados em nossos arquivos como grandes delinqüentes do pretérito, as quais, no momento, procuram erguer-se

moralmente, através de existência de severos testemunhos de arrependimentO, resignação, humildade, paciência... Meus discípulos atrairão seus Espíritos para aqui,

uma vez que seus envoltórios materiais estão mergulhados em sono profundo e reparador, graças ao adiantado da hora. Aqui, entraremos em entendimentos sobre a possibilidade

de se tornarem mães de dois pobres internos do Manicômio, cujo único recurso a tentar, no momento, a fim de se aliviarem, será a reencarnação em círculo familiar

obscuro e sofredor, pois só aí conseguirão libertar-se das deprimentes sombras de que se contaminaram..

"- Pelo que vimos observando, esses infelizes renascerão em condições assaz embaraçosas?..." - interveio Belarmino, impressionado.

"- Realmente, irmão Belarmino! - continuou. -Encontram-Se em situação tão desfavorável que, antes das experiências mesmas, que deverão repetir, uma vez que a elas

se furtaram com o suicídio consciente e perfeitamente responsável, só poderão animar envoltório carnal enfermiço, meio deturpado, onde se sentirão tolhidos e insatisfeitos

através da existência toda! Assim, de posse de tal envoltório - com o qual se afinaram pelas ações que praticaram -, cumprirão o tempo que lhes restava de permanência

na Terra, interrompida, antes do tempo justo, pelo suicídio. Dessa forma se aliviarão dos embaraços vibratórios que se criaram, e obterão capacidade e serenidade

para repetir a experiência em que fracassaram... mas isto implicará uma segunda etapa terrena, ou seja, nova reencarnação, como será fácil depreender... Temos já

consultado várias damas, em outras localidades análogas, se se prestariam, de boamente, à caridade de aceitarem filhos doentes, por amor ao Bem e respeito aos sublimes

preceitos da Fraternidade Universal. Infelizmente, porém, nenhuma delas possuía princípios de moral bastante elevados a fim de aquiescer em serviço à Causa Divina

com abnegação, voluntariamente! A volta ao mundo das expiações, daqueles sofredores, em vista disso, sofria delongas, quando urgia proporcionar-lhes alivio por esse

meio supremo! Então, a direção-geral do Instituto enviou-nos dados sobre as duas senhoras já mencionadas, capazes ambas de enfrentarem a espinhosa missão por devedoras

de grandes reparações às Leis da Criação!..."

"- Suponhamos, Irmão Teócrito, que se recusem ?..." - alvitrei, fiel ao azedo pessimismo que me não deixara ainda.

Não será provável, meu caro Camilo, uma vez

que se trata de duas almas bastante arrependidas de um mau passado, e que, atualmente, humildes, ignoradas, só desejam a reabilitação pelo sacrifício e a abnegação!

Estou incumbido de convencê-las a aceitarem de boamente a melindrosa e heróica tarefa. Todavia, se se recusarem, a Divina Providência encarnada na Lei que rege o

plano das Causas estará no direito de impor-lhes o mandato como provação nos serviços de reparação dos maus feitos passados, pois ambas são Espíritos que, em antecedentes

existências planetárias, erraram como mães, furtando-se, criminosamente, às sublimes funções da Maternidade, sacrificando, nas próprias entranhas, os envoltórios

carnais em preparo para Espíritos que delas deveriam renascer, alguns em missão brilhante, e descurando-se, lamentavelmente, dos cuidados e zelos aos filhos que

a mesma Providência lhes confiara de outras vezes... Agora, imersas nas trevas dos crimes que cometeram contra a Divina Legislação, por menosprezarem a Natureza,

a Moral, o Matrimônio, os direitos alheios e a si mesmas, encarceradas, uma na solidão de uma ilha de onde jamais poderá escapar-se, outra na aspereza de um sertão

inclemente, ao em vez de filhos missionários, inteligentes, considerados nobres e dignos no plano Astral, e, por isso mesmo, úteis e benquistos - que o seriam forçosamente

na sociedade terrena - terão de expiar os infanticídios passados, debruçando-se sobre miseráveis berços onde gemerão, rangendo os dentes, outros Espíritos, agora

culposos, reputados grandes condenados no plano espiritual, transformados pelo renascimento expiatório em monstrengos repulsivos, aos quais deverão dedicar-se como

verdadeiras mães: amorosas, pacientes, resignadas, prontas para o sacrifício em defesa do fruto de suas entranhas, por mais desarmonioso que seja!..."

Após penoso silêncio, em que todos nós, raciocinando angustiosamente, nos perdíamos em conjecturas confusas, adveio ainda Belarmino, justificando o antigo renome

de professor de dialética:

"- Dizei, Irmão Teócrito: obriga-nos a Lei a reencarnarmos entre estranhos ?... como filhos de pais cujos Espíritos nos sejam completamente desconhecidos?...

Pensamos que semelhante corretivo será sumamente doloroso!. .

"- Sim, é doloroso, não resta a menor dúvida, meu amigo! Mas nem por isso deixará de ser justo e sábio o acontecimento! Geralmente, tal acontece não só a suicidas,

como também àqueles que faliram no seio da família, levando, de qualquer forma, o desgosto aos corações que os amavam! O suicida, porém, desrespeitando o seio da

própria família ao infligir-lhe o áspero desgosto do seu gesto, ultrajando, com o menosprezo de que deu prova, o santuário do Lar que o amava, ou incapacitando-se

para a conquista de um novo lar afim, colocou-se, de qualquer forma, na penosa necessidade de reeditar a própria existência corpórea fora do circulo familiar que

lhe era grato. Existem casos, não obstante, em que poderá voltar em ambiente afetuoso, se possuir afeições remotas que se encontrem novamente presentes às experiências

terrestres, na época em que haja de reencarnar, se estas consentirem em recebê-lo para ajudá-lo na expiação... De qualquer forma, porém, renascerá em círculo favorável

ao gênero de provação que deverá testemunhar. Casos outros não raramente se verificam, são os mais dolorosos, em que terão de reiniciar o aprendizado carnal, a que

se furtaram, entre Espíritos inimigos, o que será muito pior do que se o fizer entre estranhos, simplesmente... Acresce a circunstância de que todas as criaturas

são irmãs pela sua origem espiritual e que há mister de que tais coisas se verifiquem sob a sublime lei de Amor que deve atrair e unir, indissoluvelmente, todos

os filhos do mesmo Criador e Pai!..."

Entrementes, davam entrada no singular gabinete dois infelizes asilados do Manicômio, amparados por auxiliares de Irmão João. Passaram tristemente, parecendo

alheios a tudo que os cercava, o olhar vago e indeciso, tardos os passos, expressões de angústias indefiníveis! Conduzidos ao palratório, foram ali introduzidos

por Teócrito, desaparecendo de nossas vistas. Escoaram-se alguns minutos, Os assistentes de Irmão João aguardavam novas ordens na própria sala onde nos encontrávamos,

conservando respeitosa atitude. Não nos atrevíamos a emitir sequer um monossílabo. O silêncio dominava o vasto ambiente do Posto singular e vago temor inibia-nos

prosseguir na conversação.

De súbito, movimentou-se o exterior como se algo de muito importante se passasse... e Romeu e Alceste, e Carlos e Roberto, com alguns mais auxiliares, entraram

no salão conduzindo duas senhoras, duas mulheres de humílinia condição social, ladeadas por lanceiros, quais prisioneiras de grande responsabilidade!

Curiosos, examinamo-las. Uma, franzina, delicada, parecendo enfermiça e frágil, aloirada, refletindo em seu físico-astral os trajes a que se habituara na existência

objetiva diária, era portuguesa e não contaria senão dezoito primaveras, tudo indicando tratar-se de uma recém-casada. O marido acompanhava-a, humilde, respeitoso:

era um pescador! A outra, atrigueirada, vivaz, espantadiça e nervosa, revelava-se imediatamente como sendo a brasileira, fazendo lembrar o tipo clássico egípcio,

com os cabelos negros e lisos esparsos nas espáduas, bem pronunciadas as maçãs do rosto, a expressão enigmática nos belos olhos cavados e luzentes, onde as lágrimas

pareciam assinalar incoerentes amarguras! Encontrava-se só. Não era casada! O ludíbrio de um sedutor abandonara-a à mercê dos acontecimentos oriundos de um amor

infeliz, mal conduzido e profanado pela traição masculina - muma sociedade que não perdoa à mu lher o deixar-se enganar pelo homem em quem depositou confiança! -

soubemo-lo mais tarde, penalizados!

Os três eram como que protegidos por tenuíssimo envoltório que se diria de cristal, cuja forma correspondia exatamente à da silhueta que traziam, e deles se desprendia

estreita faixa luminosa, estendendo-se, alongando-se como se estivesse atada ao tronco de prisão invencível! (19)

Teócrito acolheu-os bondosamente, e, tratando-OS com imensa ternura, fê-los penetrar os gabinetes do palratório, onde já se encontravam os pupilos de Irmão João.

Em seguida nos surpreendemos com a presença do próprio Irmão João, que se aproximara, sorridente. Levantamo-nos respeitosos e emocionados à sua passagem, dele recebendo

cordial cumprimento. Penetrou, com Teócrito, no palratório... e o silêncio caiu novamente no salão.

Conquanto ali nos encontrássemos para instrução, não assistimos ao que se passou em secreto entre os obreiros de Jesus e os delinqüentes necessitados de redenção.

Hoje, porém, traçando o esboço destas memórias - trinta anos depois destas cenas se passarem -poderei esclarecer o leitor quanto ao dramático episódio desenrolado

naquele augusto recinto que então nos era vedado, pois, nesse longo espaço de tempo, sólido conhecimento adquirimos que a tanto nos autorizam.

Teócrito e João procuravam entrar em entendimentos com o casal português e com a brasileira nordestina sobre a vantagem do renascimento, por seu intermédio, daqueles

míseros infratores da Soberana Lei, necessitados da existência corporal terrena para se aliviarem dos insuportáveis sofrimentos por que vinham passando! Os acontecimentos

foram explicados com minudências a to

(19 Trata-se do revestimento de fluidos vitais próprios de todos os Seres vivos e do cordão fluídico que une o Espírito ao corpo material, durante a encarnação,

respectivamente.

dos três, enquanto os pretendentes à qualidade de filhos lhes eram apresentados em toda a dramática veracidade das circunstâncias em que se debatiam. Os pacientes

paladinos da Fraternidade agiam como eméritos causídicos, que eram, da Suprema Legislação, expondo com eficiência e nobreza de vistas o sublime alcance da medida

que aconselhavam. Os indicados para a grandiosa missão de caridade, isto é, de receberem o sagrado depósito dos filhos de Deus que necessitavam fazerem-se filhos

do homem a fim de se reabilitarem do pecado, resistiam, porém, esquivando-se ao impressionante convite:

__ Oh, não, não! - diria o humilde casal de portugueses. - Não desejamos filhos doentes, aleijados ou débeis mentais! Casamo-nos há apenas um mes!... e nosso

sonho mais querido é que o bom Deus nos conceda para o primogênito a alminha de um querubim rosado e sadio! Queremos filhos, oh, sim! mas que sejam fortes e alegrinhos...

e que nos sirvam de arrimo precioso na velhice!...

E diria a brasileira, debatendo-se, envergonhada, diante de uma entidade como Teócrito, que conhecia seus mais secretos pensamentos, revelando-se senhor de todas

as ações por ela praticadas:

"- Não, meu senhor, não posso ser mãe, prefiro antes a morte! Como arrastarei tal vergonha diante de meus pais, de meus vizinhos, de minhas caras amiguinhas!...

Seria por todos, certamente, menosprezada... e até mesmo por "ele", bem o sei! Um filho paralítico!... Deus do Céu, como criá-lo e suportá-lo?..."

Intervinha, porém, Teócrito, secundado por Irmão João, lógico e grave, digno defensor da Causa Redentora, cujo chefe expirou nos braços de uma cruz mostrando

aos homens o roteiro sublime da abnegação:

"- Se, como mulher, erraste, negligenciando quanto ao dispositivo sexto da Lei Suprema, que impõe à donzela o respeitoso dever da castidade até o advento sacrossanto

do Matrimônio, carecerás, forçosamente, da reabilitação pela abnegação do sacrifício, observando com fidelidade dispositivos outros da mesma Lei, capazes,

pela largueza de expressão, de cobrir a infração do primeiro! O ensejo aí está, naturalmente advindo dos teus próprios atos! Se, necessariamente, serás mãe,

visto que a maternidade é uma função natural da mulher fecundada para o divino serviço da reprodução da espécie humana, que aceites para animar a argila que se reproduzirá

de ti um pobre Espírito delinqüente, como tu, e também necessitado de reabilitação! Ajudando-o a erguer-se do báratro onde se arrojou, operarás a tua própria redenção,

e afianço-te, minha filha, em nome do Divino Messias, que, cumprindo os teus deveres de mãe, enquanto os homens te cobrirem de opróbrio e humilhações, castigando-te

pelo teu erro, o Céu te reanimará a fim de que resistas a todos os embates e venças a provação, glorificando-te espiritualmente pelo heroísmo que testemunhares como

mãe de um miserável enfermo, de um pobre suicida do passado, carente de alguém caridoso bastante para amá-lo e protegê-lo apesar da sua desgraça, e que, servindo

aos misericordiosos desígnios do Senhor, por ele vele, conduzindo-o nas expiações de nova permanência na carne! Debruçada sobre o berço pobre e humilhado do teu

filho menosprezado por todos, mas não por ti nem pela Divina Providência, sorrindo com amor ao pequenino paralítico que te buscará com os olhos tristes cheios de

confiança, reconhecendo tua voz entre mil e aquietando-se aos teus murmúrios afetuosos, terás encontrado, minha filha, a linfa generosa que lavará a mácula desonrosa

de que te contaminaste..."

Recalcitravam, entretanto, os interlocutores. Mas Teócrito e João continuavam a exposição das vantagens de tal desprendimento, dos méritos que conquistariam

perante a Lei Suprema, da assistência celestial de que se tornariam credores, da palma honrosa que receberiam, futuramente, da Legião patrocinada por Maria, como

prêmio supremo ao gesto de caridade para com aqueles seus pobres tutelados!

Enquanto se verificavam tais demarches, estes, presentes à grave confabulação, entrevendo dificultosamente o que se passava, sentiam-se uingularmente atraidos

para as duas senhoras, afinando-se com o tônus vibra tório emitido por suas emanações mentais e sentimentais, podendo-se mesmo asseverar que a atração magnética,

indispensável ao fenômeno de incorporação através do nascimento, desde aquele momento principiara a receber o impulso divino que a deveria consolidar! Porém, porque

chorosas e irresignadas as três personagens humanas não se animassem a estabelecer o acordo definitivo, os dois incansáveis instrutores, requisitando a colaboração

de Romeu e Alceste, decidiram-se a uma medida vigorosa, capaz de encaminhá-las de boamente a razoável assentimento.

Sob a ação da vontade dos dois abnegados obreiros da Fraternidade, passaram as duas mulheres e mais o varão a rever os panoramas das próprias existências pretéritas

vividas sobre a Terra e arquivadas nas camadas incorruptíveis do organismo perispiritual: as ações inconfessáveis praticadas contra a Soberana Legislação, em prejuízo

do próximo e de si mesmos, portanto; os crimes nefastos, cujas conseqüências estavam a exigir séculos de reparações e reajustamento, por entre as lágrimas de mil

dores decepcionantes!

O casal de portugueses reviu-se como abastados fidalgos emigrados para o Brasil, a extorquirem de braços escravos o bem-estar de que se ufanavam, levando ao desespero

míseros africanos que vergavam, doentes e exaustos, sob a rudeza de labores excessivos, maltratados, cada dia por novas disposições arbitrárias e impiedosas! A infeliz

nordestina, por sua vez, reconheceu-se como dama orgulhosa da própria formosura, que o fora em antecedente existência planetária, irreverente e vaidosa, profanando

os deveres conjugais com o desrespeito aos juramentos consagrados no altar do Matrimônio, recusando-se, ao demais, ao tributo às leis sublimes da Natureza, que dela

exigiam o desempenho da Maternidade, recusa que a levara até mesmo ao infanticídio!

Desfile sinistro de faltas abomináveis, de erros calamitosos, de ações irreverentes e infaustas emergirem dos escrínios conscienciais daqueles infortunados, que

haviam reencarnado desejosos dos testemunhos de reabilitação, os quais, agora, como acréscimo de misericór dia concedida pelo Todo-Generoso, recebiam o dadivoso

convite para ajudarem a própria causa praticando a excelente ação de se prestarem aos serviços de paternidade terrena a outros delinqüentes, como eles, carecedores

de evolução e progresso moral! E tal foi a intensidade das cenas revividas, que gritos lancinantes eram ouvidos do salão onde nos encontrávamos, o que vivamente

nos emocionava e surpreendia.

Ao fim de algum tempo tornou o silêncio a dominar. Reabriram-se as portas dos gabinetes secretos, dando passagem a quantos ali se achavam. Tristonha, mas resignada,

pronta para cumprir sua generosa missão, a portuguesa caminhava ao lado do esposo, que compartilhava da sua conformidade com o inevitável, enquanto a brasileira,

desfeita em lágrimas ardentes, se via reconduzida sob a ajuda fraterna do velho de Canalejas e de seu inseparável filho Roberto.

No dia imediato, era já adiantada a hora em que nos vieram buscar para o prosseguimento da visita-instrução que nos cumpria levar a efeito antes de nos desligarmos

da tutela do Departamento Hospitalar.

Reconduzidos ao edifício central do Departamento a ser visitado, ali encontramos Rosália, tal como fora por ela mesma prometido, e que, solícita, nos aguardava.

"- Faremos hoje a nossa derradeira excursão -esclareceu. - Irmão Teócrito deseja conduzir-vos à Terra, onde cuhninareis o giro instrutivo que vindes experimentando.

Como tendes já idéia do que seja. um trabalho de "Pesquisas" para se firmar o meio ambiente favorável às condições em que deverá um de vós encarnar, levar-vos-ei

à Seção de Planejamento de Corpos Físicos.

Não ignorais, meus amigos, que antes de que a reencarnação de um de vós esteja definitivamente estabelecida, foi estudado não só o meio ambiente como até o estado

fisiológico dos futuros pais, isto é, sua saúde, as questões de hereditariedade física, etc., etc., mormente se o Espírito culpado é passível de sofrer defor mações

físicas, doenças graves e incuráveis, etc. Somente depois de tudo isso esclarecido, esboçar-se-ão os planos para os futuros corpos, os quais, absolutamente, não

serão construídos à revelia do Espírito reencarnante e tampouco dos cientistas, prepostos do Senhor para o notável empreendimento que deverão fiscalizar.

"- Sede bem-vindos a esta casa, meus amigos! -exclamou a dama que nos recebera, e a quem fomos apresentados por nossa gentil acompanhante. - Entrai confiantemente...

Irmã Rosália vos acompanhará..

Em seguida, conduziu-nos a uma sala de grandiosas proporções, rodeada de portas cujas arcadas de fino lavor artístico deixavam-se velar por extensos reposteiros

lucilantes e flexíveis como a melhor seda.

Penetramos o interior por uma daquelas passagens, e logo se nos apresentou um iniciado risonho e simpático.

Surpreendidos, verificamos haver ingressado em recinto que se afigurava à nossa apreciação como legítimo cenáculo de Arte, recanto sedutor, se assim nos podemos

referir a um atelier de artistas eméritos, onde mestres das artes plásticas exerciam sublimes encargos, cônscios das responsabilidades de que os investia a ação

da Divina Providência.

Várias salas se sucediam em bonita perspectiva circular, todas deixando passagem umas para as outras em sentido reto e através de arcadas magníficas, traçadas

por bem inspirados engenheiros da mais pura arquitetura hindu, e cada uma comunicando-se para o exterior com uma entrada independente, como vimos na antecâmara guardada

pelo vigilante.

Na primeira dependência dessa admirável fileira de salas circulares destacamos obreiros curvados sobre páginas de apontamentos e documentações importantes para

os serviços a se realizarem, provindos de outras seções como a de Análise e a de Pesquisas, bem assim do Templo, e relativos aos vários pretendentes ao ingresso

no mundo objetivo ou material.

Era uma longa fila de bancas de estudo e trabalho, disposta à feição da sala, isto é, em semicírculo, sob a impressionante claridade azul-dourada que descia de ma

jestosas cúpulas, lembrando velhas catedrais. Das janelas, sugestivos primores de arquitetura, destacava-se o panorama vasto do Departamento com seus jardins suavemente

coloridos à influência magnânima do azul do céu alcandorado pela luz do Sol, que, ali, espalhava os valores sadios do seu magnetismo, parecendo bênção inspiradora

iluminando a mente dos artistas.

Uma vez estudado aí o teor dos apontamentos provenientes do exterior, seguiam ordens para a seção de Modelagem, disposta na sala seguinte, no sentido de se esboçar

o corpo futuro tal como as instruções determinavam, a saber:

a) - mutilado desde o nascimento;

b) - passível de o ser no decurso da existência, por enfermidade ou acidente;

c) - passível de aquisição de doenças graves e incuráveis;

d) - normais, o que indicaria, portanto, fatos decisivos na programação do carreiro a ser vivido pelo paciente, harmonizados ao feitio das expiações

e testemunhos a cada caso, pois convém não esquecermos que muitos daqueles míseros albergados, nossos cômpares, reencarnariam possívelmente em envoltõrios físicos

normais e até belos e sadios, por exigirem as suas novas experiências que assim fosse, avultando, em casos tais, lutas e sofrimentos irreparáveis, de ordem moral

tão-somente.

Ora, no gabinete seguinte viam-se também os esboços dos corpos primitivos, isto é, dos que o suicídio havia malbaratado, destruído antes da época normal, habilmente

classificados da seguinte forma, em local apropriado, de fácil acesso ao observador, porque em pedestal conveniente, pois estes esboços eram como estátuas móveis,

grandemente belas, dadas a perfeição e naturalidade que apresentavam, sugerindo a presença real do próprio envoltório já destruído:

a) - o envoltório primitivo, tal como existiu e foi aniquilado pelo suicídio;

b) - ao lado, numa placa fosforescente, a descrição do estado em que se encontrava o mesmo envoltório na ocasião do sinistro, a saber: - estado da saúde,

volume das forças vitais, grau de vibrações, estado mental, grau de instrução social, ambiente em que viveu, data do nascimento, data da época normal que se deveria

dar o trespasse e a extinção da força vital, data em que se verificou o suicídio, local do desastre, o gênero do mesmo, causas determinantes, nome do infrator;

c) - o órgão atingido pelo atentado, e cuja alteração motivara a extinção das fontes de vida localizadas no envoltório, era assinalado, no esboço, com lesão idêntica

à que sofrera o corpo material;

d) - casos especiais: afogamentos, trituração por esmagamento, queda. Reprodução plástica dos restos do envoltório, tal como o suicídio o reduziu.

A impressionante perfeição desta última reprodução chocaria qualquer outro observador não esclarecido como aqueles mestres ou não dolorosamente experimentados

como nós outros.

A esta sala, que seria a mais bela e sugestiva, se houvesse ali algum local inferior aos demais, seguia-se a da preparação de esboços para os corpos futuros e

seqüente encarnação. Seria a seção de Modelagem. Idêntica às suas congêneres, esta recâmara sobrepunha-se, no entanto, pela intensidade e delicadeza do labor desenvolvido

e pelo número elevado de obreiros. Os mapas ou esboços encomendados eram organizados sob rigorosa obediência às instruções recebidas, encaminhando-se ao depois para

revisão e aprovação do Templo, das seções de Análises e Pesquisas e até para o Recolhimento, onde os pretendentes os examinavam demoradamente, sob o critério de

seus mentores e Guias particulares. Não raramente seus futuros ocupantes aprovavam-nos por entre crises de angustiosas lágrimas, dando-se mesmo casos de requererem

delongas para os preparativos finais, a fim de se fortalecerem ainda um pouco e melhor se encorajarem para o inevitável! Mas se, porventura, o estado do penitente,

por demasiado precário, lhe não permitisse lucidez para exame conveniente e respectiva aprovação, o Templo e os seus Guias missionários supriam-lhe as deficiências,

zelando por seus interesses com justiça e amor, quais criteriosos advogados com seus constituintes.

Percorremos o agrupamento e salas possuidos de singular comoção, tudo observando com interesse máximo. Acompanhava-nos, lecionando esclarecimentos preciosos,

além de nossa boa Rosália, o iniciado responsável pela seção, Irmão Clemente, cuja cultura e grau de elevação no mundo em que vivíamos seriam fáceis de entrever

através das responsabilidades de que era investido.

"- Sim, meus caros amigos, meus irmãos! - dizia Clemente, enquanto paternalmente nos guiava de sala a sala, propondo-nos teses formosíssimas e reconfortadoras

em torno das Soberanas Leis de que era digno intérprete, as quais tantas elucidações levaram à minha pobre alma obscurecida pelo erro, que não me negarei ao desejo

de também transcrevê-las para estas despretensiosas páginas de além-túmulo. - Sim, meus amigos, bendito seja o Criador Supremo, Dirigente do Universo, cujas sabedoria

e bondade inexcedíveis nos soerguem das incompreensões do erro para as alcandoradas vias da regeneração, através dos serviços ininterruptos dos renascimentos planetários!

Na Terra, os homens estão ainda longe de conhecer a sublime expressão dessa Lei que só o Pensamento Divino, com efeito, seria capaz de estabelecer a fim de à Sua

Criação dotar com possibilidades de vitória!

A ignorância dos elevados princípios que presidem aos destinos da Humanidade, a má-vontade em querer participar de conhecimentos que os conduziriam às fontes

elucidadoras da Vida, assim como os preconceitos inseparáveis das mentalidades escravizadas ao servilismo da inferioridade, têm impedido os homens de reconhecerem

esse vasto e glorioso alicerce da sua própria evolução, da sua emancipação espiritual! O homem de ciência, por exemplo, considerado semideus nas sociedades terrenas,

das quais exige todas as honrarias e fictícias glórias, não admitirá, em hipótese alguma, que o grande orgulho que arrasta, a par da ilustração, posteriormente possa

condená-lo a uma reencarnação obscura e humilde, na qual seu coração, ressequido e árido de virtudes edificantes, adquirirá os doces sentimentos de amor ao próximo,

as delicadas expressões da vera fraternidade, que só o respeito e a veneração à causa cristã poderão inspirar, enquanto o intelecto repousa... O soberano, o magnata,

as classes consideradas "privilegiadas" pela sociedade terrena, que levianamente se utilizaram das concessões feitas pelo Soberano Supremo a fim de que contribuíssem

no labor de proteção à Humanidade e desenvolvimento do planeta, não admitirão que os despautérios cometidos em desencontro das divinas leis os induzam a renascimentos

desgraçados, em os quais existirão miséria, servidão, humilhações, lutas contínuas e adversas, a fim de que em tão laboriosas recapitulações expiem pela indiferença

ou maldade de que deram provas no passado, deixando de favorecer as classes oprimidas, o bem-estar geral da sociedade e da nação em que viveram, preferindo à solidariedade

fraterna, devida pelos homens uns aos outros, o egoísmo acomodatício e pusilânime! O branco, o de pele alva, cioso da pureza da raça que o preconceituoso conluio

do orgulho com a vaidade lhe faz supor seja privilegiada pelo favor divino, não concordará em render homenagem a uma Lei Universal e Divina capaz de impor-lhe, um

dia, a necessidade de renovar a existência carnal ocupando um envoltório cuja pele será negra, ou amarela, bronzeada, mestiça, etc., etc., obrigando-o a reconhecer

que o Espírito, e não o seu passageiro e circunstancial envoltório físico-material, é que necessitará clarear-se e resplandecer, através das virtudes abnegadas e

aquisições mentais e intelectuais, coisas que poderá obter no seio de uma ou de outra raça! E mais: que negros, brancos, amarelos, etc., todos descendem do mesmo

Princípio de Luz, do mesmo Foco Imortal e Eterno, que é o Pai Supremo de toda a Criação!

Entretanto, meus amigos, admitam ou deixem de admitir todos esses respeitáveis cidadãos terrenos, ainda que a eles e também a vós repugne o imperativo dessa Lei

magistral, o certo é que ela é irremediável e indestrutível e que, por isso mesmo, todos os homens morrem num corpo para ressurgirem em uma vida espiritual e depois

voltarem a renascer em novos corpos humanos... até que lhes seja concedido, pelo progresso já realizado, ingressar em planetas mais ditosos - também reencarnados

- e em cujas sociedades iniciarão novo ciclo de progresso, na escala ascensional da longa e gloriosa preparação para a Vida Eterna! Isto, porém, levará milênios

sobre milênios!...

Nenhum homem, portanto, como nenhum Espírito, poderá fugir às atrações irresistíveis dessa Lei, quer dela se desagrade ou lhe tribute respeito, uma vez que é

necessária a toda a Criação, como fatora que é do seu progresso, da sua ascensão para o Melhor, até o Perfeito!

Na Vinha do Senhor - o Universo Infinito -existem obreiros indicados ao melindroso serviço de promovê-la. No que concerne à Terra, encontram-se eles sob as vistas

do Unigênito de Deus, a quem se acha afeta a redenção do gênero humano. Assim como diariamente o homem assiste ao romper do Sol e ao seu declínio no horizonte; assim

como sente soprarem os ventos e vê caírem as chuvas, crescerem e frutescerem as plantas, as flores rescenderem seus perfumes e os astros rebrilharem no infinito

dos espaços, sem avaliar a imensidão e aspereza do trabalho que tudo isso significa, e ainda menos a dedicação, os sacrifícios que tão sublime labor requer das legiões

de servos invisíveis que, no mundo astral, são incumbidos da conservação do planeta, segundo os altos desígnios do Onipotente Criador, também diariamente assiste

a milhares de renascimentos de Semelhantes seus, e de muitos outros seres vivos e organizados, ignorando a emocionante, encantadora epopéia divina que contempla!

E tanto se habituou o homem a ver-se rodeado das manifestações divinas, que se tornou a elas indiferente, não cogitando da apreciação e do louvor às suas grandezas,

considerando-as naturais, mesmo comuns, como realmente são! Como, porém, não ser assim, se ele próprio está mergulhado no Selo do Universo Divino, como descendente

do Divino Criador de Todas as Coisas?..

Ouvíamos com muito agrado, sem nos animarmos ao menor aparte. Tudo aquilo era novo e muito emocio nante para nós. Sentíamo-nos como diminuídos, vexados em face

de uma sociedade para a qual nos reconhecíamos incapacitados. E admirava-nos de que dela recebêssemos trato tão gentil, amistosas atenções, como naquele momento!

Fomos atraídos para uma das esplêndidas galerias onde se alinhavam as belíssimas estátuas-mapas. À frente de cada uma, a mesa de trabalho do operador. Vários

iniciados ali se encontravam, fiéis ao nobilitante dever de servir a irmãos menos experientes da ciência da Vida, mais atrasados na peregrinação para Deus! Alguns

examinavam detidamente as minúcias da configuração a seu cuidado, outros estudavam apontamentos e instruções, enquanto ainda outros examinavam a fotografia dos despojos,

esboçando mapas de futuros envoltórios a serem encaminhados para a provação, etc., etc. E cada um, empregando nesse extraordinário ministério o máximo da atenção

e da boa-vontade de que eram capazes, fez

-nos conceber o ideal do funcionalismo perfeito, cônscio do dever a cumprir!

Aproximamo-nos das estátuas. Eram o mapa antigo, anterior ao suicídio. Surpreendidos, observamos serem esses modelos singulares animados de movimentos e vibrações,

tornando-se, assim, o tipo ideal a ser plasmado. Assim era que, através das artérias, víamos deslizar, em toda a pujança e precipitação naturais ao corpo humano,

um filete de líquido rubro luminoso, indicando o sangue com suas manifestações normais num corpo material terreno. As vísceras, tal como o sangue, eram traçadas

por substâncias fluídicas luminosas sutilíssimas, translúcidas, como se para obtê-las houvessem de comprimir reflexos da luz delicada do luar... Quanto às cartilagens,

o rendilhado dos nervos, a carne, eram igualmente representados por tessituras mimosas, de cambiantes níveo, jalde, róseo, respectivamente, o que à peça fornecia

expressão de grande beleza!

O pequeno universo do corpo humano, pois, com todos os seus pormenores, ali se encontrava ideado com mestria de verdadeiros artistas e verdadeiros anatomistas!

Havia dependências particularizadas para os modelos e para os casos femininos. Jamais, em nossas observações, observamos serviços mistos, em quaisquer setores!

Ao fim de alguns minutos, ouvimos que Rosália exclamava, traindo singular emoção:

"- Com efeito, meus amigos! É um maquinismo magnífico!... O homem terrestre deveria considerar-se honrado e ditoso, por obter da inexcedível bondade do Criador

a mercê de poder fazer a própria evolução planetária na posse de um veículo assim!... No Universo Infinito existem mundos físicos onde o Espírito que neles reencarna

tem de arrastar ciclos de progresso ocupando fardos materiais pesadíssimos, os quais, comparados a estes, seriam considerados monstruosos..."

Silenciamos, chocados, sem ânimo para divergir, encetando polêmicas tão do nosso agrado, dada a ignorância em que nos achávamos quanto ao palpitante e arrojado

assunto... O nobre instrutor, porém, interveio, dirigindo-se a nós outros, risonho como sempre:

Sim! Ë mais do que um simples maquinismo, meus amigos! Ë o próprio Universo em miniatura, onde suntuosos fenômenos a todo momento se reproduzem, pois, com efeito,

sua natureza participa de muitas condições contidas na organização do próprio Universo! É um templo!... Um santuário onde será depositada a centelha sagrada que

emanou do Todo-Poderoso, isto é, a Alma Imortal, para que nele se alinde e aperfeiçoe na seqüência dos renascimentos...

