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terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Memórias de um suicida-Parte 3-Yvone A. Pereira

 

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reconciliação individual por amor do Cristo de Deus! Ó vós, discípulos que presenciais

os dramas - antigo e moderno - vividos por Amadeu Ferrari! ) vós que presenciastes seu passado como o presente, rematado por um suicídio contraproducente, do qual

há de dar igualmente contas ao Senhor das Vidas e das Coisas! Sabei que entre os escravos que, sob os céus do Cruzeiro Sublime, choraram, vergados sob o trabalho

excessivo, famintos, rotos, doentes, tristes, saudosos, desesperados frente à opressão, à fadiga, à maldade, nem todos traziam os característicos íntimos da inferioridade,

como bastas vezes foi comprovado por testemunhas idôneas; nem todos apresentavam caracteres primitivos! Grandes falanges de romanos ilustres, do império dos Césares;

de patrícíos orgulhosos, de guerreiros altivos, autoridades das hostes de Diocleciano, como de Adriano e Maxêncio, dolorosamente arrependidas das monstruosas séries

de arbitrariedades cometidas em nome da Força e do Poder contra pacíficos adeptos do Cordeiro Imaculado, pediram reencarnações na África infeliz e desolada, a fim

de testemunharem novos propósitos ao contacto de expiações decisivas, fustigando, assim, o desmedido orgulho que a raça poderosa dos romanos adquirira com as mentirosas

glórias do extermínio da dignidade e dos direitos alheios! Suplicaram, ainda e sempre corajosos e fortes, novas conquistas! Mas, agora, nas pelejas con tra si próprios,

no combate ao orgulho daninho que os perdera! Suplicaram disfarce carnal qual armadura redentora, em envoltórios negros, onde peadas fossem suas possibilidades de

reação, e arvorada em suas consciências a branca bandeira da paz, flâmula, augusta concedi-da pela reparação do mal! E os escravizadores de tantos povos e tantas

gerações dignas! Os desumanos senhores do mundo terráqueo, que gargalhavam enquanto gemiam os oprimidos! Que faziam seus regalos sobre o martírio e o sangue inocente

dos cristãos, expungiram sob o cativeiro africano a mancha que lhes enodoava o Espírito!

Daí, meus discípulos queridos, a doce, mesmo sublime resignação dessa raça africana digna, por todos os motivos, da nossa admiração e do nosso respeito, a passividade

heróica que nem sempre se estribou na ignorância e na incapacidade oriunda de um estado inferior, mas também no desejo ardente e sublime da própria reabilitação

espiritual! E sabei ainda que o escravo Fellcio, que acabais de contemplar como símbolo entre todos, redimido de uma série de culpas calamitosas, como tantos outros,

quando existiu e exerceu autoridade sob as ordens de Adriano, voltou a Roma em Espírito, terminado que foi seu compromisso entre a raça africana, e retornou à sua

antiga falange de itálicos e...

Um murmúrio irrepremfvel de surpresa desconcertante sacudiu a assistência de pecadores, estarrecida enquanto Amadeu Ferrari caía de joelhos, deixando escapar

um grito cujo tono não distinguiríamos se de surpresa também, se de horror, de alegria, vergonha ou de outro qualquer sentimento indefinível, só experimentado por

entidades em suas deploráveis condições, enquanto que choro violento o sacudia em agitações indescritíveis:

Abrira-se uma porta lateral silenciosamente, a um sinal de Epaminondas, e Felício aparecera, sereno, grave, encaminhando-se para seu antigo senhor de outras vidas...

Estarrecido, Amadeu contemplava-o de olhos pávidos, já agora senhor de todo o seu passado de Espírito... Mas, lentamente, imperceptívelmente, transfor mara-se Feudo

sob o poder da vontade, que opera facilmente sobre a configuração do envoltório astral, e deixava-se ver agora, na atual qualidade de Rômulo Ferrari, o genitor de

Amadeu!

É que, retornando às falanges que lhe eram próprias, Felício ali reencarnara a fim de prosseguir na peregrinação para a redenção completa, sob os auspícios daquele

Meigo Nazareno a quem perseguira ao tempo de Adriano, na pessoa de seus adeptos! Recebera então nova fase de progresso sob a acolhida de outro nome; transportara-se,

jovem ainda, para a Terra de Santa Cruz, levado por indefinível sentimento de atração, ali constituindo família e piedosamente consentindo em servir de genitor para

o antigo algoz...

Agora, seria bem certo que continuarià auxiliando-o a expurgar da consciência uma nova infração: - a do suicídio!

Quando, pensativos e silenciosos, deixamos o recinto do Santuário, onde tão sublime mistério nos fora desvendado com a primeira lição, repercutia nos refolhos

de nossa Alma esta profunda, inenarrável impressão:

- Oh! Deus de Misericórdia! Sede bendito por nos terdes concedido a Lei da Reencarnação!...

4

O "homem velho"

Voltamos à Terra muitas vezes, permanecendo em suas sociedades, com pequenos intervalos, desde os primórdios do ano de 1906. Múltiplos deveres

ali nos chamavam. Era o campo vasto de nossas experimentações mais eficientes, porqüanto, tendo de reviver ainda muitas vezes em suas arenas, tornava-se de grande

utilidade o exercitarmos entre nossos irmãos de Humanidade os conhecimentos gradativamente adquiridos nos serviços da Espiritualidade. Assim foi que, sob os cuidados

de Aníbal de Silas, mas tendo por assistente prático a experiência secular de Souria-Omar, dilatamos as lides de beneficência iniciada sob a direção de Teócrito,

multiplicando esforços para servir a corações sofredores sob as doces inspirações das lições messiânicas, quer os deparássemos ainda grilhetados nos planos da matéria,

quer em lutas permanentes no Invisível. Servimos nos postos de emergência da Colônia a que pertencíamos, como no Hospital Maria de Nazaré e suas filiais; integramos

caravanas de socorros a infelizes suicidas perdidos nas solidões do Invisível inferior como nos abismos terrenos, acossados por falanges obsessoras; seguimos no

rastro de nossos mestres da Vigilância, aprendendo com eles a caça a chefes temíveis de falanges mistificadoras, perseguidores de míseros mortais, aos quais induziam

muitas vezes ao suicídio; visitávamos freqüentemente reuniões organizadas por discípulos de Allan Kardec, com eles colaborando tanto quanto eles próprios permitiam;

acudimos a imperativos de muitos sofredores alheios às idéias espiríticas, mas verdadeiramente care cedores de socorro; devassamos prisões e hospitais; descobríamos

desolados sertões brasileiros e africanos, cogitando de fortalecer o ânimo e prover socorro material a desgraçados prisioneiros de um mau passado espiritual, agora

às voltas com testemunhos recuperadores, em envoltórioø carnais desfigurados pela lepra, amesquinhados pela demência ou assinalados pela mutilação; e nos atrevíamos

até pelos domicílios dos grandes da Terra, onde, também, possibilidades de dores intensas e de graves ocasiões para o pecado do suicídio enxameavam, não obstante

as factícias glórias de que se cercavam! E por toda parte onde existissem lágrimas a enxugar, corações exaustos a reanimar, almas vacilantes e desfalecidas pelos

infortúnios a aconselhar, Aníbal levava-nos a fim de nos guiar aos ensinamentos do Mestre Modelar, com os quais aprenderíamos a exercer, por nossa vez, o apostolado

sublime da Fraternidade!

Ostensivas através da colaboração mediúnica organizada para fins superiores, ocultas e obscuras através de ações diversas, impossíveis de serem narradas na íntegra

ao leitor, nossas atividades multiplicaram-se durante muitos anos nos diferentes setores da Caridade; e, se mais de uma vez indóceis aflições nos surpreenderam ao

contacto das angústias alheias, no entanto, mais vezes ainda obtivemos doces consolações ao sentirmos haver nossa boa-vontade contribuído para que uma e outra lágrima

fosse enxuta, para que um e outro desgraçado acalentasse as próprias ânsias às sugestões santas da Esperança, um e outro coração se aquecesse ao lume sagrado do

Amor e da Fé que igualmente aprendíamos a conceituar!

A cada lição do Evangelho do Senhor, esplanada pelo jovem catedrático, a cada exemplo apreciado do Mestre Inesquecível, seguiam-se testemunhos nossos, na prática

entre os humanos e os desventurados sofredores, assim como análises através de temas que deveríamos desenvolver e apresentar a uma junta examinadora, a qual verificaria

nosso aproveitamento e compreensão da matéria. Freqüentemente, pois, produzíamos peças vazadas em temas elevados e inspirados no Evangelho, na Moral como na Ciência,

romances, poemas, noticiários, etc., etc. Uma vez aprovados, estes trabalhos poderiam ser por nós ditados ou revelados aos homens, porqüanto instrutivos e educativos,

convenientes, por isso mesmo, à sua regeneração; e o faríamos através da operosidade mediúnica, subordinados a uma filosofia, ou servindo-nos de sugestões e inspirações

a qualquer mentalidade seria capaz de captar-nos as idéias em torno de assuntos moralizadores ou instrutivos. E quando reprovados repetiríamos a experiência ate

concordar plenamente o tema com a Verdade que eaposávamos e também com as expressões da Arte, de que não poderíamos prescindir.

Os dias consagrados a tais exames eram festivos para todo o Burgo da Esperança. Legítimos certamens de uma Arte Sagrada - a do Bem -, o encanto que de tais reuniões

se destacava ultrapassava todas as concepções de beleza que antes poderíamos ter! Esforçavam-se as vigilantes na decoração dos ambientes, na qual entravam jogos

e efeitos de luzes transcendentes indescritíveis em linguagem humana, enquanto luminares de nossa Colônia, como Teócrito, Ramiro de Guzman e Aníbal de Silas se revelavam

artistas portadores de dons superiores, quer na literatura como na música e oratória descritiva, isto é, na exposição mental, através de imagens, das produções próprias.

De outras esferas vizinhas desciam caravanas fraternas a emprestarem brilho artístico e confortativo às nossas experimentações Nomes que na Terra se pronunciam com

respeito e admiração acorriam bondosamente a reanimar-nos para o progresso, ativando em nossos corações humílimos o desejo de prosseguir nas pelejas promissoras.

Não faltaram mesmo em tais assembléias o estímulo genial de vultos como Victor Hugo e Frederic Chopin -, este último considerado suicida na Pátria Espiritual, dado

o descaso com que se ativera relativamente à própria saúde corporal; ambos, como muitos outros, cujos nomes surpreenderiam igualmente o leitor, exprimiam a magia

dos seus pensamentos, dilatados pelas aquisições de longo período na Espiritualidade, através de criações intraduzíveis para as apreciações humanas do momento! Tivemos,

assim, ocasião de ouvir o grande compositor que viveu na Terra mais de uma experiência carnal, sempre consagrando à Arte ou às Belas-Letras as suas melhores energias

mentais, traduzir sua música em imagens e narrações, numa variedade atordoadora de temas, enquanto que o gênio de Hugo mostrava em lições inapreciáveis de beleza

e instrução a realidade mental de suas criações literárias! O poder criador desta mentalidade, a quem a Terra ainda não esqueceu e que a ela voltará ainda a serviço

da Verdade, servindo-a sob prismas surpreendentes, verdadeira missão artística a serviço dAquele que é a Suprema Beleza, deslumbrava nossa sensibilidade até às lágrimas,

atraindo-nos para a adoração ao Ser Divino porventura com idêntico fervor, idêntica atração com que a faziam Aníbal de Suas e Epaminondas de Vigo valendo-se do Evangelho

da Redenção e da Ciência. Era o pensamento do grande Hugo vivificado pela ação da realidade, concretizado de forma a podermos conhecer devidamente as nuanças primorosas

das suas vibrações emotivas transubstanciadas em assuntos encantadores da epopéia do Espírito através de migrações terrenas e estágios no Invisível, o que equivale

dizer que também ele colaborava na obra de nossa reeducação. Surpreendeu-nos então a notícia, ali ventilada, de que o gênio de Victor Hugo se confirmava na Terra

desde muitos séculos, partindo da Grécia para a Itália e a França, sempre deixando após si um rastro luminoso de cultura superior e de Arte. Seu Espírito, pois,

em várias idades diferentes tem sido venerado por muitas gerações, cabendo-lhe positivamente a glória de que se cerca em planos intelectuais. Quanto ao outro, Chopin,

alma insatisfeita, que somente agora compreendeu que com o humilde carpinteiro de Nazaré encontrará o segredo dos sublimes ideais que a saciarão, em miríficas expansões

de música arrebatadora, transportada da magia dos sons para o deslumbramento da expressão real, deu-nos o dramático poema das suas migrações terrenas, uma delas

anterior mesmo ao advento do Grande Emissário, mas já a serviço da Arte, cultivando as Belas-Letras como poeta inesquecível, que viveu em pleno império da força,

na Roma dos Césares!

Quanto a nós outros, os ensaios que deveríamos levar a efeito seriam igualmente traduzindo nossas criações mentais em imagens e cenas, como faziam nossos

mentores com suas lições e os visitantes com sua gentileza. Para tal desiderato havia o concurso de técnicos incumbidos do melindroso serviço, equipe de eminentes

cientistas, senhores do segredo da captação do pensamento para os aparelhamentos transcendentes a que nos temos referido. Alguns médiuns da confiança de nosso Instituto

eram atraídos a essas reuniões, sob a tutela de seus Guardiães, e aí entreviam dificultosamente o que para nós outros se revelava com todo o esplendor! Seria para

eles um como estímulo ao trabalho mediúnico a que se comprometeram ao reencarnar, instrução inerente ao programa da reeducação conveniente ao seu progresso de intérpretes

do Mundo Invisível e meio menos dificultoso de prepará-los para desempenhos que viviam em nossas cogitações de aprendizes. Então, empolgava-nos santo entusiasmo

por julgarmos fácil tarefa o inteirar os homens das novidades de que nos íamos apossando, certos de que seriam imediatamente aceitos nossos esforços para bem informar.

Não contávamos, porem, com o empeço desconcertante que é o pouco desejo existente no coração dos médiuns de sinceramente se ativarem em torno dos ideais cristãos,

que eles julgam defender quando permanecem incapazes para uma só renúncia, avessos aos altos estudos a que será obrigado todo aquele que se julgar iniciado, amornados

no desamor à redenção de si próprios e de seus semelhantes, aos quais têm o dever sagrado de defender da ignorância relativa às coisas espirituais, uma vez dotados,

como são, de faculdades para tanto apropriadas; e quando, desarmonizados consigo próprios e as esferas iluminadas, traduzem efeitos mentais, conceitos pessoais,

convencidos de que interpretam o pensamento dos Espíritos, quando a verdade muitas vezes manda que se afirme que nada fizeram a fim de merecer o alto mandato, nem

mesmo a moralização da própria mente! E é com a mais profunda tristeza que assinalamos nestas páginas, escritas com o nosso mais ardente desejo de servir, o desgosto

de quantos se interessam pelo bem da Humanidade, em Além-túmulo, ao observar a falta de vigilância mantida pelos médiuns em geral, seus parcos desejos de se desprenderem

dos atrativos como das ociosidades imanentes ao plano material, esquivando-se ao dever urgente de se despojarem de muitas atitudes nocivas ao mandato sublime da

mediunidade, das quais a voz dulcíssima do Bom Pastor ainda não conseguiu desprendê-los! Valemo-nos, pois, destas divagações, para ressaltar o fato de que eles mesmos,

os médiuns, infelizmente dificultam a ação dos Espíritos instrutores do planeta, porqüanto muitos aparelhos mediúnicos excelentes em suas disposições físico-psíquicas

resvalam para o ostracismo e a improdutividade de coisas sérias, enquanto em torno se acumula o serviço do Senhor por falta de bons obreiros do plano terreno e a

Humanidade braceja nas trevas, em pleno século das luzes, prosseguindo desorientada à falta do pão espiritual, faminta da luz do Conhecimento, sedenta daquela Água

Viva que lhe desalteraria a alma desconsolada e entristecida pelo acúmulo de desgraças!

Dois acontecimentos de alta monta vieram modificar soberanamente certos pormenores de uma situação que se afigurava indecisa e indefinível, conquanto um espaço

de dois anos distanciasse a realização de um para outro.

Fora por um daqueles dias festivos franqueados às visitações.

Na véspera, preveniram-nos de que os internos receberiam visitas dos seus "mortos" queridos, isto é, membros da família, entes caros já desencarnados. Alheados,

porém, do movimento, supusemo-lo apenas afeto aos mais antigos do que nós no aprendizado do Instituto, e, por isso, limitamo-nos a esperar que algum dia tocaria

também a nossa vez de rever os nossos.

Bondosas e caritativas, como toda mulher que tem a educação moral inspirada no ideal divino, as damas vigilantes dispuseram os parques para a grande recepção

que se verificaria no dia imediato, utilizando toda a habilidade de que eram capazes; e, com arte e talento, criaram recantos dulcíssimos para nossa sensibilidade,

ambientes íntimos encantadores por nos falarem às recordações mais queridas da infância como da juventude, quando as desesperanças da existência ainda não nos haviam

dado a sorver o cálice fatal das amarguras. E, criando-os, a nós outros os ofereciam como agradáveis surpresas, a flui de recebermos nossa parentela e amigos, à

proporção que chegavam. Criados ao ar livre, isto é, disseminados pelos parques e jardins, de que a cidade era pródiga; à beira dos lagos serenos, sobre as encostas

das colinas graciosas que pareciam lucilar, suavemente irisadas sob o reflexo indefinível de revérberos multicores, tais recantos não eram perduráveis, existindo

temporariamente, apenas enquanto durassem nossas necessidades de compreensão e consolo. Muitos deles traduziam o lar paterno, aquele recinto sacrossanto em que se

passara nossa infância e onde os primeiros anseios da vida, as primeiras esperanças haviam florescido, e o qual tão saudoso e ardentemente recordado e por aquele

que apenas trevas e desespero deparou ao se transportar para o Além. Outros lembrariam cenários edificados sob as doçuras da afeição conjugal: um recanto de sala,

uma varanda florida, ao passo que mais alguns mostravam certa paisagem mais grata da terra natal: uma ponte bucólica, um trecho sugestivo de praia, uma alameda conhecida,

por onde muitas vezes palmilhamos pelo braço protetor de nossas mães...

E foi, pois, no próprio cenário que figurava a casa onde nasci, que tive a inefável satisfação de rever minha mãe querida, a qual ainda na infância eu vira morrer

e sepultar, de lhe beijar as mãos como outrora, ao passo que me atirava, soluçando, aos braços protetores de meu velho pai, aliviando o coração de uma saudade que

jamais se esfumara do meu coração, torturado sempre pela incompreensão e mil razões adversas!

Revi minha esposa, a quem a morte arrebatara de meu destino em pleno sonho de um matrimônio venturoso, e a qual eu desde muito poderia ter reencontrado no Invisível,

não fora a rebeldia do meu gesto nefasto! De todos eles recebi carinhosas advertências, conselhos preciosos, testemunhos de afeto perene, reparando que nenhum me

pedia contas do desbarato em que as paixões e as desditas me haviam transformado a vida! E recebi-os como se estivéssemos em nosso antigo lar terreno: os mesmos

móveis, a mesma decoração interna, a mesma disposição do ambiente que eu tão bem conhecera... porque Ritinha de Cássia e Doris Mary tudo haviam preparado para que

se perpetuassem em meu coração as impressões sacrossantas dos veros laços de família! Ambas asseveraram mais tarde que nós mesmos, sem o percebermos, fornecíamos

elementos para que tudo fosse realizado assim, pois que, nossos mestres, que, em sendo instrutores e educadores, eram também lídimos agentes da Caridade, examinando

nossos pensamentos e impressões mentais mais caras, descobriam o que de melhor nos calaria no ânimo e lhes transmitiam através de mapas e visões equivalentes, a

fim de que a reprodução fosse a mais consoladora possível, porqüanto necessitaríamos de toda a serenidade, do maior estado de placidez mental possível ao nosso,

caso, para que muito aproveitássemos da aprendizagem a fazer! Para maior surpresa, nossos entes caros acrescentaram que nada podiam fazer em nosso benefício devido

à situação melindrosa que criáramos com o suicídio, situação equivalente à do sentenciado terrestre, a quem as leis vigentes do país impõem método de vida à parte

dos demais cidadãos. Muitas lágrimas derramei então, escondido meu rosto envergonhado no seio compassivo de minha mãe, cujos conselhos salutares reanimaram minhas

forças, reavivando em meu ser a esperança de dias menos acres para a consciência! E sob os cortinados olentes dos arvoredos, reunidos todos sob os dosséis floridos

que lembravam os pomares e os quintais da velha casa em que vivi, embalado pela amorosa proteção de meus inesquecíveis pais terrenos, demorava-me muitas vezes em

doces assembléias com muitos membros de minha família que, como eu, eram falecidos! Por sua vez, meus companheiros de infortúnio tinham direitos idênticos, não havendo

ali favores especiais nem predileções, senão rigorosa justiça vazada nas leis de atração e afinidade.

E, finalmente, Belarmino de Queiroz e Sousa pôde encontrar sua mãe, a quem amara com todas as forças do seu coração, recebendo sua visita inesperada naquela

mesma tarde. A este, no entanto, participara a senhora de Queiroz e Sousa que dor profunda e inconsolável a atingira com a surpresa de vê-lo sucumbir ao suicídio,

afetando-se-lhe a saúde irremediavelmente, sucumbindo ela também, meio ano depois, sem se resignar jamais àdesventura de perdê-lo tão tragicamente! Que as mais angustiosas

decepções colheram-na depois do trespasse, pois que, julgando encontrar o supremo esquecimento no seio da Natureza, se deparava viva após a morte e ralada de desgostos,

visto não possuir quaisquer capacidades mentais e espirituais que a pudessem recomendar às regiões felizes ou consoladoras do Invisível. Que em vão o procurara pelas

sombrias regiões por onde transitara acossada por funestas confusões, debatendo-se entre os surpreendentes efeitos do orgulho e do egoísmo que lhe assinalaram a

personalidade e o arrependimento por haver renegado as dúlcidas efusões do amor a Deus pelo domínio exclusivo da Ciência Materialista, pois que lhe asseverava a

consciência caber-lhe grande dose de responsabilidade pelo desastre do filho, uma vez que fora ela, mãe descrente dos ideais divinos, mãe imprevidente e orgulhosa

cujas aspirações não gravitavam além dos gozos e das paixões mundanas, que lhe modelara o caráter, dando-lhe a beber do mesmo vírus mental que a ambos arrastara

a tão deploráveis quedas morais! Mas, chegada finalmente à razão, graças aos imperativos da dor educadora, trabalhara, lutara, sofrera resignadamente no Espaço durante

vários anos, suplicara, sincera-mente convertida à verdade existente na idéia de Deus e suas Leis, e, assim, levado em conta seu ardente desejo de emenda e progresso,

recebera concessão para rever o filho, dádiva misericordiosa do Ser Supremo, agora reconhecido com respeito e compunção!

