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terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Memórias de um suicida-Parte 1- Yvone A. Pereira

 

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MEMÓRIAS DE UM SUICIDA

YVONNE DO AMARAL PEREIRA

DITADO PELO ESPÍRITO CAMILO CASTELO BRANCO

ÍNDICE

Introdução

Prefácio da segunda edição

PRIMEIRA PARTE - OS RÉPROBOS

CAPÍTULO 1 = O Vale dos Suicidas

CAPÍTULO 2 = Os réprobos

CAPÍTULO 3 = No Hospital "Maria de Nazaré"

CAPÍTULO 4 = Jerônimo de Araújo Silveira e família

CAPÍTULO 5 = O reconhecimento

CAPÍTULO 6 = A comunhão com o Alto

CAPÍTULO 7 = Nossos amigos - os discípulos de Allan Kardec

SEGUNDA PARTE - OS DEPARTAMENTOS

CAPÍTULO 1 = A Torre de Vigia

CAPÍTULO 2 = Os arquivos da alma

CAPÍTULO 3 = O Manicômio

CAPÍTULO 4 = Outra vez Jerônimo e família

CAPÍTULO 5 = Prelúdios de reencarnação

CAPÍTULO 6 = "A cada um segundo suas obras"

CAPÍTULO 7 = Os primeiros ensaios

CAPÍTULO 8 = Novos rumos

TERCEIRA PARTE - A CIDADE UNIVERSITÁRIA

CAPÍTULO 1 = A Mansão da Esperança

CAPÍTULO 2 = "Vinde a mim"

CAPÍTULO 3 = "Homem, conhece-te a ti mesmo!"

CAPÍTULO 4 = O "homem velho"

CAPÍTULO 5 = A causa de minha cegueira no século 19

CAPÍTULO 6 = O elemento feminino

CAPÍTULO 7 = Últimos traços

Introdução

Devo estas páginas à caridade de eminente habitante do mundo espiritual, ao qual me sinto ligada por um sentimento de gratidão que pressinto se estenderá além

da vida presente.

Não fora a amorosa solicitude desse iluminado representante da Doutrina dos Espíritos - que prometeu, nas páginas fulgurantes dos volumes que deixou na Terra

sobre filosofia espírita, acudir ao apelo de todo coração sincero que recorresse ao seu auxílio com o intuito de progredir, uma vez passado ele para o plano invisível

e caso a condescendência dos Céus tanto lhe permitisse - e se perderiam apontamentos que, desde o ano de 1926, isto é, desde os dias da minha juventude e os albores

da mediunidade, que juntos floresceram em minha vida, penosamente eu vinha obtendo de Espíritos de suicidas que voluntarianente acorriam às reuniões do antigo "Centro

Espírita de Lavras", na cidade do mesmo nome, no extremo sul do Estado de Minas Gerais, e de cuja diretoria fiz parte durante algum tempo. Refiro-me a Leon Denis,

o grande apóstolo do Espiritismo, tão admirado pelos adeptos da magna filosofia, e a quem tenho os melhores motivos para atribuir as intuições advindas para a compilação

e redação da presente obra.

Durante cerca de vinte anos tive a felicidade de sentir a atenção de tão nobre entidade do mundo espiritual piedosamente voltada para mim, inspirando-me

um dia, aconselhando-me em outro, enxugando-me as lágrimas nos momentos decisivos em que renúncias dolorosas se impuseram como resgates indispensáveis ao levantamento

de minha consciência, engolfada ainda no opróbrio das conseqüências de um suicídio em existência pregressa. E durante vinte anos convivi, por assim dizer, com esse

Irmão venerável cujas lições povoaram minha alma de consolações e esperanças, cujos conselhos procurei sempre pôr em prática, e que hoje como nunca, quando a existência

já declina para o seu ocaso, fala-me mais terna-mente ainda, no segredo do recinto humílimo onde estas linhas são escritas!

Dentre os numerosos Espíritos de suicidas com quem mantive intercâmbio através das faculdades mediúnicas de que disponho, um se destacou pela assiduidade e simpatia

com que sempre me honrou, e, principalmente, pelo nome glorioso que deixou 'na literatura em língua portuguesa, pois tratava-se de romancista fecundo e talentoso,

senhor de cultura tão vasta que até hoje de mim mesma indago a razão por que me distinguiria com tanta afeição se, obscura, trazendo bagagem intelectual reduzidíssima,

somente possuía para oferecer ao seu peregrino saber, como instrumentação, o coração respeitoso e a firmeza na aceitação da Doutrina, porqüanto, por aquele tempo,

nem mesmo cultura doutrinária eficiente eu possuía!

Chamar-lhe-emos nestas páginas - Camilo Cândido Botelho, contrariando, todavia, seus próprios desejos de ser mencionado com a verdadeira identidade. Esse nobre

Espírito, a quem poderosas correntes afetivas espirituais me ligavam, freqüentemente se tornava visível, satisfeito por se sentir bem querido e aceito. Ate o ano

de 1926, porém, só maito superficialmente ouvira falar em seu nome. Não lhe conhecia sequer a bagagem literária, copiosa e erudita.

Não obstante, veio ele a descobrir-me em uma mesa de sessão experimental, realizada na fazenda do Coronel Cristiano José de Souza, antigo presidente do "Centro

Espírita de Lavras", dando-me então a sua primeira mensagem. Daí em diante, ora em sessões normalmente organizadas, ora em reuniões íntimas, levadas a efeito em

domicílios particulares, ou no silêncio do meu aposento, altas horas da noite, dava-me apontamentos, noticiário periódico, escrito ou verbal, ensaios literários,

verdadeira reportagem relativa a casos de suicídio e suas tristes conseqüências no além-túmulo, na época verdadeiramente atordoadores para mim. Porém, muito mais

freqüentemente, arrebatavam-me, ele e outros amigos e protetores espirituais, do cárcere corpóreo, a fim de, por essa forma cômoda e eficiente, ampliar ditados e

experiências. Então, meu Espírito alçava ao convívio do mundo invisível e as mensagens já não eram escritas mas narradas, mostradas, exibidas à minha faculdade mediúnica

para que, ao despertar, maior facilidade eu encontrasse para compreender aquele que, por mercê inestimável do Céu, me pudesse auxiliar a descrevê-las, pois eu não

era escritora para o fazer por mim mesma! Estas páginas, portanto, rigorosamente, não foram psicografadas, pois eu via e ouvia nitidamente as cenas aqui descritas,

observava as personagens, os locais, com clareza e certeza absolutas, como se os visitasse e a tudo estivesse presente e não como se apenas obtivesse notícias através

de simples narrativas. Se descreviam uma personagem ou alguma paisagem, a configuração do exposto se definia imediatamente, à proporção que a palavra fulgurante

de Camilo, ou a onda vibratória do seu pensamento, as criavam. Foi mesmo por essa forma essencialmente poética, maravilhosa, que obtive a longa série de ensaios

literários fornecidos pelos habitantes do Invisível e até agora mantidos no segredo das gavetas, e não psicograficamente. Da psicografia os Espíritos que me assistiam

apenas se utilizavam para os serviços de receituário e pequenas mensagens instrutivas referentes ao ambiente em que trabalhávamos. E posso mesmo dizer que foi graças

a esse estranho convívio com os Espíritos que me advieram as únicas horas de felicidade e alegria que desfrutei neste mundo, como a resistência para os testemunhos

que fui chamada a apresentar à frente da Grande Lei!

No entanto, as referidas mensagens e os apontamentos feitos ao despertar, eram bastante vagos, não apresentando nem a feição romântica nem as conclusões doutrinárias

que, depois, para eles criou o seu compilador, por lhes desejar aplicar meio suave de expor verdades amargas, mas necessárias no momento que vivemos. Perguntar-se-á

por que o próprio Camilo não o fez... pois teria, certamente, capacidade para tanto!

Responderei que, até o momento em que estas linhas vão sendo traçadas, ignoro-o tanto como qualquer outra pessoa! Jamais perquiri, aliás, dos Espíritos a razão

de tal acontecimento. De outro lado, durante cerca de quatro anos vi-me na impossibilidade de manter intercâmbio normal com os Espíritos, por motivos independentes

de minha vontade.

E quando as barreiras existentes foram arredadas do meu caminho, o autor das mensagens só acudiu aos meus reiterados apelos a fim de participar sua próxima volta

à existência planetária. Encontrei-me então em situação difícil para redigir o trabalho, dando feição doutrinária e educativa às revelações concedidas ao meu Espírito

durante o sono magnético, as quais eu sabia desejarem as nobres entidades assistentes fossem transmitidas à coletividade, pois eu não era escritora, não me sobrando

capacidade para, por mim mesma, tentar a experiência. Releguei-os, portanto, ao esquecimento de uma gaveta de secretária e orei, suplicando auxílio e inspiração.

Orei, porém, durante oito anos, diariamente, sentindo no coração o ardor de uma chama viva de intuição segredando-me aguardasse o futuro, não destruindo os antigos

manuscritos. Até que, há cerca de um ano, recebi instruções a fim de prosseguir, pois ser-me-ia concedida a necessária assistência!

Prosseguindo, porém, direi que tenho as mais fortes razões para afirmar que a palavra dos Espíritos é cena viva e criadora, real, perfeita! em sendo também uma

vibração do pensamento capaz de manter, pela ação da vontade, o que desejar! Durante cerca de trinta anos tenho penetrado de algum modo os mistérios do mundo invisível,

e não foi outra coisa o que lá percebi. É de notar, todavia, que, ao despertar, a lembrança somente me acompanhava quando os assistentes me autorizavam a recordar!

Na maioria das vezes em que me foram facultados estes vôos, apenas permaneceu a impressão do acontecido, a íntima certeza de que convivera por instantes com os Espíritos,

mas não a lembrança.

Os mais insignificantes detalhes poderão ser notados quando um Espírito iluminado ou apenas esclarecido "falar", como, por exemplo - uma camada de pó sobre um

móvel; um esvoaçar de brisa agitando um cortinado; um véu, um laço de fita gracioso, mesmo com o brilho da seda, no vestuário feminino; o estrelejar das chamas na

lareira e até o perfume, pois tudo isso tive ocasião de observar na palavra mágica de Camilo, de Victor Hugo, de Charles e até do apóstolo do Espiritismo no Brasil

-Bezerra de Menezes, a quem desde o berço fui habituada a venerar, por meus pais. Certa vez em que Camilo descrevia uma tarde de inverno rigoroso em Portugal, juntamente

com um interior aquecido por lareira bem acesa, senti invadir-me tal sensação de frio que tiritei, buscando as chamas para aquecer-me, enquanto, satisfeito com a

experiência, ele se punha a rir... Alias, o fenômeno não será certamente novo. Não foi por outra forma que João Evangelista obteve os ditados para o seu Apocalipse

e que os profetas da Judéia receberam as revelações com que instruíam o povo.

No Apocalipse, versículos 10 e 11 e seguintes, do primeiro capitulo, o eminente servo do Senhor positiva o fenómeno a que aludimos, em pequenas palavras: "Eu

fui arrebatado em Espírito, um dia de domingo, e ouvi por detrás de mim uma grande voz como de trombeta, que dizia: - O que vês, escreve-o em um livro e envia-o

às sete igrejas.. ." - etc., etc.; e todo o importante volume foi narrado ao apóstolo assim, através de cenas reais, palpitantes, vivas, em visões detalhadas e precisas!

O Espiritismo tem amplamente tratado de todos esses interessantes casos para que não se torne causa de admiração o que vimos expondo; e no primeiro capítulo da magistral

obra de Allan Kardec - "A Gênese" - existe este tópico, certamente muito conhecido dos estudantes da Doutrina dos Espíritos: "As instruções (dos Espíritos) podem

ser transmitidas por diversos meios: pela simples inspiração, pela audição da palavra, pela visibilidade dos Espíritos instrutores, nas visões e aparições, quer

em sonho quer em estado de vigília, do que há muitos exemplos no Evangelho, na Bíblia e nos livros sagrados de todos os povos."

Longe de mim a veleidade de me colocar em plano equivalente ao daquele missionário acima citado, isto é, João Evangelista. Pelas dificuldades com que lutei a

fim de compor este volume, patenteadas ficaram ao meu raciocínio as bagagens de inferioridades que me deprimem o Espírito. O discípulo amado, porém, que, em sendo

um missionário escolhido, era também modesto pescador, teve sem dúvida o seu assistente espiritual para poder descrever as belas páginas aureoladas de ciência e

ensinamentos outros, de valor incontestável, os quais romperiam os séculos glorificando a Verdade! É bem provável que o próprio Mestre fosse aquele assistente...

Não posso ajuizar quanto aos méritos desta obra. Proibi-me, durante muito tempo, levá-la ao conhecimento alheio, reconhecendo-me inca paz de analisá-la. Não

me sinto sequer à altura de rejeitá-la, como não ouso também aceitá-la. Vós o fareis por mim. De uma coisa, porém, estou bem certa: - é que estas páginas foram elaboradas,

do princípio ao fim, com o máximo respeito à Doutrina dos Espíritos e sob a invocação sincera do nome sacrossanto do Altíssimo.

Rio de Janeiro, 18 de maio de 1954.

YVONNE DO AMARAL PEREIRA

Prefácio da segunda edição

Revisão criteriosa impunha-se nesta obra que há alguns anos me fora confiada para exame e compilação, em virtude das tarefas espiritualmente a mim subordinadas,

como da ascendência adquirida sobre o instrumento mediúnico ao meu dispor.

Fi-lo, todavia, algo extemporaneamente, já que me não fora possível fazê-lo na data oportuna, por motivos afetos mais aos prejuízos das sociedades terrenas contra

que o mesmo instrumento se debatia do que à minha vontade de operário atento no cumprimento do dever.

E a revisão se impunha, tanto mais quanto, ao transmitir a obra, me fora necessário avolumar de tal sorte as vibrações ainda rudes do cérebro mediúnico, operando

nele possibilidades psíquicas para a captação das visões indispensáveis ao feito, que, ativadas ao grau máximo que àquele seria possível comportar, tão excitadas

se tornaram que seriam quais catadupas rebeldes nem sempre obedecendo com facilidade à pressão que lhes fazia, procurando evitar excessos de vocabulário, acúmulos

de figuras representativas, os quais somente agora foram suprimidos. Nada se alterou, todavia, na feição doutrinária da obra, como no seu particular caráter revelatório.

Entrego-a ao leitor, pela segunda vez, tal como foi recebida dos Maiores que me incubiram da espinhosa tarefa de apresentá-la aos homens.

E se, procurando esclarecer o público, por lhe facilitar o entendimento de fastos espirituais, nem sempre conservei a feitura literária dos originais que tinha

sob os olhos; no entanto, não lhes alterei nem os informes preciosos nem as conclusões, que respeitei como labor sagrado de origem alheia.

Que medites sobre estas páginas, leitor, ainda que duro se torne para o teu orgulho pessoal o aceitá-las! E se as lágrimas alguma vez rociarem tuas pálpebras,

à passagem de um lance mais dramático, não recalcitres contra o impulso generoso de exaltar teu coração em prece piedosa, por aqueles que se estorcem nas trágicas

confusões da inconseqüência de infrações às leis de Deus!

Léon Denis

Belo Horizonte, 4 de abril de 1957.

PRIMEIRA PARTE -

OS RÉPROBOS

1

O Vale dos Suicidas

Precisamente no mês de janeiro do ano da graça de 1891, fora eu surpreendido com meu aprisionamento em região do Mundo Invisível cujo desolador panorama era

composto por vales profundos, a que as sombras presidiam: gargantas sinuosas e cavernas sinistras, no interior das quais uivavam, quais maltas de demônios enfurecidos,

Espíritos que foram homens, dementados pela intensidade e estranheza, verdadeiramente inconcebíveis, dos sofrimentos que os martirizavam.

Nessa paragem aflitiva a vista torturada do grilheta não distinguiria sequer o doce vulto de um arvoredo que testemunhasse suas horas de desesperação; tampouco

paisagens confortativas, que pudessem distrai-lo da contemplação cansativa dessas gargantas onde não penetrava outra forma de vida que não a traduzida pelo supremo

horror!

O solo, coberto de matérias enegrecidas e fétidas, lembrando a fuligem, era imundo, pastoso, escorregadio, repugnante! O ar pesadíssimo, asfixiante, gelado,

enoitado por bulções ameaçadores como se eternas tempestades rugissem em torno; e, ao respirarem-no, os Espíritos ali ergastulados sufocavam-se como se matérias

pulverizadas, nocivas mais do que a cinza e a cal, lhes invadissem as vias respiratórias, martirizando-os com suplício inconcebível ao cérebro humano habituado às

gloriosas claridades do Sol - dádiva celeste que diariamente abençoa a Terra - e às correntes vivificadoras dos ventos sadios que tonificam a organização física

dos seus habitantes.

Não havia então ali, como não haverá jamais, nem paz, nem consolo, nem esperança: tudo em seu âmbito marcado pela desgraça era miséria, assombro, desespero e

horror. Dir-se-ia a caverna tétrica do Incompreensível, indescritível a rigor até mesmo por um Espírito que sofresse a penalidade de habitá-la.

O vale dos leprosos, lugar repulsivo da antiga Jerusalém de tantas emocionantes tradições, e que no orbe terráqueo evoca o último grau da abjeção e do sofrimento

humano, seria consolador estágio de repouso comparado ao local que tento descrever. Pelo menos, ali existiria solidariedade entre os renegados! Os de sexo diferente

chegavam mesmo a se amar!

Adotavam-se em boas amizades, irmanando-se no meio da dor para suavizá-la! Criavam a sua sociedade, divertiam-se, prestavam-se favores, dormiam e sonhavam que

eram felizes!

Mas no presídio de que vos desejo dar contas nada disso era possível, porque as lágrimas que se choravam ali eram ardentes demais para se permitirem outras atenções

que não fossem as derivadas da sua própria intensidade!

No vale dos leprosos havia a magnitude compensadora do Sol para retemperar os corações! Existia o ar fresco das madrugadas com seus orvalhos regeneradores! Poderia

o précito ali detido contemplar uma faixa do céu azul... Seguir, com o olhar enternecido, bandos de andorinhas ou de pombos que passassem em revoada!... Ele sonharia,

quem sabe? lenido de amarguras, ao poético clarear do plenilúnio, enamorando-me das cintilações suaves das estrelas que, lá no Inatingível, acenariam para a sua

desdita, sugerindo-lhe consolações no insulamento a que o forçavam as férreas leis da época!... E, depois, a Primavera fecunda voltava, rejuvenescia as plantas para

embalsamar com meus perfumes caridosos as correntes de ar que as brisas diariamente tonificavam com outros tantos bálsamos generosos que traziam no seio amorável...

E tudo isso era como dádivas celestiais para reconciliá-lo com Deus, fornecendo-lhe tréguas na desgraça!

Mas na caverna onde padeci o martírio que me surpreendeu além do túmulo, nada disso havia!

Aqui, era a dor que nada consola, a desgraça que nenhum favor ameniza, a tragédia que idéia alguma tranqüilizadora vem orvalhar de esperança! Não há céu, não

há luz, não há sol, não há perfume, não há tréguas!

O que há é o choro convulso e Inconsolável dos condenados que nunca se harmonizam!

O assombroso "ranger de dentes" da advertência prudente e sábia do sábio Mestre de Nazaré! A blasfêmia acintosa do réprobo a se acusar a cada novo rebate da

mente flagelada pelas recordações penosas! A loucura inalterável de consciências contundidas pelo vergastar infame dos remorsos! O que há é a raiva envenenada daquele

que já não pode chorar, porque ficou exausto sob o excesso das lágrimas! O que há é o desaponto, a surpresa aterradora daquele que se sente vivo a despeito de se

haver arrojado na morte! É a revolta, a praga, o insulto, o ulular de corações que o percutir monstruoso da expiação transformou em feras! O que há é a consciência

conflagrada, a alma ofendida pela imprudência das ações cometidas, a mente revolucionada, as faculdades espirituais envolvidas nas trevas oriundas de si mesma! O

que há é o "ranger de dentes nas trevas exteriores" de um presídio criado pelo crime, votado ao martírio e consagrado à emenda! É o inferno, na mais hedionda e dramática

exposição, porque, além do mais, existem cenas repulsivas de animalidade, práticas abjetas dos mais sórdidos instintos, as quais eu me pejaria de revelar aos meus

irmãos, os homens!

Quem ali temporariamente estaciona, como eu estacionei, são grandes vultos do crime! É a escória do mundo espiritual - falanges de suicidas que periodicamente

para seus canais afluem levadas pelo turbilhão das desgraças em que se enredaram, a e despojarem das forças vitais que se encontram, geralmente intactas, revestindo-lhes

os envoltórios físico-espirituais, por seqüências sacrílegas do suicídio, e provindas, preferentemente, de Portugal, da Espanha, do Brasil e colônias portuguesas

da África, infelizes carentes do auxílio confortativo da prece; aqueles, levianos e inconseqüentes, que, fartos da vida que não quiseram compreender, se aventuraram

ao Desconhecido, em procura do Olvido, pelos despenhadeiros da Morte!

O Além-túmulo acha-se longe de ser a abstração que na Terra se supõe, ou as regiões paradisíacas fáceis de conquistar com algumas poucas fórmulas inexpressivas.

Ele é, antes, simplesmente a Vida Real, e o que encontramos ao penetrar suas regiões é Vida! Vida intensa a se desdobrar em modalidades infinitas de expressão, sabiamente

dividida em continentes e falanges como a Terra o é em nações e raças; dispondo de organizações social. e educativas modelares, a servirem de padrão para o progresso

da Humanidade. É no Invisível, mais do que em mundos planetários, que as criaturas humanas colhem inspiração para os progressos que lentamente aplicam no orbe.

Não sei como decorrerão os trabalhos correcionais para suicidas nos demais núcleos ou colônias espirituais destinadas aos mesmos fins e que se desdobrarão sob

céus portugueses, espanhóis e seus derivados. Sei apenas é que fiz parte de sinistra falange detida, por efeito natural e lógico, nessa paragem horrenda cuja lembrança

ainda hoje me repugna à sensibilidade. É bem possível que haja quem ponha a discussões mordazes a veracidade do que vai descrito nestas páginas. Dirão que a fantasia

mórbida de um inconsciente exausto de assimilar Dante terá produzido por conta própria a exposição aqui ventilada... esquecendo-se de que, ao contrário, o vale florentino

é que conheceria o que o presente século sente dificuldades em aceitar...

Não os convidarei a crer. Não é assunto que se imponha à crença, simplesmente, mas ao raciocínio, ao exame, à investigação. Se sabem raciocinar e podem investigar

- que o façam, e chegarão a conclusões lógicas que os colocarão na pista de verdades assaz interessantes para toda a espécie humana! O a que os convido, o que ardentemente

desejo e para que tenho todo o interesse em pugnar, é que se eximam de conhecer essa realidade através dos canais trevosos a que me expus, dando-me ao suicídio por

desobrigar-me da advertência de que a morte nada mais é do que a verdadeira forma de existir!...

De outro modo, que pretenderia o leitor existisse nas camadas invisíveis que contornam os mundos ou planetas, senão a matriz de tudo quanto neles se reflete?

!... Em nenhuma parte se encontraria a abstração, ou o nada, pois que semelhantes vocábulos são inexpressivos no Universo criado e regido por uma Inteligência Onipotente!

Negar o que se desconhece, por se não encontrar à altura de compreender o que se nega, é insânia incompatível com os dias atuais. O século convida o homem à investigação

e ao livre exame, porque a Ciência nas suas múltiplas manifestações vem provando a inexatidão do impossível dentro do seu cada vez mais dilatado raio de ação. E

as provas da realidade dos continentes superterrenos encontram-se nos arcanos das ciências psíquicas transcendentais, às quais o homem há ligado muito relativa importância

até hoje.

O que conhece o homem, aliás, do próprio planeta onde tem renascido desde milênios, para criteriosamente rejeitar o que o futuro há dè popularizar sob os auspícios

do Psiquismo?... O seu pais, a sua capital, a sua aldeia, a sua palhoça ou, quando mais avantajado de ambições, algumas nações vizinhas cujos costumes se nívelam

aos que lhe são usuais?...

Por toda a parte, em torno dele, existem mundos reais, exarando vida abundante e intensa: e se ele o ignora será porque se compraz na cegueira, perdendo tempo

com futilidades e paixões que lhe sabem ao caráter. Não perquiriu jamais as profundidades oceânicas - não poderá mesmo fazê-lo, por enquanto. Não obstante, debaixo

das águas verdes e marulhentas existe não mais um mundo perfeitamente organizado, mas um universo que assombraria pela grandiosidade e ideal perfeição! No próprio

ar que respira, no solo onde pisa encontraria o homem outro núcleo, organizados de vida, obedecendo ao impulso inteligente e sábio de leis magnânimas fundamentadas

no Pensamento Divino, que os aciona para o progresso, na conquista do mais perfeito! Bastaria que se munisse de aparelhamentos precisos, para averiguar a veracidade

dessas coletividades desconhecidas que, por serem invisíveis umas, e outras apenas suspeitadas, nem por isso deixam de ser concretas, harmoniosas, verdadeiras!

Assim sendo, habilite-se, também, desenvolvendo os dons psíquicos que herdou da sua divina origem... Impulsione pensamento, vontade, ação, coração, através das

vias alcandoradas da Espiritualidade superior... e atingirá as esferas astrais que circundam a Terra!

Era eu, pois, presidiário dessa cova ominosa do horror!

Não habitava, porém, ali sozinho. Acompanhava-me uma coletividade, falange extensa de delinqüentes, como eu.

Então ainda me sentia cego. Pelo menos, sugestionava-me de que o era, e, como tal, me conservava, não obstante minha cegueira só se definir, em verdade, pela

inferioridade moral do Espírito distanciado da Luz. A mim cego não passaria, contudo, despercebido o que se apresentasse mau, feio, sinistro, imoral, obsceno, pois

conservavam meus olhos visão bastante para toda essa escória contemplar - agravando-se destarte a minha desdita.

Dotado de grande sensibilidade, para maior mal tinha-a agora como superexcitada, o que me levava a experimentar também os sofrimentos dos outros mártires meus

cômpares, fenômeno esse ocasionado pelas correntes mentais que se despejavam sobre toda a falange e oriundas dela própria, que assim realizava impressionante afinidade

de classe, o que é o mesmo que asseverar que sofríamos também as sugestões dos sofrimentos uns dos outros, além das insídias a que nos submetiam os nossos próprios

sofrimentos. (1)

Às vezes, conflitos brutais se verificavam pelos becos lamacentos onde se enfileiravam as cavernas que nos serviam de domicílio. Invariavelmente irritados, por

motivos insignificantes nos atirávamos uns contra os outros em lutas corporais violentas, nas quais, tal como sucede nas baixas camadas sociais terrenas, levaria

sempre a melhor aquele que maior destreza e truculência apresentasse. Freqüentemente fui ali insultado, ridículizado nos meus sentimentos mais caros e delicados

com chistes e sarcasmos que me revoltavam até o âmago; apedrejado e espancado até que, excitado por fobia idêntica, eu me

(1) Após a morte, antes que o Espírito se oriente, gravitando para o verdadeiro "lar espiritual" que lhe cabe, será sempre necessário o estágio numa "antecâmara",

numa região cuja densidade e aflitivas configurações locais corresponderão aos estados vibratórios e mentais do recém-desencarnado. Aí se deterá até que seja naturalmente

"desanimalizado", Isto é, que se desfaça dos fluidos e forças vitais de que são impregnados todos os corpoS materiais. Por ai se verá que a estada será temporária

nesse umbral do Além, conquanto geralmente penosa. Tais sejam o caráter, as ações praticadas, o gênero de vida, o gênero de morte que teve a entidade desencarnada

-tais serão o tempo e a penúria no local descrito. Existem aqueles que aí apenas se demoram algumas horas. Outros levarão meses, anos consecutivos, voltando à reencarnação

sem atingirem a Espiritualidade. Em se tratando de suicidas o caso assume proporções especiais, por dolorosas e complexas. Estes aí se demorarão, geralmente, o tempo

que ainda lhes restava para conclusãO do compromisso da existência que prematuramente cortaram. Trazendo carregamentos avantajados de forças vitais animalizadas,

além das bagagens das paixões criminosas e uma desorganização mental, nervosa e vibratória completas, é fácil entre Ver qual será a situação desses infelizes para

quem um só bálsamo existe: - a prece das almas caritativas!

Se, por muito longo esse estágio exorbite das medidas normais ao caso - a reencarnação imediata será a terapêutica indicada, embora acerba e dolorosa, O

que será preferível a muitos anos em tão desgraçada situação, assim se completando, então, o tempo que faltava ao término da existência cortada.

atirava a represálias selvagens, ombreando com os agressores e com eles refocilando na lama da mesma ceva espiritual!

A fome, a sede, o frio enregelador, a fadiga, a insônia; exigências físicas martirizantes, fáceis de o leitor entrever; a natureza como que aguçada em todos

os seus desejos e apetites, qual se ainda trouxéssemos o envoltório carnal; a promiscuidade, muito vexatória, de Espíritos que foram homens e dos que animaram corpos

femininos; tempestades constantes, inundações mesmo, a lama, o fétido, as sombras perenes, a deseeperança de nos vermos livres de tantos martírios sobrepostos, o

supremo desconforto físico e moral - eis o panorama por assim dizer "material" que emoldurava os nossos ainda mais pungentes padecimentos morais!

Nem mesmo sonhar com o Belo, dar-se a devaneio. balsamizantes ou a recordações beneficente é era concedido àquele que porventura possuísse capacidade para o

fazer.

Naquele ambiente superlotado de males o pensamento jazia encarcerado nas fráguas que o contornavam, só podendo emitir vibrações que se afinassem ao tono da própria

perfídia local... E, envolvidos em tão enlouquecedores fogos, não havia ninguém que pudesse atingir um instante de serenidade e reflexão para se lembrar de Deus

e bradar por Sua paternal misericórdia! Não se podia orar porque a oração é um bem, é um bálsamo, é uma trégua, é uma esperança! e aos desgraçados que para lá se

atiravam nas torrentes do suicídio impossível seria atingir tão altas mercês!

Não sabíamos quando era dia ou quando voltava a noite, porque sombras perenes rodeavam as horas que vivíamos. Perdêramos a noção do tempo. Apenas esmagadora

sensação de distância e longevidade do que representasse o passado ficara para açoitar nossas Interrogações, afigurando-se-nos que estávamos há séculos jungidos

a tão ríspido calvário!

Dali não esperávamos sair, conquanto fosse tal desejo uma das causticantes obsessões que nos alucinavam... pois o Desânimo gerador da desesperança que nos armara

o gesto de suicidas afirmava-nos que tal estado de coisas seria eterno! A contagem do tempo, para aqueles que mergulhavam nesse abismo, estacionara no momento exato

em que fizera para sempre tombar a própria armadura de carne! Daí para cá só existiam - assombro, confusão, enganosas induções, suposições insidiosas! Igualmente

ignorávamos em que local nos encontrávamos, que significação teria nossa espantosa situação. Tentávamos, aflitos, furtarmo-nos a ela, sem percebermos que era cabedal

de nossa própria mente conflagrada, de nossas vibrações entrechocadas por mil malefícios indescritíveis! Procurávamos então fugir do local maldito para voltarmos

aos nossos lares; e o fazíamos desabaladamente, em insanas correrias de loucos furiosos! Aasveros malditos, sem consolo, sem paz, sem descanso em parte alguma...

ao passo que correntes irresistíveis, como ímãs poderosos, atraíam-nos de volta ao tugúrio sombrio, arrastando-nos de envolta a um atro turbilhão de nuvens sufocadoras

e estonteantes!

De outras vezes, tateando nas sombras, lá íamos, por entre gargantas, vielas e becos, sem lograrmos indício de saída... Cavernas, sempre cavernas - todas numeradas

-; ou longos espaços pantanosos quais lagos lodosos circulados de muralhas abruptas, que nos afiguravam levantadas em pedra e ferro, como se fôramos sepultados vivos

nas profundas tenebrosidades de algum vulcão! Era um labirinto onde nos perdíamos sem podermos jamais alcançar o fim!

Por vezes acontecia não sabermos retornar ao ponto de partida, isto é, às cavernas que nos serviam de domicílio, o que forçava a permanência ao relento até que

deparássemos algum covil desabitado para outra vez nos abrigarmos. Nossa mais vulgar impressão era de que nos encontrávamos encarcerados no subsolo, em presídio

cavado no seio da Terra, quem sabia se nas entranhas de uma cordilheira, da qual fizesse parte também algum vulcão extinto, como pareciam atestar aqueles imensuráveis

poços de lama com paredes escalavradas lembrando minerais pesados...

Aterrados, entrávamos então a bramir em coro, furiosamente, quais maltas de chacais danados, para que nos retirassem dali, restituindo-nos à liberdade! As mais

violentas manifestações de terror seguiam-se então; e tudo quanto o leitor imaginar possa, dentro da confusão de cenas patéticas inventadas pela fobia do Horror,

ficará muito aquém da expressão real por nós vivida nessas horas criadas pelos nossos próprios pensamentos distanciados da Luz e do Amor de Deus!

Como se fantásticos espelhos perseguissem obsessoramente nossas faculdades, lá se reproduzia a visão macabra: - o corpo a se decompor sob o ataque dos vibriões

esfaimados; a faina detestável da podridão a seguir o curso natural da destruição orgânica, levando em roldão nossas carnes, nossas vísceras, nosso sangue pervertido

pelo fétido, nosso corpo enfim, que se sumia para sempre no banquete asqueroso de milhões de vermes vorazes, nosso corpo, que era carcomido lentamente, sob nossas

vistas estupefatas!... que morria, era bem verdade, enquanto nós, seus donos, nosso Ego sensível, pensante, inteligente, que dele se utilizara apenas como de um

vestuário transitório, continuava vivo, sensível, pensante, inteligente, desapontado e pávido, desafiando a possibilidade de também morrer! E - ó tétrica magia que

ultrapassava todo o poder que tivéssemos de refletir e compreender! - ó castigo irremovível, punindo o renegado que ousou insultar a Natureza destruindo prematuramente

o que só ela era competente para decidir e realizar: - Vivos, nós, em espírito, diante do corpo putrefato, sentíamos a corrupção atingir-nos!... Doíam em nossa configuração

astral as picadas monstruosas dos vermes! Enfurecia-nos até à demência a martirizante repercussão que levava nosso perispírito, ainda animalizado e provido de abundantes

forças vitais, a refletir o que se passava com seu antigo envoltório limoso - tal o eco de um rumor a reproduzir-se de quebrada em quebrada da montanha, ao longo

de todo o vale...

Nossa covardia, então, a mesma que nos brutalizara induzindo-nos ao suicídio, forçava-nos a retroceder.

Retrocedíamos.

Mas o suicídio é uma teia envolvente em que a vitima - o suicida - só se debate para cada vez mais confundir-se, tolher-se, embaraçar-se. Sobrepunha-se a confusão.

Agora, a persistência da auto-sugestão maléfica recordava as lendas supersticiosas, ouvidas na infância e calcadas por longo tempo nas camadas da subconsciência;

corporificava-se em visões extravagantes, a que emprestava realidade integral. Julgávamo-nos nada menos do que à frente do tribunal dos infernos!... Sim! Vivíamos

na plenitude da região das sombras!... E Espíritos de ínfima classe do Invisível - obsessores que pululam por todas as camadas inferiores, tanto da Terra como do

Além; os mesmos que haviam alimentado em nossas mentes as sugestões para o suicídio, divertindo-se com nossas angústias, prevaleciam-se da situação anormal para

a qüal resvaláranos, a fim de convencer-nos de que eram juizes que nos deveriam julgar e castigar, apresentando-se às nossas faculdades conturbadas pelo sofrimento

como seres fantásticos, fantasmas impressionantes e trágicos. Inventavam cenas satânicas, com que nos supliciavam. Submetiam-nos a vexames indescritíveis! Obrigavam-nos

a torpezas e deboches, violentando-nos a compactuar de suas infames obscenidades! Donzelas que se haviam suicidado, desculpando-se com motivos de amor, esquecidas

de que o vero amor é paciente, virtuoso e obediente a Deus; olvidando, no egoísmo passional de que deram provas, o amor sacrossanto de uma mãe que ficara inconsolável;

desrespeitando as cãs veneráveis de um pai - os quais jamais esqueceriam o golpe em seus corações vibrados pela filha ingrata que preferiu a morte a continuar no

tabernáculo do lar paterno -, eram agora insultadas no seu coração e no seu pudor por essas entidades animalizadas e vis, que as faziam crer serem obrigadas a se

escravizarem por serem eles os donos do império de trevas que escolheram em detrimento do lar que abandonaram! Em verdade, porém, tais entidades não passavam de

Espíritos que também foram homens, mas que viveram no crime: -sensuais, alcoólatras, devassos, intrigantes, hipócritas, perjuros, traidores, sedutores, assassinos

perversos, caluniadores, sátiros - enfim, essa falange maléfica que infelicita a sociedade terrena, que muitas vezes tem funerais pomposos e exéquias solenes, mas

que na existência espiritual se resume na corja repugnante que mencionamos... até que reencarnações expiatórias, miseráveis e rastejantes, venham impulsioná-la a

novas tentativas de progresso.

A tão deploráveis seqüências sucediam-se outras não menos dramáticas e rescaldantes: - atos incorretos por nós praticados durante a encarnação, nossos erros,

nossas quedas pecaminosas, nossos crimes mesmo, corporificavam-se à frente de nossas consciências como outras visões acusadoras, intransigentes na condenação perene

a que nos submetiam. As vítimas do nosso egoísmo reapareciam agora, em reminiscências vergonhosas e contumazes, indo e vindo ao nosso lado em atropelos pertinazes,

infundindo em nossa já tão combalida organização espiritual o mais angustioso desequilíbrio nervoso forjado pelo remorso!

Sobrepondo-se, no entanto, a tão lamentável acervo de iniqüidades, acima de tanta vergonha e tão rudes humilhações existia, vigilante e compassiva, a paternal

misericórdia do Deus Altíssimo, do Pai justo e bom que "não quer a morte do pecador, mas que ele viva e se arrependa".

Nas peripécias que o suicida entra a curtir depois do desbarato que prematuramente o levou ao túmulo, o Vale Sinistro apenas representa um estágio temporário,

sendo ele para lá encaminhado por movimento de impulsão natural, com o qual se afina, até que se desfaçam as pesadas cadeias que o atrelam ao corpo físico-terreno,

destruído antes da ocasião prevista pela lei natural. Será preciso que se desagreguem dele as poderosas camadas de fluidos vitais que lhe revestiam a organização

física, adaptadas por afinidades especiais da Grande Mãe Natureza à organização astral, ou seja, ao perispírito, as quais nele se aglomeram em reservas suficientes

para o compromisso da existência completa; que se arrefeçam, enfim, as mesmas afinidades, labor que na individualidade de um suicida será acompanhado das mais aflitivas

dificuldades, de morosidade impressionante, para, só então, obter possibilidade vibratória que lhe faculte alívio e progresso (2). De outro modo, tal seja a feição

do seu caráter, tais os deméritos e grau de responsabilidades gerais - tal será o agravo da situação, tal a intensidade dos padecimentos a experimentar, pois, nestes

casos, não serão apenas as conseqüências decepcionantes do suicídio que lhe afligirão a alma, mas também o reverso dos atos pecaminosos anteriormente cometidos.