Vede o coração! Órgão sensível e heróico, infatigável sentinela, destinado aos mais elevados serviços de uma reencarnação, escrínio onde o Espírito localiza a

sede dos sentimentos que consigo carrega desde a vida espiritual!... Examinai o cérebro, aparelhamento prodigioso, jóia só imaginada pelo Excelso Artista, tesouro

inapreciável que o homem recebe ao nascer, sobre o qual agirá a mente espiritual, dele servindo-se para as novas aquisições dos labores efetuados! É um outro universo

em miniatura, farol que norteia a própria vida humana, bússola generosa em meio das trevas do encarceramento físico-terrestre!

E o aparelho visual?... que carreia para o cérebro a impressão das imagens, traduzindo-as em entendimento, compreensão, certeza, fato?... Não será, porventura,

digno similar dos primeiros?... Será nesse precioso relicário de luz que se acumularão as potências sublimes da visão espiritual, dosadas harmoniosa e sensatamente,

para o uso conveniente do indivíduo durante o estágio carnal, assim lhe facilitando as realizações que lhe competirem no concerto das sociedades humanas...

Atentai, não obstante, nestes escaninhos auditivos, caprichosos labirintos que apresentam indubitáveis harmonias com os antecedentes! Tão bem dotados, tão perfeitamente

dispostos que permitirão ao encarcerado terrestre alcançar as mais delicadas vibrações, aquelas que lhe forem necessárias ao progresso e tarefas que deverá realizar,

e até mesmo, em muitos casos, a sutil expressão provinda de um anseio, de um murmúrio dos planos invisíveis!...

Porém, não é só. Eis a organização gustativa, detentora do paladar. Sutil, obscura, modesta, tão preciosa qualidade do envoltório carnal, no entanto, absolutamente

indispensável ao gênero humano, a este auxilia generosamente, co-participando do trabalho alimentar, fiel colaboradora da conservação do fardo precioso do corpo!

Quão grandioso deverá, outrossim, parecer o labor da língua ao observador consciencioso, órgão que traduz, ao demais, o pensamento da criatura encarnada, através

da magia da palavra enunciada! Oh! como o homem seria respeitável se desse aparelho sublime se utilizasse apenas a serviço do Bem, do Belo, da Verdade! É da complexa

fibratura da língua que se desprendem as vibrações emitidas pelo pensamento, tornando possível o entendimento entre a Humanidade através da palavra. É graças ao

seu produtivo labor que se concretizam os sons das mais belas expressões conhecidas na Terra, tais como as doces promessas de amor, quando o coração entusiasta,

nobilitado por alevantados projetos sentimentais, se inflama de ardentes aspirações; as harmonias arrebatadoras dos vossos mais caros poemas, assim como as suaves

nênias do amor materno junto ao berço em que adormece o querubim risonho... e também o nome sacratíssimo do Todo-Poderoso, nos cicios férvidos da oração!...

Nem uma peça inútil! Nem uma linha supérflua, votada à inatividade! Todas as particularidades são essenciais, integrando o todo generoso; são indispensáveis à

sua harmonia magistral, completam-se, correspondem-se, atraem-se, confraternizam-se, numa beleza majestosa de atividades subseqüentes e heróicas, dependendo umas

das outras para a sublimidade de vistas do gracioso conjunto favorável ao equilíbrio do Espírito que nele temporariamente habitará, qual lâmpada sagrada em santuário

eficaz!...

A Natureza, meus amigos, que é a Vontade de Deus manifestada sob a pressão soberana do Seu Divino Poder Magnético, tornou o corpo humano habitação suntuosa para

o Espírito necessitado da reencarnação para o aprendizado que lhe cumpre no ciclo terreno... pois ficai certos de que a finalidade da reencarnação é o preparo do

ser espiritual para o triunfo na imortalidade, e não apenas para os serviços da expiação! Esta será a conseqüência do desvio da verdadeira rota, simplesmente, e

existe unicamente pela responsabilidade do "eu" de cada um!

O estado definitivo dos fardos humanos para a temporária habitação daquele que se derivou de um hausto divino, o modelo originado da vontade do Sublime Artista,

penosamente evolutido através dos séculos, é a beleza! A existência de desarmonias no conjunto provêm de que os Espíritos que o modelaram a fim de nele habitarem,

servindo ao próprio progresso ou a causas excelentes, assim o desejaram, fossem por modéstia e humildade, fosse comodidade e receio de situações perturbadoras, pois

a beleza física, muito admirada sobre a Terra, torna-se, no entanto, qualidade perigosa em suas sociedades, diante das tentações e excessos a que se ve exposta.

Também muitas vezes a rejeitam, preferindo o seu inverso ou a mediocridade de linhas discretas, aqueles que renascem expiando grandes erros pretéritos, pois não

ignorais que o estado de fealdade, de anormalidade de traços, por não ser o natural, torna-se repugnante, penoso para aquele que o arrasta, constituindo provação!

Vede estes modelos em tamanho natural!... Ao reencarnarem, seus possuidores receberam corpos carnais assim, perfeitos: formosos, dotado. de forças vitais e magnéticas

que garantiriam excelentes funções orgânicas, saúde permanente, capacidade para as competições diárias. Nada faltou aos seus ocupantes senão a força de vontade,

a coragem para lutar e vencer! O auxílio que dependeu da Natureza, para que vencessem, ela o forneceu com o invólucro carnal apropriado ao gênero de labor a que

eram chamados a desenvolver, qual armadura sólida de outros cruzados que pleiteassem a vitória do Espírito! Apesar, porém, de todas as reservas concedidas pelo Céu

em seu proveito, não só faliram, furtando-se aos deveres para que reencarnaram, como até destruíram o precioso fardo posto em seu poder, tão bem dotado, aniquilando-o

com o suicídio!..."

Não nos calavam bem na consciência as exposições do ilustre técnico do Planejamento. Amarga tristeza ia avassalando nossas mais Intimas faculdades a cada novo

conceito proferido. Não obstante, seguimo-lo de boamente, à renovação do convite para nos aproximarmos das mesas onde inspirados anatomistas traçavam os mapas de

futuros envoltórios a serem modelados na carne pelo Espírito culposo, prestes a reencarnar.

"-. Nestas bancas de trabalho - continuou, minucioso -. auxiliares meus preparam mapas corporais para suicidas portadores de débitos vultosos, os quais, antes

do malogro, haviam recebido aparelhos materiais bem dotados em toda a sua admirável organização.

Abusaram eles da magnífica saúde que possuíam. Saúde! bem inapreciável de que o homem desdenha, fingindo ignorar que se trata de um auxílio divino que a solicitude

do Altíssimo concede às criaturas, com vistas a encorajá-las nos trabalhos dignificantes que lhes facultarão os lauréis do progresso espiritual!

Sem a mínima demonstração de respeito à autoridade do Criador, aqueles nossos inditosos irmãos envenenaram os fardos preciosos com excessos de toda a natureza!

Lentamente, depredaram-nos com os abusos do álcool! Intoxicaram-nos com as inalações do fumo! Aviltaram-nos com os vícios sexuais! Brutalizaramo-nos com as imoderações

alimentares, desviando-se para a gula, o que para aqueles conquistou alterações nas funções gástricas, ingurgitamento das glândulas hepáticas, danificando lamentavelmente,

por acúmulo de operosidade, o delicado aparelho digestivo, que vedes acolá, no modelo primitivo, retratado naquelas estátuas que tanto admirastes! Outros, não satisfeitos

com esse gravoso desrespeito a si mesmos como ao Generoso Doador da Vida, o qual, só por si, responderia por um autêntIco gesto de suicídio, incapazes de suportar

as conseqüências de tanta intemperança, isto é, um câncer, muitas vezes, a tuberculose torturante, uma úlcera, a neurastenia, um desvio mental, alucinações produzidas

pelo péssimo estado do sistema nervoso, a hipocondria, enfermidades físicas, mentais e morais que para si mesmos criaram, usaram de violência igualmente reprovável...

e coroaram o acervo de inconsequências destruindo completamente, matando brutalmente o fardo concedido pela bondade paternal de Deus, empunhando contra si próprios

armas homicidas!

Eis, todavia, o resultado de que se apavoram!

Não morreram, porque o verdadeiro ser não era aquele santuário destruído, mas a individualidade que nele habitava! E agora, arrependidos, excruciados pela inalienável

dor dos remorsos e convencidos do erro que praticaram, voltam ao teatro dos desatinos cometidos, animando argilas corporais não mais idênticas às destruidas por

sua espontânea vontade, mas apropriadas ao gênero de expiação que criaram com a conseqüência natural das mesmas infrações..

A essa altura sentíamo-nos como fatigados de aflição, profundamente melancólicos. A realidade forte que se irradiava daqueles planejamentos, o próprio ambiente,

contornado por sugestões inerentes às reencarnações expiatórias, infiltravam angustioso mal-estar em nossos corações, acovardando-nos até à ansiedade! Mas o estado

de apreensão e angústia era acontecimento tão vulgar em nosso ser que de nada nos queixamos, antes silenciávamos, pensativos.

Convidou-nos a continuar ouvindo-o, em repouso, apresentando-nos confortáveis poltronas onde nos sentássemos. Em seguida, tomando lugar ao nosso lado, fraternalmente

recomeçou o operoso Irmão Clemente:

"- Estais inteirado por Irmã Celestina de como se verifica vossa internação neste Departamento, para que me alongue nas mesmas exposições. Direi apenas que seremos

por vós responsáveis enquanto durar a vossa existência planetária, essa existência anormal que criastes fora da programação estatulda pela Divina Providência; assistiremos

vossos momentos difíceis na ardência da expiação; enxugaremos vossas lágrimas nos momentos culminantes, insuflando novo ânimo nos vossos corações através de sugestões

benéficas, que não regatearemos em vosso favor; segredaremos alvitres mediadores para as aflições que vos atingirem através da vossa faculdade de intuição, acesa

pela solércia do sofrimento; zelaremos por vossa saúde, por vossas condições físicas, necessárias à permanência na experimentação terrestre; vigiaremos para que

se não agravem as provações por que passareis, dadas as condições egoísticas em que se mantêm as sociedades em que sereis chamados a testemunhar o arrependimento

em que permaneceis, as quais vos poderiam dificultar demasiadamente a vitória, acumulando dores excessivas em vosso trajeto, já de si mesmo contaminado de urzes

e espinhos... E somente encerraremos tão vasta quão espinhosa missão quando, cessada vossa expiação reparadora do ato de suicídio, cortarmos os liames fluídicos

que vos ligarem ao fardo tornado naturalmente cadáver, e vos reconduzirmos para aqui, encaminhando-vos ao Departamento do qual vos recebemos, e o qual, por sua vez,

aguardará ordens do Templo a flui de encaminhar-vos a locais novos que por direitos e afinidades vos convierem...

Jamais - repitamos - o retorno ao campo físico-material se efetivará a contragosto vosso. Poderá dilatar-se vossa permanência nesta Colônia por longo tempo, porque,

contra a vossa vontade, não reencarnareis. Nem mesmo a Lei Soberana constranger-vos-á a novas tentativas nas liças terrenas, porqüanto, um dos seus mais sublimes

dispositivos, que nos impulsiona à aquisição de honrosos méritos, é justamente não impor o cumprimento do Dever a quem quer que seja, senão facultar a todos possibilidades

de voluntariamente observá-lo! O mais que faremos, tendo em mira o animar-vos para o formoso desempenho, é aconselhar-vos, procurando convencer-vos ao renascimento

através do raciocínio e do exame dos fatos. Tais diligências, entretanto, serão efetuadas durante o estágio no Departamento em que ingressastes e não neste, conforme

tivestes ocasião de observar durante as instruções que tendes obtido.

Geralmente, porém, o suicida vê-se em tão precárias condições, quer físico-astrais, quer morais e mentais, que bem poucas vezes nos obrigamos ao trabalho de

catequese para a reencarnação! Ele próprio deseja-a ansiosamente, apressa-se em obtê-la, suplica-a mesmo ao Todo-Misericordioso, através de preces ardentes, não

raro em ocasião inoportuna, o que nos força a contrariá-lo, obrigando-o a uma espera que permitirá maiores probabilidades de êxito.

Permitiu-se nosso respeitável expositor pequena pausa, durante a qual atendeu a alguns discípulos, que o consultavam acerca dos importantes serviços em elaboração.

Observamo-lo com muito interesse, durante os rápidos minutos em que confabulava com os seus. Não distinguimos o de que tratavam. Em compensação notamos que conservava,

invariavelmente, no delicado semblante, sorriso cativador que bem poderia ser o característico do seu ser eternamente afável! Irmão Clemente era, ao demais, jovem

e dotado de grande pureza de linhas. Dir-se-ia o modelo ideal que aos estatuários da Grécia antiga inspirou as obras-primas que nunca mais os homens produziram!

Parecia não contar ainda as trinta primaveras, o que bastante nos surpreendeu, dada a alta responsabilidade de que o víamos investido, pois, então, ignorávamos que

o Espírito é independente de idades, podendo apresentar-se sob o aspecto fisionômico que lhe for mais grato ao coração como às recordações. Víamo-lo como se fora

realmente um homem, nobremente trajado com o uniforme da falange. Mas algo se irradiava de sua individualidade, indefinível para nós, atestando sua excelente qualidade

espiritual, não obstante o caridoso favor de materializar-se tanto, a fim de nos consolar e servir.

Retornando ao nosso grupo, continuou, paciente e grave:

"- De toda a extensa falange de penitentes que por estes umbrais têm passado, excetuo da exemplificação em apreço os internos do Manicômio. Excessivamente prejudicados,

sob pressão vibratória limitadíssima, reencarnarão sob os imperativos da Lei, mas igualmente assistidos pela Paternal Solicitude daquele que é o Amor Supremo para

todas as criaturas! Não se encontrando em situação de facilitar auxílio em proveito próprio, suas lacunas serão preenchidas pelo seu Guardião Maior e demais guias

dedicados, os quais passarão a dirigir diretamente tudo o que de melhor convenha ao pobre tutelado, incapacitado para o exercício do raciocínio, do livre-arbítrio!..

"

Ofereceu-nos a examinar certos mapas que lhe baloiçavam entre as mãos, tomados a um de seus discípulos. Eram esboços para o futuro, miniaturas encomendadas para

a encarnação próxima, ao passo que as estátuas em tamanho natural eram o que, em verdade, deveriam estar em atividade, porque representavam a configuração carnal

aniquilada pelo suicídio. Tomando das miniaturas, observamos não se encontrarem nelas, desenhados sequer, os arremedos daquelas, mas figuras esquálidas, torturadas

por sintomas impressionantes de funda amargura interior, caricaturas assinaladas por indicações de enfermidades atrozes, tais como a paralisia, a cegueira, a demência,

etc. - que tanto afligem as criaturas em todas as classes sociais terrenas!

Fez-nos caminhar com ele até um dos clássicos modelos que se viam ao longo da formosa galeria das estátuas e explicou, não sem deixar entrever expressivo acento

de tristeza, enquanto, com assombro, líamos sobre a placa do pedestal esta curiosa indicação:

"Vicente de Biqueira Fortes. (20)

Reencarnado a 10 de Outubro de 1868.

Deveria retornar ao Lar Espiritual aos setenta e quatro anos de idade, ou seja, pelo ano de 1942.

Suicidou-se na cidade do Rio de Janeiro, Brasil, no ano de 1897, atirando-se à frente de um comboio de estrada de ferro, contando vinte e nove anos de idade."

"- Vedes esta miniatura? - continuou Clemente, destacando uma das que examinávamos. - Pois, assim alterada, reproduz o estado mental e vibratório a que se reduziu

Vicente com o desesperado gesto que praticou! Foi extraída do próprio estado atual do seu físico-astral, o que é o mesmo que dizer que, se assim se encontra, é porque

assim se fez, pois a Lei que cria a Beleza não impõe este estado dramático e feio às suas criaturas! Agora, o pobre Vicente, como tantos outros que entre nós se

acham, é obrigado a retomar o corpo carnal, nascer de novo a fim de conpletar o tempo que lhe faltava para o compromisso da existência que destruiu! Urge, ao demais,

que reencarne, com apenas nove anos de estada no Invisível, porque, tão grave foi o choque vibrado em sua organização astral pela infernal resolução de matar a organização

animal que, a fim de lograr compreensão que lhe permita progresso razoável, será preciso a permanência na carne, única terapêutica, como já sabeis, bastante eficaz

para reconduzi-lo ao estado de alívio! Mas voltará plasmando o barro carnal sob o molde perispiritual que no momento arrasta, o que significa dizer que renascerá

enfermo, presa de males atrocíssimos, irremediáveis no plano objetivo, indefiníveis fora das leis psíquicas; abalado por vibrações anormais, que o incapacitarão

para o desfrute de boa saúde, ainda que herde dos genitores composição animal vigorosa, assim como de qualquer expressão de paz e de alegria! E tal

(20) Nome fictício. Qualquer semelhança será mera coincidência.

seja aquela composição, de pais sifilíticos, por exemplo, anêmicos, alcoólatras, etc., etc., será possívelmente paralítico, ou débil mental, ou ainda tuberculoso,

etc., etc.!"

"- Não poderia o desgraçado demorar-se ainda no Manicômio até que, de qualquer forma, se minorasse tão lamentável estado de coisas, a fim de se não expor 8 situações

tão dramáticas e dolorosas, no plano da reencarnação ?" - perquiri, desolado.

"- Oh, não! Absolutamente não conviria aos seus interesses espirituais semelhante delonga! - tornou o erudito chefe do Planejamento. - Seria demasiadamente longo

e doloroso tal processo! Ele não possui nem poderá adquirir percepções para a vida espiritual enquanto se encontrar neste estado! Cumpre-lhe refazer-se ao contacto

das forças vitais que, com o suicídio, se dispersaraxn indevidamente pelo seu físico-astral, com o qual concertavam poderosas afinidades químico-magnético-psíquicas,

dando em resultado este tenebroso efeito, esta inqualificável intoxicação perispirítica e mental, não prevista por lei, mas realizável por aquele que se dissociou

das leis mentais e morais que se inclinam para a verdadeira idéia de Deus!..."

"- Mas... meu ilustre Irmão!... Semelhante estado de coisas positivará o elevado padrão da Justiça Celeste, em a qual tanta esperança depositávamos?... considerando

o que há pouco afirmastes, isto é, que o Supremo Amor do Pai Altíssimo acompanharia estes desgraçados em seus renascimentos expiatórios?... Que digo eu?... acompanharia

a mim, a Belarmino, a Mário, a João, pois também estamos acorrentados a esta falange infortunada?... Existirá misericórdia no consentir a Providência este acúmulo

de desgraças quando - infelizes que somos! - se nos perdemos nos brenhais do suicídio, foi porque múltiplas desventuras já nos infelicitavam a existência ?..." -

investiguei eu mesmo, possuído de superlativa angústia.

Irmão Clemente sorriu com bondade, não levando meus protestos em consideração. Respondeu simplesmente, com naturalidade desconcertante para nós:

"- Esquecestes, meu amigo, de que o Universo todo está submetido a Leis Imutáveis e Harmoniosas, as quais nos cumpre procurar conhecer e respeitar, enquanto

nos honramos com a sua sublime observação? Por que tanto se descuram os homens encarnados quanto ao dever de a si mesmos estudarem a fim de melhor se conhecerem,

procurando respeitarem-se, dando a si mesmos o valor que merecem como criação divina que são?... O de que cuidamos no momento apenas se trata de uma inobservância

das mencionadas Leis... Ë um simples efeito lógico de desarmonia, nada mais!... É o que é, o que os homens inventaram para se torturarem, em desacordo com o que

para a sua felicidade o Criador estabeleceu com Suas Leis Harmoniosas, Imutáveis e Perfeita.... Aliás, não é para aliviar o suicida, justamente, desligando-o desse

estado de coisas, insustentável para um Espírito, que a Lei o impele à reencarnação?... O que julgaríeis, então, que faríamos a Vicente ou a qualquer de vós, sob

as vistas amorosas do Médico Celeste e os conselhos maternais de Sua Mãe, por quem somos orientados !... A reencarnação para Vicente - tal como se acha ele, e tal

como será ela - é a medicamentação apropriada para o caso! Reencarnado, continuará albergado em nosso Instituto! Estará, da mesma forma, hospitalizado pelo Manicômio,

tal como se encontra no momento! Assistido pelos médicos e psiquistas daquele estabelecimento, além da vigilância exercida pela direção do Departamento Hospitalar,

do Departamento da Reencarnação, da Direção-geral do Templo, assim como pelos assistentes missionários nomeados pelo Alto! Essa reencarnação, que vos parece horrorizar,

será como intervenção cirúrgica melindrosa, medida drástica, prevista pela Grande Lei para reação do Melhor sobre o inferior, mas que proporcionará alívio e cura,

reerguimento das forças vibratórias, desentorpecimento das faculdades contundida. pelo traumatismo atroz!

Se há amor e misericórdia em permitir a Lei o retorno à arena carnal na condição atual!... Oh! como ousam conceber maior soma de tolerância, de amparo, de misericórdia

do que essa, de conceder o Altíssimo novos ensejos para o grande pecador - denominado suicida - reerguer-se do báratro em que se despenhou, mas reerguer-se honrosamente,

sob a tutela do Meigo Nazareno, e à custa dos esforços próprios, da nobreza edificante do Dever fielmente cumprido?... Porventura estará ele destituído dos direitos

de criatura de Deus, de Espírito em marcha evolutiva para a glória da Vida Imortal!... Não lhe estão sendo, ao contrário, conferidas oportunidades preciosas, com

a reencarnação?... Não estará, porventura, amparado, hoje como amanhã, pelos cuidados de Jesus Nazareno, paternalmente assistido por obreiros Seus, por legionários

de Maria, que o ajudarão na caminhada áspera desse calvário forjado do ato insano que praticou à revelia da Lei de Deus ?... Espíritos que pairam em esferas celestes,

como o próprio Divino Médico das Almas, não estão, porventura, preocupados com ele, solicitando ao Soberano Onipotente novas oportunidades para que se reedifique

ao calor de atos justos e meritórios, forrando-se da humilhante situação em que jaz no momento, dentro do mais breve prazo possível?...

Se ele sofre, de quem foi a responsabilidade?... Não 6, aliás, o sofrimento, lição magnificente, que acumula sabedoria através da experiência?...

Quem, na Terra, ignora que o suicídio é infração que se não deve cometer por ser contrária à Natureza e à Lei e ao Amor de Deus!...

Na Terra, as religiões, a razão, o sentimento, o senso, a honra, tudo o reprova e condena!...

Aí está por que: o pensamento, a intuição que O bom-senso tem da deplorável situação a que se reduz a alma de um suicida!...

A Vicente, como vedes, a Lei outorgara o sagrado direito de existir sobre a Terra animando um envoltório físico-material perfeito, como este modelo que aqui

se encontra, neste pedestal!

Que fez ele desse corpo, porém?...

Rejeitou-o! Espezinhou-o! Atirou-o brutalmente à destruição!... Tão desrespeitosamente como se o atirasse de retorno à face do próprio Deus!

O insulto à Lei, porém, muito caro lhe há de custar! Expiará as conseqüências naturais do ato, reparará os desastres ocasionados a si mesmo, como

a outrem, se alguém, além dele, foi prejudicado; amargará sacrifícios e lágrimas, herança lógica do desatino praticado, até que consiga forças vibratórias suficientes

para obter da Providência a concessão de outro empréstimo corporal equivalente ao destruído, um outro templo, perfeito e sadio, a fim de recomeçar o carreiro normal

da evolução, interrompido pela queda nos desvios do suicídio!

Ele sofre, é certo. Mas... quem o fez sofrer?... Por que sofre?...

Onde o maior responsável pelos seus sofrimentos ?..." Contrafeito e triste, baixei a fronte, preferindo silenciar.

7

Os primeiros ensaios

"Todas as vezes que ajudastes a um destes meus irmãos mais pequeninos, foi a mim que o fizestes."

JESUS CRISTO - O Novo Testamento. (21)

Dois dias se passaram após os acontecimentos há pouco narrados, durante os quais nos entregamos a sérias ponderações sobre quanto víramos e soubéramos nas visitas

aos Departamentos Hospitalares.

Compreendêramos as lições.

Nenhuma ilusão seria mais possível reter depois de concluído o estudo daquela bíblia espelhante e sábia que representava cada uma das seções visitadas!

Estávamos angustiados! E no recinto plúmbeo do Pavilhão Indiano, rodeados de nostalgia e solidão, vimos as lágrimas banharem as faces uns dos outros!

Na manhã do terceiro dia foi ainda Roberto de Canalejas quem contribuiu para arredarmos o estado de depressão para o qual resvalávamos, convidando-nos a passear

pelo parque em sua companhia.

Servindo-se da encantadora afabilidade que era o seu característico, discreta e singela, advertiu enquanto caminhávamos:

"- O desânimo é sempre mau conselheiro, cujas sugestões devemos fustigar com todas as nossas melhores forças! Reagi, meus amigos, voltando vossas vontades

(21) Mateus, capítulo 25, versículos 31 a 46.

para a Força Suprema, de onde emanam as energias que alimentam o Universo... e logo sentireis que disposições regeneradoras reerguerão vossas capacidades para o

prosseguimento da jornada...

Quando vos sentirdes pusilânixnes e tristes diante do inevitável, trabalhai! Procurai na oportunidade, na ação enobrecedora e honesta o restaurador para as faculdades

em crise! Nunca seremos tão insignificantes e destituídos de possibilidades, quer na Terra quando homens ou no Invisível como Espíritos desagregados da carne, que

não nos permitamos servir ao nosso próximo, cooperando para seu alívio e bem-estar. Ao invés de vos aprisionardes neste Pavilhão, dando largueza de expansão a pensamentos

cruciantes e improdutivos, que vos agravam os sofrimentos, vinde comigo, a visitar vossos irmãos que sofrem mais do que vós e se acham hospitalizados ainda, ergastulados

no drama de trevas que sobre vós também já se estendeu... Voltemos ao Hospital a fim de rever os amigos, os colegas, os enfermeiros que bondosamente por vós zelaram,

consolando vossos corações esmorecidos pela dor, os médicos que vos auxiliaram a expulsar da mente as impressões contumazes que vos amorteciam a coragem...

Aquiescemos. O dia todo, por ele acompanhados, visitamos novos enfermos, dirigimos frases solidárias a pobres recém-chegados do Vale Sinistro, abraçamos Joel

e demais dedicados amigos que por nós se desvelaram por dias e noites de angustiada memória, apresentamos respeitos e homenagens aos eminentes psiquistas que tantas

vezes se abeiraram de nossos leitos levando-nos caridosos refrigérios nas reconstituintes energias das suas virtudes hialinas!... E por tudo isso suave reconforto

bordejou nossas apreensões, ensinando-nos a buscar tréguas para as próprias dores, aliviando as dores alheias, aquecendo-nos junto de corações virtuosos capazes

de nos compreenderem!

À tarde, já de regresso ao albergue, um emissário de Teócrito comunicara-nos que, no dia imediato, deveríamos atingir a sede da Vigilância, reunindo-nos a grande

caravana que demandaria a Terra.

Teócrito não fizera parte da assisténcia para essa caravana. Todavia, sua autoridade fez-se representar nas pessoas de seus dignos discípulos Romeu e Alceste,

os quais zelariam por nossos interesses e necessidades enquanto nos encontrássemos em liberdade, não obstante houvessem de fazê-lo ocultamente, a fim de não nos

privar do mérito e da responsabilidade. Carlos e Roberto de Canalejas, no entanto, Ramiro e Olivier de Guzman, Padre Anselmo e outros amigos a quem nos habituáramos

a querer, integravam o numeroso cortejo, incumbidos, por ordens superiores, das instruções que se tornassem precisas, caso nosso procedimento durante a liberdade

arrastasse a necessidade de mais vultosos empreendimentos.

E quando as primeiras paisagens do torrão natal se desenharam indecisamente, entre as emanações pesadas da atmosfera, o pranto rolou-me dos recôncaVoS do ser,

num sacrossanto hausto de saudade, respeito e alegria!

Havia dezesseis anos que o fardo carnal, por mim recebido da Natureza-Mãe para, através de seu inestimável concurso, habilitar-me para o radioso reinado da Imortalidade,

tombara em convulsões sinistras, triturado nas garras tétricas do suicídio!

Dezesseis anos de prisão, de lágrimas, de dores cruciantes e inenarráveis em sua verdadeira expressão!

Atordoado, já desambientado da minha própria terra natal, assaltou-me incoercível receio de perlustrar sozinho as tão conhecidas e saudosas ruas de Lisboa, do

Porto, de Coimbra, que eu tanto amara! Senti-me constrangido e triste, verificando-me de posse da liberdade. Nossos amigos retiraram-se de nossa visão, refugiando-se

em invisibilidade inatingível pelas nossas capacidades, e deixaram-nos entregues a nós mesmos, não obstante não nos terem de todo abandonado. Profundas modificações,

de certo, o longo estágio de sofrimentos no Invisível havia cavado em meu interior, porque me reconheci tímido e apavorado face a face, outra vez, com aquela sociedade

a quem eu amara e desprezara a um mesmo tempo; que eu fustigara em iras incontidas ao lhe deparar as mazelas, para em outra vez exaltar em comovidas páginas extravasadas

do coração, ferido sempre por bem dramáticas razões! Lembrei-me de que adversas etapas constituíram minha existência a que o desespero acabou por destruir, a qual,

se não primou pelas virtudes, que não demonstrei possuir, ao menos se impôs pelo padrão de infortúnio que arrastou!

Despertada a subconsciência, tão carinhosamente embalada e adormecida pela terapêutica do Instituto Maria de Nazaré, ante o retorno ao teatro do pretérito, o

drama que vivi desenrolou-se às minhas lembranças com o mesmo acre sabor de antanho, alvoroçando-me as entranhas anímicas com as agruras e tribulações outrora suportadas!

Lembrei-me dos que amei, dos que me amaram, ou, pelo menos, dos que tinham o dever de me amar, e tive medo de buscá-los!

As desilusões sofridas por Jerônimo Silveira encontravam-se ainda muito vivas em minhas recordações para que imprudentemente me arrojasse a provocá-las para mim,

visitando, sem muito ponderar, o velho lar, os amigos, a parentela de quem eu apenas tivera fugidias notícias, por jamais dela receber demonstrações saudosas através

de bons votos que me dirigissem, no fervor de uma prece!

Vali-me, então, da afeição de Belarmino, a quem eu conhecera nos dias de desgraça, suplicando-lhe que me não abandonasse, antes marchássemos juntos, nas idas

e vindas que pretendêssemos... pois Mário lá se fora à cata de noticiário da esposa e dos filhos, dos quais

jamais soubera no Invisível, até aquela data!

O antigo professor de línguas deixara-se bordejar por idênticas impressões. Conservava-se mudo e compenetrado, enquanto eu dava elasticidade ao pensamento, externando-o

por todos os motivos.

Voltei com ele ao antigo solar que o vira nascer e vicejar, onde desfrutara o convívio amoroso da família, que tanto o prezara, e por cujas salas atapetadas o

vulto de sua inconsolável mãe parecia ainda mover-se alucinadamente, desde o momento em que o vira extinguindo-se, com os pulsos seccionados! Já não perten da aos

de Queiroz e Sousa a quinta formosa, nem lá se encontrava a amorosa velhinha que ele, agora, os remorsos porejando dos escaninhos da alma, buscava com aflição, inconsolável

por não lograr jamais notícias, quando todo o seu ser vibrava em ânsias de saudades!... Vi o antigo professor de Dialética chorar diante da lareira, posto de joelhos

no local justo onde outrora se conservava o balanço da velha senhora, rogando seu perdão pelo desgosto atroz infligido ao seu terno coração de mãe; a suplicar, entre

pranto aflitivo e comovedor, sua presença saudosa, ainda que por alguns instantes, a fim de que se amenizasse em seu peito a dor feraz da saudade que lhe estorcia

a alma!

Qual peregrino desolado procurou-a por toda a parte onde supôs provável encontrá-la. A amorosa velhinha, porém, para quem vida, alegria e felicidade se resumiam

nele, não era encontrada em parte alguma! Até que idéia desconcertante lhe apontou a derradeira possibilidade: dirigiu-se ao jazigo da família, onde repousavam as

cinzas dos seus antepassados. Sua mãe decerto também lá estaria...

Com efeito! O nome adorado lá se encontrava, gravado na pedra tumular, ao lado do seu próprio nome...

Belarmino ajoelhou-se então, à beira do próprio túmulo, e orou por sua mãe, desfeito em lágrimas.

Entardecia quando, silenciosos, descemos a encosta alfombrada do Campo Santo. Procurei, à medida das minhas possibilidades, levantar o ânimo do amigo querido;

e, enquanto vagávamos pelas ruas, observei, esforçando-me por parecer confiante e consolativo:

"- Será fácil deduzir quanto ao destino de tua veneranda mãe, ó meu amigo! Não se achará, com certeza, enclausurada naquela gaiola de mármore e podridão, pulverizando-se

com os últimos elementos materiais que ali se encerram... uma vez que nem tu lá te encontras!... O senso indicará que, sendo nós ambos seres portadores de personalidade

eterna, também ela o será... e que, como nós, se encontrará em local apropriado àsua existência extracorporal, mas nunca no poço tumular..."

"- Sim!... Eu já o havia pensado, Camilo... Porém, onde estará ela?... Em que local do Infinito Invisível?... E por que será que nunca mais, nunca mais, sendo

eu imortal, pude encontrar minha mãe querida?... Por que não a entrevi jamais, refletida nos possantes aparelhos de nossa enfermaria, em visita telepática?... Vê-la-ei

porventura algum dia?..."

"- Perdão, Belarmino... Pareceu-me ouvir-te dizer que também a senhora tua respeitável mãe compartilhava das crenças materialistas que professaste ?...