Doris Mary e Rita de Cássia à mãe e ao filho forneceram o blandicioso conforto de um gratíssimo e saudoso ambiente: a velha biblioteca da mansão dos de Queiroz

e Sousa; a lareira crepitando alegremente; a cadeira de balanço da velha senhora; a pequena poltrona de Belarmino junto ao regaço de sua mãe, como ao tempo da infância...

O segundo acontecimento que, a par do primeiro, conquanto vindo dois anos mais tarde, marcou roteiro decisivo para meu Espírito, foi a ciência que tive

de mim mesmo, rebuscando no grande compêndio de minhalma as lembranças do pretérito, as quais há muito jaziam covardemente adormecidas devido à má-vontade da consciência

em passá-la em revista integral, meticulosa. Assim foi que, alguns dias depois da primeira aula de Ciências ministrada por Epaminondas de Vigo, tocou a minha vez

de extrair dos arcanos profundos do ser a memória das encarnações passadas do meu Espírito em lutas pela conquista do progresso, memória que meu orgulho repudiava,

confessando-se apavorado com as perspectivas que sentia palpitando em derredor. Epaminondas, porém, incisivo, autoritário, não concedeu moratória no momento exato

a mim destinado. Sentei-me, pois, à cadeira que se nos afigurava o venerável tribunal da Suprema Justiça, naqueles momentos terríveis em que enfrentávamos o lúcido

instrutor. Silêncio absoluto circundava o recinto, como sempre. Apenas as vibrações mentais de Epaminondas, traduzidas em vocabulário escorreito, enchiam a atmosfera

respeitável onde sacrossantos mistérios da Ciência Celeste se desvendavam para nos iluminar o Espírito ensombrado de ignorância. Não ignoravam os circunstantes a

espécie de individuo por mim acabada de exibir em Portugal, às voltas com um avezado orgulho que me corrompera o caráter, porque tão ruim bagagem moral me rondava

ainda os passos, fazendo-me corte acintosa, não obstante a hunhílima condição a que me via reduzido. O que, porém, talvez nem todos soubessem, porque se tratava

de fato que o mesmo orgulho raramente me permitia esclarecer, era que eu fora paupérrimo de fortuna, lutando sempre asperamente contra a adversidade de uma pobreza

desorientadora, a qual não só não me dava quartel como até desafiava quaisquer recursos, por meus raciocínios aventados, no intuito de suavizá-la; e que, para fugir

à calamidade da cegueira que sobre meus olhos, sem forças de resistência, estendia denso véu de sombras, reduzindo-me à indigência mais desapiedada que, para meu

conceito, o mundo poderia abrigar, fora que me precipitara na satânica aventura cujas dolorosas conseqüências me condenavam às circunstâncias que todos conheciam.

Delicadamente os adjuntos prepararam-me, tal como conviria ao réu que, frente a frente com o tribunal da Consciência, vai-se examinar, julgando a si próprio sem

as atenuantes acomodatícias dos conceitos e subterfúgios humanos, porque o que ele vai ver é o que ele próprio deixou registrado nos arquivos vibratórios de sua

alma através de cada uma das ações que andou praticando durante o existir de Espírito, encarnado ou não encarnado.

Rodearam-me os mestres, desferindo sobre as potencialidades do meu ser inferiorizado poderosos recursos fluídicos, no intuito caridoso de auxiliar. Era como se

fossem médicos que me operassem a alma, pondo a descoberto sua anatomia para que eu mesmo a examinasse, descobrindo a origem dos males ferrenhos que me perseguiam,

sem mais acusar a Providência!

Intuições de angústia auguravam desesperos em meu seio. Eu me teria certamente banhado em suores gelados, se fora ainda carnal o meu envoltório. Todavia, a sensação

penosa do pavor acovardou-me e eu quis resistir, prevendo a vergonhosa situação que me esperava frente aos circunstantes, e, derramando pranto insopitável, pedi

súplice, de molde a ser ouvido apenas por

Epaminondas:

"- Senhor, por piedade! Compadecei-vos de mim !" "- Não vaciles! - respondeu naquele tom imperioso que lhe era. peculiar, enquanto suas palavras ressoavam

pelo anfiteatro, ouvidas por todos. - A fim de operarmos a renovação interior que levará nossas almas à redenção precisaremos apoiar-nos na mais viva coragem! Sem

decisão, sem heroismo, sem valor não conseguiremos progredir, não marcharemos para a glória! Lembra-te de que os pusilânimes são punidos com a própria inferioridade

em que se deixam permanecer, com a degradação de que se cercam! Lembra-te de que é a tua reabilitação que se impõe todas as vezes que a dor se acerca de ti, sempre

que o sofrimento faz vibrar doridamente as fibras de teu ser! Sê forte, pois, porque o Sumo Criador premia as almas valorosas com a satisfação da Vitória!"

Conformei-me ao influxo daquela mentalidade vigorosa, invocando intimamente o auxílio maternal de Maria de Nazaré, a quem eu aprendera a venerar desde que ingressara

no caridoso Instituto, recordando-me de que sob seus amorosos cuidados era que nos asiláramos.

Então, harmonizando minhas próprias vontades com as dos tutelares que me dirigiam, não sei positivamente descrever o que se desenrolou em meu ser! Vi Epaminondas

e a equipe de seus auxiliares acercarem-se de mim e me envolverem em estranhos jactos de luz. Invencível delíquio tonteou-me o cérebro como se das potências sagradas

do meu "eu" repercussões excepcionais se levantassem, erguendo dos repositórios da alma, para se reanimarem em minha presença, toda a longa série de vidas planetárias

que eu tivera no uso da responsabilidade e do livre-arbítrio! Necessariamente, as demoras no Invisível entre uma e outra reencarnação acompanharam os dramas imensos

passados na Terra, inseparáveis que são tais estágios das conseqüências acarretadas pelos atos praticados no setor terreno. Tive a impressão extraordinária e magnífica

de me achar diante do meu próprio "eu" - ou do meu duplo -' se assim me posso expressar, tal como à frente de um espelho passasse a assistir ao que em minha própria

memória se ia sucedendo em revivescência espantosa! A palavra irresistível do instrutor repercutiu, qual clarinada dominadora, pelo interior do meu Espírito apaziguado

pela vontade de obedecer, e invadiu todos os escaninhos de minha Consciência, qual a irrupção de vagas que saltassem diques e se projetassem num impulso incoercível,

inundando região indefensa:

"- Eu te ordeno, Alma criada para a glória da eleição no Seio Divino: Volta ao ponto de partida e estuda no livro que trazes dentro de ti mesma as lições que

as experiências proporcionam! E contigo mesma aprende o cumprimento do Dever e o respeito à Lei dAquele que te criou! Traça, depois, tu mesma, os programas de resgates

e edificação que te convêm, a fim de que a ti mesma devas a glória que edificares para alçares vôos redentores até o Seio Eterno de onde partiste!.

Lentamente, senti-me envolver por singular entorpecimento, como se tudo ao meu redor rodopiasse vertiginosamente... Sombras espessas, quais nuvens ameaçadoras,

circundavam-me a fronte... Meu pensamento afastou-se do anfiteatro, de Cidade Esperança, da Colônia Correcional... Já não distinguia Epaminondas, sequer o conhecia,

e nem me recordava de meus companheiros de infortúnio... Todavia, eu não adormecera! Continuava lúcido e raciocinava, refletia, pensava, agia, o que indica que me

encontrava na posse absoluta de mim mesmo... embora retrocedesse na escala das recordações acumuladas durante os séculos!... Perdi, pois, a lembrança do presente

e mergulhei a Consciência no Passado...

Então, senti-me vivendo no ano trinta e três da era cristã! Eu, porém, não recordava, simplesmente: - eu vivia essa época, estava nela como realmente estive!

A velha cidade santa dos judeus - Jerusalém -vivia horas febricitantes nessa manhã ensolarada e quente. Encontrei-me possuído de alegria satânica, indo e vindo pelas

ruas regurgitantes de forasteiros, promovendo arruaças, soprando intrigas, derramando boatos inquietadores, incentivando desordens, pois estávamos no grande dia

do Calvário e sabia-se que um certo revolucionário, por nome Jesus de Nazaré, fora condenado àmorte na cruz pelas autoridades de César, com mais dois outros réus.

Corri ao Pretório, sabendo que dali sairia para o patíbulo o sentenciado de quem tanto os judeus maldiziam. Eu era miserável, pobre e mau. Devia favores a muitos

judeus de Jerusalém. Comia sobejos de suas mesas. Vestia-me dos trapos que me davam. Diante do Pretório, portanto, ovacionei, frenético, a figura hirsuta e torpe

de Barrabás, ao passo que, à suprema tentativa do Procônsul para livrar o carpinteiro nazareno, pedi a execução deste em estertores de demônio enfurecido, pois aprazia-me

assistir a tragédias, embebedar-me no sangue alheio, contemplar a desgraça ferindo indefesos e inocentes, aos quais desprezava, considerando-os pusilânimes... E

presenciar aquele delicado jovem, tão belo quanto modesto, galgando pacientemente a encosta pedregosa sob a ardência inclemente do Sol, madeiro pesado aos ombros,

atingido pelos açoites dos rudes soldados de Roma contrariados ante o dever de se exporem a subida tão árdua em pleno calor do meio-dia, era espetáculo que me saberia

bem à maldade do caráter e a que, de qualquer forma, não poderia deixar de assistir!...

Contudo, revendo-me nesse passado, a mesma Consciência, que guardara este acontecimento, entrou a repudiá-lo, acusando-se violentamente. Como que suores de pavor

e agonia empastaram-me a fronte alucinada pelo remorso e bradei enlouquecido, sentindo que meu grito ecoava por todos os recôncavos do meu Espírito:

"-. Oh! Jesus Nazareno! Meu Salvador e meu Mestre! Não fui eu, Senhor! Eu estava louco! Eu estava louco! Não me reconheço mais como inimigo Teu! Perdão! Perdão!

Jesus!..

Pranto rescaldante incendiou minhalma e recalcitrei, afastando a lembrança amargosa do pretérito. Mas, vigilante, bradou em seguida o catedrático ilustre, zeloso

do progresso do seu pupilo:

"- Avante, ó Alma, criação divina! Prossegue sem esmorecimentos, que da leitura que ora fazes em ti mesma será preciso que saias convertida ao serviço desse

Mestre que ontem apedrejaste..."

Eu não me poderia furtar ao impulso vibratório que me arrojava na sondagem desse passado remoto, porque ali estavam, com suas vontades conjugadas piedosamente

em meu favor, Epaminondas e seus auxiliares; e prossegui, então, na recapitulação deprimente:

Eis-me à frente do Pretório, em atitude hostil. Não houve insulto que minha palavra felina deixasse de verberar contra o Nazareno. Feroz na minha pertinácia,

acompanhei-o na jornada dolorosa gritando apupos e chalaças soezes; e confesso que só não o agredi a pedradas ou mesmo à força do meu braço assassino, por ser severo

o policiamento em torno dele. É que eu me sentia inferior e mesquinho em toda parte onde me levavam as aventuras. Nutria inveja e ódio a tudo o que soubesse ou considerasse

superior a mim! Feio, hirsuto, ignóbil, mutilado, pois faltava-me um braço, degenerado, ambicioso, de meu coração destilava o virus da maldade. Eu maldizia e perseguia

tudo, tudo o que reconhecesse belo e nobre, cônscio da minha impossibilidade de alcançá-lo!

Integrando o cortejo extenso, entrei a desrespeitar com difamações vis e sarcasmos infames a sua Mãe sofredora e humilde, anjo condutor de ternuras inenarráveis

para os homens degredados nos sofrimentos terrenos, já então, a mesma Maria, piedosa e consoladora, que agora me albergava maternalmente, com solicitudes celestes!

E depois, em subseqüências sinistras e aterradoras, eis-me a continuar o abominável papel de algoz: denunciando cristãos ao Sinédrio, perseguindo, espionando, flagelando

quanto podia por minha conta própria; apedrejando Estêvão, misturando-me à turba sanhuda do poviléu ignaro; atraiçoando os "santos do Senhor" pelo simples prazer

de praticar o mal, pois não me assistiam nem mesmo os zelos que impeliam a raça hebraica à suposição de que defendia um patrimônio nacional quando tentava exterminar

os cristãos: eu não era filho de Israel! Viera de longe, incrédulo e aventureiro, da Gália distante, foragido de minha tribo, onde fora condenado à morte pelo duplo

crime de traição à Pátria e homicídio, tendo aportado na Judéia casualmente, nos últimos meses do apostolado do Salvador!

Fora-me, pois, concedida a oportunidade máxima de regeneração e eu a rejeitara, insurgindo-me contra a "Luz que brilhou no meio das trevas ...

Seguira, não obstante, o curso do tempo arrastando-me a lutas constantes. Reencarnações se sucederam através dos séculos... Eu pertencia às trevas... e durante

o intervalo de uma existência a outra, aprazia-me permanecer nas inferiores camadas da animalidade!... Convites reiterados para os trabalhos de regeneração recebia

eu em quaisquer planos a que me impelisse a seqüência do existir, fosse na condição de homem ou na de Espírito despido das vestes carnais, porqüanto também nas regiões

astrais inferiores ecoam as doçuras do Evangelho e a figura sublime do Crucificado é apontada como o modelo generoso a imitar-se! Mas fazia-me surdo, enceguecido

pela má-vontade dos instintos, tal como sucede a tantos outros... Posso até asseverar que nem mesmo chegava a perceber com a devida clareza a diferença existente

entre a encarnação e a estada no Invisível, pois era o meu modo de ser sempre o mesmo: a animalidade! Hoje sei que a lei imanente do Progresso, qual Imã sábio e

irresistível, me impelia para novas possibilidades em corpos carnais, sob orientação de devotados obreiros do Senhor, fazendo-me renascer como homem a fim de que

os choques da expiação e as lutas incessantes inerentes às condições da vida na Terra, os sofrimentos inevitáveis, oriundos do estado de imperfeição tanto do planeta

como da sua Humanidade, me desenvolvessem lentamente as potências da alma embrutecida pela inferioridade. Na época a que me reporto, no entanto, nada disso percebia,

e tanto a existência humana como o interregno no além-túmulo se me afiguravam uma e a mesma coisa!

Mas através dos séculos experimentei também grandes infortúnios.

Criminoso impenitente, atendo-me às práticas nefastas do mal, sofria, como é natural, o reverso de minhas próprias ações, cujos efeitos em meu próprio estado se

refletiam. Subia, por vezes, a alturas famosas da escala social terrena, fato esse que não implica a posse de virtudes, porque eram ilimitadas as ambições que me

orientavam! Tais ambições, porém, vis e degradantes, levavam-me a quedas morais retumbantes, chafurdando-me cada vez mais no pântano dos deméritos, e para minha

Consciência criando responsabilidades atordoadoras!

Todavia, minhas renovações carnais sempre se realizaram entre povos cristãos. Tudo indica, na vida laboriosa e disciplinada do Invisível, que os Espíritos são

registrados em falanges ou colônias, e sob seus auspícios é que se educam e evolvem, sem se desagregarem de sua tutela senão já quando completado o ciclo evolutivo

normal, isto é, uma vez adquiridos cabedais que lhes permitam transmutações operosas e úteis ao bem próprio e alheio. O certo é que nunca me desloquei das Gálias

ou da Ibéria, até o momento presente.

A idéia da regeneração começou a se insinuar em minhas cogitações à força de percebê-la sussurrada aos meus ouvidos através da fieira do tempo, quer me encontrasse

na Terra sob formas humanas ou mergulhado nas penumbras espirituais próprias dos seres da minha inferior categoria. Aceitei-a calculada e interesseiramente, entrando

a procurar recursos para solucionar as pesadas adversidades que me perseguiam o destino, através dos séculos, nessa doutrina cristã que, segundo afirmavam, tantos

benefícios concedia àquele que à sua tutela se confiasse. O que eu não podia compreender, porém, absorto no meu mundo íntimo inferior, era o alto alcance moral e

filosófico de tais conselhos ou convites, repetidos sempre em torno de mim em quaisquer locais terrenos ou astrais a que a vida me levasse... e por isso esperava

da Grande Doutrina apenas vantagens pessoais, poderes misteriosos ou supersticiosos, que me levassem a conquistar a satisfação de mil caprichos e paixões...

Não obstante, em ouvindo referências àquele Mestre Nazareno cujas virtudes eram modelo para a regeneração da Humanidade, súbito mal-estar alucinava-me, tal se

Incômodas repercussões vibrassem em meu íntimo, enquanto corrente hostil se estabelecia em minha Consciência, que parecia temer investigações em torno do melindroso

assunto. Era portanto concludente que se minha inteligência e meus conhecimentos intelectuais se robusteciam ao embate das lutas pela existência e dos infortúnios

sob o impulso poderoso do esforço próprio, como até das ambições, o coração jazia inativo e enregelado, a alma embrutecida para as generosas manifestações do Bem,

da Moral e da Justiça!

A primeira metade do século 17 surpreendeu-me em confusões deploráveis, na obscuridade de um cárcere terreno envolvido em trevas, não obstante minha qualidade

de habitante do mundo invisível.

Que odiosa série de feitos criminosos, porém, ocasionara tão amarga repressão para a dignidade de um Espírito liberto das cadeias da carne?... Que abomináveis

razões haveria eu dado à lei de atração e afinidades para que meu estado mental e consciencial apenas se afinasse com as trevas de uma masmorra de prisão terrena,

infecta e martirizante?...

Convém que te inteires do que fiz por aquele tempo, leitor...

5

A causa de minha cegueira no século 19

Transcorriam os primeiros decênios do século 17 quando renasci nos arredores de Toledo, a antiga e nobre capital dos Visigodos, que as águas amigas e marulhentas

do velho Tejo margeiam qual incansável sentinela...

Arrojava-me a outro renascimento nos alcantilados proscênios terrestres em busca de possibilidades para urgente aprendizado que me libertasse o Espírito imerso

em confusões, o qual deveria aliviar os débitos da consciência perante a Incorruptível Lei, pois impunha-se a necessidade dos testemunhos de resignação na pobreza,

de humildade passiva e regeneradora, de conformidade ante um perjúrio de amor até então em débito nos assentamentos do Passado, de devotamento ao instituto da Família.

Pertencia então a uma antiga família de nobres arruinados e, na ocasião, perseguidos por adversidades insuperáveis, tais como rivalidades políticas e religiosas

e desavenças com a Coroa.

A primeira juventude deixou-me ainda analfabeto, bracejando nas árduas tarefas do campo. Apascentava ovelhas, arava a terra qual miserável tributário, repartindo-me

em múltiplos afazeres sob o olhar severo de meu pai, rude fidalgo provinciano a quem desmedido orgulho religioso, inspirado nas idéias da Reforma, fizera cair em

desgraça, no conceito do soberano, suspeitado que fora de infidelidade à fé católica e mantido em vigilância; rigoroso no trato da família como dos servos, qual

condestável para os feudos. Os rígidos deveres que me atinham à frente das responsabilidades agrárias, porém, mais ainda atiçavam em meu imo a nostalgia singular

que desalentava meu caráter, pois no recesso de minhalma tumultuavam ambições vertiginosas, descabidas em um jovem nas minhas penosas condições. Sonhava, nada menos,

do que abandonar o campo, insurgir-me contra o despotismo paterno, tornar-me homem culto e útil como os primos residentes em Madrid, alguns deles militares, cobertos

de glórias e condecorações; outros formando na poderosa Companhia de Jesus, eruditos representantes da Igreja por mim considerada única justa e verdadeira, em desajuste

com as opiniões paternas, que a repudiavam. Invejava essa parentela rica e poderosa, sentindo-me capaz dos mais pesados sacrifícios a fim de atingir posição social

idêntica.

Certo dia revelei à minha mãe o desejo que, com a idade, avultava, tornando-me insatisfeito e infeliz. A pobre senhora que, como os filhos e os servos, também

sofria a opressão do tirano doméstico, aconselhou-me prudentemente, como inspirada pelo Céu, a moderação dos anelos pela obediência aos princípios da Família por

mim encontrados ao nascer, objetando ainda ser minha presença indispensável na casa paterna, visto não poder prescindir o bom andamento da lavoura do experiente

concurso do primogênito, e seu futuro chefe. Não obstante, dadas as minhas instâncias, intercedeu junto ao senhor e pai no sentido de permitir-me instrução, o que

me valeu maus tratos e castigos inconcebíveis num coração paterno! Com a revolta daí conseqüente fortaleceu-se o desejo tornado obsessão irresistível, a qual só

com imenso sacrifício era contida por meu gênio impetuoso e rebelde.

Recorri ao pároco da circunscrição, a quem sabia prestativo e amigo das letras. Narrei-lhe as desventuras que me apoucavam, pondo-o a par do desejo de alfabetizar-me,

instruir-me quanto possível. Aquiesceu com bondade e desprendimento, passando a ensinar-me quanto sabia. E porque se tratasse de homem culto, intelectualmente avantajado,

sorvi a longos haustos as lições que caritativamente a mim concedia, demonstrando sempre tanta lucidez e boa-vontade que o digno professor mais ainda se esmerava,

encantado com as possibilidades intelectuais deparadas no aluno. A meu pedido, porém, e compreendendo, com alto espírito de colaboração, as razões por mim apresentadas,

minha família não foi posta ao corrente de tal acontecimento. Minha freqüência à casa paroquial passou a ser interpretada como auxílio à paróquia para o amanho da

terra, favor que meu pai não ousava negar, temeroso de represálias e delações.

Um dia, depois de muito tempo passado em martirizar a mente à procura de solução para o que considerava eu a minha desventura, surgiu nas cogitações desesperadas

das minhas ambições a infeliz idéia de fazer-me sacerdote. Seria, pensei, meio seguro e fácil de chegar aos fins de que me enamorava... Não se tratava, certamente,

de honrosa vocação para os ideais divinos, como não se cogitava de servir às causas do Bem e da Justiça através de um apostolado eficiente, pois que, nas manifestações

de religiosidade que a mim e a minha mãe impeliam, não entravam a vera crença em Deus nem o respeito devido às suas Leis! Expus ao pároco, meu antigo mestre, o intento

considerado louvável por minhas pretensiosas ambições. Para surpresa minha, no entanto, aconselhou-me, bondosa e dignamente, a evitar cometer o sacrilégio de me

prevalecer da sombra santificadora do Divino Cordeiro para servir às paixões pessoais que me inquietavam o coração, entenebrecendo-me o senso... pois percebia muito

bem, por ver a descoberto o meu caráter, que nenhuma verdadeira inclinação me induzia ao delicado ministério.