Periodicamente, singular caravana visitava esse antro de sombras.

Era como a inspeção de alguma associação caridosa, assistência protetora de instituição humanitária, cujos abnegados fins não se poderiam pôr em dúvida.

Vinha à procura daqueles dentre nós cujos fluidos vitais, arrefecidos pela desintegração completa da matéria, permitissem locomoção para as camadas do Invisível

intermediário, ou de transição.

Supúnhamos tratar-se, a caravana, de um grupo de homens. Mas na realidade eram Espíritos que estendiam a fraternidade ao extremo de se materializarem o suficiente

para se tornarem plenamente percebidos à nossa precária visão e nos infundirem confiança no socorro que nos davam.

Trajados de branco, apresentavam-se caminhando pelas ruas lamacentas do Vale, de um a um, em coluna rigorosamente disciplinada, enquanto, olhando-os atentamente,

distinguiríamos, à altura do peito de todos, pequena cruz azul-celeste, o que parecia ser um emblema, um distintivo.

(2) Às impressões e sensacões penosas, oriundas do corpo carnal, que acompanham o Espírito ainda materializado, chamaremos repercussões magnéticas, em virtude do

magnetismo animal, existente em todos os seres vivos, e suas afinidades com o perispírito. Trata-se de fenômeno idêntico ao que faz a um homem que teve o braço ou

a perna amputados sentir coceiras na palma da mão que já não existe com ele, ou na sola do pé, igualmente inexistente. Conhecemos em certo hospital um pobre operário

que teve ambas as pernas amputadas senti-las tão vivamente consigo, assim como os pés, que, esquecido de que já não os possuia, procurou levantar-se, levando, porém,

estrondosa queda e ferindo-se. Tais fenômenos são fáceis de observar.

Senhoras faziam parte dessa caravana. Precedia, porém, a coluna, pequeno pelotão de lanceiros, qual batedor de caminhos, ao passo que vários outros milicianos

da mesma arma rodeavam os visitadores, como tecendo um cordão de isolamento, o que esclarecia serem estes muito bem guardados contra quaisquer hostilidades que pudessem

surgir do exterior.

Com a destra o oficial comandante erguia alvinitente flâmula, na qual se lia, em caracteres também azul-celeste, esta extraordinária legenda, que tinha

o dom de infundir insopitável e singular temor:

- LEGIÃO DOS SERVOS DE MARIA -

Os lanceiros, ostentando escudo e lança, tinham tez bronzeada e trajavam-se com sobriedade, lembrando guerreiros egípcios da antigüidade. E, chefiando a

expedição, destacava-se varão respeitável, o qual trazia avental branco e insígnias de médico a par da cruz já referida. Cobria-lhe a cabeça, porém, em vez do gorro

característico, um turbante hindu, cujas dobras eram atadas à frente pela tradicional esmeralda, símbolo dos esculápios.

Entravam aqui e ali, pelo interior das cavernas habitadas, examinando seus ocupantes.

Curvavam-se, cheios de piedade, junto das sarjetas, levantando aqui e acolá algum desgraçado tombado sob o excesso de sofrimento; retiravam os que apresentassem

condições de poderem ser socorridos e colocavam-nos em macas conduzidas por varões que se diriam serviçais ou aprendizes.

Voz grave e dominante, de alguém invisível que falasse pairando no ar, guiava-os no caridoso afã, esclarecendo detalhes ou desfazendo confusões momentaneamente

suscitadas.

A mesma voz fazia a chamada dos prisioneiros a serem socorridos, proferindo seus nomes próprios, o que fazia que se apresentassem, sem a necessidade de serem

procurados, aqueles que se encontrassem em melhores condições, facilitando destarte o serviço dos caravaneiros. Hoje posso dizer que todas essas vozes amigas e protetoras

eram transmitidas através de ondas delicadas e sensíveis do éter, com o sublime concurso de aparelhamentos magnéticos mantido para fins humanitários em determinados

pontos do Invisível, isto é, justamente na localidade que nos receberia ao sairmos do Vale. Mas, então, ignorávamos o pormenor e muito confusos nos sentíamos.

As macas, transportadas cuidadosamente, eram guardadas pelo cordão de isolamento já referido e abrigadas no interior de grandes veículos à feição de comboios,

que acompanhavam a expedição. Esses comboios, no entanto, apresentavam singularidade interessante, digna de relato. Em vez de apresentarem os vagões comuns às estradas

de ferro, como os que conhecíamos, lembravam, antes, meio de transporte primitivo, pois se compunham de pequenas diligências atadas uma às outras e rodeadas de persiana.

muito espessas, o que impediria ao passageiro verificar os locais por onde deveria transitar.

Brancos, leves, como burilados em matérias específicas habilmente laqueadas, eram puxados por formosas parelhas de cavalos também brancos, nobres animais cuja

extraordinária beleza e elegância incomum despertariam nossa atenção se estivéssemos em condições de algo notar para além das desgraças que nos mantinham absorvidos

dentro de nosso âmbito pessoal. Dir-se-iam, porém, exemplares da mais alta raça normanda, vigorosos e inteligentes, as belas crinas ondulantes e graciosas enfeitando-lhes

os altivos pescoços quais mantos de seda, níveos e finalmente franjados. Nos carros distinguia-se também o mesmo emblema azul-celeste e a legenda respeitável.

Geralmente, os infelizes assim socorridos encontravam-se desfalecidos, exânimes, como atingidos de singular estado comatoso. Outros, no entanto, alucinados ou

doloridos, infundiriam compaixão pelo estado de supremo desalento em que se conservavam.

Depois de rigorosa busca, a estranha coluna marchava em retirada até o local em que se postava o comboio, igualmente defendido por lanceiros hindus. Silenciosamente

cortava pelos becos e vielas, afastava-se, afastava-se... desaparecendo de nossas vistas enquanto mergulhávamos outra vez na pesada solidão que nos cerca... Em vão

clamavam por socorro os que se sentiam preteridos, incapacitados de compreenderem que, se assim sucedia, era porque nem todos se encontravam em condições vibratórias

para emigrarem para regiões menos hostis. Em vão suplicavam justiça e compaixão ou se amotinavam, revoltados, exigindo que os deixassem também seguir com os demais.

Não respondiam os caravaneiros com um gesto sequer; a se algum mais desgraçado ou audacioso tentasse assaltar as viaturas a fim de atingi-las e nelas ingressar,

dez, vinte lanças faziam-no recuar, interceptando-lhe a passagem.

Então, um coro hediondo de uivos e choro sinistros, de pragas e gargalhadas satânicas, o ranger de dentes comum ao réprobo que estertor. nas trevas dos males

por si próprio forjados, repercutiam longa e dolorosa-mente pelas ruas lamacentas, parecendo que loucura coletiva atacara os míseros detentos, elevando suas raivas

ao incompreensível no linguajar humano!

E assim ficavam... quanto tempo?... Oh! Deus piedoso! Quanto?...

Até que suas inimagináveis condições de suicidas, de mortos-vivos, lhes permitissem também a transferência para localidade menos trágica...

2

Os réprobos

Em geral aqueles que se arrojam ao suicídio, para sempre esperam livrar-se de dissabores julgados insuportáveis, de sofrimentos e problemas considerados insolúveis

pela tibiez da vontade deseducada, que se acovarda em presença, muitas vezes, da vergonha do descrédito ou da desonra, dos remorsos deprimentes postos a enxovalharem

a consciência, conseqüências de ações praticadas à revelia das leis do Bem e da Justiça.

Também eu assim pensei, muito apesar da auréola de idealista que minha vaidade acreditava glorificando-me a fronte.

Enganei-me, porém; e lutas infinitamente mais vivas e mais ríspidas esperavam-me a dentro do túmulo a fim de me chicotearem a alma de descrente e revel, com

merecida justiça.

As primeiras horas que se seguiram ao gesto brutal de que usei, para comigo mesmo, passaram-se sem que verdadeiramente eu pudesse dar acordo de mim. Meu Espírito,

rudemente violentado, como que desmaiara, sofrendo ignóbil colapso. Os sentidos, as faculdades que traduzem o "eu" racional, paralisaram-se como se indescritível

cataclismo houvesse desbaratado o mundo, prevalecendo, porém, acima dos destroços, a sensação forte do aniquilamento que sobre meu ser acabara de cair. Fora como

se aquele estampido maldito, que até hoje ecoa sinistramente em minhas vibrações mentais -, sempre que, descerrando os véus da memória, como neste instante, revivo

o passado execrável - tivesse dispersado uma a uma as moléculas que em meu ser constituíssem a Vida!

A linguagem humana ainda não precisou inventar vocábulos bastante justos e compreensíveis para definir as impressões absolutamente inconcebíveis, que passam

a contaminar o "eu" de um suicida logo às primeiras horas que se seguem ao desastre, as quais sobem e se avolumam, envolvem-se em complexos e se radicam e cristalizam

num crescendo que traduz estado vibratório e mental que o homem não pode compreender, porque está fora da sua possibilidade de criatura que, mercê de Deus, se conservou

aquém dessa anormalidade. Para entendê-la e medir com precisão a intensidade dessa dramática surpresa, só outro Espírito cujas faculdades se houvessem queimado nas

efervescências da mesma dor!

Nessas primeiras horas, que por si mesmas constituiriam a configuração do abismo em que se precipitou, se não representassem apenas o prelúdio da diabólica sinfonia

que será constrangido a interpretar pelas disposições lógicas das leis naturais que violou, o suicida, semi-inconsciente, adormentado, desacordado sem que, para

maior suplício, se lhe obscureça de todo a percepção dos sentidos, sente-se dolorosamente contundido, nulo, dispersado em seus milhões de filamentos psíquicos violentamente

atingidos pelo malvado acontecimento.

Paradoxos turbilhonam em volta dele, afligindo-lhe a tenuidade das percepções com martirizantes girândolas de sensações confusas. Perde-se no vácuo... Ignora-se...

Não obstante aterra-se, acovarda-se, sente a profundidade apavorante do erro contra o qual colidiu, deprime-se na aniquiladora certeza de que ultrapassou os limites

das ações que lhe eram permitidas praticar, desnorteia-se entrevendo que avançou demasiadamente, para além da demarcação traçada pela Razão! É o traumatismo psíquico,

o choque nefasto que o dilacerou com suas tenazes inevitáveis, e o qual, para ser minorado, dele exigirá um roteiro de urzes e lágrimas, decênios de rijos testemunhos

até que se reconduza às vias naturais do progresso, interrompidas pelo ato arbitrário e contraproducente.

Pouco a pouco, senti ressuscitando das sombras confusas em que mergulhei meu pobre Espírito, após a queda. do corpo físico, o atributo máximo que a Paternidade

Divina impôs sobre aqueles que, no decorrer dos milênios, deverão refletir Sua imagem e semelhança: - a Consciência! a Memória! o divino dom de pensar!

Senti-me enregelar de frio. Tiritava! Impressão incômoda, de que vestes de gelo se me apegavam ao corpo, provocou-me inavaliável mal-estar. Faltava-me, ao demais,

o ar para o livre mecanismo dos pulmões, o que me levou a crer que, uma vez que eu me desejara furtar à vida, era a morte que se aproximava com seu cortejo de sintomas

dilacerantes.

Odores fétidos e nauseabundos, todavia, revoltavam-me brutalmente o olfato. Dor aguda, violenta, enlouquecedora, arremeteu-se instantaneamente sobre meu corpo

por inteiro, localizando-se particularmente no cérebro e iniciando-se no aparelho auditivo. Presa de convulsões indescritíveis de dor física, levei a destra ao ouvido

direito: - o sangue corria do orifício causado pelo projetil da arma de fogo de que me servira para o suicídio e manchou-me as mãos, as vestes, o corpo... Eu nada

enxergava, porém. Convém recordar que meu suicídio derivou-se da revolta por me encontrar cego, expiação que considerei superior às minhas forças, injusta punição

da Natureza aos meus olhos necessitados de ver, para que me fosse dado obter, pelo trabalho, a subsistência honrada e altiva.

Sentia-me, pois, ainda cego; e, para cúmulo do meu estado de desorientação, encontrava-me ferido. Tão-somente ferido e não morto! porque a vida continuava em

mim como antes do suicídio!

Passei a reunir idéias, mau grado meu. Revi minha vida em retrospecto, até à infância, e sem mesmo omitir o drama do último ato, programação extra sob minha

inteira responsabilidade. Sentindo-me vivo, averiguei, conseqüentemente, que o ferimento que em mim mesmo fizera, tentando matar-me, fora insuficiente, aumentando

assim os já tão grandes sofrimentos que desde longo tempo me vinham perseguindo a existência. Supus-me preso a um leito de hospital ou em minha própria casa. Mas

a impossibilidade de reconhecer o local, pois nada via; os incômodos que me afligiam, a solidão que me rodeava, entraram a me angustiar profundamente, enquanto lúgubres

pressentimentos me avisavam de que acontecimentos irremediáveis se haviam confirmado. Bradei por meus familiares, por amigos que eu conhecia afeiçoados bastante

para me acompanharem em momentos críticos. O mais surpreendente silêncio continuou enervando-me. Indaguei mal-humorado por enfermeiros, por médicos que possívelmente

me atenderiam, dado que me não encontrasse em minha residência e sim retido em algum hospital; por serviçais, criados, fosse quem fosse, que me obsequiar pudessem,

abrindo as janelas do aposento onde me supunha recolhido, a fim de que correntes de ar purificado me reconfortassem os pulmões; que me favorecessem coberturas quentes,

acendessem a lareira para amenizar a gelidez que me entorpecia os membros, providenciando bálsamo às dores que me supliciavam o organismo, e alimento, e água, porque

eu tinha fome e tinha sede!

Com espanto, em vez das respostas amistosas por que tanto suspirava, o que minha audição distinguiu, passadas algumas horas, foi um vozerio ensurdecedor, que,

indeciso e longínquo a princípio, como a destacar-se de um pesadelo, definiu-se gradativamente até positivar-se em pormenores concludentes. Era um coro sinistro,

de muitas vozes confundidas em atropelos, desnorteadas, como aconteceria numa assembléia de loucos.

No entanto, estas vozes não falavam entre si, não conversavam. Blasfemavam, queixavam-se de múltiplas desventuras, lamentavam-se, reclamavam, uivavam, gritavam

enfurecidas, gemiam, estertoravam, choravam desoladoramente, derramando pranto hediondo, pelo tono de desesperação com que se particularizava; suplicavam, raivosas,

socorro e compaixão!

Aterrado senti que estranhos empuxões, como arrepios irresistíveis, transmitiam-me influenciações abomináveis, provindas desse todo que se revelava através da

audição, estabelecendo corrente similar entre meu ser superexcitado e aqueles cujo vozerio eu distinguia. Esse coro, isócrono, rigorosamente observado e medido em

seus intervalos, infundiu-me tão grande terror que, reunindo todas as forças de que poderia o meu Espírito dispor em tão molesta situação, movimentei-me no intuito

de afastar-me de onde me encontrava para local eu' que não mais o ouvisse.

Tateando nas trevas tentei caminhar. Mas dir-se-ia que raízes vigorosas plantavam-me naquele lugar úmido e gelado em que me deparava. Não podia despegar-me! Sim!

Eram cadeias pesadas que me escravizavam, raízes cheias de seiva, que me atinham grilhetado naquele extraordinário leito por mim desconhecido, impossibilitando-me

o desejado afastamento. Aliás, como fugir se estava ferido, desfazendo-me em hemorragias internas, manchadas as vestes de sangue, e cego, positivamente cego! Como

apresentar-me a público em tão repugnante estado?...

A covardia - a mesma hidra que me atraira para o abismo em que agora me convulsionava - alongou ainda mais seus tentáculos insaciáveis e colheu-me irremediavelmente!

Esqueci-me de que era homem, ainda uma segunda vez! e que cumpria lutar para tentar vitória, fosse a que preço fosse de sofrimento! Reduzi-me por isso à miséria

do vencido! E, considerando insolúvel a situação, entreguei-me às lágrimas e chorei angustiosamente, ignorando o que tentar para meu socorro. Mas, enquanto me desfazia

em prantos, o coro de loucos, sempre o mesmo, trágico, funéreo, regular como o pêndulo de um relógio, acompanhava-me com singular similitude, atraindo-me como se

imanado de irresistíveis afinidades...

Insisti no desejo de me furtar à terrível audição. Após esforços desesperados, levantei-me.

Meu corpo enregelado, os músculos retesados por entorpecimento geral, dificultavam-me sobremodo o intento. Todavia, levantei-me. Ao fazê-lo, porém, cheiro penetrante

de sangue e vísceras putrefatos reacendeu em torno, repugnando-me até às náuseas. Partia do local exato em que eu estivera dormindo. Não compreendia como poderia

cheirar tão desagradavelmente o leito onde me achava. Para mim seria o mesmo que me acolhia todas as noites! E, no entanto, que de odores fétidos me surpreendiam

agora! Atribuí o fato ao ferimento que fizera na intenção de matar-me, a fim de explicar-me de algum modo a estranha aflição, ao sangue que corria, manchando-me

as vestes. Realmente! Eu me encontrava empastado de peçonha, como um lodo asqueroso que dessorasse de meu próprio corpo, empapando incomodativamente a indumentária

que usava, pois, com surpresa, surpreendi-me trajando cerimoniosamente, não obstante retido num leito de dor. Mas, ao mesmo tempo que assim me apresentava satisfações,

confundia-me na interrogação de como poderia assim ser, visto não ser cabível que um simples ferimento, mesmo a quantidade de sangue espargido, pudesse tresandar

a tanta podridão sem que meus amigos e enfermeiros deixassem de providenciar a devida higienização.

Inquieto, tateei na escuridão com o intuito de encontrar a porta de saída que me era habitual, já que todos me abandonavam em hora tão crítica. Tropecei, porém,

em dado momento, num montão de destroços e, instintivamente, curvei-me para o chão, a examinar o que assim me interceptava os passos. Então, repentinamente, a loucura

irremediável apoderou-se de minhas faculdades e entrei a gritar e uivar qual demônio enfurecido, respondendo na mesma dramática tonalidade à macabra sinfonia cujo

coro de vozes não cessava de perseguir minha audição, em intermitências de angustiante expectativa.

O montão de escombros era nada menos do que a terra de uma cova recentemente fechada!

Não sei como, estando cego, pude entrever, em meio as sombras que me rodeavam, o que existia em torno!

Eu me encontrava num cemitério! Os túmulos, com suas tristes cruzes em mármore branco ou madeira negra, ladeando imagens sugestivas de anjos pensativos, alinhavam-se

na imobilidade majestosa do drama em que figuravam.

A confusão cresceu: - Por que me encontraria ali? Como viera, pois nenhuma lembrança me acorria?... E o que viera fazer sozinho, ferido, dolorido, extenuado?...

Era verdade que "tentara" o suicídio, mas...

Sussurro macabro, qual sugestão irremovível da Consciência esclarecendo a memória aturdida pelo ineditismo presenciado, percutiu estrondosamente pelos recôncavos

alarmados do meu ser:

"Não quiseste o suicídio?... Pois aí o tens..."

Mas, como assim?... Como poderia ser... se eu não morrera?... Acaso não me sentia ali vivo?... Por que então sozinho, imerso na solidão tétrica da morada dos

mortos?...

Os fatos irremediáveis, porém, impõem-se aos homens como aos Espíritos com majestosa naturalidade. Não concluíra ainda minhas ingênuas e dramáticas interrogações,

e vejo-me, a mim próprio! como à frente de um espelho, morto, estirado num ataúde, em franco estado de decomposição, no fundo de uma sepultura, justamente aquela

sobre a qual acabava de tropeçar!

Fugi espavorido, desejoso de ocultar-me de mim mesmo, obsidiado pelo mais tenebroso horror, enquanto gargalhadas estrondosas, de indivíduos que eu não lograva

enxergar, explodiam atrás de mim e o coro nefasto perseguia meus ouvidos torturados, para onde quer que me refugiasse. Como louco que realmente me tornara, eu corria,

corria, enquanto aos meus olhos cegos se desenhava a hediondez satânica do meu próprio cadáver apodrecendo no túmulo, empastado de lama gordurosa, coberto de asquerosas

lesmas que, vorazes, lutavam por saciar em suas pústulas a fome inextinguível que traziam, transformando-o no mais repugnante e infernal monturo que me fora dado

conhecer!

Quis furtar-me à presença de mim mesmo, procurando incidir no ato que me desgraçara, isto é - reproduzi a cena patética do meu suicídio mentalmente, como se por

uma segunda vez buscasse morrer a fim de desaparecer na região do que, na minha ignorância dos fatos de além-morte, eu suponho o eterno esquecimento! Mas nada havia

capaz de aplacar a malvada visão! Ela era, antes, verdadeira! Imagem perfeita da realidade que sobre o meu físico-espiritual se refletia, e por isso me acompanhava

para onde quer que eu fosse, perseguia minhas retinas sem luz, invadia minhas faculdades anímica, imersas em choques e se impunha à minha cegueira de Espírito caído

em pecado, supliciando-me sem remissão!

Na fuga precipitada que empreendi, ia entrando em todas as portas que encontrava abertas, a fim de ocultar-me em alguma parte. Mas de qualquer domicílio a que

me abrigasse, na insensatez da loucura que me enredava, era enxotado a pedradas sem poder distinguir quem, com tanto desrespeito, assim me tratava. Vagava pelas

ruas tateando aqui, tropeçando além, na mesma cidade onde meu nome era endeusado como o de um gênio - sempre aflito e perseguido. A respeito dos acontecimentos que

com minha pessoa se relacionavam, ouvi comentários destilados em críticas mordazes e irreverentes, ou repassados de pesar sincero pelo meu trespasse, que lamentavam.

Tornei a minha casa. Surpreendente desordem estabelecera-se em meus aposentos, atingindo objetos de meu uso pessoal, meus livros, manuscritos e apontamentos,

os quais já não eram por mim encontrados no local costumeiro, o que muito me enfureceu. Dir-se-ia que se dispersara tudo! Encontrei-me estranho em minha própria

casa! Procurei amigos, parentes a quem me afeiçoara. A indiferença que lhes surpreendi em torno da minha desgraça chocou-me dolorosamente, agravando meu estado de

excitação. Dirigi-me então a consultórios médicos. Tentei fixar-me em hospitais, pois que sofria, sentia febre e loucura, supremo mal-estar torturava meu ser, reduzindo-me

a desolador estado de humilhação e amargura. Mas, a toda parte que me dirigia, sentia-me insocorrido, negavam-me atenções, despreocupados e indiferentes todos ante

minha situação. Em vão objurgatórias azedas saíam de meus lábios acompanhadas da apresentação, por mim próprio feita, do meu estado e das qualidades pessoais que

meu incorrigível orgulho reputava irresistíveis: - pareciam alheios às minhas insistentes algaravias, ninguém me concedendo sequer o favor de um olhar!

Aflito, insofrido, alucinado, absorvido meu ser pelas ondas de agoirantes amarguras, em parte alguma encontrava possibilidade de estabilizar-me a fim de lograr

conforto e alivio!

Faltava-me alguma coisa irremediável, sentia-me incompleto! Eu perdera algo que me deixava assim, entonteado, e essa "coisa" que eu perdera, parte de mim mesmo,

atraia-me para o local em que se encontrava, com as irresistíveis forças de um ímã, chamava-me imperiosa, irremediavelmente! E era tal a atraçãO que sobre mim exercia,

tal o vácuo que em mim produzira esse irreparável acontecimento, tão profunda a afinidade, verdadeiramente vital, que a essa "coisa" me unia - que, não sendo possível,

de forma alguma, fixar-me em nenhum local para que me voltasse, tornei ao sitio tenebroso de onde viera: - o cemitério!

Essa "coisa", cuja falta assim me enlouquecia, era o meu próprio corpo - o meu cadáver! - apodrecendo na escuridão de um túmulo! (3)

Debrucei-me, soluçante e inconsolável, sobre a sepultura que me guardava os míseros despojos corporais, e

(3) Certa vez, há cerca de vinte anos, um dos meus dedicados educadores espirituais - Charles - levou-me a um cemitério público do Rio de Janeiro, a fim de visitarmos

um suicida que rondava os próprios despojos em putrefação. Escusado será esclarecer que tal visita foi realizada em corpo astral. O perispírito do referido suicida,

hediondo qual demônio, infundiu-me pavor e repugnância. Apresentava-se completamente desfigurado e irreconhecível, coberto de cicatrizes, tantas cicatrizes quantos

haviam sido os pedaços a que ficara reduzido seu envoltório carnal, pois o desgraçado jogara-se sob as rodas de um trem de ferro, ficando despedaçado. Não há descrição

possível para o estado de sofrimento desse Espírito! Estava enlouquecido, atordoado, por vezes furioso, sem se poder acalmar para raciocinar, insensível a toda e

qualquer vibração que não fosse a sua imensa desgraça! Tentamos falar-lhe: - não nos ouvia! E Charles, tristemente, com acento indefinível de ternura, falou: - "Aqui,

só a prece terá virtude capaz de se impor! Será o único bálsamo que poderemos destilar em seu favor, santo bastante para, após certo período de tempo, poder aliviá-lo..."

- E essas cicatrizes?

perguntei, impressionada. - "Só desaparecerão - tomou Charles - depois da expiação do erro, da reparação em existências amargas, que requererão lágrimas ininterruptas,

o que não levará menos de um século, talvez muito mais... Que Deus se amerceie dele, porque, até lá... Durante muitos anos orei por esse infeliz irmão em minhas

preces diárias. - (Nota da médium)

estorci-me em apavorantes convulsões de dor e de raiva, rebolcando-me em crises de furor diabólico, compreendendo que me suicidara, que estava sepultado, mas que,

não obstante, continuava vivo e sofrendo, mais, muito mais do que sofria antes, superlativamente, monstruosamente mais do que antes do gesto covarde e impensado!

Cerca de dois meses vaguei desnorteado e tonto, em atribulado estado de incompreensão.

Ligado ao fardo carnal que apodrecia, viviam em mim todas as imperiosas necessidades do físico-humano, amargura que, aliada aos demais incômodos, me levava a

constantes desesperações. Revoltas, blasfêmias, crises de furor acometiam-me como se o próprio inferno soprasse sobre mim suas nefastas inspirações, assim coroando

as vibrações maléficas que me circulavam de trevas. Via fantasmas peranbulando pelas ruas do campo santo, não obstante minha cegueira, chorosos e aflitos, e, por

vezes, terrores inconcebíveis sacudiam-me o sistema vibratório a tal ponto que me reduziam a singular estado de desmaio, como se, sem forças para continuar vibrando,

minhas potências anímicas desfalecessem!

Desesperado em face do extraordinário problema, entregava-me cada vez mais ao desejo de desaparecer, de fugir de mim mesmo a fim de não mais interrogar-me sem

lograr lucidez para responder, incapaz de raciocinar que, em verdade, o corpo físico-material, modelado do limo putrescível da Terra, fora realmente aniquilado pelo

suicídio; e que o que agora eu sentia confundir-se com ele, porque solidamente a ele unido por leis naturais de afinidade que o suicídio absolutamente não destrói,

era o físico-espiritual, indestrutível e imortal, organização viva, semimaterial, fadada a elevados destinos, a porvir glorioso no seio do progresso infindável,

relicário onde se arquivam, qual o cofre que encerrasse valores, nossos sentimentos e atos, nossas realizações e pensamentos, envoltório que é da centelha sublime

que rege o homem, isto é, a Alma! eterna e imortal como Aquele que de Si Mesmo a criou!

Certa vez em que ia e vinha, tateando pelas ruas, irreconhecível a amigos e admiradores, pobre cego humilhado no além-túmulo graças à desonra de um suicídio;

mendigo na sociedade espiritual, faminto na miséria de Luz em que me debatia; angustiado fantasma vagabundo, sem lar, sem abrigo no mundo imenso, no mundo infinito

dos Espíritos; exposto a perigos deploráveis, que também os há entre desencarnados; perseguido por entidades perversas, bandoleiros da erraticidade, que gostam de

surpreeender, com ciladas odiosas, criaturas nas condições amargurosas em que me via, para escravizá-las e com elas engrossar as fileiras obsessoras que desbaratam

as sociedades terrenas e arruinam os homens levando-os às tentações mais torpes, através de influenciações letais - ao dobrar de uma esquina deparei com certa multidão,

cerca de duzentas individualidades de ambos os sexos. Era noite.

Pelo menos eu assim o supunha, pois, como sempre, as trevas envolviam-me, e eu, tudo o que venho narrando, percebia mais ou menos bem dentro da escuridão, como

se enxergasse mais pela percepção dos sentidos do que mesmo pela visão. Aliás, eu me considerava cego, mas não me explicando até então como, destituído do inestimável

sentido, possuía, não obstante, capacidade para tantas torpezas enxergar, ao passo que não a possuía sequer para reconhecer a luz do Sol e o azul do firmamento!

Essa multidão, entretanto, era a mesma que vinha concertando o coro sinistro que me aterrava, tendo-a eu reconhecido porque, no momento em que nos encontramos,

entrou a uivar desesperadamente, atirando aos céus blasfêmias diante das quais as minhas seriam meros gracejos!

Tentei recuar, fugir, ocultar-me dela, apavorado por me tornar dela conhecido. Porém, porque marchasse em sentido contrário ao que eu seguia, depressa me envol

veu, misturando-me ao seu todo para absorver-me completamente em suas ondas!

Fui levado de roldão, empurrado, arrastado mau grado meu; e tal era a aglomeração que me perdi totalmente em suas dobras. Apenas me inteirava de um fato, porque

isso mesmo ouvia rosnarem ao redor, e era que estávamos todos guardados por soldados, os quais nos conduziam. A multidão acabava de ser aprisionada! Ácada momento

juntava-se, a ela outro e outro vagabundo, como acontecera comigo, e que do mesmo modo não mais poderiam sair.

Dir-se-ia que esquadrão completo de milicianos montados conduzia-nos à prisão.

Ouviam-Se as patadas dos cavalos sobre o lajedo das ruas e lanças afiadas luziam na escuridão, impondo temor.

Protestei contra a violência de que me reconhecia alvo. Em altas vozes bradei que não era criminoso e dei-me a conhecer, enumerando meus títulos e qualidades.

Mas os cavaleiros, se me ouviam, não se dignavam responder. Silenciosos, mudos, eretos, marchavam em suas montadas fechando-nos em círculo intransponível! À frente

o comandante, abrindo caminho dentro das trevas, empunhava um bastão no alto do qual flutuava pequena flâmula, onde adivinhávamos uma inscrição. Porém eram tão acentuadas

as sombras que não poderíamos lê-la, ainda que o desespero que nos vergastava permitisse pausa para manifestarmos tal desejo.

A caminhada foi longa. Frio cortante enregelava-nos. Misturei minhas lágrimas e meus brados de dor e desespero ao coro horripilante e participei da atroz sinfonia

de blasfêmias e lamentações. Pressentíamos que bem seguros estávamos, que jamais poderíamos escapar!

Tocados vagarosamente, sem que um único monossílabo lográssemos arrancar aos nossos condutores, começamos, finalmente, a caminhar penosamente por um vale profundo,

onde nos vimos obrigados a enfileirar-nos de dois a dois, enquanto faziam idêntica manobra os nossos vigilantes.

Cavernas surgiram de um lado e outro das ruas que se diriam antes estreitas gargantas entre montanhas abruptas e sombrias, e todas numeradas. Tratava-se, certamente,

de uma estranha "povoação", uma "cidade" em que as habitações seriam cavernas, dada a miséria de seus habitantes, os quais não possuiriam cabedais suficientes para

torná-las agradáveis e facilmente habitáveis. O que era certo, porém, é que tudo ali estava por fazer e que seria bem aquela a habitação exata da Desgraça! Não se

distinguiria terreno, senâç pedras, lamaçais ou pântanos, sombras, aguaceiros... Sob os ardores da febre excitante da minha desgraça, cheguei a pensar que, se tal

região não fosse um pequeno recôncavo da Lua, existiriam por lá, certamente, locais muito semelhantes...

Internavam-nos cada vez mais naquele abismo... Seguíamos, seguiamos... E, finalmente, no centro de grande praça encharcada qual um pântano, os cavaleiros fizeram

alto. Com elas estacou a multidão.

Em meio do silêncio que repentinamente se estabeleceu, viu-se que a soldadesca voltava sobre os próprios passos a fim de retirar-se.

Com efeito! Um a um vimos que se afastavam todos nas curvas tortuosas das vielas lamacentas, abandonando-nos ali.

Confusos e atemorizados seguimos ao seu encalço, ansiosos por nos afastarmos também.

Mas foi em vão! As ruelas, as cavernas e os pântanos se sucediam, baralhando-se num labirinto em que nos perdíamos, pois, para onde nos dirigíssemos, depararíamos

sempre o mesmo cenário e a mesma topografia. Inconcebível terror aposSou-se da estranha malta. Por minha vez, não poderia sequer pensar ou refletir, procurando solução

para o momento.

Sentia-me como que envolvido nos tentáculos de horrível pesadelo, e, quanto maiores esforços tentava para racionalmente explicar-me o que se passava, menos compreendia

os acontecimentos e mais apoucado me confessava no assombro esmagador!

Meus companheiros eram hediondos, como hediondos também se mostravam os demais desgraçados que nesse vale maldito encontráramos, os quais nos receberam entre

lágrimas e estertores idênticos aos nossos. Feios, deixando ver fisionomias alarmadas pelo horror; esqüálidos, desfigurados pela intensidade dos sofrimentos; desalinhados,

inconcebívelmente trágicos, seriam irreconhecíveis por aqueles mesmos que os amassem, aos quais repugnariam! Pus-me a bradar desesperadamente, acometido de odiosa

fobia do Pavor! O homem normal, sem que haja caído nas garras da demência, não será capaz de avaliar o que entrei a padecer desde que me capacitei de que o que via

não era um sonho, um pesadelo motivado pela deplorável loucura da embriaguez! Não! Eu não era um alcoólatra para assim me surpreender nas garras de tão perverso

delírio! Não era tampouco o sonho, o pesadelo, a criar em minha mente, prostituída pela devassidão dos costumes, o que aos meus olhos alarmados por infernal surpresa

se apresentava como a mais pungente realidade que os infernos pudessem inventar - a realidade maldita, assombrosa, feroz! - criada por uma falange de réprobos

do suicídio aprisionada no meio ambiente cabível ao seu critico e melindroso estado, como cautela e caridade para com o gênero humano, que não suportaria, sem grandes

confusões e desgraças, a intromissão de tais infelizes em sua vida cotidiana! (4)

Sim! imaginai uma assembléia numerosa de criaturas disformes - homens e mulheres - caracterizada pela alucinação de cada uma, correspondente a casos íntimos,

trajando, todos, vestes como que empastadas do lodo das sepulturas, com feições alteradas e doloridas estampando os estigmas de sofrimentos cruciantes! Imaginai

uma localidade, uma povoação envolvida em densos véus de penumbra, gélida e asfixiante, onde se aglomerassem habitantes de além-túmulo abatidos pelo suicídio, ostentando,

cada um, o ferrete infame do gênero de morte escolhido no intento de ludibriar a Lei Divina - que lhes concedera a vida corporal terrena como precioso

(4) Efetivamente, no além-túlmulo, as vibrações mentais longamente viciadas do alcoólatra, do sensual, do cocainômano, etc., etc., poderão criar e manter visões

e ambientes nefastos, pervertidos. Se, além do mais, trazem os desequilíbrios de um suicídio, a situação poderá atingir proporcões inconcebíveis.

ensejo de progresso, inavaliável instrumento para a remissão de faltas gravosas do pretérito!

Pois era assim a multidão de criaturas que meus olhos assombrados deparavam nas trevas que lhes eram favoráveis ao terrível gênero de percepção, esquecido, na

insânia do orgulho que a mim era próprio, que também eu pertencia a tão repugnante todo, que era igualmente um feio alucinado, um pastoso ferreteado!

Eu via por aqui, por ali, estes traduzindo, de quando em quando, em cacoetes nervosos, as ânsias do enforcamento, esforçando-se, com gestos instintivos, altamente

emocionantes, por livrarem o pescoço, intumescido e violáceo, dos farrapos de cordas ou de panos que se refletiam nas repercussões perispirituais, em vista das desarmoniosas

vibrações mentais que permaneciam torturando-os! Aqueles, indo e vindo como loucos, em correrias espantosas, bradando por socorro em gritos estentóricos, julgando-se,

de momento a momento, envolvidos em chamas, apavorando-se com o fogo que lhes devorava o corpo físico e que, desde então, ardia sem tréguas nas sensibilidades semimateriais

do perispírito! Estes últimos, porém, eu notava serem, geralmente, mulheres.

Eis que apareciam outros ainda: o peito ou o ouvido, ou a garganta banhados em sangue, oh! sangue inalterável, permanente, que nada conseguia verdadeiramente

fazer desaparecer das sutilezas do físico-espiritual senão a reencarnação expiatória e reparadora! Tais infelizes, além das múltiplas modalidades de penúriaa por

que se viam atacados, deixavam-se estar preocupados sempre, a tentarem estancar aquele sangue jorrante, ora com as mãos, ora com as vestes ou outra qualquer coisa

que supunham ao alcance, sem no entanto jamais o conseguirem, pois tratava-se de um deplorável estado mental, que os incomodava e impressionava até ao desespero!

A presença destes desgraçados impressionava até à loucura, dada a inconcebível dramaticidade dos gestos isócronos, inalteráveis, a que, mau grado próprio, se viam

forçados! E ainda estoutros sufocando-se na bárbara asfixia do afogamento, bracejando em ânsias furiosas à procura de algo que os pudesse socorrer, tal como sucedera

à hora extrema e que suas mentes registraram, ingerindo água em gorgolejos ininterruptos, exaustivos, prolongando indefinidamente cenas de agonia selvagem, as quais

alhos humanos seriam incapazes de presenciar sem se tingirem de demência!

Porém havia mais ainda!... E o leitor perdoe àminha memória estas minudências talvez desinteressantes para o seu bom-gosto literário, mas úteis, certamente, como

advertência ao seu possível caráter impetuoso, chamado a viver as inconveniências de um século em que o "morbus" terrível do suicídio se tornou mal endêmico. Não

pretendemos, aliás, apresentar obra literária para deleitar gosto e temperamento artísticos. Cumprimos um dever sagrado, tão-somente, procurando falar aos que sofrem,

dizendo a verdade sobre o abismo que, com malvadas seduções, há perdido muita alma descrente em meio dos desgostos comuns à vida de cada um!