Como quererias, então, que vivesse a orar por ti, fazendo-se refletir na sensibilidade de um medidor de vibrações espiritualizadas, para servir-me das explicações

dos nossos caros amigos da Colônia?... Indaguemos antes do seu paradeiro ao Dr. de Canalejas ou ao nosso Roberto... Quanto a mim não anteponho dúvidas à possibilidade

de a reveres tu! Se tudo quanto nos tem envolvido, desde que penetramos o além-túmulo, impõe-se pela justeza da lógica, a mesma lógica conduzir-te-áa reveres tua

mãe, mais tarde ou mais cedo.. ."

"- Sim, perguntemos ainda uma vez aos doutores de Canalejas... Quantas vezes já o fiz, esquivando-se ambos a respostas decisivas!... Mas... onde os encontraremos

agora .... Não deixaram endereços!..."

"- Esperemos, então, até encontrá-los... Sejamos pacientes... Amigo de Queiroz e Sousa! Em dezesseis anos de desgraças surpreendente, creio que aprendi rudimentos

da sublime virtude denominada Paciência!..."

"- Todavia, Camilo amigo, preferia não ter voltado a Portugal... Sinto-me intranqüilo e triste..."

Não obstante, sentíamos fadiga e queríamos descansar.

Onde, porém, achar abrigo?...

O decoro, o respeito ao domicílio alheio inibia-nos buscar hospedagem em casas ....... Quanto aos velhos amigos, não nos podendo perceber, tornavam-se ainda mais

respeitáveis para nós, por não desejarmos participar de sua intimidade como intrusos ou indiscretos.

Habituados à disciplina confortadiva do Instituto, era premidos pela saudade do suave aconchego que continuávamos a transitar pelas ruas da cidade. Incoercível

tristeza anuviava-nos o coração, ao passo que o crepúsculo derramava nostalgia em derredor, avolumando as sombras e as impressões que nos chocavam.

Belarmino alvitrou nossa hospedagem em uma igreja, cuja nave, repleta de fiéis, convidava francamente à intrusão. Repeli, no entanto, a sugestão, fiel à antiga

incompatibilidade com os representantes do clero. Numerosos locais foram, em conseqüência, lembrados, mas tanto os indicávamos como imediatamente eram rejeitados...

De súbito, como se a fraternal solicitude de Teócrito nos observasse através dos espelhos magnéticos, acompanhando nossos passos como fizera a Jerônimo, idéia

salvadora iluminou-me a mente e bradei, jubiloso:

Fernando!...

Sim, Fernando de Lacerda! o protetor inesquecível, cujos caridosos pensamentos de amor e de paz, diluídos em cintilações de preces, tantas vezes me visitaram

no desconsolo apavorante do tugúrio de trevas, onde minhalma expiava a ousadia de se haver antecedido à determinação da Justa Lei!

Sim, Fernando! o coração boníssimo, que continuava, incansável e piedoso como ele só, a cativar-me com suas constantes visitas mentais, seus abraços amoráveis

convertidos em radiações benfazejas de novas preces para novas conquistas de dias melhores para o meu destino!...

Não ignorávamos o domicílio do velho amigo. Tampouco a repartição onde exercia seu honesto labor. Tampouco o local onde se reunia de preferência, para experimentações

científicas e culturais, a que, ao lado de atenciosos companheiros, emprestava os melhores esforços, por já o havermos visitado quando da primeira vez que lográramos

descer à Terra. Para seu domicilio, pois, nos dirigimos, ali nos abrigando, discretos e humildes, ocupando cômodo acima do telhado, "água-furtada" que se diria apropriado

pelo Invisível para hóspedes de nossa categoria.

Alguns dias de permanência ao lado de Fernando e seus cômpares foram suficientes para me readaptarem aos acontecimentos terrenos, reambientando-me na vida social.

Não foi, todavia, sem sensíveis constrangimentos que o fiz, sinceramente saudoso do convívio sereno e leal da sociedade invisível a que já me habituara.

Largamente confidenciei-me com o precioso médium tão benquisto em nosso Instituto. No suave abrigo oferecido pelas "águas-furtadas" reuni idéias e deliberei

realizar um programa, com vistas à efetivação das recomendações de Teócrito. Deveria, antes de tudo, voltar a esclarecer aos meus antigos amigos, colegas, editores,

e até aos adversários, que o suicídio não lograra decepar-me a vida, tampouco a inteligência e a ação. Escrevi, então, falando ao cérebro de Fernando, em colóquios

amistosos que muito me confortavam, e servindo-me de sua mão como de uma luva que calçasse à minha própria mão, longas cartas a amigos de outrora, que a morte me

não fizera olvidar; noticiário sincero e verídico de minhas impressões, procurando identificar-me no estilo literário que me conheciam. Não comportava já, porém,

vaidades o meu gesto! Pretendia antes preparar ambiente para mais amplas reportagens futuras. Meu intento era avisá-lo, antes de mais nada, de que eu continuava

vivo, bem vivo e pensante, não obstante a tragédia inconcebível que o túmulo ocultara aos débeis olhos humanos! Meu desejo era revelar-me àquela mesma sociedade

que me conhecera, rejubilá-la com as alvíssaras de que, como eu, também ela era imortal; preveni-la, enfim, conscienciosamente, dos perigos existentes atrás das

sombrias ciladas forjadas pelo monstro - Suicídio!

Mas... apesar da boa-vontade de que me sentia possuido, da dedicação do generoso amigo que me emprestava inestimável concurso, passei pela decepção e a vergonha

de ser repelido pela maioria daqueles mesmos a quem desejava servir revelando-me individualidade pensante, inteligência viva, independente e normal, não obstante

a invisibilidade do estado em que me achava. Sem o desejar, grandes desgostos atraí para o pobre Fernando, a quem antes eu quisera respeitado e honrado em virtude

do magnífico dom que trazia, tal o de transmitir facilmente o pensamento das almas defuntas: e foi ele alvo de críticas demasiado ardentes e injustas, insultos ingratos,

remoques abusivos!

Desapontei-me, contrariado. Não era possível à minha boa-vontade o defender o nobre amigo, visto que me não desejavam ouvir. De nada valiam tantos e tão interessantes

noticiários que trazia eu das minhas bandas nevadas do Além a fim de surpreender antigos competidores na literatura; tantos e tão impressionantes dramas e narrativas

com que enriquecer outros editores que necessariamente me reconheceriam através da linguagem que lhes fora habitual! Via-me forçado a calar, porque bem poucos eram

os que me aceitavam a volta!

Entretanto, o convívio com Fernando compensava-me das derrotas nos outros setores, muito edificado me senti graças às palestras que comumente com ele empreendia,

reservando-lhe eu a minha melhor afeição, um tono sempre crescente de gratidão pelas simpatias que a mim, como aos meus cômpares, infatigavelmente demonstrava.

Por uma tarde de sol, um mês depois de nossa chegada a Portugal, quando os perfumes amenos dos aloendros se misturavam ao sugestivo olor dos pomares fartos, espalhando

vida e encantamento pela atmosfera serena, voltei, sozinho e pensativo, num gesto abusivo e temerário, à Quinta de S...

Recordações doridas erguiam-se quais duendes obsessores a cada palmilhar pela estrada alfombrada e tepida... e o Passado impunha-se a pouco e pouco, sacudindo

de minhas lembranças as cinzas do esquecimento, que os dúlcidos favores celestes haviam espargido sobre minhas dores, assim aviventando-as para novamente me cruciarem

o coração!

Afigurou-se-me desguarnecido o velho casarão. Um por um dos solitários compartimentos foram por mim visitados sob o cáustico mental de recalcitrantes ansiedades.

Sombras de odiosas amarguras incidiam sobre meu raciocínio, compelindo-o para trás a cada ressurgimento das lembranças que estabeleciam estranha retrospecçãO da

vida que tão fértil me fora em episódios adversos, decepcionantes! Panorama autêntico do que havia sido o meu viver, com lutas e responsabilidades imanentes em cada

dia, desenvolveu-se milagrosamente em minha consciência superexcitada pelo fenômeno da introspeCÇãO voluntária, obrigando-me à subserviência de outra vez sentir,

sofrer e reviver integralmente o que para trás me pungira, calcando-me a alma! E suores de agonia porejavam das sutilezas do meu ser astral, denunciando à consciência

a completa ausência de méritos que, naquele instante melindroso, me galardoassem com honrosos beneplácitos! Dir-se-ia que os episódios evocados pelas emoções aboboradas

no ambiente em que outrora vivi, pensei, agi e impregnei de forças mentais deletérias se agigantavam à minha hipersensibilidade momentânea, transmutando-se em fantasmas

tirânicos que me deprimiam, quando deixavam de acusar!

O insuportável convívio da intimidade doméstica, que as vetustas paredes testemunharam; as desarmonias e incompatibilidades constantes, que me tornavam

a vida oceano conflagrado; o peso lúgubre de pensamentos viciados por insatisfação doentia, que a tara neurastênica arrastou à completa desorganização nervosa; a

desolação das trevas que se confirmavam, tapando-me a luz dos olhos, que cegavam; a longa premeditação para o desfecho sinistro; o desespero supremo; a queda final

para o abismo, tudo se ergueu assombrosamente, das entranhas do meu "eu", sob as sugestões pesadas do ambiente malsinado que presenciou os últimos dias da minha

existência de homem! E - ó grandiosa faculdade, que tanto premia como pune a consciência, tais sejam as ações desempenhadas que se hajam fotografado em suas suscetibilidades!

- revi, sentindo-lhes os efeitos, até mesmo as cenas derradeiras, isto é, os estertores macabros da morte aniquilando, antes do justo prazo, aquele fardo que me

fora confiado pela solicitude divina como sagrado depósito, para a recuperação honrosa de um passado ominoso, carregado de opróbrios!

Desorientado, tomado de crise atordoante, perdi a memória do presente, embrenhado que me deixei ficar pelos espinheiros do pretérito, como absorvido por infernal

demência retrospectiva, e entrei a bramir, réprobo que fora nas convulsões sinistras de antanho, a ulular e gemer, a blasfemar e chorar o pranto satânico daquele

para quem se extinguiram a esperança de consolo, a trégua para repousar e refletir!... E quem, porventura, ali ainda residisse, ou pelos arredores passasse então,

e pudesse dilatar os dons psíquicos, percebendo a tragédia por mim rememorada, afirmaria que dezesseis anos depois de minha morte ali me pressentira ainda, entre

gemidos e atroamentos de incontidas dores!

Quando voltei a mim, refeito do colapso maldito, Romeu e Alceste, ternos e solícitos, ungiam minha fronte com os refrigerantes eflúvios de suas peregrinas potências

magnéticas, os quais me tonificavam a alma quais neblinas benfazejas sobre a planta ressequida e débil!

O céu enluarado revelava que muitas horas eu assim passara, alucinado dentro do círculo ígneo do Passado, pois era já noite, as estrelas longínquas lucilavam,

alindando o firmamento!

Vi-me em repouso sob o frescor dos arvoredos perfumosos, e os velhos ramados do vinhedo próximo disseram-me que me encontrava ainda na Quinta. Inaudito desgosto

pungia-me o coração, enquanto as lágrimas deslizavam suavizando a opressão que me sufocava o seio.

Roguei aos eminentes Guias que, por mercê especial, me reconduzissem ao Pavilhão Indiano, onde me consideraria seguro, a coberto de qualquer cilada da mente

entrechocada pelos passados despautérios. Portugal com suas recordações amaríssimas, Lisboa, o velho Porto - a Terra enfim - tudo enoitava meu Espírito, predispondo-o

à extração de sombras e sofrimentos que eu desejava, precisava esquecer! Mas não fui atendido, a benefício de minha própria reabilitação moral, asseverando-me os

nobres mentores que algo eu deveria realizar naqueles mesmos ambientes, como testemunho das capacidades de renunciação e desprendimento adquiridas para incursões

novas nos planos espirituais, os quais nem eu nem tampouco meus cômpares havíamos verdadeiramente atingido até então, não obstante a repugnância infligida pelas

atormentadoras recordações locais!

Comovido até às lágrimas, emiti então ardente súplica, intimidado diante das pesadas responsabilidades que me sobrecarregavam:

"- Nobres e queridos mentores, indicai-me então o que seja lícito tentar a fim de mitigar as torturas morais que me intoxicam as energias, depauperando-me a vontade!

As lembranças revivescidas, o ambiente, as desilusões, o olvido sentimental a que lançaram minha memória aqueles em que mais confiei, são dissabores que me excruciam

dolorosamente o coração, superexcitando-me a sensibilidade a um grau desolador!... Que eu saiba agir com acerto, algo praticar de meritório, bastante honroso para

me permitir refrigério e consolo eficiente! Aconselhai-me!..."

Proferida que foi minha súplica, e enquanto as imagens formosas dos dois jovens se adelgaçavam cada vez mais, rarefazendo-se sob os raios opalinos do crescente

lunar que romantizava a paisagem, ouvi que me respondiam com uma interrogação:

"- Quais foram as advertências de Roberto ao vosso grupo, na véspera da descida para estas instruções?. .

"- Oh!... Ah! sim, lembro-me... Que procurássemos refrigerar as faculdades convulsionadas pelo sofrimento... levando balsamizador auxílio a sofredores em mais

criticas situações... E nos reanimássemos ao contacto dos bons e sinceros amigos, cujos corações, iluminados pelas refulgências de lídimas virtudes, fossem fortes

bastantes para aquecer-nos o frio do desânimo, indicando-nos os passos para roteiros prometedores..."

"- Pois fazei isso... Roberto aconselhou como devia. .

Reuni então todas as forças de que era capaz, impus serenidade aos sentidos abalados pelas emoções, alcei energias mentais recordando as invocações ao Mestre Nazareno,

e orei também, fervoroso e humilde, a pedir socorro e proteção.

A solidão em redor aterrava-me! contemplei o casario sinistro e arrepios de odiosas emoções incentivaram em mim o desejo de afastar-me, mas afastar-me para muito

longe, onde fosse possível esquecer a tragédia que, para mim, tudo aquilo recordava! Fustiguei os passos e afastei-me... mas, ao transpor os umbrais malditos, compensadora

surpresa aguardava-me, resposta, certamente, à súplica feita ao Amigo Divino:

Ramiro de Guzman e Roberto de Canalejas ali estavam à minha espera!

"- Louvado seja Deus !" - exclamei, num hausto de gratidão profunda...

E confiante segui tão valiosa companhia, que me reconduziu piedosamente ao modesto domicílio terreno, retirando-se em seguida.

Obedientes a impulsos de longas elucubrações, oriundos de antigos conselhos, advertências e exemplos dos nossos vigilantes e instrutores, organizamos uma como

"associação de classe" no intuito de estudarmos e realizarmos ações combativas às idéias de suicídio, às inclinações mórbidas, detentoras de infernal predisposição

que contaminava as diferentes classes sociais, às quais, agora, poderíamos voltar, como entidades invisíveis que éramos. Eivada de duros percalços, todavia, se nos

apresentou a vultosa empresa... E não fora os eficientes socorros da luminosa assistência que nos inspirava, certamente não lograríamos quaisquer resultados satisfatórios.

Quiséramos de início nos tornarmos vistos e compreensíveis pelos homens, acreditados nos seus conceitos através de testemunhos, francos e minuciosos, que lheS forneceríamoS,

da realidade do mundo em que vivíamos, fosse positivando nossa identidade ou por várias outras particularidades ao nosso alcance. Quiséramos com eles entreter relações

amistosas e sérias, confabulações in teressantes e elucidativas, intercâmbio permanente de noticiário, por nós considerado da mais alta utilidade para todo o gênero

humano, porqüanto tendia a adverti-lo do perigo desconhecido que representava o suicídio para a sociedade terrena. Raros, porém, aqueles que consentiram em aceitar

nossas tão sinceras efusões, e, assim mesmo, quase todos estranhos para nós, fora, mesmo, de Portugal! Comumente, no entanto, sucedia que, após grandes esforços

e fadigas no trabalho de criarmos oportunidades para o almejado momento; depois de consecutivos dias de experiências exaustivas em torno de médiuns ansiosamente

descobertos aqui e ali, porque nossos versos ou nossa prosa de além-túmulo se apresentassem algo desfigurados à falta da puridade do estilo que nos fora habitual,

como se não tivéssemos a vencer exausUvas dificuldades apresentadas, não apenas por aqueles instrumentos como, principalmente, pela exigente e impiedosa comitiva

que geralmente os cerca, negavam-se a dar-nos crédito e repeliam-nos ríspida e chocantemente, servindo-se para as críticas, com que nos recebiam, de zombarias e

remoques ofensivos, impróprios de corações educados, correndo conosco como a vagabundos e indesejáveis do Astral, acoimando-nos de mistificadores e mal-intencionados!

Se tentávamos narrar as surpreendentes peripécias deparadas pelo desvio a dentro do suicídio, ou descrever a vida para além fronteiras do túmulo, com todas as cores

mais fortes do ineditismo, por entendermos dever de solidariedade o ajudar os incautos a se precatarem, desviavam as atenções do plano espiritual sério e dignificante

para se permitirem interrogar-nos sobre assuntos subalternos que só a eles próprios diziam respeito e interessavam, e os quais ignorávamos completamente, vexando-nos

a idéia de solicitarmos auxílio de nossos nobres instrutores a fim de nos tornarmos agradáveis; preferiam tratar de frivolidades e questões medíocres, pouco criteriosas

muitas vezes, o que nos decepcionava e entristecia, provocando freqüentemente nossas lágrimas, pois o tempo corria e nada obtínhamos que registrasse algo de bom

e meritório no severo livro da Consciência!

Encontrávamo-nos, assim, em luta para a consecução desse desiderato, quando nos assaltou desejo ardente de nos transportarmos para o Brasil. Sabíamos ser o país

irmão campo vasto e fácil para os exercícios que trazíamos em mira, certamente muito menos preconceituoso do que o deparado em nossa Pátria - Repercutia ainda em

nossas lembranças a formosa reunião a que assistíramos certa noite, no interior de Minas Gerais, onde fôramos levados em falange por nossos desvelados educadores

do Instituto, e quiséramos, agora, experimentar falar com os brasileiros, a ver se lograríamos algo de mais positivo. Como fazer, porém, para chegarmos até lá?!...

Foram ainda aqueles Incansáveis legionários que acudiram aos veementes brados de socorro dirigidos por nossas mentes ansiosas, unidas em preces, à Caridade Sublime

de que eram dignos representantes. Encaminharam-nos ao local almejado transportando-nos facilmente sob sua proteção, felicitando-nos com novas instruções em asilo

seguro, sob a proteção do qual estaria-mos a coberto de surpresas desagradáveis. Tratava-se de benemérita instituição registrada no Mundo Espiritual como depositária

de inspirações superiores, a servir de padrão para as demais que se quisesssem expandir em terras de Santa Cruz, dedicando-se aos estudos e práticas das doutrinas

secretas e aos feitos benemerentes próprios de veros iniciados cristãos.

Iniciamos, então, luta árdua e exaustiva.

Todos os recursos, no entanto, de que podíamos dispor, tentamos a fim de aproveitarmos médiuns brasileiros para o almo, sacrossanto projeto que tínhamos em mira!

Humildes, dóceis, afáveis, amorosos, sinceros no desejo de servir, encontramos vários deles que se poderiam ter tornado cireneus de nossas aflições, suavizando nosso

calvário de reparações e experiências - Tudo fizemos por utilizarmos suas faculdades para os trabalhos literários com que quiséramos testemunhar a Deus nosso arrependimento

por infringirmos Suas Leis.

Mas, oh! a tortura do idioma!

Por que os brasileiros, Deus do Céu, descendentes nossos, nossa raça, mesmo nosso sangue, tanto se desviaram do nosso culto pela língua pátria?... E por que

ao menos os homens não tratavam de se habilitar num idioma tornado universal, que a nós, Espíritos, como a eles, concedesse possibilidades de expansões brilhantes!...

O que, então, poderíamos produzir, servindo-nos de médiuns como os há em terras do Brasil!...

Lembrei-me, certa vez, das advertências de Roberto, prevenindo das dificuldades com que esbarraria para me comunicar com os homens, e reconheci-as justas, verdadeiras!

O desânimo invadia-me! Profunda tristeza ameaçava renovar dissabores deprimentes, apoucando-me a alma, quando, uma noite em que nos achávamos reunidos, tratando

tristemente do que tanto nos preocupava, em nosso abrigo da magna instituição brasileira, fomos surpreendidos pela visita de Fernando, cuja vestidura carnal adormecera

profundamente, em seu domicílio, no velho e amado Portugal, pois ia já alta a noite. Orara ele em nosso benefício ao recolher-se, impressionado com nossas freqüentes

aparições ao seu peregrino dom mediúnico; e, certamente impulsionado por inspirações caritativas do plano etéreo, não tardou a descobrir-nos a fim de piedosamente

nos servir ainda uma vez, prestativo como sempre.

Estabeleceu-se então amistosa e útil confabulaçãO no silêncio propicio da magna agremiação. Convidou-nos ele a exercer com mais freqüência o almo dever da oração,

criando, através dele, meios de comunicação mais diretos com nossos mentores, a fim de lhes recebermos com maior viveza a inspiração permitida no caso, pois éramos

como alunos que pusessem à prova ensinamentos já recebidos para se permitirem ensejos novos no futuro. Reiterou oferecimentos para os intuitos que trazíamos, aflitos

que nos reconheceu ante as impossibilidades que se nos antolhavam. Concitou-nos a continuar dizendo algo ao mundo por seu intermédio, não nos dando por vencidos

ante as algaravias de adversários vezados ao hábito da crítica insana, abandonando ao nosso dispor, como sempre, suas hialinas faculdades psíquicas, onde nos sentíamos

refletir como num espelho! Do seu coração generoso soube extrair conselhos e advertências, com o que nos mitigou a ansiedade do terror que nos oprimia à idéia de

um fracasso nos penosos exames a que de direito nos víamos expostos. E acrescentou, comovido e sincero, desejoso de nos impelir à linha reta:

"- Se em vez do que vindes tentando improficuamente, procurásseis meios de vos tomardes agentes da lídima Fraternidade, exercida com tanta eficiência pelo Divino

Modelo do Amor, já vos encontraríeis vitoriosos, espalmando alegrias que longe estariam de vos manter a alma assim torva e encapelada.

A Caridade, meus amigos - permita-me que vo-lo recorde -, é a generosa redentora daqueles que se desviaram da rota delineada pela Providência! Por isso mesmo

o sábio Rabi da Galiléia ofereceu-a como ensinamento supremo à Humanidade, que Ele sabia divorciada da Luz, por mais fácil e mais rápido caminho para a regeneração!

É tempo já de pensardes com desprendimento na Divina Mensagem trazida por Jesus e de saturardes os arcanos do ser com algumas gotas das suas essências imortais

e incomparáveis!

Reparando o rápido gesto que vos impeliu ao abismo, podereis praticá-la, a um mesmo tempo servindo àvossa e à causa alheia.

Avultam nas camadas sociais terrenas, como nas invisíveis, problemas dolorosos a serem solucionados, desvarios a serem moderados, infinitas modalidades de desgraças,

desventuras acérrimas a afligirem a Humanidade, requisitando concurso fraterno de cada coração generoso a fim de serem ressarcidas, consoladas!

Nos hospitais, nas prisões, nas residências humildes como na opulência dos palácios, por toda a parte encontram-se mentes enoitadas pela incompreensão e pelo

desespero, corações precipitados pelo ritmo violento de provações e de problemas insolúveis neste século! Em qualquer recanto onde se haja ocultado a descrença,

onde a paixão se instale e a desventura e o infortúnio se mesclem de revolta ou desânimo; onde a honra, a moral, o respeito próprio e alheio não forem consultados

para a prática das ações, e onde, enfim, a vida se converteu em fonte de animalidade e egoísmo, lavra a possibilidade de uma queda nos abismos de trevas onde vos

agitastes entre raivosas convulsões!

Diligenciai por encontrar tais recantos: estão por aí, a cada passo!... Aconselhai o pecador a deter-se, em nome da vossa experiência!... e apontai-lhe, como

bálsamo para as amarguras, aquele mesmo que desdenhastes quando homem e hoje reconheceis como o único refrigério, a única força capaz de soerguer a criatura da desgraça

para enobrecê-la à mirífica luz da conformidade nos prélios dignificantes de onde sairá vitoriosa, quaisquer que sejam as decepções que a açoitem: O Amor de Deus!

A submissão ao irrevogavel! Tomai-Vos consoladores, exercitando agenciar a Beneficência, segredando sugestões animadoras e reconfortativas ao coração das mães aflitas,

dos jovens desesperados pelas desilusões prematuras, das desgraçadas mulheres atiradas ao lodo, cujos infortúnios raramente encontram a compassividade alheia, as

quais sofrem insuladas entre os espinhos das próprias inconseqüências, desencorajadas de reclamarem, para si também, a ternura paternal de Deus, a que, como as demais

criaturas têm sacrossantos direitos! São, todos estes, seres que estão a requisitar alento protetor dos corações sensíveis, bem-intencionados, quando mais não seja

com a dádiva luminosa de uma prece! Pois dai-lho, uma vez que também o recebestes de almas serviçais e ternas, quando vos encontráveis a bracejar entre bramidos

de dor, nas trevas que vos surpreenderam após a tragédia em que vos deixastes enredar! Contai-lhes o que vos sucedeu e concitai-os a sofrerem todas as situações

deploráveis que os deprimem, com aquela paciência e aquele valor que vos faltaram, a fim de que não venham a passar pelos transes dramáticos que vos endoideceram

além das fronteiras da vida objetiva!

... E quando, virtualmente, encontrardes médiuns cujas organizações vibratórias se adaptarem às vossas, não vos preocupeis com os lauréis passados, que aureolaram

o vosso nome entre os humanos. Esta glória despenhou-se convosco nos pélagos do pretérito, que não soubestes legitimamente honorificar! Furtai-vos ao vaidoso prazer

de identificar-vos ao fazerdes vossos discursos ou mensagens psicográficas através dos médiuns. Ainda que afirmando grandes verdades, não seríeis tais como fostes,

como até agora não o tendes sido! Vosso nome glorificou-se de singular popularidade sobre a Terra, para que a Terra se conforme em vê-lo retornar àsua sociedade

filtrado pela mente humilde de médiuns obscuros!...

Preferi, portanto, as manobras santificantes da Caridade discreta e obscura, preferi!... E bem cedo reconhecereis, através das trilhas que haveis de palmilhar,

as florescências de muito doces alegrias..

Ouvimo-lo com muito agrado e interesse. Fernando, mesmo a falar em corpo astral, enquanto a armadura carnal ressonava acolá, em Portugal, dir-se-ia inspirado

por alguém de nossa Colônia saudosa, interessado em nossos êxitos. Reconhecemos mesmo, por várias vezes, em seu fraseado vigoroso e terno a um mesmo tempo, as expressões

dulçorosas de Teócrito, o acento paternal, singelo, amoroso, do amigo distante que não nos esqueceu... e as lágrimas rolaram de nossos olhos, enquanto funda saudade

nos transportava o coração...

No dia imediato deliberamos visitar hospitais, enfermos em geral, deixando para mais adiante empreendimentos outros, relativos aos serviços de auxílios ao próximo,

que nos fossem sugeridos. Éramos ao todo trinta entidades, e entendemos dividir-nos em três grupos distintos, por imitarmos os métodos do nosso abrigo do mundo astral.

Com surpresa notamos que, não só nos percebiam os pobres enfermos em seus leitos de dores, como até naturalmente nos ouviam, graças à modorra em que os mantinha

suspensos a gravidade do mal que os afligia, a febre como a lassidão dos fluidos que os atavam ao trono do fardo corporal. Tanto quanto se tornou possível, levamos

a essas amarguradas almas enjauladas na carne o lenitivo da nossa solidariedade, ora insuflando-lhes conformidade no presente e esperança no futuro, ora procurando,

por todos os meios ao nosso alcance, minorar as causas morais dos muitos desgostos que percebíamos duplicando seus males.

Belarmino, a quem a tuberculose impelira à deserção da vida objetiva, preferira dirigir-se aos enfermos dessa categoria, a fim de segredar sugestões de paciência,

esperança e bom ânimo aos que assim expungiam débitos embaraçosos de existências antigas ou conseqüências desastrosas de despautérios do próprio presente. Eu, que

fora paupérrimo, que preferira desobrigar-me do dever de arrastar a vida, até final, pelas ruinosas estradas da cegueira, dando-me à aventura endiabrada de um suicídio,

fui impelido, mau grado meu, pelo remorso, a procurar não só nos hospitais aqueles que iam cegando a despeito de todos os recursos, mas também pelas ruas, pelas

estradas, pobres cegos e miseráveis, para lhes servir de conselheiro, murmurando aos seus pensamentos, como mo permitiam as dificuldades, o grande consolo da Moral

Radiosa por mim entrevista ao contacto dos eminentes amigos que me haviam assistido e confortado no estágio hospitalar onde me asilaram os favores do Senhor Supremo!

E muitas vezes compreendi que obtinha êxitos, que corações tarjados pelo desânimo e pela desolação se reanimavam às minhas sinceras e ardentes exortações telepáticas!

João d'Azevedo, o desgraçado que se aviltara nas trevas de inomináveis conseqüências espirituais, escravizando-se ao vício do jogo; que tudo sacrificara ao abominável

domínio das cartas e da roleta: fortuna, saúde, dignidade, honra, e até a própria vida, como a paz espiritual, voltara, angustiado e oprimido, aos antros em que

se prejudicara a fim de sugerir advertências e conselhos prudentes a pobres dominados, como ele o fora, pelo letal arrastamento, tudo tentando no intuito de afastar

do abismo ao menos um só daqueles infelizes, suplicando forças ao Alto, concurso dos mentores que ele sabia dedicados à ação de desviar do suicídio incautos que

se deixam rodear de mil possibilidades desastrosas.

Eram mais rudes ainda, porém, os testemunhos do desventurado Mário Sobral!

Ulcerada pelos hábitos do passado, sua mentalidade arrastava-o para os lupanares, mau grado o sincero arrependimento por que se via possuido; exigia-lhe reparações

dificultosas para um Espírito, atividades heróicas que freqüentemente o levavam à violência de sofrimentos indizíveis, provocando-lhe lágrimas escaldantes! Víamo-lo

a querer demover, desesperadamente, a juventude inconseqüente da contumácia nos maus princípios a que se ia escravizando, narrando a uns e outros, através de discursos

em locais inadequados, as próprias desventuras, no que não era absolutamente acatado, porque, nos antros onde a perversão tem mantido o seu império letal, as intuições

de além-túmulo não se fazem sentidas, porqüanto, as excitações dos sentidos animalizados, viciados por tóxicos materiais como psíquicos, de repulsiva inferioridade,

tornam-se barreiras que nenhuma entidade em suas condições será capaz de remover a fim de se fazer compreendida!

Estendemos tais ensaios, após, às prisões, obtendo êxito no sombrio silêncio das celas onde se elaboravam remorsos, no trabalho da meditação... E por fim invadíamos

domicílios particulares à cata de sofredores inclinados à possibilidade de suicídio, e que aceitassem nossas advertências contrárias através de sugestões benévolas.

Havia casos em que o único recurso que nos ficava ao alcance era o sugerir a idéia da oração e da fé nos Poderes Supremos, induzindo aqueles a quem nos dirigíamos,

geralmente mulheres, a mais amplo devotamento à crença que possuíam. No entanto, sofríamos, porque o trabalho era demasiado rude, excessivamente vultoso para nossa

fraqueza de penitentes cujo único mérito estava na sinceridade com que agiam, na boa-vontade para o trabalho reparador!

Assim foi que viajamos pelo interior do Brasil procurando, quanto possível, prevenir contra a malfazeja tendência observada, tristemente, por nossos Guias, no caráter

impulsivo dos brasileiros, tendência que dava em

resultado estatísticas inquietadoras nos casos de suicídios!

Conhecemos, assim, as extensões desoladas do Nordeste inclemente, rendendo homenagens ao sertanejo heróico que, em lutas árduas e incessantes com a penúria da

eterna estiagem, não descria jamais nem do seu Deus nem do futuro, esperançado sempre no advento de dias melhores, de uma Pátria compensadora que, em verdade, só

encontraria no seio da Imortalidade!

Nas caravanas altamente instrutivas a que nos levavam, grandes lições recebemos então, as quais mui profundamente calaram em nossos corações, iluminando nossas

mentes com novas e fecundas apreciações filosóficas. Representantes da direção espiritual das terras de Santa Cruz, como o grande, o boníssimo Bezerra de Menezes,

e o mavioso poeta do Senhor - Bittencourt Sampaio - lecionavam para nós outros, ao lado de nossos mentores, exemplos fecundos colhidos na vida cotidiana de muitos

brasileiros, sobre os quais choramos de pena e arrependimento, pois tivemos ocasião de examinar com eles modalidades de desgraças e sofrimentos comparados aos quais

aqueles que nos haviam levado ao desespero não se apresentariam senão como truanices próprias de boêmios piegas... No entanto, nordestinos, amazônicos e mesmo nativos

do centro incivilizado do país tudo suportavam resignadamente, até mesmo a indiferença de seus compatriotas mais felizes, com o pensamento vigoroso daquele que sabe

crer, que sabe esperar!

Entrementes, víamos com desgosto que Mário Sobral distanciava-se a pouco e pouco das possibilidades de outro futuro imediato que não aquele por ele mesmo escolhido,

único, aliás, para que se sentia impulsionado:

o retorno imediato à encarnação, para resgates pesados, em meio familiar afinado com seu estado mental!

Mário desatendia freqüentemente ao chamamento do dever para as reuniões e caravanas elucidativas presididas pelos assistentes; faltava às expedições piedosas

de visitação aos sofredores, olvidando deveres sagrados que conviria cumprisse a bem da reabilitação própria! Dir-se-ia que, ao contacto da sociedade terrena, se

deixava brutalizar pelas antigas atrações mundanas, esquecido dos veementes protestos de obediência durante a retenção no Departamento Hospitalar. Sentia-se arrastado

para os locais degradantes que fizeram suas preferências de outrora; e, a pretexto de tentar converter transviados e inconscientes à moderação dos costumes, comprometia-se

grandemente diante dos Guias observadores, afinando-se com o passado a tal ponto que, em torno dele, pressentíamos a possibilidade de um renascimento nas baixas

esferas do vicio! Já várias vezes fora advertido piedosamente, por Alceste e Romeu, que procuravam convencê-lo dos perigos daquela predileção para exercer atividades

reparadoras.