"- O Evangelho do Senhor, meu filho - rematou certa vez, após um dos prudentes discursos em que costumava expor as graves responsabilidades que pesam sobre a

consciência de um sacerdote -, deverá ser servido com inflamado amor ao bem, renúncias continuadas, durante as quais havemos de muitas vezes morrer para nós mesmos,

como para o mundo e suas paixões; com trabalho sempre ativo, incansável, renovador, a benefício alheio e para glória da Verdade, e que se destaque por legítima honestidade,

espírito de independência e cooperação, sem nenhum personalismo, porqüanto o servidor de Jesus deve dar-se incondicionalmente à Causa, abstraindo-se das opiniões

e vontades próprias, que nenhum valor poderão ter diante dos estatutos e das normas da sua doutrina! É caminho áspero, semeado de urzes e percalços, de ininterruptos

testemunhos, sobre o qual o peregrino derramará lágrimas e se ferirá continuadamente, ao contacto de desgostos cruciantes! As flores, só mais tarde ele as colherá,

quando puder apresentar ao Excelso Senhor da Vinha os preciosos talentos confiados ao seu zelo de servo obediente e prestimoso...

"Quem quiser vir após mim - foi Ele próprio que sentenciou -, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me!"

Fora daí, meu caro filho, apenas servirá o ambicioso ao regalo das ambições pessoais, afastando-se do Senhor com ações reprováveis enquanto finge servi-Lo!

Não tens vocações para a renúncia que se impõe frente ao honroso desempenho .... Deixa-te ficar tranqüilamente, servindo ao próximo com boa-vontade e como puderes,

mesmo no seio da família, que não andarás mal...

Não te sentes verdadeiramente submisso à palavra de comando dAquele que se deu em sacrifício nos braços de uma Cruz ?... Não te precipites, então, querendo arrostar

responsabilidades tão grandiosas e pesadas que te poderão comprometer o futuro espiritual! Retorna, filho, às tuas obrigações de cidadão, porfiando no cumprimento

dos deveres cotidianos, experimentando a cada passo a decência dos costumes... Volta à tua aldeia, apascenta o teu gado, deixa-te permanecer isento de ambições precipitadas,

que te será isso mais meritório do que atraiçoar um ministério para o qual não te encontras ainda preparado... Ara cuidadosamente a terra amiga, zelando alegremente

pelo torrão que te serviu de berço... e, espargindo em seu generoso seio as sementes pequeninas e fecundas, bem cedo compreenderás que Deus permanece contigo, porque

verás suas bênçãos sempre renovadas nos frutos saborosos dos teus pomares, nas espigas loiras do trigo que alimentará a família toda, no leite criador que robustecerá

o corpo de teus filhos... Cria antes o teu lar! Educa filhos no respeito a Deus, no culto da Justiça, no desprendimento do Amor ao próximo! Sê, tu mesmo, amigo de

quantos te rodearem, sem esqueceres as tuas plantações e os animais amigos que te servem tão bem como teus próprios servos, que tudo isso é sacerdócio sublime, é

serviço santificante do Senhor da Vinha..."

A idéia dos esponsais substituiu com rapidez as antigas aspirações, impressionando-me os conselhos do digno servo do Evangelho, que me calaram fortemente. Afoito

e apaixonado, entreguei-me ao nobre anelo com grandes arrebatamentos do coração, passando a preparar-me, satisfeito, para a sua consecução. Dada, porém, a situação

melindrosa em que me colocara na casa paterna, desarmonizado com o gênio de meu genitor, e a pobreza desconcertante que me tolhia as ações, mantive em segredo os

projetos de consórcio elaborados carinhosamente pelo coração, que perdidamente se enamorara...

Dentre as numerosas moçoilas que alindavam nossa aldeia com a graça dos atrativos pessoais e as prendas morais que lhes eram recomendações inesquecíveis, destaquei

uma, sobrinha de minha mãe, à qual havia muito admirava, sem contudo ousar externar sequer a mim mesmo os ardores que me avivavam o peito ao avistá-la e com ela

falar.

Chamava-se Maria Magda. Era esbelta, linda, corada, com longas tranças negras e perfumadas que lhe iam à cinta, e belo par de olhos lânguidos e sedutores. Como

eu, era filha de nobres arruinados, com a vantagem unica de ter adquirido boa educação doméstica e mesmo social, graças à boa compreensão de seus pais.

Passei a requestá-la com ardor, muito enamorado desde o início do romance, tal como seria lógico em um caráter violento e revel. Senti-me correspondido, não

suspeitando que somente a solidão de uma aldeia isolada entre os arrabaldes tristes de Toledo, onde escasseava rapaziada galante, criara a oportunidade por meus

sonhos considerada irresistível! Amei a jovem Magda com indomável fervor, em suas mãos depositando o meu destino. De bom grado ter-me-ia para sempre refugiado na

lenidade de um lar honradamente constituído, pondo em prática os ditames do generoso conselheiro. A adversidade, no entanto, rondava-me os passos, arrastando ao

meu encontro tentações fortes nos trabalhos dos testemunhos inadiáveis, tentações das quais me não pude livrar, devido ao meu gênio que me infelicitava o caráter,

à insubmissão do orgulho ferido como à revolta que desde o berço predominava em minhas atitudes à frente de um desgosto ou de uma simples contrariedade!

Maria Magda, com quem, secretamente, eu concertara aliança matrimonial para ocasião propícia, preteriu-me por um jovem madrileno, primo de meu pai, adepto oculto

da Reforma, que visitara nossa humilde mansão, conosco passando a temporada estival! Tratava-se de guapo militar de vinte e cinco anos, a quem muito bem assentavam

os cabelos longos, os bigodes luzidios e aprumados, como bom cavalheiro da guarda real que era; a espada de copos reluzentes como ouro, as luvas de camurça, a capa

oscilante e bem cheirosa, que lhe dava ares de herói! Chamava-se Jacinto de Ornelas y Ruiz e acreditava-se, ou realmente era, conde provinciano, herdeiro de boas

terras e boa fortuna. Entre sua figura reconhecidamente elegante, as vantagens financeiras que arrastava e a minha sombra rústica de lavrador bisonho e paupérrimo,

não seria difícil a escolha para uma jovem que não atingira ainda as vinte primaveras!

Jacinto de Ornelas não voltou sozinho à sua mansão de Madrid!

Maria Magda concordou em ligar seu destino ao dele pelos vínculos sagrados do Matrimônio, deixando a aldeia, afastando-se para sempre de mim, risonha e feliz, prevalecendo-se,

para a traição infligida aos meus sentimentos de dignidade, do segredo dos nossos projetos, porqüanto nossos pais tudo ignoravam a nosso respeito, enquanto eu, humilhado,

o coração a sangrar insuportáveis torturas morais, tive, desde então, o futuro irremediavelmente comprometido para -aquela existência, falindo nos motivos para que

reencarnei, olvidando conselhos e advertências de abnegados amigos, em vista da inconformidade e da revolta que eram o apanágio da minha personalidade!

Jurei ódio eterno a ambos. Rancoroso e despeitado, desejei-lhes toda a sorte de desgraças, enquanto projetos de vingança compeliam minha mente a sugestões contumazes

de maldade, tornando-me a existência num inferno sem bálsamos, num deserto de esperanças! Minha aldeia tornou-se-me odiosa! Por toda a parte por onde transitasse

era como se defrontasse a imagem graciosa de Magda com suas tranças negras baloiçando ao longo do corpo... A saudade inconsolável apoucava-me o ser, humilhando-me

profundamente! Envergonhava-me ante a população local pela traição de que fora vítima. Supunha-me ridiculizado, apontado por antigos companheiros de folguedos, acreditando

girar o meu nome em torno de comentários chistosos, pois muitos havia que descobriram o meu segredo. Perdi a atração pelo trabalho . O campo se me tornou intolerável,

por humilhar-me ante a recordação do faceiro aspecto do rival que me arrebatara os sonhos de noivado! Em vão compassivos amigos aconselharam-me a escolher outra

companheira a fim de associá-la ao meu destino, advertindo-me de que o fato, que tão profundamente me atingira, seria coisa vulgar na vida de qualquer homem menos

rigoroso e irascível. Ardente e exageradamente sentimental, porém, aboli o matrimônio de minhas aspirações, encerrando no coração revoltado a saudade do curto romance

que me tornara desditoso.

Então sussurraram novamente ao meu raciocínio as antigas tendências para o sacerdócio. Acolhi-as agora com alvoroço, disposto a me não deixar embair pelas cantilenas

fosse de quem fosse, encontrando grande serenidade e reconforto à idéia de servir à Igreja enquanto levasse a progredir minha humílima condição social. Não seria

certamente difícil: se recursos financeiros escasseavam, havia um nome respeitável e parentes bem-vistos que me não negariam auxílio para a realização do grande

intento. Escorei-me ainda na impetuosa esperança de vencer, de ser alguém, de subir fosse por que meio fosse, contando que ultrapassasse Jacinto na sociedade e no

poder, fazendo-o curvar-se diante de mim, ao mesmo tempo que de qualquer modo humilhasse Maria Magda, obrigando-a a preocupar-se comigo ainda que apenas para me

odiar!

A morte de meu venerando genitor simplificou a realização de meus novos projetos. Afastei as razões apresentadas por minha mãe, tendente. a me deterem na direção

da propriedade, substituindo o braço forte que se fora. Inquietação insopitável desvairava meus dias. Idéias ominosas firmavam em meu cérebro um estado permanente

de agitação e angústia, estabelecendo-

-se um complexo em meu ser, difícil de solucionar no decurso de apenas uma existência! Seguidamente presa de pesadelos alucinatórios, sonhava, noites a fio, que

meu velho pai, assim outros amigos falecidos, voltavam do túmulo a fim de me aconselharem a deter-me na pretensão adotada com vistas ao futuro, preferindo o consórcio

honesto com alguma de minhas companheiras de infância, pois era esse o caminho mais digno para facultar-me tranqUilidade de consciência e ventura certa. Mas o ressentimento

por Magda, incompatibilizando-me com novas tentativas sentimentais, desfazia rapidamente as impressões tentadas a meu favor pelos veneráveis amigos espirituais que

desejavam impedir praticasse eu novos e deploráveis deslizes frente à Lei da Providência.

Fiz-me sacerdote com grande facilidade!

A Companhia de Jesus, famosa pelo poderio exercido em todos os setores das sociedades regidas pela legislação católico-romana e pelos feitos e realizações que nem

sempre primaram pela obediência e o respeito às recomendações do excelso patrono, de cujo nome usou e abusou, proporcionou-me auxílios inestimáveis, vantagens verdadeiramente

inapreciáveis! Instruí-me brilhante e rapidamente à sua sombra, como tanto almejara desde a infância! Absorvia, sequioso, o manancial de ilustração que me ofertavam

na comunidade ao observarem minhas ambições frementes, fácil instrumento que seria eu para se amoldar sob o férreo domínio de suas garras! Era como se minha inteligência

apenas recordasse do que era dado a aprender, tal o poder de assimilação que em minhas faculdades existia! Minha gratidão, por sua vez, não conheceu limites! Prendi-me

à Companhia com todas as forças de que dispunha minhalma ardorosa. Obedecia aos superiores com zelo fervoroso, servindo-os a contento, indo mesmo ao encontro dos

seus desejos! Os interesses da Igreja, como do clero da organização em foco, aprendi a respeitar e servir acima de todas as demais conveniências, fossem quais fossem,

tal como bem assentaria a um vero jesuíta!

Não me referirei à causa divina. Não a esposei, dela não cogitando a fim de edificar minhalma com as claridades da Justiça e do Dever. Tampouco aprendi a amar

a Deus ou a servir o Mestre Redentor no seio da comunidade a que me filiara.

Certamente que na Companhia de Jesus existiam servos eminentes, cujos padrões de desempenhos cristãos poder-se-iam equiparar ao dos primeiros obreiros do apostolado

messiânico. Com esses, todavia, não me solidarizei. Não os conheci nem suas existências lograram interessar-me. Da poderosa organização religiosa que foi a Companhia

de Jesus, eu apenas desejava a posição social que ela me podia proporcionar, a qual me compensasse da obscuridade do meu nascimento: como os deleites do mundo, as

loucas satisfações do orgulho, das ambições inferiores, das vaidades soezes, já que o perjúrio da noiva idolatrada cerceara meus nascentes projetos honestos!

Assim sendo, isto é, a fim de todo esse detestável cabedal lograr adquirir, servi com zelos frenéticos às leis da Inquisição! Persegui, denunciei, caluniei, intriguei,

menti, condenei, torturei, matei! Denunciaria, meu próprio pai, tal a demência que de mim se apossara, levando-o ao tribunal como agente da Reforma, se, protegido

pela misericórdia celeste, não tivesse ele entregado antes a alma ao Criador! Não o fazia, porém, propriamente com requintes de maldade: meu intento era servir os

superiores, engrandecer a causa da Companhia, provar com dedicação imorredoura e incondicional a gratidão que me avassalara a alma apaixonada, pelo amparo que me

haviam dispensado! Fui, eu mesmo, vítima da mesma instituição, porque, reconhecendo-me submisso, penhorado pelos favores recebidos, exploravam os chefes maiorais

tais sentimentos, induzindo-me à prática de crimes abomináveis, certos da minha impossibilidade de tergiversação. Se, ao em vez desta, eu optasse por alguma comunidade

franciscana, ter-me-ia certamente educado, transformando-me numa alma de crente, incapaz de práticas danosas. Pelo menos ter-me-ia habituado à honradez dos costumes,

ao respeito ao nome do Criador, ao interesse pelas desgraças alheias, pensando em remediá-las. A Companhia de Jesus, no entanto, mau grado o nome excelso do qual

se valeu a fim de inspirar-se, converteu-me em réprobo, uma vez que me aliciei justamente ao departamento político-social, que tantos abusos cometeu no seio das

sociedades e em nome da religião!

Durante muito tempo esqueci aqueles que me haviam atraiçoado. Não os procurei, não me importou o destino que tinham tomado. A verdade é que se transferiram para

a Holanda, onde Jacinto de Ornelas se incumbira de certa missão militar. Mas um dia o acaso me pôs novamente na presença deles! Haviam já passado quinze longos anos

que sua execrada visita à mansão de meus pais convertera meu coração sentimental em fornalha de ódios! Os deveres profissionais, que o tinham afastado da Pátria,

agora o faziam retornar, gozando de excelente conceito até mesmo nas antecâmaras reais, desfrutando invejável posição social. Ao vê-lo, obrigado a apertar-lhe a

mão em certa cerimônia religiosa, fi-lo como a um estranho, sentindo, não obstante, que o coração fremia em meu peito, enquanto a antiga rivalidade, as doridas angústias

experimentadas no passado fervilhavam, tumultuosas, à sua vista, prevenindo-me de que, se o sentimento de amor por Maria Magda desaparecera, sufocando-me na vergonha

do perjúrio indigno, no entanto, a chaga aberta então sangrava ainda, clamando por desforras e represálias!

Procurei observar a vida de tão odiado varão: seus passos de adepto da Reforma, seu passado como seu presente, o que fazia, o que pretendia, como vivia, o grau

de harmonia existente no lar doméstico e até as particularidades de sua existência, graças ao experimentado corpo de espiões que me ficava às ordens, como bom agente

do Santo-Oficio que era eu. Jacinto de Ornelas era feliz com a esposa e amavam-se terna e fielmente. Tinham filhos, aos quais procuravam educar nos preceitos de

boa moral. Maria Magda, dama formosa e cortejada, que se impunha na sociedade por virtudes inatacáveis, apresentava a beleza altiva e digna das suas trinta e três

primaveras, e, desorientado, enlouquecido por mil projetos nefastos e degradantes, ao vê-la pela primeira vez, depois de tantos anos de ausência, senti que não a

esquecera como a principio supusera, que a amava ainda, para desventura de todos nós!

A antiga paixão, a custo sopitada pelo tempo, irrompeu porventura ainda mais ardente desde que comecei a vê-la novamente, todas as semanas, praticando ofícios

religiosos numa das igrejas da nossa diocese, como boa católica que desejava parecer, a fim de ocultar as verdadeiras inclinações reformistas que animavam a família

toda.

Desejei atraí-la e cativar, agora, as atenções amorosas negadas outrora, e, sob a pressão de tal intento, visitei-a oferecendo préstimos e me desfazendo em amabilidades.

Não o consegui, todavia, não obstante as visitas se sucederem. Recrudesceu em meu seio o furor sentimental, compreendendo-me totalmente esquecido, tal como a erupção

inesperada e violenta de vulcão adormecido desde séculos! Tentei cativá-la ternamente, rojando-me em mil atitudes servis, apaixonadas e humilhantes. Resistiu-me

com dignidade, provando absoluto desinteresse pelo afeto que lhe depunha aos pés, como também pelas vantagens sociais que eu lhe poderia fornecer. Experimentei suborná-la

levando-a a compreender o poder de que dispunha, a força que o hábito da Companhia me proporcionava no mundo todo, o acervo de favores que lhe poderia prestar e

ao marido, até mesmo garantias para exercer a sua fé religiosa, pois eu saberia protegê-los contra as repressões da lei, desde que concordasse em aquiescer aos meus

ansiosos projetos de amor! Repeliu-me, no entanto, sem compaixão nem temor, escudada na mais santificante fidelidade conjugal por mim apreciada até então, deixando-me,

aliás, convencido de que mais do que nunca se escancarara supremo abismo entre nossos destinos, que eu tanto quisera unidos para sempre!

Ora, Jacinto de Ornelas y Ruiz, que fora conhecedor da paixão que me infelicitara a existência, agora, vendo-me assediar-lhe o lar com atitudes amistosas, percebeu

facilmente a natureza dos intentos que me animavam. Eu, aliás, não procurava dissimulá-los. Agia, ao contrário disso, acintosamente, dado que a pessoa de um jesuíta

e, ainda mais, oficial do Santo-Ofício, era inviolável para um leigo! Posto ao corrente dos fatos pela própria esposa, que junto dele procurava forças e conselhos

a fim de resistir às minhas insidiosas propostas, encheu-se de temor, desacreditado dos laços de parentesco; e, concertando entendimentos e resoluções com os seus

superiores, preparou-se a fim de deixar Madrid, buscando refúgio no estrangeiro para si próprio, como para a família.

Descobri-o, porém, a tempo! Viver sem Magda era tortura que já me não seria possível suportar! Eu quisera antes tomar-me desgraçado, ainda que desprezado por

ela com descaso porventura mais chocante, quisera mesmo ser odiado com todas as forças do seu coração, mas que a tivesse ao alcance dos meus olhos, que a visse freqüentemente,

que a soubesse junto de mim, embora que em verdade separados estivéssemos por duras e irremediáveis impossibilidades!

Desesperado, pois, desejando o inatingível por qualquer preço, denunciei Jacinto de Ornelas como huguenote, ao Tribunal do Santo-Ofício, pensando livrar-me dele

para melhor apossar-me da esposa! Provei com fatos a denúncia: livros heréticos em relação à Virgem Mãe, que sempre foram armas terríveis nas mãos dos denunciantes

para perderem vítimas das suas perseguições, espantalhos fabricados, não raramente, pelos próprios que ofereciam a denúncia; farta correspondência comprometedora

com luteranos da Alemanha; inteligências com adeptos dispersos pelo país inteiro como pela França; sua ausência sistemática do confessionário, os próprios nomes

dos filhos, que lembravam a Alemanha e a Inglaterra, mas não a Espanha, e cujos registros de batismo não pôde apresentar, alegando haverem sido realizadas na Holanda

as importantes cerimônias! Tudo provei, não, porém, por zelo à causa da religião que eu pudesse considerar digna de respeito, mas para me vingar do desprezo que

por amor dele Maria Magda me votava!

Uma vez preso e processado, Jacinto foi-me entregue por ordem de meus superiores, os quais me não puderam negar a primeira solicitação que no gênero eu lhes fazia,

dados os bons serviços por mim prestados à instituição.

Conservei-o desde então no segredo de masmorra infecta, onde o desgraçado passou a suportar longa série de martirizantes privações, de angústias e sofrimentos

indescritíveis, por inconcebíveis à mentalidade do homem hodierno, educado sob os auspícios de democracias que, embora bastante imperfeitas ainda, não podem permitir

compreensão exata da aplicação das leis férreas e absurdas do passado! Nele cevei a revolta que me estorcia o coração em me sentindo preterido pela mulher amada,

em seu favor! Meu despeito inconsolável e o ciúme nefasto que me alucinara desde tantos anos inspiraram-me gêneros de torturas ferazes, as quais eu aplicava possuído

de demoníaco prazer, recordando as faces rosadas de Maria Magda, que eu não beijara jamais; as tranças ondulantes cujo perfume não fora eu que aspirara; os braços

cariciosos e lindos que a outro que não eu - que a ele! haviam ternamente prendido de encontro ao coração! Cobrei, infame e satanicamente, a Jacinto de Ornelas y

Ruiz, na sala de torturas do tribunal da Inquisição, em Madrid, todos os beijos e ca rícias que me roubara daquela a quem eu amara até àloucura e ao desespero!

Fiz que lhe arrancassem as unhas e os dentes; que lhe fraturassem os dedos e deslocassem os pulsos; que lhe queimassem a sola dos pés até chagá-las, mas lentamente,

pacientemente, com lâminas aquecidas sobre brasas; que lhe açoitassem as carnes, retalhando-as, e tudo a pretexto de salvá-lo do inferno por haver anatematizado,

obrigando-o a confissões de supostas conspirações contra a Igreja, sob cujo nome me acobertei para a prática de vilezas!

Presa de enlouquecedoras inquietações, Magda procurou-me...

Suplicou-me, por entre lágrimas, trégua e compaixão! Lembrou-me sua qualidade de parente próximo, como a qualidade de Jacinto, também parente; os dias longínquos

da infância encantadora, desfrutados no doce convívio campestre, entre as alegrias do lar doméstico, protegido ambos pela intimidade de quase irmãos...

Cínico e cruel, respondi-lhe, interrogando se fora pensando em todos aqueles detalhes inefáveis de nossa juventude que, consigo mesma, ou certamente com Jacinto,

concertara a traição abominável que me infligira...

Falou-me dos filhos, que ficariam à mercê de duríssimas conseqüências, com o pai acusado pelo Santo-Ofício; e, ainda mais, se viesse ele a morrer, em vista do

encarceramento prolongado; concluindo por suplicar, banhada em pranto, a vida e a liberdade do marido, como também a minha proteção a fim de se refugiarem na Inglaterra...