Entretanto, bem próximo ao local em que me encurralara procurando refugiar-me da récua sinistra, destacava-se, por fealdade impressionante, meia dúzia de desgraçados

que haviam procurado o "olvido eterno", atirando-se sob as rodas de um trem de ferro. Trazendo os perispíritos desfigurados, dir-se-iam a armadura de monstruosa

aberração, as vestes em farrapos esvoaçantes, cobertos de cicatrizes sanguinolentas, retalhadas, confusas, num emaranhado de golpes e sobre golpes, tal se fotografada

fora, naquela placa sensível e sutil, isto é, o perispírito, a deplorável condição a que o suicídio lhes reduzira o envoltório carnal - esse templo, ó meu Deus,

que o Divino Mestre recomenda como veículo precioso e eficiente para nos auxiliar na caminhada em busca das gloriosas conquistas espirituais!

Enlouquecidos por sofrimentos superlativos, possuídos da suprema aflição que atingir possa a alma originada da centelha divina, representando aos olhos pávídos

do observador o que o Invisível inferior mantém de mais trágico, mais emocionante e horrível, esses desgraçados uivavam em lamentações tão dramáticas e impressionantes

que imediatamente contagiavam com suas influenciações dolorosas quem quer que se encontrasse indefenso em seu caminho, o qual entraria a co-participar da loucura

inconsolável de que se acompanhavam... pois o terrível gênero de suicídio, dos mais deploráveis que temos a registrar em nossas páginas, abalara-lhes tão violenta

e profundamente a organização nervosa e sensibilidades gerais do corpo astral, congêneres daquela que traumatizara a todas, entorpecendo, graças à brutalidade usada,

até mesmo os valores da inteligência, que, por isso mesmo, jazia incapaz de orientar-se, dispersa e confusa em meio do caos que se formara ao redor de si!

A mente edifica e produz. O pensamento - já bastantes vezes declararam - é criador, e, portanto, fabrica, corporifica, retém imagens por si mesmo engendradas,

realiza, segura o que passou e, com poderosas garras, conserva-o presente até quando desejar!

Cada um de nós, no Vale Sinistro, vibrando violentamente e retendo com as forças mentais o momento atroz em que nos suicidamos, criávamos os cenários e respectivas

cenas que vivêramos em nossos derradeiros momentos de homens terrestres. Tais cenas, refletidas ao redor de cada um, levavam a confusão à localidade, espalhavam

tragédia e inferno por toda a parte, seviciando de aflições superlativas os desgraçados prisioneiros. Assim era que se deparavam, aqui e ali, forcas erguidas, baloiçando

o corpo do próprio suicida, que evocava a hora em que se precipitara na morte voluntária. Veículos variados, assim como comboios fumegantes e rápidos, colhiam e

trituravam, sob suas rodas, míseros tresloucados que buscaram matar o próprio corpo por esse meio execrável, os quais, agora, com a mente "impregnada" do momento

sinistro, retratavam sem cessar o episódio, pondo à visão dos companheiros afins suas hediondas recordações! (4-A) Rios caudalosos e mesmo trechos

(4-A) Em várias sessões práticas a que tivemos ocasião de assistir em organizações espíritas do Estado de Minas Gerais, os videntes eram concordes em afirmar que

não percebiam apenas o Espírito atribulado do suicida a comunicar-se, mas também a cena do próprio suicídio, desvendando-se às suas faculdades mediúnicas o momento

supremo da trágica ocorrência. - (Nota da médium)

alongados de oceano surgiam repentinamente no meio daquelas vielas sombrias: - era meia dúzia de réprobos que passava enlouquecida, deixando à mostra cenas de afogamento,

por arrastarem na mente conflagrada a trágica lembrança de quando se atiraram às suas águas!...

Homens e mulheres transitavam desesperados: uns ensangüentados, outros estorcendo-se no suplício das 'dores pelo envenenamento, e, o que era pior, deixando

à mostra o reflexo das entranhas carnais corroídas pelo tóxico ingerido, enquanto outrol mais, incendiado, a gritarem por socorro em correrias insensatas, traziam

pânico ainda maior entre os companheiros de desgraça, os quais receavam queimar-se ao seu contacto, todos possuidos de loucura coletiva!

E coroando a profundeza e intensidade desses inimagináveis martírios - as penas morais: os remorsos, as saudades dos seres amados, dos quais se não tinham

notícias, os mesmos dissabores que haviam dado causa ao desespero e que persistiam em afligir!... E as penas físico-materiais: - a fome, o frio, a sede, exigências

fisiológicas em geral, torturantes, irritantes, desesperadoras! a fadiga, a insônia depressora, a fraqueza, o delíquio!

Necessidades imperiosas, desconforto de toda espécie, insolúveis, a desafiarem possibilidades de suavização - oh! a visão insidiosa e melutável do cadáver

apodrecendo, seus fétidos asquerosos, a repercussão, na mente excitada, dos vermes a consumirem o lodo carnal, fazendo que o desgraçado mártir se supusesse igualmente

atacado de podridão!

Coisa singular! Essa escória trazia, pendente de si, fragmentos de cordão luminoso, fosforescente, o qual, despedaçado, como arrebentado violentamente, desprendia-se

em estilhas qual um cabo compacto de fios elétricos arrebentados, a desprenderem fluidos que deveriam permanecer organizados para determinado fim. Ora, esse pormenor,

aparentemente insignificante, tinha, ao contrário, importância capital, pois era juntamente nele que se estabelecia a desorganização do estado de suicida. Hoje sabemos

que esse cordão fluídico-magnético, que liga a alma ao envoltório carnal e lhe comunica a vida, somente deverá estar em condições apropriadas para deste separar-se

por ocasião da morte natural, o que então se fará naturalmente, sem choque, sem violência. Com o suicídio, porém, uma vez partido e não desligado, rudemente arrancado,

despedaçado quando ainda em toda a sua pujança fluídica e magnética, produzirá grande parte dos desequilíbrios, senão todas que vimos anotando, uma vez que, na constituição

vital para a existência que deveria ser, muitas vezes, longa, a reserva de forças magnéticas não se haviam extinguido ainda, o que leva o suicida a sentir-se um

"morto-vivo" na mais expressiva significação do termo. Mas, na ocasião em que pela primeira vez o notáramos, desconhecíamos o fato natural, afigurando-se-nos um

motivo a. mais para confusões e terrores.

Tão deplorável estado de coisas, para a compreensão do qual o homem não possui vocabulário nem imagens adequadas, prolonga-se até que as reservas de forças vitais

e magnéticas se esgotem, o que varia segundo o grau de vitalidade de cada um. O próprio caráter individual influi na prolongação do melindroso estado, quando o padecente

for mais ou menos afeito às atrações dos sentidos materiais, grosseiros e inferiores. É pois um complexo que se estabelece, que só o tempo, com extensa cauda de

sofrimentos, conseguirá corrigir.

Um dia, profundo alquebramento sucedeu em meu ser a prolongada excitação. Fraqueza insólita conservou-me aquietado, como desfalecido. Eu e muitos outros cômpares

de minha falange estávamos extenuados, incapazes de resistirmos por mais tempo a tão desesperadora situação. Urgência de repouso fazia-nos desmaiar freqüentemente,

obrigando-nos ao recolhimento em nossas desconfortáveis cavernas.

Não se tinham passado, porém, sequer vinte e quatro horas desde que o novo estado nos surpreendera, quando mais uma vez fomos alarmados pelo significativo rumor

daquele mesmo "comboio" que já em outras ocasiões havia aparecido em nosso Vale.

Eu compartilhava o mesmo antro residencial de quatro outros indivíduos, como eu portugueses, e, no decorrer do longo martírio em comum, tornáramo-nos inseparáveis,

à força de sofrermos juntos no mesmo tugúrio de dor. Dentre todos, porém, um sobremaneira me irritava, predispondo-me à discussão, com o usar, apesar da situação

precária, o monóculo inseparável, o fraque bem talhado e respectiva bengala de castão de ouro, conjunto que, para o meu conceito neurastênico e impertinente, o tornava

pedante e antipático, num local onde se vivia torturado com odores fétidos e podridão e em que nossa indumentária dir-se-ia empastada de estranhas substâncias gordurosas,

reflexos mentais da podridão elaborada em torno do envoltório carnal. Eu, porém, esquecia-me de que continuava a usar o "pince-nez" com seu fio de torçal, a sobrecasaca

dos dias cerimoniosos, os bigodes fartos penteados... Confesso que, então, apesar da longa convivência, lhes não conhecia os nomes. No Vale Sinistro a desgraça é

ardente demais para que se preocupe o calceta com a identidade alheia...

O conhecido rumor aproximava-se cada vez mais...

Saímos de um salto para a rua... Vielas e praças encheram-se de réprobos como das passadas vezes, ao mesmo tempo que os mesmos angustiosos brados de socorro

ecoavam pelas quebradas sombrias, no intuito de despertarem a atenção dos que vinham para a costumeira vistoria...

Até que, dentro da atmosfera densa e penumbrosa, surgiram os carros brancos, rompendo as trevas com poderosos holofotes.

Estacionou o trem caravaneiro na praça lamacenta. Desceu um pelotão de lanceiros. Em seguida, damas e cavalheiros, que pareciam enfermeiros, e mais o chefe da

expedição, o qual, como anteriormente esclarecemos, se particularizava por usar turbante e túnica hindus.

Silenciosos e discretos iniciaram o reconhecimento daqueles que seriam socorridos. A mesma voz austera que se diria, como das vezes anteriores, vibrar no ar,

fez, pacientemente, a chamada dos que deveriam ser recolhidos, os quais, ouvindo os próprios nomes, se apresentavam por si mesmos.

Outros, porém, por não se apresentarem a tempo, impunham aos socorristas a necessidade de procurá-los. Mas a estranha voz indicava o lugar exato em que estariam

os míseros, dizendo simplesmente:

Abrigo número tal... Rua número tal...

Ou, conforme a circunstância:

- Dementado... Inconsciente... Não se encontra no abrigo... Vagando em tal rua... Não atenderá pelo nome... Reconhecível por esta ou aquela particularidade...

Dir-se-ia que alguém, de muito longe, assestava poderosos telescópios até nossas desgraçadas moradas, para assim informar detalhadamente do momento decorrente

a expedição laboriosa...

Os obreiros da Fraternidade consultavam um mapa, iam rapidamente ao local indicado e traziam os mencionados, alguns carregados em seus braços generosos, outros

em padiolas...

De súbito ressoou na atmosfera dramática daquele inferno onde tanto padeci, repercutindo estrondosamente pelos mais profundos recôncavos do meu ser, o meu nome,

chamado para a libertação! Em seguida, ouviram-se os dos quatro companheiros que comigo se achavam presentes na praça. Foi então que lhes conheci os nomes e eles

o meu.

Disse a voz longínqua, como servindo-se de desconhecido e poderoso alto-falante:

- Abrigo número 36 da rua número 48 - Atenção!... Abrigo número 36 - Ingressar no comboio de socorro - Atenção!... - Camilo Cândido Botelho -Belarmino de Queiroz

e Souza - Jerônimo de Araújo Silveira - João d'Azevedo - Mário Sobral - Ingressarem no comboio... (4-B)

Foi entre lágrimas de emoção indefinível que galguei os pequenos degraus da plataforma que um enfermeiro indicava, atencioso e paciente, enquanto os policiais

fechavam cerco em torno de mim e de meus quatro Companheiros, evitando que os desgraçados que ainda ficavam subissem conosco ou nos arrastassem no seu turbilhão,

criando a confusão e retardando por isso mesmo o regresso da expedição.

Entrei. Eram carros amplos, cômodos, confortáveis, cujas poltronas individuais como que estofadas com arminho branco apresentavam o espaldar voltado para os

respiradores, que dir-se-iam os óculos das modernas aeronaves terrenas. Ao centro quatro poltronas em feitio idêntico, onde se acomodaram enfermeiros, tudo indicando

que ali permaneciam a fim de guardar-nos. Nas portas de entrada lia-se a legenda entrevista antes, na flâmula empunhada pelo comandante do pelotão de guardas:

Legião dos Servos de Maria

Dentro em pouco a tarefa dos abnegados legionários estava cumprida. Ouviu-se no interior o tilintar abafado de uma campainha, seguido de movimento rápido de

suspensão de pontes de acesso e embarque dos obreiros. Pelo menos foi essa a série de imagens mentais que concebi...

O estranho comboio oscilou sem que nenhuma sensação de galeio e o mais leve balanço impressionassem nossa sensibilidade. Não contivemos as lágrimas, porém,

em ouvindo o ensurdecedor coro de blasfêmias, a grita desesperada e selvagem dos desgraçados que ficavam, por não suficientemente desmaterializados ainda para atingirem

camadas invisíveis menos compactas.

(4-B) Perdoar-me-á o leitor o não transcrever na íntegra os nomes destas personagens, tal como foram revelados pelo autor destas páginas. - (Nota da médium)

Eram senhoras que nos acompanhavam, por nós velando durante a viagem. Falaram-nos com doçura, convidando-nos ao repouso, afirmando-nos solidariedade. Acomodaram-nos

cuidadosamente nas almofadas das poltronas, quais desveladas, bondosas irmãs de Caridade...

Afastava-se o veículo... A pouco e pouco a cerração de cinzas se ia dissipando aos nossos olhos torturados, durante tantos anos, pela mais cruciante das cegueiras:

- a da consciência culpada!

Apressava-se a marcha... O nevoeiro de sombras ficava para trás como pesadelo maldito que se extinguisse ao despertar de um sono penoso.... Agora as estradas

eram amplas e retas, a se perderem de vista... A atmosfera fazia-se branca como neve... Ventos fertilizantes sopravam, alegrando o ar...

Deus Misericordioso!... Havíamos deixado o Vale Sinistro!...

Lá ficara ele, perdido nas trevas do abominável!...

Lá ficara, incrustado nos abismos invisíveis criadas pelo pecado dos homens, a fustigar a alma daquele que se esqueceu do seu Deus e Criador!

Comovido e pávido, pude, então, elevar o pensamento à Fonte Imortal do Bem Eterno, para humildemente agradecer a grande mercê que recebia!

3

No Hospital "Maria de Nazaré"

Depois de algum tempo de marcha, durante o qual tínhamos a impressão de estar vencendo grandes distâncias, vimos que foram descerradas as persianas, facultando-nos

possibilidade de distinguir, no horizonte ainda afastado, severo conjunto de muralhas fortificadas, enquanto pesada fortaleza se elevava impondo respeitabilidade

e temor na solidão de que se cercava.

Era uma região triste e desolada, envolvida em neblinas como se toda a paisagem fora recoberta pelo sudário de continuadas nevadas, conquanto oferecendo possibilidades

de visão. Não se distinguia, iniciahnente, vegetação nem sinais de habitantes pelos arredores da fortaleza imensa. Apenas longas planícies brancas, colinas salpicando

a vastidão, assemelhando-se a montículos acumulados pela neve. E ao fundo, plantadas no centro dessa nostalgia desoladora, muralhas ameaçadoras, a fortaleza grandiosa,

padrão das velhas fortificações medievais, tendo por detalhe primordial meia dúzia de torres cujas linhas grandemente sugestivas despertariam a atenção de quem por

ali transitasse.

Funda inquietação percutiu rijamente em nossas sensibilidades, aviventando receios algo acomodados durante o trajeto.

Que nos esperaria para além de tão sombrias fronteiras?... Pois era evidente que para ali nos conduziam...

Vista, a distância, a edificação apavorava, sugerindo rigores e disciplinas austeras...

Assaltou-nos tal impres de poder, grandeza e majestade que nos sentimos ínfimos, acovardados só no avistá-la.

Aproximando-se cada vez mais, o comboio finalmente estacou fronteiro a um grande portão, que seria a entrada principal.

Para além da cornija, caprichosamente trabalhada, e urdida em letras artísticas e graúdas, lia-se em idioma português esta inscrição já nossa conhecida, a qual,

como por encanto, serenou nossa agitação logo que a descobrimos:

Legião dos Servos de Maria

seguindo-se esta indicação que, emocionante, compeliu-nos a novas apreensões:

Colônia Correcional

Sem resposta às indagações confusas do pensamento ainda lerdo e atordoado pelas longas dilacerações que me vinham perseguindo havia muito, desobriguei-me de averiguações

e deixei que os fatos seguissem livre curso, percebendo que meus companheiros faziam o mesmo.

Não faltava à fortaleza nem mesmo a defesa exterior de um fosso. Uma ponte desceu sobre ele e o comboio venceu o empecilho fazendo-nos ingressar definitivamente

nessa Colônia, não isentados, porém, de sérias preocupações quanto ao futuro que nos aguardava. De entrada, notamos pelas imediações numerosos militares, qual se

ali se aquartelasse um regimento. Entretanto, estes muito se assemelhavam aos antigos soldados egípcios e hindus, o que muito nos admirou. Sobre o pórtico da torre

principal lia-se esta outra inscrição, parecendo-nos tudo muito interessante, como um sonho que nos cumulasse de incertezas:

Torre de Vigia

Em que localidade estaríamos?... Voltaríamos a Portugal?... Viajaríamos através de algum país desco nhecido, enquanto a neve se espalhava dominando a paisagem?...

Passamos sem estacionar por essa grande praça militar, certo de que se trataria de uma fortificação guerreira idêntica às da Terra, conquanto revestida de indefinível

nobreza, inexistente nas congêneres que conhecêramos através da Europa, pois não poderíamos, então, avaliar a verdadeira finalidade da sua existência naquelas regiões

desoladas do Invisível inferior, cercadas de perigo, bem mais sérios do que os que poderíamos presumir.

Com surpresa verificamos que entrávamos em cidade movimentadíssima, conquanto recoberta por extenso. véus de neve, ou cerração pesada. Não fazia, porém, frio

intenso, o que nos surpreendeu, e o Sol, mostrando-se a medo entre a cerração, deixava ocasião não só para nos aquecermos, mas também para distinguirmos o que houvesse

em derredor.

Edifícios soberbos impunham-se à apreciação, apresentando o formoso estilo português clássico, que tanto nos falava à alma. Indivíduos atarefados, neles entravam

e dele saíam em afanosa movimentação, todos uniformizados com longos aventais brancos, ostentando ao peito a cruz azul-celeste ladeada pelas iniciais: L. S. M.

Dir-se-iam edifícios, ministérios públicos ou departamentos. Casas residenciais alinhavam-se, graciosas e evocativas na sua estilização nobre e superior, traçando

ruas artísticas que se estendiam laqueadas de branco, como que asfaltadas de neve. A frente de um daqueles edifícios parou o comboio e fomos convidados a descer.

Sobre o pórtico definia-se sua finalidade em letras visíveis:

Departamento de Vigilância

(Seção de Reconhecimento e Matricula)

Tratava-me da sede do Departamento onde seríamos reconhecidos e matriculados pela direção, como internos da Colônia. Daquele momento em diante estaríamos

sob a tutela direta de uma das mais importantes agremiações pertencente. à Legião chefiada pelo grande Espírito Maria de Nazaré, ser angélico e sublime que na Terra

mereceu a missão honrosa de seguir, com solicitudes maternais, Aquele que foi o redentor dos homens!

Conduzidos a um pátio extenso e nobre, que lembraria antigos claustros de Portugal, fomos em seguida transportados em pequenos grupos de dez individualidades,

para determinado gabinete onde vários funcionários colaboravam nos trabalhos de registro. Ali deixaríamos a identidade terrena, bem assim as razões que nos induziram

ao suicídio, o gênero do mesmo como o local em que jazeram os despojos. Caso o recém-chegado não estivesse em condições de responder, o chefe da expedição supriria

rapidamente a insuficiência, pois mantinha-se presente à cerimônia, dando contas ao diretor do Departamento da importante missão que acabava de desempenhar. Tão

árduo trabalho, em torno de toda uma falange, levara quando muito dois quartos de hora, porqüanto os processos usados não eram idêntico. aos conhecidos nas repartições

terrenas. As respostas dos pacientes seriam antes gravadas em discos singulares, espécie de álbuns animados de cenas e movimentos, graças ao concurso de aparelhamentos

magnéticos especiais. Tais álbuns reproduziriam até mesmo o som de nossa voz, como nossa imagem e o prolongamento do noticiário sobre nós mesmos, desde que posto

em contacto com admirável maquinismo apropriado ao feito, exatamente como discos e filmes na Terra reproduzem a voz humana e todas as demais variedades de sons e

imagens neles existentes e que devam ser retidos e conservados. Nossa identidade, portanto, era antes fotografada: as imagens emitidas por nossos pensamentos, no

ato das respostas às perguntas formuladas, seriam captada. por processos que na ocasião escapavam à nossa compreensão.

Durante muito tempo perdemos de vista as mulheres que conosco haviam chegado ao Departamento de Vigilância. Os regulamentos da Colônia impunham a necessidade

de separá-las de seus companheiros de desventura.

Assim sendo, logo à chegada e imediatamente depois da matricula, foram confiadas às damas funcionárias da Vigilância a fim de serem encaminhadas aos Departamentos

Femininos. Desde, portanto, que nos matriculavam, éramos separados do elemento feminino.

Dentro em pouco, entregues a novos servidores, cujas operosidades se desenrolavam aquém dos muros da instituição, fomos compelidos ao ingresso em novos meios

de transporte, que tudo indicava serem para uso dos perímetros internos, porqüanto nos cumpria continuar a marcha, iniciada desde o Vale.

Nossas viaturas agora eram leves e graciosas, quais trenós ligeiros e confortáveis, puxados pelas mesmas admiráveis parelhss de cavalos normandos, e com capacidade

para dez passageiros cada um. Ao cabo de uma hora de corrida moderada, durante a qual deixávamos para trás o bairro da Vigilância, penetrando, por assim dizer, o

campo, porque avançando em região despovoada, conquanto as estradas se apresentassem caprichosamente projetadas, orladas de arbustos níveos quais flores dos Alpes,

avistamos grandes marcos, como arcos de triunfo, assinalando o ingresso em novo Departamento, nova província dessa Colônia Correcional localizada nas fronteiras

invisíveis da Terra com a Espiritualidade propriamente dita.

Com efeito. Lá estava a indicação necessária entestando a arcada principal, norteando o recém-chegado por auxiliá-lo no esclarecimento de possíveis dúvidas:

Departamento Hospitalar

A um e outro lado destacavam-se outras em que setas indicavam o início de novos trajetos, enquanto novas inscrições satisfaziam a curiosidade ou necessidade do

viajante:

A direita - Manicômio.

A esquerda - Isolamento.

Nossos condutores fizeram-nos ingressar pela do centro, onde também se lia, em subtítulo:

Hospital Maria de Nazaré

Imenso parque ajardinado surpreendeu-nos para além dos marcos, enquanto amplos edifícios se elevavam em locais aprazíveis da situação. Padronizando sempre o estilo

português clássico, esses edifícios apresentavam muita beleza e amplas sugestões com suas arcadas, colunas, torres, terraços, onde flores trepadeiras se enroscavam

acentuando agradável estética. Para quem, como nós, angustiados e miseráveis, procedia das atras regiões, semelhante localidade, não obstante insulsa, graças à inalterável

brancura, aparecia como suprema esperança de redenção! E nem faltavam, aformoseando o parque, tanques com repuxos artísticos a esguicharem água límpida e cristalina,

a qual tombava em silêncio, cascateando mimosas gotas como pérolas, enquanto aves mansas, bando de pombos graciosos esvoaçavam ligeiros entre açucenas.

Ao contrário das demais dependências hospitalares, como o Isolamento e o Manicômio, o Hospital Maria de Nazaré, ou "Hospital Matriz", não se rodeava de qualquer

barreira. Apenas árvores frondosas, tabuleiros de açucenas e rosas teciam-lhe graciosas muralhas. Muitas vezes pensei, quando dos meus dias de convalescença, como

seria arrebatadora a paisagem se a policromia natural rompesse o sudário níveo que tudo aquilo envolvia entristecendo o ambiente de incorrigível monotonia!

Fatigados, sonolentos e tristes, subimos a escadaria. Grupos de enfermeiros atenciosos, todos homens, chefiados por dois jovens trajados à indiana, assistentes

do diretor do Departamento, os quais mais tarde soubemoS chamarem-se - Romeu e Alceste, receberam-nos das mãos dos funcionários da Vigilância incumbidos, até então,

da nossa guarda, e, amparando-nos bondosamente, conduziram-nos ao interior.

Penetramos galerias magníficas, ao longo das quais portas largas e envidraçadas, com caixilhos levemente azuis, deixavam ver o interior das enfermarias, o que

vinha esclarecer que o enfermo jamais se reconheceria a sós. Nossos grupos separaram-se à indicação dos enfermeiros: - dez à direita... dez à esquerda... Cada dormitório

continha dez leitos alvissimos e confortáveis, amplos salões com balcões para o parque. Forneceram-nos, caridosamente, banho, vestuário hospitalar, o que nos proporcionou

lágrimas de reconhecimento e satisfação. A cada um de nós foi servido delicioso caldo, tépido, reconfortante, em pratos tão alvos quanto os lençóís; e cada um sentiu

o sabor daquilo que lhe apetecia. Fato singular: - enquanto fazíamos a refeição frugal, era o lar paterno que acudia às nossas lembranças, as reuniões em família,

a mesa da ceia, o doce vulto de nossas mães servindo-nos, a figura austera do pai à cabeceira... E lágrimas indefiníveis se misturaram ao alimento reconfortador...

Num ângulo favorável aos dez leitos uma lareira aquecia o recinto, proporcionando-nos reconforto. E acima, suspensa ao alto da parede, que se diria estruturada

em porcelana, fascinante tela a cores, luminosa e como animada de vida e inteligência, despertou nossa atenção tão logo transpusemos os acolhedores umbrais. Era

um quadro da Virgem de Nazaré, algo semelhante ao célebre painel de Murilo, que eu tão bem conhecia, mas sublimado por virtuosidades inexistentes entre os gênios

da pintura na Terra!

Ao terminarmos a refeição, eis que dois varões hindus entraram em nosso compartimento, apresentando particularidades que os deixavam reconhecer como médicos.

Faziam-se acompanhar de dois outros varões, os quais deveriam acompanhar-nos durante toda a nossa hospitalização, pois eram responsáveis pela enfermaria que

ocupávamos. Chamavam-se estes Carlos e Roberto de Canalejas, eram pai e filho, respectivamente, e, quando encarnados, haviam sido médicos espanhóis na Terra. Era

no entanto imperfeitamente que a todos eles percebíamos, dado o estado de debilidade em que nos encontrávamos. Dir-se-ia que sonhávamos, e o que vimos narrando ao

leitor só podia ser por nós entrevisto como durante as oscilações do sonho...

Não obstante, os hindus aproximaram-se de cada um dos leitos, falaram docemente a cada um de nós, apuseram sobre nossas cabeças atormentadas as mãos delicadas

e tão níveas que se diriam translúcidas, acomodaram nossas almofadas, obrigando-nos ao repouso; cobriram-nos paternalmente, aconchegando cobertores aos nossos corpos

enregelados, enquanto murmuravam em tonalidades tão carinhosas e sugestivas, que pesada sonolência nos venceu imediatamente:

"- Necessitais de repouso... Repousai sem receio, meus amigos... Sois todos hóspedes de Maria de Nazaré, a doce Mãe de Jesus... Esta casa é dela.

E se conosco assim procederam, outros assistentes, certamente, o mesmo fizeram em torno dos demais componentes da trágica falange recolhida pelo Amor de Deus!

Ao despertar, depois de sono profundo e reparador, afigurou-se-me ter dormido longas horas, e de algum modo senti que o raciocínio se me aclarava, oferecendo

maior possibilidade de entendimento e compreensão das circunstâncias. Reconhecia-me de posse de mim mesmo, como desoprimido daquele estado mórbido de pesadelo, que

tantas exasperações acarretava.

Mas, ai de mim! Semelhante reconforto mental antes aprofundava do que balsamizava angústias, pois me compelia a examinar com maior dose de senso e serenidade

a profundeza da falta que contra mim mesmo cometera! Ardente sentimento de desgosto, remorso, temor, desapontamento, coibia-me apreciar devidamente a melhoria da

situação. E incômoda sensação de vergonha chicoteava-me o pudor, gritando ao meu orgulho que ali me achava indevidamente, sem quaisquer direitos a me assistirem

para tanto, unicamente tolerado pela magnanimidade de indivíduos altamente caridosos, iluminados pelo vero amor de Deus!

Dúvidas amaríssimas continuavam remoinhando-me na mente. Não era possível que eu tivesse morrido. O suicídio absolutamente não me matara! Eu continuava vivo e bem

vivo!...

Que se passara, pois?... Meus companheiros de enfermaria e, por certo, todos os demais que integravam o extenso cortejo proveniente das escuridade. do Vale, entregar-se-iam

a idênticas elucubrações! Estampavam--se o assombro, o temor e o pesar inconsolável naqueles semblantes desfigurados.

E, acompanhando a nova série de amarguras que nos invadia apesar da hospitalização e do sono reconfortador, as dores físicas oriundaz do ferimento que fizéramos

continuavam supliciando nossa sensibilidade, como a lembrarem nosso estado irremediável de réprobo..

Eu e Jerônimo gemíamos de quando em quando, sob o imperativo do ferimento feito no ouvido pela arma de fogo que utilizáramos no momento trágico; Mário Sobral

estorcia-se, o pescoço intumescido, a esbater-se em cacoetes periódicos contra a asfixia, pois enforcara-se; João d'Azevedo, retendo na mente torturada o envenenamento

do corpo que lá se consumira, sob o segredo do túmulo, chorava de mansinho, exigindo a visita médica; e Belarmino a esvair-se em sangue, o braço dolorido, entorpecido,

já paralítico - oh! preludiando, desde aquele tempo, o drama físico que seria o seu, em encarnação posterior - pois fora ao suicídio golpeando os pulsos!

Todavia o reconforto era sensível. Bastaria observássemos que já não víamos as cenas mentais de cada um, reproduzindo em figurações assombrosas o momento supremo,

tal como sucedia no Vale, onde não existia outra paisagem. A enfermaria, muito confortável, dizia de como nos haviam bem instalado. Existiam mesmo traços de arte

e beleza naqueles portais de caixilhos azuis, formados de substâncias polidas como a porcelana; naqueles reposteiros de rendilhados também azuis, nas trepadeiras

brancas que subiam pelos balcões, intrometendo-se a dentro do terraço, como espionando nossas carantonhas dramáticas de réprobos colhidos em flagrante.

De chofre, a voz de um enfermo, nosso companheiro, quebrou o silêncio da meditação em que mergulháramos o pensamento, externando as próprias impressões, como se

apenas para si falasse:

Cheguei à conclusão - disse, pausada e amarguradamente - de que o melhor que todos temos a fazer é nos recomendarmos a Deus, resignando-nos de boamente às peripécias

que ainda sobrevenham... Para nada há valido o desespero, senão para nos tornar ainda mais desgraçados! Tanta revolta e insensatez... e nada mais obtivemos a não

ser o agravo das nossas já tão atrozes desgraças!... Por aí se poderá ver que vimos escolhendo caminhos errados para nossos destinos... inegável, porém, que somos

todos subordinados a uma Direção Maior, que independe de nossa vontade!... Isso é assaz significativo... Não sei bem se morri... Mas, sinceramente, creio que não!...

A senhora minha mãe era pessoa simples, humilde, de poucas letras, mas boa devota à crença e ao respeito a Deus. Afirmava aos filhos, com estranha convicção,

quando os reunia ao pé da lareira a fim de ensinar-lhes az orações da noite, de mistura com os princípios da lei cristã, que todas as criaturas trazem uma alma imortal,

criada pelo Ser Supremo e destinada à gloriosa redenção pelo amor de Jesus-Cristo, e que dessa alma daríamos contas, um dia, ao Criador e Pai! Nunca mais, desde

então, obtive ciência de mais alto valor! Considero as aulas ministradas por minha mãe, durante o serão da família, superiores às que, mais tarde, aprendi na Universidade.

Infelizmente para mim, sorri à sabedoria materna, embrenhando-me pelos desvios das paixões mundanas... Contudo, ó minha mãe! eu aceitava a possibilidade da crença

formosa que tentaste infundir em minha alma revel! Não fui propriamente ateu!..

Hoje, passados tantos anos, e depois de tantos sofrimentos, colocado em situações que escapam à minha análise, eu me convenço de que a senhora minha mãe estava

com a razão: - devo possuir uma alma, realmente imortal! Escapa-se de um tiro de revólver, e pode-se até restabelecer-se! Curamo-nos da ingestão de um corrosivo,

tais sejam as circunstâncias em que o tenhamos usado. Mas não se escapa de uma forca, como a que me destinei! E, se estou aqui e se sofri tudo quanto sofri sem conseguir

aniquilar dentro de mim as potências da vida, é porque sou imortal! E se sou imortal é que possuo uma alma, com efeito, porque, quanto ao corpo humano, esse não

é imortal, pois se consome no túmulo! E se possuo uma alma dotada da virtude da imortalidade é que ela proveio de Deus, que é Sempiterno! Oh, minha mãe, tu dizias

a verdade! Oh, meu Deus! meu Deus! Tu existes! E eu a renegar-te sempre, com meus atos, minhas paixões, meu descaso às tuas normas, minha indiferença criminosa aos

teus princípios!... Agora... eis que é soada a hora de prestar-te contas da alma que tu criaste - da minha alma! Eis que nada tenho a dizer-te, Senhor, senão que

minhas paixões infelicitaram-na, quando o que determinaste ao criá-la era que eu a conduzisse obedientemente ao teu regaço de Luz! Perdoa-me! Perdoa-me, Senhor Deus!..."

Lágrimas abundantes misturaram-se a estertores de asfixia. Mas, apesar de saberem a intensa amargura, já não traziam o macabro característico das convulsões que,

no Vale, as lágrimas provocam.

Fora Mário Sobral que falara.

Mário tinha grandes olhos negros, cabeleira revolta, olhar alucinado. Cursara a Universidade de Coimbra e reconhecia-se nele o tipo bem acabado do boêmio rico

de Lisboa.

Seu palavreado, de ordinário, era nervoso e fácil. Seria excelente orador, se da Universidade houvera saído sábio e não boêmio. No cativeiro do Vale fora das

entidades mais sofredoras que tive ocasião de conhecer, e assim mesmo se destacou durante todo o longo período de internação na Colônia.

Com esse arrazoado iniciou-se uma série de confidências entre os dez. Não sei por que desejáramos conversar. Talvez a necessidade de mútua consolação nos impelisse

a abrir os corações, recurso, aliás, ineficiente para lenificar angústias, porque, se é difícil a um suicida o consolar-se, não será, certamente, recordando dores

e desgraças passadas que logrará amenizar a penúria que lhe oprime a alma.

"- És forte em dialética, amigo, e felicito-te pela progressão do modo de raciocinar: - não foi assim que tive a honra de te conhecer algures..." - chasqueei

eu, a quem incomodara muito a quebra do silêncio.

"- Também eu assim o creio e admiro a lógica das suas considerações, 6 amigo Sobral!" - interveio um português de bigodes fartos, meu vizinho de leito, cujo

ferimento no ouvido direito, a sangrar sem intermitências me causava infinito mal-estar, pois que, quantas vezes lhe prestasse atenção, lembrava-me de que também

eu trazia ferimento idêntico e torturava-me em réminiscências atrozes.

Era, esse, Jerônimo de Araújo Silveira, o mais impaciente e pretensioso dentre os dez, mais incoerente e revoltado. Prosseguiu ele:

"- Aliás, eu jamais descri da existência de Deus, Criador de Todas as Coisas. Fui... isto é, sou! Eu sou, pois que não morri! - católico militante, irmão remido

da Venerável Irmandade da Santíssima Trindade, de Lisboa, com direitos a bênçãos e indulgências especiais, quando necessário..."

Creio, meu vizinho, que chegou, ou já vai passando, a ocasião de reclamares os favores que são de direito obteres... Não podes estar mais necessitado deles..."

- revidei, num crescendo de mau-humor, fazendo-me de obsessor.

Não respondeu, mas continuou:

"- Fui, porém, muito impaciente e nervoso desde a juventude! Impressionava-me facilmente, era insofrido e inconformado, às vezes melancólico e sentimental...

e confesso que nunca levei a sério os verdadeiros deveres do cristão, expresso nas santas advertências do nosso conselheiro e confessor, de Lisboa. Por isso mesmo,

certamente, quando se me deparou a ruína dos meus negócios comerciais, pois não sei se sabeis que fui importador e exportador de vinhos; crivado de dívidas insolúveis;

surpreendido por estrondosa e irremediável falência; sem ascendente para evitar a miséria que a mim e à minha família escancarava fauces irremediáveis; acusado por

amigos e pessoas da família como responsável único do dramático insucesso; abatido pela perspectiva do que sucederia à minha mulher e aos meus filhos, a quem eu,

por muito estremecer, habituara a excessivo conforto, mesmo ao luxo, mas os quais, agora que me viam castigado e sofredor, me responsabilizavam cruamente por tudo,

em vez de pacientemente me ajudarem a remover a cruz dos insucessos, que a todos nos abatia - fraquejei na coragem que até então tivera e "tentei" desertar da frente

de todos e até de mim mesmo, a fim de poupar-me a censuras e humilhações. Todavia, enganei-me: - mudei apenas de habitação, sem conseguir encontrar a morte, e perdi

de vista minha família, o que me tem acarretado insuportáveis contrariedades!"

"- Sim, é lastimável! - tornou Mário na mesma tonalidade acabrunhada, como se não tivesse ouvido o precedente. - Caí nas trevas da Desgraça!... quando

tão boas oportunidades encontrei pela vida a fora, facultando-me o domínio das paixões para o advento de aquisições honestas!... Esqueci-me de que o respeito a Deus,

à Família, ao Dever, seria o alvo sagrado a atingir, pois recebi bons princípios de moral na casa paterna!... Jovem, sedutor, inteligente, culto, envaideci-me com

os dotes que me assistiam e cultivei o egoísmo, dando asas aos instintos inferiores, que reclamavam prazeres sempre mais febricitantes... A convivência afetada da

Universidade fez de mim um pedante, um tolo cujas preocupações únicas eram as exibições vistosas, senão escandalosas... Daí o perder-me no roldão das embocaduras

das paixões deprimentes... E, depois, quando não mais consegui encontrar-me a fim de reconduzir-me a mim próprio, procurei, a morte supondo poder esconder-me dos

remorsos atrás do olvido de um túmulo!... Enganei-me! A morte não me aceitou! Encontrou-me de certo demasiadamente vil para me honrar com sua proteção! Por isso

devolveu-me à vida quando o coveiro teve a honra de encobrir minha figura repulsiva da frente da luz do Sol!...

Minha mãe, porém, essa sim, não se enganou: - eu sou imortal! Jamais, jamais morrerei! Hei de existir por toda a consumação dos evos, em presença dAquele

que é o meu Criador! Sim! Porque, para sobreviver às desgraças que cruciaram o meu sentir, desde a noite aziaga da primavera daquele ano de 1889, só um ser que seja

imortal !"