Infelizmente, porém, a paixão por Eulina, que o desgraçara na Terra e perturbara no Invisível, soldava-o ao presunçoso desejo de, em sua memória, procurar reerguer

do lodaçal dos vícios, prematuramente, outras tantas criaturas decaídas do pedestal do Dever!

Nosso estágio na Terra era um como exame para ascendência a novos cursos. Tínhamos liberdade de ação, conquanto não estivéssemos ao desamparo e fosse muito relativa

a liberdade com que contávamos.

Nós outros vínhamos obtendo aprovação nos exames.

Mário, porém, incidia nas causas passíveis de reprovação.

8

Novos rumos

"Não se turbe o vosso coração. Crede em Deus, crede também em mim. Há muitas moradas na casa de meu Pai."

JESUS CRISTO - O Novo Testamento. (22)

Havia cerca de dois meses que findara nosso estágio nas camadas terrenas. Regressáramos ao Instituto Maria de Nazaré e novamente nos Instauramos no pavilhão

anexo ao Hospital, onde residíamos desde quando recebêramos alta. Não lográramos ainda, porém, avistar-nos com Irmão Teócrito a fim de conhecermos sua opinião relativamente

ao modo pelo qual nos conduzíramos em liberdade.

O que mais nos preocupava era a opinião de Teócrito, as deliberações da direção-geral sobre nosso futuro.

Para onde iríamos?... Que seria de nós uma vez aumentados de Teócrito, de Roberto, de Carlos, de Joel, daquela elite acolhedora dos Departamentos Hospitalares?...

Reencarnaríamos Imediatamente, no caso de não termos conseguido méritos para mais longo estágio no aprendizado espiritual?...

Por um daqueles dias de ansiosa expectação, fomos surpreendidos com a visita do velho amigo Jerônimo de Araújo Silveira.

Chegara ao Pavilhão Indiano pela manhã, acompanhado do assistente Ambrósio, a cuja bondade tanto devia. Passara já pelo Hospital, a despedir-se de Teócrito

(22) João, capítulo 14, versículos 1, 2 e 3.

e seus auxiliares, em cujos corações encontrara sempre sólidas afeições; e agora nos procurava a fim de retribuir as visitas que lhe fizéramos e também despedir-se,

pois que naquela mesma semana encaminhar-se-ia para o Recolhimento, a cuidar dos preparativos da reencarnação próxima. Via-se a amargura timbrar-lhe as feições,

num aspecto de acabrunhamento inlludível. Jerônimo não fora jamais resignado! Desde o Vale Sinistro conhecíamo-lo como dos mais desarmonizados da nossa desarmoniosa

falange! Penalizado, alvitrei, medindo pelos meus os acicates que o deviam ferir:

"- Por que não retardas um pouco mais a volta ao teatro dos infortúnios que te pungiram, amigo Silveira!... Consta-me não ser obrigatório, em determinados

casos, o constrangimento à volta... Quanto a mim dilatarei o mais possível a permanência aqui... a não ser que me demovam resoluções ulteriores..."

Mas, certamente, as deliberações tomadas após a última visita que ao Isolamento fizéramos foram muito sérias e importantes, porque respondeu com ardor e veemência:

"- Absolutamente não convém aos meus interesses pessoais dilatar por mais tempo o cumprimento do dever... que digo eu?... da sentença por mim mesmo lavrada no

dia em que comecei a desviar-me da Lei Soberana que rege o Universo! Fui grandemente preparado por Irmão Santarém e Irmão Ambrósio, meus dignos tutores, para esse

serviço que se impõe às minhas criticas necessidades do momento. Depois de muito ponderar, cheguei à conclusão de que devo, realmente, renovar a existência humana

quanto antes, uma vez que meus erros foram graves, vultosas as minhas responsabilidades, os quais, portanto, onerando de exorbitantes débitos, agora, minha inquieta

consciência, me obrigam a expungir dela os reflexos desonrosos que a ensombram, o que só poderá efetivar-se em voltando eu ao teatro das minhas infrações a fim de

novamente realizar - mas realizar honrosamente - o mesmo que no passado Indignamente desbaratei, inclusive minha própria organização material!"

"- Quererás, assim, dizer que renascerás no Porto mesmo?..." - indagamos em coro.

"- Sim, amigos! Deus seja louvado!... Renascerei no Porto mesmo, como ainda ontem... Polsarei na vida objetiva em casa afazendada!... Serei novamente pessoa

abastada, cuidarei de capitais financeiros, meus como alheios, enfrentarei segunda vez as rijas tentações sopradas pelo orgulho, pelas vaidades e pelo egoísmo!...

Subirei no conceito dos meus semelhantes, considerar-me-ão personagem honrada e grada... Serei o mesmo, tal qual ontem o fui!... Apenas, não mais me conhecerão sob

o desonrado nome de Jerônimo de Ãraújo Silveira, porque outro receberei ao nascer, a fim de acobertar-me da vergonha que me segue os passos... Apenas tudo isso

realizarei como expiação, a terrível expiação de possuir riquezas, mais arriscada e temerosa que a da miséria, mais difícil de conceder méritos ao seu infeliz possuidor!...

A beira de um novo berço para ainda uma vez ser homem e ressarcir antigos delitos, comove-me até às lágrimas o verificar a paternal bondade do Onipotente, concedendo-me

a graça do retorno protegido pelo Esquecimento, pelo disfarce de uma nova armadura carnal, um nome novo, a fim de que minha desonra de outrora não seja por toda

a sociedade em que vivi reconhecida e execrada; e eu, assim confiante e fortalecido, possa tentar a reabilitação perante a Lei Universal que de todas as formas infringi,

perante mim mesmo, finalmente!... Pois sabei todos vós, amigos: a vergonha da desonra ruboriza-me ainda as faces espirituais, como no dia aziago em que me confiei

ao suicídio, no intuito de livrar-me dela!..."

"- Impressiona-me a tua argumentação, ó Jerônimo! Com satisfação verifico que não foram inúteis os esforços de Irmão Santarém e Irmão Ambrósio em torno do teu

caso..." - interveio João d'Azevedo.

"- Sim, - acudi, comovido e preocupado em esmiuçar notícias para os apontamentos de minhas projetadas memórias. - Observo que modificações sérias realizaram

milagroso efeito em teu modo de ponderar...

Porém, de que família renascerás, ó Silveira?!... Ainda por lá nos recordamos de várias famílias abastadas..."

"- Ainda que o soubesse, não vo-lo poderia revelar, meu caro Sr. de Botelho! Fui informado por meus tutores de que tão sutil realização verifica-se no santuário

de sigilos indevassáveis, por não permitir a Lei Magnânima quaisquer indiscrições que venham perturbar o bom andamento da evolução a confirmar-se... Segundo explicações

de Irmão Ambrósio saberemos, quando muito, apenas o local onde emigraremos... até que nos internemos no Recolhimento, onde, então, tudo se delineará para nós..

"- Todavia, assisti a certa entrevista de dois reencarnantes do Manicômio com seus futuros pais... e tenho ouvido dizer, a alguns vigilantes nossos, que muitos

pormenores poderão ser fornecidos sobre o assunto, até mesmo aos homens.. ." - retruquei agastado, recordando a visita feita ao Posto de Emergência da Colônia, com

a expedição do Departamento de Reencarnação.

Foi Irmão Ambrõsio que interveio, corroborando com autoridade as assertivas ouvidas ao já agora futuro capitalista do Porto:

"- Sim! Para estudo coletivo ou esclarecimentos pessoais que produzam efeitos salutares, e também como prêmio à sinceridade das intenções e ao devotamento ao

trabalho, serão permitidas certas revelações em torno do melindroso acontecimento, até mesmo aos leigos! Aos homens, principalmente, têm sido facultadas muitas indicações

a respeito, a fim de que lhes sirvam de incentivo ao progresso e mesmo de conforto durante as asperidades das reparações. Para satisfação de mera curiosidade, porém,

quer entre nós ou entre os humanos, nada será concedido de positivo. O reencarnante será esclarecido, ao internar-se no Recolhimento, do que lhe disser respeito,

do que lhe seja útil e necessário.

Referis ao acontecimento do Posto de Emergência?... Mas, quem são aquelas personagens!... Seus nomes?... Suas residências?... Uma ilha existente sob bandeira

portuguesa, apenas!... Certa localidade do imenso nor deste brasileiro... Convenhamos, meu amigo, que o sacrossanto segredo não foi revelado, não é verdade?..."

Baixei a fronte, desarmado, enquanto Belarmino, interessado, voltava-se para o velho amigo Jerônimo:

"- E tens confiança na vitória da reabilitação?..."

"- Sinceramente, tenho! conquanto me sinta compungido à idéia de reproduzir, ato por ato, com circunstâncias agravantes, a existência em que fracassei! Creio

estar, todavia, preparado para tanto, porque, se o não estivera, deixaria de receber beneplácitos de meus mentores maiores para prosseguir no único intento reabilitador

que me é dado! Aliás, meu caro Sr. professor, absolutamente nada mais lograrei alcançar do plano Invisível sem o expurgo triunfal dos meus imensos débitos! Forçoso

será compreender que desgracei minha própria família! Que lancei nas torrentes dificultosas da miséria outras famílias cujos chefes me emprestavam o concurso dos

próprios bens e de labores sagrados, os quais por mim se viram vilipendiados graças à minha insânia de jogador e devasso! Será preciso outrossim recordar que lesei

a Pátria, crime que repugna a qualquer homem honrado, deixando mal, ainda, funcionários que, bondosamente, intentando socorrer-me, por me facultarem prazo para reabilitação,

deixavam de agir como lhes era dever, lavrando penhoras, denunciando-me à Justiça, levantando falência, etc.! Todas estas feias coisas pesam na balança de uma consciência

acordada pelo arrependimento, 6 Belarmino! pois constitui crime perpetrado sob as inspirações da incúria, da má-fé, da devassidão dos costumes, da inconseqüência

leviana, do desamor ao Bem! Enredei-me de tal forma no sinistro porquê do suicídio, que me sinto agora agrilhoado ao pretérito por tão insidiosa cadeia que, a fim

de algo realizar nos planos espirituais, deverei voltar ao cenário dos meus deslizes para quebrá-las, refazendo dignamente o que insensatamente andei praticando!"

Como nenhum de nós ousasse aparteá-lo, o visitante prosseguiu, ao passo que rija tristeza ensombrava nossos corações:

"- Não mais terei filhos junto a mim! Deixando de zelar pela família até final; rejeitando a meio do caminho a honrosa incumbência de chefe do Instituto do Lar,

pelo Céu concedida no intuito de me fazer ascender em méritos, coloquei-me na desgraçada situação de não conseguir oportunidades, nessa próxima existência, de constituir

um lar e ser novamente pai!

Não obstante, a fim de ressarcir a feia atitude contra Zulmira e meus filhos, prometi a Maria, mãe boníssima do meu Redentor, cuja solicitude maternal reabilitou

Margaridinha e Albino, envidar todos os esforços, quando na Terra, no sentido de amparar crianças órfãs, levantar, de qualquer modo, abrigos que agasalhem a infância,

e tornar-me o zelador dos pobrezinhos como o seria de filhos por mim gerados! Será o meu ideal na existência expiatória a que não tardarei a regressar..

"- Praza aos Céus que suspendas os teus abrigos para a infância desvalida, antes que a ruína financeira te cerceie as possibilidades futuras, amigo Jerônimo!"

- interrompi eu, surpreendido com a coragem que transparecia de suas asserções.

"- Praza aos Céus, amigo!... porque, antes ou depois da ruína financeira que me aguarda na expiação terrestre, hei de tornar-me arrimo de muitos órfãos: os vultos

chorosos de meus filhos votados ao desamparo e à desgraça pela minha morte prematura estão indelevelmente fotografados em minha consciência, a requisitarem de minha

parte um resgate à altura, seja à custa de que sacrifício for!..."

Novamente aparteou Irmão Ambrósio, elucidando cautelosamente:

"- Sim, praza aos Céus que, seja no apogeu das possibilidades monetárias ou no ocaso das mesmas promperidades, seus pensamentos e sua vontade se não desviem da rota

reabilitadora que resolveu palmilhar! No momento é o nosso penitente animado das melhores Intenções. Todavia, dependerá da sua força de vontade, da permanência nos

bons propósitos que agasalha, a vitória das realizações pretendidas. Geralmente o Espírito, uma vez reencarnado, deixa-se embair pelas falaciosas atrações do meio

ambiente a que se vê submetido, esquecendo compromissos de honra assumidos na Espiritualidade, os quais muito conviria, ao próprio que os esquece, serem cumpridos

à altura da importância que representam... Mas, se vontade firme de vencer impulsioná-lo perenemente, sobrepondo-se às influenciações deletérias do mundanismo egoísta,

será bem certo que estabelecerá harmoniosa correspondência telepática com seus mentores invisíveis, os quais procurarão impeli-lo para a frente através de inspirações

sadias, embora discretas, auxiliando-o segundo a lei de solidariedade estabelecida no intuito de fraternizar o Universo inteiro. .

"- Suponhamos que Jerônimo venha a descurar-se das promessas feitas ao reencarnar... Que sucederá ?..." - interroguei, apegado ao azedo critério de repórter pessimista.

"- A consciência inquietá-lo-á perenemente, e, mais tarde, regressando à Espiritualidade, se envergonhará de ter faltado com a palavra, compreendendo, ao demais,

a necessidade de cumpri-la em uma nova migração terrena... Esperamos, no entanto, que tal não aconteça no caso em apreço. Jerônimo possui o principal fator para

realizar o prometido: a boa-vontade, a ternura pelo órfão abandonado. .

Subitamente, em meio do rápido silêncio que se verificou em seguida, Belarmino, cujos sentimentos delicados o leitor já teve ocasião de apreciar, levantou o olhar

interessado para o futuro capitalista do Porto e interrogou afetuosamente:

"- Que notícias darás aos amigos da tua Margaridinha?... Transportou-se sempre para o Brasil?... E Albino!... continua na prisão?... Sua Majestade interessou-se

por ele, realmente ... ."

"- Ah! sim!... - fez o inconsolável pai suicida, como se houvesse vibrado acordes pungentes nas mais sensíveis cordas do seu coração. - Estava mesmo para vos participar

alvíssaras!... Nunca mais pude visitá-los, como sabeis, por não mo permitir a situação moral apaixonada, capaz de muitas indiscrições... No entanto, estou seguramente

informado de que Margaridinha, em chegando ao Brasil, casou-se com um compatriota, homem honesto e probo, que lhe ofertou afeição leal e um nome honrado! Louvado

seja Deus! Que bem faz à minhalma o dar-vos esta notícia!... Quanto a Albino, é comerciante, embora modesto, em Lourenço Marques, corresponde-se assiduamente com

o seu amigo Fernando, que o tem aconselhado mui honradamente, que todos os esforços envidou para favorecer-lhe meios honestos de viver, instruindo-o ainda, ao demais,

na Ciência dos Espíritos, da qual é fiel adepto. Casou-se também, há pouco mais de um ano, com bonita morena portuguesa-africana... e agora é pai de duas lindas

gêmeas recém-nascidas!..."

"- Tu os vês, de certo, ó Jerônimo, se bem os não visites?..." - interroguei, partilhando a saudade que transparecia de suas expressões.

"- Sim, amigo Botelho! Vejo-os através dos aparelhos do Irmão Santarém, e é como se os visse de bem perto e com eles falasse, pois isso me é permitido... Quanto

a Zulmira, cúmplice infeliz dos meus desatinos, termina sua desgraçada vida amparada pelas duas filhas mais velhas, as quais não se negaram - mercê de Deus -a socorrê-la,

quando as procurou. Tentou interceptar a ida de Margarida para o Brasil, sem o conseguir. Pobre Zulmira! Amava-a tanto, meu Deus! Fui o responsável por suas quedas!

Também a ela devo reparações, que mais tarde proverei, com o favor do Céu..."

Dois dias depois, Roberto de Canalejas voltou a visitar-nos de posse de um convite de Irmão Teócrito para, à noite, atendermos à reunião solene a realizar-se

na sede do Departamento Hospitalar. Tratava-se, dizia o moço de Canalejas, de uma cerimônia de despedida, durante a qual seríamos desligados da tutela do Departamento

e considerados habilitados para outros carreiros em busca das reparações para os serviços do progresso.

Dos bairros anexos aos hospitais seguiriam antigos tutelados a assistirem ao importante conclave, que a todos profundamente interessava. Como será fácil entre-ver,

a movimentação era intensa, nesse crepúsculo em que todas as dependências do grande Departamento enviavam contingentes de Espíritos considerados aptos ou necessitados

dos prélios terríveis da renovação carnal expiatória, devido ao crime da maior infração da criatura à face do seu Criador!

Pela primeira vez penetrando a sede do Departamento onde Teócrito mantinha os gabinetes de direção e trabalhos que lhe eram próprios, fomos surpreendidos pela

majestosa estruturação interior do mesmo, a qual apresentava, como os demais, o estilo português clássico, de grande beleza e sobriedade de linhas.

Ao chegarmos, éramos gentilmente encaminhados a vasta e modelar sala de assembléia, à maneira de Câmaras representativas, onde as tribunas dos discursantes seriam

ocupadas pelo grande público, isto é, por nós outros, os tutelados, cabendo o nível aos diretores, como em anfiteatro. Sobrepunha-se ao cenário, não destituído de

magnitude, singular palor iluminado que se diria jorrar do exterior, irisando o ambiente de miríficas gradações branco-azuladas.

Pouco a pouco encheu-se o recinto. Os lugares reservados às seções eram rigorosamente separados por linhas divisórias, tornando-se as arquibancadas, ou tribunas,

como grandes camarotes destinados a classes sociais diferentes. Ali, porém, se não era social a diferenciação existente, era-o, não obstante, moral e vibratória,

o que quer dizer que os grupos que enchiam cada camarote harmonizavam-se satisfatoriamente, apresentando grau idêntico na escala das responsabilidades, dos méritos

e deméritos.

Enquanto conosco assim acontecia, os responsáveis pelas diferentes dependências do grande Departamento mantinham-se ao lado do seu diretor, isto é, de Teócrito,

à tribuna de honra situada no nível da sala. Assistentes e vigilantes, por sua vez, acompanhavam os internos nas arquibancadas, com estes fraternalmente ombreando,

quais modestos espectadores.

Assim foi que, entre os primeiros, notamos a presença do Padre Anselmo, educador da falange de suicidas-obsessores aprisionados na Torre; de Irmão Miguel de Santarém,

o abnegado conselheiro do Isolamento; de Irmão João, o venerável ancião, guia paciente e caridoso da triste falange do Manicômio, todos ladeando o diretor do Departamento,

responsável, por sua vez, pelo Hospital Maria de Nazaré, ao passo que seus assistentes se mantinham conosco, exceção feita de Romeu e Alceste que, como iniciados,

pertenciam a gradação mais elevada na hierarquia espiritual, não obstante a qualidade de discípulos de Teócrito.

De longe podíamos bem distinguir, à claridade argêntea que descia de majestosa cúpula, alguns antigos companheiros, como Jerônimo, cabisbaixo e pensativo; e

como Agenor Peflalva, o obsessor convertido sob cuidados de Padre Anselmo e Olivier de Guzman, depois de trinta e oito anos de pacientes esforços, e cujas feições,

severas, duras, dir-se-iam traduzir desconfianças, expectativa ansiosa e sombria, pavor indefinível.

Em meio a augusta simplicidade, no entanto, foi que se desenrolou a magna cerimônia. Nenhuma particularidade ou traço de ineditismo surpreendeu nossas atenções

ávidas do sensacionalismo mórbido da Terra. Praza aos Céus que, um dia, os homens encarnados, responsáveis pelos graves problemas que agitam a Humanidade, aprendam

com os Espíritos a singeleza que então tivemos ocasião de apreciar, quando se reunirem em festividades ou deliberações! No entanto, tratava-se de uma sessão magna,

em a qual se resolveriam destinos de centenas de criaturas que se deveriam recuperar do erro a fim de marcharem para Deus!

Efetivamente, Teócrito levantara-se, deixando irradiar do semblante fino, quase translúcido, um sorriso amável para seus pupilos, como se mui fraternalmente

os saudasse, e, depois de aceno afável, começou instilando novos anseios de vida em nossas almas, rejuvenescimento para a peleja do porvir, que vinha anunciar:

"- Nós vos saudamos, dileto. pupilos! caros irmãos em Jesus-Cristo! E é em Seu nome excelso que vos desejamos a gloriosa conquista da Paz!"

A voz do insigne diretor, porém, ou as vibrações do seu pensamento generoso em nosso favor, o qual entendíamos como se se tratasse da sua voz, chegava ao nosso entendimento

doce e murmurante, quase confidencial. No entanto, a grande assistência ouvia-o nitidamente, sem que um só monossílabo se perdesse. Espanhóis afirmavam, mais tarde,

que o orador falara, naquela noite, em seu idioma pátrio, havendo até mesmo expressões costumeiras do lar paterno, deles conhecidas desde a infância, o que muito

os comovia e sensibilizava. Nós, os portugueses, porém, contestávamos, pois o que ouvíramos fora o bom português clássico de Coimbra; ao passo que os brasileiros

presentes pretendiam ter ouvido o suave e terno linguajar das plagas nativas, com seus acentos próprios e o sotaque que tanto desagrada em Portugal... (23)

E sincero encantamento a toda a assistência impregnava de lenientes emoções...

Ele, não obstante, prosseguiu:

"- Não sois estranhos, meus amigos, ao móvel da presente reunião. É o vosso futuro que aqui se delineia, o destino que vos aguarda que será concertado em programação

que devereis não apenas conhecer, mas, acima de tudo, estabelecer e aprovar!

Desde o dia em que os umbrais desta Colônia Correeional se descerraram, por ordens do Alto, a fim de vos recebermos e hospedarmos, tendes vivido entre as alternativas

de um hospital-presídio. A vosso próprio benefício o fizemos, porém, para que mais fundas não se tornassem as vossas desgraças, mais ríspidas vossas responsabilidades

nos desvios das inconseqüências funestas que fatalmente vos teriam absorvido totalmente, por séculos de gravíssimas transgressões, não fosse a intervenção caridosa

do Pastor Imaculado que partiu à vossa procura, ansioso por vos trazer ao aprisco. No entanto, hoje venho para vos participar que, a partir deste momento, os mesmos

portões que se fecharam sobre vós, aprisionando-vos por impositivos de severa proteção e vigilância, descerram-se agora, permitindo-vos liberdade! Sois livres da

tutela do Departamento Hospitalar, meus

(23) Mesmo entre desencarnados, somente os Espíritos muito elevados poderão produzir semelhante fenômeno telepático.

irmãos! Tudo quanto a estes hospitais e a estes presídios competia tentar a fim de vos auxiliar na emergência crítica em que estáveis embaraçados, foi realizado!

De agora em diante novas tentativas se impõem no vosso trajeto, novos afazeres e condições de vida reclamam da vossa parte atividades e energias que sinceramente

desejamos sem esmorecimento nem tibieza... pois já tereis bem compreendido que jamais! jamais haveis de morrer! jamais conseguireis desaparecer da frente de vós

mesmos, ou da frente da Criação ou do Universo! E isto acontece porque sois criaturas emanadas do Fluído Eterno da Mente Divina, em vós reside a Vida Eterna dAquele

que vos concedeu a glória de vos criar à Sua Semelhança, o que equivale dizer que sereis como Ele é: por toda a Eternidade!

Vede que, possuindo Vida Eterna, finalidade gloriosa reclama vossa presença no seio da Eterna Pátria, onde o Soberano Senhor do Universo mantém a intensidade

da Sua Glória!

Para que, pois, haveis de recalcitrar contra vossa origem divina? Por que se inferiorizar a criatura na desobediência contumaz às leis imutáveis da Criação, se

no seu cumprimento é que encontrará os verdadeiros motivos para se sentir honrada, assim como a felicidade por que tanto se empenha e suspira, a alegria, a paz,

a glória imorredoura?... Vosso suicídio, para que vos aproveitou?... Apenas para a vós próprios demonstrar o grau da ignorância e da inferioridade em que laboráveis,

presumindo possuir muito saber e muita ciência; apenas para distender vossas amarguras a longitudes incalculáveis para o vosso raciocínio, quando seria muito mais

suave, porque meritório, o acomodar-vos aos impositivos da lei que permite as atribulações cotidianas como incentivo ao Espírito para o progresso e para a elaboração

das faculdades sublimes de que é depositário.

Que vos sirva a amarga lição da experiência, meus amigos! Que as lágrimas vertidas por vossas almas, inconsoláveis em presença da realidade que vindes contemplando,

se perpetuem nos refolhos das vossas consciências como salutar advertência para os dias porvindouros, quando, renovando experiências que deixastes fracassar, praticardes

as sublimes tentativas da reabilitação!

Em vos participando a liberdade que por lei vos éoutorgada, referimo-nos ao direito que tendes de, por vós mesmos, e sob vossa responsabilidade, tratar dos interesses

próprios, presidindo com vosso próprio raciocínio os destinos que vos aguardam! Sim! sois livres de escolher o que melhor vos parecer! Recebestes, onde até agora

estagiastes, elucidações convenientes, que vos permitem o critério da escolha:

Quereis retornar à Terra imediatamente, tomando novo fardo corpóreo, vós, cuja razão devidamente esclarecida concluiu pela necessidade imperiosa, indispensável,

da terapêutica reencarnacionista, única que vos conduzirá à cura definitiva dos complexos que vos têm afundado nos pantanais de irremediáveis amarguras?...

Tendes liberdade para fazê-lo, uma vez que estais para tanto preparados!

Preferis ficar e cooperar conosco, durante algum tempo, dilatando a época do Inevitável retorno ao orbe terráqueo, seja aprendendo a servir no corpo de nossa

milícia, seja desenvolvendo faculdades de amor no aprendizado fraterno de catequese às falanges obsessoras que infestam a Terra e o Invisível inferior, ou no auxílio

prestativo aos nossos hospitais: enfermagem, isto é, assistência benemérita de caridade e consolo fraternal, vigilância, etc.?...

Tendes autorização para escolher!

Nosso campo de ação é intenso e muito vasto, e nas fileiras da nossa agremiação bem recebido será o voluntário que, amando o Senhor, respeitando suas Leis, desejando

trabalhar e servir para progredir, submetendo-se aos nossos princípios e direção, se for Inexperiente, quiser colaborar para o engrandecimento do Bem e da Justiça!

Vede Joel, a quem tanto quereis: para aqui entrou em vossas condições. O amor de Jesus converteu-o em ovelha pacífica. E apesar do muito que ainda terá de experimentar

na Terra, como resultante do infeliz gesto que preferiu em meio da jornada que convinha vencer, quanto amor aos seus irmãos sofredores sabe ele ofertar, quantos

gestos nobres e meritórios todos os dias distribui entre aqueles que lhe são confiados à vigilância!...

Porventura desejais aqui ficar, sem coisa alguma tentardes para o benefício próprio, perambulando de Departamento em Departamento, observando fatos, presos a

um circulo vicioso de contemplação improdutiva, ou entre o Invisível inferior e a Terra, arriscando-se a perigosas tentações, inativos, ociosos, a exercerem a mendicância

do astral, sem algo de meritório praticar, conquanto incapazes da prática do mal, uma vez que não sois maus?...

Não nos oporemos tampouco, conquanto, com todas as forças da nossa alma e todo o sincero empenho dos nossos corações, vos aconselhemos que assim não procedais!

É que isto redundaria em agravos penosíssimos para a vossa situação, em angústias evitáveis, mas que se prolongariam em estados insustentáveis que vos cumulariam

de desvantagens amargosas, de incertezas e responsabilidades que muito conviria evitardes!...

Ou, de outro modo, desejareis prolongar a permanência ao nosso lado, a fim de vos iniciardes nos conhecimentos superiores da Vida, consagrando-vos aos cursos

preparatórios para a Verdadeira Iniciação, só possível após os resgates a que vos comprometestes com a própria Consciência?

Sede bem-vindos, ó amigos! E aprendei com o Mestre dos mestres os primórdios que vos têm faltado! E recebei em Seu Nome os elementos com que vos fortificareis

para a consecução dos ideais de Amor, de Justiça e de Verdade!

Muitos de vós, presentes a esta assembléia, se encontram habilitados para esse curso preparatório. Para outros, porém, o momento ainda não chegou! Suas consciências

segredar-lhes-ão o caminho a seguir sem que nos constranjamos a proferir-lhes os nomes. Mesmo aos habilitados, todavia, nada obrigará à aceitação do convite que

ora foi feito. Aceitá-lo-ão se o quiserem, por livre e espontânea vontade..."

Murmuração discreta percorreu a assistência. Era que admirávamos a caridosa sutileza do método posto em prática, o qual inibia uns e outros, de nossa falange,

de se julgarem favorecidos por qualquer superioridade, uma vez que não podíamos avaliar os ditames das consciências uns dos outros, assim como aboliria a suposição

de predileção por parte dos mentores. Teócrito continuou, depois de uma pausa:

"- Ser-vos-á concedido prazo de trinta dias para meditardes deliberadamente sobre o que acabais de ouvir; pois, conquanto estejais há bastante tempo doutrinados

e esclarecidos para tomardes, por vós mesmos, a decisão que vos convém, a tolerância manda que vos acautelemos com ainda algum tempo de meditação, em torno das tentativas

futuras.

Durante esse prazo, diariamente sereis atendidos na sede do Departamento, caso desejeis informações e mais esclarecimentos no que vos disser particularmente respeito...

e podereis, sem constrangimentos, expandir-vos com aquele que aqui vos receber, porque falará ele em nome do Divino Pastor, e ainda porque vos conhece em todas as

particularidades e sutilezas, lendo em vossas almas como num livro fácil! Outrossim, sois convidados às reuniões que para vós se realizarão neste mesmo local, nas

quais trataremos de tudo quanto, de modo geral, vos possa esclarecer, instruir e reanimar para o futuro a que sereis impelidos pelas vossas afinidades pessoais.

Esgotado, porém, o prazo concedido, participareis a diretoria da instituição, a que estais filiados, das resoluções tomadas, prontificando-se ela, então, sob nossas

vistas, a encaminhar-vos para o destino que voluntariamente houverdes escolhido!"

A tão simples quão importantes falas seguiu-se a primeira exposição dos deveres que nos caberiam como Espíritos arrependidos e desejosos de reabilitação. Seria

como a primeira conferência da série para que nos convidavam. O próprio Teócrito fora o orador. Falara paternal e conselheiramente, sem arroubos apaixonados de oratória,

mas deixando penetrar até o âmago de nossas almas profundas reflexões em torno das particularidades inferiores de cada um. Dir-se-ia que, legítimo conhecedor dos

complexos que enredavam nosso ser, trazia o objetivo de ajudar-nos a reconhecê-los, medi-los, esmiuçá-los, a fim de nos animar a dar-lhes combate. Dali nos retiramos,

nessa noite memorável, reconfortados, como fortalecidos por benfazeja esperança... E ali voltamos ainda muitas vezes para ouvi-lo expandir-se sobre os mais elevados

conceitos que poderíamos conceber, acerca da Vida, das Leis do Universo, das magnificências morais resultantes do cumprimento do Dever, da observação da Justiça,

da prática do Amor e da Fraternidade, da obediência à Razão como à Moral e a todos os demais princípios do Bem!

Extinto o prazo estabelecido pelos regulamentos internos, grande movimentação verificou-se na fisionomia pacata do Departamento Hospitalar e da Torre. Turmas

de asilados cruzavam as alamedas nevadas dos parques, demandando a sede do Departamento, acompanhadas de seus mentores, a fim de participarem à autoridade máxima

da nobre agremiação as resoluções definitivamente tomadas depois das mais graves elucubrações e análises sobre a situação própria, assistidas pelos desvelados conselheiros

e educadores e orientadas pelo próprio Teócrito, como vimos.

Agenor Peflalva, assim como vários outros prisioneiros da Torre, suicidas-obsessores que haviam semeado desordem, lágrimas, desgraças incontáveis no decorrer

do pretérito, quer na qualidade de homens encarnados, quer, mais tarde, como Espíritos inferiores que eram; Jerônimo de Araújo Silveira, Mário Sobral e outros declararam

preferir a reencarnação imediata, tais os incômodos dos remorsos, as angustiosas perspectivas do passado, que obsidiavam suas mentes em flagelações insuportáveis,

incapacitando-os para outra qualquer tentativa. Tinham urgência de expiação, a verem se conseguiriam tréguas no esquecimento temporário dos serviços de renovação

planetária, para depois, então, cuidarem, mais serenos, de maiores realizações.. Vários outros se empenharam pelo estágio nas operosidades da Vigilância, onde poderiam

algo aprender para se fortalecerem um pouco mais, pois que, tíbios, indecisos, temiam ainda o contacto com a carne, desconfiados das próprias fraquezas. Algum tempo

de contacto com as caravanas heróicas, no serviço de socorro e auxílio aos desgraçados do Vale Sinistro, como da Terra, desempenhando a beneficência, prepará-los-ia

com mais segurança, no próprio entender, apontando-lhes caminhos mais amplos na senda da Fraternidade! Eu, Belarmino, João d'Azevedo e bem assim alguns poucos que

conosco muito se afinavam, todos do Hospital Maria de Nazaré, atraidos pelos magníficos ensinamentos do preclaro diretor do Departamento, durante suas apreciadas

exposições, depois de muitas e cuidadosas investigações a dentro de nós mesmos, apresentamo-nos à sua presença, declarando que, caso fôssemos merecedores da honrosa

mercê de prosseguir nas sendas preparatórias da Iniciação, a despeito dos deméritos que sabíamos sobrecarregando nossas consciências, nós o preferíamos, porqüanto

nos seduzia a perspectiva do Conhecimento que nos deixara entrever.