Falei então, após lançar-lhe em rosto o odioso fel que extravasava de minhalma, vendo-a à mercê de minhas resoluções:

"- Terás de retorno teu marido, Maria Magda... Mas sob uma condição, da qual não abrirei mão jamais: Entrega-te! Sê minha! Consente em aliar tua existência

à minha, ainda que ocultamente... e te restituirei sem mais incomodá-lo!...

Relutou a desgraçada ainda durante alguns dias. Todos os arrazoados que uma dama virtuosa, fiel à consciência e aos deveres que lhe são próprios, poderia conceber

a fim de eximir-se à prevaricação, minha antiga noiva apresentou à minha sanha de conquistador desalmado e inescrupuloso, por entre lágrimas e súplicas, no intuito

de demover-me da resolução indigna. Mas eu me fizera irredutível e bárbaro, tal como ela própria, quando outrora lhe suplicara, desesperado ao me reconhecer abandonado,

que se amerceasse de mim, não atraiçoando meu amor a benefício de Jacinto! Aquela mulher que eu tanto amara, que teria feito de mim o esposo escravo e humilde, tornara-me

feroz com o perjúrio em favor de outro! Levantavam-se, então, das profundezas do meu ser psíquico, as remotas tendências maléficas que, em Jerusalém, no ano de 33,

me fizeram condenar Jesus de Nazaré em favor da liberdade do bandoleiro Barrabás! Aliás, existia muito de capricho e vaidade nas atitudes que me levavam a desejar

a ruína de Magda; e, enquanto o casal execrado sofria o drama pungente que o homem moderno não compreende senão através do colorido da lenda, eu me rejubilava com

a satisfação de vencê-la, despedaçando-lhe a felicidade, que incomodava meu orgulho ferido!

Quando, alguns dias depois do nosso entendimento, a desventurada noiva da minha juventude, descendo à sala de torturas, contemplou o espectro a que se reduzira

seu belo oficial de mosqueteiros, não mais trepidou em aceder aos meus ignóbeis caprichos! Eu a conduzira até ali propositadamente, a título de visitá-lo, observando

que sua relutância ameaçava prolongar-se!

Para suavizar os sofrimentos do marido, furtando-o às torturas diárias, que o extenuavam; a fim de conservar aquela vida para ela preciosa sobre todos os demais

bens, e a qual minha sanha assassina ameaçava exterminar, a infeliz esposa curvou-se ao algoz, imolou-se para que de seu sacrifício resultasse a libertação, a vida

do pai dos seus filhos muito queridos!

Não obstante, meu despeito exasperou-se com o triunfo, pois, mais do que nunca, reconheci-me execrado! Eu pretendera convencer Magda a associar-se para sempre

ao meu destino, embora lhe concedendo o retorno do esposo. Ela, porém, que se sacrificara às minhas exigências intentando salvar-lhe a vida, não pudera ocultar

o desprezo, o ódio que minha desgraçada pessoa lhe inspirava, o que, finalmente, me provocou o cansaço e a revolta. Detive-me então, exausto de lutar por um bem

inatingível, e renunciei aos insensatos anelos que me dementavam. Mas, ainda assim, sinistra vindita engendrou-se em meu cérebro inspirado nos poderes do Mal, a

qual, realizada com o requinte da mais detestável atrocidade que pode afluir das profundezas de um coração tarjado de inveja, de despeito, de ciúme, de todos os

vis testemunhos da inferioridade em que se refocila, deu causa às desgraças que há três séculos me perseguem o Espírito como sombra sinistra de mim mesmo projetada

sobre o meu destino, desgraças que os séculos futuros ainda contemplarão em seus dolorosos epílogos!

Maria Magda pedira-me a vida e a liberdade do marido e comprometi-me a conceder-lhas. Esqueceu-se, porém, de fazer-me prometer restitui-lo intacto, sem mutilações!

Então, fiz que lhe vazassem os olhos, perfurando-os com pontas de ferro incandescido, assim barbaramente desgraçando-o, para sempre lançando-o nas trevas do martírio

inominável, sem me aperceber de que existia um Deus Todo-Poderoso a contemplar, do alto da Sua Justiça, o meu ato abominável, que eu arquivara nos refolhos de minha

consciência como refletido num espelho, a fim de acusar-me e de mim exigir inapeláveis resgates através dos séculos!

Oh! ainda hoje, três séculos depois destes tristes fatos consumados, recordando tão tenebroso pretérito, fere-me cruciantemente a alma a visão da desgraçada

esposa que, indo, a convite meu, receber o pobre companheiro no pátio da prisão, ao -constatar a extensão da minha perversidade nada mais fez senão contemplar-me

surpreendida para, depois, debulhar-se em pranto, prostrada de joelhos diante do esposo cego, abraçando-lhe as pernas vacilantes, beijando-lhe as mãos com indescritível

ternura, recebendo-o maltratado e inválido com inexcedível amor, enquanto entre risos chistosos eu chasqueava:

"- Concedi-lhe a vida e a liberdade do homem amado, senhora, tal como constou do nosso ajuste... Não podereis negar a minha generosidade para com a noiva perjura

de outro tempo, pois que, podendo agora mata-lo, deponho-o nos seus braços. .

Mas estava escrito, ou eu assim o quisera, que Maria Magda continuaria galgando um calvário áspero e tempestuoso, irremediável para aquela desventurada existência:

Jacinto de Ornelas y Ruiz, inconformado com a situação inesperada quanto deplorável, não desejando tornar-se um estorvo nefasto à vida de sua dedicada companheira,

que passara à chefia do lar, desdobrando-se em atividades heróicas, abandonada pelos amigos, que temiam as SUspeitas do mesmo tribunal que julgara seu marido; esquecida

até mesmo por mim, que me desinteressara da sua posse, exausto das inúteis tentativas para me tornar amado; Jacinto, que a ela própria, como aos filhos, desejara

salvar da perseguição religiosa, que fatalmente se estenderia contra todos os da família, suicidou-se dois meses depois de obter a liberdade, auxiliado no gesto

sinistro pelo próprio filho mais jovem, que, na inocência dos seus cinco anos de idade, entregara ao pai o punhal por este solicitado discretamente, e o qual acionou

encostando..o à garganta enquanto a outra extremidade era apoiada sobre os rebordos de uma mesa, pondo, assim, termo à existência!

Maria Magda voltou para a aldeia natal com os filhos, desolada e infeliz. Nunca mais, até o momento em que esboço estas páginas, pude vê-la ou dela obter notícias!

E já se passaram três séculos, ó meu Deus!...

O arrependimento não tardou a iniciar vigorosa reação em meu amesquinhado ser. Nunca mais, desde então, logrei tranquilidade sequer para conciliar o sono. Indescritível

estado de superexitação nervosa trazia-me invariavelmente atordoado e Surpreendido, fazendo-me reconhecer a imagem de Jacinto de Ornelas, martirizado e cego, por

toda parte onde me encontrasse, tal se se houvera estampado em minhas retentivas indelevelmente!

Posso mesmo asseverar que meu desejo de emenda teve inicio no momento justo em que, entregando Jacinto à sua mulher, a esta vi prostrar-se diante dele,

cobrindo-lhe as mãos de ósculos e de lágrimas como a testemunhar, no ápice do infortúnio, não sei que sentimento sublime de amor e compaixão, que eu não estava à

altura de compreender! Desse momento em diante procurei evitar cumprir as tenebrosas ordens de meus superiores, o que, lentamente me induzindo à inobservância dos

deveres à minha guarda confiados, me fez cair das boas graças em que até então vivia e, mais tarde, me levou ao cárcere perpétuo! Da segunda metade, pois, do 17º

século até agora, entrei a expiar, quer na Terra como homem ou no Invisível como Espírito, os crimes e perversidades cometidos sob a tutela do Santo-Ofício! Arrependimento

sincero e que eu vos garanto, meus amigos, existir inspirando todos os meus atos, há-me encorajado a enfrentar situações de todos os matizes do infortúnio, contanto

que de minha consciência se apagar venha a nódoa vexatória de me ter prevalecido do nome augusto do Divino Crucificado para a prática de ações criminosas. Narrar

o que têm sido tais lutas até hoje, as lágrimas que me têm escaldado a alma repesa e desolada, as insólitas investidas dos remorsos torturantes, impostas pela consciência

exacerbada, a série, enfim, dos acontecimentos dramáticos que desde então me perseguem, seria tarefa cansativa, horripilante mesmo, à qual me não exporei. Necessários

se fariam, aliás, alguns volumes especiais, para cada etapa...

Até que, na segunda metade do século 19, eu me preparei, só então! para a última fase das expiações inalienáveis: - a cegueira!

Cumpria-me perder, de qualquer modo, a vista, impossibilitar-me, por essa forma, de garantir a subsistência própria, privar-me do trabalho honroso a fim de aceitar

o auxílio, tanto mais vexatório e humilhante para o desmedido orgulho que ainda não pude exterminar do meu caráter revel, quanto mais compassivo e terno fosse; desbaratar

ideais, desejos, ambições, contemplando, ao mesmo tempo, ruirem fragorosamente meus valores mo rais e intelectuais, minha posição social, para aceitar a escuridão

inalterável com meus olhos apagados para sempre! Mas também me cumpria fazê-lo resignada e dignamente, testemunhando pesares pelas selvagens ações contra o rival

de outrora, como atestando respeito e provando íntimas homenagens àquele mesmo Jesus cuja memória fora por mim ultrajada tantas vezes!

Todos vós sabeis da fraqueza que me assaltou ao reconhecer-me cego! Não tive, absolutamente, forças para o terrível testemunho, na hora culminante da minha reabilitação!

Oh! a Justiça imanente do Criador, que nos deixa entregues às nossas próprias responsabilidades, a fim de que nos punamos ou nos glorifiquemos através do enredamento

e seqüência, fatídicos ou brilhantes, das ações que cometemos pelo desenrolar das sucessivas existências! O mesmo horror que Jacinto de Ornelas sentiu pela cegueira

senti também eu, três séculos depois, ao perceber que perdera a luz dos olhos! As atormentações morais, as angústias, as humilhações insofríveis, o desespero inconsolável,

ao se ver à mercê das trevas, e que levaram aquele desgraçado ao funesto erro do suicídio, também em meu ser se acumularam com tão dominadora efervescência que lhe

imitei o gesto, tornando-me, em 1890, suicida como ele o fora em meado do século 15II...

Isso tudo foi acontecido assim. Certo, errado ou discutível, assim foi que aconteceu... e tal como foi é que me cumpriria relatar.

Da tessitura deste enredo pavoroso compreender-se-áque a Suprema Lei do Criador me imporia como expiação cometer um suicídio para sofrer-lhe as conseqüências?

Absolutamente não!

A Suprema Lei, cujos dispositivos se firmaram na supremacia do Amor, da Fraternidade, do Bem, da Justiça, como do Dever e de toda a esteira luminosa de suas gloriosas

conseqüências, e que, ao mesmo tempo, previne contra todas as possibilidades de desarmonização e heterogeneidade com suas sublimes vibrações, não estabeleceria como

lei, jamais, a infração máxima, por ela mesma condenada! O que se passou comigo foi, antes, o efeito lógico de uma causa por mim criada à revelia da Lei Soberana

e Harmoniosa que rege o Universo! Com ela desarmonizado, enredando-me em complexos cada vez mais deprimentes através das escabrosidades perpetradas nos sucessivos

ligamentos das existências corporais, fatalmente chegaria ao desastre máximo, tal o bloco de rocha que, se precipitado do alto da montanha, rola rápido e inapelavelmente

até ao fundo do abismo...

E a fatalidade é essa criação nossa, gerada dos nossos erros e inconseqüências através das idades e do tempo!

Que tu me acredites ou não, leitor, não destruirás as linhas da verdade palidamente exposta nestas páginas: a triste história da Humanidade com seus carregamentos

de desgraças, que tão bem conheces, ai está, diariamente afirmando exemplos idênticos ao que acabo de apresentar...

6

O elemento feminino

Deixei o santuário onde o mistério sacrossanto de tantas migrações se levantara dos repositórios de minhalma, a mim próprio como a meus pares ofertando elucidações

preciosas - amparado pelos braços compassivos de Pedro e de Salústio. Fora exaustivo o esforço para rememorá-las, não obstante a presença e o concurso poderoso dos

eméritos instrutores que me assistiam. As recordações do passado delituoso, os sofrimentos experimentados através das idades por mim vividas, e agora aviventadas

e carreadas para a apreciação do presente, chocaram-me profundamente, abatendo-me o ânimo, como que traumatizando meus sentimentos e minhas faculdades. Senti-me,

pois, doente, uma vez que a mente, como os sentimentos, se haviam entrechocado num cansativo e melindroso serviço de revisão psíquica pessoal; e, assim sendo, fui

encaminhado a certo gabinete clínico anexo ao próprio recinto das singulares quão sublimes experiências. Dois iniciados faziam o plantão do dia, pois, acidentes,

como o por mim experimentado, eram comuns, mesmo diários entre os discípulos cuja bagagem mental pecaminosa os lançava em crises insopitáveis de alucinação, as quais,

por vezes, atingiam as raias da demência.

Bondosamente recebido na dependência em apreço, onde mais uma fragrância da Caridade consoladora era dada a aspirar por nossos Espíritos frágeis e pusilânimes,

ministraram-me aqueles operosos servos da Legião tratamento magnético como que balsamizante, para a urgência do momento, seguindo-se depois, nos dias subseqüentes,

vigilância clínico-psíquica especializada, eficientíssima.

No fim de alguns dias, tornado à luz da realidade insofismável, completamente lúcido quanto à minha verdadeira personalidade, refleti maduramente e a uma

conclusão única cheguei a fim de me poder, algum dia, sentir plenamente reabilitado à frente da consciência própria e da Lei Suprema que, havia tanto, eu vinha infringindo:

- Reencarnar! Sim, renascer ainda uma outra vez! Sofrer dignamente, serenamente, o testemunho da perda da visão material, no qual eu fracassara havia pouco, pois

a ele me não submetera, preferindo o suicídio a avançar pela vida jungido à incapacidade de enxergar; realizar o contrário do que fizera para trás, isto é, amar

compassiva e caridosamente os meus semelhantes, proteger, auxiliar, servir o próximo, utilizando todos os meios lícitos ao meu alcance, lícitos e generosos; indo,

se possível e necessário, à abnegação do sacrifício, sob as hecatombes morais do meu passado amarguroso, construindo almos aspectos do Bem Legítimo, os quais me

ajudassem a ressarcir as trevas então semeadas!

Tristeza irresistível, porventura ainda mais cruciante do que até aquela data, acobertou de angústias novas as horas que passei a viver; e as impressões ingratas

e dominantes de um remorso, a que coisa alguma entre os humanos será capaz de traduzir, cerceavam-me a possibilidade de alcançar qualquer feição de verdadeira felicidade!

Contudo, os bondosos instrutores como os diletos amigos que nos rodeavam e as vigilantes caridosas e afáveis reanimavam minhas forças, como também o faziam aos

meus companheiros de lutas e infortúnios, pois os sofrimentos de um espelhavam os dos demais, ofertando o melhor dos seus conselhos e exemplos, insistindo nas lições

do aprendizado, que seguia curso normal, encaminhando-nos ao trabalho reconstrutivo desde logo, sem esperar os serviços do renascimento físico-material, os quais

ainda nem mesmo se achavam delineados.

Ora, um dos grandes incentivos que nos ofereciam para a conformidade com a situação, eram justamente as reuniões de Arte e Moral a que já tivemos ocasião de nos

referir, as quais, no decorrer do tempo, assumiram panorama especial por nos servirem à causa da reabilitação particular, nos exemplos, nas demonstrações, nas análises

que nos forneciam, indicando-nos caminhos a seguir, exemplificação a imitar, etc., etc. Assim era, que, nos parques da Cidade, cuja extensão não conseguíramos até

então avaliar, existiam recantos portadores de uma espécie de beleza sugestiva inconcebível a um ser humano, tal era a superioridade ideal do conjunto como de cada

pormenor, tais as nuanças evocativas que atraíam o pensamento para o domínio da Harmonia na Arte. Tratava-se particularmente de residências, habitações, em que a

arquitetura, como a arte decorativa, sobrepujariam tudo quanto os clássicos terrenos têm imaginado de mais nobre e mais belo; de miniaturas de cidades ou aldeamentos

pitorescos e lindos, com lagos graciosos marginados de alfombras floridas e odoríferas; de templos consagrados ao cultivo das Belas-Letras como das Artes em geral,

notadamente da Música e da Poesia, que ali notamos atingir proporções vertiginosas, inimagináveis para qualquer pensador terreno, como no caso de Frederic Chopin,

a quem tivemos ocasião de assistir transfigurar a magia dos sons, em encantamento de vocabulário poético traduzido em seqüência arrebatadora de visões ideais, as

quais ultrapassavam nossas possibilidades quanto à idéia do Belo, arrancando-nos lágrimas de enternecimentos inéditos, assim auxiliando o despertar de faculdades

espirituais que em nosso ego jaziam latentes! Dir-se-ia mesmo serem a Música e a Poesia as artes preferidas pelos iniciados - se fora possível afirmar tais predileções

em mentes como aquelas, educadas sob os mais adiantados princípios do Ideal que poderíamos conceber! E até reproduções exatas, porém apresentadas em sublime estado

de quinta-essência, lidimamente aformoseadas até à reverência, porque construídas fluidicamente, sob pressão de vontades adestradas na superioridade das concepções

magnânimas do Amor e do Bem, - das paisagens evocativas da peregrinação messiânica, cenários sugestivos e atraentes dos primeiros acordes da palavra imortal que

descera das Regiões Celestes para consolo dos sofredores e liberação dos oprimidos!

Foi-nos concedida, assim, a satisfação gratíssima de palmilhar ao longo do lago de Genesaré como de Tiberíades e de outros locais saudosos, testemunhas do divino

apostolado do Senhor; e, tais eram as sugestões de que impregnavam essas reproduções, que era como se o Divino Amigo houvesse dali se afastado desde apenas poucos

momentos, pois recebíamos ainda, em nossas repercussões mentais, o doce murmúrio de sua voz como que emitindo os últimos acordes, que se diriam vibrando no ar, da

melodia inesquecível que tão bem há calado no coração dos deserdados, faz dois mil anos:

"Vinde a mim, vós que sofreis, e eu vos aliviarei. Aprendei comigo, que sou brando e humilde de coração, e achareis repouso para vossas almas..."

Em presença dessas augustas expressões de amor e veneração ao Mestre, concedidas pelas nobres entidades executoras da beleza do burgo onde vivíamos, muitas vezes

abismei-me em meditações profundas e enternecedoras, enquanto deixava rolar doridas lágrimas de arrependimento à evocação daquele ano 33, que, agora, eu poderia

recordar com facilidade -, quando, madeiro ao ombro, paciente, humilde, resignado, o Messias, agora venerado em meu coração, então galgava a encosta rumando ao Calvário,

ao passo que eu vociferava demoniacamente, exigindo com presteza o seu suplício!

No entanto, à entrada de cada um desses locais via-se o distintivo da Legião e o nome das servidoras que os imaginavam e realizavam, pois convém esclarecer serem

todas essas minúcias realizadas pela mente feminina sediada nos serviços educativos do nosso Instituto.

Em cada dia de reunião, eram oferecidas aos circunstantes, como em particular aos internos, horas gratíssimas de sublime aprendizado, durante o qual nos ofertavam

comoventes exemplos de abnegação, de dedicação ao próxiMo, de humildade e paciência, como de heroismo e valor moral frente à adversidade, os quais caíam em nosso

âmago como generoso estímulo ao progresso que necessitávamos tentar. Esse aprendizado, concedido pela empolgante elucidação extraída da própria história da Humanidade

com suas lutas e dores inumeráveis, suas vitórias e reabilitações, era-nos ministrado, conforme foi esclarecido, por nossos próprios mestres e mentores ou pelas

caravanas visitadoras que até nós desciam no intuito fraterno de contribuir para nosso conforto e progresso. Porém, muitos dramas fortes, vividos pelas próprias

damas da Vigilância, assim como por personagens destacadas de nossa Colônia, como Ramiro de Guzman e os dois de Canalejas, foram-nos permitidos conhecer como exemplificação

e advertência, muitos apresentados mesmo como modelos dignos de serem imitados. E esses dramas mais não eram do que a narrativa, que faziam, das lutas sustentadas

durante as experiências do progresso, dos sacrifícios testemunhados na encarnação ou através de labores incansáveis no Espaço. Sobre o que nos davam a conhecer,

éramos convidados, depois, a opinar e fazer apreciações e comentários morais e artísticos, observando nós outros, entre muitas outras coisas importantes para o nosso

reajuste nos campos da Moral, o fato surpreendente de encontrar-se o homem rodeado das mais formosas expressões de uma Arte superior entre todas, durante as lides

profundas de cada dia: - a Arte gloriosa de aprender a desenvolver em si mesmo os valores espirituais que se encontram latentes em suas profundezas anímicas!

Um dia, finalmente, fomos informados de que tocara a vez de nossas bondosas vigilantes apresentarem o fruto de suas meditações fulgentes, de sua sensibilidade

nobremente inclinada para os ideais superiores. Grande alvoroço agitou nosso grupo, como seria natural; a expectativa emocionava-nos, e foi apossados de incontida

satisfação que, no dia aprazado, nos dirigimos para os locais criados, por aquelas ternas amigas, cujo fraternal desvelo mantinha sempre acesa em nosso imo a chama

do afeto sacrossanto da Família, o desejo do lar, o respeito de nós mesmos.

Rita de Cássia era poetisa. Seu sensível feitio de crente convicta e seu formoso caráter fortalecido no fervor diário de atos de amor e dedicação ao próximo,

quer no seio da sociedade em que espiritualmente vivia ou no desempenho de tarefas ao seu cuidado confiadas para as operosidades em planos terrenos, deixavam-se

embalar ao ritmo de legítima inspiração. Ela própria viera ao Internato requisitar nossa presença, conduzindo-nos à sua residência, onde então entramos pela primeira

vez. Tratava-se de mimoso santuário arquitetado sob domínio de sugestões comovedoras da sua grande piedade filial, pois ela o imaginara através de saudades santificadoras

e resignadas daqueles que foram seus pais na Terra, os quais muito a haviam amado, pois Ritinha era modelo de filha amorosa e terna, agradecida e respeitadora! À

sua residência de Cidade Esperança ela imprimira, portanto, o conjunto minucioso, porém elevado por singular aformoseamento, do lar paterno, sob cujos desvelos vivera

sua curta existência planetária, a última vez, em Portugal, extinta lá pelos idos de

1790...