Alongou os olhos congestos, como chamando recordações passadas para o minuto presente e murmurou, arquejante, apavorado, frente à página mais negra que lhe desvirtuava

a consciência:

"- Sim, meu Deus! Perdoa-me! Perdoa-me! Eu me arrependo e submeto-me, visto que reconheço que errei! Perdi-me diante de ti, meu Deus, à frente da desesperadora

paixão que nutri por Eulina!... Mas, se mo permites, reabilitar-me-ei por amor de ti...

Eulina!... Tu não valias sequer o pão que eu fornecia para saciares tua fome! Contudo, eu te amava, acima de todas as conveniências, a despeito até da própria

honra! Eras pérfida, malvada!... Eu, porém, inferior devia ser, ainda mais do que tu, porque casado, sendo minha esposa nobre e digna senhora! Era pai de três inocentes

criancinhas, às quais devia amor e proteção! Abandonei-os por ti, Eulina, desinteressei-me de seus encantos porque me arrebatei irremediavelmente pelos teus, estranha

beleza dos torrões sul-americanos, que tu eras!... Oh, como eras linda!... 'Mas não me amavas... E depois de me arrastares de queda em queda, explorando-me a bolsa

e o coração, abandonaste-me ao desespero da miséria e da ingratidão, ao me preterires pelo capitalista brasileiro, teu compatriota, que te requestou!

Fui a tua casa: - vi-me desfeiteado... Supliquei-te, rastejei a teus pés como louco, desesperado por perder-te, como insensato que sempre fui! Implorei migalhas

da tua compaixão, em vendo que já não seria possível teu amor!

Provoquei-te à discussão, compreendendo que te fazias insensível às minhas desesperadas tentativas de reconciliação... e, cego pelos insultos que repetias, eu

te agredi, ferindo as faces que eu adorava; espanquei-te sem piedade, maltratei-te a pontapés, meu Deus! ó meu Deus! Estrangulei-te, Eulina! Matei-te!... Matei-te!.

.

Parou sufocado, em convulsões odiosas de perfeito réprobo, para continuar após, como se dirigindo aos companheiros:

"- Quando, tomado de horror, contemplei a ação abominável que praticara, apenas um recurso me acudiu, rápido qual impulso obsessor, a fim de escapar a conseqüências

que, naquele momento, se me afiguravam insuportáveis: - o suicídio! Então, ali mesmo, sem perder tempo, rasguei os lençóis da desgraçada... e pendurei-me a uma trave

existente na cozinha.

"-... Forma, essa, pouco poética de um amante morrer... - zombei eu, enfadado com a longa descrição que desde o Vale diariamente ouvia-o repetir. - Aposto em

como V. Excia.

Sr. Professor, que tão elegantemente desejou morrer, recordando Petrônio, fé-lo pelo amor platônico de alguma senhora inglesa, loira e apessoada?... Portugueses

ilustres, como V. Excia. vem demonstrando ser, gostam de amar damas inglesas..."

Dirigia-me agora a Belarmino de Queiroz e Sousa, cujo nome tresandava a fidalguia.

Até essa data ainda me irritavam as atitudes do pobre comparsa do grande drama que eu também vivia; e, sempre que houvesse oportunidade, ridicularizava-o, defeito

muito do meu feitio e que muitos vexames e dissabores custou-me até corrigi-lo, durante os serviços de reforma interior que ao meu caráter impus na Pátria Espiritual.

Belarmino era alto e seco, muito elegante e fino de maneiras. Dizia-se rico e viajado, professor de Dialética, de Filosofia e Matemática, e poliglota - cortejo

respeitável para um só homem que se arraste na Terra, não havia dúvida, mas que o não impedira de demorar-se, e mais o monóculo, o fraque e a bengala, nas pocilgas

do Vale Sinistro, durante o interessante estágio que ali fizera, por se haver suicidado. Isso mesmo lançara-lhe eu em face muitas vezes, mal-humorado ante a vaidosa

enumeração que fazia dos variados cabedais próprios. O doutor, porém - porque era doutor, honorificado por mais de uma Universidade -, jamais revidou minhas impertinências.

Polido, educado, sentimental, chegaria tambem à vera bondade de coração se a par de tão bonitos dotes não carregasse os defeitos do orgulho, do egoísmo de a si mesmo

endeusar por a todos se julgar superior.

Ouvindo-me, não respondeu com agastamento, como sempre. Antes, foi em tom macio, mesmo pesaroso, que se expandiu, dirigindo-se a todos:

"- Eu julgava, sinceramente, que o túmulo absorveria minha personalidade, transmudando-a na essência que se perderá nos abismos da Natureza: - seria o Nada!

Discípulo de Augusto Comte, a filosofia levou-me ao Materialismo, ao mecanismo acidental das coisas -única explicação satisfatória que ao raciocínio pude oferecer

diante das anomalias com que deparava a cada passo pela vida em fora, para me alarmar o coração e decepcionar a mente!

Nutri sempre grande ternura e compaixão pelos homens, aos quais considerava irmãos de desgraça, pois, para mim, a vida era a expressão máxima da Desgraça, embora

deles procurasse afastar-me quanto possível, temendo amá-los demasiadamente, e, portanto, sofrer! Nem outra coisa compreenderia eu o que seria senão desgraça um

homem nascer, viver, trabalhar, sofrer, lutar por todos os pretextos... para depois desfazer-se, irremissívelmente, no pó do túmulo!

Não fui, jamais, dado a namoramentos, de baixa ou elevada classe. Para que amar, constituir família, contribuindo para lançar à vida outros desgraçados a mais,

se a Filosofia convencera-me, além do mais, de que o Amor era apenas uma secreção do cérebro .... Fui um estudioso, isso sim, e estudava a fim de me aturdir, evitando

o acúmulo de elucubrações sobre a miserável situação da Humanidade. Assim sendo, não sobravam a mim horas para cultivar amor junto a damas inglesas ou portuguesas...

Estudava para esquecer de que um dia também me perderia no vácuo! Fui um infeliz, como toda a Humanidade o é! Somente no ambiente sereno do lar desfrutava alguma

satisfação... Agarrei-me ao lar quanto possível, pesaroso de, um dia, ser forçado a abandoná-lo para me aniquilar entre os vermes que destruiriam minha individualidade!

Minha mãe, que partilhava de minhas convicções, porque também as recebera de meu genitor, bastava-me para companhia nas horas de lazer. O móvel da minha "tentativa"

de suicídio, como vê, não foi desgosto amoroso. Foi a perca da saúde! Fui sempre fisicamente débil, franzino, um triste, sonhador infeliz e insatisfeito, apavorado

do Existir! Incorrigível desconsolo entenebreceu os dias de minha vida! Encerrado neste círculo deprimente, vi a tuberculose apossar-se de meu organismo, mal hereditário

que me não foi possível combater! Desenganado pela Ciência, preferi, então, acabar de vez, sem maiores sofrimentos, com a matéria miserável que começava a apodrecer

sob a desintegração fornecida por uma moléstia incurável, matéria que, por sua própria natureza, destinada era à podridão da morte, ao eterno tombo nas voragens

do Nada!

Para que, pois, esperaria eu a marcha dolorosa da tuberculose extinguir minha individualidade em lentos suplícios, sem consolo, sem esperança compensadora no

porvir de além-morte, onde não encontraria senão o aniquilamento absoluto, a desintegração perfeita, espantalho humano atirado ao desalento, do qual fugiriam todos,

a própria mãe inclusive - quem o adivinharia? - temendo os perigos do contágio?...

Morrer era solução boa, muito lógica, para quem, como eu, só via à frente um corpo aniquilado pela doença e a destruição absoluta do ser como desanimadoras.

"- Não possuo a competência de V. Excia. Senhor Professor, nem me será dado raciocinar com tanta finura. Todavia, com o devido respeito à pessoa de V. Excelência,

considero execrável pecado o não aceitar o homem a existência de Deus, Sua Paternidade para com as criaturas e a eternidade da alma, por mais criminoso e abjeto

que seja.

Felizmente para mim, foram coisas em que sempre acreditei com veemência.. ." - intrometeu-se Jerônimo com simplicidade, sem perceber a tese profunda que apresentava

a um ex-professor de Dialética.

"- Como e por que, então, vos revoltastes contra as circunstâncias naturais da vida humana, isto é, aos sofrimentos que vos couberam na desoladora partilha,

a ponto de confessardes que desejastes morrer, Sr. de Araújo Silveira!... Se eu, desfavorecido pela Fé, carente de Esperança, desamparado pela descrença em um Ser

Supremo, à mercê do pessimismo a que minhas convicções conduziam, para quem o túmulo apenas traduzia olvido, aniquilamento, absorção no vácuo, me desorientasse ao

embater da desventura e "tentasse" matar-me a fim de poupar-me luta desigual e inútil, concebe-se! Mas, vós outros?... Vós outros, crentes na Paternidade de um Deus

Criador, sede de perfeições infinitas, como dizeis, sob cuja direção sábia caminhais; vós, certos da personalidade eterna, fadada à mesma finalidade gloriosa do

seu Criador, herdeira da própria eternidade existente naquele Ser Supremo, para a qual marcha pela ordem natural da lei de atração e afinidade, cair em desesperações

e revoltar-se contra a mesma lei, pois sei que a crença num Poder Absoluto proíbe a infração do suicídio, é paradoxo que não se chega a admitir. Portadores de tal

ciência, corações alumiados pelos ardores de tão radiosa convicção, energias revigoradas pela fortaleza de tão sublime esperança, deveríeis considerar-vos deuses

também, homens subllmizados para quem os infortúnios seriam meros contratempos de momento! Oh! pudesse eu convencer-me dessa verdade e não temeria enfrentar, novamente,

nem os desgostos que arruinaram meus dias, nem a tuberculose que me reduziu ao que vedes!" - revidou com lógica férrea o discípulo de Conte, cuja sinceridade me

despertou simpatia.

"- E agora, qual a opinião de V. Excia. sobre o momento presente? Que explicação sugere a filosofia comtista para o que se passa?.. ." - interroguei, cheio de

curiosidade, interessando-me pelo debate.

"- Nada! - respondeu simplesmente. - Não sugere coisa alguma... Continuo na mesma...

Não consegui morrer!.. ."

Evidente era que dúvidas desconcertantes nos atacavam a todos, a ele também. O que não queríamos era curvar-nos à evidência. Tínhamos medo de encarar de frente

a realidade.

"- Dizei algo de vós, Sr. Botelho - atreveu-se João castigar-me. - Há muito estimais observar-nos, mas tendes silenciado sobre vossa pessoa, que tão interessante

nos parece...

Quanto a mim, não desejo permanecer incógnito! Bem sabeis os motivos que me arrojaram ao pélago ignóbil do suicídio: - a paixão pelo jogo. - Joguei tudo! A honra

inclusive, e a própria vida!..."

"- Perdão, amigo d'Azevedo, como jogaste a vida... se aí estás a falar-nos de ti? !" - interveio Jerônimo desconcertantemente.

O interlocutor sobressaltou-se e, sem responder, insistiu no propósito de excitar-me:

"- Vamos, ilustre romancista, velho boêmio do Porto, desce do teu feio pedestal de orgulho... Vem dizer algo de tua "majestosa" superioridade.. ."

Senti a mordacidade nas descorteses expressões de João, que se antipatizara comigo na mesma proporção que eu a Belarmino, do qual era muito amigo, e que deixara,

um momento, de choramingar para me provocar o mau-humor.

Aborreci-me. Fui indivíduo sempre melindroso e suscetível, e a morte não corrigira ainda a grave anormalidade.

"- Pois quê?... Seria eu, acaso, forçado a confessar particularidades a tal corja, só porque ela havia confessado as suas?... Porventura devia eu qualquer consideração

a essa ralé, que fui encontrar no Vale imundo?.. ." - pensei, sufocado pelo orgulho, com efeito, de me julgar superior.

Á consideração que aos companheiros de infortúnio o meu mau-senso negava, a mim mesmo continuava dispensando gratamente, entendendo que, se para lá eu também

me vira arremessado, era que no meu caso existira injustiça calamitosa; que eu não merecera a repressão por ser melhor, mais digno, mais credor de favores do que

os outros que comigo lá se haviam homiziado. Fosse como fosse, preferiria não me expandir porque o meu orgulho a tanto não me animava. Mas, personagens de nossa

infeliz categoria não se acham à altura de sopitar impulsos do pensamento calando expansões diante de afins; tampouco sabem dominar emoções, furtando-se àvergonha

das devassas no campo íntimo, em presença de estranhos.

Assim sendo, as torrentes de vibrações deseducadas derramam-se do seu interior configuradas em palavreado ardente e emotivo, ainda que elas próprias não o desejem,

tal se as comportas magnéticas, que as retivessem nos pegos mentais, se houvessem rompido graças às agitações de que se fizeram presas. Aliás, o tom sincero, a formosa

lhaneza do professor de Filosofia e Dialética, convidando-me a atitude menos descortês do que a que me habituara até então, fez-me aquiescer ao alvitre de João d'Azevedo.

Mas foi, antes, dirigindo-me de preferência àquele, por entender que só a sua elevada cultura estaria a plano de me compreender, que fui dizendo, grave, compenetrado,

concedendo-me importância ridícula na humílima situação em que me achava:

"- Eu, Sr. Professor, sou um indivíduo que se imaginava iluminado por um saber sem jaças, mas que, em verdade, hoje começa a compreender que ignorava, e continua

ignorando, o que a dois palmos do próprio nariz existe. Fui paupérrimo (digo "fui" porque algo segreda em meu ser que tudo isso pertenceu ao pretérito), com o insuportável

defeito de ser orgulhoso. Um homem, finalmente, que não descria da existência de um Ser Superior presidindo à Sua Criação, é certo, mas que, considerando-o uma Incógnita

a desafiar possibilidades humanas de lhe decifrar os enigmas, não somente deixava de associar o respeito a esse Ser à sua vida, como, principalmente, não lhe dava

quaisquer satisfações do que fazia ou pretendia para regalo dos próprios caprichos e paixões. Será, pois, redundância afirmar que, muito sábio - tal como me julgava

-, arrastava a dissonan te ignorância da descrença na possibilidade de existirem leis onipotentes, irremissíveis, partindo da Divindade Criadora e Orientadora para

dirigir a Criação, o que me fez cometer erros gravíssimos!

Sofri, e minha existência foi fértil em situações desanimadoras! A resignação nunca foi virtude a que se amoldasse o meu caráter violento e agitado por índole.

A fundeza dos meus sofrimentos tornou-me irritadiço, genioso. O orgulho insulou-me na convicção de que para além de mim só existiriam valores sofríveis.

Após décadas de prélios malogrados, de aspiraçõeS banidas da imaginação por irrealizáveis no campo da objetividade, de ideais decepcionados, de desejos tão justos

quanto insatisfeitos, de esforços rechaçados, de energias varridas por sucessivos desapontamentos e vontades conjugadas para o bem tornarem ao ponto de origem enfraquecidas

e rotas por impiedosos insucessos - a cegueira, amigo! que atingiu meus olhos cansados -, como desconcertante prêmio às lutas que de minhas forças exigiram impulsos

supremos!

Fiquei cego!

O espectro negro da eterna escuridão estendia sobre meus olhos apavorados o seu manto de trevas, que nem a ciência dos homens, nem a fé alcandorada e ingênua

dos amigos que me tentavam levar à conformidade, nem os votos místicos dos corações que me amavam às Potestades Celestes - seriam capazes de arredar!

Descri mais das mesmas Potestades:

- Cego! Cego, eu?...

- Como viveria eu, cego?...

Entendi que, se o Ente Supremo, de quem eu não descria até então, existisse realmente, tal não se daria, porque não quereria certamente desgraçar-me. Esquecia-me

de que existiam esparsos pelo mundo milhões de homens cegos, muitos em condições ainda mais prementes que a minha, e que eram todos, como eu, criaturas advindas

do mesmo Deus! Descri porque entendi que, se havia outros cegos, que houvesse: - mas que eu não o deveria ser! Era, sim, injustiça, uma finalidade dessa para mim!

Cego!... Era o máximo!

Tão profundo quão surpreendente desespero devorava minhas vontades, minhas energias mentais, minha coragem moral, reduzindo-me à inferioridade do covarde! Eu,

que tão heroicamente soubera levar de vencida os abrolhos que dificultaram minha marcha para a conquista da existência, sobrepondo-me a eles, daí para diante encontrar-me-ia

impossibilitado de continuar lutando! Dei-me por vencido. Cego, eu compreendia ser a minha vida como coisa que pertencesse ao pretérito, realidade que "fora", mas

que já não era

A obsessão fatal do suicídio entrou a fazer ronda em torno de minhas faculdades.

Enamorei-me dela e lhe dei guarida com todo o abandono do meu ser desanimado e vencido. A morte atraía-me como remate honroso de uma existência que jamais curvara

a cerviz à frente fosse do que fosse! A morte estendia-me os braços sedutores, falsamente mostrando, às minhas concepções viciadas pela descrença em Deus, a paz

do túmulo em consoladoras visões!

Firmada a resolução sobre sugestões doentias; acabrunhado e a sós com a minha superlativa desgraça; insocorrido pelo sereno consolador da Fé, que teria suavizado

a ardência do meu íntimo desespero; excitada a imaginação já de si mesma audaz e ardente, criei um romance dolorido em torno de mim mesmo e, considerando-me mártir,

condenei-me sem apelação!

É que tive medo e vergonha de ser cego!

Matei-me no intuito de encobrir da sociedade, dos homens, dos meus inimigos a incapacidade a que ficara reduzido!

Não! Ninguém se gloriaria vendo-me receber o amargo pão da compaixão alheia!

Ninguém contemplaria o espetáculo, humilhante para mim, de minha figura vacilante, tateando nas trevas dos meus olhos incapacitados para a visão! Meus inimigos

não se rejubilariam, refocilando na vingança de assistirem à minha irremediável derrota! Mil vezes não! Eu não me brutalizaria na inércia de olhar só para dentro

de mim mesmo, quando o Universo continuaria irradiando vida fecunda e progressiva ao redor de minha sombra empobrecida pela cegueira!

Matei-me porque me reconheci demasiadamente fraco para continuar, dentro da noite pávida da cegueira, a jornada que, já enfrentada à boa luz dos olhos, fora farta

de empeços e percalços!

Era demais! Revoltei-me até ao âmago contra o Destino que me reservara tão desconcertante surpresa e inconsolável permaneci sob o esmagamento da dramática ingratidão

que supunha provir de Deus! Para mim, a Providência, o Destino, o mundo, a sociedade, estavam errados todos: - só eu estava certo, exagerando a tragédia das minhas

desesperanças!

Pois quê?... Eu, que possuia capacidade intelectual avantajada, era paupérrimo, quase faminto, ao passo que circulavam em torno a mim ignorantes e beócios de

cofres recheados!

Eu, que me sentia idealista e bom, vivia molestado por adversidades que me teciam continuado cerco, sitiando-me em campos que desafiavam possibilidades de vitória!

Eu, cujo coração sentimental abrasava-se em ânsias generosas e ternas, de excelência quiçá sublime, a conhecer-me ininterruptamente incompreendido, incorrespondido,

ferido por descasos tanto mais amargos quanto mais extensas fossem as radiações do meu sentir! Eu, honesto, probo, reto, a pautar-me por diretrizes sadias por entendê-las

mais belas ajustadas ao idealismo que acompanhava o meu caráter, a tratar com patifes, a comerciar com roubadores, a disputar com hipócritas, a confiar em velhacos,

a considerar tratantes !...

Sim, era demais!...

E depois de tão extenso panorama de desventuras - porque, para mim, indivíduo impaciente e nada conformado, esses fatos, tão vulgares na vida cotidiana, avultavam

como veras calamidades morais -, o doloroso arredate da cegueira reduzindo-me à insignificância do verme, à angústia do desamparo, à inércia do idiota, à solidão

do emasmorrado!

Não pude mais!

Faltou-me compreensão para tão grande anomalia! Não compreendi Deus! Não entendi sua Lei! Não entendi a Vida! Uma torrente de confusão insolúvel alagou-me o pensamento

aterrado em face da realidade! Só compreendi uma coisa: - era que precisava morrer, devia morrer! E quando uma criatura deixa de confiar no seu Deus e Criador -

torna-se desgraçada! Ë um miserável, é um demônio, é um réprobo! Quer o abismo, procura o abismo, precipita-se no abismo!

Precipitei-me!"

Não sei que malvadas sugestões a minha facúndia blasfema espalhou pelo ambiente mórbido de nossa enfermaria, O que sei é que a triste assembléia deixou-se resvalar

para as vibrações desarmoniosas, entregando-se a pranto dolorido e crises impressionantes, notadamente o antigo exportador de vinhos - Jerônimo - e o universitário

Sobral, que eram os mais sofredores. Eu mesmo, à proporção que prosseguia na minha angustiante exposição, eivada de conceitos doentios, tanto retroagia mentalmente

às situações precipitosas de minha passada vida carnal, às fases doloridas e inelutáveis que me deprimiram cruamente - que lágrimas rescaldantes voltaram a correr

por minhas faces maceradas, enquanto novamente se me obscurecia a visão e trevas substituiam os doces pormenores dos cortinados azuis, esvoaçantes, e das róseas

trepadeiras galgando as colunatas dos balcões.

Acudiram enfermeiros solícitos a verem o que se passava, uma vez que não era previsto o incidente. No Hospital Maria de Nazaré o enfermo, rodeado das emanações

mentais revivificantes de seus tutelares e dirigentes, visitados por ondas magnéticas salutares e generosas, que visavam a beneficiá-lo, deveria auxiliar o tratamento

conservando-se silencioso, sem jamais se entreter em conversações de assuntos pessoais. Conviria repousar, procurar esquecer o passado tormentoso, varrer recordações

chocantes, refazendo-se quanto possível das longas dilacerações que desde muito o acutilavam. Fomos advertidos, portanto, como infratores de um dos mais importantes

regulamentos internos. E nem poderíamos exculpar-nos alegando ignorância, porque, ao longo das paredes, letreiros fosforescentes a cada momento despertavam nossas

atenções com permanentes pedidos de silêncio, enquanto a própria instituição oferecia o exemplo movimentando suas constantes azáfamas sob o controle de criteriosa

discrição. E, embora bondosamente, declararam qué uma reincidência implicaria em atitude punitiva por parte da direção, qual a transferência para o Isolamento, pois,

o fato, a repetir-se, produziria distúrbios de conseqüências imprevisíveis, não somente para o nosso estado geral, mas também para a disciplina hospitalar, que deveria

ser rigorosamente observada -o que nos levou a perceber serem mais austeras as regras no Isolamento, mais temíveis as suas disciplinas. E para que medida tão ríspida

fosse evitada, estabelecida foi severa vigilância em nossa dependência. Desde aquele momento, um guarda do regimento de lanceiros hindus, aqüartelados no Departamento

de Vigilância, foi designado para o plantão em nossos apartamentos.

Cerca de um quarto de hora depois, enfermeiro loiro e risonho, jovem que andaria pelos vinte e três anos de idade, o qual entrevíramos ao darmos entrada no importante

estabelecimento do astral, por ser um daqueles que nos receberam a par de Romeu e de Alceste, visitou-nos fazendo-se acompanhar de mais dois obreiros da casa; e,

irradiando simpatia, foi dizendo mui afetuosamente, pondo-nos à vontade:

"- Meus amigos, chamo-me Joel Steel, sou - ou fui, como queiram - português nato, mas de origem inglesa. Em verdade o velho Portugal foi sempre muito querido

ao meu coração... Jamais pude esquecer os dias venturosos que em seu seio generoso passei... Fui feliz em Portugal... mas depois... os fados me arrastaram para o

País de Gales, berço natal de minha querida mãe, Dons Mary Steel da Costa, e então... Bem, é como compatriota e amigo que vos convido ao gabinete cirúrgico a fim

de serdes submetidos aos necessários exames, pois que se iniciaram neste momento os trabalhos de cirurgia.

Prontificamo-nos, esperançados. Não desejávamos outra coisa desde muito tempo! As dores que sentíamos, nossa indisposição geral, refletindo penosamente o que

ocorrera com o corpo físico-material, havia muito que nos fazia ansiar pela presença de um facultativo.

Mário e João, cujo estado era melindroso, foram transportados em macas, enquanto os demais seguiam amparados pelos braços fraternos dos enfermeiros bondosos.

Pude então distinguir algo dessa casa magnânima assistida pela carinhosa proteção da excelsa Mãe do Nazareno.

Não somente o excelente conjunto arquitetônico seria digno de admiração. Também a montagem, o grandioso aparelhamento, conjunto de peças extraordinárias, apropriadas

às necessidades da clínica no astral, demonstrando o elevado grau que atingira a Medicina entre nossos tutelares, muito embora se não tratasse, o local onde nos

encontrávamos, de zona adiantada da Espiritualidade.

Médicos dedicados e diligentes atendiam com fraternas solicitudes aos míseros necessitados dos seus serviços e proteção. Estampavam-se em suas fisionomias bondosas

o compassivo interesse do ser superior pelo mais frágil, da inteligência esclarecida pelo irmão infeliz ainda mergulhado nas trevas da ignorância. Entretanto, nem

todos trajavam uniformes à indiana. Muitos envergavam longos aventais vaporosos e alvíssimos, quais túnicas singulares, de tecido fosforescente...

Não assisti ao que foi passado com meus companheiros de desdita. Mas, quanto a mim, em chegando ao pavilhão reservado aos labores assistenciais, fui transferido

dos cuidados de Joel Steel para os do jovem doutor Roberto de Canalejas, o qual me encaminhou para determinada dependência, onde minha organização físico-espiritual

- o perispírito - foi submetida a minuciosos e importantes exames. Carlos de Canalejas, pai do precedente, ancião venerável, antigo facultativo espanhol que fizera

da Medicina um sacerdócio, página heróica de abnegação e caridade digna do beneplácito do Médico Celeste, e mais um dos psiquistas hindus que nos socorreram à chegada

- Rosendo -, foram os meus assistentes. Roberto passou então a assistir ao importante labor qual doutorando às lições dos mestres nos santuários da Ciência, o que

vinha esclarecer encontrar-se ele ainda em aprendizado na Medicina local.

A minha organização astral prestaram socorros físico-astrais justamente nas regiões correspondentes às que, no envoltório físico-terreno, foram dilaceradas pelo

projetil de arma de fogo de que utilizara para o suicídio, ou seja, os aparelhos faríngico, auditivo, visual e cerebral, pois o ferimento atingira toda essa melindrosa

região do meu infeliz envoltório carnal.

Era como se eu, quando homem encarnado (e realmente assim fora, assim é com todas as criaturas) possuísse um segundo corpo, molde, modelo do que fora destruído

pelo ato brutal do suicídio; como se eu fora "duplo" e o segundo corpo, possuindo a faculdade de ser indestrutível, se ressentisse, no entanto, do quanto sucedesse

ao primitivo, qual se estranhas propriedades acústicas sustentassem repercussões vibratórias capazes de se prolongarem por indeterminado prazo, fazendo enfermar

aquele.

Sei que os tecidos semimateriais das regiões já citadas do meu perispírito, profundamente afetadas, receberam sondagens de luz, banhos de propriedades magnéticas,

bálsamos quintessenciados, intervenções de substâncias luminosas extraídas dos raios solares; que deles extrairam fotografias e mapas movediços, sonoros, para análises

especiais; que tais fotografias e mapas mais tarde seriam encaminhados à "Seção de Planejamento de Corpos Físicos", do Departamento de Reencarnação, para estudos

concernentes à preparação da nova vestidura carnal que me caberia para o retorno aos testemunhos e expiações na Terra, aos quais julgara poder furtar-me com o tresloucado

gesto que tivera. Sei que, submetido ao estranho tratamento, envolvido em aparelhos sutis, luminosos, transcendentes, permaneci uma hora, durante a qual o velho

doutor de Canalejas e o cirurgião hindu desvelaram-Se carinhosamente, reanimando-me com palavras encorajadoras, exortando-me à confiança no futuro, à esperança no

Supremo Amor de Deus! E sei também que causei trabalhos árduos, mesmo fadigas àqueles abnegados servos do Bem; que exigi preocupações, obrigando-os a devotamentos

profundos até que em meu físico-astral se extinguissem as correntes magnéticas afins com o físico-terreno, as quais mantinham o clamoroso desequilíbrio que nenhuma

expressão humana será bastante veraz para descrever!

É que o "corpo astral", isto é, o perispírito - ou ainda o "físico-espiritual" - não é uma abstração, figura incorpórea, etérea, como supuseram. Ele é, ao contrário

disso, organização viva, real, sede das sensações, na qual se imprimem e repercutem todos os acontecimentos que impressionem a mente e afetem o sistema nervoso,

do qual é o dirigente.

É que, nesse envoltório admirável da Alma - da Essência Divina que em cada um de nós existe, assinalando a origem de que provimos -, persiste também uma substância

material, conquanto quintessenciada, o que a ele faculta a possibilidade de adoecer, ressentir-se, pois que semelhante estado de matéria é assaz impressionável e

sensível, de natureza delicada, indestrutível, progressível, sublime, não podendo, por isso mesmo, padecer, sem grandes distúrbios, a violência de um ato brutal

como o suicídio, para o seu invólucro terreno.

Entretanto, sob tantos cuidados médicos mais se avantajavam minhas dúvidas quanto à situação própria. Muitas vezes, durante a desesperadora permanência no Vale

Sinistro, eu chegara a acreditar que morrera, oh, sim! e que minhalma condenada expiava nos infernos os tremendos desatinos praticados em vida. Agora, porém, mais

sereno, vendo-me internado em bom hospital, submetido a intervenções cirúrgicas, conquanto muito diversos fossem os métodos locais dos que me eram habituais, novas

camadas de incertezas inquietavam-me o espírito:

Não! Não era possível que eu tivesse morrido!

Isto seria morte?... Seria vida?...

Foi, portanto, derramando aflitivo pranto que, em dado momento, naquele primeiro dia, sob as desveladas atenções de Carlos e Rosendo, bradei excitado, febril,

incapaz de por mais tempo me conter:

"- Mas, afinal, onde me encontro eu?... Que aconteceu?... Estarei sonhando?... Eu morri ou não morri?... Estarei vivo?... Estarei morto?. .

Atendeu-me o cirurgião hindu, sem se deter na mehndrosa atuação. Fitando-me com brandura, talvez para demonstrar que minha situação lhe causava lástima ou compaixão,

escolheu o tono mais persuasivo de expressão, e respondeu, sem deixar margem a segunda interpretação:

"- Não, meu amigo! Não morreste! Não morrerás jamais!... porque a morte não existe na Lei que rege o Universo! O que se passou foi, simplesmente, um lamentavel

desastre com o teu corpo físico-terreno, aniquilado antes da ocasião oportuna por um ato mal orientado do teu raciocínio... A Vida, porém, não residia naquele teu

corpo físico-terreno e sim neste que vês e contigo sentes no momento, o qual é o que realmente sofre, o que realmente vive e pensa e que traz a qualidade sublime

de ser imortal, enquanto o outro, o de carne, que rejeitaste, aquele, apropriado somente para o uso durante a permanência nos proscênios da Terra, já desapareceu

sob a sombria pedra de um túmulo, como vestimenta passageira que é deste outro que aqui está... Acalma-te, porém... Melhor compreenderás à proporção que te fores

restabelecendo..."

Trouxeram-me em maca rumo da enfermaria. Meu estado requeria repouso. Serviram-me reconfortante caldo, pois eu tinha fome. Deram-me a beber água cristalina e

balsamizante, pois eu tinha sede. Em redor, o silêncio e a quietação, envolvidos em ondas de reconforto e beneficência, convidavam ao recolhimento. Obedecendo à

caridosa sugestão de Rosendo, procurei adormecer, enquanto o desapontamento, trazido pela inapelável realidade, fazia ecoar suas decisivas expressões em minha mente

atormentada:

"- A Vida não residia no corpo físico-terreno, que destruíste, mas sim neste que vês e sentes no momento, o qual traz a qualidade sublime de ser imortal!"

4

Jerônimo de Araújo Silveira e família

Não lográvamos notícias de nossas famílias e tampouco dos amigos. Excruciantes saudades, como ácido corrosivo que nos estorcesse as potências afetivas, lançavam

sobre nossos corações infelizes o decepcionante amargor de mil incertezas angustiosas. Muitas vezes, Joel e Roberto surpreendiam-nos chorando às ocultas, suspirando

por nomes queridos que jamais ouvíamos pronunciar! Caridosamente, esses bons amigos nos reanimavam com palavras encorajadoras, asseverando ser tal contrariedade

passageira, pois tendíamos a suavizar a situação própria, o que necessariamente resolveria os problemas mais prementes.

No entretanto, existia permissão para nos cientificarmos das visitas mentais e votos fraternos de paz e felicidade futuras, quaisquer gentilezas emanadas do

Amor, e que proviessem dos entes queridos deixados na Terra ou dos simpatizantes, além dos que, mesmo das moradas espirituais, nos amassem, interessando-se por nosso

restabelecimento e progresso. Desde que tais pensamentos fossem irradiados pela mente verdadeiramente guindada a expressões superiores, eram-nos eles transmitidos

por meio assaz curioso e muito eficiente, o qual, na ocasião vigente, nos levava à perplexidade, dado o nosso desajuste espiritual, mas que posteriormente compreendemos

tratar-se de acontecimento natural e até comum em localidades educativas do Astral intermediário.

Existia em cada dormitório certo aparelhamento delicadíssimo, estruturado em substâncias eletromagnéti cas, que, acumulando potencialidade inavaliâvel de atração,

seleção, reprodução e transmissão, estampava em região espelhenta, que lhe era parte integrante, quaisquer imagens e sons que benévola e caridosamente nos fossem

dirigidos. Quando um coração generoso, pertencente às nossas famílias ou mesmo para nós desconhecido, arremessasse vibrações fraternas pelas imensidões do Espaço,

ao Pai Altíssimo invocando mercês para nossa almas enoitadas pelos dissabores, éramos imediatamente informados por luminosidade repentina, que, traduzindo o balbucio

da oração, reproduzia também a imagem da personalidade operante, o que, às vezes, sobremodo nos surpreendia, visto acontecer que pessoas a quem nem sempre distinguíramos

com afeição e desvelo se apresentavam freqüentemente ao espelho magnético, enquanto outras, que de nossos corações obtiveram as máximas solicitudes, raramente mitigavam

as asperezas da nossa íntima situação com as blandícias santificantes da Prece! Poderíamos, assim, saber de quanto pensassem a nossa respeito; das súplicas dirigidas

às Divinas Potestades, de todo o bem que nos pudessem desejar ou, a nosso favor, praticar.

Infelizmente para nós, porém, tal acontecimento, que tanto amenizaria as agruras da solidão em que vivíamos; que seria como refrigerante sereno sobre as escaldantes

saudades que nos combaliam a mente e o coração, era rarissimo na quase totalidade do Hospital, referência às afeições deixadas na Terra, pois que o genial aparelho

só era suscetível de registrar as invocações sinceras, aquelas que, pela natureza sublimada das vibrações emitidas no momento da Prece, se pudessem harmonizar às

ondas magnéticas transmissoras capazes de romper as dificuldades naturais e chegarem às mansões excelsas, onde é a Prece acolhida entre fulgores e bênçãos. Porém,

a verificar-se tão generoso fato não facultaria possibilidade de noticiário circunstanciado em torno da individualidade que o praticasse, tal como desejaria nossa

ansiedade. Daí as angústias excessivamente amargosas, a desoladora saudade por nos sentirmos esquecidos, privados de quaisquer informes!

Não obstante, os mesmos preciosos instrumentos de transmissão incessantemente revelavam que éramos lembrados por habitantes do Além. De outras zonas astrais,

como de outras localidades de nossa própria Colônia, chegavam fraternos votos de paz, conforto amistoso, encorajamento para os dias futuros. Oravam por nós em súplicas

ardentes, não apenas invocando o amparo maternal de Maria para nossas imensas fraquezas, mas ainda a intervenção misericordiosa do Mestre Divino.

Da Terra, todavia, não eram raras as vezes que discípulos de Allan Kardec, procurando pautar atitudes por diretrizes cristãs, se congregavam periodicamente em

gabinetes secretos, tais como os antigos iniciados no segredo dos santuários; e, respeitosos, obedecendo a impulsos fraternos por amor ao Cristo Divino, emitiam

pensamentos caridosos em nosso favor, visitando-nos freqüentemente através de correntes mentais vigorosas que a Prece santificava, tornando-as ungidas de ternura

e compaixão, as quais caíam no recesso de nossas almas cruciadas e esquecidas, quais fulgores de consoladora esperança!

Porém, não era só.

Caravanas fraternas, de Espíritos em estudo e aprendizados beneficentes, assistidas por Mentores eméritos, penetravam nossa tristonha região, provindas de zonas

espirituais mais favorecidas, a fim de trazer sua piedosa solidariedade, em visitações que muito nos desvaneciam. Assim fizemos boas relações de amizade com indivíduos

moralmente muito mais elevados do que nós, os quais não desdenhavam honrar-nos com sua estima. Tais amizades, tão suaves afeições seriam duradouras, porque fundamentadas

nos desinteressados, nos elevados princípios da fraternidade cristã!

Só muito mais tarde nos foi outorgada a satisfação de receber as visitas dos entes caros que nos haviam precedido no túmulo. Mesmo assim, porém, deveríamos contentar-nos

com aproximações rápidas, pois o suicida está para a vida espiritual como o sentenciado para a sociedade terrena: não tem regalias normais, vive em plano expiatório

penoso, onde não é lícita a presença de outrem que não os seus educadores, enquanto que ele próprio, dado o seu precário estado vibratório, não logrará afastar-se

do pequeno círculo em que se agita... até que os efeitos da calamitosa infração sejam totalmente expungidos.

"- E serás atado de pés e mãos, lançado nas trevas exteriores, onde haverá choro e ranger de dentes. Dali não sairás enquanto não pagares até o último ceitil..."

- avisou prudentemente o Celeste Instrutor, desde muito séculos...

Dois acontecimentos de profunda significação para o desenvolvimento de nossas forças no ajustamento ao plano espiritual verificaram-se logo nos primeiros dias

que se seguiram à nossa admissão ao magno instituto do astral. Dedicaremos o presente capítulo ao mais sensacional, reservando para o seguinte a exposição do segundo,

não menos importante, por decisivo na lição que, então, nos ofertou.

Certa manhã, apresentou-se-nos o jovem Dr. Roberto de Canalejas, a participar-nos que éramos convidados a importante reunião para aquela tarde, devendo todos

os recém-chegados se avistarem com o diretor do Departamento a que estávamos confiados no momento, para esclarecimentos de interesse geral.