"- Sede bem-vindos, amigos! - foi a resposta. -Amanhã mesmo podereis seguir vosso novo destino... Para que retardar mais .... Não continuareis, porém, sob minha

dependência... A missão a mim confiada junto de vós foi culminada, uma vez que sereis encaminhados para a frente, sob os cuidados de novos mentores... Unir-nos-á,

no entanto, para sempre, a doce afeição que se estabeleceu em nossos Espíritos durante o tempo que aqui passastes..."

Certos de que logo no dia imediato deixaríamos o Departamento Hospitalar, separando-nos dos generosos amigos que tanto nos consolaram na desgraça, tristeza profunda

ensombrou-nos o coração. A permanência num hospital, porém, todos nós o sabíamos, é temporária, geralmente curta.

Procuramos despedir-nos. Começamos pelo próprio Hospital, que nos era vizinho. Joel, abraçando-nos entre um sorriso e um minuto de intervalo nos afazeres que

se afiguravam múltiplos naquela manhã em virtude da chegada, dentro de poucas horas, de novo contingente

de réprobos apanhados no Vale, disse-nos, confortando-nos ainda uma vez:

"- Não penseis que estareis separados de nós outros... Havemos de ver-nos muitas vezes... Paciência, meus amigos, paciência..

Carlos e Roberto, como sempre, prontificaram-se a guiar-nos às visitas de despedidas. Revimos e abraçamos todos os nobres mentores, os amigos incansáveis de dedicação,

a quem tanto devíamos os amáveis conhecimentos que tivemos a honra de fazer fora do nosso Departamento, os quais se estenderiam através do tempo, solidificando-se

em perpétuas afeições!

Achávamo-nos no Departamento de Reencarnação, acompanhados das gentis Irmãs servidoras, Rosália e Colestina, quando ali deram entrada vários pretendentes à matrícula

no Recolhimento. Era compugente observá-los maturando sobre os dramas nefastos que assim os impeliam para o futuro acerbo tão depressa, o futuro redentor! Dir-se-iam

réprobos expulsos do Paraíso por falta de afinidades para habitá-lo por mais tempo, o triste êxodo de condenados aos infernos, pelas mais graves desobediências às

Leis do Senhor Todo Bondade e Misericórdia!

Era, com efeito, tudo isso! Era falange de arrependidos que, por entre as lutas das incompreensões das provas terrenas, iam polir a consciência maculada pelo

pecado, batizando-a no fogo redentor do sofrimento e, assim, remindo-a da desonra!

Caminhavam em fila extensa, de dois a dois, subindo as escadarias da sede do Departamento e desaparecendo dentro em pouco no interior do mesmo... Prisioneiros

do passado ominoso, escravizados pelo negror da mente, incapacitados, em vista de seus pungentes remorsos, para quaisquer tentativas antes de uma reencarnação expiatória,

seguiam cabisbaixos, tristes, constrangidos, temerosos, dando a impressão de que só se submetiam à dura penalidade porque outro remédio não haviam encontrado para

lhes restituir a honra espiritual, a serenidade Intima, senão esse providencial recurso que a Lei Magnânima lhes apontava: voltarem a ser homens!

Renovarem-se nas lides planetárias através de exercícios reabilitadores do cumprimento do Dever!

Desoladora sensação de pavor fez estremecessem nossas fibras mais sensíveis ao se nos deparar o grupo conduzido por Irmão João, diretor do Manicômio! Incapazes

de livremente raciocinar, seguiam para a reencarnação impelidos pela necessidade imperiosa de uMa melhoria e algum progresso; e somente as escassas atenuantes que

deveriam trazer, como os deméritos que à evidência mostravam, estabeleceriam condições para a existência que buscavam, assim como seus lastimáveis estados vibratórios.

Irmão João, o generoso Teócrito, os técnicos do Departamento de Reencarnação, a direção-geral da Colônia, seus Guardiães Maiores, todos criteriosamente inspirados

na Justiça e na Misericórdia das Leis Soberanas do Onipotente Criador, eram os mesmos que supriam suas incapacidades de justo discernimento para livremente escolherem

o futuro, estabelecendo em conselho o que melhor lhes convinha, e para isso recebendo o beneplácito do Mestre Redentor - Jesus!

Não contivemos as lágrimas ao avistarmos Jerônimo e Mário, nossos pobres companheiros e afins desde as sombrias desesperações do Vale Sinistro. O primeiro, abatido,

curvava a cabeça sobre o peito, qual o condenado submisso no momento supremo. Não nos percebeu à distância, tão absorvido seguia nas ondas aflitivas do pensamento!

O segundo, porém, sorridente e valoroso, os cabelos revoltos, como no primeiro dia em que o víramos; o peito, no entanto, destemeroso, erguido como a desafiar as

lutas porvindouras, olhos vivos postos para a frente, qual sonhador antevendo o ápice honroso de empresa penosamente iniciada entre os sacrifícios exigidos pela

Razão e as lágrimas vertidas pelo Coração, ambos conflagrados por sincero arrependimento, que seria preciso expungir! Ao nos avistar, acenou amigavelmente, num adeus

que parecia derradeiro, enquanto frêmito de indescritível horror confrangia nossas almas: o desgraçado acenara com dois miseráveis tocos de braços, onde não exitiam

mãos, ao passo que estas lá estavam, destacadas, encravadas em seu próprio pescoço, como recordando a morte violenta pelo estrangulamento, a mesma por ele dada à

infeliz Eulina!

Este será bem certo que vencerá - profetizou Irmã Celestina, pensativa. - Sua próxima migração terrena será calvário áspero, próprio das almas corajosas, que

se arrependem! E do berço ao túmulo apenas lágrimas e asperezas conhecerá! Arrastar-se-á sem esperanças nem compensações, mutilado, enfermo, humilhado, ridiculizado,

traído pela própria mãe, que o repudiará ao dar-lhe a vida, pois só obterá um corpo nos ambientes viciados em que outrora se chafurdou... Mas será preciso que assim

seja, á meu Deus! para que se reconcilie com a consciência própria e se reencontre harmonizado com o progresso natural de cada criatura em procura de Deus! Tão bem

assim o compreendeu, que ele mesmo escreveu a sentença que lhe convém e entregou-a a Irmão Teócrito para encaminhá-la à direção-geral e conseguir aprovação do seu

Guardião Maior, isto é, de Maria, governadora da Legião a que pertencemos... Mário impôs-se expiação duríssima, como tantos e tantos irmãos nossos existentes sobre

a crosta da Terra, no resgate severo e decisivo !"

... E ao entardecer do dia seguinte deixamos o Departamento Hospitalar...

Veículo modesto, que reconhecemos do tipo usual no interior da Colônia, veio buscar-nos. Silenciosamente, comovidos, tomamos lugar e, confortados pela presença

de Romeu e Alceste, que nos deveriam acompanhar ao novo domicílio, observávamos que, enquanto deslizava suavemente, as neves melancólicas se adelgaçavam, a paisagem

se coloria de formosos tons de madrepérola, flores surgiam em festividades policrômicas à beira das estradas caprichosamente cuidadas... enquanto os primeiros casarios

de magnificente metrópole hindu apareciam aos nossos olhos surpreendidos, que julgavam sonhar!

Louvado seja Deus! Era, pois, verdade, que haviamos progredido!

TERCEIRA PARTE -

A CIDADE UNIVERSITÁRIA

1

A Mansão da Esperança

A primeira noite foi passada em ansiosa expectação. Nossos aposentos deitavam para o jardim e das ogivas que os rodeavam descortinávamos o vasto horizonte da

metrópole, marchetado de pavilhões graciosos como construídos em madrepérola, e de cujos caramanchões, que os enfeitavam pitorescamente, evolavam-ee fragrâncias

delicadas de miríades de arbustos e flores viçosas, não mais insípidas, níveas, como no Departamento Hospitalar.

Tudo indicava que gravitáramos, segundo as nossas afinidades, para uma Cidade Universitária, onde ciclos novos de estudo e aprendizagem se franqueariam para

nós, segundo nosso desejo.

Enquanto passeávamos, aos nossos olhos interessados estendia-se paisagem amena e sedutora, onde edifícios soberbos, finamente trabalhados em estilo ideal, que

lembraria o padrão de uma civilização que nunca chegaria a se concretizar nas camadas terrestres, nos levaram a meditar sobre a possibilidade de neblinas ignotas,

irisadas sob palores também desconhecidos, servirem a artistas para aquelas cúpulas sedutoras, os rendilhados sugestivos, o pitoresco encantamento dos balcões convidando

a mente do poeta a devaneio. profusos, caminho do Ideal! Avenidas imensas rasgavam-se entre arvoredos majestosos e lagos docemente encrespados, orlados de tufos

floridos e perfumosos. E, alinhadas, como em visão inesquecível de uma cidade de fadas, as Academias onde o infeliz que atentara contra o sacrossanto ensejo da existência

terrena deveria habilitar-se para as decisivas reformas pessoais que lhe seriam indispensáveis para, mais tarde, depois de nova encarnação terrena, onde testemunhasse

os valores adquiridos durante os preparatórios, ser admitido na verdadeira Iniciação.

Não me permitirei a tentativa de descrever o encanto que se irradiava desse bairro onde as cúpulas e torres dos edifícios dir-se-iam filigranas lucilando discretamente,

como que orvalhadas, e sobre as quais os raios do Astro Rei, projetados em conjunto com evaporações de gases sublimados, emprestavam tonalidades de efeitos cuja

beleza nada sei a que possa comparar!

Em tudo, porém, desenhava-se augusta superioridade, desprendendo sugestões grandiosas, inconcebíveis ao homem encarnado.

E, no entanto, não era residência privilegiada! Apenas um grau a mais acima do triste asilo hospitalar!...

Emocionados, detivemo-nos diante das Escolas que deveríamos cursar. Lá estavam, entestando-as, os letreiros descritivos dos ensinamentos que receberíamos:

- Moral, Filosofia, Ciência, Psicologia, Pedagogia, Cosmogonia, e até um idioma novo, que não seria apenas uma língua a mais, a ser usada na Terra como atavio

de abastados, ornamento frívolo de quem tivesse recursos monetários suficientes para comprar o privilégio de aprendê-la. Não! O idioma cuja indicação ali nos surpreendia

seria o Idioma definitivo, que havia de futuramente estreitar as relações entre os homens e os Espíritos, por lhes facilitar o entendimento, removendo igualmente

as barreiras da incompreensão entre os humanos e contribuindo para a confraternização ideada por Jesus de Nazaré:

"Uma só Língua, uma só bandeira, um só pastor!"

Esse idioma, cuja ausência entre médiuns brasileiros me havia impossibilitado ditar obras como as desejara, contribuindo para que fosse mais penoso o trabalho de

minha reabilitação, possuía um nome que se aliava ao doce refrigério que aclarava nossas mentes. Chamava-se, tal como o nosso burgo, Esperança, e lá se encontrava,

junto aos demais, o majestoso edifício onde era ministrado, acompanhando-se das recomendações fraternais para que foi ideado! Conviria, assim, que o aprendêssemos,

para que, ao reencarnarmos, levando-o impresso nos refolhos do Espírito, não nos descurássemos de exercitá-lo sobre a Terra.

O benfazejo frescor matinal trazia-nos ao olfato perfume dulcíssimo, que afirmaríamos ser dos craveiros sanguíneos que as damas portuguesas tanto gostam de cultivar

em seus canteiros, das glicínias mimosas, excitadas pelo orvalho saudável da alvorada. E pássaros, como se cantassem ao longe, assobiavam ternas melodias, completando

a doçura do painel.

Havíamos chegado na véspera, quando as estrelas começavam a fulgir irradiando carícias luminosas.

Romeu e Alceste, apresentando-nos à direção do novo burgo, despediram-se em seguida, dando por finda a missão junto de nós. Não foi sem profunda emoção que vimos

retirarem-se os jovens boníssimos a quem tanto devíamos, e aos quais abraçamos, comovidos, conquanto que, sorrindo, observassem:

"- Não estaremos separados. Apenas mudastes de recinto, dentro do mesmo lar. Porventura o próprio Universo Infinito não é o lar das criaturas de Deus!.. ."

Irmão Sóstenes era o diretor da Cidade Esperança. Falou-nos grave, discreto, bondoso, sem que nos animássemos a fitá-lo:

"- Sede bem-vindos, meus caros filhos! Que Jesus, o único Mestre que, em verdade, aqui encontrareis, vos inspire a conduta a seguir na etapa nova que hoje se

delineia para vós. Confiai! Aprendei! Trabalhai! - a fim de que possais vencer! Esta mansão vos pertence. Habitais, portanto, um lar que é vosso, e onde encontrareis

irmãos, como vós, filhos do Eterno! Maria, sob o beneplácito de seu Augusto Filho, ordenou sua criação para que vos fosse proporcionada ocasião de preparativos honrosos

para a reabilitação indispensável. Encon trareis no seu amor de mãe sustentáculo sublime para vencerdes o negror dos erros que vos afastaram das pegadas do Grande

Mestre a quem deveis antes amor e obediência! Cumpre, portanto, apressar a marcha, recuperar o tempo perdido! Espero que sabereis compreender com inteligência as

vossas próprias necessidades. .

Nada respondemos. Lágrimas umedeceram nossas pálpebras. Ëramos como meninos timidos que se vissem a sós pela primeira vez com o velho e respeitável professor

ainda incompreendido. Foi quando, logo após, nos conduziram ao Internato onde deveríamos residir, onde passáramos a noite e de onde, pela manhã, saíramos a passear.

Aqui e ali, pelos parques que bordavam a cidade, deparávamos turmas de alunos ouvindo seus mestres sob a poesia dulcíssima de arvoredos frondosos, atentos e inebriados

como outrora teriam sido, na Terra, os discípulos de Sócrates ou de Platão, sob o farfalhar dos plátanos de Atenas; os iniciados do grande Pitágoras e os desgraçados

da Galiléia e da Judéia, os sofredores de Cafarnaum ou Genesaré, embevecidos ante a intraduzível magia da palavra messiânica!

Senhoras transitavam pelas alamedas, acompanhadas de vigilantes severas como Marie Nimiers, a quem mais tarde conheceríamos mui de perto; ou impenetráveis como

Vicência de Guzman (24), jovem religiosa da antiga Ordem de S. Francisco, irmã do nosso antigo benfeitor, Conde Ramiro de Guzman, à qual igualmente passamos a bem-querer

tão logo soubemos dos elos imarcescíveis que a ligavam àquele dedicado servidor da Seção das Relações com a Terra.

Absortos, consentíamos que a imaginação se desdobrasse arrastada pelas sugestões, deixando palpitar em

(24) Personagens de uma narração incluída nos apontamentos concedidos pelo verdadeiro autor destas páginas no decurso de vinte anos de experiências mediúnicas, mas

a qual O seu compilador houve por bem omitir no presente volume, reservando-a para novo ensaio literário em moldes espíritas.

nossa mente múltiplas impressões, quando, de mansinho, alguém tocou em meu ombro, produzindo em minha sensibilidade a suave emoção de uma carícia infantil que me

despertasse de prolongado torpor. Voltei-me, bem assim meus companheiros mais afins, reduzidos agora a João e Belarmino, visto que os demais se haviam internado

no Recolhimento. Duas damas achavam-me ao nosso lado, convidando-nos para uma reunião de honra para a qual fora convocada a pequena falange chegada no dia anterior.

Diziam as damas que, então, seríamos apresentados aos nossos novos mentores, aqueles que fariam nossa educação definitiva. A eles seríamos entregues como a veros

Guardiães que por nós zelariam paternal-mente, até findar o curso de experiências renovadoras que urgia levássemos a efeito em próxima encarnação nos planos terrestres.

A primeira dessas damas, justamente a que me tocara, era uma menina loira e mimosa, que andaria pelas quinze primaveras, portadora de gracilidade irresistível.

Trajava-se, porém, curiosamente, não nos furtando, nenhum de nós outros, a impertinente reparo. Túnica branca atada à cinta, manto azul trespassado ao antigo uso

grego e pequena grinalda de rosas minúsculas ornamentando-lhe a fronte ebúrnea. Dir-se-ia um anjo a quem faltassem as asas. No primeiro instante supus-me vítima

de novo gênero de alucinação, que, passado do Vale dos Réprobos para a Cidade da Esperança, teria o condão de criar o oposto do hediondo, isto é, o agradável e o

belo. A menina trazia poético e imponente nome de Rita de Cássia de Forjaz Frazão, decassílabo que a teria implicado em círculo familiar aristocrata, na derradeira

etapa terrena sofrida em terras de Portugal. Mais alguns dias passados, não sofreando o desejo de me elucidar acerca dos seus interessantes trajes, via-a entristecer-se

à minha indiscrição, enquanto lhe ouvia a resposta à interrogativa por mim feita:

"- Sepultaram-me assim, ou melhor, assim vestiram o meu fardo carnal, quando o abandonei pela última vez, na Terra. Tão grata foi ao meu coração a volta ao Invisível,

não obstante o desastre que ocasionou a um ser muito querido para mim, que retive na mente a recordação da última "toilette" terrena. .

A segunda, alta, também loira, deveria ter deixado a vestidura corporal não longe dos cinqüenta anos, conservando ainda as impressões mentais que permitiam tais

observações. Simpática e atraente, estendeu-me a destra mui gentilmente, apresentando-se de modo assaz cativante para nós:

"- Tenho certeza que já ouvistes falar de mim... Sou Doris Mary Steel da Costa... e venho de uma existência terrena em que mui gratamente servi de mãe ao meu

pobre Joel... vosso amigo do Departamento Hospitalar."

Confessamo-nos encantados, não dispondo de frases bastante expressivas para traduzir a emoção que nos empolgava. Respeitosamente osculamos a mão que tão democraticamente

nos era estendida, mas sinceramente o fizemos, sem a afetação a que nos habituáramos desde muito...

A hora aprazada fomos introduzidos na sala de assembléias, situada na sede central do novo Departamento, por irmãs vigilantes encarregadas do serviço interno.

Nossa turma, que contava cerca de duzentos pecadores, era das mais vultosas que no momento existiam na Cidade, contando em seu conjunto com um grande contingente

de damas brasileiras pertencentes a variados planos sociais da Terra, o que muito nos admirou, reconhecendo que as estatísticas de suicídios de mulheres no Brasil

avantajavam-se de muito às de Portugal. Presidia à magna reunião o Guardião chefe do burgo, Irmão Sóstenes.

Iniciando-a, exortou-nos à homenagem mental ao Criador, o que fizemos orando intixnamente, tal como nos fora possível, iinpelidos, todavia, por sincero respeito.

À sua direita postava-se um ancião, cujas barbas níveas, descendo até à cintura, para terminarem em sentido agudo, imprimiam tal aspecto de venerabilidade à sua

personalidade que, emocionados, julgamo-nos em presença de um daqueles patriarcas que os livros sagrados nos retratam ou de um faquir indiano experimentado em virtudes

e ciências através das mais austeras disciplinas. À esquerda, outro iniciado despertou-nos a atenção com seu perfil hindu clássico, o que infundiu em nosso espírito

singular sentimento de atração. Tão venerável quanto o outro, a nova personagem apresentava, porém, menos idade, refletindo antes a maturidade, com a pujança do

seu equilíbrio racional estampada no vigor das feições que nos deixava observar com nitidez. Mais além, um jovem quase adolescente despertou-nos maior atenção, uma

vez que ocupava outra cátedra de mestre, e não o local reservado aos adjuntos. Formosíssimo de semblante, de uma feitura por assim dizer angelical, seu perfil hebreu

irradiava tão impressionante doçura que suporíamos tratar-se antes de uma aparição de que os livros orientais eram férteis em mencionar, não fora a realidade insofismável

de tudo quanto nos cercava. Ladeava Sóstenes à direita, ombreando com o ancião.

A um sinal de Irmão Sóstenes, iniciou-se a chamada dos pacientes. Nossos nomes, registrados no volumoso livro de matrícula onde os assináramos à chegada, ressoavam,

um a um, proferidos pela voz possante de um adjunto que, ao lado da tribuna de honra, como que secretariava a reunião. E, ouvindo que nos chamavam, respondíamos

timidamente, quais colegiais bisonhos, enquanto a repercussão fazia repetidos nossos nomes mais além, entre salas e galerias, levando-os, através das alamedas distantes,

dos parques da cidade que se estendia entre flores e pavilhões grandiosos, para os perpetuarem, quem sabe? ecoando-os através do Infinito e da Eternidade!...

Todos presentes, levantou-se o diretor para o discurso de honra:

"- Iniciais neste momento fase nova em vossa existência de Espíritos delituosos, meus caros amigos! Dentre tantos padecentes que convosco chegaram a esta Colônia,

fostes os únicos a atingir condições indispensáveis às lutas do aprendizado espiritual que vos conferirá base sólida para a aquisição de valores pessoais nos dias

por-vindouros. Sereis matriculados em nossas escolas, uma vez que apresentais o necessário desenvolvimento moral e mental para a aquisição de esclarecimentos que

vos permitirão próxima reencarnação recuperadora, capaz de vos fornecer a reabilitação decisiva do erro em que sucumbistes.

Como de há muito deveis ter percebido, não sois condenados irremissíveis aos quais a Lei Universal aplicaria medidas extremas, relegando-vos à eterna inferioridade

do presente, ao abandono das angústias inconsoláveis da atualidade, por excluir-vos da harmonia apropriada a toda criatura originada do Sempiterno Amor! Ao contrário,

estamos a participar-vos que tendes o direito de muito esperar da bondade paternal do Onipotente Criador, porqüanto, a mesma Lei, por Ele estabelecida, que infringistes

com o ato desrespeitoso da revolta contraproducente, a todos vós facultará a possibilidade de recomeçar a experiência interrompida pelo suicídio, fornecendo-vos,

honrosamente, ensejo de reabilitação certa.

Nada conheceis, entretanto, da Vida Espiritual e urge que a conheçais. Até agora vossos estágios na erraticidade vêm-se verificando em zonas inferiores do Invisível

onde pouco tendes aproveitado moralmente, em vista da couraça de animalidade que envolve vossas vibrações mentais chumbadas, particularmente, ao domínio das sensações.

Há cerca de um século, porém, chegou a época de se anteporem rigores aos vossos continuados desatinos e despertar-vos do círculo vicioso em que vos deixastes permanecer

encaminhando-vos para a alvorada da redenção com Jesus, que vos conduzirá ao verdadeiro alvo que, como criaturas de Deus, deveis forçosamente atingir!

Muitos de vós, doutos que fostes na Terra, lúcidas inteligências que se impuseram na conceituação da sociedade terrena, desconheceis, todavia, os mais rudimentares

princípios de espiritualidade, levando mesmo a displicência ao extremo de negá-los e combatê-los, quando os descobríeis exornando o caráter do próximo. Deveis, por

isso mesmo, iniciar conosco um curso de reeducação moral-mental-espiritual, que é o que vos tem faltado, já que as predisposições para tão alto feito acudiram aos

apelos desesperados dos sofrimentos por que passais!

Não fora o gesto audacioso de precipitação, afrontando leis invariáveis que ainda desconheceis, e hoje estaríeis glorificados por vitória magnífica, laureados

pelo cumprimento do Dever, preparados para novos ciclos de aprendizagem. No entanto, o suicídio, que não vos trouxe a morte, porque a morte é ficção neste Universo

vivo e regido por leis eternas oriundas da sabedoria de um Criador Eterno; que não vos concedeu nem repouso, nem olvido, nem aniquilamento, porqüanto não atingiu

senão o corpo físico-terreno e não, jamais! o espiritual, onde reside vossa personalidade verdadeira e eterna, o suicídio, dizemos, arrebatou todo o mérito que poderíeis

ter, precipitando-vos em situação calamitosa, da qual não saireis enquanto restaurações totais não sejam efetivadas. E advirto-vos, meus amigos, que, na luta a empreenderdes

para a consecução de tal desiderato, mais de um século presenciará az lágrimas que derramareis sobre as conseqüências do execrado ato de desrespeito a vós mesmos,

como a Deus!

Todavia, os ensinamentos que vos ministraremos influirão bastante na vitória que devereis alcançar contra vós próprios. Mas, não saireis deste local, alçando

esferas espirituais mais compensadoras, enquanto de nosso Instituto, ou de vossas Consciências, não receberdes certificados de reabilitação, os quais vos conferirão

ingresso em habitações normais na hierarquia da evolução, e tais certificados, meus amigos, somente vos serão confiados após a reencarnação que devereis abraçar,

uma vez terminado o curso iniciado neste momento. .

Seguiu-se pausa breve, que nos forneceu a impressão de que novas disposições despertavam as fibras de nossas almas. Voltando-se para os três companheiros que

o ladeavam, o orador continuou, prendendo porventura ainda mais a nossa atenção:

"- Aqui tendes os vossos educadores. São como anjos-tutelares que sobre vós, como sobre vossos destinos, e debruçarão, amparando-vos na espinhosa jornada! Acompanhar-Vos-ão,

a partir deste momento, em todos os dias de vossa vida, e só darão por cumprida a nobre missão de que se incumbiram junto de vós, quando, já glorificados pela observação

da Lei que infringistes, voltardes da Terra, novamente, para este asilo, recebendo, então, como que passaporte para outra localidade espiritual, onde reapanhareis

o fio normal da rota evolutiva interrompida pelo suicídio.

As credenciais dos mestres a quem, neste momento, sois entregues em nome do Pastor Celeste, estendem-se, em virtudes e méritos, a um passado remoto, muitas vezes

comprovado nos testemunhos santificantes.

À minha direita, eis Epaminondas de Vigo, o qual, em escala ascensional brilhante, vem desde o antigo Egito até os sombrios dias da Idade Média, na Espanha,

servindo a Verdade e exalçando o nome de Deus, sem que seus triunfos se arrefecessem nos planos da Espiritualidade até o momento presente. Nos tempos - apostólicos,

onde, como discípulo de Simão Pedro, glorificou o Mestre Divino, teve a honra suprema de sofrer o martírio e a morte no circo de Domício Nero. Na Espanha, sob o

império das trevas que circundavam as leis impostas pelo chamado Santo-Ofício, brilhou como estrela salvadora, mostrando roteiros sublimes aos desgraçados e perseguidos,

como a muitos corações ansiosos pelo ideal divino, empunhando fachos de ciências sublimadas no amor e no respeito aos Evangelhos do Cordeiro Imaculado, ciências

que fora buscar, desde muito, em peregrinações devotadas, aos arcanos sagrados da velha Índia, sábia e protetora, na Terra, de verdades imortais! Mas justamente

porque brilhara em meio de trevas, sacrificaram-no novamente, não mais atirando seu velho corpo carnal às feras esfaimadas, mas queimando-o em fogueira pública,

onde, ainda uma vez, provou ele seu imarcescível devotamento ao Senhor Jesus de Nazaré!

À esquerda tendes Souria-Omar, antigo mestre de iniciação em Alexandria; filósofo na Grécia, logo após o advento de Sócrates, quando fulgores imortais começavam

a se acender para o povo, até então arredado dos conhecimentos sublimes, mantidos que eram estes em segredo e apenas para conhecimento e uso de sábios e doutos.

Como o eminente precursor do Grande Mestre, ensinou a Doutrina Secreta a discípulos levantados das mais modestas classes sociais, aos deserdados e infelizes; e,

à sombra benfazeja dos carvalheiros frondosos ou sob a amenidade poética dos plátanos, fazia-os sorver ensinos cheios de divina magnificência, transportando-os de

felicidade na elevação dos pensamentos para o Deus Sempiterno, Criador de Todas as Coisas, aquele Deus desconhecido cuja imagem não constava na coleção dos altares

de pedra da antiga Hélade... Mais tarde, ei-lo reencarnado na própria Judéia, atraído pela figura incomparável do Mestre dos mestres, desdobrando-se em atitudes

humildes, obscuras, mas generosas e sadias, por seguir as pegadas luminosos do Celeste Pegureiro! Entrado já em idade avançada, conheceu as férreas perseguições

de Jerusalém, logo após o apedrejamento de Estêvão. Estóico, fortalecido por uma fé inquebrantável, sofreu longo martírio no fundo sinistro de antigo calabouço;

torturado com a cegueira, uma vez considerado varão de muitas letras e, portanto, perigoso, nocivo aos interesses farisaicos; martirizado com espancamentos, mutilações

dolorosas, até sucumbir, ignorado da sociedade, irreconhecível pela própria família, mas glorificado pelo Mestre Excelso, por amor de quem tudo suportou com humildade,

amor e reconhecimento. Souria-Omar, como Epaminondas, teve a mente voltada, desde muitos séculos, para as altas expressões da Espiritualidade, a alma fervorosamente

batizada na pira sagrada da Ciência Divina e do amor a Deus! Hoje, se se encontra operando na região de angústias em que nos encontramos todos, materializado a ponto

de ser por vós reconhecido como em sua derradeira estrutura corporal, não será porque lhe escasseiem luzes e merecimentos para alçar locais outros, em harmonia com

seus méritos, mas porque fiéis, ambos, a princípios da iniciação cristã, que observam acima de quaisquer outras normas, preferem estender atenções e amor aos mais

desgraçados e desprovidos de ânimo, devotando-se a encaminhá-los à redenção inspirados no exemplo do Príncipe Celeste que abandonou seu reino de glórias para dar-se,

em sacrifícios continuados, ao bem das ovelhas da Terra...

...E Aníbal, meus caros filhos! Este jovem que conheceu pessoalmente a Jesus de Nazaré, durante suas pregações inesquecíveis através da sofredora Judéia! Aníbal

de Silas, um daqueles meninos presentes no grupo que Jesus acariciou quando exclamou, demonstrando a inconfundível ternura que mais uma vez expandia entre as ovelhas

ainda vacilantes:

"Deixai vir a mim as criancinhas, que delas é o reino dos Céus..."

Aníbal, que vos ministrará ensinamentos cristãos exatamente como os ouviu do próprio Rabi, a quem ama com arrebatamentos de idealista entusiasta e ardoroso, desde

a infância longínqua, passada, então, no Oriente!

Assevera ele que, quando o Senhor pregava sua formosa Doutrina de Amor, quadros explicativos, de maravilhosa precisão e encanto inexprimível, surgiam inesperadamente

à visão do ouvinte de boa-vontade, elucidando-o de forma inconfundível, por imprimirem nos arcanos do ser de cada um a exemplificação que nunca mais seria olvidada!

Que era por isso que, falando, conseguia o grande Enviado conter, em serenidade inalterável, multidões famintas, por longas horas, dominar turbas rebeldes, arrebatar

ouvintes, convencer corações que, ou se prostravam à sua passagem, receosos e aturdidos, ou à Sua Doutrina para sempre se prendiam, encantados e fiéis. Os ímpios,

porém, cujas mentes viciadas permaneciam desafinadas com as vibrações divinas, nada percebiam, ouvindo apenas relatos cuja excelsitude não eram capazes de alcançar,

uma vez que traziam as almas impregnadas do vírus letal da má-vontade! Um desses quadros, certamente o mais belo de quantos o Mestre Amado criou para instruir suas

ovelhas desgarradas, porque aquele mesmo que o retratava em sua glória de Unigênito do Altíssimo, bastou para que Saulo de Tarso se transformasse em esteio ardente

da Doutrina Redentora com que honrara o mundo!

Aníbal cresceu e fez-se homem, sentindo-se sempre envolvido pelas radiações iinarcescíveis do Divino Pegureiro, e que nunca mais se apagaram das suas recordações.

Trabalhou pela Causa, repetiu aqui como além o que ouvira do Senhor ou de seus Apóstolos, preferindo, porém, instruir crianças e jovens, lembrando-se da doçura inexcedível

com que Jesus se dirigia à infância. Viajou e sofreu perseguições, ultrajes, injúrias, injustiças, ainda porque era de bom-gosto social criticar os adeptos do Nazareno,

ofendê-los, persegui-los, matá-los! E, uma vez chegado a Roma, viu-se glorificado pelo martírio, por amor do Enviado Celeste: teve o fardo carnal incinerado num

daqueles postes de iluminação festiva, na célebre ornamentação dos jardins de Nero, aos trinta e sete anos de idade! Mas, entre a tortura do fogo resinoso, porventura

ainda mais atroz, e o espanto por se ver colhido nas redes do sublime testemunho, ele, que se considerava humilde, incapaz de merecer tão elevada honra, reviu novamente

as margens do Tiberíades, o lago formoso de Genesaré, as aldeias simples e pitorescas da Galiléia e Jesus pregando docemente a Boa-Nova celestial com aqueles arrebatadores

quadros que, na hora suprema, se mostravam ainda mais belos e fascinantes à sua alma de adepto humilde e fervoroso, enquanto Sua Voz dulçorosa repetia, como o ósculo

da extrema-unção que lhe abençoasse a alma, fadando-a à glória da Imortalidade:

"Vinde a mim, benditos de Meu Pai, passai à minha direita..."

Enamorado sincero da Boa-Nova do Cordeiro Imaculado, será a Boa-Nova o ensino que vos ministrará, pois, para ele, sois meninos que tudo ignorais em torno dela...

E o fará como aprendeu do Mestre Inesquecível: - em quadros demonstrativos que vos apresentem, o mais fielmente possível, o encanto que para sempre o arrebatou e

prendeu a Jesus!

A fim de se especializar em tão sublime gênero de confabulação mental hão sido necessárias ao devotado Aníbal vidas sucessivas de renúncias, trabalhos, sacrifícios,

experimentações múltiplas e dolorosas no carreiro do progresso, pois somente assim seria possível desenvolver nas faculdades da alma tão precioso dom. Ele o conseguiu,

porém, porque jamais em seu coração escasseou a vontade de vencer, jamais esqueceu os dias gloriosos das pregações messiânicas, o momento, sempiterno em seu Espírito,

em que sentiu a destra do Celeste Mensageiro pousando sobre sua frágil cabeça de menino, para o convite inesquecível:

"Deixai vir a mim os pequeninos..."