Entardecia suavemente. Tonalidades mansas mesclavam de reverberações variegadas a atmosfera melancólica da Cidade Universitária, que se diria penetrada de

fluidos lucilantes e regeneradores, os quais, alindando-a, lenificando-a, a todas as mentes ali aquarteladas induziam a vibrações ternas, a todos os corações mobilizando

para ritmos superiores.

Eram em número diminuto os convidados da formosa entidade que recepcionava aquela tarde. Seus pupilos, alguns amigos mais íntimos e os mestres iniciados, cuja

presença seria indispensável - pois que também ela aprendia ao contacto das lúcidas mentalidades que a nós outros educavam -, era toda a assistência. Entre os amigos

notamos com prazer os dois de Canalejas, Joel Steel, a quem a menina parecia render culto fraterno fervoroso, e Ramiro de Guzman.

Todos reunidos, a jovem poetisa chamou-nos para certo recanto ameno do jardim, onde o efeito dos últimos raios do Astro Rei, casando-se aos fluidos ambientes,

realizavam arrebatador matiz, coisa que, para nós outros, pobres desconhecedores dos fascinantes motivos comuns ao mundo espiritual, se afigurou um retalho do céu

para ali transplantado como bênção encantadora e consolativa. Penetramos, porém, então, como que numa câmara de dimensões amplas e agradáveis, verdadeiro escrínio

de sonho, cuja graciosidade e doce beleza seriam como atestados mimosos da gentileza da sua criadora, menina cuja mente, não obstante muito esclarecida, aprazia-se

em conservar a delicada sensibilidade das quinze primaveras. Tratava-se de pequeno salão ao ar livre, engrinaldado de rosas trepadeiras cujo aroma deliciava, estimulando

o senso do Belo, o anseio pelo melhor. Artísticas e originais poltronas alinhavam-se em semi-círculo, as quais, como estruturadas em ramarias de arbustos floridos,

predispunham graciosamente o recinto, qual se esperassem anjos ou fadas para reunião seleta, enquanto acima o firmamento docemente azulado deixava escorrer a claridade

longínqua dos planetas e dos sóis multicores, entornando também com ela a harmonia esplendente da sua celestial beleza.

Uma harpa, que se diria estruturada com essências aurifulgentes, muito belas e translúcidas, destacava-se ao lado de pequena mesa de construção idêntica, artística

qual jóia de filigrana, e sobre ela um livro - um grande álbum -, primor fluídico, luminoso qual pequena estrela azul, despertando imediatamente a atenção dos presentes.

Sentou-se Ritinha de Cássia à mesa, depois de haver disposto os convidados nas poltronas, permanecendo nós outros, os tutelados, em primeiro plano. Tomou do livro

a gentil preceptora, abrindo-o em seguida. Tratava-se da mais recente coleção de suas composições poéticas, ilibadas criações de sua mente voltada para ideais superiores,

nos campos da nobre e meritória arte de bem versejar. Os caracteres luminosos, como acionados por almo e indefinível magnetismo, cintilavam como decalcados em estrias

beijadas pelos revérberos das estrelas distantes que, conosco, partilhavam da harmonia do entardecer.

Solicitou a jovem anfitriã ao irmão Ramiro de Guzman que a acompanhasse ao som da harpa, no que foi gentilmente atendida. Acordes clássicos de suave melodia ondularam

pelo recinto florido e perfumado, dando a estranha impressão, porém, de que orquestração completa fazia-se ouvir apoiada somente na proteção sugestiva oferecida

pelo divinal instrumento.

Então, no silêncio harmonioso da formosa Cidade Universitária, sob o flóreo dossel das rosas cintilantes e a bênção fulgurante das estrelas, Ritinha entrou a

declamar suas produções poéticas. E nós, que, por essa época, apenas acabávamos de ambientar-nos ao local; nós, que, apesar disso, já recebêramos formosas lições

de Moral, de Filosofia, e de Ciência, fomos também agraciados com visões inéditas de indescritível beleza literária, até então inconcebíveis às nossas mentes! Ritinha

lia no seu álbum. Mas, sua leitura superior, sua declamação mais do que maravilhosa - divina! -, artisticamente entonada por vibrações cuja arrebatadora doçura ultrapassava

a possibilidade de uma descrição em linguagem terrena, sugeriam encantamentos, emoções inimagináveis, enquanto de Guzman completava a fascinação da peça com os acordes

da música elevada e pura!

Espírito habilitado já para os carreiros do progresso franco, Rita de Cássia de Forjaz Frazão, cujo nome era, por si mesmo, poesia, também era das poucas vigilantes

que sabiam plenamente criar as cenas do pensamento, coordená-las, dar-lhes vida, contornando-as de feição moral e pedagógica, realizando, num mesmo trabalho mental,

o belo da Arte, a moral da Lei, a Utilidade da lição que prenda por apontar o sagrado dever de cada um servir à causa da Verdade com os dotes intelectuais e mentais

que possuir! Nós outros, o grupo dos dez delinqüentes presentes, havíamos cultivado as Belas-Letras quando encarnados no globo terráqueo. Nenhum de nós, porém, soubera

enobrecer o dom magnânimo conferido pelo labor continuado do Pensamento, aplicando-o a serviço regenerador dos leitores. Servíramos, quando muito, ànossa própria

bolsa, à vaidade e ao orgulho, satisfeitos, por nos julgarmos privilegiados, senhores de situação especial, à parte dos demais homens, mas em verdade apenas produzindo

banalidades fadadas ao olvido, quan

do, com teorias errôneas, não virulássemos a mente impressionável de um ou outro leitor, tão frívolo quanto nós, que nos levasse a sério.

Eis, porém, que, além-túmulo, uma menina de apenas quinze anos apresentava-nos o padrão do intelectual moralizado, ensinando-nos a servir à nobre causa da redenção

própria e alheia enquanto cultivava o que fosse agradável e lindo, oferecendo-nos, assim, a proveitosa lição que caiu nas sutilezas do nosso entendimento, confundindo-nos

e envergonhando-nos à lembrança do desperdício dos valores intelectuais que possuímos

Entrementes, enquanto declamava a gentil poetisa, lendo em seu álbum cor de estrelas, de sua mente ebúrnea evolavam ondas luminosas, que, atingindo todo o recinto

ornamentado de rosas, absorvia-o em suas vibrações dulcíssimas, a tudo impregnando do seu franco poder sugestivo. As cenas descritas nos versou cantantes e deliciosos

corporificavam-se ao redor de nós, estabeleciam vida e movimento arrastando-nos à ilusão inefável de estarmos presentes em todos os cenários e passagens, assistindo,

quais comparsas fabulosos, às elegias ou epopéias, aos doces romances de amor magnificamente contados através dos mais lindos e perfeitos poemas que até aquela data

pudemos conceber! O desfile poético que a Terra venera como patrimônio imortal, legado pelos gênios que a têm visitado, daria pálida idéia do que presenciamos naquele

entardecer lenificante do Burgo da Esperança! Os versos cantavam de preferência a Natureza, assim da Terra que do Espaço, e de alguns outros planetas habitados,

já por ela estudados atenciosamente, louvando em arrebatados haustos ou glorificando em doçuras de prece a obra da Divina Sabedoria, envolta sempre nas miríficas

expressões da Beleza e da Perfeição!

Aqui, eram os mares e oceanos deslumbrantes, retratados habilmente à nossa vista, à proporção que declamava a poetisa, positivando a suntuosa beleza que lhes

é própria. À página seguinte vinham as odes triunfais às montanhas altaneiras e imponentes, monumentos eternos da Natureza à glória da Criação, ricas depositárias

de valores inestimáveis, como escrínios sagrados onde o Onipotente ocultou tesouros até que os homens por si mesmos, dignamente deles se apossem, como herdeiros

que são da divina herança! Mais adiante, a exuberância das selvas, mundos ignotos diante dos quais a criatura medíocre se intimida e recua, mas que ao idealista

emociona e revigora de fervor no respeito a Deus. As selvas! Sacrário fecundo e profuso, como o oceano, em cujo seio turbilhões de seres iniciam o giro multimilenar

na ascensão para os pináculos do Existir, e seres, como toda a Criação, batizados nas bênçãos vivificadoras do Sempiterno, que os dirige através da perfeição suprema

de suas leis! Mas não era tudo: - acolá, em mais outra página, floresciam elegias dizendo dos panoramas humanos em demanda da redenção; histórias emocionantes, atraentes,

de amigos da própria poetisa, e que perlustraram caminhos sacrificiais, por atingirem ditosos planos na escala espiritual!...

Ao arrebatador anseio poético de Ritinha, nossas mentes com ela vibravam, captando suas mesmas emoções, as quais penetravam nossas fibras espirituais quais refrigerantes

bálsamos propiciadores de tréguas às constantes penúrias pessoais que nos diminuíam. E era como se estivéssemos presentes, com seu pensamento, em todo aquele fastígio

imaginado: - vogando pelos mares imensos, galgando montanhas suntuosas para descortinar horizontes arrebatadores; alçando espaços estelíferos, mergulhando no éter

irisado para o êxtase da contemplação harmoniosa da marcha dos astros; co-participando de dramas e acontecimentos narrados eloqüentemente, nas altas, sublimes expressões

a que só a legítima poesia será capaz de nos arrastar!

Em verdade, os temas apresentados não nos eram desconhecidos.

Ela falara, simplesmente, de assuntos existentes em nossos conhecimentos. Justamente por isso era que podíamos sorver até ao deslumbramento a grandiosa beleza que

de tudo irradiava. Todavia, suas análises de ordem superior revelavam feições inéditas para a nossa percepção, traduzindo o fato novidade empolgante para nossos

espíritos engolfados nas conjeturas simplesmente humanas, quando o que presenciávamos agora era a classe elevada com que, literariamente, se poderia reportar ao

plano divino! Quando sua voz silenciou e os sons da harpa esmaeceram nos acordes finais, nós outros, que desde muito nos desabituáramos de sorrir, deixamos expandir

do seio reconfortado o sorriso bom de salutar satisfação. Ela própria usou da palavra, dirigindo-se a nós:

"- Conforme tendes compreendido, meus caros irmãos, procurei associar a idéia do divino às minhas humildes composições. Convidei-vos, como zeladora que também

sou do progresso do sentimento moral-religioso nos vossos corações, a fim de vos recordar de que esquecestes de laurear vossos ensaios literários, quando homens

fostes, com as benéficas ilações em torno das magnificências que o Universo oferece ao legítimo pensador... Tínheis Deus a se revelar aos vossos olhos, representado

nos fastos inconfundíveis da Natureza! Poderíeis glorificá-lo fazendo das vossas produções oblatas e exaltações à Verdade, assim auxiliando a outrem, menos esclarecido

do que vós, a encontrar também o Pensamento Divino esparso na gloriosa história da Criação!... Mas preferistes o negativismo destruidor, formas e análises insulsas,

conceitos puramente humanos, eivados, portanto, de prejuízos, e fadados ao olvido, porque nem sequer a vós próprios foram capazes de edificar, preparando-vos para

qualquer setor de vitória!... O que apresentei na tarde de hoje, recebestes como a mais elevada e sublime expressão literária que poderíeis conceber. Sabei, no entanto,

que, para nós, é apenas o ponto inicial, simples abecedário de conhecimentos artísticos, pois sou apenas uma aprendiz humilde e ainda titubeante, da Ciência.

Não finalizaremos estas exposições sem darmos contas ao leitor do que se desenrolava nos Departamentos Femininos. Tratamos até agora dos casos de suicídio atinente

ao elemento masculino. Sabei, no entanto, que bem pouco terei a acrescentar sobre o que ficou descrito neste volume, e assim mesmo ponderando, apenas, quanto a certas

particularidades de instrução e reeducação intima, algo diferente em torno de Espíritos que deveriam insistir em renascimentos, sob aparência carnal feminina, a

fim de renovarem esforços fracassados ou repararem delitos graves, deslustrosos para o sexo como para a entidade que os cometera.

Espíritos que são, todas as criaturas têm grau idêntico de responsabilidade nos atos que praticam dentro ou exteriormente dos dispositivos da Lei Soberana que

tudo rege, o que será o mesmo que declarar que nossas irmãs, as mulheres que se deixam absorver pela desesperação do suicídio, estão sujeitas aos mesmos efeitos

resultantes da causa sinistra que criaram com um ato da própria vontade, efeitos já bastante indicados nestas páginas. São, pois, tão responsáveis pelas próprias

ações, pensamentos, estados mentais, como nós outros, os homens. Daí se concluirá que a bagagem moral que possuírem, boa ou péssima, influirá sobremodo no estado

a que se verão reduzidas pelo suicídio, estado já de si mesmo calamitoso e, por isso mesmo, digno de ser evitado com a aplicação da coragem moral, frente aos embates

comuns à existência, e com resignação ante o inevitável. Ora, no decorrer do nosso aprendizado prático, o qual tinha por instrutor responsável o insigne mestre Souria-Omar,

entidade extraordinária, cujas reencarnações haviam abrangido todos os setores sociais terrenos e que, por isso mesmo, obtivera latos conhecimentos sociológicos,

em experiências incomuns no terreno psicológico, Souria-Omar, cujas aulas só eram ministradas em sentido prático, levou-nos de uma feita a observações muito interessantes

nas dependências onde se asilavam nossas irmãs de infortúnio, infelizes mulheres que, fugindo ao nobre papel de depositárias de virtudes sublimadas, no mundo, deixaram-se

arrastar para o mesmo abismo das paixões desordenadas, que nos tragou. Lembremo-nos de que, em chegando do Vale Sinistro, ainda no Departamento de Vigilância, ao

sermos inscritos como tutelados da Legião dos Servos de Maria, separamo-nos delas, em virtude da necessidade de ocupar- mos locais indicados para a nossa recuperação.

Fazíamos, pois, reajuste espiritual em setores diversos, conquanto dirigidos por normas idênticas e sob tutela da mesma instituição.

Jamais nos fora dado convívio com o elemento feminino suicida. Ingressando na Cidade Universitária, porém, passamos a entrevê-lo, porqüanto havia também várias

senhoras suicidas cursando a mesma aprendizagem renovadora e, tal como nós, ali mesmo habitando até o momento do retorno à encarnação, continuando, não obstante,

completamente separado do nosso o seu modo de existir.

Manhã clara e fresca orlava de tonalidades áureo-azuladas as avenidas imensas do cantão da Esperança, as quais observamos insolitamente movimentadas. Era extenso

grupo de acadêmicos que partiam, com seus preceptores, em visita de instrução aos Departamentos Femininos, situados na outra extremidade da Colônia. Partíamos todos

não sem dilatarmos as sensibilidades para um estado de real satisfação, reconfortados pela inefável atração da seleta companhia que nos honrava com sua proteção,

porqüanto também Aníbal de Silas, Epaminondas de Vigo e várias vigilantes tomavam parte na. caravana.

Havia, então, precisamente dez anos que nos internáramos em Cidade Esperança. Já não nos arrastávamos, caminhando pelo solo ou obrigado ao socorro de uma viatura,

como outrora. Progredíramos! Tornáramo-nos menos densos, menos sujeitos às atrações planetárias. Aprendêramos a planar pelo espaço, transportando-nos por um impulso

da vontade, em volitações suaves que muito nos apraziam, mormente no perímetro de nossa Colônia, onde tudo parecia mais fácil, como o seria na casa paterna. Esse

o modo comum a um Espírito de transportar-se, mas que nosso estado amesquinhado de réprobos interceptara por longo tempo.

A fim de atingirmos os Departamentos Femininos, porém, iniciamos caminhada partindo das divisas da Vigilância com os Departamentos Hospitalares, pois lá estavam

os marcos na magnífica avenida divisionária, indicando rumos para os variados grupamentos em que se resumia a solitária Colônia Correcional do astral intermediário.

Ao penetrarmos, surpresos, no Departamento Hospitalar Feminino, julgamos encontrar-nos em o nosso próprio, aquele que nos abrigara à chegada, tal a semelhança

existente em ambos! As mesmas filiais, tais como o Isolamento, o Manicômio; características idênticas no estado moral e mental das irmãs delinqüentes, feitura semelhante

nas disposições internas do burgo! Todavia, se a direção dos estabelecimentos anexos era a mesma, pois fomos deparar Teócrito como chefe geral dos hospitais, Irmão

João à testa do Manicômio, padre Miguel de Santarém nos serviços do Isolamento, e padre Anselmo com um apêndice da Torre, os funcionários internos, como enfermeiros,

vigilantes, guardas etc., já não eram os mesmos por nós conhecidos nos setores masculinos. Preenchiam tais cargos, ali, irmãs cujos méritos e virtudes nada ficariam

a dever aos varões dos DepartamentoS Masculinos. Ão contrário, no altruístico afã de instruir, consolar, acompanhar, zelar, dirigir as atividades internas daquele

burgo, encontramos vultos femininos tão respeitáveis e virtuosos que não é sem dilatada emoção perpassando por nossa sensibilidade espiritual que os recordamos,

procurando retratá-los nestas paginas. No primeiro momento, como na sucessão das conclusões a que nos levaram as observações, a grande verdade ressaltou aos nossos

olhos, chocando-nos até às lágrimas, ao passo que em nosso ego se iniciou a construção de um legitimo respeito pela mulher, a qual passamos a julgar com mais súbita

consideração, maior dose de boa-vontade: - é que o Espírito muitas vezes reencarnado para tarefas e missões femininas adquire com muito mais presteza e eficiência

as virtudes sólidas e redentoraS, engrandecendo-se moralmente em menos tempo! As funcionárias dos burgos femininos, pois, auxiliares dos chefes iniciados, indispensável

será confessá-lo, portavam muito mais elevadas qualidades morais e espirituais do que os nossos de Canalejas, Joel Steel, Irmão Ambrósio, etc., etc., aos quais tanto

devíamos pelo zelo incansável com que nos assistiram. O corpo clínico, composto, como sabemos, de cientistas iniciados, era o único representante de atividades masculinas

a exercer tarefas ali. Ainda assim, discretos, apenas entrevistos nos curtos minutos em que operavam, também eram para nossas companheiras de Colônia o mesmo enigma

que haviam sido para nós. Não lhes conhecêramos jamais os nomes, sequer ouvíramos algum dia o timbre das suas vibrações vocais! No entanto, que de favores lhes devíamos!

que de bênçãos celestiais atraíram para nos lenificar as dores íntimas, graças aos fecundos poderes psíquico-magnéticos de que eram depositários! Com quanto devotamento

os vimos dedicarem-se à causa do nosso reajuste, consolando-nos as exaltações mentais ao influxo de bálsamos fluídicos poderosos, refrigerando as ardências das repercussões

ferazes que durante tantos anos perseguiram nossos perispíritos abalados pelo choque derivado do suicídio!

Sorridente, irmão Teócrito, recebendo-nos na sede do Departamento, franqueou os hospitais à visitação. Lembramo-nos então de que, quando debaixo de sua jurisdição,

muitas vezes fôramos visitados por caravanas idênticas, e sorrimos agora, compreendendo o que fora passado...

Havia uma vice-diretora, a qual se incumbia de transmitir as ordens dos iniciados às funcionárias que sob sua direção desempenhavam nobres e santificantes labores.

Chamava-se Hortênsia de Queluz, aparentava trinta anos de idade e vimo-la irradiando singular beleza fisionômica, atestado do sereno equilíbrio dos seus pensamentos

voltados para o Bem e das vibrações harmoniosas da mente fortalecida por incorruptíveis diretrizes. Bondosamente ofereceu-se a acompanhar-nos, e, enquanto caminhávamos,

oscilando brandamente sobre as longas avenidas recobertas pelo sudário branco tão nosso conhecido, que ali, como em nosso antigo burgo hospitalar, apresentava o

característico das zonas astrais muito densas, Hortênsia de Queluz falava, dando a perceber elevados conhecimentos referentes ao caráter feminino:

"- Encaminhar-vos-ei primeiramente, conforme orientação dos vossos mestres, a um dos mais trágicos quartéis do nosso Instituto, onde vereis o inconcebível refletir-se

em efeitos inesperados, em torno de nossas infelizes irmãs delinqüentes... Será oportuno recordar, meus irmãos, antes que vossos mentores iniciem os esclarecimentos

que vos serão necessários, de que a mulher, em sua grande maioria, infelizmente, na Terra, ainda não chegou a compreender o verdadeiro móvel por que reencarna como

mulher, o papel que lhe está afeto no concerto das nações terrenas, no seio da Humanidade, que é chamada a servir, tanto quanto o homem! Habituado a trato como a

julgamento inferior através dos séculos, o elemento feminino terreno acabou por acomodar-se à inferioridade, sem ânimo para elevar-se virtuosamente do opróbrio que

suporta... e a tal ponto que, nos dias correntes, como no passado, ele apenas se limita à orientação do servilismo em prol do elemento masculino, descrendo dos ideais

redentores, incapacitando-se para o preenchimento dos intuitos do Criador, diminuindo-se mais ainda quando julga ao homem equiparar-se, por lhe imitar as ações com

as paixões e atos deslustrosos, o que, afinal de contas, se aos representantes do primeiro gênero desdoura, aos do segundo implica em labirinto de deméritos perante

a Soberana Lei. Daí as desgraças que vêm sobrecarregando a mulher, as quais seriam certamente insolúveis se a Providência não estabelecesse necessários corretivos

através de suas leis tão misericordiosas quanto sábias, corretivos que tenderão sempre à reabilitação justa e rápida da mulher, nos campos da Moral Espiritual!...

Observai, porém, com vossos próprios olhos... Vossos preceptores saberão o que apresentar para a lição do dia. .

Chegáramos ao Manicômio. Uma religiosa recebeu-nos. Era Vicência de Guzman, a nobre irmã do nosso amigo da Vigilância.

Depois dos fraternais cumprimentos e apresentações, Hortênsia recomendou-nos à irmã Vicência, a quem deu autorização para conduzir-nos aos recintos interditados

às visitas comuns, pois tratava-se, no caso vigente, das instruções programadas para os aprendizes universitários, retirando-se em seguida. Amável e delicada, a

jovem religiosa que respondia pelo expediente, na ausência de irmão João, levou-nos a um pátio de enormes dimensões, pitoresco e agradável, para o qual deitavam

numerosas janelas, todas gradeadas, pertencentes a câmaras secretas, ou melhor, a celas individuais onde se debatiam Espíritos de mulheres suicidas atacados do mais

abominável gênero de demência que me foi dado observar durante o longo tempo que passei no além-túmulo. Gritos desesperados, gemidos aterrorizantes invadiam o local

de ondas trágicas, tornando-o repulsivo e agourento, como verdadeira morada de loucos! Mau grado o tempo que fazia do nosso ingresso na benfazeja Colônia, recordamo-nos

do Vale Sinistro e admiramos profundamente ali ouvirmos o coro nefasto próprio daquelas paragens de trevas. Nada indagamos, no entretanto, certos de que as elucidações

viriam a tempo.