Jerônimo, cujo mau-humor se agravava assustadoramente, formalmente declarou não desejar comparecer à mesma, pois que não se supunha obrigado a obediências servis

pelo simples fato de se encontrar hospitalizado, e mais que, na ocasião, somente se interessava pela obtenção de notícias da família. Roberto, porém, declarou delicadamente,

sem mostras de quaisquer agastamentos, que era portador de um convite e não de uma ordem, e 'que, por isso mesmo, nenhum de nós seria forçado a anuir.

Envergonhados frente à atitude incivil do companheiro, sentimo-nos também chocados, e foi com o melhor sorriso que encontramos nos arquivos de antigas recordações

que aquiescemos, agradecendo ainda a honra que nos dispensavam.

Já por esse tempo éramos submetidos a tratamento especializado, do qual adiante trataremos e com o qual igualmente não concordara o antigo irmão da Santíssima

Trindade, de Lisboa, assim que soube ser a terapêutica fundamentada nas fontes magnético-psíquicas, assuntos que absolutamente não admitia!

Não obstante, insofrido e displicente, dirigiu-se ao bondoso facultativo, logo após o incidente, e disse, esquecido já da lamentável atitude anterior:

"- Sr. doutor, um obséquio inestimável venho pensando em obter de V. Excia., confiado nos sentimentos generosos que de certo exornam tão nobre caráter. .

Roberto de Canalejas que, com efeito, antes de ser um espírito convertido ao Bem, dedicado operário da Fraternidade, teria sido na sociedade terrena perfeito

cavalheiro, esboçou sorriso indefinível e respondeu:

"- Estou ao seu inteiro dispor, meu amigo! Em que deverei atendê-lo?..."

É que... Tenho necessidade imperiosa de encaminhar certa petição à benemérita diretoria desta casa... Aflijo-me pela falta de informes de minha família, que

não vejo há muito... nem eu sei há quanto tempo!... Em vão tenho esperado notícias... e já não me restam forças para sofrer no peito as ânsias que me dilaceram...

Desejo obtenção de licença, da mui digna diretoria deste Hospital, para ir até minha casa, certificar-me dos motivos que ocasionam tão ingrato silêncio... Não sou

visitado pelos meus... Não recebo cartas... Será possível a V. Excia. encaminhar um requerimento ao Sr. Diretor? Não proibirão, de certo, os regulamentos internos,

a atitude que desejo tomar?. .

Como vemos pelo exposto, o pobre ex-comerciante do Porto parecia não fazer Idéia muito justa da situação em que se encontrava, e, mais do que os companheiros

de domicílio, perdia-se na desordem mental, entre os estados terreno e espiritual.

"- Absolutamente, meu caro! Não há proibição! O diretor deste estabelecimento terá satisfação em ouvi-lo!" - afirmou o paciente médico.

"- Farei então hoje mesmo o requerimento?..."

"- Encaminharei verbalmente a solicitação... e Joel participá-lo-á do que ficar resolvido..."

Cerca de dois quartos de hora depois, Joel voltava à enfermaria a fim de comunicar ao aflito doente que o diretor convidava-o a apresentar-se pessoalmente ao

seu gabinete. Vinha, porém, pensativo, e descobrimos um acento de pesar em seu semblante geralmente límpido e sorridente.

Nosso companheiro que, como é sabido, era, dentre os dez, o mais rebelde e indisciplinado, exigiu que Joel devolvesse o terno de roupa tomado à entrada, pois

repugnava-lhe apresentar-se ao gabinete do maioral envolvido num feio sudário de enfermaria, tal como nos encontrávamos todos.

Muito sério, Joel não tentou contrariá-lo. Devolveu-lhe, antes, a referida indumentária. Saíram.

Não teriam transposto ainda a galeria imensa, para onde se projetavam as portas dos dormitórios, e eis que o jovem Dr. de Canalejas e um dos nossos assistentes

hindus entraram em nosso compartimento, enquanto, sorridente, foi dizendo o último, com acento amistoso:

"- Aqui nos encontramos, meus caros amigos, a fim de convidar-vos a acompanhar vosso amigo Jerônimo de Araújo Silveira na peregrinação que deseja tentar. Estamos

cientes de que nenhum de vós se sente satisfeito com os regulamentos desta casa, que de algum modo intercepta noticiário circunstanciado proveniente dos planos terrenos.

No entanto, será bom sejais inforniados de que, se tal rigor se verifica, a vosso benefício o estabelecemos, muito embora não exista formal proibição para uma rápida

visita à Terra, como ides ver dentro em pouco. Atentai neste aparelho de visão a distância, que já conheceis, e acompanhai os passos de nosso Jerônimo desde o presente

momento. Caso venha a obter a licença que impetra, como espero que aconteça, dada a insistência em que se atém, fareis com ele a peregrinação que tanto deseja em

torno da família, sem, no entanto, precisardes sair deste local... E amanhã, se ainda desejardes descer aos vossos antigos lares em visi tação prematura, sereis

atendidos imediatamente... a fim de que as revoltas que vos vêm ferindo a mente não continuem retardando a aquisição de pendores novos que vos possam beneficiar

futuramente... Todos os demais enfermos em idênticas condições recebem igual sugestão neste momento. .

Aproximou-se do aparelho e, com graciosa desenvoltura, ampliou-o até que pudesse retratar a imagem de um homem em tamanho natural.

Perplexos, mas interessados, deixamos o leito, que raramente abandonávamos, a fim de nos postarmos diante da placa que principiava a iluminar-se. Fizeram-nos

sentar comodamente, em poltronaa que ornavam o recinto, enquanto aqueles zelosos colaboradores do Bem tomaram lugar ao nosso lado. Era como se aguardássemos o inicio

de uma peça teatral.

De súbito Joel surgiu diante de nós, tão visível e naturalmente, destacando-se no mesmo plano em que nos encontrávamos, que o supusemos dentro da enfermaria,

ou que nós outros seguíssemos ao seu encalço... Amparava Jerônimo pelo braço... caminhando em busca da saída de serviço... e tão intensa ia-se tornando a sugestão

que logo nos abstraímos, esquecidos de que, em verdade, continuávamos comodamente sentados em poltronas, em nossos aposentos...

Mais real do que o atual cinematógrafo e superior ao engenho da televisão do momento, esse magnífico receptor de cenas e fatos, tão usado em nossa Colônia, e

que tanta admiração nos causava, em esferas mais elevadas desdobrava-se, evolutia até atingir o sublime no auxílio à instrução de Espíritos em marcha para a aquisição

de valores teóricos que lhes permitissem, futuramente, testemunhos decisivos nos prélios terrenos, indo rebuscar e selecionar, nas longínquas planícies do espaço

celeste, o próprio passado do Globo Terráqueo e de suas Humanidades, sua História e suas Civilizações, assim como o pretérito dos indivíduos, se necessário, os quais

jazem esparsos e confundidos nas ondas etéreas que se agitam, se eternizam pelo invisível a dentro, nelas permanecendo fotografados, impressos como num espelho,

conquanto se conservem confusamente, de roldão com outras imagens, tal como na consciência das criaturas se imprimiram também seus próprios feitos, suas ações diárias!

Assim foi que atravessamos algumas alamedas do parque branco e atingimos o Edifício Central, onde se assentava a chefia daquela formosa falange de cientistas

iniciados que laboravam no Departamento Hospitalar.

À chegada, porém, Jerônimo passou para a tutela de um assistente do diretor e Joel retirou-se, tendo aquele conduzido imediatamente o visitante, fazendo-o passar

a uma sala onde amplas janelas deitavam vistas para o jardim, deixando descortinar-se o panorama melancólico do burgo onde tantas e tantas dores se entrechocavam!

Era um gabinete, espécie de escritório de consultas ou sala de visita, disposto em perfeito estilo indiano. Perfume sutil, de essência desconhecida ao nosso olfato,

deliciou-nos, ao mesmo tempo que alongava nossa admiração pela natureza inapreciável do aparelho que nos servia. Leve reposteiro, de tecido flexível e docemente

lucilante, agitou-se numa porta fronteira e o diretor-geral do Departamento Hospitalar apresentou-se.

De um salto o pobre Jerônimo, que se havia sentado, procurou levantar-se e seu primeiro gesto foi de fuga, no que se viu interceptado pelo acompanhante.

A sua frente estava um varão entre quarenta e cinqüenta anos, rigorosamente trajado à indiana, com turbante alvo onde cintilava formosa esmeralda qual estrela;

túnica de mangas fartas, faixa à cintura e sandálias típicas. O oval do rosto, suavemente moreno, era de pureza clássica de linhas, e de seus olhos fúlgidos e penetrantes

como se desprendiam chispas de inteligência e penetração magnética. Ao anelar da sinistra, gema preciosa, semelhante à do turbante, distinguia-o, quiçá como mestre

dos demais componentes da plêiade formosa de médicos ao serviço do Hospital Maria de Nazaré.

Tão encantados quanto o próprio Jerônimo, confessarno-nos vivamente atraidos pela nobre figura.

Sem delongas o assistente Romeu, pois era ele que havia recebido o impetrante, disse ao que vinha:

"- Caro irmão Teócrito, aqui está nosso pupilo Jerônimo de Araújo Silveira, que tanto nos vem preocupando... Deseja visitar a família no ambiente terreno, pois

acredita estar além das suas possibilidades de conformação a obediência aos princípios de nossa instituição... E afirma preferir o acúmulo de pesares à espera de

ocasião oportuna para o desejado desiderato..."

Irreverente, o apresentado interrompeu com nervosismo:

É bem essa a expressão da verdade, Sr. Príncipe! - pois imaginava-se em presença de um soberano. - Prefiro envolver-me novamente no remoinho de dores do qual

saí há pouco, a suportar por mais tempo as ferazes saudades que me cruciam pela falta de notícias de minha família!... Se, pois, não existe proibição intransigente

nas leis que facultariam essa possibilidade, rogo à generosidade de Vossa Alteza concessão para rever meus filhos!... Oh! as minhas queridas filhas! Como são formosas,

senhor! São três, e apenas um varão: - Arinda, Marieta, Margarida, que deixei com sete anos, e Albino, que contava já os dez!... Sofro tantas saudades, Senhor meu

Deus!... Minha esposa chama-se Zulmira, bonita mulher! e bastante educada!... Aflijo-me desesperadamente! Não consigo calma para a necessária ponderação quanto à

minha esquisita situação atual!... E por isso rogo humildemente a Vossa Alteza compadecer-se de minhas angústias!"

Os olhos faiscantes do chefe da falange de médicos caíram enternecidos sobre o Espírito intranqüilo daquele que demoraria ainda a aprender a dominar-se. Contemplou-o

bondosamente, penalizado ante a desarmonia mental do suplicante, entrevendo o longo carreiro de lutas que lhe seria necessário até que conseguisse planá-la às gratas

atitudes da renúncia ou da conformidade! Surpreso, Jerônimo, que contava encontrar a sombranceria dos burocratas terrenos, estagnados nas farfalhices apalhaçadas.

a que se apegam, aos quais estava habitua do, percebeu naquele olhar perscrutador a humildade de uma lágrima oscilando nas pálpebras.

O nobre varão tomou-o docemente pelo braço, fazendo-o sentar-se à sua frente, em cômodo coxim, enquanto Romeu, de pé, observava respeitosamente. O hindu

ofereceu ao suicida uma taça com água cristalina, por ele mesmo retirada de elegante jarro reluzente qual neblina sob a carícia do sol, O português sorveu-a, incapacitádo

de recusar; depois do que, algo serenado, tomou atitude de espera à solicitação enunciada.

"- Meu amigo! Meu irmão Jerônimo! - começou Teócrito. - Antes de à versão da tua súplica oferecer resposta, devo esclarecer que, absolutamente, não sou um príncipe,

como supuseste, e, por isso mesmo, não arrasto o título de Alteza. Sou, simplesmente, um Espírito que foi homem! que, tendo vivido, sofrido e trabalhado em várias

existências sobre a Terra, aprendeu, no trajeto, algo que com a própria Terra se relaciona. Um servo de Jesus Nazareno - eis o que me honro de ser, embora muito

modesto, pobre de méritos, rodeado de sesões! Um trabalhador humilde que, junto de vós, que sofreu, ensaia os primeiros passos no cultivo da Vinha do Mestre Divino;

destacado temporariamente, e por Sua ordem magnânima, para os serviços de Maria de Nazaré, Sua augusta Mãe!

Entre nós ambos, Jerônimo - eu e tu -, pequena diferença existe, distância não muito avançada: - é que, tendo vivido maior número de vezes sobre a Terra, sofri

mais, trabalhei um pouco mais, aprendendo, portanto, a me resignar melhor, a renunciar sempre por amor a Deus, e a dominar as próprias emoções; observei, lutei com

mais ardor, obtendo, destarte, maior soma de experiência. Não sou, como vês, soberano destes domínios, mas simples operário da Legião de Maria - Maria, única Majestade

a governar este Instituto Correcional onde te abrigas temporariamente! Um teu irmão mais velho - eis a verdadeira qualidade que em mim deverás enxergar!... sinceramente

desejoso de auxiliar-te na solução dos graves problemas que te enredam... Chama-me, pois, írmão Teócrito, e terás acertado.. ."

Fez breve pausa, alongando os belos olhos pela amplidão nevoenta que se divisava através das janelas, e prosseguiu, enternecido:

"- Desejas rever teus filhos, Jerônimo?!... É justo, meu amigo! Os filhos são parcelas do nosso ser moral também, cujo amor nos transporta de emoções supremas,

mas que não raramente também nos reduz à desolação de percucientes desgostos! Compreendo tuas ânsias frementes de pai amoroso, pois sei que amaste teus filhos com

sinceridade e desprendimento! Sei da fereza das tuas dúvidas atuais, afastado daqueles entes queridos que lá ficaram, no Porto, órfãos da tua direção e do teu amparo!

Como tu, eu também fui pai e também amei, Jerônimo! É mais do que justo, pois, que eu, validando teus sentimentos afetivos pela termometria dos meus, louve tua aspiração

antes de censurá-la, porqüanto muito atesta ela em favor dos teus respeitos pela Família! Contudo, de modo algum eu aconselharia a preterires este recinto, onde

tão penosamente te reergues, pelas influenciações deletérias dos ambientes terrenos, ainda que apenas por uma hora! ainda que para procurar informes de teus filhos!.

."

"- Senhor! Com o devido respeito à vossa autoridade, suplico comiseração!... Trata-se de visita rápida... dando-vos eu minha palavra de honra em como voltarei...

pois bem sei que não passo de um prisioneiro... - recalcitrou ainda o antigo impaciente, perdendo-se novamente nas confusões mentais em que se aprazia enredar.

"- Ainda assim não aprovarei a realização desse desejo no momento, conquanto o proclame justo... Sofreia um pouco mais os impulsos do teu caráter, meu Jerônimo!

Aprende a dominar emoções, a reter ansiedades, tornando-as em aspirações equilibradas sob a proteção santa da Esperança! Lembra-te de que foram tais impulsos, desequilibrados,

estribados na irresignação, na impaciência e no desconchavo do senso, que te arremessaram à violência do suicídio! Verás, sim, teus filhos! Porém, a teu próprio

benefício peço que concordes em adiar o projeto em mira para daqui a alguns poucos meses... quando estiveres mais bem preparado para enfrentar as conseqüências que

se precipitaram após teu desordenado gesto! Concorda, Jerônimo, em te submeteres ao tratamento conveniente ao teu estado, ao qual teus companheiros se submetem de

boamente, confiando nos servidores leais que a todos vós desejam socorrer com amor e desprendimento! Cede ao convite para a reunião de hoje à noite, porque imensos

beneficios dela auferirás... ao passo que uma visita à Terra neste momento, o contacto com a família, nas precárias condições em que te encontras, estariam em oposição

aos planos suaves já elaborados para conduzir-te à tão necessária reorganização de tuas forças..

"- Mas... Eu não adquiriria serenidade para nenhum projeto futuro enquanto não obtivesse as desejadas informações, senhor!... Oh, Deus do Céu! Margaridinha, minha

caçula, que lá ficou, com sete anos, tão loira e tão linda!. .

"- Já te lembraste de apelar para a grandeza paternal do Senhor Todo-Poderoso, a fim de obteres valor para a resignação de uma espera muito prudente, que seria

coroada de êxitos?... Queremos o teu bem-estar, Jerônimo, nosso desejo é encaminhar-te a situação que te forneça trégua para a reabilitação que se impõe... Volta-te

para Maria de Nazaré, sob cujos cuidados foste acolhido... é preciso que tenhas boa-vontade para te elevares ao Bem! Pratica a prece... procura comungar com as vibrações

superiores, capazes de te animarem a empreendimentos redentores... É indispensável que o faças por livre e espontânea vontade, porque nem te poderemos obrigar a

fazê-lo nem poderíamos fazê-lo por ti... Renuncia, pois, a esse projeto contraproducente e confia em nossos bons desejos de auxílio e proteção àtua pessoa...

Mas o ex-comerciante do Porto era inacessível. O caráter rebelde e violento, que num assomo de voluntariedade sinistra preferiu a morte a ter de lutar, impondo-se

à adversidade até corrigi-la e vencê-la, retorquiu impacientado, não compreendendo a sublime caridade que recebia:

"- Confiarei, senhor... irmão Teócrito... Viverei de rojo aos pés de todos vós, se necessário for!... mas depois de rever os meus entes caros e inteirar-me das

razões por que me abandonaram, ressarcindo, de algum modo, estas saudades que me despedaçam...

Cumprido seu dever de conselheiro, Teócrito compreendeu que seria inútil insistir. Contemplou o pupilo desfeito em lágrimas e murmurou tristemente, enquanto

Romeu abanava a cabeça, penalizado:

Afirmas grande verdade, pobre irmão! Sim! Só depois!... Só depois encontrarás o caminho da reabilitação!... Há índoles que só os duros aguilhões da Dor serão

bastante poderosos para corrigir, encaminhando-as para o Dever!... Ainda não sofreste o suficiente para te lembrares de que descendes de um Pai Todo-Misericordioso!.

.

Deixou-se estar alguns instantes pensativo e continuou:

"- Poderíamos evitar este incidente, impedir a visita e punir-te pela atitude tomada. Assiste-nos para tanto autoridade e permissão. Mas és ainda demasiadamente

materializado, padecendo, portanto, muitos prejuízos terrenos, para que nos possas compreender!... Aliás, nossos métodos, persuasivos e não dominadores, seriam incompatíveis

com uma proibição intransigente, por mais harmonizados com a Razão... Contudo, consultarei nossos Instrutores do Templo, como é dever em dilemas como o que acabas

de criar. .

Concentrou-se firmemente, retirando-se para compartimento secreto, contíguo ao gabinete de consultas. Comunicou-se telepaticamente com a direção-geral do Instituto,

que pairava no cantão do Templo, e, após curto espaço de tempo, tornou, dando a nota final:

"- Nossos orientadores maiores te permitem liberdade de ação. Conquanto uma entidade nas tuas condições não possa desfrutar a liberdade natural ao Espírito livre

das peias carnais, não poderás também ser por nós violentado a deveres que te repugnariam. Visitarás teus entes queridos na Terra... Irás, portanto, a Portugal,

à cidade do Porto, onde residias, a Lisboa, tal como desejas... E como a ternura paternal do Criador leva a extrair, muitas vezes, de um ato imprudente ou condenável,

exemplificação salutar para o próprio delinqüente ou para o seu observador, estou certo de que tua inconseqüência nem será estéril para ti mesmo nem deixará de avolumar

profundas advertências para quantos de boa-vontade delas tomarem conhecimento. Atenta porém, no seguinte, meu caro Jerônimo: - É que, deixando de aceitar nossos

conselhos e insurgindo-te contra os regulamentos deste Instituto, cometerás falta cujas conseqüências recairão sobre ti mesmo. Essa visita será realizada sob tua

exclusiva responsabilidade! Não existe permissão para ela: - é o teu livre-arbítrio que a impõe! Se os descontentamentos daí conseqüentes exorbitarem das tuas capacidades

para o sofrimento, dirigirás as queixas contra ti mesmo, porqüanto nossos esforços só se aplicam em dulcificar infortúnios e evitá-los quando desnecessários... Por

isso mesmo deixamos de fornecer as desejadas notícias pelos meios de que dispomos... pois a verdade é que não havia necessidade de te afastares daqui a fim de obtê-las...

Voltou-se para o assistente e prosseguiu:

"- Preparem-no para que siga... Satisfaçam-lhe os caprichos sociais terrenos... porque bem cedo se aborrecerá da Terra... Que o deixem agir como deseja... A

lição será amarga, mas ensejará mais rápida compreensão e conseqüentemente progresso..."

Fez-se pausa na seqüência da reprodução dos acontecimentos. Surpreendera-nos grande ansiedade ao passo que censurávamos o companheiro pela displicência com que

se portara. Concordáramos em atribuir à má educação de Jerônimo o desrespeito manifesto aos regulamentos da nobre instituição, no que fomos aparteados pelos servidores

presentes:

"- Certamente, a boa educação social auxilia grandemente a adaptação aos ambientes espirituais. Ela não representa, porém, tudo. Os sentimentos depurados, o estado

mental harmonizado a princípios elevados, as boas qualidades de caráter e de coração, produzindo a "boa educação" moral, é que formam o elemento primordial para

uma prometedora situação no além-túmulo... desde que um suicídio não venha anular tal possibilidade..."

"- Não poderiam os diretores desta casa fornecer as notícias solicitadas, sem que o enfermo se arriscasse a uma viagem de gravosas conseqüências para o seu estado

geral?..." - inquiri, curioso.

"- Sim, se tais notícias concorressem para o bem-estar do paciente. Aliás, em regra geral, convém a entidades nas vossas condições abaterem-se de quaisquer choques

ou emoções que alimentem o estado de excitação em que se encontrem... Notícias da Terra jamais confortarão algum de nós, que pertencemos à Espiritualidade! No presente

caso torna-se evidente o desejo da administração da casa de encobrir ao pobre enfermo algo que o ferirá profundamente, sem necessidade. Se se submetesse de boa-vontade

aos regulamentos protetores, a realidade que presenciará dentro em pouco viria ao tempo em que estivesse suficientemente preparado para enfrentá-la, o que evitaria

choques grandemente dolorosos. Insubordinando-se, porém, coloca-se em situação melindrosa, razão por que foi ele entregue às próprias inconseqüências, as quais farão

com violência, em torno dele, o trabalho educativo que seus conselheiros efetuariam suave e amorosamente.. ."

Eis, porém, que voltávamos a observar movimentação na luminosidade do receptor de imagens. E o que então se passou exorbitou tanto de nossa expectativa que passamos

a sofrer com o desventurado Jerônimo os dramáticos sucessos com sua família desenrolados depois de sua morte.

O assistente Romeu providenciou ordens para o Departamento de Vigilância, ao qual se achavam afetos todos os serviços exteriores da Colônia. Olivier de Guzman,

seu diretor zeloso, apelou para a Seção das Rela ções Externas, no sentido de serem fornecidos dois guias vigilantes, de competência comprovada, a fim de acompanharem

o visitante à Terra, pois não seria admissível abandonar-se aos perigos de tal excursão um pupilo da Legião dos Servos de Maria, ainda inexperiente e fraco.

Apresentaram-se - Ramiro de Guzman -, no qual reconhecemos o chefe das expedições que visitavam O Vale Sinistro, sob cuja responsabilidade de lá também saíramos;

e outro cujo nome ignorávamos, ambos igualmente envergando a já popular indumentária de iniciados orientais.

Começávamos a compreender que, nesse Instituto modelar, os postos avançados, de mais grave responsabilidade; as tarefas melindrosas, que exigissem maior soma

de energia, vontade, saber e virtudes, achavam-se a cargo dessas personagens atraentes e belas, em quem descortinamos, desde os primeiros dias, altas qualidades

morais e intelectuais.

As ordens de Olivier foi preparada expedição condigna, em a qual não faltou nem mesmo a guarda de milicianos.

No entretanto, transformação sensível operara-se nas atitudes do pobre Jerônimo. A auto-obsessão da visita àfamília, conturbando-lhe as faculdades, tornava-o

alheio a tudo que o rodeava, reintegrando-o mais do que nunca à condição que fora a sua quando homem: - burguês rico de Portugal, comerciante de vinhos, zeloso da

opinião social, escravo dos preconceitos, chefe de família amoroso e extremado. Víamo-lo agora trajando boa sobrecasaca, vistosa gravata, bengala de castão dourado

e sobraçando ramalhete de rosas para oferecer à esposa, pois tudo isso exigira da paciente vigilância de Joel, a quem haviam recomendado satisfazer-lhe os desejos.

E nossos mentores, presentes na enfermaria, apreendendo nossa admiração, esclareciam que, só muito vagarosamente, Espíritos vulgares ou muito humanizados conseguem

desfazer-se dessas pequenas frivolidades inseparáveis das rotinas terrestres.

Rigorosamente guardado, a viajar em veículo discretamente fechado, Jerônimo assemelhava-se, com efeito, a uni prisioneiro. Parecia não se aperceber disso, no

entanto. Parecia não distinguir mesmo a presença de Ramiro e seus auxiliares, tão abstrato se encontrava, julgando-se em viagem como outras que outrora lhe foram

comuns.

Corria regularmente o veículo. Não fora a presença dos guardiães recordando a cada instante a natureza espiritual da cena, afirmaríamos tratar-se de carruagem

que nada tinha de "criação semimaterial", que a necessidade dos métodos educativos do Além impõe, mas de um muito pesado e confortável meio de transporte que bem

poderia pertencer à própria Terra.

Vimos que atravessavam estradas sombras, gargantas cobertas de plúmbeas nevadas, desfiladeiros, vales lamacentos quais brejais desoladores, cuja visão nos deixavam

inquietos, pois asseveravam nossos atenciosos assistentes serem tais panoramas produtos mentais viciados dos homens terrenos e de infelizes Espíritos desencarnados,

arraigados às manifestações inferiores do pensamento. Os viajantes, porém, atingiam agrupamentos como aldeias miseráveis, habitadas por entidades pertencentes aos

planos ínfimos do Invisível, bandoleiros e hordas de criminosos desencarnados, os quais investiam sobre a carruagem, maldosos e enraivecidos, como desejando atacá-la

por adivinharem no seu interior criaturas mais felizes que elas próprias. Mas a flâmula alvinitente, indiciando o emblema da respeitável Legião, fazia-os recuar

atemorizados. Muitos desses futuros arrependidos e regenerados - pois tendiam todos ao progresso e à reforma moral por derivarem, como as demais criaturas, do Amor

de um Criador Todo Justiça e Bondade - descobriam-se como se homenageassem o nome respeitável evocado pela flâmula, ainda conservando o hábito, tão comum na Terra,

do chapéu à cabeça, enquanto outros se afastavam em gritos e lágrimas, proferindo blasfêmias e imprecações, causando-nos pasmo e comiseração... E o carro prosseguia

sempre, sem que seus ocupantes se dirigissem a nenhum deles, certos de que não soara ainda para seus corações endurecidos no mal o momento de serem socorridos para

voluntariamente cogitarem da própria reabilitação.

De súbito, brado uníssono, conquanto discreto, exalou-se de nossos peitos qual soluço de saudade enternecedora, vibrando docemente pela enfermaria:

- Portugal! Pátria venerada! Portugal!...

- Oh! Deus do Céu!... Lisboa! O Tejo formoso e sobranceiro!... O Porto! O Porto de tão gratas recordações!...

- Obrigado, Senhor Deus!... Obrigado pela mercê de revermos o torrão natal depois de tantos anos de ausência e de tumultuosas saudades!...

E chorávamos enternecidos, gratamente emocionados! Paisagens portuguesas, com efeito, todas muito queridas aos nossos doloridos corações, rodeavam-nos como se,

tal como afirmaram de início os mentores presentes, fizéssemos parte da comitiva do pobre Jerônimo!

Radicando-se mais em nós a sugestão consoladora pela excelência do receptor, mais se acentuavam em nossas faculdades a impressão de que pessoalmente pisávamos

o solo português, quando a verdade era que não saíramos do Hospital!...

A silhueta, a princípio longínqua, da cidade do Porto, desenhou-se palidamente nas brumas tristonhas que envolvem a atmosfera terráquea, qual desenho a "crayon"

sobre tela acinzentada. Alguns instantes mais e a estranha caravana caminhava pelas ruas da cidade, qual o fizesse no cantão da Vigilância, o que muito nos edificou.

Algumas artérias portuguesas, velhas conhecidas do nosso tumultuoso passado, desfilaram sob nossos olhos róridos de comovido pranto, como se também por elas transitássemos.

Agitadíssimo, Jerônimo, pressentindo a realidade daquilo que ominosas angústias lhe segredavam ao senso, e que apenas a insânia do pavor ao inevitável teimava inutilmente

acobertar, estacou à frente de uma residência de boa aparência, com jardins e sacadas, subindo precipitadamente a escadaria, enquanto os tutelares se predispunham

caridosamente à espera.

Fora ali a sua residência.

O antigo comerciante de vinhos entrou desembaraçadamente, e seu primeiro impulso de afeto e saudade foi para a filha caçula, por quem nutria a mais apaixonada

atração:

"- Margaridinha, oh! minha filhinha querida! Aqui está o teu papai, Margaridinha!... Mar-ga-ri-di-nha? !..." - tal qual lhe chamava outrora, todas as tardes,

voltando ao lar após as lides penosas do dia...

Mas ninguém acudia aos seus amorosos apelos! Apenas a indiferença, a solidão decepcionante em derredor, augurando desgraças porventura ainda mais rijas do que

as suportadas por seu coração até ali, enquanto nas profundezas sentimentais de sua alma atormentada por múltiplos dissabores atroavam desoladoramente os brados

amorosos, mas inúteis, do seu carinho de pai, incorrespondidos agora pela mimosa criança já afastada daquele local, que tão querido lhe fora!

"- Margaridinha!... Onde estás, filhinha?... Margaridinha!... Olha que é o teu papaizinho que chega, minha filha!..."

Procurou por toda a casa. Parecia, no entanto, que haviam desaparecido de sob a luz do Sol todos aqueles pedaços sacrossantos de sua alma, que ali deixara, e

que, único sobrevivente, ele, de incomensurável catástrofe, não se podia acomodar à esmagadora realidade de rever desabitado, dramaticamente vazio, o lar que tanto

estremecera!

Chamou pela esposa, nomeou os filhos um a um, e finalmente bradou pelos criados: - Não via ninguém!

Sombras e vultos estranhos, no entanto, moviam-

-se pelos compartimentos que pertenceram à família e deixavam-no bramir e interrogar sem se dignarem responder, não se apercebendo de sua presença... pois tratava-se

de indivíduos encarnados, eram os novos habitantes da casa que lhe pertencera! O próprio mobiliário, a decoração interior, tudo se apresentava diferente, apontando

acontecimentos que o confundiam. Decepção pungente desferiu-lhe golpe certeiro, deslocando-lhe da alma o primitivo entusiasmo para que aflitivas induções nela mais

se avigorassem. Reparando suspensas aos mu ros de determinado aposento telas que lhe eram desconhecidas, seu olhar fixou-se num cromo colocado a um ângulo da estufa,

cuja folhinha indicava a data do dia decorrente. Leu-a:

- 6 de novembro de 1903 -

Um arrepio de terror insopitável repassou soturnamente por suas faculdades vibratórias. Fez um esforço inaudito, movimentando reminiscências; vasculhou

lembranças, sacudindo a poeira mental de mil idéias confusas que lhe toldavam a clareza do raciocínio. A vertigem da surpresa em face da realidade irremediável,

que até ali ele retardara à custa da má-vontade de sofismas ingênuos, tonteou-lhe o raciocínio: - não cogitara inteirar-se de datas durante muito tempo! A verdade

era que perdera a noção do tempo envolvido no bulcão das desgraças que o colheram após o malfadado gesto de trânsfuga da vida terrena! Tão gudo fora o estado de

loucura em que se debatera desde o trágico momento em que tentara o suicídio; tão grave a enfermidade que o atingira após o choque pela introdução do projetil no

cérebro, que, graças aos tormentos daí conseqüentes, perdera a contagem dos dias, desviara-se pelo Desconhecido a dentro sem mais averiguar se os dias eram noites,

se as noites eram dias... pois, no abismo em que se vira aprisionado tanto tempo, só existiam trevas por visão! Para ele, para sua percepção obliterada pelo desespero,

a contagem social do Tempo ainda era a mesma do dia aziago, pois não se recordava de outra depois dessa:

- 15 de fevereiro de 1890 -

Eis, porém, que a folhinha à sua frente, indiferente,

mas expressiva, servindo a uma grandiosa causa, revelava ao mártir que estivera ausente de sua casa durante treze anos!

Atirou-se para a rua em correria, batido e apavorado frente ao choque do pretérito, de encontro à rea lidade do presente, a mente conflagrada por inalienável

desconsolo. Indagaria dos vizinhos o paradeiro da família, que se mudara, decerto, em sua ausência. Os lanceiros, porém, à porta, cruzando as armas, formaram barreira

intransponível, interceptando-lhe a fuga impensada, e obrigando-o a refugiar-se no interior do carro. Aos protestos impressionantes do infeliz, inconformado com

a prisão em que se reconhecia, acudiram curiosos e vagabundos do plano invisível, Espíritos ainda homiziados nas camadas depressoras da Terra. Entre chacotas, apupos

e gargalhadas atormentavam-no com incriminações e censuras, ao passo que esclareciam o que acontecera àqueles a quem procurava. Ramiro de Guzman e seus auxiliares

não interferiram, no sentido de evitarem a Jerônimo o dissabor de ouvi-los, uma vez que a visita decorria sob a responsabilidade deste, e que somente lhes haviam

recomendado garantirem o regresso à Colônia dentro de poucas horas.

"- Pretendes então esclarecer o paradeiro de tua muito amada família, ó miserável príncipe dos bons vinhos?... - vociferavam os infelizes. - Pois saibas tu que

daí foram todos enxotados, há muitos anos!... Teus credores tomaram-lhes a casa e o pouco que, para teus filhos, andaste ocultando à última hora! Procura teu filho

Albino na Penitenciária de Lisboa! Tua "Margaridinha" nas sarjetas do Cais da Ribeira, vendendo peixes, fretes e amores a quem se dignar remunerá-la com mais prodigalidade,

explorada pela própria mãe, tua esposa Zulmira, a quem habituaste a luxo exorbitante para az tuas posses, e cujo orgulho jamais pôde afazer-se ao trabalho digno

e à pobreza!... Tuas filhas Marieta e Arinda?... Oh! a primeira está casada, sobrecarregada de filhos enfermiços, a bracejar na miséria, a sofrer fome, espancada

por um marido ébrio e boçal A segunda... criada de hotéis de quinta ordem, a lavar chão, a brunir panelas, a limpar botas de viajantes imundos!... Ouves e te espantas?...

Tremeu e te aterrorizas?... Por quê?... Que esperavas, então, que acontecesse?!... Não foi essa a herança que lhes deixaste com o teu suicídio, canalha?..."

E entraram a enxovalhar o desventurado com insultos e vitupérios quais vaias impiedosas, intentando atacar a viatura a fim de arrebatá-lo, no que foram impedidos

pela guarda protetora.

Não obstante, exigiu o rebelde pupilo da Legião dos Servos de Maria que o levassem onde se encontrava o filho, esperança que fora da sua vida, aquele rebento

querido, que ficara na florescência delicada das dez primaveras quando ele próprio, seu pai, houvera por bem abandoná-lo aos perigos da orfandade, matando-se.

Convulsionado sob a ardência de pranto insólito, compreendeu que era conduzido e que penetrava os muros sinistros de um cárcere, sem que houvesse podido distinguir

se se encontrava no Porto ou realmente em Lisboa.

Com efeito! Ali estava Albino, metido em cela sombria, implicado em crimes de chantagem e latrocínio, condenado a cinco anos de prisão celular e a outros tantos

de trabalhos forçados na África, como reincidente nas gravíssimas faltas! Apesar da diferença marcante de treze anos de ausência, Jerônimo reconheceu o filho, esquálido,

pálido, maltratado pelos rigores do cativeiro, embrutecido pelos sofrimentos e pela miséria, atestado patético do homem desvirtuado pelos vícios!

O antigo negociante contemplou o mísero vulto sentado sobre um banco de pedra, na semi-obscuridade da cela, o rosto entre as mãos. Dos olhos amortecidos, fitos

nas lajes do chão, rolavam lágrimas de desespero, compreendendo o suicida que o jovem sofria profundamente. Extenso desfilar de pensamentos caliginosos corria pela

mente do cativo, e, dada a circunstância da atração magnética existente entre ambos, pôde o hóspede do Hospital Maria de Nazaré inteirar-se das comovedoras peripécias

que ao desventurado moço haviam arrastado a tão deplorável ocaso da vida social, apenas saíra da infância! Como se a presença da atribulada alma de Jerônimo impregnasse

de advertências telepáticas seus dons sensíveis, Albino entrou a recordar, satisfazendo, sem o saber, os desejos do pai, que almejava inteirar-se dos acontecimentos;

e, como envergonhado das más ações cometi das, recordava o genitor morto havia treze anos e ia dizendo ao próprio pensamento, enquanto as lágrimas lhe escaldavam

as faces e Jerônimo ouvia-o como se falasse em voz alta:

"- Perdoai-me, Senhor, meu bom Deus! E vinde com Vossa Misericórdia socorrer-me nesta emergência penosa de minha vida! Não foi, exatamente, desejo meu o precipitar-me

neste báratro insolúvel que me ferreteou para sempre! Eu quisera ser bom, meu Deus! mas faltaram amigos generosos que me estendessem mãos salvadoras, ocasiões favoráveis

que me dilatassem perspectivas honestas! Vi-me lançado ao abandono depois da morte de meu pai, criança indefesa e inexperiente! Não tive recursos para instruir-me,

habilitando-me em alguma coisa séria e digna! Sofri fome! E a fome maltrata o corpo enquanto envenena o coração com as ansiedades da revolta! Tiritei de frio em

mansardas inóspitas, e o frio, que enregela o corpo, também enregela o coração! Sofri a angústia negra da miséria sem esperança e sem tréguas, a solidão do órfão

corroído de saudades do passado, envelhecido em pleno alvorecer da vida, graças às desilusões de múltiplos dissabores! Não me pude achegar aos bons, aos honestos

e respeitáveis, para que me compreendessem e ajudassem na conquista laboriosa de um futuro digno, porque aqueles de nossos antigos amigos a quem procurei, confiante,

me repeliram com desconfiança, entendendo que eu pertencia a uma descendência marcada pela desonra, pois, além do mais, minha mãe desvirtuou-se tão logo se reconheceu

desamparada e só! Tornei-me homem depois de me entrechocar com os piores aspectos e elementos da sociedade! Precisei viver! Acicatava-me o orgulho ferido, a indomável

ambição de libertar-me da miséria abominável que me acossava sem tréguas desde o suicídio de meu pobre pai! Vi-me arrastado a tentações perversas, mas que, à minha

ignorância e à minha fraqueza, se afiguravam soluções salvadoras!... E cedi às suas seduções, porque não tive o amparo orientador de um verdadeiro amigo a indicar

o carreiro certo a preferir!... Oh, meu Deus! Que triste é ver-se a criatura órfã e abandonada, ainda na infân cia, neste mundo repleto de torpezas!... Meu pobre

e querido pai, por que te mataste, por quê?... Não amavas então a teus filhos, que se desgraçaram com tua morte?... Por que te mataste, meu pai?... Oh! não tiveste

sequer compaixão de nós?... Lembro-me tanto de ti!... Eu te amava! eu sim!... Muitas vezes, naqueles primeiros tempos, chorei inconsolável, com saudades tuas, tão

bondoso eras para com teus filhos!... Se nos amavas, por que te mataste, por quê?... Por que preferiste morrer, lançar-nos à miséria e ao abandono, a lutar por amor

de nós?... Por que não resististe aos dissabores, prevendo que tua falta desgraçaria teus pobres filhos que só contigo contavam neste mundo .... Se viveras e nos

houveras terminado a criação eu seria hoje, certamente, um homem útil, respeitado e honesto, enquanto que, na verdade, não passo de um precito maculado pela desonra

irreparável!.. ."