É que Aníbal vinha sendo, para isso, preparado desde eras afastadas!

Viveu nos tempos de Elias, respeitando o nome do verdadeiro Deus! Foi, mais tarde, iniciado nos mistérios augustos das Ciências, pela antiga escola dos Egípcios.

O respeito e o devotamento ao Deus Verdadeiro, e a esperança inquebrantável no advento libertador do Messias Divino, iluminavam sua mente desde então, por entre

fachos de virtudes que não mais se esmaeceriam!

Não obstante, após o sacrifício em Roma, trabalhador e infatigável, renasceu ainda sobre a crosta do planeta. Seduzia-o a vontade poderosa e insopitável de seguir

nas pegadas do Mestre, anuindo aos Seus divinos apelos. Sofreu, por isso, novas perseguições ao tempo de Adriano, e exultou com a vitória de Constantino!

Desde então, dedicou-se particularmente ao amparo e à educação da infância e da juventude. Sacerdote católico na Idade Média, por mais de uma vez se fez anjo-tutelar

de pobres crianças abandonadas, esquecidas pela prepotência dos senhores de então, convertendo-as em homens úteis e aproveitáveis para a sociedade, em mulheres honestas,

voltadas para o culto do Dever e da Família! E tanto Aníbal se preocupou com a infância e a juventude, tanto fixou energias mentais naqueles rostinhos formosos e

meigos, que sua mente imprimiu em si próprio uma eterna feição de adolescente gentil, pois, como vedes, dir-se-ia ainda ser o menino acariciado pelo Mestre Nazareno,

na Judéia, há quase dois mil anos!...

Até que um dia, glorioso para o seu Espírito de servo fiel e amoroso, ordem direta desceu das altas esferas de luz, como graça concedida por tantos séculos de

abnegação e amor:

"- Vai, Aníbal... e dá dos teus labores à Legião de Minha Mãe! Socorre com Meus ensinamentos, que tanto prezas, os que mais destituídos de luzes e de forças

encontrares, confiados aos teus cuidados... Pensa, de preferência, naqueles cujas mentes hão desfalecido sob as penalidades do suicídio... Entreguei-os, de há muito,

àdireção de Minha Mãe, porque só a inspiração maternal será bastante caridosa para erguê-los para Deus! Ensina-lhes a Minha palavra! Desperta-os, recordando-lhes

os exemplos que deixei! Através de Minhas lições, ensina-os a amar, a servir, a dominar as paixões, apondo sobre elas as forças do Conhecimento, a encontrar as estradas

da redenção no cumprimento do Dever, que para os homens tracei, a sofrer com paciência, porque o sofrimento é prenúncio de glória, alavanca poderosa do progresso...

Abre-lhes o livro das tuas recordações! Lembra-te de quando me ouvias, na Judéia... e ilumina-os com as claridades do Meu Evangelho, pois é só isso o que lhes falta!..."

E aqui o tendes, meus caros filhos, modesto, pequenino como um adolescente, mas tocado pela flama imortal da inspiração com que o prende a bondade imarcesclvel

do Mestre Excelso... A ele eu vos confio!"

Intensa comoção atingia nossas almas, extraindo do íntimo do nosso ser reais sentimentos de admiração pelos três vultos que nos eram apresentados e que tão estreitamente

se ligariam ao nosso destino por um tempo que não poderíamos, absolutamente, prever. Também a inconfundível figura do Nazareno nos fora singularmente apresentada.

A verdade era que, até então, Ele nos aparecia às cogitações mais como sublimidade ideal, incompreensível à mente humana, do que personalidade real, capaz de se

tornar compreendida e imitada pelas demais criaturas. Nossos três mestres, porém, haviam sido contemporâneos dEle. Conheceram-no. Ouviram-no falar. Falaram, mesmo,

com Ele, porqüanto era de notar que esse Divino Mestre jamais negou falar a quem o procurasse! Um daqueles mesmos mestres sentira a branda carícia de sua mão afagar-lhe

a cabeça. Jesus-Cristo, assim conhecido, assim visto, assim amado, atraía nossas atenções.

Muitos internos presentes haviam baixado a fronte. Outros se abandonavam às lágrimas silenciosas, discretas, que desciam, como orvalhando suas almas, num grato

e fervoroso batismo! O silêncio continuou por alguns instantes, após o que Sóstenes continuou, orientador e zeloso:

- Como jamais será aconselhável a perda de tempo, porqüanto, alguns minutos desperdiçados no labor abendiçoado do progresso poderão carrear para o futuro dissabores

dificultosamente reparáveis, iniciaremos hoje mesmo medidas favoráveis a vós outros. Sereis novamente divididos em agrupamentos homogêneos de dez individualidades,

continuando separadas, como no Hospital, as damas dos cavalheiros. Somente no decorrer das aulas ou em dias fixados para reuniões recreativas, podereis avistar-vos

e trocar idéias. Isso acontecerá porque trazeis ainda arrastamentos penosos da matéria, inquietações mentais perturbadoras, que convém educar. Vossos pensamentos

deverão habituar-se a disciplina higiênica, encaminhando-se o mais rapidamente possível para as boas expressões do Espírito, para cogitações cujo alvo estará na

idéia de Deus! Fareis conosco o exercício mental de elevação do ser para o Infinito; mas para tanto conseguirdes será indispensável que vos desobrigueis de preocupações

subalternas. A idéia de sexo é um dos mais incomodativos entraves às conquistas mentais! As inclinações sexuais oprimem a vontade, turbam as energias da alma, entorpecem-lhe

as faculdades, arrastando-a a vibrações pesadas e inferiores, que retardam a ação do vero estado de espiritualidade. Por isso, será prudente, enquanto não progredis

bastante, o isolamento, bom conselheiro que vos levará ao esquecimento de que fostes homens e mulheres ainda ontem, lembrando-vos, em seguida, de que, agora, vós

vos deveis buscar de preferência com o amor espiritual, com o sentimento fraterno imarcescível, inclinação divina, apropriada para os arrebatamentos do Espírito.

Não obstante, entidades já educadas nas reais afinidades da alma, e que animaram, na Terra, corpos femininos, são indicadas para acompanhar-vos em missão educativa,

como familiar. Escolhidas em o nosso corpo de vigilantes, serão como preceptoras que vos auxiliarão na verdadeira adaptação ao ambiente espiritual, que em verdade

desconheceis, visto que vossos estágios no Além têm-se verificado, até agora, apenas entre as camadas inferiores do Invisível, o que não é a mesma coisa... Ouvirão

elas as vossas confidências, consolar-vos-ão com seus conselhos e experiências, quando as fadigas ou as possíveis saudades vos ameaçarem o ânimo; atenderão vossos

pedidos, transmitindo-os à diretoria desta Mansão, e, assim agindo, manterão ao redor dos vossos corações os doces e sacrossantos sentimentos da Família, impedindo

que os olvideis por uma longa separação, pois não podereis prescindir dos sentimentos de família, tal como na Terra são eles experimentados, porque ainda muitas

vezes reencarnareis nos seus cenários, reconstituindo lares que nem sempre soubestes prezar, testemunhando ensinamentos que haveis de aprender no plano espiritual,

com vossos mestres, prepostos de Jesus. Junto de vós, aqui desempenharão elas como que o papel da solicitude materna, do interesse e da dedicação fraternais!

Como vedes, toda a ajuda que a Lei permite no

vosso deplorável caso, a vós será facultada pela magna direção da Colônia Correcional que vos abriga, cujos estatutos, fundamentados na Doutrina Excelsa do Amor

e da Fraternidade, têm por ideal o educar para elevar e redimir!

Avante, pois, caros amigos e irmãos! encorajados e decididos, para a batalha que vos concederá a libertação das graves conseqüências que criastes em hora de

infeliz e temerária inspiração!"

Em um salão que precedia a sala de assembléias, encontramos as Damas da Vigilância, nobre corporação de legionárias que exercitavam aprendizado sublime para

as futuras tarefas femininas a serem experimentadas Terra, e o faziam junto de nós, seus irmãos sofredores carentes de elucidações e consolo. Esperavam pelos seus

protegidos, a fim de lhes serem devidamente apresentadas. Ora, o grupo formado desde o Hospital por mim, Belarmino de Queiroz e Sousa e João d'Azevedo, e que se

vira enriquecido, àquela mesma hora, por mais alguns outros aprendizes afins, portugueses e brasileiros, recebeu como futuros "bons gênios" as damas que nos haviam

encaminhado à reunião de que saíamos, isto é, Doris Mary e Rita de Cássia. Encantados com o acontecimento, pois irresistível simpatia já para elas impelia nossos

Espíritos, foi comovidamente que confessamos a satisfação que nos avassalava ao lhes oscularmos a destra que bondosamente nos fora estendida.

Sem perda de tempo, fomos encaminhados para o nobre edifício em que funcionavam as aulas de Filosofia e Moral, um dos magníficos palácios situados na formosa

Avenida Acadêmica.

Quando penetramos o recinto das aulas, suave comoção agitou as fibras magoadas do nosso ser. Era um salão imenso, disposto em semicirculo, cujas cômodas arquibancadas

acompanhavam traçado idêntico, enquanto ao fundo uma placa luminosa de avantajadas dimensões despertava a atenção do visitante, e, ao centro, junto a ela, a cátedra

do expositor, lente do transcendente curso que iniciaríamos. Notamos não nos ser estranho o aparelhamento. Já o víramos, por mais de uma vez, nos serviços hospitalares.

Contudo, esse, agora, dir-se-ia aperfeiçoado, apresentando leveza e dimensões diferentes.

Suaves tonalidades branco-azuladas projetavam no ambiente em que penetrávamos pela primeira vez o encanto sugestivo dos santuários. Jamais sentíramos tão profunda

a insignificância da nossa personalidade como ao penetrar o estranho anfiteatro onde o primeiro pormenor a nos despertar atenção era o sublime convite do Senhor

de Nazaré, escrito em caracteres fulgurantes e figurando acima da tela:

"Vinde a mim, todos vós que estais aflitos e sobrecarregados, que eu vos aliviarei. Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei comigo, que sou brando e humilde de coração,

e achareis repouso para vossas almas, pois o meu jugo é suave e leve o meu fardo." (25)

Eis, porém, que o tilintar macio de uma campainha despertou nossa atenção. O mestre apareceu: - era o jovem Aníbal de Silas, a quem fôramos apresentados havia

poucos minutos. Vinha seguido de dois adjuntos, Pedro e Salústio, dois adolescentes, como ele, delicados e atraentes, que imediatamente iniciaram preparativos para

o magno desempenho. Pensamentos turbilhonaram precipitadamente pelos refolhos de minha consciência, deixando que recordações queridas da infância me aflorassem gratamente

ao coração... e revi-me pequenino, comovido e temeroso ao enfrentar, pela primeira vez, o velho mestre que me dera a conhecer as letras do alfabeto...

Os adjuntos ligaram à cadeira, onde já Aníbal se sentara, fios imperceptíveis, porém, luminosos, e prepararam um como diadema que distinguimos como semelhante

ao entrevisto na Torre, para elucidação de Agenor Peflalva. O silêncio era religioso. Percebia-se grande homogeneidade na assembléia, pois a harmonia se impunha,

criando bem-estar indefinível a todos nós. Sofredores, excitados, aflitos, angustiados que éramos, aquietamos queixumes e preocupações pessoais, aguardando a seqüência

do momento!

Sobre o tablado mais seis irmãos iniciados se apresentaram. Sentaram-se em coxins dispostos em semicírculo, enquanto Aníbal se conservava ao centro e Pedro e

Salústio se distanciavam.

Aníbal levantou-se. Dir-se-ia que ósculos maternais rociassem nossas almas caliginosas. Surtos de esperança segredaram misteriosamente em nossos corações obliterados

pelo longo desespero, e suspiros se distenderam, aliviando opressões abomináveis. Ouvimos sons longínquos e harmonias de tocante melodia, como um hino

(25) Mateus, capítulo 15, versículos 28, 29 e 30.

sacro, os quais predispuseram nossos Espíritos, alijando do ambiente quaisquer resquícios de preocupações subalternas que ainda permanecessem pela atmosfera. Instintivamente

nos vimos presa de profundo e singular respeito, que atingia mesmo as impressões do temor. Arrepios ignotos perpassavam por nossa fibratura psíquica, aquecendo-a

docemente, ao passo que estranho borbulhar de lágrimas refrescava nossas pupilas requeimadas pelo pranto afogueado da desgraça! Evidente era que ondas magnéticas

preparativas eram conduzidas através dos sons daquele hino mirífico, que unificava nossas mentes aos embalos de acordes irresistíveis, fazendo-nos vibrar favoravelmente,

num harmonioso estado de concentração de pensamentos e vontades.

Em meio de silêncio tumular, em que não nos distraíamos sequer com os incômodos provindos dos males que nos afetavam, a voz de Aníbal, grave e carinhosa a um

só tempo, espalhou pela sala o convite enternecedor:

"- Vamos orar, meus irmãos! Antes de quaisquer cometimentos que tentemos para fins elevados, cumpre-nos o honroso dever de nos apresentarmos ao Deus Altíssimo

através das forças mentais do nosso Espírito, homenageando-o com nossos respeitos e para nós soucitando suas bênçãos divinas...

As pupilas acesas, no fulgor da inteligência, penetraram o íntimo dos nossos corações, tal se levantassem das sombras interiores do nosso ser o acervo dos pensamentos,

no intuito de iluminá-los. Tivemos a impressão perfeita de que aquele olhar faiscante eram tochas vivas que alumiavam nossas almas temerosas e combalidas, uma a

uma, e baixamos as míseras frontes, amedrontados em presença da superior força psíquica que nos visitava os refolhos da alma!

Bondoso, prosseguiu, como num prelúdio harmonioso:

"- A prece, meu caros irmãos, será o vigoroso baluarte capaz de manter serenos os vossos pensamentos à frente das tormentas oriundas das experiências e renovações

indispensáveis ao progresso que fareis. Aprendendo a alçar a mente ao Infinito, nas suaves e emgelas expressões de uma oração sincera e inteligente. estareis de

posse da chave áurea que vos levantará o segredo da boa inspiração. Orando, apresentando-vos, confiantes e respeitosos, ao Pai Supremo, como é dever de cada um de

nós, dele recebereis o influxo bendito de forças ignotas, que vos habilitarão para o heroismo necessário às lutas das realizaçôes cotidianas, próprias daqueles que

desejam avançar pelo caminho do progresso e da luz! Impulsionados pela oração bem sentida e compreendida, aprendereis, progressivamente, a mergulhar o pensamento

nas regiões festejadas pelas claridades celestes, e voltareis esclarecidos para o desempenho das mais árduas tarefas!

É no intuito de vos iniciar nesse roteiro proveitoso que vos convido a estenderdes o pensamento pelo Infinito, acompanhando o meu... Não importa que a rescaldante

lembrança dos delitos cometidos para trás vos pese nas consciências, nem que, por isso, dificuldades de expansões vos entravem o necessário desprendimento. O que

é preciso, o que se torna urgente e inadiável é querer iniciar a tentativa, é vos arrojardes, vigorosamente reanimados pela mais viva coragem que puderdes convocar

nas profundezas do ser, para a caminhada pelos compensadores canais da prece... porque, sem que vos prepareis nesse curso iniciático de conjugação mental com os

planos superiores, como haveis de neles penetrar a fim de vos edificardes!

E Aníbal orou, então, atraindo nossos míseros pensamentos para aquelas estradas suaves, distribuidoras dos bálsamos consolativos, das forças renovadoras! Áproporção

que orava, porém, uma faixa fosforescente, de radiação opalina, estendia-se sobre ele, e, abrangendo a assistência, a todos envolvia num como ósculo maravilhoso

de bênçãos. O hino acompanhava docemente, em surdina, as palavras ungidas de fé, que Aníbal proferia... e dulcíssimas impressões lenificavam as contusões ainda doloridas

do passado...

Aníbal de Silas sentou-se ao centro do semicírculo formado pelos seis iniciados que o acompanhavam. Pedro e Salústio colocaram-lhe na fronte o diadema de luz,

ligando-o à tela espelhenta pelos fios argênteos que conhecemos. Um minuto grave de recolhimento e fixação mental predominou entre o grupo de mestres que víamos

em ação, concentrando-lhes, harmonizando-lhes a vontade. Logo após, iniciou o catedrático a explanação da sua importante aula.

Pela magnitude do que se passou, então, não apenas naquele dia, como nos subseqUentes, durante essas aulas inesquecíveis; pela capital influência que exerceu

sobre nosso destino, nosso desenvolvimento moral e mental e a importância do método pedagógico, absolutamente inédito para nós, dedicaremos capítulo especial à sua

exposição, cientes de que, apesar do esforço e da boa-vontade que empregarmos, apenas reflexo muito pálido do que presenciamos conseguiremos apresentar ao leitor:

2

"Vinde a mim"

Aníbal entrou a comentar a urgência de cada um de nós, como da Humanidade inteira, quer do plano físico-terreno ou do Invisível inferior e intermediário,

se reeducar sob a orientação das fecundas normas cristãs. Afirmou, em análise sucinta, contrariando idéias que muitos de nós abrigavam, não existir misticismo supersticioso

nem fatos miraculosos e anormais na epopéia magnífica do Cristianismo, epopéia que não se limitava do presépio de Belém ao drama do Calvário, mas que se estendia

das Esferas de Luz às sombras da Terra, perenemente, em lances patéticos, positivos, sublimes, a que só a cegueira da ignorância deixa de apreciar devida-mente.

Ao contrário disso, o Cristianismo, doutrina universal cuja origem se fixa nas próprias Leis Sempiternas, possuía bases práticas por excelência, trazendo por finalidade

a recuperação moral do homem para si mesmo e a sociedade em que for chamado a viver no seu longo carreiro evolutivo, com vistas ao engrandecimento da Humanidade

perante as Leis Sábias do Criador. Lembrou que os homens terrenos projetaram sombras sobre os ensinamentos do Mestre Excelso, envolvendo-os em complexos calamitosos,

por empenar-lhes o brilho da essência primitiva com inovações e atavios próprios da inferioridade pessoal de cada um, desfigurando, destarte, a verdade de que são,

os mesmos ensinamentos, o expoente máximo. Asseverou com veemência impressionante, da qual não julgaríamos capaz um adolescente, que só os magnos e altruísticos

conhecimentos das doutrinas educativas expostas pelo Excelso Catedrático Jesus de Nazaré permitiriam a nós outros, como à Humanidade, ensejo à reabilitação imprescindível,

preparando-nos para a aquisição de uma nova e elevada Moral, para a sanidade de àções capazes de levarem a alvorecer em nossos míseros corações horizontes vastíssimos,

de ressurgimento pessoal e coletivo, de progresso legítimo, na escala de ascensão para a Vida abundante da Imortalidade! Que, doutos, sábios, gênios que fôssemos,

de nada nos aproveitariam tão lustrosos cabedais se ignorantes continuássemos das normas da Moral do Cristo de Deus, em cuja aplicação reside a glória da felicidade

eterna, uma vez que Sabedoria sem Amor e sem Fraternidade tem suas factícias glórias apenas no seio das sociedades terrenas...

Participou-nos, em seguida, que sua primeira aula consistiria na apresentação de sua personalidade a nós outros, seus discípulos. Que necessário seria que o conhecêssemos

intimamente, a fim de que seus exemplos nos estimulassem na senda espinhosa em que seríamos chamados a solver vultosos débitos, porqüanto será sempre de boa pedagogia

que o mentor apresente seus próprios exemplos aos alunos, a quem inicie, e também para que aprendêssemos a amá-lo, a nele confiar, tornando-nos seus amigos, considerando-o

bastante digno de ser ouvido e acatado. Que pudéssemos, em primeira análise, observar nele próprio os efeitos imarcescíveis de um caráter reedificado pelo amor do

Bom Pastor, redimido através dos preceitos que deveríamos, por nossa vez, conhecer para nos reerguermos das sombras da impiedade em que jazíamos, pois a verdade

era que desconhecíamos totalmente o Cristianismo legado pelo Mestre Nazareno, não éramos cristãos, senão adversários do Cristo, ovelhas rebeladas que, em verdade,

não conheciam o seu Pastor!

Então, o jovem Aníbal contou-nos a sua vida! Não apenas a existência última, testemunhada em terras da Itália durante os ominosos dias da Idade Média, mas as

variadas migrações terrenas no giro evolutivo que lhe fora próprio, seus deslizes como Espírito em marcha, que também é, as lutas pela redenção, frente aos sacrifícios

e às lágrimas das reparações, os impulsos para

o Bem, os incansáveis labores que lhe trouxeram os méritos nas inspirações do vero arrependimento pelo tempo perdido, labores sempre crescentes, cada vez

mais árduos, assim também os aprendizados realizados durante a erratícidade, tarefas e missões no plano Astral como no Material, a fim de provar a eficiência dos

progressos adquiridos, seu devotamento a Jesus Nazareno, a quem se ligara pelas ardências de uma paixão que nada mais poderia ensombrar ou arrefecer!

No entanto, era com assombro que ouvíamos as palavras de Aníbal traduzidas em imagens e cenas a se refletirem na teia miraculosa que lhe ficava junto. Assim foi

que, enquanto falava, a realidade de suas trans-migrações terrenas espirituais se reproduziam, ali, com tão verídica nitidez, que nos julgaríamos co-participantes

seus através das idades ressuscitadas dos repositôrios secretos dos seus pensamentos, pois alta sugestão sobre nós exercida dominava nossas faculdades, ligando-as

àvontade do mentor e dos seus cômpares ali presentes, e levando-nos a olvidar de que não passávamos de meros alunos que recebiam a introdução à primeira aula! Positivamente

mais real, mais completo e sugestivo do que o cinematógrafo dos dias vigentes, mais convincente que as cenas teatrais que tanto absorvem e arrebatam o observador,

porque era a vida em si mesma, natural, humana, realmente vivida, o retrospecto do pensamento de Aníbal foi passando gradativamente pela tela enquanto nem mesmo

desta nos lembrávamos, pois não a distingüíamos, senão os fatos empolgantes que se decalcariam em nossas mentes quais estímulos para futuras tentativas! Quando cessou

o dramático desfile, o belo instrutor adolescente surgia ao nosso entendimento como um ser amado de quem nunca mais nos desejaríamos apartar! Fora, por assim dizer,

um consórcio de nossas almas com a sua o que se verificara através das exposições feitas, porqüanto, a mais viva atração afetiva nos impelia para ele, correspondendo,

assim, os nossos sentimentos aos seus nobres e fraternos desejos.

Não obstante, observando nossa confusão, pois surpreendia-nos o fato para a explicação do qual não trouxéramos conhecimentos suficientes no acervo dos cabedais

intelectuais até então adquiridos, falou ainda o lente, suspendendo, em seguida, os trabalhos, por aquele dia:

"- As cenas a que acabastes de assistir, deslizando sobre esta tela reprodutiva, que não é senão um espelho singular, para vós desconhecido, onde deixei que se

refletisse minha própria alma, foram as minhas recordações, caríssimos discípulos, acordadas intactas, vivas, dos refolhos supremos da Consciência!

Todos os filhos do Altíssimo, ao viverem as existências planetárias, como as espirituais, imprimem nos escaninhos da alma, nas camadas profundas da Consciência,

toda a grande epopéia das trajetórias testemunhadas, as ações, as obras e até os pensamentos que concebem! Sua longa e tumultuosa história encontra-se neles próprios

gravada, como a história do globo, onde já vivemos, se acha arquivada nas camadas geológicas e eternamente reproduzida, fotografada, igualmente arquivada, nas ondas

luminosas do éter, através do Infinito do Tempo! Por sua vez o corpo astral, envoltório que trazemos presentemente, como Espíritos livres do fardo material; aparelho

delicadíssimo e fiel, cuja maravilhosa constituição ainda não sois capazes de compreender, registra, com nitidez idêntica, os mesmos depósitos que a Consciência

armazenou através do tempo, arquiva-os em seus arcanos, reflete-os ou expande-os conforme a necessidade do momento - tal como fiz agora -, bastando para isso a ação

da vontade educada! Ora, se tivésseis educadas as faculdades da vossa alma, se, cursando Universidades, na Terra, esclarecendo inteligências como homens que fostes,

igualmente houvésseis cultivado os preciosos dons do Espírito, assim vos apossando dos sublimes conhecimentos das Ciências Psíquicas, além de não haver convosco

a possibilidade de uma derrota produzida por suicídio, porqüanto vos teríeis colocado em planos muitas vezes superiores aos em que medram as paixões e insânias que

a este dão causa, agora estaríeis à altura de compreenderdes minhas expressões mentais sem o auxílio, por assim dizer, material, deste aparelhamento que me fotografou

e animou os pensamentos, as lembranças e recordações, reproduzindo-as, para vós, tal como se acham arquivadas nos livros secretos do meu Espírito!

É uma operação melindrosa o que acabais de ver! Exige sacrifício por parte de quem a tenta. Meus irmãos de ideal aqui presentes e meus discípulos forneceram-me

fluidos magnéticos necessários à corporificação das lulagens e à reprodução dos sons, a fim de que meu esforço não fosse demasiado; e, envolvidos no ambiente dominado

por ondas especiais, de um magnetismo superior, que é o nosso principal elemento, vós mesmos vos sugeristes a convicção de que comigo vivestes minhas vidas, quando

a verdade era, apenas, que assistíeis ao desenrolar do pretérito em meu ser depositado... Participo-vos, em tempo, que não tardareis a conhecer as mesmas experiências,

extraindo de vós mesmos o passado que ainda dormita, porque mantendes, embrutecidos pelas repercussões chocantes do vosso estado de suicidas, dons da alma que nas

entidades normais despertam com facilidade tão logo ingressam na espiritualidade... Todavia, não competirá a mim o orientar-vos neste áspero e doloroso retrospecto...

O conhecimento que, com o fato agora presenciado, adquiristes, comum nos planos da Espiritualidade, mesmo vulgaríssimo, um dia enriquecerá as aquisições intelectuais

e científicas da Terra, para galardão dos homens, através da Ciência Psíquica Transcendental. Até lá, porém, haverá o homem de moralizar-se, desenvolver faculdades

preciosas do Espírito, as quais, no momento, ele ignora possuir, a fim de, só então, tornar-se digno de tão sublime aquisição, para que não venha a servir-se de

um dom de natureza divina como instrumento de crimes e paixões subalternas, como há acontecido com outros valores sagrados que até hoje há recebido!

Na própria Terra, esse dom, cujo valor inestimável ainda é desconhecido às inteligências vulgares, foi exercido para as altas finalidades da educação das primeiras

massas que se fizeram cristãs. Seria difícil fazer compreender o sublime alcance do Evangelho do Reino a criaturas simples e iletradas, apenas com o ardor da oratória,

a magia do verbo, O Nazareno, compassivo e amoroso, senhor de poderes psíquicos incalculáveis para nós outros, dono da maior força mental que já nos foi dado conceber,

expondo suas formosas lições criava cenas e corporificava-as, dando aos ouvintes maravilhados o esplendor de visões interiores, que o seu pensamento fecundo e poderoso

não se cansava de distribuir. É certo, porém, que nem todos aqueles que o ouviam estariam à altura de compreendê-lo Mesmo dentre os escolhidos para Lhe auxiliar

o ministério redentor houve quem o não compreendesse Mas os outros, para quem Ele representava a luz incorruptível da Verdade, os simples, os sofredores sedentos

de justiça e de esperança, os de boa-vontade, destituídos de vaidade, em quem o egoísmo do século já não medrava, vibrando mais ou menos harmoniosamente com Ele,

seguiam-lhe as ondas criadoras do pensamento luminoso e absorviam o ensinamento exemplificado de todas as formas. Seus discípulos, do mesmo modo, ao falarem dEle,

inconscientemente projetavam recordações e pensamentos que, recolhidos pelos cooperadores espirituais incumbidos de assisti-los, eram imediatamente corporificados

em sugestões poderosas, para a visão do ouvinte sincero e de boa-vontade, o qual passava, então, não apenas a ouvir uma narração, mas a ela assistir, a vê-la como

se presente estivesse aos feitos sublimes do Inesquecível Mestre.

Assim também, caros discípulos, realizaremos nossas preleções em torno da Doutrina legada pelo Divino Instrutor, pois muito inspiradamente andou a direção desta

Colônia de reclusos adotando tal método para instrução de seus internos, por serem impossíveis, através dele, interpretações pessoais, conceitos errôneos, sofismas

ou interpolações!"

A partir daquele dia assistíamos periodicamente às aulas de Anibal, iniciado que foi, definitivamente, o nosso preparo moral à luz das superiores doutrinas expostas

pelo verbo imarcescível do Divino Messias.

O catedrático explanou, de princípio, as causas da vinda de Jesus à Terra. Arrebatador desfile de civilizações passou, gradativamente, pela tela mágica,

demonstrando aos nossos surpresos testemunhos a mais fecunda exposição das necessidades humanas, muitas das quais jamais havíamos tido ocasião de perceber! Sem a

palavra messiânica as sociedades terrenas, então, se nos afiguraram, com efeito, como tão bem conceituava Aníbal de Silas, um mundo sem a aquecedora luz de um globo

solar, um coração vazio da força impulsionadora da Esperança! O mestre falava e suas narrativas, suas exposições magistrais, seus exemplos mais que convincentes,

irresistíveis, e seu verbo entusiasta e ardente arrancavam do turbilhão poeirento dos séculos mortos, das idades desaparecidas e até dos momentos contemporâneos,

imagens e cenas, motivos reais, exemplos coletivos ou individuais, que, sob o calor magnético da sua superior vontade, associada à de seus pares, se humanizavam

diante de nós, levando-nos a examina-los e estudá-los sob o critério elucidativo de suas orientações.

Um curso superior e atraente de Filosofia e Análise comparada foi por nós iniciado, então. E era empolgante, era belo e comovedor, com nosso emérito instrutor

ressuscitarmos do silêncio dos séculos a existência das sociedades que se foram na sucessão das idades, seus costumes, suas quedas, seu heroismo, suas vitórias!

Ao nosso entendimento se apresentou a vida da Humanidade desde os primórdios, fornecendo-nos o mais belo estudo que ousaríamos conceber, a mais fecunda elucidação

que nossas mentes seriam capazes de abranger, porque a história magnífica do crescimento das sociedades que lutaram sobre a crosta do planeta, de falanges que ali

iniciaram o próprio desenvolvimento moral e mental, que nasceram e renasceram muitas vezes e depois se foram, atingindo ciclos melhores em outras moradas do Universo,

e, assim, dando lugar a outras falanges, a outras humanidades, suas irmãs, as quais, por sua vez, lutariam também, através dos renascimentos, trabalhando continuadamente

em busca do mesmo progresso, enamoradas do mesmo alvo - a Perfeição!

Entretanto, no decurso de tais exames tantas eram as desgraças que descobríamos para estudar, tantos os sofrimentos, as prementes situações, os problemas indefinidos,

os desnorteantes complexos engendrados pelo egoísmo com suas múltiplas feições apaixonadas, tão grandes as lutas da humanidade ignorante da própria finalidade, que

impossível se tomou permanecermos indiferentes qual o observador frio que estuda apenas o cadáver. Fazendo parte dessa sociedade terrena, dessa humanidade desgraçada,

ímpia e sofredora que desconhece Deus por preteri-lo às paixões, éramos solidários com seus mesmos infortúnios, pois que também nossos, e pesada angústia infiltrava-se

pelos meandros do nosso espírito, despertando ânsias inexprimíveis, estados mentais e alucinatórios inconcebíveis ao pensamento humano, como desejos sacrossantos

de algo que nos libertasse das trevas hiantes em que nos sentíamos tragados...

Até que, em certa aula, por um dia ameno e harmonioso em que palpitavam em nosso imo anseios vagos de esperanças, como promessas benditas que entornassem aleluias

pelo nosso ser, Aníbal apresentou-nos a figura inconfundível, a figura inesquecível do Meigo Rabi da Galiléia, através das lembranças reproduzidas na tela magnética

com o colorido vivo e sedutor da realidade! Então, a epopéia augusta do Cristianismo, desde a manjedoura humilde de Belém transformada em berço celeste, desenvolveu-se

magistralmente, em estudos fecundos para o nosso entendimento, que começou a soletrar, só então, a palavra sacrossanta da redenção! As cenas descritas pelo expositor,

que tão bem conhecera a época do advento da Boa-Nova do Reino de Deus, mostravam circunstanciadamente, com clareza impressionante, as prédicas inesquecíveis do Divino

Mensageiro, os discursos sugestivos, animados pelo colorido vivo dos quadros citados, as lições resplandecentes da mais elevada e pura moral, lançadas aos ares da

Judéia humilde e oprimida, mas ecoadas pelos recantos mais longínquos do mundo quais convites amistosos e perenes à regeneração dos costumes para o reinado do verdadeiro

Bem, apelos amorosos de confraternização pessoal e social, para a concretização de uma Pátria ideal na Terra, cujas normas de governo Ele oferecia através de Sua

oratória impecável, de Sua exemplificação na vida prática sem precedentes, como nas fulgurações imperecíveis daquela áurea Doutrina cujo alvo era a educação moral

do homem, cuja finalidade era sua exaltação para a glória da vida sem ocasos, da Vida Eterna na unidade com Deus! A imagem sedutora do Enviado Celeste gravou-se,

por assim dizer, também em nossas mentes, em traços cativantes e indeléveis, tornando cada um de nossos coraçôes sincero enamorado do Cristianismo, predispostos

a aquisiçôes morais sob suas benéficas inspirações, pois, enquanto Aníbal narrava fatos, relembrando passagens enternecedoras, enquanto sua palavra vibrava em ondas

sonoras de comentários férteis, extraindo essências de ensinamentos capitais para nossa iluminação, víamos os cenários que serviam à ação magnificente do Grande

Mestre, ao mesmo tempo que sua figura inconfundível dominava a expressão, exercendo o apostolado sublime! Tínhamos a impressão convincente de o estarmos ouvindo

proferir o Sermão da Montanha, enquanto as aragens perfumosas que ondulavam docemente no cimo da colina lhe faziam esvoaçar o manto, desalinhando-lhe os cabelos...