Realmente, como que compreendendo nosso interesse, a própria religiosa esclareceu a dúvida que nos assaltara, ao mesmo tempo que nos fazia aproximar das janelas

a fim de examinarmos o interior das ditas câmaras, porqüanto impossível seria ali penetrarmos por outra forma:

"- São as suicidas que apresentam maior grau de responsabilidade na prática do delito e que, por isso mesmo, arrastam o maior cabedal de prejuízos para o futuro,

enfrentando através do tempo situações atrozes, que requisitarão períodos seculares a fim de serem modificadas, completamente sanadas! Estas infelizes, meus caros

irmãos, deixaram-se escravizar por complexos sinistros, os quais se desdobram em seqüências tão desastrosas que, moralmente, é como se se debatessem elas à semelhança

de quem, naufragando no lodo, mais se revolve em lama, aviltando-se para libertar-se... Um traço destes pavorosos complexos é o vergonhoso motivo que as arrancou

da existência terrena antes da época determinada pela ação da lei natural... Muitas, além do mais, conspurcaram as leis do Matrimônio, atraiçoando a moral do compromisso

conjugal, esquecidas de que, ao reencarnarem, haviam prometido à Lei, como a seus Guardiães, servirem de fiéis zeladoras do instituto sa grado da Família, educando

os filhos nas leis do Dever e da Justiça, procurando torná-los cidadãos úteis à Pátria e à Humanidade e, portanto, à Causa Divina e à lei de Deus! Pois bem! Com

semelhantes compromissos a lhes pesarem na consciência e à face da Suprema Lei, eis que, não só profanaram os vínculos santos do Matrimônio como também as leis da

Criação, negando-se às funções da Maternidade e entregando-se às paixões e aos vícios terrenos, absorvidas que preferiram ficar pelo descaso no cumprimento de sacrossantos

deveres, dominadas pelas vaidades letais próprias das esferas sociais viciadas e seguindo pelos caminhos da inferioridade moral! Expulsavam das próprias entranhas,

furtando-se aos compromissos meritórios e sublimes da Maternidade, os corpos em gestação, apropriados para habitação temporária de pobres Espíritos que tinham compromissos

a desempenharem a seu lado como no seio da mesma família, os quais precisavam urgentemente renascer delas mesmas, a fim de progredirem no seu âmbito familiar e social,

e tal crime praticavam, muitas vezes, anulando abendiçoados labores levados a efeito, nos planos espirituais, por obreiros devotados da Vinha do Senhor, os quais

haviam preparado o sublime feito da reencarnação do Espírito carente de progresso, com todo o zelo para que o êxito compensasse os esforços, e, o que é mais grave

ainda, depois que a entidade reencarnante já se encontrava ligada ao seu novo fardo em preparação, o que equivale dizer que, cientes do que faziam, cometiam infanticídios

abomináveis! Acontece que, ao fim de tantos e tão graves desatinos à luz da Razão, da Consciência, do Dever, da Moral, como do pudor pertinente ao estado feminino,

deixaram prematuramente o corpo carnal, morrendo, elas próprias, para o mundo físico-material, num dos vergonhosos ultrajes cometidos contra os sagrados direitos

da Natureza; outras, depois de luta ímproba e aviltante, durante a qual, à custa de criminosos deméritos, extinguindo em si mesmas as fontes sublimes da reprodutividade,

próprias da condição humana, adquiriram, como seqüência natural, enfermidades lastimáveis, tais como a tuberculose, o câncer, infecções repulsivas, etc., etc., que

as fizeram prematuramente atingir o plano invisível, sacrificando com o corpo carnal também o futuro espiritual e a paz da consciência, maculando, além do mais,

o envoltório físico-astral - o perispírito - com estigmas degradantes, conforme podereis examinar... e rodeando-se de ondas vibratórias tão desarmoniosas e densas

que o deformaram completamente, reduzindo-o à expressão vil das próprias mentes..."

Aproximamo-nos, temerosos do que contemplaríamos, enquanto a irmã de Ramiro de Guzman acrescentava:

Pertencem a todas as classes sociais terrenas, mas aqui se nívelam por idêntica inferioridade moral e mental! Das classes elevadas, porém, acorre o maior

contingente, com agravantes insolúveis dentro de dois ou três séculos e até mais... pois que, infelizmente, meus irmãos, sou obrigada a declarar existirem algumas

que, a fim de se libertarem das garras de tanto opróbrio, em menos tempo, estarão na terrível necessidade de estagiarem em mundos inferiores à Terra, durante algum

tempo, pois que não é em vão que a criatura ousará impedir a marcha dos desígnios divinos, com a Lei Suprema abrindo tão inglória luta!.. ."

A um gesto da zelosa servidora investigamos o interior das celas, mas recuamos imediatamente, com involuntário gesto de horror.

Acercou-se Souria-Omar, obrigando-nos a atitude digna e respeitosa, enquanto se retirava Vicência para um ângulo.

Voltamos à observação, e, enquanto dissertava o elucidador, fornecendo a ciência dentro do exame prático em torno do que víamos, e cuja contextura caberia num

volume, destacavam-se aos nossos olhos espirituais as aviltadas figuras das infanticidas, também consideradas suicidas.

Oh, Senhor Deus de todas as Misericórdias! Como se verificariam tais monstruosidades sob a luz sacros-santa do Universo que criaste para que o Homem nele se glorificasse,

aos seus embalos progredindo em Amor, Virtude e Sabedoria até atingir a Tua imagem e semelhança!... Que formas repelentes e abomináveis se apresentaram, então, ante

nossos olhos pávidos de Espíritos que pretendiam soletrar as primeiras frases do majestoso livro da Vida!... Como poderia a mulher, ser mimoso e lindo, rodeado de

encantos e atrativos incontestáveis, moralmente amesquinhar-se tanto, para chegar a tão funestos resultados?... O que víamos, então, ali?... Seria mulher? Porventura

um monstro primitivo?...

Não! Víamos - isso sim! - um Espírito defraudador da mais sublime quanto respeitável lei do Criador, a lei da reprodução da espécie para a finalidade suntuosa

do Progresso! A lei divina da procriação!

Vultos negros, esgrenbados, como envolvidos em farrapos, padrão trágico da Ruína, bracejavam contra mil formas perseguidoras que superlotavam o recinto rodeando-lhes

a personalidade. Ao longo dos seus corpos entenebrecidos pelas impurezas mentais, notavam-se placas quais chagas generalizadas, sobre as quais desenhos singulares

apareciam como decalcados em fogo ou sangue! Firmamos a atenção, procurando observar melhor, a um sinal do instrutor. Tratava-se da reprodução mental de embriões

humanos que tenderiam a se desenvolver outrora, nos aparelhos procriadores carnais, mas que se viram repelidos do sagrado óvulo materno por ato de desrespeito à

Natureza como à paternidade divina, permanecendo, todavia, sua imagem refletida no perispírito da genitora infiel, como produto mental de um crime cometido contra

um ser indefenso e merecedor de todo o amparo e da máxima dedicação!

Várias daquelas criminosas entidades viam-se desfiguradas por três, por cinco, dez imagens pequeninas, o que lhes alterava sobremodo as vibrações, desarmonizando-lhes

completamente o estado mental. Cenas deploráveis, fiéis produtos da mente que só se alimentou da ociosidade nociva do pensamento; recordações luxuriosas, esmagadoras

provas de conduta infiel à Moral povoavam o lúgubre recinto, transformando-o em habitação de uma coletividade execrável, enlouquecedora!

Lutavam as desgraçadas, bracejando sem tréguas, no intuito de repelirem as visses macabras oriundas dos próprios pensamentos! Os pequeninos seres, oütrora por

elas sacrificados em suas entranhas, esvoaçavam em torno, levados das repercussões do perispírito para as ondas vibratórias da mente, já irradiadas, e aí refletidas

através de magnífico, sublime serviço consciencial, castigando a infratora na seqüência de leis naturalissimas, por elas mesmas acionadas ao cometerem a infração!

Eram quais moscas a zumbirem inalteravelmente em torno de mísero canceroso, desorientando-o até àloucura em vista dos inevitáveis desequilíbrios daí derivados! Apresentavam-se

algumas, além do mais, plenamente obsidiadas pelas individualidades que deveriam habitar aqueles corpos repudiados; individualidades que, não lhes perdoando as deslustrosas

ações, que redundaram em prejuízos para seus urgentes interesses espirituais, passaram a persegui-las com ódios e revoltas, afinados os seus perispíritos com os

delas próprias pelas cadeias magnéticas naturais aos processos criadores do renascimento carnal; unificados ainda, como se continuasse no além-túmulo o processo

de gestação fetal iniciado no estado humano-terreno que o infanticídio interrompera! Estas, dir-se-iam monstros fabulosos e nenhuma expressão da linguagem humana

haverá que possa descrever a fealdade que arrastavam! Renasceriam, expiando o erro fatídico, calamitoso, consoante explicara o insigne catedrático, loucas irremediáveis,

na tentativa de corrigenda para as desarmonias vibratórias, uma vez que tais casos são irremediáveis na situação espiritual; seriam repulsivos monstrengos, deformados,

enfermos, cujo grau de anormalidade levaria os homens a duvidar da Sabedoria de um Deus Onipotente, quando justamente estariam estes diante de formosa página da

Excelsa Sabedoria! E outras marchariam para as trevas exteriores, onde rangeriam os dentes e chorariam até que se pudessem libertar do maior opróbrio que pode deprimir

o Espírito de uma mulher à frente do seu Criador e Pai! As trevas exteriores, porém, mais não eram do que o estágio terrível em habitações planetárias inferiores

à Terra, o degredo vergonhoso daquele que não mereceu acato entre as sociedades civilizadas de um planeta que tende a se elevar no concerto do progresso, rumo à

Fraternidade e à Moral!

Horrorizados do que víamos e de tudo quanto dizia o elucidador, e não isentos de surpresa, observamos serem os casos do Manicômio Feminino profundamente mais

dolorosos e graves do que os da mesma instituição reservada a nós outros, os homens, porqüanto a estes ultrapassam na tragédia das conseqüências!

Sentíamo-nos impressionados diante de tanta miséria, a qual, não obstante também culpados como éramos, jamais pudéramos conceber! Bem preferiríamos o verbo enternecido

de Ãníbal, repleto da magia suave do Evangelho e das visões encantadoras do apostolado messiânico... Mas cumpria-nos aprender, porque firmáramos o propósito de progredir,

e tudo quanto víamos seria labor de reeducação, experiência a enriquecer-nos a mente e o coração!

Um dos aprendizes aventou a pergunta que bailava na mente dos demais:

"- A estas não nos lembramos de ver no Vale Sinistro... O estado em que se apresentam não será antes próprio de locais como aquele?..."

"- Supondes porventura que a generalidade dos delinqüentes será obrigada, por força da lei, a permanecer em uma única e determinada região do Invisível? - esclareceu

o mentor, condescendendo. - Ou ignoráveis, que também se arrastam pelas baixas camadas sociais terrenas, em contacto com âmbitos viciosos com os quais se afinavam

mesmo antes da desencarnação?... Seu inferno, o abrasamento que lhes requeima a consciência, antes não se estabelece, de preferência, nas fornalhas dos remorsos

por eles mesmos acesas na própria mente?...

Não! Estas, que aí vedes, não estiveram no Vale Sinistro, porqüanto, o fato de gravitar para ali a entidade considerada suicida, já traduz algo que implicará

afinidades para o progresso normal no caso... Estas infelizes irmãs, porém, totalmente afinadas com as trevas, a consciência virulada por tremendas responsabilidades,

e acompanhadas, todas, desde muito, por sinistro cortejo de entidades inferiorizadas na prática do mal, a cujas sugestões se prendiam através de laços mentais idênticos,

ao expirarem, na vida carnal, foram envolvidas nas ondas vibratórias maléficas que lhes eram afins, assim permanecendo até agora e assim mesmo prosseguindo pelo

futuro a fora, até que expiações duríssimas, existências férteis nos serviços a prol do bem legitimo, venham a desatar os liames que ao mal as escravizaram, expungindo

de suas consciências todo esse cabedal sinistro que as desfiguram no momento... Na deplorável situação em que as contemplamos, é bem verdade que se encontram em

melhor estado do que já estiveram... Pelo menos estão sob dedicada proteção de fiéis amigos do Bem, abrigadas em local seguro onde não mais as perturbarão os odientos

comparsas adquiridos na prática do mal, tampouco os inimigos que desde muito lhes seguiam os passos, quais os corvos farejando a podridão. Muitas desgraçadas que

aí vemos - ao desencarnarem foram arrebatadas pelos componentes da falange perversa a que fizeram jus com os desatinos que praticaram e aprisionadas em localidades

tétricas do Invisível e mesmo da própria Terra, sendo ali submetidas a maus tratos e vexames inconcebíveis, indescritíveis! Casos existem em que as individualidades

que delas deveriam renascer, mas foram repelidas com muito acervo de prejuízos e sofrimentos, associam-se aos seres perversos que as rodeiam para também castigá-las,

com atos de execráveis vinganças. Outras, levadas por antigos pendores, permaneceram em antros de perversão e imoralidade, da sociedade terrena, durante longo tempo,

aí vivendo animalizadas, mentalmente escravizadas a soezes instintos; ao passo que ainda outras, desesperadas, maldosas, acercavam-se de outras mulheres, ainda encarnadas,

e que lhes permitissem acesso, para sugerirem a prática de ações idênticas às que as perderam, tecendo, assim, ação perfeitamente demoníaca por inspirar-se nos mais

degradantes testemunhos da inveja e do despeito, por não mais usarem também um envoltório carnal! Dizer-vos dos exaustivos trabalhos a que se impõem os servidores

da Seção de Relações Externas e demais voluntários, a fim de libertá-las das garras de tamanha degradação, será supérfluo neste momento, uma vez que deles tendes

algumas noções, graças à vossa colaboração nos serviços da Vigilância, colaboração que faz parte, como sabeis, do aprendizado que entre nós sois chamados a experimentar.

Reencarnarão tal como se encontram e todas as providências já foram tomadas para a volta delas ao renascimento... Não estando em condições de alguma coisa escolherem

voluntariamente, a Lei impõe-lhes a renovação carnal, para conquista de melhor situação, concordando com o grau de responsabilidade que trazem, ou melhor, o de-mérito

acumulado pelos erros praticados impele-as a reencarnações expiatórias terríveis, o que quer dizer que, quando delinqüiram outrora traçavam, elas mesmas, esse destino

de trevas, lágrimas e expiações, a que não poderão escapar! Os complexos de que se rodearam são insolúveis no além-túmulo e, urgentemente necessitadas de melhorias

vibratórias, renascerão em qualquer meio familiar terreno onde igualmente haja resgates dolorosos a se confirmarem ou bastante cristãos e abnegados para que queiram

fazer a caridade de recebê-las por amor de Deus... o que não será assim tão fácil.

As demais dependências do Manicômio, assim como as filiais do Isolamento e da Torre apresentaram, ao nosso exame, dramaticidade comparável à que já foi por nós

exposta, não nos permitindo, por isso mesmo, uma repetição descritiva. Tudo isso nos provou, entretanto, uma grande e esplendente verdade: - a mulher é tão responsável

quanto o homem, espiritualmente, à face da Grande Lei, porqüanto, antes de ser mulher, é ela, acima de tudo, um Espírito que se deverá afinar com o Bem, com a Justiça

e com a Luz, concordando de boamente a desempenhar as nobres e santificantes tarefas que lhe são confiadas pela lei do Criador, se não quiser incorrer nos mesmos

deméritos e responsabilidades!

Todavia, descobrimos ainda no Departamento Feminino uma seção inexistente nos parques residenciais masculinos, e que convirá descrever. Era o Internato das Moças

- como lhe chamavam as boas vigilantes -, espécie de educandário modelar para jovens suicidas, levadas ao sinistro ato por desequilíbrios sentimentais ou não, desilusões

amorosas, etc., etc. Tal dependência existia tanto no parque hospitalar como na Cidade Esperança, o que veio explicar-me não viverem estas em promiscuidade com os

demais casos femininos, desde a internação na Colônia. Durante o estágio no parque hospitalar, sujeitas a severo tratamento psíquico, sob os cuidados dos mesmos

abnegados médicos que a nós outros assistiam, as que, no entanto, conseguiam melhoras vibratórias suficientes para o ingresso no parque reeducativo da Cidade Universitária

eram dirigidas por virtuosos Espíritos femininos, que tratavam de prepará-las para o retorno aos testemunhos na Terra, tendo em vista deveres que acabavam de desacatar

através da grave infração cometida com o suicídio, e mais tarefas apropriadas aos desvelos da mulher. A iniciação, então, era realizada à sombra dos mesmos mestres

que a nós outros atendiam, bem como o aprendizado nos setores da cooperação aos serviços internos e externos da Colônia, conforme ficou esclarecido. Cursavam, enfim,

uma Academia Feminina, onde deveriam aprender o legítimo papel a que é chamada a mulher a exercer em contacto com as sociedades terrenas, isto é, o papel da mulher

virtuosa e cristã, porqüanto fora justamente a deficiência desse ajuste o móvel dos arrastamentos que redundaram na temerosa infração em que se precipitaram! Não

obstante, do Manicômio jamais saíram contingentes para os cursos da referida Academia, assim como raras foram as individualidades fornecidas pelo Isolamento para

os mesmos magnos preparativos. Geralmente, tais contingente. eram pequenos e, tal como a nós outros, os homens, sucedia, partiam do Hospital Matriz. Do Internato

das Moças, porém, acudia sempre a maior percentagem para os variados cursos da Cidade Universitária.

7

Últimos traços

Faz precisamente cinqüenta e dois anos que habito o mundo astral. Tendo-o atingido através da violência de um suicídio, ainda hoje não logrei alcançar a felicidade,

bem como a paz íntima que é o beneplácito imortal dos justos e obedientes à Lei. Durante tão longo tempo tenho voluntariamente adiado o sagrado dever de renascer

no plano físico-material envolvido na armadura de um novo corpo, o que já agora me vem amargurando sobremodo os dias, não obstante tê-lo feito desejoso de sorver

ainda, junto dos nobres instrutores, o elemento educativo capaz de, uma vez mergulhado na carne, proteger-me bastante, o suficiente para me tornar vitorioso nas

grandes lutas que enfrentarei rumo à reabilitação moral-espiritual.

Muito aprendi durante este meio século em que permaneci internado nesta Colônia Correcional que me abrigou nos dias em que eram mais ardentes as lágrimas que

minhalma chorava, mais dolorosos os estiletes que me feriam o coração vacilante, mais atrozes e desanimadoras as decepções que surpreenderam o meu Espírito, muros

a dentro do túmulo cavado pelo ato insano do suicídio! Mas, se algo aprendi do que ignorava e me era necessário para a reabilitação, também muito sofri e chorei,

debruçado sobre a perspectiva das responsabilidades dos atos por mim praticados! Mesmo desfrutando o convívio confortativo de tantos amigos devotados, tantos mentores

zelosos do progresso de seus pupilos, derramei pranto pungentíssimo, enquanto, muitas vezes, o desânimo, essa hidra avassaladora e maldita, tentava deter-me os passos

nas vias do programa que me tracei.

Aprendi, porém, a respeitar a idéia de Deus, o que já era uma força vigorosa a me escudar, auxiliando-me no combate a mim mesmo. Aprendi a orar, confabulando

com o Mestre Amado nas asas luminosas e consoladoras da prece lídima e proveitosa! Muito trabalhei, esforçando-me diariamente, durante quarenta anos, ao contacto

de lições sublimes de mestres virtuosos e. sábios, a fim de que, das profundezas ignotas do meu ser, a imagem linda da Humildade surgisse para combater a figura

perniciosa e malfazeja do Orgulho que durante tantos séculos me vem conservando entre as urzes do mal, soçobrado nos baixios da animalidade! Ao influxo caridoso

dos legionários de Maria também comecei a soletrar as primeiras letras do divino alfabeto do Amor, e com eles colaborei nos serviços de auxílio e assistência ao

próximo, desenvolvendo-me em labores de dedicação àqueles que sofrem, como jamais me julgara capaz! Lutei pelo bem, guiado por essas nobres entidades, estendi atividades

tanto nos parques de trabalhos espirituais acessíveis à minha humílima capacidade como levando-as ao plano material, onde me foi permitido contribuir para que em

vários corações maternos a tranqüilidade voltasse a luzir, em muitos rostinhos infantis, lindos e graciosos, o sorriso despontasse novamente, depois de dias e noites

de insofrida expectativa, durante os quais a febre ou a tosse e a bronquite os haviam esmaecido, e até no coração dos moços, desesperançados ante a realidade adversa,

pude colocar a lâmpada bendita da Esperança que hoje norteia meus passos, desviando-os da rota perigosa e traiçoeira do desânimo, que os teria impelido a abismos

idênticos aos por mim conhecidos! Durante quarenta anos trabalhei, pois, denodadamente, ao lado de meus bem-amados Guardiães! Não servi tão só ao Bem, experimentando

atitudes fraternas, mas também ao Belo, aprendendo com insignes artistas e "virtuoses" a homenagear a Verdade e respeitar a Lei, dando à Arte o que de melhor e mais

digno foi possível extrair das profundezas sinceras de minhalma.

Não obstante, jamais me senti satisfeito e tranqüilo comigo mesmo! Existe um vácuo em meu ser que não será preenchido senão depois da renovação em corpo carnal,

depois de plenamente testemunhado a mim mesmo o dever que não foi perfeitamente cumprido na última romagem terrena, abreviada pelo suicídio! A recordação dolorosa

daquele Jacinto de Ornelas y Ruiz, por mim desgraçado com a cegueira irremediável, num gesto de despeito e ciúme, permanece indelével, impondo-se às cordas sensíveis

do meu ser como estigma trágico do Remorso inconsolável, requisitando de meu destino futuro penalidade idêntica, ou seja - a cegueira, já que a prova máxima de ser

cego fora por mim, anulada àfrente do primeiro ensejo ofertado pela Providência, mediante o suicídio com que julgara poder libertar-me dela, ficando, portanto, com

esse débito na consciência!

De há muito devera eu ter voltado à reencarnação. O que fora lícito aprender nas Academias da Cidade Esperança foi-me facultado generosamente, pela magnânima

diretoria da Colônia, a qual não interpôs dificuldades ao longo aprendizado que desejei fazer. Até mesmo avantajados elementos da medicina psíquica adquiri ao contacto

dos mestres, durante aulas de Ciência e no desempenho de tarefas junto às enfermarias do Hospital Maria de Nazaré, onde sirvo há doze anos, substituindo Joel, que

partiu para novas experiências terrenas, no testemunho que à Lei devia, como suicida que também era. Tal aptidão valer-me-á o poder tornar-me "médium curador", mais

tarde, quando novamente habitar a crosta do planeta onde tantas e tão graves expressões de sofrimento existem para flagelar a Humanidade culposa de erros constantes!