Eram vibrações sombrias e causticantes, que repercutiam na consciência do pai-suicida como estiletes a lhe rasgarem o coração! Confessava-se culpado único dos

desastres insolúveis do filho, e semelhante convicção se dilatava de intensidade, em diástoles torturantes, à proporção que as recordações, emergindo das fráguas

mentais de Albino, desfilavam quais retalhos de episódios dolorosos, aos seus olhos aterrados de trânsfuga do Dever! Jamais um homem, na Terra, receberia tão significativo

libelo acusatório, presente ao tribunal da lei, como esse que o desventurado suicida a si mesmo lançava validando a narração dos infortúnios descritos através das

reminiscências do filho, e que as sombras do presídio circundavam dos lúgubres atavios dos dramas profundos e irremediáveis!

Desorientado, precipitou-se para o jovem, no incontido desejo de ressarcir tantas e tão profundas amarguras com o testemunho de sua presença, do seu perene interesse

paternal, seu indissolúvel amor pronto a estirar mão amiga e protetora. Queria desculpar-se, suplicar perdão, ele, o pai faltoso; dar-lhe expressivos conselhos que

o reconfortassem, reerguendo-lhe o ânimo daquela ruinosa prostração! Mas era em vão que o tentava, porque Albino deixava correr o pranto, sem vê-lo, sem ouvi-lo,

sem poder supor a presença daquele mesmo por quem chorava ainda!

Então o mísero se pôs a chorar também, emitindo vibrações chocantes, reconhecendo-se impotente para socorrer o filho encarcerado. E como sua presença, expedindo

desalentos, disseminando ondas nocivas de pensamentos dramáticos, poderia agir funestamente sobre a mentalidade frágil do detento, sugerindo-lhe quiçá o próprio

desânimo gerador do suicídio - Ra.miro de Guzman e seu assistente aproximaram-se e desarmaram-lhe as investidas encobrindo Albino de sua visão.

"- Voltemos para nossa mansão de paz, meu amigo, onde encontrarás repouso e solução suave para as tuas atrozes penúrias... - ponderava amigavelmente o chefe da

expedição. - Não recalcitres! Volta-te para o Amor dAquele que, pregado no cimo do madeiro, ofereceu aos homens, como aos Espíritos, os ditames da conformidade no

infortúnio, da resignação no sofrimento!... Estás cansado... precisas serenar para refletir, porque, no melindroso estado em que te encontras, nada alcançarás fazer

a benefício de quem quer que seja!..."

Mas, ao que tudo indicava, Jerônimo ainda não padecera suficientemente a fim de se acomodar às advertências de seus guias espirituais.

"- Não posso, queira desculpar-me, senhor!... -bradou voluntarioso. - Não deixarei de ver minha filha, minha Margaridinha! Quero vê-la! Preciso desmascarar a

turba de maledicentes que a vêm difamando!... A minha caçula, atirada ao Cais da Ribeira?!... A vender peixes?... Fretes?... e... Era o que faltava!... Impossível!

Impossível tanta desgraça acumulada sobre um só coração!... Não! Não é verdade! Não pode ser verdade! Confio em Zulmira! É mãe! Velaria pela filha em minha ausência!

Quero vê-la, meu Deus! meu Deus! Preciso ver minha filha! Preciso ver minha filha, ó Deus do Céu!"

Era bem certo, no entanto, que novas e mais atrozes torrentes de decepções se despejariam sobre seu ulcerado coração, superlotando-o de dores irreparáveis!

Ainda ao longe, desenhara-se à visão ansiosa do estranho peregrino a perspectiva do Cais da Ribeira, regurgitando de pessoas que iam e vinham em azáfamas incansáveis.

Avultavam as vendedoras e regateiras, mulheres que se alugavam a fretes, de ínfima educação e honestidade duvidosa.

Jerônimo pôs-se a caminhar entre os transeuntes, seguido de perto pelos guardas e o paciente vigilante, que se diria a sua própria sombra. Esmagadores pressentimentos

advertiam-no da veracidade do que afirmavam os "difamadores". Mas, desejando mentir a si próprio, na suprema repugnância de aceitar a abominável realidade, via-se

compelido a investigar as fisionomias das regateiras; ia, voltava, nervosamente, aflito, aterrado à idéia de se lhe deparar entre aquelas despreocupadas e insolentes

criaturas as feições saudosas da sua adorada caçula!

Deteve-se subitamente, num recuo dramático de alarme: - acabara de reconhecer Zulmira gesticulando, em discussão acalorada com uma jovem loira e delicada, que

se defendia, chorando, das injustas e insofríveis acusações que lhe eram atiradas por aquela. Acercou-se apressadamente o pupilo do nobre Teõcrito, como impelido

por desesperadora diástole, para, em seguida, atingido por supremo golpe, estacar, submisso a sístole não menos torturante, reconhecendo na jovem chorosa a sua Margaridinha.

Era, com efeito, peixeira! Ao lado pousavam os cestos quase vazios. Trazia os vestidos típicos da classe e socos imundos. Zuhnira, ao contrário, trajava-se quase

como as senhoras, o que não a impedia portar-se como as regateiras.

Girava em torno da féria do dia a discussão vergonhosa. Zuhnira acusava a filha de roubar-lhe parte do produto das vendas, desviando-a para fins escusos. A moça

protestava entre lágrimas, envergonhada e sofredora, afirmando que nem todos os fregueses do dia haviam solvido seus débitos. No calor da discussão, Zulmira, excitando-se

mais, esbofeteia a filha, sem que as pessoas presentes parecessem admiradas ou tentassem impedir a violência, serenando os ânimos.

Tomado de indignação, o antigo comerciante inter-põe-se entre uma e outra, no intuito de sanar a cena deplorável. Admoesta a esposa, fala carinhosamente àfilha,

enxuga-lhe o pranto, que corria pelas faces, convida-a a recolher-se ao domicílio. Mas nenhuma das duas mulheres podiam vê-lo, não podiam ouvi-lo, não se apercebiam

de suas intenções, o que grandemente o irritava, levando-o a convencer-se da inutilidade das próprias tentativas.

Não obstante, Margaridinha suspendeu os cestos, ajeitou-os ao ombro e afastou-se. Zulmira, a quem as adversidades mal suportadas e mal compreendidas haviam arrastado

ao desmando, transformando-a em megera ignóbil, seguiu-a enraivecida, explodindo em vitupérios e insultos soezes.

O percurso foi breve. Residiam em sombria mansarda, nas imediações da Ribeira. Em chegando ao misérrimo domicílio, a mãe desumana entrou a espancar excruciantemente

a pobre moça, exigindo-lhe a todo custo a totalidade da féria, enquanto, impotente, a peixeira implorava trégua e compaixão. Finalmente, a desalmada - para quem

o Espírito atribulado do esposo leal trouxera, das moradas do Astral, um ramalhete de rosas -saiu precipitadamente, arrastando ondas turvas de ódio e pensamentos

caliginosos, atirando aos ares insultos e blasfêmias no calão que, agora, lhe era próprio, e do qual Jerônimo se surpreendeu, confessando desconhecê-lo.

A jovem ficou só. A seu lado o vulto invisível do pai amoroso e sofredor entregava-se a cruciantes expansões de pranto, reconhecendo-se impossibilitado de socorrer

o adorado rebento do seu coração, a sua Margaridinha, a quem entrevia ainda, mentalmente, tão loira e tão linda, na lirial candidez dos sete anos!... Mas, tal como

sucedera a seu irmão Albino, a infeliz menina ocultou o rosto lavado em lágrimas entre as mãos e, sentando-se a um recanto, rememorou dolorosamente os dias trevosos

da sua tão curta e já tão acidentada vida!

Margarida abriu as comportas dos pensamentos, e ondas de recordações pungentes se desprenderam aos borbotões, fazendo ciente ao pai o extenso calvário de desventura

que passara a palmilhar desde o dia nefasto em que ele se tornara réu perante a Providência, furtando-se ao dever de viver a fim de protegê-la, tornando-a mulher

honesta e útil à sociedade, à família e a Deus. Ouvia-a como se ela lhe falasse em voz alta. Àproporção que se consolidavam as desgraças da mísera órfã, acentuavam-se

a decepção, a surpresa cruciante, a mágoa inconsolável, que lhe atravessavam o coração como venábulos assassinos a lhe roubarem a vida! Caiu de joelhos aos pés da

sua desventurada caçula, as mãos cruzadas e súplices, enquanto jorrava o pranto convulsamente de sua alma de precito e tremores traumáticos sacudiam-lhe a configuração

astral, como se estranhas sezões pudessem subitamente atingi-lo.

E foi nessa humilhada posição de culpa que o pupilo da legião excelsa recebeu o supremo castigo que as conseqüências do seu ominoso e selvagem gesto de suicídio

poderia infligir à sua consciência!

Eis o resumo acerbo do drama vivido por Margarida Silveira, tão comum nas sociedades hodiernas, onde diariamente pais inconscientes desertam da responsabilidade

sagrada de guias da Família, onde mães vaidosas e levianas, destituídas da auréola sublime que o dever bem cumprido confere aos seus heróis, desvirtuam-se aos solavancos

brutais das paixões insanas, incontidas pela-perversão dos costumes:

Tornando-se órfã de pai aos sete anos, a loira e linda Margaridinha, frágil e delicada como lírios florescentes, criara-se na miséria, entre revoltas e incompreensões,

junto à mãe que, habituada à imoderação de insidioso orgulho, como ao imperativo de vaidades funestas, nunca se resignara à decadência financeira e social que a

surpreendera com o trágico desaparecimento do marido. Zulmira prostituíra-se, esperando, em vão, reaver o antigo fastígio por essa forma culposa e condenável. Arrastara

a filha inexperiente para a lama de que se contaminara. Indefesa e desconhecedora das insídias brutais dos ambientes e hábitos viciados que a correjavam, a moça

sucumbiu muito cedo às teias do mal, a despeito de não apresentar pendores para as miseráveis situações diariamente surgidas. A decadência chegou cedo, como cedo

havia chegado a queda desonrosa. O trabalho exaustivo e o Cais da Ribeira com sua usual movimentação de feira ofereceram-lhes recursos para não se extinguirem, ela

e a mãe, às aspérrimas torturas da fome! Zulmira agenciava fretes, vendas variadas, negócios nem sempre honestos, empregando geralmente na sua execução as forças

e a juventude atraente da filha, a quem escravizara, usurpando lucros e vantagens para seu exclusivo regalo. A pobre peixeira, porém, cuja índole modesta e aproveitável

não se aclimatava ao fel da execrável subserviência, sofria por não entrever possibilidade de sonegação à miserável existência que lhe reservara o destino. E, inculta,

inexperiente, timida, não saberia agir em defesa própria, o que a fazia conservar-se submissa à enoitada situação criada por sua própria mãe! Como Albino, também

pensou no pai, advertida, no recesso do coração, da sua invisível presença, e murmurou, oprimida e arquejante:

"- Que falta tão grande tu me fazes, 6 meu querido e saudoso pai!... Lembro-me tanto de ti!... e minhas desventuras nunca permitiram olvidar tua memória, tão

bom e desvelado foste para com teus filhos! Quantos males o destino ter-me-ia poupado, meu pai, se te não houveras furtado ao dever de velar por teus filhos até

o final!... De onde estiveres, recebe as minhas lágrimas, perdoa a peçonha que sobre teu nome involuntariamente lancei, e com padece-te das minhas ignóbeis desditas,

ajudando-me a desentrançar-me deste espinheiro cruciante que me sufoca sem que nenhuma fulguração de esperança libertadora venha encorajar-me!

Era o máximo que o prisioneiro do Astral poderia suportar! Ele não possuía energias para continuar sorvendo o fel das amarguras lançadas no sacrossanto seio

de sua própria família pelo ato condenável que contra si mesmo praticara! Ouvindo os lamentos da desgraçada filha a quem tanto estremecia, sentiu-se abominavelmente

ferido na mais delicada profundeza do seu coração paternal, onde infernais clamores de remorsos repercutiram violentamente, acordando em suas entranhas espirituais

a dor inconsolável, a dor redentora da mais sincera compaixão que poderia experimentar! Desesperando-se, na impossibilidade de prestar à filhinha infeliz socorro

imediato, de falar-lhe, ao menos, insuflando ânimo à sua alma com o consolo de sua presença, ou aconselhando-a, Jerônimo avolumou o padrão dos desatinos que lhe

eram comuns e entregou-se à alucinação, completamente influenciado pela loucura da inconformidade.

Acorreram os lanceiros a imperceptível sinal de Ramiro de Guzman. Cercaram-no, protegendo-o contra o perigo de possível evasão, afastando-o apressadamente. Condoído

em face dos infortúnios da jovem Margarida, Ramiro, que fora homem, fora pai e tivera uma filha muito amada, porventura mais infeliz ainda, aproximou-se carinhosamente

e, pousando em sua fronte as mãos protetoras, transmitiu-lhe ao ser suaves eflúvios magnéticos, confortativos e encorajadores. Margaridinha procurou o leito e adormeceu

profundamente, sob a bênção paternal do servo de Maria... enquanto o suicida, debatendo-se entre o "choro e o ranger de dentes", suplicava que o deixassem socorrer,

de qualquer modo, a filha ignobilmente ultrajada! Dominando-o, entretanto, com energia, a fim de que por um momento procurasse raciocinar, retorquiu o paciente guia:

"- Basta de desatinos, irmão Jerônimo! Atingiste o máximo de desobediência e voluntariedade que nossa tolerância poderia aceitar! Não queres, pois, compreender,

que coisa alguma poderás tentar em benefício de teus filhos, enquanto não conquistares as qualidades para tanto imprescindíveis, e que a ti mesmo escasseiam ....

Não entendes que teus filhos, em lutas com provações aspérrimas, sucumbiriam fatalmente ao suicídio, como tu, se permanecesses junto deles, influenciando suas indefesas

sensibilidades com as vibrações funestas que te são próprias, ainda não devidamente esclarecido quanto ao estado geral em que te debates, tal como te preferes conservar?...

Partamos, Jerônimo! Regressemos ao Hospital... Ou desejarás, porventura, ainda sondar os passos de Marieta e de Arinda?!..."

Chocando-se como que sob a ação de forças renovadoras, o precito obteve um momento de trégua contra si mesmo, a fim de ponderar alguns instantes. Sacudiu as desesperadoras

alucinações que lhe cegavam o raciocínio, e respondeu, resoluto:

"- Oh! não! Não, meu bom amigo! Basta! Não posso mais! Meus pobres filhos! A que abismo vos arrojei, eu mesmo, que tanto vos amei!

Perdão, irmão Teócrito! Agora compreendo... Perdão, irmão Teócrito..."

E, de nossa enfermaria, vimos que retornavam com as mesmas precauções...

Jerônimo não voltou a fazer parte do nosso grupo.

5

O reconhecimento

O segundo acontecimento que, a par do que acabamos de narrar, impôs-se marcando etapa decisiva em nossos destinos, teve inicio no honroso convite que

recebemos da diretoria do Hospital para assistirmos a uma reunião acadêmica, de estudos e experimentações psíquicas. Como sabemos, Jerônimo negara-se a anuir ao

convite, e, por isso, na tarde daquele mesmo dia em que visitara a família, enquanto nos dirigíamos à sede do Departamento a fim de a ela assistir, ele, presa de

desolação profunda, de supremo desconforto, solicitava a presença de um sacerdote, pois confessava-se católico-romano e seus sentimentos impeliam-no à necessidade

de assim se aconselhar e reconfortar-se, a fim de revigorar a fé no Poder Divino e serenar o coração que, como nunca, sentia despedaçado. Aquiesceu o magnânimo orientador

do Departamento Hospitalar, compreendendo que no espírito do ex-mercador português soava o momento do dealbar para o progresso, e que, dado os princípios religiosos

que esposava, aos quais se apegava intransigentemente, a seu próprio benefício seria prudente que a palavra que mais respeito e confiança lhe inspirasse fosse a

mesma que o preparasse para a adaptação à vida espiritual e suas transformações.

Na Legião dos Servos de Maria e até mesmo nos serviços da Colônia que nos abrigava, existiam Espíritos eminentes que, em existências pregressas, haviam envergado

a alva sacerdotal, honrando-a de ações enobrecedoras inspiradas nas fontes fúlgidas dos sacrossantos exemplos do Divino Pegureiro. Dentre vários que colaboravam

nos serviços educativos do Instituto a que nos temos reportado, destacava-se o padre Miguel de Santarém, servo de Maria, discípulo respeitoso e humilde das Doutrinas

consagradas no alto do Calvário.

Era o diretor do Isolamento, instituição que, como sabemos, anexa ao Hospital Maria de Nazaré, exercia métodos educativos severos, mantendo inalteráveis disciplinas

por hospedar em seus domínios apenas individualidades recalcitrantes, prejudicadas por excessivos prejuízos terrenos ou endurecidas nos preconceitos insidiosos e

nas mágoas muito ardentes do coração. Portador de inexcedível paciência, exemplo respeitável de humildade, cordura e conformidade, aureolado por subidos sentimentos

de amor aos infelizes e transviados e tocado de paternal compaixão por quantos Espíritos de suicidas soubesse existir, era o conselheiro que convinha, o mentor adequado

aos internos do Isolamento. Além de sacerdote era também filósofo profundo, psicólogo e cientista. Havia muito, em existência pregressa cursara Doutrinas Secretas

na Índia, conquanto depois tivesse outras migrações terrestres, provando sempre as melhores disposições para o desempenho do apostolado cristão. Entre estas, a última

fora passada em Portugal, onde recebera o nome acima citado, continuando a usá-lo no além-túmulo, bem assim a qualidade de religioso sincero e probo.

Irmão Teócrito entregou o penitente Jerônimo a esse obreiro devotado, certo da sua capacidade para resolver problemas de tão espinhosa natureza. E foi assim

que, naquela mesma tarde, quando as linhas do crepúsculo acentuavam de névoas pardacentas os jardins nevados dos burgos hospitalares, Jerônimo de Araújo Silveira

se transferiu para o Isolamento, passando aos cuidados protetores de um sacerdote, tal como desejara. Desse dia em diante perdemos de vista o pobre comparsa de delito.

Um ano mais tarde, no entanto, tivemos a satisfação de reencontrá-lo. Em capítulos posteriores voltaremos a tratar desse muito estremecido companheiro de prélios

reabilitadores.

No dia imediato ao da nossa internação no magno Instituto do Astral, passamos a ser diariamente levados aos gabinetes clínico-psíquicos onde era ministrado tratamento

magnético muito eficiente, pois dentro de alguns dias já nos podíamos reconhecer mais confortados e raciocinando com maior clareza, gradativamente fortalecidos como

se tônicos revivificadores ingeríssemos através das aplicações a que nos submetiam. Para tais gabinetes éramos encaminhados todas as manhãs, por nossos amáveis enfermeiros.

Entrávamos, cada grupo de dez, para uma antecâmara rodeada de pequenos bancos estofados, onde esperaríamos durante curto espaço de tempo. Notávamos que existiam

várias dependências como essa, todas situadas em extensa galeria onde colunas sugestivas se alinhavam em perspectiva majestosa. Transcendia nesses recintos a estilização

hindu, convidando à meditação e à gravidade.

Penetrávamos então o ambiente dos trabalhos.

Impregnado de fosforescências azuladas, então ainda imperceptíveis à nossa capacidade espiritual, as dimensões desses gabinetes não eram extensas. Pequenos coxins

orientais em tessitura semelhante à pelúcia branca, e dispostos em semicírculo, aguardavam-nos, indicando que deveríamos sentar. Seis varões hindus esperavam os

pacientes, concentrados no caridoso mandato.

A princípio tais cerimônias, sugestivas e rodeadas de um quase mistério, muito nos intrigaram. Não conhecêramos indianos psiquistas em Portugal. Tampouco fôramos

aplicados a estudos e exames de natureza transcendental. Eis, todavia, que nos surpreendíamos agora sob a dependência e proteção de uma falange de iniciados orientais,

a cuja existência real não déramos jamais senão relativo crédito, por se nos afigurar excessivamente mística e lendária. O ambiente que agora contemplávamos, porém,

impregnado de unção religiosa, a qual atuava poderosamente sobre nossas faculdades, lenificando-as ao impulso de religioso fervor, imprimia tão profundas e atraentes

impressões em nossos Espíritos que, atordoados no seio do seu ineditismo, julgávamos sonhar. Quando, pelas primeiras vezes, penetramos esses gabinetes saturados

de ignotas virtudes, fomos mesmo acometidos de invencível sonolência, que nos provocou um como estado de semi-inconsciência.

Os operantes indicavam-nos o semicírculo formado pelos alvos coxins. Cinco desses médicos espirituais postavam-se atrás, distanciados uns dos outros por espaço

simétrico, uniforme, até atingirem um em cada extremidade do semicírculo. O sexto colocava-se à frente, como fechando o círculo dentro do qual ficávamos nós outros

prisioneiros - os braços cruzados à altura da cinta, a fronte atenta e carregada, como expedindo forças mentais dominadoras para caridosa vistoria e inspeção nas

fráguas do nosso atormentado ser.

Em surdina vibravam ao nosso redor sussurros harmoniosos de prece. Mas não saberíamos distinguir se oravam, invocando as excelsas virtudes do Médico Celeste para

nosso refrigério ou se nos advertiam e doutrinavam. O que não nos deixavam dúvidas, por se impor à evidência, era que atravessavam nosso pensamento com os poderes

mentais que possuíam, devassavam nosso caráter, examinando nossa personalidade moral a fim de deliberarem sobre a corrigenda mais acertada - qual o cirurgião investigando

as vísceras do cliente para localizar a enfermidade e combatê-la. Tal certeza infundia-nos múltiplas impressões, a despeito do singular estado em que nos encontrávamos.

A vergonha por havermos pretendido burlar as Leis Superiores da Criação, afrontando-as com o ato brutal de que usáramos; o remorso pelo descaso à Majestade do Onipotente;

a deprimente amargura de havermos dedicado nossas melhores energias aos gozos inferiores da matéria, atendendo de preferência aos imperativos mundanos, sem jamais

observarmos as urgentes requisições da alma, deixando de nos conceder momentos para a iluminação interior - eram pungentes estiletes que nos penetravam o âmago durante

a sublime vistoria a que nos submetiamos, inspirando-nos mágoas e desgostos que eram o prelúdio de real e fecundo arrependimento. Nossos menores atos pretéritos

voltavam dos pélagos trevosos em que jaziam para se aviventarem à nossa presença, nitidamente impressos em nós mesmos! Nossa vida, que o suicídio interrompera, desde

a infância era assim reproduzida aos nossos olhos aterrorizados e surpreendidos, sem que fosse possível determos a torrente das cenas revivescidas para exame! Quiséramos

poder fugir a fim de nos furtarmos à vergonha de pôr a descoberto tanta infâmia, julgada oculta para sempre até de nós mesmos, pois, com efeito, era dramático, excessivamente

penoso desatar volumes tão variados de maldade e torpezas diante testemunhas tão nobres e respeitáveis! Mas era em vão que o desejaríamos! Sentíamos que nos vinculávamos

àqueles coxins pela ação de vontades que se haviam apossado de nosso ser! Ao fim de alguns minutos, porém, suspendiam a operação. Esvaía-se o torpor. As lúgubres

sombras do passado eram expungidas de nossa visão, recolhidas que eram ao pego revolto da subconsciência, aliviando a crueza das recordações. Então a fronte carregada

do operador serenava qual arco-íris hialino. Um ar de amorosa compaixão derramava-se por suas atitudes, e, aproximando-se, espalmava sobre nossas cabeças as mãos

níveas, enquanto os cinco demais assistentes o acompanhavam nos gestos e nas expressões. Compassivos, os fluidos beneficentes que a seguir nos faziam assimilar -

terapêutica divina - iriam, gradualmente, auxiliar-nos a corrigir as impressões de fome e de sede; a postergar a insana sensação de frio intenso, que num suicida

resulta da gelidez cadavérica que ao perispírito se comunica; a atenuar os apetites e arrastamentos inconfessáveis, tais os vícios sexuais, o álcool, o fumo, cujas

repercussões e efeitos produziam desequilíbrios chocantes em nossos sentidos espirituais, interceptando possibilidades de progresso na adaptação e impondo-nos humilhações

singulares, por assinalar a ínfima categoria a que pertencíamos, na respeitável sociedade dos Espíritos que nos rodeavam.

Entre os esforços que nos sugeriam empreender, destacava-se o exercício da educação mental no tocante à necessidade de varrer das nossas impressões o dramático

e apavorante hábito, tornado trejeito nervoso e alucinado, de nos socorrermos a nós próprios, na ânsia contumaz de nos aliviarmos do sofrimento físico que o gênero

de morte provocara.

Como ficou explicado, havia aqueles que se preocupavam em estancar hemorragias, havia os enforcados a se debaterem de quando em quando, porfiando no esforço ilusório

de se desfazerem dos farrapos de cordas ou trapos que lhes pendiam do pescoço; os afogados, bracejando contra as correntes que os haviam arrastado para o fundo;

os "retalhados", hediondos quais fantasmas fabulosos, a se curvarem em intermitências macabras, na ilusão de recolherem os fragmentos dispersos, ensangüentados,

do corpo carnal que lá ficara algures, estraçalhado sob as rodas do veículo à frente do qual se arrojaram em audaciosa aventura, supondo furtarem-se ao sagrado compromisso

da existência! Tais gostos, repetimos, à força de se reproduzirem desde o instante em que se efetivara o suicídio, e quando o instinto de conservação imprimiu na

mente o impulso primitivo para a tentativa de salvamento, haviam degenerado em vício nervoso mental, sucedendo-se através das vibrações naturais ao princípio vital,

repercutidas na mente e transmitidas à organização físico-espiritual. Urgia que a Caridade, sempre pronta a espalmar asas protetoras sobre os que padecem, corrigindo,

amenizando, dulcificandO males e sofrimentos, impusesse sua benevolência à anomalia de tantos desgraçados perdidos nos pantanais de tredas alucinações. Para isso,

enquanto apunham as mãos sobre nossas cabeças, envolvendo-as em ondas magnéticas apropriadas à caridosa finalidade, os irmãos operadores murmuravam, enquanto sugestões

magnânimas reboavam pelos labirintos do nosso "eu" com repercussões precisas e fortes, quais clarinadas despertando-nos para uma alvorada de esperanças:

"- Lembrai-vos de que já não sois homens!... Ao afastar-vos daqui não deveis pensar a não ser na vossa qualidade de alma imortal, a quem não mais devem afetar

os distúrbios do envoltório físico-carnal!... Sois Es píritos! E será como Espíritos que devereis prosseguir a marcha progressiva nos planos espirituais!"

O convite para a reunião presidida por Teócrito deixara-nos satisfeitos. Éramos sensíveis às demonstrações de afeto e consideração.

Um frêmito de horror percorreu minhas sensibilidades ao reconhecer na vasta assembléia figuras hirsutas, desgrenhadas e apavorantes do Vale Sinistro, conquanto

confessasse a mim mesmo encontrá-las algo serenadas, tal qual acontecia a mim e meus companheiros de apartamento. Será útil esclarecer que os componentes de nossa

falange poderiam ser qualificados como "arrependidos", e, por isso mesmo, dóceis às orientações fornecidas pelos insignes diretores do asilo que nos abrigava. Um

ou outro mantinha-se menos homogêneo, oferecendo problema mais sério a resolver. Todavia, era certo que a maioria se conservava fortemente animalizada, fosse conseqüência

da inferioridade do caráter próprio ou resultado da violência do choque ocasionado pela bruteza do suicídio escolhido. Dentre estes destacavam-se os "retalhados",

afogados, despenhados de grandes alturas, etc., etc. Atordoados, como que atoleimados, não era com facilidade que conseguiam suficiente dose de raciocínio para compreender

as imposições da vida espiritual. Ocupavam eles o asilo do Manicômio por inúmeras conveniências, entre outras as que arrastavam a necessidade de encobri-los à nossa

visão, pois repugnava-nos a presença deles, excitando impressões desarmoniosas, prejudiciais à serenidade de que carecíamos para o restabelecimento.

Não obstante, foram igualmente encaminhados ao local da reunião; e, quando, acompanhados por nossos dedicados amigos Joel e Roberto, entramos no vasto salão,

ali os distinguimos entre muitos outros enfermos que, como nós, haviam sido requisitados.

Observando os antigos companheiros do vale de trevas, vi que se esforçavam, como nós mesmos vínhamos tentando desde alguns dias, para corrigir os feios ca coetes

já mencionados, pois, se o hábito impelia à repetição dos mesmos, lembravam-se a tempo e paralisavam a meio caminho o impulso mental que os ocasionava, levando em

consideração a sugestão oferecida pelos amoráveis assistentes. Então, riam-se de si mesmos em comovedores desabafos, nervosamente, pensando em que já não deveriam

sentir os efeitos físicos do ato macabro. Riam uns para os outros como a se felicitarem mutuamente pelo alívio recebido através da informação de que já não deviam

sentir aquelas impressões... e como se o riso sacudisse vibrações tormentosas. Riam para se desacostumarem daquele choro malévolo que acordava sensações precipitosas!...

No Hospital eram proibidas as rábicas convulsões do Vale Sinistro... e chorar, nas desesperadoras aflições com que para trás havíamos chorado, era destampar a comporta

das torrentes das agonias que a caridade sacrossanta de Maria minorava através do desvelo dos seus servos...

E eu, observando-os, ria também, sem fugir à estranha similitude da falange...

Sentamo-nos a um sinal de Roberto.

Nada apresentava a sala que despertasse particular atenção. Contudo, se insuficiente não fora o grau de visão de que dispúnhamos para alcançar as sublimes manifestações

de caridade que em nosso derredor pululavam, teríamos notado que delicadas vaporizações fluídicas, como orvalho refrigerante e ameno, deliam-se pelo recinto, impregnando-o

de dúlcidas vibrações.

A um ângulo do tablado que do fundo do salão defrontava a assembléia, notava-se um aparelho muito semelhante aos existentes nas enfermarias, conquanto apresentasse

certas particularidades. Dois jovens iniciados puseram-se a examiná-lo ao tempo que Irmão Teócrito tomava lugar na cátedra ladeado por outros dois companheiros,

aos quais apresentou à assembléia como instrutores que nos deveriam orientar, e a quem deveríamos o máximo respeito. Satisfeitos, reconhecémos nestes os dois jovens

hindus que nos receberam quando da nossa entrada para o Hospital: Romeu e Alceste.

Silêncio religioso estendeu ondas harmoniosas de recolhimento pelo vasto salão, onde cerca de duzentos Espíritos, envolvidos nas mais embaraçosas redes da desgraça,

acorriam arrastando as bagagens gravosas das próprias fraquezas, das amarguras incontáveis que enoitavam suas vidas.

Desciam sobre as latitudes do nosso merencório cantão as nuanças tristonhas do crepúsculo, que ali muitas vezes arrancava lágrimas de nossos corações, tal a

pesada melancolia que infundia em derredor.

Seis melodiosas pancadas de um relógio que não víamos, ecoaram docemente na amplidão da sala, como anunciando o início da reunião. E cântico harmonioso de prece,

envolvente, emocional, elevou-se em surdina como se até nossa audição chegasse através de ondas invisíveis do éter, provindo de local distante, que não poderíamos

avaliar, enquanto se desenhava em uma tela junto à cátedra de Irmão Teócrito o sugestivo quadro da aparição de Gabriel à Virgem de Nazaré, participando a descida

do Redentor às ingratas praias do Planeta.

Era o instante amorável do Ângelus...

Levantando-se, o diretor fez breve e emocionante saudação a Maria, apresentando-nos reunidos pela primeira vez para uma invocação. Doce refrigério estendeu-

-se sobre nossos corações. As lágrimas irromperam e emoções gratas ergueram-se dos túmulos íntimos em que jaziam, acordadas pelas lembranças do lar paterno, da infância

longínqua, de nossas mães, a quem nenhum de nós certamente amara devidamente, a ensinar-nos ao pé do leito o balbucio sublime da primeira oração!...

Como tudo isso estava distante, quase apagado sob as voragens das paixões e das desgraças daí conseqüentes!... E eis que, inesperadamente, tais lembranças ressuscitavam,

almo fantasma que vinha para se impor com o sabor de ósculos maternos em nossas frontes abatidas!

Fundas saudades dilataram nossos pensamentos, pre-dispondo-os à ternura do momento grandioso que nos ofereciam como oportunidade abençoada...

Seria longo enumerar minúcias das belas quanto proveitosas seqüências dos ensinamentos e experiências que passavamos a receber desde essa tarde memorável, os

quais integravam o melindroso tratamento a ser ministrado, espécie de doutrinação - terapêutica moral -, com ação decisiva sobre reações necessárias à reeducação

de que tínhamos urgência. Diremos apenas que nessa primeira aula fomos submetidos a operações tão melindrosas, levadas a efeito em o nosso senso íntimo, que a incerteza

quanto ao estado espiritual, para o qual resvaláramos, foi hábil e caridosamente removida de nossa compreensão, deixando que a luz da verdade, sem constrangimentos,

se impusesse à evidência. Ficamos categoricamente convencidos da nossa qualidade de Espíritos separados do envoltório corporal terreno, o que até então, para a maioria,

era motivo de confusões acerbas, de assombros incompreensíveis! E tudo se desenrolou singelamente, sendo nós próprios os compêndios vivos usados para as magníficas

instruções - as operações irrefutáveis! Vejamos como os eruditos instrutores levavam a cabo o sacrossanto mandato:

Belarmino de Queiroz e Sousa que, como sabemos, era individualidade portadora de vasta cultura intelectual, além de ser adepto das doutrinas filosóficas de Augusto

Comte, foi convidado, dentre outros que depois receberam o privilégio, a subir ao estrado onde se realizaria a formosa experiência instrutiva. Devemos observar que

Irmão Teócrito tomava parte em tão delicada cerimônia como presidente de honra, lente insigne dos lentes em ação.

Colocaram o ex-professor de línguas à frente do aparelho luminoso que despertara nossa atenção à chegada, ao qual ligaram-no por um diadema preso a tênues fios

que se diriam cintilas imponderáveis de luz. Enquanto Alceste o ligava, Romeu informava-o, em tom assaz grave, de que conviria voltasse a alguns anos passados de

sua vida, coordenando os pensamentos a rigor, na seqüência das recordações, e partindo do momento exato em que a resolução trágica se apossara das suas faculdades.

Para que tal conseguisse, auxiliava-o revigorando sua mente com emanações generosas que de suas próprias forças extraía.

Belarmino obedeceu, passivo e dócil a uma autoridade para que não possuía forças capazes de desagradar. E, recordando, reviveu os sofrimentos oriundos da tuberculose

que o atingira, as lutas sustentadas consigo mesmo ante a idéia do suicídio, a tristeza inconsolável, a veraz agonia que se apoderara de suas faculdades em litígio

entre o desejo de viver, o medo da moléstia impiedosa que avassalava sua organização física, supliciando-o sem tréguas, e a urgência do suicídio para, no seu doentio

modo de pensar, mais suavemente atingir a finalidade a que a doença o arrastaria sob atrozes sofrimentos. À proporção que se aproximava o desfecho, porém, o filósofo

comtista esquivava-se, recalcitrando à ordem recebida. Suores gelados como lhe banhavam a fronte ampla de pensador, onde o terror mais e mais se acentuava, estampando

expressões de desespero a cada novo arranco das dolorosas reminiscências...

Entretanto, o que mais surpreendia era que, na tela fosforescente à qual se ligava, iam-se reproduzindo as cenas evocadas pelo paciente, fato empolgante que

a ele próprio, como à assistência, facultava a possibilidade de ver, de presenciar todo o amaro drama que precedeu o seu ato desesperador e as minúcias emocionantes

e lamentáveis do execrável momento! A este seguiam-se as tormentosas situações de além-túmulo que lhe foram conseqüentes, o drama abominável que o surpreendera,

as confusas sensações que durante tanto tempo o mantiveram enlouquecido.

Enquanto o primeiro operador auxiliava o paciente a extrair as recordações próprias, o segundo comentava-as explicando os acontecimentos em torno do suicídio,

antes e depois de consumado, qual emérito professor a elucidar ignaros em matéria indispensável. Fazia-o mostrando os fenômenos decorrentes do desprendimento do

ser inteligente do seu casulo de limo corporal, violentado pelo desastroso gesto contra si mesmo praticado. Assistimos assim a surpreendente, inglória odisséia vivida

pelo Espírito expulso da existência carnal sob sua própria responsabilidade, a esbater-se como louco à revelia da Lei que violou, presa dos tentáculos monstruo soa

de seqüências inevitáveis, criadas pela infração a um acúmulo determinante e harmonioso de leis naturais, sábias, invariáveis, eternas!

Esses extraordinários panoramas vieram anular as convicções materialistas do filósofo comtista, já bastante estremecidas, permitindo-lhe positivar em si mesmo,

com minucioso exame, a separação do seu próprio astral do envoltório de lama corporal de que se revestia, sobrevivendo lucidamente apesar do suicídio e da decomposição

cadavérica.

Por esse eficiente quão singelo método, a grande maioria da assistência pôde compreender a razão da ardência indescritível dos sofrimentos pelos quais vinha passando,

das sensações físicas atormentadoras que perduravam ainda, as múltiplas perturbações que impediam a serenidade ou o olvido que erroneamente esperam encontrar no

túmulo.

Entre outras observações levadas a efeito, merece especial comentário, pela estranheza de que se revestia, o fato de todos trazermos pendentes da configuração

astral, quando ainda no Vale, fragmentos reluzentes, como se de uma corda ou um cabo elétrico arrebentados se despreendessem estilhas dos fios tenuíssimos que os

estruturassem, sem que a energia se houvesse extinguido, ao passo que explicavam os mentores residir em tão curioso fenômeno toda a extensão da nossa acrimoniosa

desgraça, porqüanto esse cordão, pela morte natural, será brandamente desatado, desligado das afinidades que mantém com o corpo carnal, através de caridosos cuidados

de obreiros da Vinha do Senhor incumbidos da sacrossanta missão da assistência aos moribundos, enquanto que, pelo suicídio, é ele violentamente despedaçado, e, o

que é pior, quando as fontes vitais, cheias de seiva para o decurso de uma existência às vezes longa, ainda mais o solidificavam, mantendo a atração necessária ao

equilíbrio da mesma.