De outra vez, era às margens do Tiberíades, era em Genesaré, pelas cidades da Judéia ou pelas aldeias pobres da Galiléia, como se o seguíssemos também, fazendo parte

daquela massa de povo ávido de suas palavras consolatórias, de seus favores dulcíssimos!... E por toda a parte: em conversação com partidários, amigos ou discípulos;

no Templo, explicando aos exegetas da época as regras áureas da Boa-Nova que trazia; ou curando, favorecendo, protegendo, consolando, exaltando, educando, ensinando,

redimindo, Aníbal nos levava a ouvi-lo e aprender, com Ele mesmo, os caminhos para nossa urgente reabilitação! Fazia-o, porém, Aníbal, pacientemente, tecendo comentários

qual o professor emérito cioso da clareza das teses expostas, para a boa compreensão dos alunos...

Assim foi que fomos informados de que não apenas a Terra recebera as alvíssaras da Boa-Nova, através de sua palavra de bondade e redenção, mas também o Astral

inferior fora visitado por sua presença, visto possuir Ele poder bastante para em qualquer local se apresentar, tornando-se visível como lhe aprouvesse, e uma vez

que se tratava de local onde os infortúnios e as calamidades de ordem moral são, incontestavelmente, mais intensos e profundos que os do planeta, ali também comparecia,

convertendo Espíritos que havia séculos permaneciam nas trevas da ignorância ou no declive do ostracismo, tal como na Terra convertia homens, a todos estendendo

mão fraterna e redentora! Igualmente nos dizia que o mundo terreno desconhece grande parte dos ensinamentos por Ele trazidos, pois que, destruidos foram muitos aspectos,

verdadeiramente feéricos, da Verdade Divina por Ele exposta, rejeitados que foram pela má-fé ou pela ignorância presunçosa dos homens! Mas que, no entanto, soara

o momento em que sua Doutrina Grandiosa seria devidamente alçada para o conhecimento de todas as camadas sociais! Para isso, a Terceira Revelação de Deus aos homéns

era já fornecida à Humanidade em nome do Redentor... e nós mesmos, que éramos Espíritos, estávamos convidados a colaborar nesse empolgante movimento chefiado pelo

Mestre, procurando falar com os homens a fim de revelar-lhes estas coisas todas, porqüanto a chamada Terceira Revelação mais não era do que um intercâmbio ostensivo,

minucioso, de idéias entre os Espíritos e a Humanidade, subordinado aos ditames da Ciência Universal como da Moral Excelente do próprio Cristo de Deus!

Depois, ao findar o drama do Calvário, conhecemos as pelejas ardentes dos discípulos pela difusão do Testamento regenerador do Mestre, o martírio dos humildes

e abnegados cristãos, inspirados sempre pela força imanente da fé... e a reforma conseqüente dos indivíduos que se submetiam àqueles princípios regeneradores e educativos!

Estudamos, analisamos e investigamos tudo quanto fora possível à nossa mentalidade suportar em torno da Doutrina de Jesus Nazareno. Muitos tornos, complexos, delicados,

precisaríamos escrever para que pudéssemos dar contas ao leitor da profundidade e extensão dessa incomparável Doutrina que tem origem no próprio pensamento divino,

e que, sendo a Lei mesma estatuída pelo Criador de Todas as Coisas, um dia envolverá em suas imperecíveis fulgurações todos os setores das sociedades terrestres

e espirituais!

Sentíamo-nos atraidos e arrebatados. Só então compreendemos a razão da súbita transformação daquela Maria de Magdala, tão sedutoramente apontada no Evangelho

do Senhor; daquele Saulo de Tarso, vaso escolhido do Messias Celeste; e o que dantes nos parecia mito, lendas imaginosas de orientais místicos, avultou-se em nosso

entendimento como fato lógico e irresistível, que não poderia deixar de existir tal como se deu e as tradições narraram! Apresentado à nossa compreensão assim, naturalmente,

com singeleza, deeataviado dos mistérios com que os homens temiam em ofuscar-lhe a grandeza, o Enviado Celeste impôs-se à nossa convicção realmente como o Mestre

por excelência, o Guia Incomparável, devotado ao superior ideal da regeneração humana através do Amor, da Justiça, do Trabalho! Compreendemo-lo e amamo-lo, então,

o necessário para nos abastecermos da Fé e da Esperança, qualidades indispensáveis ao Espírito em marcha de progresso, as quais, havia séculos, faltavam nos cabedais

dos nossos corações!

Esse admirável curso requereu de nossa boa-vontade e esforços, e da abnegação do nosso preceptor espiritual, longos anos de dedicação e estudos incansáveis, assim

como de exemplificação e prática, visto ser a Doutrina Messiânica prática por excelência, confirmando-se invariavelmente através da vida cotidiana de cada adepto.

Era a iniciação cristã rigorosamente ministrada, de forma a não nos deixar motivos nem ensejos para futuros deslizes nos campos da Moral!

Mas a caminhada afigurava-se árdua, demasiadamente longa para muitos de nossos cômpares, os quais se deixavam turbar frente ao labor espinhoso e constante, que

se tornaria imprescindível desenvolver. Toda via, chegáramos a uma época de nossa existência de Espíritos em que já não era possível estacionar, vergados sob as

crenas do desânimo. Reagíamos contra as ameaças da fraqueza, da angústia feraz que nos rondava, compreendendo que urgia prosseguir a despeito do infinito de lutas

que acenavam nas dobras do porvir, enquanto que a protetora voz da Consciência nos advertia de que, com o Lente Magnífico de Nazaré, adquiriríamos cabedais justos

para a jornada que se delineava ao nosso pávido entendimento de delinqüentes arrependidos!

"Vinde a mim, vós que sofreis, e eu vos aliviarei..."

E nós atendíamos ao doce e irresistível chamamento e avançávamos... e seguíamos... Jesus-Cristo, Divino Redentor das almas frágeis e rebeladas cumpria a promessa:

atraía-nos com seus ensinamentos sublimes, tomava-nos para seu redil e convencia-nos a perseverar em seus conselhos, provando-nos todos os dias, através da transformação

miraculosa que em nosso ser se operava, o caridoso interesse em desviar-nos da desgraça para encaminhar-nos à redenção!

Empolgados por esse curso atraente, que tanto alivio nos trouxera, esquecíamos os dramas penosos, o desequilíbrio das paixões que nos haviam desgraçado, esquecíamos

a Terra e dela só lembrávamos graças a outros estudos que alternadamente éramos conduzidos a experimentar, para eficiência da preparação, pois, como afirmamos acima,

tínhamos aulas práticas, onde testemunharíamos a eficiência do aprendizado teórico, antes de que as provas reais de uma nova encarnação terrestre nos conferisse

a palma da reabilitação.

Não raramente recebíamos a visita, durante as arrebatadoras aulas que palidamente esboçamos, de outros antigos mestres de iniciação, os quais, apresentados pelo

nosso catedrático, explanavam conceitos e apreciações em torno das doutrinas e normas cristãs, com uma ardência empolgante e sublime! Novos motivos para instrução

obtínhamos então, nunca menos belos nem menos agradáveis do que os que diariamente nos eram expostos. Vivíamos reclusos, era bem verdade. Continuava não existindo

permissão para sairmos da Colônia a não ser em grupamentos escoltados, nas turmas de aprendizes, mas também não era menos verdadeiro que vivíamos rodeados de uma

assistência seleta, no âmbito social de uma plêiade de educadores e intelectuais cuja elevação de princípios ultrapassava tudo quanto poderíamos conceber! E porque

compreendêssemos que tal reclusão era-nos como dádiva magnânima a auxiliar-nos o progresso, a ela nos resignávamos com paciência e boa-vontade.

Diariamente, ao entardecer, eram-nos permitidos recreios no grande parque da Universidade. Reuníamo-nos então em grupos homogêneos e nos dávamos a conversações,

comentários em torno de nossas vidas e da situação presente. Nossas boas preceptoras, as vigilantes de cada grupo, geralmente tomavam parte em tais recreios, e até

nossas irmãs dos Departamentos Femininos, o que nos permitiu alargar intensamente o número de nossas relações de amizade. Seria difícil, ao fim de dez anos de internação

no Instituto de Cidade Esperança, reconhecerem em nós outros os vultos enfurecidos e trágicos do Vale Sinistro, aqueles mentecaptos ridículos reproduzindo a cada

instante o ato maléfico do suicídio e suas satânicas impressões! Acalentados pela Esperança, aliviados pela magia envolvente do Amor de Jesus, sob a inspiração de

cujos ensinamentos ensaiávamos novo surto, éramos entidades que poderiam ser consideradas normais, não fora a consciência que tínhamos da própria inferioridade de

trânsfugas do Dever, coisa que muito nos afligia e envergonhava, tornando-nos indignos em nosso próprio conceito, imerecedores do auxílio de que nos rodeavam!

As solenidades do Ángelus encontravam-nos, freqüentemente, ainda no parque. Acentuava-se a penumbra em nossa Cidade e nostalgia dominante envolvia nossos sentimentos.

Do Templo, situado na Mansão da Harmonia, região onde se demoravam com freqüência os diretores e educadores da Colônia, partia o convite às homenagens que, naquele

momento, seria de bom aviso prestarmos à Protetora da Legião a que pertencíamos todos - Maria de Nazaré. Pelos recantos mais sombrios da Colônia ressoavam então

doces acordes, melodias suavíssimas, entoadas pelas vigilantes. Era o momento em que a direção-geral rendia graças ao Eterno pelos favores concedidos a quantos viviam

sob o abrigo generoso daquele reduto de corrigendas, bendizendo a solicitude incansável do Bom Pastor em torno das ovelhinhas rebeldes, tuteladas da Legião de sua

Mãe amorável e piedosa. E era ainda quando ordens desciam de Mais Alto, orientando os intensos serviços que se movimentavam sob a responsabilidade dos dedicados

servos da mesma Legião. Todavia, não éramos obrigados a orar. Fá-lo-íamos se o quiséssemos. Em Cidade Esperança, porém, jamais tivéramos conhecimento de que algum

aprendiz ou interno recusasse agradecer ao Nazareno Mestre ou à sua Mãe boníssima, por entre lágrimas de sincera gratidão, as mercês recebidas do seu inapreciável

amparo!

A blandícia daquela oração, cuja simplicidade só igualava à sua própria excelsitude, despertava em nossas mentes as mais ternas recordações da existência: -

revíamos,

levados pelo império de gratas sugestões, os doces, saudosos dias da infância, os vultos carinhosos de nossas mães - ensinando-nos a mimosa saudação do Arcanjo à

Virgem de Nazaré, e as palavras inolvidáveis de Gabriel, ungidas de veneração e respeito, repercutiam nas profundidades do nosso "eu" tocadas do saudoso sabor do

desvelo materno que, na vida planetária, jamais soubemos devidamente considerar. Chorávamos! E saudades mui pungentes da Família e do berço natal, do lar que haviamos

menosprezado e enlutado, dos entes queridos e amigos que feríramos com a deserção da vida, entornavam-se pelo nosso ser, predispondo-nos a grandes pesares sentimentais,

como novas fases de remorsos dolorosos. Então orávamos, ali mesmo na quietude envolvente do parque ou recolhidos a local determinado, orávamos sentindo em cada dia

o ósculo de benéfico reconforto vivificando nossas almas, tal se misericordiosos bálsamos refrescassem nossas consciências das excessivas ardências que se haviam

rasgado em nosso ser pelas garras infames do suicídio que nos deprimira e desgraçara à frente de nós mesmos! E, de envolta com o refrigério, eis que se avolumava

a necessidade imperiosa de nos tornarmos dignos dessa misericórdia que nos amparava tanto - a necessidade dos testemunhos que a Deus provassem nosso imenso pesar

por nos reconhecermos graves infratores de suas Magníficas Leis!

3

"Homem, conhece-te a ti mesmo!"

Outros cursos fazíamos, não menos importantes para a nossa reeducação, alternadamente com o da Moral estatuída pelo insigne Mestre Nazareno. Um deles prendia-se

à Ciência Universal, cujos rudimentos nos deram, então, a conhecer - dois anos depois de iniciados no curso de Moral Cristã -, através de estudos profundos, análises

tão penosas quão sublimes! E nestas mesmas análises entrava a necessidade de estudarmos a nós próprios, aprendendo a nos conhecermos intimamente! Exames pessoais

melindrosos eram efetuados com minúcias aterrorizantes para o nosso orgulho e para a nossa vaidade, paixões daninhas que nos haviam ajudado na queda para o abismo,

ao mesmo tempo que, sendo as aulas mistas, adquiríamos o duplo ensinamento de dissecar também o caráter, a consciência, a alma, enfim, de nossos pares, como de nossas

irmãs de infortúnio, o que nos conferia valioso conhecimento da alma humana!

Era lente dessa cadeira magnífica o venerando educador Epaminondas de Vigo, Espírito cuja rigidez de costumes, virtudes inatacáveis e energia inquebrantável,

infundiam-nos mais que respeito, verdadeira impressão de pavor! Em sua presença sentíamos, desnudados dos disfarces de quaisquer atenuantes inventadas pelos sofismas

conciliatórios, o peso vergonhoso da inferioridade que nos assinalava, o opróbrio da incômoda situação de responsáveis por delitos degradantes, pois dominava as

potencialidades da nossa mente a convicção de que não passávamos de rebeldes cuja insensatez obrigava obreiros abnegados do Mundo Espiritual a sacrifícios permanentes

a fim de conseguirem elevar-nos das trevas em que nos precipitáramos. Ora, a vergonha que açoitava nossos Espíritos em presença de Epaminondas era um suplicio, novo

e inesperado, de natureza absolutamente moral, porém, superlativa, que se apresentava nesta Segunda fase da nossa situação de suicidas em preparo de futuras realizações

reparadoras.

O emérito educador auxiliava-nos a esfolhar a própria consciência, levando-a a desdobrar-se até às recordações remotas das sucessivas migrações terrenas

que tivéramos no pretérito! Quando perscrutava nossa alma, devassando-a com o olhar cintilante de forças psíquicas quais baterias de irresistíveis energias, profundos

abalos sacudiam os refolhos do nosso ser, ao passo que desejos aflitivos de fuga precipitada, que nos acobertasse de sua presença, como da nossa própria, alucinavam

nossos sentidos! Enquanto Ãníbal de Suas, com a ternura consolatória do Evangelho, acendia em nosso seio fachos beneficentes de confiança no porvir, clareando o

âmbito de nossas vidas com as alvissareiras possibilidades de redenção, Epaminondas arrancava lágrimas de nossos corações, renovava angústias ao obrigar-nos a estudos

no imenso livro da Alma, arrastando-nos a estados de sofrimentos cuja intensidade e aterradora complexidade, absolutamente inconcebível à mente humana, faziam-nos

atingir os limites da loucura! Por essa razão o temíamos, e era dominados por um sentimento forte de pavor, a par de angústias irreprimíveis, que subíamos, diariamente,

as escadarias da Academia para com ele aprendermos os primórdios da terrível disciplina exigida igualmente de antigos iniciados das Escolas de Filosofia e Ciências

do Egito e da Índia: o reconhecimento da inferioridade pessoal para o método da elevação moral pela auto-educação!

No entanto, tais aulas eram tão necessárias ao nosso desenvolvimento psíquico quanto o eram as de Aníbal! Eram mesmo o seu prosseguimento, como passaremos a expor

mais adiante.

Havia, porém, um terceiro curso, o qual se resumia no ensaio da aplicação, na vida prática, dos valores adquiridos durante os estudos e observações dos cursos

anteriormente mencionados. Em vez, porém, de nos instruírem para uma "prática profissional", como se diria em linguagem terrena, esse terceiro aprendizado, orientado

para a prática da observância das Leis da Providência, que, havia séculos, infringíamos, tinha por mentor o lente Souria-Omar e desenvolvia-se, geralmente, fora

do santuário, isto é, do recinto da Escola, de preferência na crosta da Terra e nos domínios inferiores do nosso Instituto.

Aos domingos repousávamos. Ainda mais não éramos que individuos cujas faculdades espirituais pouco desenvolvidas e, ainda mais, abaladas pelo traumatismo vibratorial

provocado pelo suicídio, não permitiam labores continuados, como víamos exercerem nossos devotados instrutores, que jamais se achavam ociosos. Descansávamos, portanto,

divertíamo-nos mesmo, tomando parte em reuniões fraternas efetuadas pelas vigilantes ou visitando, em caravanas amistosas, outros Departamentos da Colônia, inferiores

ao nosso, assim revendo velhos amigos e antigos mestres, como Teócrito, e, dessa forma, prestando solidariedade e conforto a irmãos mais desditosos do que nós, que

se encontrassem, por sua vez, naquelas dependências conhecidas. Nem assim, como vemos, deixávamos totalmente de exercer atividades. Aprendíamos, ainda! Progredíamos

em conhecimentos obtendo, nas citadas reuniões, noções de Arte Clássica Transceudental, de que eram dignos expoentes não apenas nossos mestres, como outros que caridosamente

nos visitavam, e até nossas vigilantes, que ensaiavam com eles nova modalidade de servir a Deus e à Criação, isto é, utilizando-se do Belo, empregando a Beleza!...

pois convém acentuar que nossos mestres, em sendo cientistas, também se revelavam estetas, enamorados da Suprema Beleza que se origina do Sempiterno Artista!

Vejamos, não obstante, em que consistiam as tão importantes quanto apavorantes aulas do eminente preceptor Epaminondas de Vigo, o qual, como sabemos, fora mestre

de iniciação em antigas Escolas de Doutrina Secreta, na India como no Egito.

Em um dos encantadores palácios da Avenida Acadêmica instalava-se a Escola de Ciências da Universidade do Burgo da Esperança.

Majestoso e severo em suas linhas arquitetônicas, ao lhe penetrarmos os umbrais acometia-nos a impressão de que ali se venerava Deus com todas as forças da Razão,

da Lógica e do Conhecimento! Sopros de indefiníveis convicções abalavam nossas potências anímicas, fornecendo-nos a intuição de nossa própria pequenez em face da

Sabedoria, ao passo que fortes emoções infundiam-nos singular respeito pelo Desconhecido que ali depararíamos, levando-nos às raias do terror! Lembrávamos então

de Aníbal. Sua recordação arrastava para nossas lembranças a imagem dulcissima do Mestre de Nazaré, a quem em toda a Colônia denominavam o Mestre dos Mestres, o

Magnífico Reitor da Espiritualidade! Sentíamo-nos, então, encorajados, certos de que estávamos sob sua dependência, efetivamente abrigados em seu redil, por Ele

amados e por ele mesmo protegidos.

Exatamente idêntico ao recinto do Santuário onde se ministrava a Ciência do Evangelho, o novo Sacrário apresentava a diferença de ostentar o célebre preceito

grego ornamentando em fulgurações adamantinas o cimo da tela indispensável, em todas as aulas, para a captação das vibrações do pensamento:

"Homem! Conhece-te a ti mesmo!"

antecedendo a uma não menos célebre sentença cristã cuja profundidade e excelsitude ainda revolverá o mundo terrestre e suas sociedades, espécie de autorização do

verbo Divino para os trabalhos que se desenvolveriam sob a invocação de suas Leis:

"Ninguém entrará no reino de Deus se não renascer de novo."

Tornava-se evidente que os educadores por que nos víamos dirigidos subordinavam seus métodos às normas estatuídas por Jesus de Nazaré, ao qual inequivocamente

demonstravam venerar como orientador e chefe do movimento impetrado não apenas em nosso favor, como da Humanidade toda. Que se tratava de iniciados cristãos de alta

classe moral não tínhamos, pois, nenhuma dúvida. E se eram filósofos, cientistas, pesquisadores, sociólogos, pedagogos eméritos, como mais tarde tivemos ocasião

de verificar, também era fora de dúvida que era na sublime Escola de Moral e Fraternidade estabelecida pelo Cristo de Deus que extraíam modelos e métodos para exercerem,

entre os homens encarnados e os Espíritos em trânsito, as elevadas aptidões que possuíam.

Intrigados com tudo quanto nos era dado observar, acometiam-nos, por vezes, vertigens, ao raciocinarmos sobre a realidade da vida que em além-túmulo deparávamos,

quando julgáraxnos nada mais existir depois que o último bocado de argila ocultasse nosso corpo inerte das vistas humanas!

Pressentindo, porém, logo da primeira vez, acontecimentos importantes em torno de nós próprios, ouvimos que discreto e sugestivo tilintar de uma campainha advertia-nos,

atraindo nossa atenção. Respeitoso silêncio dominou o recinto. Dir-se-ia que todos os pensamentos se entrelaçavam na conjugação fraterna de sentimentos homogêneos,

enquanto ondaé fluídicas harmoniosas de Mais Alto desciam em jorros de bênçãos iluminativas, protegendo, inspirando os sacrossantos trabalhos que se seguiriam.

Levantou-se Epaminondas de Vigo.

Pela primeira vez "ouvimos" sua voz!

Enérgica, positiva, intrépida, imperiosa, a palavra do novo mestre, daquele que afrontara outrora o suplício da fogueira por amor aos alevantados ideais da Verdade,

estendeu-se pelo salão imenso, vibrando sob as abóbadas que nos abrigavam e como que se decalcando para sempre nos meandros de nossas almas, acordando-nos as faculdades

para novas conquistas morais, mentais, intelectuais e espirituais!

Franzino, modesto, venerável com suas barbas longas, que traziam a imaculada brancura de luminosidades transcendentes, aquele ancião que nos fora apresentado

dois anos antes, e em quem supuséramos a vacilação da decrepitude, agora surgía aos nossos olhos surpresos em atitudes varonis, qual gigante da oratória, expondo

as bases de uma Doutrina Renovadora até então desconhecida para nós, e cujos fundamentos se assentavam na Ciência Universal!

Inicialmente explicou-nos que cumpria, com efeito, recebermos, em primeiro lugar, os ensinos morais expostos nos Evangelhos do Redentor, a fim de que, ao encanto

de suas palavras remissoras, adquiríssemos critério suficiente para, só então, atingirmos outros esclarecimentos que, ministrados à revelia da reeducação moral fornecida

por aqueles, resultariam estéreis senão mesmo nulos, se se não tornassem, antes, prejudiciais! A moral divina do Cristo Jesus, porém, saneando, de algum modo, nossa

mente e, portanto, nosso caráter, de muita vileza que nos congestionava as faculdades, havia, naqueles dois anos de aplicação incansável, predisposto nosso "eu"

para, agora, receber o prosseguimento do curso que nos favoreceria habilitações para reerguimento moral decisivo! Que, por essa circunstância, somente agora nos

fora dado entrar em contacto com ele, Epaminondas. Que faríamos sob sua direção um curso leve, rápido, por assim dizer preparatório, de Ciência Universal, denominada,

em antigas idades - Doutrina Secreta -, e outrora apenas ministrada a mentalidades muito esclarecidas e muito fortes, aptas, portanto, pelas virtudes de que dessem

provas, de penetrarem mistérios de ordem divina, que se conservam, invariavelmente, ocultos às inteligências vulgares, ociosas ou presunçosas. Que, nos tempos remotos,

anteriores ao advento do Missionário Celeste, os ensinos secretos só eram ministrados a indivíduos que, durante dez anos, pelo menos, dessem as mais rigorosas provas

de sanidade moral e mental; que, em idêntico espaço de tempo, demonstrassem, de forma inequívoca, a própria reforma interior, isto é, o domínio das paixões, dos

instintos, dos desejos em geral, das emoções, pela Vontade iluminada com as santas aspirações do Bem e os testemunhos das Virtudes. Mas que, com a descida do Mestre

Complacente das Esferas de Luz às sombras da Terra e às regiões astrais inferiores do mesmo planeta, fora popularizado o ensino secreto, porqüanto sua Doutrina,

uma vez firmando-se no coração da criatura, habilitá-la-ia a vôos longos no terreno cientffico-psíquico! Ainda porque a Doutrina Messiânica trouxe à Humanidade esclarecimentos

outros, rejeitados pelos homens, onde expressava Ele os valores imortais da Ciência Psíquica! Que, desde então, decretos divinos haviam ordenado que se desse do

ensino secreto a todas au criaturas terrenas como a Espíritos em trânsito nas regiões astrais inferiores que circundam o Planeta, pois o Pai Supremo, condoído das

amarguras humanas, oriundas da ignorância, desejava fossem todos os seus filhos iluminados pelo sol das Verdades Eternas! Que lutas insanas começaram então os prepostos

da Luz a sustentar com os condutores das paixões inferiores, luta áspera e constante, que se estendia por quase dois mil anos, e que de todos os recursos já haviam

lançado mão os obreiros do Messias a fim de instruírem os rebeldes com as Verdades Celestes, que teimam em não aceitar! E que, por isso mesmo, novos decretos haviam

descido de Mais Alto, para que o Ensino fosse ministrado mais ostensivamente, com toda a eficiência possível, bem assim a maior clareza, não a um ou a dois de boa-vontade,

-mas à Humanidade toda, como a todos os Espíritos errantes que desejassem aprender, fossem virtuosos ou pecadores, pois que urgia auxiliar a regeneração do gênero

humano, já que estava iminente rigorosa seleção, por parte da Providência, entre os Espíritos e os homens pertencentes aos núcleos terrenos, porque o planeta sofreria

em breve o seu parto de valores, expulsando para mundos inferiores os incorrigíveis desde há dois mil anos, para conservar em seu seio apenas os mansos e os pacíficos,

(26), os de boa-vontade,

(26) Mateus, capítulo 5, versículo 5 - Bem-aventurados os que são brandos, porque possuirão a Terra.

para, então, estabelecer-se, não só no planeta como em seus continentes astrais, aquela era de progresso sonhada pelo Mestre da Galiléia, presidida pelo socialismo

fraterno estatuído nos áureos códigos da sua Doutrina! Que, por isso mesmo, iríamos também receber os rudimentos do Ensino Secreto, rudimentos, apenas, o bastante

para nos fortalecermos para a eficácia da reparação que devíamos à Lei, pois éramos ainda muito frágeis, mentes traumatizadas pela violência do ato que exorbitara

da Lei da Natureza, caracteres viciados pelo abuso de séculos e séculos submersos no demérito da materialidade! Que o Ensino seria concedido gradativamente, de acordo

com nossas capacidades, sendo por essa razão que nos dividiam em turmas homogêneas. Que a Doutrina Secreta em sua plenitude só a conheciam o Senhor Jesus de Nazaré,

que era Uno com Deus Pai, e seus Arcanjos, falange de auxiliares, como que ministros, que eram unos com Ele! Que, pois, começava esse Ensino na Terra, em parcela

diminuta para os homens imersos nas sombras do Princípio, e ascendia em progressão sem limites até o Infinito do Seio Divino! Por isso mesmo, era chamado ao citado

Conlhecimento - Ciência Universal - e que nós outros, míseros suicidas, ínfimos cidadãos do Universo de Deus, párias das sociedades do Astral, para quem se tornava

necessário criar sempre colônias de abrigo, éramos convidados a partilhar da assembléia luminosa da Verdade, porqüanto fora justamente a. falta dos mesmos ensinamentos

que nos levara, de queda em queda, até à calamitosa situação da queda máxima através do suicídio! E que ele, Epaminondas, em nome de Jesus Nazareno, a quem deveríamos

o reisurgimento de nossas almas para a redenção, e em nome de Maria, sua Mãe, a quem devíamos o amparo recebido até o momento presente, concitava-noø ao rigor de

um ensaio para severa iniciação, mais tarde, nos mistérios, pois, da nossa boa-vontade, do nosso valor na aplicação do experimento presente, dependeriam os êxitos

futuros.

Vibrante e fecunda até ao deslumbramento, como bem poderá o leitor entrever, essa peça oratória arrebanhou nosso sincero interesse: sendo com legítima

admiração que, intimamente, ovacionamos o catedrático apenas suspendera o exórdio magnífico. Exprimindo-se em português clássico, fulgurante para portugueses e brasileiros,

e em espanhol sadio e puro para espanhóis, Epaminondas de Vigo fazia fulgir a palavra em inflexões suaves e melodiosas, ou vibrantes e fortes qual se um hino literário,

que bem poderia parecer também musicado, se ele o tivesse desejado, nos deliciasse a audição e a sensibilidade. Encantados, eu, Belarmino, João e mais os amigos

brasileiros Raul e Amadeu, que se haviam incluído em o nosso antigo grupo, mal chegáramos ao Burgo da Esperança, logo nos sentimos atraidos para o novo monitor,

e ansiosos pelas lições que se seguiriam. E supúnhamos que idênticas impressões animavam os demais colegas, porque percebíamos sorrisos de satisfação e lídimo interesse

esvoaçarem pela assistência.

Entretanto, o aprendizado científico seguiu curso normal, alternando-se com o que vínhamos antes recebendo e mais os conhecimentos práticos através das aulas

do eminente Souria-Omar.

Assim foi que o respeitável ancião ministrou-nos o encantamento de presenciarmos o nascimento e progressão, lenta e esplendente, do próprio Globo Terrestre! O

que superficialmente conhecíamos (permitam-me que assim me expresse ante a magnificência do que, então, me foi concedido apreciar) através dos códigos de Ciência

terrestre, isto é, da Geologia, da Arqueologia, da Geografia, da Topografia, o ilustre instrutor levantou da dobagem dos milênios para nos ofertar como o presente

descrito em cenas vivas, em atividades reais, como se houvéramos participado, com efeito, do nascimento e crescimento da generosa estância do sistema solar que um

dia nos abrigaria, protegendo nossa ascensão para o Infinito, auxiliando-nos no aperfeiçoamento do germe divino que em nós outros, Homens, como nela própria, também

palpita! Tudo presenciamos: a centelha em ebulição, as trevas do caos, os aguacefros e dilúvios aterrorizantes, os grandes cataclismos para a formação dos oceanos

e rios, o maravilhoso advento dos continentes como o nascimento das montanhas majestosas, cadeias graníticas eternas como o próprio globo, tão conhecidas e amadas

por aqueles que na Terra têm feito ciclo de progresso: os Alpes sobranceiros quais monarcas poderosos desafiando as idades, os Pirineus graciosos, o Himalaia e o

Tibet venerandos, a Mantiqueira sombria e majestosa, todos, em épocas diversas, surgiram do berço diante de nossos olhos deslumbrados, arrancando lágrimas de nossas

almas, que se prosternavam, tímidas ante tanta grandeza, tanta beleza e majestade! Mas, antes disso, em prosseguimento feérico de maravilhas, a luta dos elementos

furiosos para o crescimento do pequeno continente do céu, o oceano conflagrado em convulsões pavorosas, sacudindo o seio nascente do mundo imerso em solidão, o cataclismo

dos ventos e tempestades a que nada poderá fornecer ao homem idéia aproximada... assim como os primeiros sinais de movimento e vida no leito imenso das águas convulsas,

a vegetação, fabulosa e tétrica, no gigantesco volume das proporções... os dinossauros monstruosos, os lagartos de forma e força inconcebíveis à delicadeza corporal

do Homem, os mastodontes, a Pré-História!

Era um livro tenebroso, imenso, magnífico, Epopéia Divina da Criação, desferindo alguns poucos acordes da sua Imortal Sinfonia através do Infinito do Tempo,

da Eternidade das Coisas! E nesse livro soletrávamos o a b c da Iniciação, gradativamente, pacientemente, às vezes empolgados até ao delírio; de outras, banhados

em lágrimas até ao temor, mas sempre ávidos e encantados, ansiosos por mais conhecimentos, lamentando mais do que nunca nossas diminutas forças de suicidas, que

nem a terça parte nos permitia entrever do programa excelso ofertado pela Natureza!

Um desfile indescritível de períodos genesiacos patenteou-se à nossa observação, à análise elucidativa e sadia, durante o qual, diariamente, se radicava em nosso

Espírito o respeito, a veneração por Aquele Ser Supremo e Criador a quem havíamos negado, de quem descrêramos pela dobadoura dos séculos, mas a quem agora rendíamos

graças, apavorados e Infimos que nos sentíamos frente à sua Grandeza, ao passo que também felicíssimos ao nos reconhecermos seus filhos, herdeiros da sua glória

eterna!

Aqui, eram a flora e a fauna imensa na variedade das espécies; além, a geologia rica de atrações e encantos, povoando o seio do globo com a multiplicidade mirífica

dos minerais; acolá, o infindável laboratório do planeta, o oceano com seus infusórios prodigiosos, seus infinitos depósitos de vida, de criação, de espécies, de

riqueza incoutestavelmente divina, e tudo à mão do Homem, tudo criado para ele, mas que ele despreza conhecer, vivendo, como vive, engolfado nas trevas da animalidade

através dos milênios, incapaz, por isso mesmo, de tomar posse desse paraíso que para ele mesmo o Senhor ideou e criou com toda a amabilidade do seu amor infinito

de Pai, com toda a força da sua mente poderosa de Supremo Criador!

... E assim surgiu, em lições sempre seqüentes e habilmente parceladas, a idade do Homem, a divisão das raças, a suprema glória do planeta abrigando, finalmente,

a parcela divina que, um dia, deverá refletir a imagem e a semelhança do seu Criador!

Durante longos anos ininterruptos, diariamente soletramos esse livro assombroso cuja intensidade e magnificência comumente nos causavam vertigens levando-nos

a adoecer e à necessidade de haurirmos novas energias mentais ao contacto dos clínicos incumbidos de nossa vigilância, sendo o próprio Epaminondas um dos mais dedicados

à causa do nosso restabelecimento... E hoje, às vésperas de nossa volta aos proscênios dessa mesma estância, que agora conhecemos desde o seu nascimento, apenas

averiguamos que nada pudemos aprender ainda, que apenas soletramos as primeiras letras do plano material terreno!