Faltava-me, todavia, o idioma fraterno do futuro, aquele penhor inestimável da Humanidade, e que tenderá a envolvê-la no amplexo unificador das raças e dos povos

confraternizados para a conquista do mesmo ideal: - o progresso, a harmonia, a civilização iluminada pelo Amor! Era estudo facultativo esse, como, aliás, todos os

demais deveres que tenderíamos a abraçar, mas que os iniciados, particularmente, aconselhavam a fazermos, a ele emprestando grande importância, porqüanto esse idioma,

cujo nome simbólico é o mesmo de nossa Cidade Universitária, isto é, Esperança - (Esperanto) -, resolverá problemas até mesmo no além-túmulo, facultando aos Espíritos

elevados o se comunicarem eficiente e brilhantemente, através de obras literárias e cientificas, as quais o mundo terreno tende a receber do Invisível nos dias porvindouros

- servindo-se de aparelhos mediúnicos que também se hajam habilitado com mais essa faculdade a fim de bem atenderem aos imperativos da missão que, em nome do Criador

e por amor da Verdade e da redenção do gênero humano, deverão exercer.

Ora, convinha extraordinariamente aos meus interesses em geral e aos espirituais em particular, a aquisição, no plano invisível, desse novo conhecimento, ou seja,

do idioma "Esperanto". Ao reencarnar, levando-o decalcado nas fibras luminosas do cérebro perispiritual, em ocasião oportuna advir-me-ia a intuição de reaprendê-lo

ao contacto de mestres terrenos. Eu fora, aliás, informado de que seria médium na existência porvindoura e comprometera-me a trabalhar, uma vez reencarnado, pela

difusão das verdades celestes entre a Humanidade, não obstante o fantasma da cegueira que se postou àminha espera nas estradas do futuro. Meditei profundamente na

conveniência que adviria da ciência de um idioma universal entre os homens e os Espíritos, do quanto eu mesmo, como médium que serei, poderei produzir em prol da

causa da Fraternidade - a mesma do Cristo -, uma vez o meu intelecto de posse de tal tesouro! Obtida, pois, a permissão para mais esse curso, matriculei-me na Academia

que lhe era afeta e me dediquei fervorosamente ao nobre estudo.

Não era simplesmente um edifício a mais, figurando na extensa Avenida Acadêmica onde suntuosos palácios se alinhavam em magistral efeito de arte pura, mas escrínio

de beleza arquitetônica, que levaria o pensador ao sonho e ao deslumbramento! Era também um templo, como as demais edificações, e nos seus majestosos recintos interiores

a Fraternidade Universal era homenageada sem esmorecimentos, e sob as mais sadias inspirações da Esperança, por ministros do Bem, incansáveis em operosidades tendentes

ao benefício e progresso da Humanidade. Localizado num extremo da artéria principal da nobre e graciosa cidade do Astral, elevava-se sobre ligeiro planalto circulado

de jardins cujos tabuleiros profusos também se multiplicavam em matizes suaves, evolando oblatas de perfumes ao ar fresco, que se impregnava de essências agradáveis

e puras. Arvoredos floridos, caprichosamente mesclados de tonalidades verde-gaio e como que translúcidas, ora esguios, de galhadas festivas, ou frondosos, orlados

de festões garridos onde doces virações salmodiavam queixumes enternecidos, alinhavam as alamedas e pequenas praças do jardim, emprestando ao encantador recanto

o idealismo augusto dos ambientes criados sob o fulgor das inspirações de mais elevadas esferas.

Não foi sem sentir vibrar nas cordas sutis do meu Espírito um frêmito de insólita emoção que lentamente galguei as escadarias que levavam à alameda principal,

acompanhado, a primeira vez, de Pedro e Salústio, representantes que eram da direção do movimento universitário do cantão, isto é, espécie de inspetores escolares.

Ao longe, o edifício fulgia docemente, como estruturado em esmeraldinos tons de delicada quinta-essência do Astral. Dir-se-ia que os revérberos do Astro Rei,

que muito de mansinho penetrava os horizontes do nosso burgo, resvalando brandamente pelos zimbórios e pelas cornijas rendilhadas e graciosas, o envolviam em bênçãos

diárias, aquecendo com ósculos de fraterno estímulo a idéia genial processada no seu interior augusto por um pugilo de entidades esclarecidas, enamoradas do progresso

da Humanidade, de realizações transcendentes entre as sociedades da Terra como do Espaço. Era, todavia, a única edificação refulgindo tonalidades esmeraldinas e

fiavas, em desacordo com suas congêneres, que lucilavam nuanças azuladas e brancas, e que não obedecia ao clássico estilo hindu. Lembraria antes o estilo gótico,

evocando mesmo certas construções famosas da Europa, como a catedral de Colônia, com suas divisões e reentrâncias bordadas quais jóias de filigrana, suas torres

apontando graciosamente para o alto entre flamejamentos que se diriam ondas transmissoras de perene. inspirações para o exterior. Os recintos interiores não decepcionavam,

porqüanto eram o que de mais belo e mais nobre pude apreciar nos interiores da Cidade Esperança. Feição de catedral, com efeitos de luzes surpreendentes e um acento

de arte fluídica da mais fina classe que me seria possível conceber, compreendia-se imediatamente não serem orientais e tampouco iniciados os seus idealizadores;

que não pertenceriam à falange sob cujos cuidados nos reeducávamos e que antes deveria tratar-se de realização transplantada de outras falanges, como que uma embaixada

especial, sediada em outras piagas, mas com elevadas missões entre nós outros, e cuja finalidade seria, sem sombra de dúvidas, igualmente altruística.

Com efeito! A uma interrogação minha, Pedro e Salústio responderam tratar-se de uma filial da grande Universidade Esperantista do Astral, com sede em outra esfera

mais elevada, a qual irradiava inspiração para suas dependências do Invisível, como até da Terra, onde já se iniciava apreciável movimentação em torno do nobilíssimo

certame, entre intelectuais e pensadores de todas as raças planetárias!

Igualmente não era, como as demais Escolas do nosso burgo, dirigida por iniciados em Doutrinas Secretas. Seus diretores seriam neutros, na Terra como no Além,

em matéria de conhecimentos filosóficos ou crenças religiosas em geral. Seriam antes renovadores por excelência, idealistas a pugnarem por um melhor estado nas relações

sociais, comerciais, culturais, etc., etc., que tanto interessam a Humanidade. Ali destacamos grandes vultos reformadores do Passado emprestando do seu valioso concurso

à formosa causa, alguns deles tendo vivido na Terra aureolados por insuspeitáveis virtudes, e com os próprios nomes registrados na História como mártires do Progresso,

porqüanto trabalharam em várias etapas terrenas, nobre e heroicamente, pela melhoria da situação humana e da confraternização das sociedades. Surpreendido, ali encontrei

plêiade cintilante de intelectuais de toda a Europa aderidos ao movimento, entre muitos o grande Victor Hugo, para só me referir a um representante do continente

francês, ainda e sempre genial e trabalhador, dando de suas vastas energias à idéia da difusão de um inapreciável patrimônio entre a Humanidade. Quando, por isso

mesmo, tomei lugar no amplo e bem iluminado salão para o advento das primeiras aulas, confessava-me grandemente atraido para essa nova e admirável falange de servidores

da Luz. Uma vez no recinto, onde nuanças docemente esmeraldinas se casavam ao rendilhado dourado da arquitetura fluídica e sutil, emprestando-lhe sugestões encantadoras,

não me pude furtar à surpresa de averiguar ser o elemento feminino superior em número ao masculino, referência feita aos aprendizes. E, durante o prosseguimento

de todo o interessante curso, pude verificar com que fervor minhas gentis colegas de aprendizado, as mulheres, se dedicavam à vultosa conquista de armazenarem no

refolho do cérebro perispirítico as bases espirituais de um idioma que, uma vez reencarnadas, lhes seria grato lenitivo no futuro, afã generoso a lhes descortinar

horizontes mais vastos, assim para a mente como para o coração, dilatando ainda possibilidades muito mais ricas de suavizar criticas situações, remover empecilhos,

solucionar problemas com que porventura viessem a deparar no trajeto das reparações e testemunhos inalienáveis do porvir. E que de afeições puríssimas e blandiciosas,

durante o mencionado labor!... Ao amável aconchego dos meus companheiros de ideal esperantista, desde os primeiros dias harmonizadas as cordas do meu ser às suas

vibrações gêmeas da minha, encheu-se o meu Espírito de indizível satisfação, o coração se me dilatando para o advento da mais viva e consoladora Esperança de melhores

dias presidindo às sociedades terrenas do futuro, no seio das quais tantas vezes ainda renasceríamos, rumando para as alcandoradas plagas do Progresso!

Tal como no desenrolar das lições ministradas pelos antigos mestres Aníbal e Epaminondas, desde o primeiro dia de aula na Academia de Esperanto verificou-se magistral

desfile de civilizações terrenas. Suas dificuldades, muitas até hoje insanadas, muitos dos seus mais graves impasses foram analisados sob nossas vistas interessadas,

em quadros expositivos e seqüentes como o cinematógrafo, mostrando a Humanidade a debater-se contra as ondas até hoje insuperáveis da multiplicidade de idiomas e

dialetos, dificuldades que figuravam ali como um dos flagelos que assolam a atribulada Humanidade, complicando até mesmo o seu futuro espiritual, porqüanto no próprio

Mundo Invisível se luta contra estorvos motivados pela diferença de linguagem, nas zonas inferiores ou de transição, onde prolífera o elemento espiritual pouco evolvido

ou ainda muito materializado. Minúcias, ramificações, conseqüências surpreendentes até mesmo dentro do lar doméstico, empeços desanimadores, no alongamento das relações

e até do amor, entre as nações, os povos e os indivíduos, tudo foi magistralmente examinado desde as primeiras civilizações contempladas no planeta até ao século

20, que eu próprio não alcançara no plano material. E, depois, a simplificação dos mesmos casos, a remoção das mesmas dificuldades, a aurora de um progresso franco,

também alicerçado na clareza de um idioma que será patrimônio universal, da mesma forma que a Fraternidade e o Amor, unindo idéias, mentes, corações e esforços para

um único movimento geral, uma gloriosa conquista: - a difusão da cultura em geral, a aproximação dos povos para o triunfo da unidade de vistas, a felicidade das

criaturas!

Soletramos, então, os vocábulos. Eram-nos apresentados artística e gentilmente, através de quadros vivos e inteligentes. Sobrepunham-se estes em sequências admiráveis

de leitura, fornecendo-nos o de que necessitávamos para nos apossarmos dos segredos que nos permitiriam mais tarde até mesmo discursar fluentemente, em assembléias

seletas. Eram, portanto, álbuns, livros móveis, inteligentes, como que animados por fluído singular, a nos ensinarem a conversação, a escrita, toda a esplendente

irradiação de um idioma que se ia decalcando em nosso intelecto, permitindo-nos, quando reencarnados, a explosão de intuições brilhantes tão logo nos encontrássemos

na pista do assunto! E tais eram as perspectivas que nos acenavam os fatos do cimo glorioso daquela conquista, que nos senthhos triplicemente irmanados a toda a

Humanidade: pelos laços amoráveis da Doutrina do Cristo; pelo beneplácito da Ciência que nos iluminava o coração e pela finalidade a que nos arrastaria o exercício

de um idioma que futuramente nos habilitaria a nos reconhecermos como em nossa propria casa, estivéssemos em nossa Pátria ou vivendo no seio de nações situadas nas

mais diferentes plagas do globo terrestre, como até no seio do mundo invisível!

Ora, a Embaixada Esperantista em nossa Colônia não se limitava a facultar-nos elementos lingüísticos capazes de nos confraternizar com os demais cidadãos terrenos,

com quem seríamos compelidos a viver nos arraiais da crosta planetária, em futuro próximo.

De quando em quando, das esferas mais elevadas desciam visitas de confraternização, no intuito generoso de encorajarem os irmãos de ideal ainda ergastulados nas

dificuldades de antigas delinqüências. Verdadeiros congressos que eram, tais visitas à nossa Academia tratavam, em assembléias brilhantes, do interesse da Causa,

das atividades para a vitória do Ideal, dos sacrifícios e lutas de muitos pares do novo empreendimento para a sua difusão e progresso! Era quando tínhamos ocasião

de avaliar a colaboração daqueles vultos eminentes que viveram na Terra e cujos nomes a História registrou, e dos quais falamos mais atrás. Grandes turmas de alunos,

aprendizes do mesmo movimento, e pertencentes a outras esferas, aderiam a tais congressos, piedosamente colaborando para o reconforto de seus pobres irmãos prisioneiros

do suicídio.

Então, eram dias festivos em Cidade Esperança! Nas suntuosas praças ajardinadas que circundavam o majestoso palácio da Embaixada Esperantista, sobre tapetes de

relvas cetinosas, garridamente mescladas de miosótis azuis, de azáleas níveas ou róseas, realizavam-se os jogos florais, perfeitos torneios de Arte Clássica, durante

os quais a alma do espectador se deixava transportar ao ápice das emoções gloriosas, deslumbrada diante da majestade do Belo, que então se revelava em todos os delicados

e maviosos matizes possíveis à sua compreensão! Destacavam-se os bailados coreográficos e mesmo individuais, levados a cena por jovens e operosas esperantistas,

cujas almas reeducadas à luz benfazeja da Fraternidade não desdenhavam testemunhar a seus irmãos cativos do pecado o apreço e a consideração que lhes votavam, descendo

das paragens luminosas e felizes em que viviam para a visitação amistosa, com que lhes concediam tréguas para as ominosas preocupações através do refrigério de magnificentes

expressões artísticas!

Então, a beleza do espetáculo atingia o indescritível, quando, deslizando graciosamente pelo relvado florido, pairando no ar quais libélulas multicores, os formosos

conjuntos evolucionavam traduzindo a formosa arte de Terpsícore através do tempo e dos característicos das falanges que melhor souberam interpretá-la; agora, eram

jovens que viveram outrora na Grécia, interpretando a beleza ideal dos "ballets" de seu antigo berço natal; depois, eram egípcias, persas, hebraicas, hindus, européias,

extensa falange de cultivadores do Belo a encantar-nos com a graça e a gentileza de que eram portadoras, cada grupo alçando ao sublime o talento que lhes enriquecia

o ser, enquanto suntuosos efeitos de luz inundavam o cenário como se feéricos, singulares fogos de artifício descessem dos confins do firmamento para irradiar em

bênçãos de luzes sobre a cidade, que toda se engalanava de esbatidos multicores, nuanças delicadas e lindas, que se transmudavam de momento a momento em raios que

se entrechocavam, indescritívelmente, em artísticos jogos de cores, entrecruzando-se, transfundindo-se em cintilações sempre novas e surpreendentes! E todo esse

empolgante e intraduzível espetáculo de arte, que por si mesmo seria uma oblata ao Supremo Detentor da Beleza, verificado ao ar livre e não no recinto sacrossanto

dos Templos, fazia-se acompanhar de orquestrações maviosas onde os sons mais delicados, os acordes flébeis de poderosos conjuntos de harpas e violinos, que eram

como pássaros garganteando modulações siderais, arrancavam de nossos olhos deslumbrados, de nossos corações enternecidos, haustos de emoções generosas que vinham

para tonificar nossos Espíritos, alimentando nossas tendências para o melhor, ao nosso ser ainda frágil descortinando horizontes jamais entrevistos para o plano

intelectual! Quantas vezes músicos célebres que viveram na Terra acompanharam as caravanas esperantistas ànossa Colônia, colaborando com suas sublimes inspirações,

agora muito mais ricas e nobres, nessas fraternas festividades que o Amor ao próximo e o culto à Beleza promoviam! Mas tudo isso era manifestado em um estado de

superioridade e grandiosa moral que os humanos estão longe de conceber!

Sucediam-se, porém, os concertos: cânticos orfeônicos atingiam expressões miríficas; peças musicais perante as quais as mais arrebatadas melodias terrenas empalideceriam;

certamens poéticos em cenas de declamação cuja suntuosidade tocava o inimaginável, arrebatando-nos até ao êxtase! E o idioma seleto de que se utilizava esse pugllo

magnífico de artistas pertencentes a falanges que viveram e progrediram sob a bandeira de todos os climas, de todas as Pátrias do globo terrestre, era o Esperanto,

aquele que iria coroar a iniciação que fizéramos, reeducando-nos aos conceitos da Moral, da Ciência e do Amor!

Só se admitia, no entanto, a Arte Clássica. Em nossa Cidade Universitária jamais presenciamos o regionalismo de qualquer espécie. E depois que as lágrimas banhavam

nossas faces, empolgadas nossas almas ante tanto esplendor e maravilhas, diziam nossas boas vigilantes, acompanhando-nos ao internato para o repouso noturno: - Não

vos admireis, meus amigos! O que vistes é apenas o início da Arte no além-túmulo... Trata-se da expressão mais simples do Belo, a única que vossas mentalidades poderão

alcançar, por enquanto... Em esferas mais bem dotadas que a nossa existe mais, muito mais!... Cumpre, porém, à alma pecadora ref azer-se das quedas em que incorreu,

virtualizando-se através da renúncia, do trabalho, do amor, a fim de merecer o gravitar para elas...

O sentimento do dever leva-me a pensar seriamente na necessidade de volver aos páramos terrestres para testemunhar o desejo de me afinar definitivamente

com a Ciência da Verdade que acabo de entrever durante meu estágio nesta Colônia. Não mais deverei permanecer em Cidade Esperança, a menos que pretenda agravar minhas

responsabilidades com um estado de estacionamento incompatível com os códigos que acabo de estudar e aceitar. Incorreria em grave falta dilatando por mais tempo

a reparação que a mim mesmo devo, bem como à lei do Sempiterno, por mim espezinhada desde muitos séculos. Dos antigos companheiros e amigos que imigraram do Vale

Sinistro e que do Hospital ingressaram na Cidade Universitária, sou eu o único que até hoje aqui permanece, desencorajado de experimentar as próprias forças nos

embates expiatórios das arenas terrestres. Belarmino de Queiroz e Sousa, o nobre amigo cuja preciosa afeição me era dos mais gratos lenitivos durante as difíceis

pelejas espirituais a caminho da reabilitação, há dez anos que partiu para novas experimentações, tendo preferido renascer no Brasil, por maior facilidade lhe oferecer,

ali, o amparo da protetora Doutrina que abraçou durante os preparatórios nas Academias. Debrucei-me, comovido e afetuoso, sobre seu triste berço de órfão pobre,

pois perdeu a mãe, tuberculosa, um ano depois do nascimento. Muitas vezes tenho sussurrado protestos de sempiterna ternura aos seus ouvidos infantis, durante as

horas desoladas em que se põe a meditar, pequenino e infeliz, nos espinhos que já lhe ferem o coração. E muito hei chorado de compaixão e tristeza em contemplando

sua infância angustiosa: - o braço semiparalítico, herança inevitável do suicídio no século XIX; mirrado e enfermo filho de tuberculosa, com idêntico futuro a aguardá-lo

na maioridade! Desejei partir com ele, servir-lhe de irmão, vivendo a seu lado a fim de ampará-lo, consolá-lo, a mim mesmo reanimando ao contacto de sua leal afeição.

Impossível fazê-lo, porém! Seria missão de amor que não estaria ao alcance de um réprobo como eu, carente dos mesmos socorros e atenções! Na Terra, nossos destinos

e situações serão diversos. Somente mais tarde, após a vitória dos testemunhos bem suportados, reencontrar-nos-emos, aqui mesmo, a fim de reiniciarmos a marcha para

o Melhor. Doris Mary igualmente se apresentou em seu favor. Desejava segui-lo no círculo familiar, pois que o amava ternamente, predispondo-se a sacrifícios por

desejar suavizar-lhe as mesmas amarguras com os desvelos de um sentimento vazado na fraternidade cristã. Não lhe foi, porém, concedida permissão para tanto, porqüanto

tal abnegação implicaria círculo de infortúnios sucessivos e Doris possui méritos, tem direitos e compensações concedidas pela Lei, no panorama social terreno, por

ter vindo de uma existência em que palmilhou áspera trilha de amarguras bem suportadas ao lado de um esposo incompreensível e brutal, trilha que o suicídio de Joel

infelicitou ainda mais. Agora, seus guias não aconselharam novos sacrifícios pelo filho nos testemunhos que seria chamada a fazer e tampouco por Belarmino, que idêntico

desgosto causara à sua velha e dedicada mãe! Ela velaria, antes, por ambos, qual sombra luminosa e protetora que do Além projetasse, sobre o trajeto a realizarem,

inspiração e consolo nas horas decisivas!

Como vemos, não só Belarmino, mas também Joel descera às renovações reparadoras. João d'Azevedo e Amadeu Ferrari igualmente voltaram ao dever de renovar as experiências

fracassadas, e há oito anos já que os vi ingressar no Recolhimento para os devidos preparativos. Este último, presa de desgostos e inconsoláveis remorsos, nem mesmo

terminou o curso de preparatórios que conviria a todos nós. Muniu-se de ardente coragem à luz dos ensinamentos do Divino Emissário e partiu, para o Brasil ainda,

solicitando a mercê de um envoltório corporal negro e humílimo, onde positivasse pacientemente o duplo pesar que o afligia: - o suicídio de ontem e a tirania de

outrora, como senhor de escravatura que fora! E não sei, Deus meu, por que me não encorajei ainda a lhes imitar o gesto nobre, quando até mesmo Roberto de Canalejas

não mais faz parte do corpo de médicos aprendizes do Departamento Hospitalar, pois acaba de tomar novas vestes carnais em formosa incumbência nos Campos da Terceira

Revelação, e quando Ritinha de Cássia, a linda e encantadora vigilante que tantas lágrimas enxugou aos meus olhos torturados de penitente, Ritinha, a quem me afeiçoara

com a mais doce ternura fraternal possível ao meu coração, imitou o gesto de Roberto! Nas pelejas planetárias não existirá a tarefa matrimonial nas cogitações deste

amigo admirável. Fiel ao antigo sentimento pela consorte adorada, preferiu antes servir a causas mais vastas, desdobrando-se em atividades a prol da coletividade.