Ora, diziam-nos que, a fim de nos desfazermos do profundo desequilíbrio que semelhante conseqüência produzia em nossa organização fluídica (não se falando aqui

da desorganização moral, porventura ainda mais excruciante) ser-nos-ia indispensável voltar a animar outro corpo carnal, visto que, enquanto não o fizéssemos, seríamos

criaturas desarmonizadas com as leis que regem o Universo, a quem indefiníveis incômodos privariam de quaisquer realizações verdadeiramente concordes com o progresso.

No entanto, Belarmino debatia-se, presa de choro e convulsões espasmódicas, revivendo as danosas aflições que o acometeram, enquanto a assistência se fazia com

ele solidária, deduzindo daquela pavorosa demonstração ocorrências que a si diziam respeito.

Comentava, porém, o instrutor:

"- Podereis observar, meus amigos, que, justamente porque o homem desejou furtar-se à existência planetária pelas enganosas escarpas do suicídio, não se eximiu,

absolutamente, de nenhuma das amargurosas situações que o desgostavam, antes acumulou desditas novas, quiçá mais ardentes e pungitivas, à bagagem dos males que dantes

o afetavam, os quais seriam certamente suportáveis se educação moral sólida, estribada no cumprimento do Dever, lhe inspirasse as ações diárias. Essa educação orientadora,

conselheira, salvadora, portanto, de desastres como o que lamentamos neste momento, o homem somente não na tem adquirido no próprio cenário terreno, onde é chamado

a realizações imperiosas, porque não a quer adquirir, visto sobejarem em torno de seus passos, no orbe de sua residência, instruções e ensinamentos capazes de conduzi-lo

às alvoradas redentoras do Bem e do Dever!

O incauto viageiro terreno, porém, há preferido sempre desperdiçar oportunidades benfazejas proporcionadas pela Divina Providência com vistas ao seu engrandecimento

moral e espiritual, para mais livremente englobar-se às sombras insidiosas das paixões mantenedoras dos vícios e desatinos que o impelem ao irremediável tombo para

o abismo.

No torvelinho das atrações mundanas, como no embater das provações que o excruciam; ao choque das vicissitudes diárias, inalienáveis ao meio em que realiza as

experimentações para o progresso, como na fruição das doçuras fornecidas pelo lar próspero e feliz - jamais ao homem ocorre quaisquer esforços empreender para a

iluminação interior de si mesmo, a reeducação moral, mental e espiritual cuja necessidade inapelavelmente se impõe no porvir que seu Espírito será chamado a conquistar

pela ordem natural das Leis da Criação. Ele nem mesmo compreende que possui uma alma dotada dos germens divinos para a aquisição de excelentes prendas morais e qualidades

espirituais eternas, germens cujo desenvolvimento lhe cumpre operar e aprimorar através do glorioso trabalho de ascensão para Deus, para a Vida Imortal! Ignora ser

justamente no cultivo desses dons que reside o segredo da obtenção perfeita dos ideais mais caros que acalente, dos sonhos venerados que suspira concretizar; e mais,

que, desprezando o ser divino que em si palpita, o qual é ele próprio, é o seu Espírito imortal, descendente que é do Todo-Poderoso, dá-se voluntariamente à condenação

pela Dor, resvalando pelos ominosos desvios da animalidade e quiçá do crime, os quais necessariamente arrastarão a lógica das reparações, das renovações e experiências

dolorosas nos testemunhos da reencarnação, quando mais suave se tornaria a jornada ascensional se meditasse prudentemente, procurando investigar a própria origem

e o futuro que lhe compete alcançar!

Foi essa fatal ignorância que vos impeliu à desoladora situação em que hoje vos afligia, meus caros irmãos! mas a qual nosso fraterno interesse, inspirado no

exemplo do Divino Cordeiro, tentará remediar, não obstante só o tempo e os vossos próprios esforços, em sentidos opostos aos verificados até agora, serem indispensáveis

como a mais acertada tentativa em prol da recuperação que se impõe.

Como vedes, destruístes o corpo material, próprio da condição do Espírito reencarnado na Terra, único que teimáveis reconhecer como absoluto padrão de vida. No

entanto, nem desaparecestes, como desejáveis, nem vos libertastes dos dissabores que vos desesperavam. Víveis! Víveis ainda! Vivereis sempre! Vivereis por toda a

consumação dos evos uma Vida que é imortal, que jamais, jamais se extinguirá dentro do vosso ser, jamais deixando de projetar sobre a vossa consciência o impulso

irresistível para a frente, para o mais além!...

É que sois a candeia de valor inestimável, fecundada pelo Foco Eterno que entorna da Sua Imortalidade por sobre toda a Criação que de Si irradiou, concedendo-lhe

as bênçãos do progresso através dos evos, até atingir a plenitude da glória na comunhão suprema do Seu Seio!

O que contemplais em vós mesmos, neste momento inesquecível e solene para vós, a refletir-se da vossa mente impressionada com os acontecimentos sensacionais que

vos dizem respeito, decerto marcará etapas decisivas na trajetória que insofismavelmente desenvolvereis através do porvir. De agora em diante desejareis, certamente,

aprender algo em torno de vós mesmos... pois a verdade é que tudo desconheceis em torno do Ser, da Vida, da Dor e do Destino... mau grado os pergaminhos que ostentáveis

com galhardia na Terra, mau grado as distinções e honrarias que tanto assentavam às vossas insulsas vaidades de homens divorciados do ideal divino!..."

Reanimado pelos sábios distribuidores de energias magnéticas, Belarmino voltou ao lugar que ocupava na assistência, enquanto outro paciente subia ao estrado para

novo exame demonstrativo. Voltava, porém, refletindo no semblante, antes abatido e carregado, uma como aleluia de esperanças! Ao sentar-se ao nosso lado, apertou-nos

furtivamente as mãos, exclamando:

"- Sim, meus amigos! Eu sou imortal! Acabo de positivar, sem sombras de dúvida, em mim próprio, a existência concreta do meu "eu" imaterial, do ser espiritual

que neguei! Nada sei! Nada sei! Cumpre-me recomeçar os estudos!... Mas só aquela certeza constitui para mim uma grande conquista de felicidade: - Eu sou imortal!...

Eu sou imortal!..."

Nos dias subseqüentes, durante as mesmas reuniões fomos levados a examinar, com minúcias penosíssimas, os atos errôneos praticados no transcurso da existência

que havíamos destruído, observando o emaranhado de prejuízos morais, mentais, educativos, sociais, materiais, que nos arrastaram ao detestável resultado a que chegáramos.

Assistidos pelos mentores pacientes retroagimos com o pensamento até à infância e voltamos sobre os próprios passo, e, muitas vezes banhados em copioso pranto, e

invariavelmente desapontados, confessamo-nos os próprios autores dos desenganos que nos abateram nos bulcões do suicídio. Como agíramos mal no desempenho das tarefas

diárias que a sociedade impunha! Como nos portáramos selvagemente em todas as horas, não obstante o verniz de civilização de que nos jactávamos!...

Integrando a repesa falange, muitos havia patenteando o fruto nefasto da escassa educação moral obtida nos lares destituídos da verdadeira iluminação cristã!

Jovens que, apenas saídos da adolescência, haviam tombado inermes ao primeiro choque com as contrariedades comuns à existência terrena, preferindo a aventura do

suicídio, completamente faltas de ideal, de senso, de respeito a si mesmo, à Família e a Deus! As desgraças por eles encontradas, além do suicídio, eram como o terrível

atestado, o pavoroso libelo contra a irresponsabilidade dos pais ou responsáveis por eles à face de Deus, a prova infamante da desatenção com que se portaram deixando

de diligenciar sólida edificação moral em torno deles! Para tais casos, soubemos que severas contas deveriam prestar futuramente às Soberanas Leis os descautelosos

pais que permitiram asas às perniciosas inclinações dos filhos, sem tentar corrigi-las, favorecendo assim ocasiões aos desequilíbrios desesperados de que o suicídio

foi o lógico resultado!

Depois de tão complexos exames voltávamos a novas reuniões a fim de aprendermos como de preferência devíamos ter agido para evitar o suicídio, quais deveriam

ter sido os atos diários, os empreendimentos, se não nos afastáramos do raciocínio inspirado no Dever, na fé em nós mesmos e no paternal amor de Deus! Em vários

casos, a solução para os problemas, que abriram as portas para o abismo, encontrava-se a dois passos de distância do sofredor; surgiria o socorro enviado pela Providência

ao seu filho bem-amado, dentro de alguns dias, de poucos meses, bastando somente que este se encorajasse para diminuta espera, em glorioso testemunho de vontade,

paciência e coragem moral, necessário ao seu progresso espiritual! Então concluímos com decepcionante surpresa que fácil teria sido a vitória e até a felicidade,

se buscáramos no Amor Divino a inspiração para os ditames da existência que desgraçadamente destruíramos!

Essas instruções proporcionaram sensíveis benefícios a todos nós. Repetiam-se bissemanalmente, havendo os dignos mentores a elas adicionado proveitosas palestras

elucidativas. Melhoras prometedoras experimentávamos em nosso aspecto geral, enquanto suaves esperanças segredavam edificante consolo aos nossos corações doloridos.

A presença dos instrutores passou a constituir motivo de imensa satisfação para nossas almas convalescentes de tão ásperos desesperos. As palavras que nos dirigiam

durante as lições eram qual refrigerante orvalho sobre a comburência de nossas aflições; e suas palestras e instruções, o trato carinhoso e compassivo dos gabinetes

outras tantas razões para nos considerarmos esperançosos e confiantes. Porém, jamais os víamos a não ser naqueles momentos oportunos; e, quando em presença deles,

tanto nos intimidávamos, apesar da ternura que nos dispensavam, que não nos animávamos a pronunciar sequer um monossílabo sem primeiramente sermos interpelados.

Em pouco mais de dois meses estávamos habilitados a amplas induções, cotejando as lições recebidas e sobre elas maturando no recolhimento de nossos apartamentos.

Das análises levadas a efeito resultava a certeza, cada vez mais esclarecida, da gravidade da situação em que nos encontrávamos. O fato de estarmos aliviados dos

exuberantes incômodos passados não implicava diminuição de culpabilidade. Ao contrário, a possibilidade de raciocinar minudenciava a extensão do delito, o que muito

nos decepcionava e entristecia. E, das instruções e experiências caridosamente ministradas ao nosso entendimento a título de base e incentivo para uma ur gente auto-reforma

de que tínhamos imperiosa necessidade, visando ao inadiável progresso a ser realizado, destacaremos este esquema que enfeixaremos nestas singelas anotações de além-túmulo:

1 - É o homem um composto de tríplice natureza:

- humana, astral e espiritual, isto é - matéria, fluído e essência. Esse composto poderá também ser traduzido em expressão mais concreta e popular, assimilável

ao primeiro grau de observação: - corpo carnal, corpo fluídico ou perispírito, e alma ou Espírito, sendo que do último é que se irradiam Vida, Inteligência, Sentimento,

etc., etc. - centelha onde se verifica a essência divina e que no homem assinala a hereditariedade celeste! Desses três corpos, o primeiro é temporário, obedecendo

apenas à necessidade das circunstânciàs inalienáveis que contornam o seu possuidor, fadado à desorganização total por sua própria natureza putrescível, oriunda do

limo primitivo: -é o de carne, O segundo é imortal e tende a progredir, desenvolver-se, aperfeiçoar-se através dos trabalhos incessantes nas lutas dos milênios:

- é o fluidico; ao passo que o Espírito, eterno como a Origem da qual provém, luz imperecível que tende a rebrilhar sempre mais aformoseada até retratar em grau

relativo o Fulgor Supremo que lhe forneceu a Vida, para glória do seu mesmo Criador - é a essência divina, imagem e semelhança - (que o será um dia) - do Todo-Poderoso

Deus!

2 - Vivendo na Terra, esse ser inteligente, que deverá evolver pela Eternidade, denomina-se Homem! sendo, portanto, o homem um Espírito encarcerado num corpo

de carne ou encarnado.

3 - Um Espírito volta várias vezes a tomar novo corpo carnal sobre a Terra, nasce várias vezes a fim de tornar a conviver nas sociedades terrenas, como Homem,

exatamente como ele é levado a trocar de roupa muitas vezes...

4 - O suicida é um Espírito criminoso, falido nos compromissos que tinha para com as Leis sábias, justas e imutáveis estabelecidas pelo Criador, e que se

vê obrigado a repetir a experiência na Terra, tomando corpo novo, uma vez que destruiu aquele que a Lei lhe confiara para instrumento de auxílio na conquista do

próprio aperfeiçoamento - depósito sagrado que ele antes deveria estimar e respeitar do que destruir, visto que lhe não assistiam direitos de faltar aos grandes

compromissos da vida planetária, tomados antes do nascimento em presença da própria consciência e ante a Paternidade Divina, que lhe fornecera Vida e meios para

tanto.

5 - O Espírito de um suicida voltará a novo corpo terreno em condições muito penosas de sofrimento, agravadas pelas resultantes do grande desequilíbrio que

o desesperado gesto provocou no seu corpo astral, isto é, no perispírito.

6 - A volta de um suicida a um novo corpo carnal é a lei. É lei inevitável, irrevogável! É expiação irremediável, à qual terá de se submeter voluntariamente

ou não, porque a seu próprio benefício outro recurso não haverá senão a repetição do programa terreno que deixou de executar.

7 - Sucumbindo ao suicídio o homem rejeita e destrói ensejo sagrado, facultado por lei, para a conquista de situações honrosas e dignificantes para a própria

consciência, pois os sofrimentos, quando heroicamente suportados, dominados pela vontade soberana de vencer, são como esponja mágica a expungir da consciência culposa

a caligem infamante, muitas vezes, de um Passado criminoso, em anteriores etapas terrenas. Mas, se, em vez do heroísmo Salvador, preferir o homem a fuga às labutas

promissoras, valendo-se de um auto-atentado que bem revelará a vasa de inferioridade que lhe infelicita o caráter, retardará o momento almejado para a satisfação

dos mais caros desejos, visto que jamais se poderá destruir porque a fonte de sua Vida reside em seu Espírito e este é indestrutível e eterno como o Foco Sagrado

de que descendeu!

8 - Na Espiritualidade raramente o suicida permanecerá durante muito tempo. Descerá à reencarnação prestamente, tal

seja o acervo das danosas conseqüências acarretadas. ou adiará o Cumprimento daquela inalienável necessidade

caso as circunstâncias atenuantes forneçam capacidade para o ingresso em cursos de aprendizado edificante que facilitarão as pelejas futuras a prol de sua mesma

reabilitação.

9 - O suicida é como que um clandestino da Espiritualidade. As leis que regulam a harmonia do mundo invisível são contrariadas com sua Presença em seus páramos

antes da época determinada e legal; e tolerados são e amparados e convenientemente encaminhados porque a excelência das mesmas, derramada do seio amoroso do Pai

Altíssimo, estabeleceu que a todos os pecadores sejam incessantemente renovadas as oportunidades de corrigenda e reabilitação!

10 - Renascendo em novo corpo carnal, remontará o Suicida à programação de trabalhos e prélios diversos aos quais imaginou erradamente poder escapar pelos atalhos

do Suicídio; experimentará novamente tarefas, provações semelhantes ou absolutamente idênticas às que pretendera arredar; passará inevitavelmente pela tentação do

mesmo suicídio, porque ele mesmo se colocou nessa difícil circunstAncia carreando para a reencarnação expiatória as amargas sequências do passado delituoso! A tal

tentação, porém, poderá resistir, visto que na Espiritualidade foi devidamente esclarecido, preparado para essa resistência. Se contudo vier a falir por uma segunda

vez - o que será improvável -, multiplicar-se-á sua responsabilidade, multiplicando-se, por isso mesmo, desastrosa-mente, as séries de sofrimentos e pelejas reabilitadoras,

visto que é imortal!

11 - O estado indefinível, de angústia inconsolável, de inquietação aflitiva e tristeza e insatisfações permanentes; as situações anormais que se decalcam e sucedem

na alma, na mente e na vida de um suicida reencarnado, indescritíveis à compreensão humana e só assimiláveis por ele mesmo, somente lhe permitirão o retorno à normalidade

ao findar das causas que as provocaram, após existências expiatórias, testemunhos severos onde seus valores morais serão duramente comprovados, acompanhando-se de

lágrimas ininterruptas, realizações nobilitantes, renúncias dolorosas de que se não poderá isentar... podendo tão dificultoso labor dele exigir a perseverança de

um século de lutas, de dois séculos... talvez mais... tais sejam o grau dos próprios deméritos e as disposições para as refregas justas e inalienáveis!

Tais deduções não nos deixavam, absolutamente, ilusões acerca do futuro que nos aguardava. Cedo, portanto, compreendemos que, na espinhosa atualidade que

vivíamos, um roteiro único apresentava-se como recurso a possíveis suavizações em porvir cuja distância não po diamos prever: - submetermo-nos aos imperativos das

leis que havíamos infringido, observarmos conselhos e orientações fornecidos por nossos amorosos mentores, deixando-nos educar e guiar ao sabor do seu alto critério,

como ovelha. submissas e desejosas de encontrar o consolo supremo de um aprisco...

6

A comunhão com o Alto

"Disse então Jesus estas palavras: - Graças te rendo, meu Pai, Senhor do Céu e da Terra, por haveres ocultado estas coisas aos doutos e aos prudentes e por

as teres revelado aos simples e aos pequeninos."

SÃO MATEUS, capítulo 11, versículo 25.

"Em qualquer lugar onde se acharem duas ou mais pessoas reunidas em meu nome, eu estarei entre elas."

SÃO MATEUS, capítulo 18, versículo 20.

Não obstante a eficiência de métodos tão apreciáveis, mesmo no recinto do Hospital e, mais ainda, entre os asilados do Isolamento e do Manicômio, existiam

aqueles que não haviam conseguido reconhecer ainda a própria situação com a confiança que era de esperar. Permaneciam atordoados, semi-inconscientes, imersos em

lamentável estado de inércia mental, incapacitados para quaisquer aquisições facultativas de progresso. Urgia despertá-los. Urgia chocá-los com a revivescência de

vibrações animalizadas a que estavam habituados, tornando-os capazes de algo entenderem através da ação e da palavra humanas! Que fazer, se não chegavam a compreender

a palavra harmoniosa dos mentores espirituais, tampouco vê-los com o desembaraço preciso, aceitando-lhes as sugestões caridosas, muito embora se materializassem

eles quanto possível, a fim de mais eficientes se tornarem as operações?

A augusta Protetora do Instituto tinha pressa de vê-los também aliviados, pois assim o desejava seu excelso coração de Mãe!

Não vacilaram, pois, em lançar mão de recursos supremos, a fim de conseguirem o piedoso desiderato, - os abnegados servidores da formosa Legião governada por

Maria.

Nossos instrutores - Romeu e Alceste - participaram ao eminente diretor do Departamento Hospitalar existir necessidade premente de demandarem a Terra em busca

de aprendizes de ciências psíquicas a fim de resolverem complexo, mentais de alguns internos, insolúveis na Espiritualidade. Inteirado das particularidades, em conferências

a que também assistiram os devotados opera-dores dos gabinetes, Irmão Teócrito nomeou a comissão que deveria sem demora partir para a Terra a fim de investigar as

possibilidades de uma eficiente colaboração terrena. Expediu ao mesmo tempo petição de assistência ao Departamento dé Vigilância, pois a este gabinete, como sabemos,

achava-se afeto o movimento de intercâmbio entre nossa Colônia e os proscênios terrestres.

Olivier de Guzman, com a presteza que caracterizava as resoluções e ordens em todos aqueles núcleos de serviço, pôs à disposição de seu antigo colega de prélios

beneficente, o pessoal necessário, competente para a magna tentativa, ao mesmo tempo que solicitava da Seção de Relações Externas indicações seguras quanto à existência

de agremiações de estudo e experiências psiquicas reconhecidamente séria,, assinaladas pelo emblema cristão da vera fraternidade de princípios, no perímetro astral

enfaixado por Portugal, Espanha, Brasil, países latino-americanos e colônias portuguesas, assim como as fichas espirituais dos médiuns às mesmas congregados.

Coube ao Brasil a preferência, dada a variedade de organizações científicas onde o senso religioso e a fúlgida moral cristã consolidavam o ideal de Amor e Fraternidade,

tão admirado pelos da Legião em apreço, a par da magnífica falange de médiuns bem dotados para o espinhoso mandato, e que o fichário da Vigilância registrava

na terra de Santa Cruz.

Nessa mesma noite, do burgo da Vigilância partiu pequena caravana com destino ao Brasil, chefiada pelo nosso já muito estimado amigo Ramiro de Guzman. Porque

se tratasse de Espíritos lúcidos, completamente desmaterializados, dispensada foi a necessidade de veículos de transporte, pois empregariam a volitação para o trajeto,

por mais rápido e concorde com suas experiências espirituais. Integravam essa caravana, além dos dedicados instrutores Alceste e Romeu, dois cirurgiões responsáveis

pelos pacientes em questão, especializados na ciência da organização físico-astral, como os dois Canalejaa o eram das nossas enfermarias. Iam, com poderes conferidos

pelo diretor, examinar as possibilidades dos médiuns cujos nomes e referências recomendáveis haviam obtido da Seção de Relações Externas. Desse exame dependeria

a escolha definitiva das agremiações a serem visitadas.

Antes, porém, da partida dessa comissão, fora expedida mensagem telepática da direção-geral do Instituto, localizada na mansão do Templo, aos diretores e guias

instrutores espirituais das agremiações a que pertenciam os referidos médiuns, assim como a seus próprios guias e mentores particulares, solicitando-lhes a indispensável

permissão e preciosa colaboração para os entendimentos a serem firmados com aqueles.

Os serviços a serem prestados pelos veículos humanos - ou médiuns - deveriam ser voluntários. Absolutamente nada lhes seria imposto ou exigido. Ao contrário,

iriam os emissários do Instituto solicitar, em nome da Legião dos Servos de Maria, o favor da sua colaboração, pois era norma das escolas de iniciação a que pertenciam

os responsáveis pelo Instituto Correcional Maria de Nazaré, pertencente àquela Legião, nada impor a quem quer que fosse, senão convencer à prática do cumprimento

do dever.

Concertado o entendimento pela correspondência telepática, ficara estabelecido que os mentores espirituais dos médiuns visados lhes sugerissem o recolhimento

ao leito mais cedo que o usual; que os mergulhassem em suave sono magnético, permitindo amplitude de ação e lucidez aos seus Espíritos para o bom entendimento das

negociações a se realizarem pela noite a dentro. Uma vez desprendidos dos corpos físicos pelo sono, deveriam os referidos concorrentes ser encaminhados para a sede

da agremiação a que pertenciam, local escolhido para as confabulações.

Tudo programado, partiu do Instituto a caravana missionária, composta de oito personagens, isto é, quatro servidores especializados, do Hospital, e quatro assistentes

da Vigilância, que os guiariam com segurança às localidades indicadas.

Soavam precisamente as vinte e três horas nos campanários singelos das primeiras localidades a serem visitadas, quando os dedicados servos de Maria começaram

a planar nas latitudes pitorescas da terra de Santa Cruz, dirigindo-se sem vacilações para o centro do país.

Suaves claridades emitidas pelas últimas fases do plenilúnio derramavam docemente, sobre o dorso do planeta de provações, tons melancólicos e sugestivos, enquanto

os odores vivos da flora brasileira, rica de essências virtuosas, embalsamavam a atmosfera, como a acenderem piras de perfumes raros em honra aos nobres visitantes,

sabendo de suas predileções de iniciados orientais...

Consultaram então o mapa que traziam com as necessárias indicações; escolheram algumas das cidades do centro da grande nação planetária, nele indicadas pela Seção

de Relações Externas como mantenedoras de agrupamentos de estudos e aprendizagem psíquicos sérios; e, separando-se em quatro grupos de apenas duas individualidades,

atingiram céleres os pontos determinados. Haviam estabelecido, assim, que visitariam quatro cidades de cada vez, à procura dos médiuns; e que, uma vez firmados os

entendimentos, reunir-se-iam em determinado local da Espiritualidade, com os guias e mentores deles, para indispensáveis entendimentos relativos ao importante certame.

Em vários núcleos de experiências, portanto, nessa noite bonançosa, no interior do Brasil onde a quietude e simplicidade de costumes não contaminam de muito graves

impurezas o meio ambiente social, caridosa atividade do mundo astral efetivava-Se em locais humílimos, desataviados de opulências e vaidades, mas onde a sacrossanta

lâmpada da Fraternidade se mantinha acesa para o culto imorredouro do amor a Deus e ao próximo.

Os emissários expuseram ao que vinham, solicitando aos médiuns, cujos Espíritos para ali haviam sido conduzidos enquanto os corpos continuavam profundamente adormecidos,

seu concurso piedoso para o esclarecimentO de míseros suicidas incapacitados de se convencerem dos imperativos da vida espiritual apenas com o concurso astral. O

estado lamentável a que se reduziram aqueles infelizes não foi omitido na longa exposição feita pelos solicitantes. Os médiuns deveriam contribuir com grandes parcelas

de suas próprias energias para alívio dos desgraçados que lhes bateriam à porta. Esgotar-Se-iam, provavelmente, no caridoso afã de lhes estancar as lágrimas. Seria

até mesmo possível que, durante o tempo que estivessem em contacto com eles, impressões de indefiníveis amarguras, mal-estar inquietante, perda de apetite, insônia,

diminuição até mesmo do peso natural do corpo físico viessem surpreendê-los e afligi-los. Todavia, a direção do Instituto Maria de Nazaré oferecia garantia: - suprimento

das forças consumidas, quer orgânicas, mentais ou magnéticas, imediatamente após a cessação do compromisso, ao passo que a Legião dos Servos de Maria, a partir daquela

data, jamais os deixaria sem a sua fraterna e agradecida observação. Se se arriscavam à solicitação de tão vultoso concurso era porque entendiam que os médiuns educados

a luz da áurea moral cristã são iniciados modernos, e, por isso, devem saber que os postos que ocupam, no seio da Escola a que pertencem, fatalmente terão de obedecer

a dois princípios essenciais e sagrados da iniciação Cristã heroicamente exemplificados pelo Mestre Insigne que a legou: - Amor e Abnegação!

Não obstante, seriam livres de anuir ou não ao convite, O encargo deveria distinguir-se por voluntário, realizado sem constrangimentos de nenhuma espécie, estribando-se

na confiança e no sincero desejo do Bem.

Assim se realizaram as primeiras confabulações em doze povoações visitadas, sendo os convites apresentados a vinte médiuns de ambos os sexos. Dentre estes, porem,

apenas quatro senhoras, humildes, bondosas, deixando desprender do envoltório astral estrigas luminosas à altura do coração, ofereceram incondicional e abnegadamente

seus préstimos aos emissários da Luz, prontas ao generoso desempenho. Dos representantes masculinos apenas dois aquiesceram, sem rasgos de legítima abnegação, é

certo, mas fiéis aos compromissos de que se investiram, assemelhando-se ao funcionário assíduo à repartição por ser esse o dever do subordinado. Os restantes, conquanto

honestos, sinceros no ideal esposado por amor de Jesus, desencorajaram-se de um compromisso formal. Os quadros expostos, mostrando-lhes o precário estado dos pacientes

que deveriam socorrer, eu martirológio de além-túmulo, infundiram-lhe tais pavores e impressões que acharam por bem retrair impulsos assistenciais, prontificando-se,

porém, a permanente auxílio através das irradiações benévolas de preces sinceras. Foram, por conseguinte, desobrigados de quaisquer compromissos diretos, dando-se

os visitantes por amplamente satisfeitos. Era de notar, porém, que o Brasil fora assinalado como ambiente preferível, onde se localizavam médiuns ricamente dotados,

honestos, sinceros, absolutamente desinteressados!

Seguiram-se os indispensáveis exames da organização astral e envoltório material dos que se comprometeram ao alto mandato.

A beira de seus leitos inspeção minuciosa foi' efetivada em seus fardos carnais. O vigor cerebral, as atividades cardíacas, a harmonia da circulação, o estado geral

das vísceras e do sistema nervoso, e até as funções gástricas, renais e intestinais foram cuidadosamente investigadas. As deficiências porventura observadas seriam

a tempo reparadas por ação fluídica e magnética, pois tinham à frente ainda vinte e quatro horas para os preparativos.

Passaram em seguida à vistoria do envoltório físico-astral, ou seja, o perispírito. Conduzidos a um dos postos de emergência e socorro, mantido. pela Colônia

a que deveriam emprestar caridoso concurso, nas proximidades desta como da própria Terra, espécie de Departamento Auxiliar onde freqüentemente se realizavam importantes

trabalhos de investigações e labores outros, afetos aos serviços da mesma Colônia, foram os Espíritos dos seis médiuns contratados minuciosamente instruídos quanto

aos serviços que deveriam prestar, examinados os seus perispíritos, revivificados com aplicações fluídicas de excelência soberana para o desempenho, analisados o

volume e grau das vibrações emitidas e corrigidos os excessos ou deficiências apresentadas, a fim de que resistissem sem sofrer quaisquer distúrbios e dominassem,

tanto quanto possíveis, beneficiando-as com o vigor sadio que desprendessem - as emanações mentais nocivas, doentias, desesperadoras, dos desgraçados suicidas absorvidos

pela loucura da dor superlativa! Pode-se mesmo asseverar que o contacto mediúnico com os futuros comunicantes estabeleceu-se nessa ocasião, quando correntes magnéticas

harmoniosas foram dispostas de uns para outros, assim determinando a atração simpática, a combinação dos, fluidos, fator indispensável na operação dos fenômenos

de tão melindroso quão sublime gênero.

Uma vez ultimados tais preparativos, reconduziram os colaboradores terrenos aos seus lares, libertando-os do sono em que os haviam mergulhado, a fim de que retomassem

os fardos materiais quando bem lhes aprouvesse, e, incansáveis heróis do amor fraterno, tornaram aos seus postos do Invisível, prosseguindo em nova série de atividades

preparatórias para a jornada da noite seguinte, quando se iniciaria a sucessão de reuniões em quatro cidades do interior do Brasil. E não é de admirar que assim

o fizessem, sabido como é que todos os iniciados graduados são doutores em Medicina, com amplos conhecimentos também das organizações físico-astrais.

Desde o regresso da comissão de entendimentos, movimentação incomum apresentavam as repartições do burgo da Vigilância e do Hospital. Na manhã seguinte fomos

cientificados de que, ao cair do crepúsculo, partiríamos em visita de instrução aos planos terrenos, o que muito veio alvoroçar nossos corações, por imaginarmos

possibilidades de rever nossas familias e amigos. Da Vigilância, turmas de operários e técnicos partiram ao alvorecer, conduzindo aparelhamentos necessários ao importante

trabalho a realizar-se às primeiras horas da noite. Quer os diretores de nossa Colônia, quer os instrutores e educadores, seus auxiliares, eram severos na observação

dos métodos empregados, meticulosos nas disciplinas exigidas para o intercâmbio entre o Mundo Astral e a Terra, fiéis aos programas estatuídos pelos santuários orientais,

onde, havia muito, quando homens, aprenderam as magnas ciências do Psiquismo. Por isso mesmo, um esquadrão de lanceiros desceu e, depois de inspeção rigorosa pelo

interior do edifício onde se realizaria a reunião de psiquismo, ou, como usualmente se denomina - a Sessão Espírita -, postou-se de guarda fazendo segura ronda desde

as primeiras horas da madrugada. Ficou, assim, circulada por milicianos hindus, que se diriam invencível barreira, a casa humilde, sede do Centro Espírita escolhido

para a primeira etapa, enquanto o emblema respeitável da Legião foi arvorado no alto da fachada principal, invisível a olhos humanos comuns, mas nem por isso menos

real e verdadeiro, uma vez que a nobre agremiação fora temporariamente cedida àquela insigne e benemérita corporação espiritual. Obreiros devotados, sob a direção

de técnicos e diretores da Seção de Relações Externas, preparavam o recinto reservado à prática dos fenômenos, tornando-o, tanto quanto possível, idêntico aos ambientes

que no Instituto lhes eram favoráveis à instrução dos pacientes. Enquanto isso, foi solicitada ao diretor espiritual do Centro em questão a fineza de recomendar

ao diretor terreno, por via mediúnica, absolutamente não permitir assistência leiga ou desatenciosa aos trabalhos daquela noite, os quais seriam importantes e delicados,

pois, nada menos do que uma falange de Espíritos suicidas para ali seria encaminhada a fim de a eles assistir, e operosidades dessa natureza há mister que sejam

ocultas, admitindo-se apenas os aprendizes probos, aplicados e sinceros da iniciação cristã, já moralizados pelas alvoradas das virtudes evangélicas.

Fluidos magnéticos foram prodigamente espargidos no recinto da sala de operações, por obedecerem a duas finalidades: - servirem como material necessário à criação

de quadros visuais demonstrativos, durante as instruções aos pacientes, e refrigerantes tônicos para combate às vibrações nocivas, inquietantes e desarmoniosas,

dos Espíritos sofredores presentes e mesmo de algum colaborador terreno que deixasse de orar e vigiar naquele dia, arrastando para a mesa sacrossanta da comunhão

com o Invisível as emanações da mente conturbado..

Tudo preparado, ao entardecer iniciou-se o transporte das entidades chamadas ao vultoso empenho. Pela manhã do mesmo dia, porém, após a preleção que se seguia

às aplicações balsamizantes para nosso tratamento, nos gabinetes já descritos, fomos esclarecidos quanto à importância da reunião a que deveríamos assistir.

- Durante a viagem seria preferível abstermo-nos de quaisquer palestras. Deveríamos equilibrar nossas forças mentais, impelindo-as em sentido generoso. Que procurássemos

recordar, durante o trajeto, as instruções que vínhamos recebendo havia dois meses, recapitulando-as como se devêramos prestar exame. Isso nos conservaria concentrados,

auxiliando, portanto, nossos condutores na defesa que nos deviam, pois atravessaríamoS perigosas zonas inferiores do Invisível, onde pululavam hordas de desordeiros

do Astral inferior, o que indicava ser grande a responsabilidade daqueles que receberam a incumbência de nos guardar durante a excursão. O silêncio e a concentração

que pudéssemos observar imprimiriam maior velocidade aos veículos que nos transportassem, afastando possibilidade de tentativas de assalto por parte daqueles malfeitores,

conquanto tivessem os legionários a certeza de facilmente poderem dominar suas possíveis investidas.

- Não nos poderíamos destacar da falange em hipótese alguma, nem mesmo com o louvável intuito de uma visita à Pátria ou à família. Semelhante indisciplina

poderia custar-nos muitos dissabores e lágrimas, pois éramos fracos, inexperientes, pouco conhecedores do mundo invisível, onde proliferam as seduções, as tentações,

a hipocrisia, a mistificação, a maldade, mais ainda do que na Terra! Em ocasião oportuna visitaríamos nossos entes caros sem que nenhum contratempo adviesse, desgostando-nos.

- No recinto das operações deveríamos portar-nos como se defrontando o próprio Tabernáculo Supremo, pois que a reunião era acima de tudo respeitável, porque

realizada sob as invocações do sacrossanto nome do Altíssimo, enquanto que Seu Unigênito estaria presente através de irradiações misericordiosas do Seu grande amor

fraterno, porqüanto isso mesmo prometera aos discípulos sinceros da Sua Excelsa Doutrina, que em Seu nome se reunissem para a comunhão com o Céu.

- Se era dever do cristão honesto e sério calar paixões e desejos impuros, procurando escudar-se na boa-vontade para dominá-los, reeducando-Se diariamente,

nos momentos em que estivéssemos presentes ao venerável Templo onde se consagraria o sublime mistério da confraternização entre mortos e vivos para trocarem impressões,

assim mutuamente se esclarecendo, se instruindo e iluminando, melhor cumpriria a todos, homens e Espíritos, precatarem-se com as mais dignas atitudes, chamando os

pensamentos mais sadios para aureolarem as mentes de nobreza condizente com o almo acontecimento; esquecerem mágoas, preocupações subalternas, levando bem alto o

padrão dos sentimentos caridosos no intento de beneficiação ao próximo, pois que seria bom nos lembrássemos de que, integrando a nossa falange mesma, iam entidades

ainda mais desafortunadas do que nós, aquelas que nenhum alívio ainda tinham conseguido, tais a desorganização nervosa, a dispersão mental em que se mantinham, e

às quais ordenava o dever de fraternidade que auxiliássemos apesar da nossa fraqueza, contribuindo com nossos pensamentos benevolentes, firmes, vibrando em sentido

favorável a elas. Tal proceder de nossa parte rodeá-las-ia de vigores novos, os quais abrandariam a ardência das angústias que as oprimiam, concedendo ao mesmo tempo,

a nós outros, o mérito da verdadeira cooperação.

- Disseram-nos mais que, na Terra, nem todos os homens admitidos ao cenáculo sagrado das evocações guardavam essa higiene moral e mental, necessária

àboa marcha do intercâmbio com o Invisível. Que, nos dias decorrentes, entre os encarnados existia até mesmo leviandade e abuso na prática das relações com os mortos,

o que é lamentável, porqüanto, todo aquele que age leviana ou descriteriosamente, em torno de tão respeitável quão melindroso assunto, acumula responsabilidades

gravíssimas para si mesmo, as quais pesarão amargamente na sua consciência, em dias futuros. Por isso mesmo, as reuniões luminosas, onde o descortino de muitas grandezas

espirituais seria possível, tornam-se raras, pois nem sempre os componentes de um quadro de operadores são realmente dignos do alto mandato que presumem poder desempenhar.

Esquecem-se de que, para as verdades dos mistérios celestes refulgirem ao seu entendimento, submetendo-se à sua penetração por lhes desvendarem as sublimidades que

lhes são próprias, é e sempre foi indispensável aos investigadores a autodisciplina moral e mental, preparo individual prévio, que obriga modificações sensíveis

no interior de cada um, ou, pelo menos, o desejo veemente de reformar-se, vontade convincente de atingir o verdadeiro alvo do bem!... Mas que, ainda assim e apesar

de tudo, ordena o dever de Fraternidade que Espíritos angelicais voltem vistas frequentemente para núcleos onde tais infrações se verificam, observando caridosamente

a melhor oportunidade para a elas comparecerem procurando aconselhar aqueles mesmos inconseqüentes, instruí-los quanto possível, despertando em suas consciencias

o senso real da responsabilidade terrível de que se sobrecarregam, deixando de envergar a túnica das virtudes, apontada na velha parábola do Celeste Conselheiro

como traje obrigatório para a mesa do divino banquete com as sociedades as trais e siderais!... (5) E que, assim agindo, os ditos Espíritos nada mais faziam do que

observar princípios da fraternidade estabelecida pelo próprio Mestre Nazareno, o qual não desprezou descer de esferas deíficas até o pélago tormentoso das maldades

humanas, a fim de apontar aos pecadores o caminho do Dever e a prática das virtudes regeneradoras!