De que forma, porém, poderiam Epaminondas e seus acólitos ministrar tais aulas, tornando visível no presente o que os milênios devoraram no pretérito?... Como

reedificar com tão real pujança, a ponto de apavorar-nos, as idades primitivas do planeta, os períodos devastados pelo Tempo?...

É que vivemos todos em plena Eternidade, somos cidadãos do Infinito, e para a Eternidade o que existe é o momento presente, sem ocasos, sem lapsos! Ela, a Eternidade,

vive dentro do presente, porque justamente é esta a sua particularidade!

Das ondas luminosas do éter invisível, ou seja, dos arquivos do Infinito como dos sacrossantos depósitos da Eternidade, extraia Epaminondas a matéria grandiosa

para as aulas fornecidas. As imagens que se eternizaram, retidas nas ondas vibratórias do éter luminoso, a reprodução do que se passara na Terra desde a sua criação,

guardada, fotografada, impressa nas vibrações da Luz como a paisagem na fragilidade de uma bolha de sabão, eram selecionadas pelos magos da Ciência Transcendente,

captadas e transportadas até nosso conhecimento através de processos e aparelhamentos cuja sensibilidade e potência magnética já hoje o homem não ignora totalmente.

Poderia Epaminondas, ao confabular com um igual, reportar-se ao passado dispensando aparelhamentos. Nós outros, no entanto, não os dispensaríamos, a menos que o

abnegado monitor apoucasse ainda mais as próprias possibilidades a fim de tornar-se compreensivo, enquanto avolumasse as nossas, torturando-nos até ao sacrifício,

o que seria dispensável. O certo era que uma equipe de magos especialistas no serviço e artistas da palavra e da sugestão, vasculhavam o éter com seus poderes de

atração científico-transcendente, àprocura do que convinha, e estampava-o na tela sensível através de sugestões poderosas, e tudo com perfeição tal que era como

se a tudo quanto víamos houvéssemos realmente assistido! Processo vulgar no Mundo Invisível, essa forma de captação da imagem, dos acontecimentos, levará um dia

o homem à mesma possibilidade, como ao conhecimento dos próprios planos do Astral intermediário! Uma coisa única acelerará tal conquista da Ciência para a Humanidade:

- o domínio da Moral nas suas sociedades, o império da Honradez!

Não deixarei de citar o espetáculo sublime da marcha harmoniosa dos astros, proporcionado que nos foi ele durante o prolongamento dos mesmos estudos, agora,

porém, obedecendo não mais aos processos circunscritos a um recinto acadêmico limitado, mas a excursões em pleno Espaço, viajando através do Infinito, como universitários

em curso prático. Nossas forças, no entanto, muito limitadas, não nos permitiram a contemplação feérica dos mundos estelares no conjunto surpreendente da sua grandeza.

Como estimulo, apenas, facultadas nos foram visões mais ou menos aproximadas dessa esplendente grandeza, através de aparelhamentos diferentes, apropriados para o

descortino da Astronomia, de que recebíamos pálidos convites. Nossas observações e estudos, portanto, não ultrapassaram conhecimentos senão relativos aos nossos

irmãos de sistema, permitindo-nos as mais belas aquisições a que nosso estado poderia aspirar, o que muito já nos encantava e satisfazia... Até que passamos ao estudo

de nós mesmos, jóias que somos, todos nós, as Almas, do escrínio sideral, futuros ornamentos da Corte Universal em que se imprimiu o selo sagrado do Pensamento Supremo,

e para quem tudo, tudo foi imaginado e criado pelo Pai Amoroso que de coisa alguma necessita, que nada quer senão que nos amemos uns ao outros!

Explicou-nos o mestre, convincentemente, pelo decorrer do aprendizado, a tríplice natureza humana, provando praticamente sua tese com análises levadas a averiguações

em torno de nós mesmos e de outrem, o que surpresas, por vezes muito ríspidas para nossos preconceitos e orgulhos arraigados, nos traziam. Esse mesmo estudo entrevíramos

no Departamento Hospitalar, onde o asilado abeberava rudimentos de sua própria qualidade de Espírito, sem, todavia, atingir os pormenores que em Cidade Esperança

se desdobravam para nós.

Expôs ele a realidade das vidas sucessivas, suas leis, suas conseqüências benéficas, sua finalidade magistral, sublime, sua inalienável necessidade para a gloriosa

evolução do ser! Apontou-nos a jornada espinhosa do Espírito nessa ascensão sublime para o Alto, submetido ao trabalho dos renascimentos e renovações em corpos carnais,

dos estágios no Além, dos labores ininterruptos num e noutro plano! Não era, todavia, sem emoções por vezes muito chocantes que víamos rasgarem-se, através de tais

estudos, os campos da Vida Espiritual, a qual só então começamos e compreender com a devida eficiência, pois suas realidades, não raro muito amargas, derribavam

velhas convicções filosóficas, destruiam arraigados preconceitos religiosos acomodatícios, modificavam conceitos científicos que as tradições e também o orgulho

cego do fanatismo materialista haviam ensinado a conservar e homenagear!

A fim de bem conhecermos certas particularidades da personalidade humana partíamos, então, com nossos mestres, em caravanas de estudos práticos. Souria-Omar

era o catedrático dessa nova modalidade, fazendo-se acompanhar de adjuntos lúcidos e igualmente versados. Visitávamos os Departamentos Hospitalares, observando,

quais acadêmicos de Medicina, a constituição dos corpos astrais dos nossos irmãos ali detidos, coadjuvados por Teócrito, que tudo nos facilitava, fraternalmente

assistidos por nossos amigos Roberto e Carlos de Canalejas. Descíamos à Terra, periodicamente, visitando-a durante anos consecutivos, em estágios de algumas horas,

pelos hospitais e Casas de Saúde, estudando o fenômeno dos desprendimentos, sempre assistidos por eminentes individualidades da Pátria Espiritual, assim como pelas

casas particulares e até prisões, à espera de sentenciados à pena capital, pois devíamos enriquecer a mente com análises em torno de todas as modalidades do fenômeno

da separação de um Espírito do seu temporário invólucro carnal, desde o feto, expulso ou não, voluntariamente, do órgão gerador materno, até o condenado pela justiça

dos homens à morte no patíbulo! Cada caráter, cada personalidade ou gênero de enfermidade, como a natureza do desprendimento, nova aquisição de esclarecimentos,

através de estudos minuciosos e sublimes! Era bem certo que jamais assistimos a qualquer cena de assassínio, ou catástrofe. Chegávamos sempre após o drama, a tempo

de colhermos a necessária elucidação. Freqüentemente era-nos imposto o doloroso dever de acompanharmos o desligamento penoso, envolto em trabalhos de repercussões

aterradoras, muros a dentro de um campo santo! Então, era ali que Souria-Omar discorria suas aulas magistrais, catedrático genial, digno de ser ouvido por discípulos

prosternados e reverentes! E, sob o farfalhar das galhadas onde mimosos passarinhos pipilavam à noite, enternecidos a sonharem com a alvorada, ou à sombra augusta

dos ciprestes folhudos e majestosos, pela calada da noite bordada de estrelas, como aos resplendores do Astro Rei, eis que recebíamos as anotações do antigo mestre

de Alexandria, com ele aprendendo o fenômeno magnífico da Alma que se despoja da armadura que a enclausurava, para retornar à liberdade dos páramos espirituais!

Não nos poderíamos, no entanto, muitas vezes, furtar a vivas impressões de sofrimento, durante tão augustos espetáculos! O aprendizado implicava a contemplação de

muitas desgraças alheias, dores superlativas, intraduzíveis angústias, misérias e desesperações diante das quais corriam nossas lágrimas, arfava doloridamente nosso

seio, compungiam-se nossos corações. Mas era também preciso aprender, com esses espetáculos, o domínio das emoções, impor serenidade às forças mentais como ao sentimento,

tratando, antes, de refletir, a fim de aplicar esforços no sentido de auxiliar e remediar situações, sem perder tempo precioso com lamentações estéreis e lágrimas

improdutivas. Semelhantes impressões atingiram o seu clímax quando nos vimos obrigados à observação dos desprendimentos prematuros ocasionados por suicídio! Então,

a loucura que nos atacara outrora subia das profundidades anímicas para onde haviam sido relegadas e irrompiam a contragosto nosso, afligindo-nos com o espectro

de um pretérito que se transmutava em presente! O tono abominável de nossas passadas raivas avolumava-se na febre de reminiscências malvadas, desorientando-nos,

fazendo-nos resvalar para a alucinação coletiva! Era quando toda a energia, toda a caridade e sábia assistência de nossos Guardiães entravam em ação, impondo silêncio

às nossas emoções, repelindo veementemente nossas truanices alucinatórias, chicoteando, ao contacto benévolo de suas terapêuticas fluídicas, as ex citações mentais

provenientes das recordações, até que o presente se impusesse!

Voltamos, destarte, ao Vale Sinistro, integrando as caravanas de socorro, fiéis ao aprendizado sublime, e, ali, chorando sobre nossa mesma desgraça, tivemos

ocasião de assistir irmãos nossos imersos na mesma situação de calamidade que tão bem conhecíamos, examinando-os, com nossos mestres, a vermos se estariam em condições

de alçarem até ao Departamento da Colônia, que lhes caberia. Piedosamente falávamos-lhes, encorajando-os, consolando-os. Mas não éramos compreendidos, passávamos

anonimamente... E foi assim que soubemos ter sido nós, outrora, também benevolamente assistidos por outrem, sem que nossas precárias condições o suspeitassem...

De todos os conhecimentos que gradativamente adquiríamos, cumpria-nos apresentar pontos construídos por nós próprios, criar exemplos em teses que muito honrariam

os institutos terrenos, caso quisessem adotar os mesmos ensinos para esclarecimento e moralização de seus alunos; extrair análises, tudo o que viesse provar nosso

aproveitamento na iniciação do psiquismo. Forneciam-nos para. tanto álbuns belíssimos, cadernos e livros lucilantes quais flocos de estrelas, e até aparelhos melindrosos,

aos quais nos ensinavam acionar, para que também aprendêssemos a projetar para outrem as exemplificações que criávamos, ou mesmo as análises extraídas dos exemplos

fornecidos pelos mestres durante as aulas práticas na Terra ou em outra localidade de nossa Colônia. Daí a criação de minhas novelas e a ansiedade de ditar obras

aos médiuns, pois, durante as aulas práticas existia permissão para fazê-lo, sempre que um e outro trabalho por nós composto conseguisse aprovação dos maiorais;

daí nosso sacrifício de tentarmos, durante cerca de trinta anos, escrever algo, que a um só tempo testemunhasse a Deus nosso reconhecimento pelo muito que Sua Misericórdia

nos permitia e o desejo de relatar aos nossos irmãos de infortúnio, encarcerados nas dores terrenas, o que o Além lhes reservava. Para tal cometimento não haveria

necessidade de sermos escritores, porque o aprendizado com nossos mentores nos educava o sentimento, equilibrando-nos o raciocínio de molde a conseguirmos servir

à Verdade que nos rodeava!

Muita aplicação e devotamento exigiam esses estudos transcendentes, porqüanto eram vastíssimos os campos de observação, como grandiosos os motivos diariamente

deparados.

Convém enumerar as palpitantes matérias estudadas e auscultadas por nós outros até onde nos permitiram as forças mentais que possuíamos:

- Gênese planetária ou Cosmogonia - Pré-História

- A evolução do ser

- Imortalidade da alma

- A tríplice natureza humana

- As faculdades da alma

- A lei das vidas sucessivas em corpos carnais terrenos, ou reencarnação

- Medicina Psíquica

- Magnetismo - Noções de magnetismo transcendental

- Moral Cristã

- Psicologia - Civilizações terrenas

Alternados com as aulas de Evangelho, tais estudos apresentavam correlação íntima com aquelas, o que nos impelia a melhor compreender e venerar a sublime personalidade

de Jesus Nazareno, ao qual passamos a distinguir, tal como faziam nossos instrutores, como o chefe supremo da Iniciação, pois, com efeito, em todos os compêndios

que consultávamos, buscando elucidação na Ciência, deparávamos lições, claros ensinamentos, atos e exemplos daquele Grande Mestre, como padrão máximo de sabedoria

e verdade, modelos irresistíveis, bússolas que nos convidavam a seguir para atingirmos a finalidade sem os desvios oriundos do engodo e das falsas interpretações.

Como por mais de uma vez já esclarecemos, nossos estudos eram enriquecidos com a prática e a exemplificação. Esse pormenor, porém, que implicava até mesmo realizações

que testemunharíamos futuramente, durante a renovação imprescindível de um corpo carnal, nem sempre fornecia satisfações ao nosso coração. Ao contrário, freqüentemente

ocasionava grandes angústias, arrancando de nosso seio lágrimas pungentíssimas e mesmo momentos tenebrosos de desesperos que nos abatiam, levando-nos a enfermar.

Situações críticas, vexames se avolumavam sobre nós, como veremos, sem que a tão desagradáveis resultados nos pudéssemos eximir, porque tudo era seqüência da bagagem

moral inferior que conosco transportáramos para o Além-túmulo.

Logo no primeiro dia de aula, terminada que foi a fulgurante peça oratória, expusera o venerando Epaminondas de Vigo, lançando uma advertência que nunca mais

se apagaria do nosso senso Intimo:

"- Nenhuma tentativa para o reerguiznento moral será eficiente se continuarmos presos à ignorância de nós mesmos! Será indispensável, primeiramente, averiguarmos

quem somos, donde viemos e para onde iremos, a fim de que nos convençamos do valor da nossa própria personalidade e à sua elevação moral nos dediquemos, devotando

a nós próprios toda a consideração e o máximo apreço. Até aqui, meus caros discípulos (ao contrário de Âníbal, que nos mimoseava com o terno tratamento de irmão,

Epaminondas só nos permitia a cerimônia de um trato disciplinar), tendes caminhado cegamente, pelas etapas das migrações na Terra e estágios no Astral, movimentando-vos

em circulo vicioso, sem conhecimentos nem virtudes que vos induzissem a progresso satisfatório. Engolfados nos desejos impuros da matéria, pausivos aos impulsos

cegos das mais danosas paixões ou embrutecidos na ganga obscura dos instintos, tendes ignorado, propositadamente, graças à má-vontade, ou absorvidos por criminosa

indiferença, que ao nosso ser o Todo-Poderoso enalteceu com essências que Lhe são próprias, as quais nos é dever cultivar sob as bênçãos do progresso, até que floresçam

e frutifiquem na plenitude da vitória para que fomos, por isso mesmo, destinados!..."

Disse-o e, indicando um dos penitentes que se achavam mais próximos, nas arquibancadas, fê-lo penetrar o círculo em que se erguia a sua cátedra e agrupavam-se,

concentrados e mudos, os adjuntos.

Determinou o acaso, ou a própria clarividência do lente, que a escolha atingisse nosso companheiro de grupo, Amadeu Ferrari, um brasileiro de origem romana, natural

do interior do Estado de S. Paulo, o qual, segundo passamos a conhecer nessa mesma hora, suicidara-se aos trinta e sete anos de idade, julgando possível escapar

à vergonha da prisão, devido a certos feitos imprudentes, bem como à ameaça de um câncer que começara a intumescer-lhe a região glótica. Pô-lo à sua frente e interrogou,

demonstrando autoridade:

"- O vosso nome, caro discípulo?.. ."

Súbito mal-estar dominou a assistência, advertindo-a de algo muito grave que a atingira. Quiséramos fugir, furtando-nos à responsabilidade terrível da aprendizagem

que se nos afigurou, repentinamente, grandiosa demais e por demais delicada para a ela nos devotarmos para sempre! Tivemos a intuição de que se iriam passar coisas

irremediáveis, que marcariam era nova em nossos destinos, e tivemos medo! Epaminondas de Vigo apareceu-nos então qual juiz inflexível que nos julgaria, arrastando-nos

até onde depararíamos o tribunal temível de nossa própria consciência, e profundo terror nos inspirou sua presença venerável, enquanto a figura jovial e terna de

Aníbal de Silas, com suas exposições alvissareiras em torno da Boa-Nova, que tão bem nos haviam consolado, desenhou-se à nossa imaginação, produzindo funda saudade

do seu verbo manso que carinhosamente rememorava os feitos sublimes do Meigo Nazareno. Mas o ancião advertiu-nos, em aparte precioso e enérgico, surpreendendo-nos

com o conhecimento, que demonstrou, das impressões em nossa mente suscitadas:

"- Lembrai-vos de que o Senhor Jesus de Nazaré, a quem invocais neste momento, é o Grande Mestre que nos inspira, e que, sob Seus auspícios, é que vos ministramos

os Ensinos Sagrados que engrandecerão os vossos Espíritos para a conquista dos méritos futuros, pois éEle o chefe supremo de nossa Escola e distribuidor de nossa

Ciência!..."

Voltou-se para o paciente em expectativa e repetiu:

"- Vosso nome, pois?.. ."

Amadeu Ferrari..."

Onde residíeis antes de ingressardes nestes sitios?...

Na cidade de XXX... no Brasil..."

Por que procurastes abandonar vosso destino, cuja finalidade deve ser a unidade com Jesus, nosso Redentor, confiando-o à ilusão de um suicídio!... Não sabíeis

que praticáveis um crime contra Deus Pai, porque contra vós próprio, visto que é certo que todos trazemos centelhas do Criador em nós?... Julgáveis, porventura,

poder aniquilar os elementos de Vida existentes em vós, essa Vida que justamente é eterna porque a recebestes do Eterno Criador?..."

Visívelmente contrafeito, esquivou-se Amadeu através do sofisma, único recurso que lhe ocorreu na melindrosa situação:

"- Felizmente, senhor, foi apenas um pesadelo... uma alucinação... Eu não me pude matar, embora o desejasse, pois que estou vivo!... Vivo! Vivo! Louvado seja

Deus, estou vivo!..."

Mas, senhor de uma serenidade desconcertante, que a nós outros irritaria se não estivéssemos sinceramente dispostos a nos deixarmos conduzir, insistiu o sábio

ancião:

"- Reitero a interrogação, Amadeu Ferrari: - por que desejastes desaparecer da presença de vós mesmo como de vossos semelhantes, quando o poema do Universo cantava

ao vosso redor o sacrossanto dever dos compromissos, como a excelsa beleza da existência humana, que deve habilitar a Alma para o reinado da Imortalidade?"

"- Senhor... É que... eu desanimei... eu... sim... Mas responderei aqui, em presença de toda essa assistência?... Estarei, pois, novamente defrontando um tribunal?.

.

"- Existe, sim, um tribunal e todos vós o defrontais: é a vossa consciência, que inicia o despertar da longa letargia que há séculos a mantém• chumbada às mais deploráveis

inconseqüências! E imprescindível é que eu, autorizado pelos poderes máximos do meu e vosso Redentor, vos oriente a fim de que, examinando-a, aprendais a vos despojardem

do orgulho que vos tem cegado desde muitos séculos, impedindo que reconheçais a vós próprios e, portanto, a soberania das Leis que regem os destinos da Humanidade!"

"- Senhor, a miséria, a enfermidade, o desânimo, foram a causa... Cometi uma falta grave, frente a tão dolorosas circunstâncias... Não tive outro recurso a não

ser o que fiz... A prisão... a doença...

"- E esse ato - suicídio - lavou a nódoa de que vos havíeis contaminado antes?... Considerais-vos inculpado, honesto, honrado após o mesmo ato?..."

"- Oh! não! Não pude fugir à responsabilidade dos atos que pratiquei! Sinto-me desonrado por ter lançado mão de quantias que me foram confiadas... muito embora

o fizesse tentando recuperar a saúde, pois a ameaça tenebrosa de um câncer desorientava-me, justamente quando estava prestes a realizar um consórcio cuja expectativa

era a minha razão de ser... A quantia era avultada... eu era bancário... A prisão ou a morte... O câncer, o roubo, pois era roubo... O ideal de amor desmoronado!

Preferi o suicídio!... Sei que foram grandes crimes... Mas sinto-me ainda confuso, apesar de muito já me ter esclarecido, ultimamente... Por que, oh! por que fui

colocado em tão desgraçadas circunstâncias?... A confusão turbilhona em minha mente... Iatuições pavorosas segredam-me um passado do qual tenho pavor... Oh! Jesus

de Nazaré! Misericórdia!... Eu tremo e vacilo... Não compreendo bem. .

- Pois ireis compreender, Amadeu Ferrari! É imprescindível que o compreendais !"

Acenou para dois adjuntos que aguardavam suas ordens. Fizeram sentar o penitente diante da tela espelhenta, colocando-lhe, em seguida, um diadema idêntico ao

usado pelo mestre para as dissertações.

Pairava pelo ambiente sincera emoção religiosa. Sentíamos que um grandioso, sacrossanto mistério desvendar-se-ia, naquele instante, ao nosso entendimento, e

contritos e temerosos aguardávamos, enquanto benéficas influências envolviam o momento sagrado que vivíamos.

Epaminondas voltou-se para a assembléia de discípulos e conclamou:

"- Ficai atentos! A história desse vosso irmão étambém a vossa história! Suas quedas mais não representam que as quedas da própria Humanidade em lutas diárias

com as próprias paixões! Pela mesma razão não deveis comentar o que ireis presenciar, antes observai a lição que vos será fornecida como exemplo, do qual extraireis

a necessária moral para aplicá-la em vós mesmos... pois será útil lembrar que sois todos almas decaídas a quem a iniciação em princípios de moral elevada e redentora

trata de conduzir aos pórticos do Dever!"

Postou-se de braços alçados para o Infinito, em atitude de prece e concentração fervorosa. Acercaram-se os adjuntos, como a auxiliarem mentalmente seus intuitos.

Poderosa corrente fluídica estabeleceu-se, envolvendo em ondas fortes a assembléia de pecadores, que se deixava estar atenta e respeitosa. Até que, de súbito, ordem

singular ressoou em tom enérgico, que não admitiria tergiversação!

Epaminondas de Vigo impunha a Amadeu Ferrari a volta ao pretérito, isto é, minucioso exame de consciência passando em revista os feitos de suas passadas migrações

terrenas, a fim de que compreendesse em toda a sua plenitude a razão das circunstâncias dolorosas em que se vira colocado, circunstâncias às quais não se resignara

e que, para solvê-las, comprometera-se ainda mais com um ato de desonestidade e suicídio!

Em sentido retrospectivo, passando do suicídio para o início da existência, eis que fomos depará-lo em bem diferentes condições! Era bem verdade, pois, que residiam,

em uma encarnação anterior, os motivos daquela pobreza que desafiara todos os esforços para se remediar, de vez que Amadeu fora obstinado no trabalho e na força

de vontade; daquele câncer que o torturava com garras invencíveis, corroendo-lhe a língua e a garganta lentamente; daquele repúdio de amor que absorveu suas últimas

forças, incompatibilizando-o definitivamente com o desejo de viver!

A. cortina do presente descerrou-se... O primeiro véu da Consciência foi suspenso a fim de que, no proscênio de uma outra existência terrena, drama imenso fosse

revelado, drama que não atingiu apenas a uma ou duas personalidades, mas a uma coletividade, implicando mesmo uma raça heróica e sofredora!

Amadeu Ferrari apareceu-nos descrito por sua própria mente no ano de 1840, como traficante de escravos negros de Angola para o Brasil... Era, então, de nacionalidade

portuguesa, e dai nossa afinidade com ele. Em viagens reiteradas, enriquecia no comércio abominável, não se poupando trabalhos à frente da torpe ambição de retornar

milionário à metrópole, infligindo martírios incontáveis aos míseros que arrecadava em sua livre pátria para escravizar a outros tantos ignóbeis comparsas das mesmas

desvairadas ambições! Na truculência de instintos desumanos, cevava-se no mau trato aos negros, ordenando chicoteá-los pela mais insignificante falta ou mesmo por

nenhuma, infligindo-lhes castigos cuja fereza bradava aos ceus, tais como a fome e a sede, a tortura e a separação das familias, pois que vendia, aqui, os filhos,

acolá a mãe, mais além, o pai... os quais nunca mais, nunca mais se encontrariam a não ser mais tarde, no Além-Túmulo, morrendo muitos destes desgraçados atacados

pela nostalgia e pelas saudades dos seres amados! Certa vez, na fazenda que lhe era própria, aviltara jovem escrava negra, mal saída da infAncia. E porque o desventurado

pai da desgraçada, velho escravo de sessenta anos, num momento de suprema desesperação, louco de dor, diante do cadáver da filha que procurara na morte encobrir

a vergonha de que se sentia possuída, bradasse seu vil procedimento, acusando-o pelo suicídio da moça, mandou que ferozes capatazes queimassem a língua do velho

escravo a ferro em brasa, até vê-lo cair exânime, nas convulsões da agonia...

Ora, ao passo que nos elucidávamos na majestosa lição, o paciente reconhecia-se tal como era: portador de paixões inferiores, múltiplos defeitos, vultosos deméritos,

e debatia-se violentamente, presa de convulsões indes critíveis, acovardado frente ao flagício que lhe infligia a consciência, desorientada na tortura dos remorsos.

"- Apiedai-vos de mim, Senhor! - bradava em expressões de dor e arrependimento, repetindo em presença da numerosa assembléia a súplica veemente que dera causa

à existência expiatória que, afinal, interrompera criminosamente, enredado que se deixara permanecer em complexos desconcertantes. - Desgraçado e miserável que sou!

Deixai que eu volte ainda uma vez à qualidade humana e veja minha própria língua, assim como a boca e a garganta desaparecerem sob a trituração de qualquer malefício,

reduzidas ao ponto a que reduzi as do desventurado escravo Felício... Dai-me a miséria, Senhor! Que eu sofra o suplício da fome, da sede, e que nem mesmo possa falar

a fim de me queixar! Que de mim todos se afastem com asco, deixando-me expungir sozinho esta nódoa infamante que me amesquinha diante de mim próprio!..

O nobre orientador, porém, impôs silêncio ao pecador, balsamizando-o com fluidos apaziguadores. Em seguida, exclamou, como respondendo:

"- É bem certo, é inevitável o vosso retorno às reencarnações expiatórias, Amadeu Ferrari! uma vez que é esse o ensejo abendiçoado para a remissão dos culpados!

Outra vez a pobreza, o câncer, o perjúrio... agravados, agora, com os indefiníveis males acumulados pelo suicídio... uma vez que vos não quisestes submeter devidamente...

Mas é imprescindível não conserveiø ilusões: mais de uma encarnação expiatória será necessária para cobrir as agravantes das ações que recordamos.. ."

Entrementes, a lição continuava a desenrolar-se, vindo seu arremate estarrecer-nos porventura ainda mais:

Assim foi que, morto o velho escravo, dobraram-se os anos...

O grande senhor esquecera-o, como aos demais, absorvido nos baloiços da boa sorte... Voltara à Europa, feliz, tendo enriquecido à custa do "trabalho honesto",

bem-visto e considerado pelos muitos haveres que levara da Terra de Santa Cruz...

Mas... um dia dobraram a finados por ele: - exéquias solenes, cânticos pungentes, grande luto, lágrimas doridas e muitas flores... porque o vil metal adquirido

na iniqüidade tudo isso pôde comprar!

Agora, eis que se apresenta o Além-túmulo! Ë o momento sagrado da realidade, do cumprimento integral da Justiça Incorruptível! Vhno-lo a debater-se, perdido em

pleno sertão africano, atacado por hedionda falange de fantasmas negros sedentos de vingança, os quais vinham pedir-lhe contas dos desgraçados compatriotas por ele

escravizados e perdidos para sempre, longe das plagas nativas! Eram os pais que haviam perdido os filhos, por ele arrecadados para longe... Eram as mães destituídas

de filhos pequeninos, os quais ele vendera a outrem, qual mercadoria miserável! Eram as filhas ultrajadas e sacrificadas longe dos pais, os filhos que conheceram,

por afagos maternais, o látego inclemente do senhor a quem serviam! E todos lhe pediam contas dos martírios que sofreram! Aprisionaram seu Espírito no seio das florestas

tenebrosas e martirizaram-no por sua vez! Aterraram-no com a reprodução, que sua presença fornecia, das maldades que contra todos praticara! O silêncio das matas,

só interrompido por motivos de pavor; as trevas inalteráveis, o rugir das feras, as acusações perenes do remorso, a raiva e o bramido dos fantasmas alterando-se

com todos os demais pavores, acabaram por enlouquecê-lo. Então, deixaram-no entregue a si mesmo, em pleno desamparo, cativo de si próprio, das torpezas que semeara

contra indefesos irmãos seus, como ele filhos do mesmo Criador e Pai, portadores da mesma Essência Imortal! A fome, a sede, mil necessidades imperiosas se juntaram

a fim de supliciá-lo ainda mais, aferrado à animalidade dos instintos e apetites inferiores, como se conservava ainda... Vagou desesperada-mente, presa das mais

absurdas alucinações, flagelado pela mente, que só se alimentara do mal! A cada súplica que tentava proferir, o choro dos escravos que morriam de saudades, separados

dos seus entes caros, era a lúgubre resposta! Se um brado de misericórdia lhe escapava na incerteza da demência, acudia-o o estalar do chicote sobre o lombo nu dos

negros cativos da Fazenda; sobre o busto profanado das desgraçadas cativas que lhe amamentaram os filhos, criando-os com amor enquanto os delas próprias eram relegados

à fome e ao mau trato! A um soluço de remorso, o lamento de agonia de alguém que sucumbia atrelado ao pelourinho da mansão... oh! o grito supremo daqueles que, ingênuos,

sofredores, desgraçados, se atiravam aos açudes, às correntezas dos rios, impelidos pelo terror ao trato que recebiam!..

Afastava-se então em loucas correrias através das brenhas selvagens, presa da mais atordoante demência espiritual! Mas, para qualquer lado que se virasse, nas

galhadas seculares de arvoredos majestosos, como sobre pântanos lodosos, no espinhoso chão que palmilhava como no cipoal traiçoeiro, encontrava suas vitimas a chorarem,

agonizantes, desesperadas...

Até que, certa noite em que se sentia exausto, em pleno terror, e depois de muitos anos... em certa alameda que repentinamente se abriu à sua frente, eis que

viu o escravo Felício caminhando ao seu encontro, conduzindo uma tocha feérica, que aclarava os caminhos trevosos, permitindo-lhe orientar-se... Feudo vinha leutamente,

sereno, grave, não mais torturado pelo ferro em brasa, porém, compassivo, estendendo-lhe a destra, no intuito de erguê-lo:

"- Vem daí, "Nhonlhô", levante-se... Vamos embora..

Ele acompanhou Felício... E através do prosseguimento do intenso drama verificamos que o velho escravo perdoara ao algoz, intercedera por ele junto à Divina

Complacência... e partira, a conseguir libertá-lo das garras dos que não lhe haviam perdoado...

Não obstante, tudo isso era por nós outros apreciado intensamente, como se fôramos os próprios que tão dramáticas cenas viveram, graças ao privilégio, que o homem

desconhece, das profundas capacidades inerentes ao Espírito alheado da carne, capacidades que o levam a sofrer, sentir, compreender, impressionar-se, comover-se,

alegrar-se, etc., a grau superlativo, o qual fulmi naria a criatura encarnada, se fora esta suscetível de tentar experimenta-lo. Enquanto o drama se estendia, o

mestre emitia conceitos, levantando a psicologia das personagens apresentadas, assim lecionando com sabedoria a tese magnífica à luz da Ciência Sagrada em que nos

iniciávamos! E acrescentou, severo, como arrematando á série de pequenos discursos que o passado espiritual de Amadeu provocara, vibrante, no diapasão enérgico que

tão bem traduzia o caráter inquebrantável que afrontara o suplício do fogo por amor à Verdade:

- As sociedades brasileiras, meus caros discípulos, sofrem hoje e sofrerão ainda, por espaço de tempo que estará ao seu alcance o dilatar ou reprimir,

as conseqüências das iniquidades que em pleno domínio da era cristã permitiram fossem cometida, em seu seio. Refiro-me, como bem percebeis, à escravização de seres

humanos, tratados por elas com maior rigor do que o eram os próprios animais inferiores, para a extração de posses e haveres que lhes facultassem o gozo e o império

das paixões! Se não foi crime individual e sim coletivo, será a coletividade que expiará e reparará o grande opróbrio, o grande martírio infligido a uma raça carecedora

do amparo fraternal da civilização cristã, a fim de que, por sua vez, também se gloriasse às alvíssaras da educação fornecida através da Boa-Nova do Reino de Deus!

Sob os céus assinalados pelo símbolo augusto da Iniciação como do Cristianismo - a Cruz -, ressoam ainda, ecoando aflitivamente na Espiritualidade, os brados angustiosos

de milhares de coraçôes torturados que durante o dobar dos decênios se compungiram ante a infâmia de que eram vítimas! Não deixaram de repercutir ainda nas ondas

delicadas do éter, onde se assentam as esferas de proteção às sociedades humanas, os rumores trágicos dos látegos sanhudos dos capatazes diabólicos, a vergastarem

homens e mulheres indefesos, cujas lágrimas, recolhidas uma a uma pela Incorruptível Justiça do Todo-Poderoso, foram, por lei, espalhadas, em seguida, sobre essa

mesma coletividade criminosa, para que, por sua vez, as sorvesse em pelejas posteriores, a se purificarem do acervo de maldades e infâmias praticadas! Por isso,

eis a grande Pátria sul-americana debatendo-se contra problemas complexos, suas sociedades em pelejas dolorosas consigo próprias, vitimadas por um acúmulo de agravos

que as desorientam, ocupando postos mais bem bafejados aqueles que ontem se viram oprimidos, e vergados sob aflições coletivas, relegados à indiferença das classes

favorecidas, os orgulhosos e imprevidentes do passado, os quais a tempo não se abeberaram dos exemplos do Celeste Enviado, renegando a cordura da fraternidade para

com os seus semelhantes, a cautela de semearem amor a fim de colherem misericórdia no dia do Supremo Juízo! E assim prosseguirão até que a Voz Celeste dos Missionários

do Senhor as oriente para finalidade apaziguadora, no trabalho sublime da

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