Rita, porém, caráter adamantino, coração evolvido para as altas aspirações, capaz, por isso mesmo, de positivar missões femininas de grande responsabilidade, pediu

e obteve permissão de seguir no encalço de Joel, desposando-o após o testemunho que a este será indispensável frente à repetição das experiências em que fracassou,

surgindo em sua vida como radiosa aleluia depois que ele se reabilitar perante a própria consciência! Amavam-se! Bem cedo percebi-o! E, enquanto traço estas linhas,

ponho-me a pensar sobre a excelsitude da bondade do Senhor dos Mundos e das Criaturas, que permite à alma humana tais compensações, depois do ressurgimento das trevas

do pecado!... (28)

Rita será, na Terra, como foi no Espaço, a vigilante amorosa e gentil que, no círculo familiar terreno, se rodeará de almas ainda carentes de amparo, consolando-as,

reanimando-as, aquecendo-as sob as doçuras dos seus afetos, ao mesmo tempo que, através de virtuosos exemplos, as impulsiona para os caminhos da Vitória!

(28) Quantas vezes, nas efervescências de um sofrimento parecido irremediável, desespera-se a criatura, atirando-se àaventura sinistra de um suicídio, quando, dentro

de curto espaço de tempo, encontraria a solução para o seu problema, a compensação, o auxílio da Providência como o consolo de que carecia! Faltou-lhe a paciência,

porém, a necessária calma para refletir e esperar a melhoria da situação, e por isso um abismo de trevas, em séculos de lutas e renovações idênticas às fracassadas,

positivou-se para o seu destino, ensinando que o que convém à criatura é a fortaleza e a paciência na adversidade, mas jamais a revolta e o desespero, que para nada

aproveitam!

No vasto dormitório do Internato de Cidade Esperança, onde habito desde os alvores do ano de 1910, só existem "novatos". As vezes profunda desolação vem

açabrunhar minhalma, como alguém que, vivendo na Terra muitas décadas, se visse deserdado da presença dos amigos e familiares mais queridos, contemplando az ruínas

que a ausência dos seres amados, tragados pela morte, cavaram em torno de sua velhice, onde o gelo das íntimas agonias se aquartela, tornando-o incompreensível e

Intolerável no conceito dos moços que agora lhe povoam os dias. Os leitos dos meus velhos amigos são hoje ocupados por entidades outras que, conquanto também afinadas

por idêntico. princípios e ideais, não estão a mim tão ternamente estreitadas pelas cadeias forjadas no tempo e nos infortúnios em comum... Ali está a janela de

balaústre. bordados, ampla, dividida em três arcos de fino lavor artístico, lembrando construções hindus sublimadas por uma classe superior. Ao amanhecer, Belarmino

se debruçava no seu peitoril para saudar a alvorada e comungar com o Alto na patena augusta da Prece! Aqui, a mesa singela em que me parece ainda ver debruçado o

vulto constrangido e triste de João d'Azevedo exercitando a programação das atividades convenientes ao seu caso, nos campos carnais. Acolá, dispostos pitorescamente

sob os cortinados olentes das galhadas do parque, os bancos onde eu e meus velhos companheiros de infortúnio nos recreávamos, falando das esperanças que acendiam

energias novas em nosso imo! Contemplo esses pequenos nadas e as lágrimas me acorrem aos olhos. São as saudades que sussurram angústias no recesso de minhalma, dizendo

que devo imitá-los sem detença, à procura de solver as dívidas incômodas da consciência! Jamais, no entanto, me deixei ficar ocioso. Procuro serenar o coração entristecido,

ao lado de meus caros conselheiros, dando-me ao afã de servir aos mais sofredores do que eu. Reparto-me entre as tarefas do Hospital e variadas outras incumbências

ao meu alcance, tanto na crosta do planeta como no perímetro de nossa Colônia, únicos limites em que poderei transitar enquanto não apresentar à Grande Lei os testemunhos

devidos! Mas nada disso será capaz de arredar das minhas ansiosas preocupações o juizo que de mim mesmo faço, juízo depreciativo daquele que sabe que principia a

incorrer em novas faltas, agravando voluntariamente as responsabilidades que já lhe pesam. Dir-se-ia que não passo de um inescrupuloso parasito, a ocupar locais

que melhor caberiam a outrem! E o rubor me cobre as faces sempre que, pelas alamedas pitorescas da Cidade, me éntrecruzo com Aníbal de Silas, Epaminondas de Viga

e Souria-Omar, os quais há muito me dispensaram de suas aulas, até que, com a experiência do renascimento, possa eu dignamente provar os valores adquiridos. Sorriem-me

bondosamente, contemplam-me com interesse. Mas os olhares que me dirigem são como flechas de fogo a perquirirem em minha consciência a razão por que me não animei

ainda ao cumprimento do dever!

Carlos de Canalejas e Ramiro de Guzman muito me têm aconselhado nestes últimos tempos. Antes de partir para a reencarnação, fez Roberto que se estreitassem

minhas relações de amizade com seu antigo sogro e amigo, recomendando-lhe ainda que se não olvidasse de a mim narrar, algum dia, a história dramática de Leila, cujo

amor transportou às culminâncias da dor o coração de ambos. Tenho servido sob sua assistência freqüentemente, o que me forneceu vasto campo de trabalhos no setor

terreno, pois, como sabemos, é ele o chefe da Seção de Relações Externas. Sob sua orientação tenho visitado os amigos de outrora, agora de volta ao cárcere carnal.

Há cerca de dois meses regressei de um estágio de doze semanas nas plagas brasileiras, onde serviços de experiências, no campo da propaganda das verdades sublimes

que hoje me edificam, absorveram minhas preocupações. Levou-me o bom mentor a visitar Mário Sobral, reencarnado em certa capital tumultuosa do Brasil. Não me contive

e deixei-me prorromper em copioso pranto à beira do grabato em que vi repousando o corpo mutilado do desgraçado amante e assassino da formosa Eulina. Sua habitação

miserável, construída em frágeis tábuas de pinho e folhas de zinco arruinado pelo tempo, é a expressão da mais sórdida miséria dos brasileiros jungidos aos fogos

de expiações dolorosas, na reconstrução sublime de si mesmos. Mas é também o único lar que convém à reencarnação de um antigo boêmio vaidoso dos dotes físicos, que,

pelos antros de vadiagem brilhante e pela infâmia dos lupanares, desbaratou a herança paterna honrada e dificultosamente adquirida nos labores campestres!

Andrajosamente vestido, pés descalços crestados pela continuação do contacto com as pedras e poeiras das estradas em que transita; mutilado das mãos, cabelos

ainda revoltos, despenteados, tal qual o víamos desde o Vale Sinistro, no Invisível; traços fisionômicos semelhantes aos que conhecíamos no Além; enfermo e nervoso,

atacado de estranha enfermidade que lhe tortura a traquéia como os canais faríngeos, o que o leva freqüentemente a crises penosas, atraindo febre alta e tornando-o

afônico; sem família, porque outrora, em Lisboa, ultrajou o círculo familiar em que havia nascido, honrado e amorável, que a Providência lhe permitira a fim de que

ao seu contacto virtuoso se munisse de boa-vontade para realizações honestas; pobre, miserável, mesmo faminto, porque não foi depositário fiel no pretérito, dos

bens materiais que o Céu lhe confiara, antes dissipou-os, deles se valendo para a perversão dos costumes; analfabeto, uma vez que, universitário em Coimbra na existência

pregressa, não aproveitara para nenhuma finalidade nobre a rica cultura intelectual com que a ciência das letras o dotara, antes deixou-se resvalar para a improdutividade,

conturbando-se na bruteza dos costumes e incapacidades morais para a edificação de si mesmo como dos semelhantes; o que eu tinha agora sob meu olhar apavorado já

não era aquele Mário cujo verbo brilhante e farto vocabulário encantava os companheiros de enfermaria, mas um infeliz mendicante, que estendia súplicas à caridade

dos transeuntes! Era a ruína social reduzida ao mais baixo e amargurobo nível que me fora possível contemplar, e, por isso mesmo, prorrompi em pranto compadecido

e angustiado. Mas ao meu lado Ramiro de Guzman sorria enternecido, ten

tando reconfortar-me com a luminosidade consoladora das sábias apreciações emitidas:

"- Exageras, Camilo! Não contemplamos um repositório de ruínas neste casebre ou neste fardo corporal mutilado, mas trabalho de reerguimento de uma Alma pertencente

à Imortalidade, a quem os fogos de sinceros remorsos fustigaram, impelindo-o a conquistas enobrecedoras! Profundamente arrependido do passado mau, como deves recordar,

Mário traçou - ele mesmo! - o mapa de expiações que aí vês, enquanto o suicídio por enforcamento forneceu a origem da enfermidade nervosa e da insuficiência vibratória

dos aparelhos faríngeos, uma vez que seu organismo perispiritual se viu grandemente atingido pelas repercussões dali advindas... o que vem demonstrar ser todo este

lamentável presente obra do seu próprio passado e não punição provinda de um juiz austero ou inclemente que se desejaria vingar.

Contemplas ruínas, dizes?... Pois bem, destes escombros ruinosos, cuja visão te amargura, despontará para teu amigo Mário Sobral a alvorada de progressos novos,

porqüanto, aqui se refazendo, estará solvida a dívida desonrosa que o atava às galés do remorso, reabilitando-o perante si mesmo e perante as leis que infringiu...

Aliás, julgas, porventura, vê-lo aqui abandonado, à mercê tão-somente da caridade das criaturas humanas?... Enganas-te!... Pois não é, antes, pupilo da Legião dos

Servos de Maria?... Não se encontra registrado no Hospital Maria de Nazaré? Deves recordar que tal encarnação é o tratamento conveniente a casos gravosos como o

dele, sublime cirurgia que o levará bem cedo à convalescença... Irmão Teócrito não estara, porventura, à testa dos seus passos?... Vigilantes e enfermeiros do Hospital,

como do Departamento a que pertenço, não o assistem carinhosamente, por ele velando como por enfermo grave, diariamente transfundindo energias, coragem, esperanças,

sempre novas e mais sólidas, na sublime preocupação de ajudá-lo a remover as pesadas montanhas das iniquidades levantadas em seu destino pelos atos por ele próprio

cometidos à revelia do Bem?... Freqüentemente, eu mesmo não o visito, como neste momento o faço, fiel às incumbências que me dizem respeito, e não encaminho seu

Espírito, muitas vezes, aos nossos postos de emergência do Astral, no intuito de reconfortá-lo, avivando energias fluídicas no seu envoltório físico-espiritual,

a fim de que suporte a amarga sentença que se traçou sem demasiados desfalecimentos?... Não sabes, ao demais, que se arrasta entre sorrisos de uma conformidade que

vem construindo vitória insofismável no ciclo expiatório inapelável que lhe cumpre vencer?... Sente-se ele mesmo feliz, pois, nas profundezas da consciência, existe

a iluminá-lo a certeza alvissareira de que assim, tal qual o vês, está cumprindo o sagrado dever de cidadão imortal, cujo destino será afinar-se com os ritmos harmoniosos

da lei do Bem e da Justiça universais!"

Calei-me, resignado e pensativo, pondo-me a meditar nas resoluções urgentes que eu mesmo deveria tomar. De Guzman apôs as mãos translúcidas sobre a fronte escaldante

do antigo pupilo de Teócrito, transmitindo virtudes fluidicas que lhe beneficiassem a acabrunhadora dispnéia. Detive-me em concentração respeitosa, suplicando à

Governadora Amorosa de nossa Legião concedesse alivio ao mísero comparsa de minhas antigas desventuras, ao passo que, terminada a operação generosa, virou-se novamente

o nobre amigo, consolativo:

A Providência nos enseja caminhos de glórias, meu caro amigo, em lutas fecundas entre lágrimas e oportunidades de redenção... E, no trajeto, concede aos penitentes

arrependidos compensações que freqüentemente não estarão à altura de apreciar, dados os impositivos criados pelo estágio em um fardo carnal..."

Virou-se para um ângulo sombrio do casebre, que eu deixara de examinar, preocupado com o quadro apresentado pela presença de Mário reencarnado, e apontou para

uma forma que, humilde e silenciosa, velava o doente, enquanto costurava remendos em fatos já rotos, e disse:

"- Vês esta pobre mulher?... Não poderás sequer avaliar o excelente trabalho de redenção que, sob as vistas do Excelso Mestre, se opera nos refolhos de sua alma,

tão arrependida quanto a de Mário, entre os espinhos de pobreza extrema, de lutas tão árduas quanto dignamente suportadas!..."

Busquei orientar-me, interessado e comovido ante o acento enternecido do nobre pensador que me acompanhava. Ao lado da porta de entrada, única existente no paupérrimo

domicílio, procurando um pouco de claridade que a auxiliasse no trabalho humllimo em que se entretinha, destaquei uma mulher de cor negra, pobremente vestida, porém,

asseada, aparentando cerca de cinqüenta anos. De sua fisionomia serena transpareciam singeleza e humildade. Admirado, interpelei o caridoso mentor:

"- Não a conheço... De quem se trata?..."

"- Faze tu mesmo um esforço, Camilo... Penetra as ondas vibratórias do seu pensamento, que progride no trabalho das recordações, e vê o que sucedeu há cerca de

quarenta anos, ou seja, na época em que retornou Mário ao círculo carnal terreno..

Obedeci, intrigado, enquanto a mulher negra se aproximava do enfermo, ministrando-lhe certa medicamentação homeopata, carinhosamente levantando-lhe a cabeça para,

em seguida, retornar ao trabalho. Em derredor, o silêncio convidava à eclosão das recordações. Entardecia lá fora e o Sol feérico do Brasil esbraseava o ocidente

com seus raios ardentes de ouro festivo, iluminando o firmamento com mil reflexos coralinos. Cá dentro a mulher pensava, pensava... Em torno do seu cérebro as imagens

se erguiam em agitações e seqüências caprichosas, enquanto, apavorado e comovido, eu lia e compreendia como num edificante livro aberto diante de meus olhos:

- Mário renascera em um lupanar... Sua mãe, inconformada com a maternidade, observando, para cúmulo de desgraça, a mutilação deprimente, e vendo o filho

sem forças para soltar os álacres vagidos do recém-nascido, meio sufocado por contrações espasmódicas qual se mãos férreas o desejassem prematuramente estrangular,

encheu-se de horror e prorrompeu em excruciante pranto, repelindo o monstrengo que concebera. Tratava-se de infeliz pecadora, a quem a maternidade seria empecilho

à continuação da liberdade que se permitia. Contrafeita, pois, confiou o miserável rebento a uma pobre lavadeira que vivia pelas imediações, honestamente curvada

sobre as duras tarefas impostas pela pobreza, prometendo gratificá-la mensalmente pelos serviços prestados ao pequenito. Aquiesceu a boa operária, não visando tão-só

ao acréscimo do rendimento para sua desprovida bolsa, mas, principalmente, obedecendo aos impulsos caritativos do bem formado coração que trazia, porqüanto, adepta

de um farto manancial de luzes e esclarecimentos - a Terceira Revelação -, não obstante a condição obscura que ocupava no plano social, sabia que a adoção daquele

entezinho que assim entrava na vida terrena, rodeado de tão sombrios informes do passado e tão desoladoras perspectivas no presente, seria certamente desígnio traçado

pelo Alto! Recebeu-o, pois, em sua humilde choça, procurando amá-lo quanto possível, já que à sua porta batia ao nascer. Tinha ainda uma filha, menina de dez anos,

pensativa e trabalhadora, e que obedientemente cooperava com a mãe nas lides difíceis de cada dia. Afeiçoou-se ão irmãozinho que o destino lançara em seus braços

e, para auxiliar o esforço materno, criou pacientemente o desgraçado enfermo, dedicando-se durante quarenta anos à desvanecedora missão - como jamais o faria uma

grande dama! Morrendo-lhe a genitora havia mais de quinze anos e falhando bem cedo a promessa da gratificação pela mãe irresponsável, feita no momento do repúdio

ao filho infeliz, ali estava ainda, fiel no posto de abnegação, trabalhando para que o desventurado irmão tivesse de esmolar pelas ruas o menos possível!...

Aproximei-me da mulher e, num gesto de agradecimento pelo muito que vinha concedendo ao meu amigo querido, descansei a destra sobre aquela fronte negra que, para

mim, naquele momento, era como se se aureolasse de adamantinos fulgores:

"- Que Jesus a abençoe, minha irmã, pelo muito que faz pelo pobre Mário, a quem sempre conheci tão sofredor!" - murmurei, sentindo lágrimas doloridas invadirem meus

pobres olhos espirituais.

D. Ramiro de Guzman, aproximando-se grave, como reverenciando a Lei Sublime cujo magnânimo esplendor cintilava naquele tugúrio propício à redenção, sussurrou,

surpreendendo-me até ao assombro:

"- Talvez ainda não adivinhaste quem ai está, encoberta neste envoltório corporal de cor negra, desdobrando-se em atividades cristãs a serviço do próprio reerguimento

espiritual?..."

E porque eu o fitasse, interrogativo:

"- Eulina!. .

Tomei a resolução inadiável: - seguirei amanhã para o Departamento de Reencarnação, a caminho do Recolhimento, para tratar do esboço corporal físico-terreno,

cuidando de pesquisas para o ambiente mais propício ao renascimento reparador. Consultei todas as autoridades da Colônia afetas ao meu caso e foram unânimes em me

reanimar para o indispensável e proveitoso certame. Desejei levantar, eu mesmo, o programa para minhas tarefas de reajustamento às leis infringidas pelo suicídio,

pois que possuo lucidez suficiente para tomar responsabilidade de tal vulto. Hei de cegar aos quarenta anos, mas cegar irremediavelmente, como se as órbitas vazias

de Jacinto de Ornelas se transterissem para minha máscara fisionômica depois de três séculos de expectativa do meu Espírito dolorosamente apavorado diante da imagem

incorruptível da Justiça! Consultei, todavia, pedindo inspiração e auxílio, os mestres queridos - Ãníbal de Silas, Epaminondas de Vigo, Souria-Omar e Teócrito -,

os quais carinhosamente atenderam minha solicitação por me ajudarem a equilibrar as linhas gerais da programação com os dispositivos da Lei. Todavia, só após minha

internação no Recolhimento subirão os informes para o beneplácito do Templo. Afiançaram-me, aqueles amigos queridos, que se debruçarão sobre meus passos, guiando-me

na senda do dever, inspirando-me nas horas decisivas quais tutelares incumbidos da minha guarda enquanto durar meu estágio neste generoso Instituto. Disseram-me

que a assistência médica aquartelada no Departamento Hospitalar acompanhará a evolução do meu próximo futuro envoltório carnal desde o embrião, no sagrado escrínio

genético, até os derradeiros instantes da agonia e da separação do meu Espírito do fardo que arrastarei para recuperação do tempo perdido com o suicídio! Dar-se-á

minha libertação dos liames físico-terrenos aos sessenta anos de idade, tendo, portanto, vinte anos para olhar só para dentro de mim mesmo, a realizar trabalho fecundo

e glorioso de auto-educação por domar manifestações do orgulho que em meu ser não se extinguiu ainda! Freqüentemente assalta-me o receio de uma nova queda, do olvido

dos deveres e tarefas a cumprir uma vez submerso no oceano de uma reedição corporal, olvido tão comum ao Espírito que ensaia a própria reabilitação. Mas meus instrutores

advertiram-me de que levarei sólidos elementos de vitória adquiridos no longo estágio reeducativo, e que por isso mesmo será bem pouco provável que a minha vontade

se corrompa ao ponto de me arrastar a maiores e mais graves responsabilidades.

Departamentos da Colonia, a começar pela Vigilância, com Olivier de Guzman e Padre Anselmo. Todos foram unânimes em me prometerem assistência durante o exílio irremediável,

através de rogativas ao Senhor de Todas as Coisas. Sinto-me, prematuramente, saudoso deste suave reduto que por Despedi-me de todos os amigos e companheiros, em

peregrinação fraterna pelos espaço tão longo de tempo me abrigou, e onde tantos e preciosos esclarecimentos adquiri para o reinlcio de atividades nos meios sociais

em que serei chamado a provar novos valores morais. Há alguns dias verdadeira romaria de amigos acorre a este Internato, a fim de visitar-me. Chefes de seção, enfermeiros,

vigilantes, e até psiquistas e instrutores abraçam-me, felicitando-me pela resolução tomada e augurando dias gloriosos para o meu Espírito nos serviços de reabilitação.

Apresentem-me ainda, cheios de bondade e estimulo, votos de vitória e aquisição de méritos. E por tudo me sinto agradecido, certo de que, nos testemunhos novos que

me esperam às margens pitorescas do velho e querido Tejo que tanto tenho amado e do qual ainda agora me não desejo separar, falange luminosa de entidades amigas

estará presente a fim de me reanimar com sua desvanecedora inspiração. E ontem me ofereceram um festim de despedida! Surpresa confortadora esperava-me em meio dessa

reunião onde a fraternidade e a beleza mais uma vez ditavam suas intraduzíveis expressões: - através dos nossos possantes aparelhamentos de visão a distância pude

contemplar, pela primeira vez, a formosa Mansão do Templo, na plenitude da sua harmoniosa e intraduzível beleza ambiente! Assisti, assim, a uma assembléia de iniciados,

ouvi-lhes os discursos sublimes, inspirados nas mais altas expressões da Moral, da Filosofia, da Ciência, do Belo - da Verdade, enfim - que me fora possível suportar!

No santuário onde se reuniam, lá estavam - a mesa augusta da comunhão com o Alto e os doze varões responsáveis por toda a Colônia unidos em identidade de vistas

e ideais para o solene momento da Prece! E depois o panorama arrebatador do burgo que eu não poderei penetrar senão de volta da encarnação que me espera, a sucessão

de residências, os vastos horizontes floridos esbatidos por delicadas nuanças azuladas a que os revérberos do Astro Rei trans-fundem cintilações douradas... As lágrimas

inundaram-me as faces, enquanto, decalcando a augusta visão nos refolhos da consciência, como benfazejo estimulo para as lides ásperas do futuro, minhalma murmurava

a si própria:

- Coragem, peregrino do pecado! Volta ao ponto de partida e reconstrói o teu destino e virtualiza o teu caráter aos embates remissores da Dor Educadora!

Sofre e chora resignado, porque tuas lágrimas serão o manancial bendito onde se irá dessedentar tua consciência sequiosa de paz! Deixa que teus pés sangrem entre

os cardos e as arestas dos infortúnios das reparações terrenas; que teu coração se despedace nas forjas da adversidade; que tuas horas se envolvam no negro manto

das desilusões, calcadas de angústias e solidão! Mas tem paciência e sê humilde, lembrando-te de que tudo isso é passageiro, tende a se modificar com o teu reajustamento

às sagradas leis que infringiste... e aprende, de uma vez para sempre, que - és imortal e que não será pelos desvios temerários do suicídio que a criatura humana

encontrará o porto da verdadeira felicidade...

Fim

 

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