Ao entardecer, pois, partimos, demandando planos terrenos. Custodiavam-nos pesada escolta de lanceiros, turmas de assistentes, psiquistas e técnicos da Vigilância,

pois de nenhuma dependência da Colônia, mesmo do Templo, ninguém visitaria a Terra ou outras localidades vizinhas sem o concurso valioso dos abnegados e intrépidos

obreiros daquele Departamento, os quais em verdade eram os responsáveis pelas mais árduas tarefas que ali se verificavam. Já bastante instruídos, portamo-nos à altura

das recomendações recebidas. Nossos comparsas em piores condições, justamente aqueles por quem tantas operosidades se realizavam, foram transportados em carros apropriados,

rigorosamente fechados e guardados pela fiel milícia hindu, quais prisões volantes para pestosos, o que nos impossibilitou vê-los. Seus gritos lancinantes, porém,

seus gemidos e choro convulsivo que tão bem conhecíamos, chegavam até nós distintamente, o que nos comovia, despertando-nos funda compaixão. Ansiosos, procuramos

socorro ao mal-estar daí decorrente nas prudentes recomendações de Romeu e Alceste, nossos caros instrutores, firmando nossas forças mentais em vibrações caridosas

a eles favoráveis, o que até mesmo a nós próprios veio beneficiar.

Chegados ao termo da viagem, um deslumbramento surpreendeu nossos olhos habituados às brumas nostálgicas do Hospital. Era de fazer notar como podíamos ver melhor

tudo em derredor, uma vez na Terra, pois, em tempo algum, jamais víramos edifício tão magnificamente engalanado de luzes como aquela humilde habitação o era pelos

esplendores que do Alto se projetavam,

(5) Mateus, capítulo 22, versículos 1 a 14.

envolvendo-a num como abraço de vibrações hialinas! Encimando-a, lá estava a Cruz radiosa - emblema dos servos de Maria aquartelados no Instituto - com as iniciais

nossas conhecidas, e cujas cintilações azuladas confundiam e arrebatavam. Lanceiros montavam sentinela à pequenina mansão transformada em solar de estrelas, havendo

mesmo um cordão luminoso, qual bastião de fiavas neblinas, cfrculando-a cuidadosamente, limitando-a da via pública em cerca de dois metros. A um entendido não seria

difícil perceber a finalidade de tais precauções exigidas pelos ilustres trabalhadores do Instituto Maria de Nazaré. Não desejavam a intromissão no recinto das operações

nem mesmo de emanações mentais heterogêneas, precatando-se quanto possível das investidas nocivas exteriores de qualquer natureza!

Entramos. Nossa admiração aumentava...

A azáfama do plano espiritual era intensa. Quanto à parte que tocava ao homem executar parecia diminuta, conforme foi fácil observar.

Ao ingressarmos no salão indicado para o nobre acontecimento, apenas se nos deparou um varão idoso, absorvido na leitura de um manual de filosofia transcehdental,

o qual dir-se-ia empolgá-lo, pois, verdadeiramente concentrado nos pensamentos que ia captando das páginas sábias, deixava irradiar da fronte fagulhas luminosas

que muito o recomendavam no conceito do Invisível. Tudo indicava compreender ele a responsabilidade dos trabalhos daquela noite, que sobre seus ombros também pesavam,

e, por isso, preparava-se a tempo, estabelecendo correntes harmoniosas entre si próprio e seus diletos amigos espirituais. Era o diretor terreno da casa.

O quadro a contemplar, aliás, era sugestivo e majestoso.

Haviam desaparecido os limites da sala de trabalhos, como se as paredes fossem magicamente afastadas a fim de se dilatar o recinto. Em seu lugar víamos tribunas

circulares, com feição de arquibancadas. Dir-se-ia anfiteatro para acadêmicos. Nossos guias vigilantes indicaram as arquibancadas e os lugares a nós reservados.

Obedecemos sem relutância, enquanto os infelizes companheiros, cujo estado grave dera razões ao trabalhoso recurso, eram pacientemente conduzidos por seus médicos

assistentes e enfermeiros e colocados no primeiro plano das arquibancadas, em local apropriado às suas condições.

Na sala já se achavam reunidos os elementos terrenos selecionados para aquela noite, isto é, os médiuns indicados, os colaboradores homogêneos, de boa-vontade,

tomando cada um o lugar conveniente. Para estes nada mais havia no tosco aposento além das paredes brancas e desadornadas, a mesa que singela toalha guarnecia, livros,

papéis em branco, esparsos, à altura das mãos dos médiuns, e alguns lápis. Os dotados de vidência, todavia, percebiam algo inusitado e fora de rotina, e comunicavam

timidamente a seus pares, em discretas confidências, que visitas importantes do Além honravam a Casa aquela noite, seguindo-se a descrição de alguns pormenores,

como a presença da milicia de lanceiros, dos médicos com seus aventais e emblemas e enfermeiros azafamados, no que, em verdade, não eram acreditados, pois, ainda

no primeiro decênio deste século, mesmo muitos dos espíritas mais convictos sentiam dificuldade em aceitar a possibilidade de existir no Espaço necessidade de militares

em ação, de enfermeiros e médicos desdobrando os misteres de sua magna ciência em torno de enfermos desencarnados...

Nós outros, no entanto, não fora a degradante indigência que nos grilhetava à inferioridade espiritual, impossibilitando a amplitude da visão que seria natural

se outras fossem as nossas condições, teríamos abrangido o cenário na sua augusta realidade, em vez de percebermos palidamente o que nossos guias e mentores contemplavam

em todo o esplendor da sua gloriosa significação:

- Ao centro do salão destacava-se a mesa de trabalho. dos colaboradores encarnados. Rodeavam-na o seu presidente com a comitiva de médiuns e afins para a corrente

simpática de atração. De tosca que a notáramos ao entrar, agora se tornava alvinitente, pois dos confins do Invisível Superior despejava-se sobre ela cascata de

luz resplandecente, elevando-a ao nível de altar venerável, onde a comunhão da Fraternidade entre homens e Espíritos se realizaria sob os divinos auspícios do Cordeiro

de Deus, cujo nome respeitável era ali invocado.

- Abrangendo essa primeira corrente magnética produzida pelas vibrações harmoniosas dos encarnados, existia uma segunda, composta por entidades translúcidas

e formosas, cujas feições mal podíamos fixar, tais os reflexos vivos que emitiam, parecendo antes silhuetas encantadas, orladas de ralos cristalinos e puros:

- eram os Espíritos Guias do Centro visitado, os protetores dos médiuns, assistentes e familiares das pessoas presentes, que, abnegadamente, talvez desde

milênios se dedicavam ao objetivo da sua redenção!

- Além desta, ocupando maior espaço no recinto e, como as duas primeiras, dispostas em círculo, a super-corrente fornecida pelos visitantes e composta,

na sua totalidade, pelo pessoal especializado comissionado pelo Departamento de Vigilância e subordinado à Seção de Relações Externas, pessoal esse chefiado pelo

nosso amigo Ramiro de Guzman.

- A cabeceira da mesa, lugar de honra ocupado pelo diretor da Casa, o qual requer do seu ocupante elevadas disposições para o Bem, e que, para os métodos

hindus usados no Instituto, seria a chave do círculo propicio ao nobre desempenho, postavam-se, além deste, o seu diretor espiritual e mais o chefe de nossa expedição,

isto é, Ramiro de Guzman, ao passo que mais acima Romeu e Alceste, os instrutores diretos da atormentada falange, cujo delicado desempenho vai verificar-se através

da palavra do instrutor terreno - o presidente da mesa.

A um e outro cumpre recolher as vibrações dos pensamentos e das palavras do presidente, desenvolvidos durante o magno certame; associá-los aos elementos quintessenciados

de que dispõem, de envolta com as ondas magnéticas dos circunstantes encarnados; elaborá-los e transfundi-los em cenas, dando-lhes vida e ação, concretizando-os,

materializando-os até que os infelizes assistentes desencarnados sejam capazes de tudo com preender com facilidade. Para isso contam com o apoio do pessoal especializado

fornecido pela Vigilância, isto é, pela Seção de Relações Externas, e o concurso amoroSo e indispensável dos gabinetes científicos localizados no Hospital, chefiados

por Teócrito.

Quanto aos nossos médicos e enfermeiros já se achavam a postos, quer junto dos médiuns quer ao lado dos enfermos, indo e vindo, fiéis ao formoso quanto sublime

sacerdócio que no Astral a Medicina lhes confere - ainda mais nobre que na Terra, porque, além, é unicamente sob a augusta inspiração do Amor e da Fraternidade que

se dedicam a tão nobres labores.

E, serenos nos postos que lhes competiam, os lanceiros - esses colaboradores arrojados e silenciosos - dir-se-ia trazerem as forças de que dispunham, em verdade

não nas lanças, que em suas mãos não exprimiam violência, mas nas mentes rigorosamente moldadas nas forjas de trabalhos austeros, de iniludíveis disciplinas, de

renúncias e aprendizados abrilhantados na dor dos sacrifícios!

Cada colaborador no posto que lhe era devido, cumpria iniciar a chamada, como rezavam os métodos da iniciação. Tocou ao irmão Conde de Guzman levá-la a efeito,

como responsável que era pela numerosa comitiva, Os comissionados pelos chefes do Instituto Maria de Nazaré, para a tarefa daquela noite, achavam-se presentes. A

seu pedido imitou-o o diretor espiritual do Centro, notificando que também os seus subordinados correspondiam ao santificante compromisso. Quanto aos cômpares terrestres,

os auxiliares humanos - nem todos se encontravam fielmente reunidos à hora aprazada! A chamada que, do plano espiritual, lhes era feita, acusava nada menos de três

ausentes do cumprimento do Dever...

Iniciaram-se, finalmente, os trabalhos sob o nome sacrossanto do Altíssimo e a proteção solicitada do Excelso Mestre de Nazaré. Visívelmente inspirado pelos

pensamentos vigorosos das entidades iluminadas presentes, o presidente da Casa desenvolveu ardente prece, tocante e substanciosa, a qual predispôs nossos corações

ao enternecimento e a fervoroso recolhimento. A proporção que orava, porém, com maior vigor incidiam sobre a mesa os arrebóis níveo-azulados emanados do Alto, quais

bênçãos dadivosas que nos levaram a imaginar lampejos do olhar caridoso de Maria norteando seus obreiros na piedosa missão de socorro a pobres decaídos.

Supliquemos, porém, aos mentores e tutelares presentes a graça de nos conferirem por instantes o poder da visão a distância, que neles é um dos formosos atributos

do progresso adquirido, e o qual não possuimos ainda, e respeitosamente acompanhemos esse cascatear azulíneo que engalanou a sede humilde da agremiação dos discípulos

do grande iniciado Allan Kardec, a ver se conseguiremos descobrir a sua origem...

Eis que fomos satisfeitos em nossas pretensões, sob a condição de conduzirmos o leitor no giro que empreendermos através das desejadas investigações... Uma vez

assestado, o binóculo mágico revelou-nos que, sob as fulgurações puríssimas que visitavam o tosco albergue, desapareceram os limites que o encerravam no ergástulo

de simples habitação terrena para transfigurá-lo em alvo de irradiações generosas por parte dos diretores do nosso Instituto. Víamos, refletida nas ondas pulcras

daquelas dulçorosas cintilações, a reprodução do que, no mesmo momento, se desenrolava no gabinete secreto do Templo-santuário, onde se reuniam os responsáveis por

quantos viviam na Colônia, perante a Excelsa Diretoria da Legião. Também esses austeros mestres, portanto, estão presentes à reunião onde nos achamos, pois que os

vemos: estão, como nós, reunidos em torno a uma mesa augusta e alvinitente - a mesa da comunhão com o Mais Alto -, altar venerável que testemunha todos os dias suas

elevadas manifestações de idealistas, suas investigações profundas de cientistas cristianizados, em torno da Criação Divina e dos graves problemas referentes ao

gênero humano; suas fervorosas vibrações de amor e respeito ao Onipotente Pai e ao próximo! São doze varões, belos, nobres, cuja idade, à primeira vista, se não

poderia calcular, mas que exame mais circunstanciado revelaria que bem poderia ser a que lhes fosse mais grata ao coração ou às recordações! Das mentes graves e

pensadoras, assim como dos corações generosos, cintilas argênteas irradiam, testemunhando a grande firmeza dos princípios virtuosos que os inipulsionam!

Não vemos assistentes para a reunião que efetuam. Estão sós, isolados no cenáculo santificado pelas vibrações das preces que de suas almas extraem, arrebatados

pela Fé! Nem mesmo os discípulos imediatos, os que diariamente cooperam para o progresso e bem-estar da Colônia, são admitidos naquele segredo. A reunião é íntima,

só deles! Precisam da mais sólida homogeneidade de que poderão dispor suas forças assestadas para o sentido do Bem! - pois urge manter a harmonia geral da

assembléia que ousou reunir-se sob o nome do Criador Supremo do Universo e as vistas do Seu Unigênito, cuja presença foi solicitada ardentemente ao se iniciarem

os trabalhos. Perante Maria são eles os responsáveis pelo que se passar na tenda humilima dos discípulos de Allan Kardec, no cimo da qual se assentou o emblema da

Sua Legião! E, o que é ainda mais grave, perante Seu Augusto Filho, o Mestre e Redentor, a quem todas as Legiões prestam obediência, porque é Ele o Diretor Maior

a quem o Criador conferiu poderes para redimir o planeta Terra e suas humanidades, é Ela a responsável pelo que ali se passa, além das responsabilidades deles próprios,

motivo pelo qual será absolutamente imprescindível a conservação da harmonia para a obtenção dos bons êxitos!

Para que o Mestre Amado seja ainda uma vez glorificado; para que Seu Nome Excelso não sirva de pretexto para levianas realizações; para que se não cometa o sacrilégio

de fazer degenerar em simples fórmula banal a invocação feita ao Cordeiro Imaculado de Deus; para que esteja presente nos ditos trabalhos, e para que seja real Sua

Presença, em espírito e verdade, no santuário dos seguidores de Kardec, visitado por seus pupilos, vibram eles ali, reunidos secretamente, elevando os pensamentos

em haustos sublimes, concentrados e firmes, alongando, com as melhores reservas mentais que possuem, as próprias almas na súplica, para que mereçam, com efeito,

todos! todo. presentes à magna reunião, a presença do Grande Consolador, assim estabelecendo as correntes invencíveis, virtuosas e cândidas para aquela noite, correntes

que são o traço de união entre a presença do Mestre Divino e a reunião espírita terrena séria, bem dirigida!

Por isso mesmo é que os demais servidores, conquanto probos, dedicados e sinceros, não podem presenciar essa magna assembléia no Além realizada. Não alcançaram

ainda as vibrações, perfeitamente homogêneas com as suas, tal como requer a santidade do mandato. Na vasta colonização do Instituto Maria de Nazaré, apenas esses

doze mestres de iniciação se apresentam perfeitamente idêntico. em qualidades morais, graus de virtude e de ciência e estado de espiritualização para a comunhão

no sublime ágape que efetuam!

São, não obstante, simples e modestos. Sabem que de si mesmos pouco têm para distribuir com os mais necessitados e sofredores, porque consideram diminuto o cabedal

de ciência adquirido, apesar do longo carreiro de experiência que palmilharam, a série de peregrinações pelas vias do sacrifício e das lágrimas! Conseqüentemente,

não desconhecem que se encontram ainda distanciados da perfeição! Mas porfiam em caminhar com passo. sempre mais firmes ao encalço do grandioso ideal que acalentam

- a união definitiva com Jesus, e revelam, com demonstrações insofismáveis, que nem paixões pessoais, nem desejos impuros abalançam mais suas vontades rigidamente

retemperadas no Amor, na Justiça e no Dever!

Por essa razão oram e suplicam em harmonioso conjunto, sem que nenhum se considere digno bastante de ser chamado mestre ou chefe dos demais! Só sabem é que devem

servir, porque não passam de servos de uma grande corporação onde a lei é o amor ao próximo, o devotamento às causas generosas, a justiça, a abnegação, o trabalho,

o progresso para a conquista do melhor! Para eles, o verdadeiro chefe, o Mestre - é Jesus de Nazaré - e como tal o honram e respeitosamente o invocam sempre que

as circunstâncias o requeiram! E como servos, como discípulos e subordinados desejam praticar ações dignificantes, alcançar méritos a fim de se elevarem no conceito

do Amado Senhor!

Acreditam fervorosamente que o Magno Instrutor, a quem imploram assistência e proteção, não desatendeu as invocações extraidas dos recônditos mais sensíveis dos

seus Espíritos, antes desceu, misericordioso e terno como sempre, não apenas até o santuârio hialino onde só eles penetram, mas também à humilde choça em que se

efetua o divino banquete da Fraternidade, ao qual também concorreram pobres homens e mulheres ainda encarnados, arrastando-se penosamente através dos cardos das

provações para aprendizados redentores. Atesta-o a torrente de luz sideral que a santificou! Ê que a certeza da presença de Jesus nas reuniões engrandecidas pelas

virtudes e dispositivos morais e intelectuais de seus orientadores, quer encarnados, quer desencarnados, proveio do fato de jamais se haverem extinguido da sua audição

espiritual as miríficas expressões daquela voz amorosa, inesquecível e sublime, firmando a promessa imortal:

"Em qualquer lugar onde se acharem duas ou mais pessoas reunidas em meu nome, eu estarei entre elas." (6)

Como sói acontecer nas reuniões legítimas da iniciação espírita-cristã, cujos princípios elevados impõem como base inalienável para o seu adepto a auto-reforma

moral e mental, naquela noite memorável para todos de minha sinistra falange foi escolhido o tema evangélico a ser estudado e comentado. Como vemos, o ensino era

fornecido por Jesus, ali considerado Lente Magnífico, Presidente de Honra, cujas lições levantavam o pedestal de tudo o que se desenrolaria.

Iniciada foi, pois, a leitura do Evangelho, seguindo-se explanação formosa e fecunda, do presidente terreno. As parábolas elucidativas, as ações magnânimas

(6) Mateus, capítulo 18, versículo 20.

e carinhosas, as promessas inolvidáveis mais uma vez enternecem o coração dos aprendizes da Escola de Allan Kardec, que circulavam a mesa, repercutindo gratamente,

pela primeira vez, no Intimo de cada um de nós outros, o divino convite para a redenção - pois até então não ouvíramos ainda dissertações congêneres. Para as criaturas

terrenas ali presentes tratava-se apenas do irmão presidente a ler e comentar o assunto escolhido, em hora de inspiração radiosa, em que jorros de intuições vivíssimas,

cintilantes, cascateavam do Alto revivendo a extensa relação das exemplificações do Modelo Divino e expressões de Sua moral impoluta. Para os Espíritos que se aglomeravam

no recinto, porém, invisíveis à quase totalidade dos circunstantes humanos, e, particularmente, para os desditosos que para ali foram encaminhados a fim de se esclarecerem,

havia muito, muito mais que isso! Para estes, são figuras, vultos, seqüências que se agitam a cada frase do orador! Ë uma aula -estranha, singular terapêutica! -

que nos ministravam qual medicamentação celeste a fim de balsamizar nossas desgraças! A palavra, vibração do pensamento criador, repercutindo em ondas sonoras, onde

se retratavam as imagens mentais daquele que a proferia, e espalhando-se pelo recinto saturado de substâncias fluido-magnéticas apropriadas e fluidos animalizados

dos médiuns e assistentes encarnados, é rapidamente acionada e concretizada, tornando-se visível graças a efeitos naturais que as forças mentais conjugadas dos Tutelares

reunidos no Templo, com as dos demais cooperadores em ação, produziam. Intensificam-se as atividades dos técnicos da Vigilância, comissionados para o delicado labor

da captação das ondas onde as imagens mentais se retrataram, da coordenação e estabilidade de seqüências, etc., etc. A palavra assim trabalhada no maravilhoso laboratório

mental, assim modelada e retida por eminentes especialistas devotados ao bem do próximo - corporificou-.e, tornou-se realidade, criada que foi a cena viva do que

foi lido e exposto!

De nossas arquibancadas, rodeado. de lanceiros quais prisioneiros do pecado que em verdade éramos, tivemos a inédita e grata surpresa de assistir ao desenrolar

das narrativas escolhidas, em movimentações, na faixa flamejante que do Alto descia iluminando a mesa e o recinto. Se havia referência à personalidade inconfundível

do Mestre Nazareno - era a reprodução de Sua augusta imagem que se desenhava, tal como cada um se habituara a imaginá-lo no âmago do pensamento desde a infância!

Se recordavam Seus feitos, Sua vida de exemplificações sublimes, Seus gestos inesquecíveis de Protetor Incondicional dos sofredores - além o víamos tal como o texto

evangélico o descrevia: - bondoso e amorável distribuindo fragrâncias do Seu manancial de Amor e das virtudes deíficas de que era Excelso Relicário - aos pobres

e sofredores, aos cegos e paralíticos, aos lunáticos, aos loucos e aos leprosos, aos ignorantes e às crianças, aos velhos e aos de boa-vontade, aos pecadores e às

adúlteras, aos publicanos, aos samaritanos, aos doutores, aos desesperados e aflitos, aos doentes do corpo e do espírito, aos arrependidos como aos próprios crentes

da Sua Doutrina de Luz e aos Seus próprios apóstolos!... enquanto o presidente - que não enxergava com olhos materiais esses quadros majestosos que se elevavam da

sua leitura e do comentário feito, mas sentia as vibrações harmoniosas e enternecidas que os produziam lhe comoverem a sensibilidade - ia repetindo e comentando

as encantadoras, inesquecíveis asserções que tantas lágrimas hão enxugado através dos séculos, tantos corações sequiosos têm desalterado, tantas e tão angustiosas

incertezas hão transformado na serenidade de uma convicção sólida e inquebrantável:

"- Vinde a mim, vós que sofreis e vos achais sobrecarregados, e eu vos aliviarei. Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei comigo, que sou brando e humilde de

coração, e achareis repouso para vossas almas, pois é suave o meu jugo e leve o meu fardo."

"- Bem-aventurados os que choram e sofrem, porque serão consolados. Bem-aventurados os famintos e os sequiosos de justiça, pois que serão saciados. Bem-aventurados

os que sofrem perseguição por amor à justiça, pois que é deles o reino dos céus."

"- Bem-aventurados vós, que sois pobres, porque vosso é o reino dos céus. Bem-aventurados vós que agora tendes fome, porque sereis saciados. Ditosos sois, vós

que agora chorais, porque rireis."

"- Deus não quer a morte do pecador, mas que ele viva e se arrependa."

"- O Filho de Deus veio buscar e salvar o que se havia perdido."

"- Das ovelhas que o Pai me confiou, nenhuma se perderá."

'- Se queres entrar no reino de Deus, vem, toma a tua cruz e segue-me..." (7)

"- Eu sou o Grande Médico das almas e venho trazer-vos o remédio que vos há de curar. Os fracos, os sofredores e os enfermos são os meus filhos prediletos. Venho

salvá-los! Vinde pois a mim, vós que sofreis e vos achais oprimidos, e sereis aliviados e consolados."

"- Venho Instruir e consolar os pobres deserdados. Venho dizer-lhes que elevem a sua resignação ao nível de suas provas, que chorem, porqüanto a dor foi sagrada

no Jardim das Oliveiras; mas que esperem, pois que também a eles os anjos consoladores lhes virão enxugar as lágrimas."

"- Vossas almas não estão esquecidas; eu, divino jardineiro, as cultivo no silêncio dos vossos pensamentos."

"- Deus consola os humildes e dá força aos aflitos que lha pedem. Seu poder cobre a Terra e, por toda a parte, junto de cada lágrima colocou Ele um bálsamo que

consola."

(7) Jesus-Cristo - O Novo Testamento.

"- Nada fica perdido no reino do nosso Pai e os vossos suores e misérias formam o tesouro que vos tornará ricos nas esferas superiores, onde a luz

substitui as trevas e onde o mais desnudo dentre todos vós será talvez o mais resplandecente!" (8)

E era um desfilar empolgante de cenas, das quais

o Consolador Amável destacava-se irradiando convites irresistíveis a nós outros, réprobos sofredores e desesperançados, enquanto o orador rememorava as divinas

ações por Ele praticadas!...

Silêncio religioso presidia as arquibancadaz. Frêmito de emoções desconhecidas acendia, nas profundezas sensíveis dos nossos Espíritos atribulados e tristes,

uma alvorada de confiança, prelúdio prometedor da Fé que nos deveria impulsionar para os labores da salvação. Suspensos pelos interesses do ensinamento poderosamente

sedutor, fitávamos embevecidos aqueles quadros sugestivos, criados momentaneamente para nossa elucidação, e nos quais destacávamos o Nazareno socorrendo os desgraçados,

enquanto a palavra afetuosa do orador, envolta nas ondas fluídicas, ainda mais doces, do pensamento caridoso dos seres angélicos que nos assistiam, instruía ternamente,

com entonações que repercutiam até ao âmago dos nossos Espíritos sequiosos de consolo, como imprimindo em seus refolhos, para sempre, a imagem incomparável do Médico

Celeste que nos deveria curar! Então sentimos que, pela primeira vez, desde muitos anos, a Esperança descia seus mantos de luz sobre nossas almas enoitadas pelas

trevas do desânimo e da ímpia descrença!

De súbito, brado angustioso, de suprema desesperação, feriu a majestade do religioso silêncio que abendiçoava o cenáculo!

Um dos nossos míseros pares, justamente daqueles a quem denominávamos "retalhados", durante o cativi

(8) O Evangelho Segundo o Espiritismo, de Allan Kardec. (Comunicação do Espírito de Verdade.)

ro no Vale Sinistro, por conservarem no corpo astral az trágicas sombras do esfacelamento do envoltório carnal sob as rodas de pesados veículos de ferro, e cujo

estado de incompreensão e sofrimento, muito grave, exigira o concurso humano a fim de ser suavizado - esperando receber também alívio aos feros padecimentos que

o exasperavam, arrojou-se de joelhos ao solo e suplicou por entre lágrimas, tão pungentes que sacudiram de compaixão as fibras dos circunstantes - como outrora teriam

feito os desgraçados em presença do Meigo Rabi da Galiléia:

"- Jesus-Cristo! Meu Senhor e Salvador! Compadecei-vos também de mim! Eu creio, Senhor! e quero a vossa misericórdia! Não posso mais! Não posso mais! Enlouqueci

no sofrimento! Socorrei-me, Jesus de Nazaré, a mim também, por piedade!.. ."

A um sinal de Alceste e de Romeu, os bondosos enfermeiros ampararam-no, conduzindo-o ao médium, uma senhora ainda jovem, delicada de talhe e de feições, e que

na véspera se comprometera ao magno desempenho, quando das investigações dos obreiros do Instituto para conseguirem a reunião. Dois médicos, responsáveis pelo Espírito

em questão, acompanharam-no, estabelecendo sua ligação com o precioso veículo, e também a este dispensando a mais desvelada assistência, a fim de que nenhum contratempo

sobreviesse.

A cena, então, atingiu a culminância mais patética e, ao mesmo tempo, mais sublime que imaginar se possa!

Apossando-se de um aparelho carnal que, piedosamente, por momentos lhe emprestavam, no intuito cristão de beneficiá-lo, por ajudá-lo a conseguir alivio, o desgraçado

suicida sentiu, em toda a sua plenitude, a tragédia que havia longos anos vinha experimentando o seu viver nas trevas do martírio inconcebível!... pois tinha agora,

ao seu dispor, outros órgãos materiais, nos quais suas vibrações, ardentes e tempestuosas, esbarrando brutalmente, voltavam plenamente animalizadas para produzirem

no seu torturado corpo astral repercussões minuciosas do que fora passado! Gritos lancinantes, estertores macabros, terrores satânicos, todo o pavoroso estado mental

que arrastava, refletiu ele sobre a médium, que traduziu, tanto quanto lho permitiam as forças do sublime dom que possuía, para os circunstante. encarnados ali presentes

-, a assombrosa calamidade que o túmulo encobria!

Enlouquecido, vendo sobre a mesa os fragmentos em que se convertera em desgraçado corpo de carne, por ele próprio atirado sob as rodas de um trem de ferro, pois

seu inacreditável estado mental fazia-o ver, por toda parte, o mal que existia em si mesmo, chaga que lhe violentara a consciência - arrebatou a jovem médium em

agitações penosas e, debruçando-se sobre a mesa, pôs-se a reunir aquele, mesmos fragmentos, tentando reorganizar o corpo, que via, cheio de horror, eternamente disperso

sobre os trilhos, presa dramática de uma das mais abomináveis alucinações que o Além-túmulo costuma registrar!

Vulnerado pelos fogos da inconcebível tortura do réprobo a estampar a realização da assertiva severa do Evangelho:

"- e sereis atirados nas trevas exteriores onde chorareis e rangereis os dentes",

a infortunada ovelha desgarrada, que desdenhara ouvir as advertências do prudente e sábio Pastor da Galiléia, ia, nervosamente, arrepanhando papéis, livros e lápis

que se achavam dispostos sobre a mesa, à disposição dos psicógrafos, e, neles julgando reconhecer as próprias vísceras esfaceladas, ossos triturados, carnes sangrentas

- o coração, o cérebro - reduzidos a montículos repugnantes - mostrava-os, chorando convulsivamente, ao presidente da reunião, a quem enxergava com facilidade, suplicando

sua intervenção junto a Jesus Nazareno, já que tão bem O conhecia, para remediar-lhe a alucinadora situação de se sentir assim despedaçado e reconhecer-se, e sentir-se

Vivo! Nervoso, irrequieto, excitadíssimo, o dantesco prisioneiro dos tentáculos malvados do suicídio gargalhava e chorava a um mesmo tempo, suplicava e gemia, estorcia-se

e ululava, expunha, sufocado em lá grimas afogueadas pelo martírio, o drama incomensurável que para si mesmo criara com o suicídio, o remorso inconsolável de preferir

a descrença em que vivera e morrera à conformidade conselheira e prudente, frente às penas da adversidade, pois, reconhecia agora, tardiamente, que todos os dramas

que a vida terrena apresenta são meros contratempos passáveis, contrariedades banais, comparados aos monstruosos sofrimentos originários do suicídio, cuja natureza

e intensidade nenhum ser humano, mesmo um Espírito desencarnado, é competente para avaliar, uma vez que as não tenha experimentado!

Comovido - a personagem principal da mesa - o presidente, a quem tutelares invisíveis amorosamente inspiram, fala-lhe piedosamente, consola-o apontando a luz

sacrossanta do Evangelho do Mestre Divino como o recurso supremo e único capaz de socorrê-lo, afiançando-lhe ainda, com sua palavra de honra, a qual não tem dúvidas

em empenhar, tal a certeza do que afirma, a intervenção do Médico Celeste, que proporcionará alivio imediato aos estranhos males que o afligem. Eleva então uma prece,

singela e amorosa, depois de convidar todos os corações presentes a galgar com ele o espaço infindo, em busca do seio amorável de Jesus, para a súplica de mercês

imediatas para o desgraçado que precisa serenidade a fim de expungir da mente a visão macabra com que os próprios delitos lhe fustigam a alma e a continuação da

Vida, as quais pretendeu aniquilar com a deserção pelos atalhos do suicídio!

Acompanham-no de boamente todos quantos se interessam pelo infeliz alucinado: - encarnados que compõem a mesa, desencarnados que realizam a magnificência da

sessão, isto é, instrutores, vigilantes, assistentes guias da Casa, lanceiros e até nós outros, os delinqüentes mais serenos, profundamente comovidos. Oram ainda

os diretores de nossa Colônia, que, do segredo do Templo, assistem quanto se desenrola entre nós; oram Teócrito e seus adjuntos, os quais, do Hospital, igualmente

assistem aos trabalhos através dos possantes aparelhos que conhecemos ou simplesmente servindo-se da dupla vista, que facilmente acionam. E assim docemente harmonizada

e fortalecida ao impulso vigoroso dos pensamentos homogêneos de tantos corações fraternalmente unidos sob o ósculo sublime da Caridade, no que pode ela encerrar

de mais belo e desinteressado - a prece ilibada e santa transformou-se em corrente vigorosa de luz resplendente, que dentro de curtos minutos atingiu o Alvo Sagrado

e voltou fecundada pelo amplexo da Sua divina misericórdia! Cada pensamento, que se unifica aos demais em anseios compassivos, cada expressão caridosa extraída do

coração, que subia à procura do Pai Altíssimo em favor do infeliz ferreteado pelo suicídio, que precisou do concurso humano para se adaptar ao além-túmulo - são

vozes a lhe segredarem esperanças, são bálsamos fecundos e inestimáveis a gotejarem tréguas, vislumbres de bonanças nas cruentas tempestades que sacodem seu Espírito

ergastulado na desgraça!

Após a prece seguiu-se silêncio impressionante, como só existiria sobre a Terra outrora, durante a prática dos mistérios, nos santuários dos antigos templos

de ciências orientais. Todos concentrados, apenas a médium se es-torcia e chorava, traduzindo o assombro da entidade comunicante.

Pouco a pouco, sem, que uma única palavra tornasse a ser proferida, e enquanto apenas as forças mentais de desencarnados conjugadas com as de encarnados morejavam,

efetivou-se a Divina Intervenção... e não desdenharemos descrevê-la, digno que é o seu transcendentalismo da nossa apreciação.

As vibrações mentais dos assistentes encarnados, e particularmente da médium, cuja saúde físico-material, físico-astral, moral e mental, encontrava-se em condições

satisfatórias, pois que fora anteriormente examinada pelos provedores do importante certanne espiritual, reagiam contra as do comunicante, que, viciadas, enfermas,

positivamente descontroladas, investiam violentamente sobre aquelas, como ondas revoltas de imensa torrente que se despejasse abruptamente no seio esmeraldino do

oceano, formoso e sobranceiro refletindo os esplendores do firmamento ensolarado. Estabeleceu-se, assim, luta árdua, na realização de sublime operação psíquica,

uma vez que influenciações saudáveis, fluidos magnéticos mesclados de essências espirituais aconselháveis no caso, fornecidos pela médium e pelos guias assistentes,

deveriam impor-se e domar as emitidas pela entidade sofredora, incapaz de algo produzir distante do inferior. A corrente poderosa pouco a pouco apresentou os frutos

salutares que era de esperar, dominando suavemente as vibrações nefastas do suicida depois de passar pelo áureo veículo mediúnico, o qual, materializando-a, adaptando-a

em afinidades com o paciente, tornava-a assimilável por este, cujo envoltório astral fortemente se ressentia das impressões animalizadas deixadas pelo corpo carnal

que se extinguia sob a pedra do sepulcro! Eram como que compressas anestesiantes que se -aplicassem na organização fluídica do penitente, suavizando-lhe o efervescer

das múltiplas excitações, a fim de torná-la em condições de suportar a verdadeira terapêutica requisitada pelo melindroso caso. Era como sedativo divino que piedosamente

gotejasse virtudes hialinas sobre suas chagas anímicas, através do filtro humano representado pelo magnetismo mediúnico, sem o qual o infeliz não assimilaria, de

forma alguma, nenhum benefício que se lhe desejasse aplicar! E era como transfusão de sangue em moribundo que voltasse à vida após ter-se encontrado às bordas do

túmulo, infiltração de essências preciosas que a médium recebia do Alto, ou dos mentores presentes, em abundância, transmitindo em seguida ao padecente.

Lentamente a médium se aquietou, porque o desgraçado "retalhado" se acalmara. Já não via os reflexos mentais do ato temerário, o que equivale adiantar que desaparecera

a satânica visão dos fragmentos do próprio corpo, que em vão tentara recolher para recompor.

Grata sensação de alívio perpassava suas fibras perispirituais doloridas pelos amargores longamente suportados... Continuava o silêncio augusto propício às dulçorosas

revelações imateriais do amparo maternal de Maria, da misericórdia inefável de seu Filho Imaculado. Pelo recinto repercutiam ainda as tonalidades blandiciosas da

melodia evangélica, quais cavatinas siderais harpejando esperanças:

"- Vinde a mim, vós que sofreis e vos achais sobrecarregados, e eu vos aliviarei...."

enquanto ele chorava em grandes desabafos, entrevendo possibilidade de melhor situação. Suas lágrimas, porém, já não traduziam os estertores violentos do início,

mas expressão agradecida de quem sente a intervenção beneficente...

Então, Alceste e Romeu acionaram as forças da intuição, com veemência, sobre a mente do presidente da mesa, que se engrinaldou de luminosidades adamantinas.

Aproximaram-se os técnicos do aparelho mediúnico, a que o infeliz se encostava. Explica-lhe o presidente, pormenorizadamente, quanto lhe sucedeu e por que sucedeu.

Ministra-lhe aula expressiva, a que aqueles agentes corporificam com a criação de quadros demonstrativos. Vimos que se repetia então na sessão espiritista terrena

o que havíamos assistido nas assembléias do Hospital presididas pelo insigne Teócrito: - A vida do paciente ressurge, como fotografada, refletida nesses quadros,

de suas mesmas recordações, desfilando à frente de seus olhos desde o berço até o túmulo por ele mesmo cavado! Ele reviu o que praticou, assistiu aos estertores

rápidos da agonia que a si próprio ofereceu sob as rodas de um veículo; contemplou, perplexo e aterrado, os destroços a que seu gesto brutal reduzira sua configuração

humana cheia de vigor e de seiva para o prolongamento da existência... mas fê-lo agora independente daqueles destroços, como se houvera despertado de hediondo pesadelo!...

Observou mesmo, desfeito em lágrimas, que mãos piedosas recolheram seus despojos sangrentos de sobre os trilhos; assistiu comovido ao sepultamento dos mesmos em

terra. consagrada... e viu o vulto confortador de uma Cruz montando guarda à sua sepultura. Compreendeu, assim, e aceitou o acontecimento que sentia dificuldades

e repulsas em acatar, isto é, que era imortal e continuaria vivendo, vivendo ainda e para todo o sempre, apesar do suicídio! Que de nada aproveitara a resolução

infernal de pretender burlar as leis divinas senão para sobrecarregar-lhe a existência, assim como a consciência, de responsabilidades tão graves quanto pesadíssimas!

E que, se o corpo material se extinguia, com efeito, no lodo pútrido de um sepulcro - o Espírito, que é a personalidade real, porque descendente da Luz Eterna do

Supremo Criador, marcharia indestrutível para o futuro, apesar de todos os percalços e contratempos, vivo e eterno como a própria Essência Imortal que lhe fornecia

a Vida!

Oh, Deus do Céu! Que ofício religioso ultrapassará em glórias essa reunião singela, desprovida de atavios e repercussões sociais, mas onde a atribulada alma

de um suicida, descrente da misericórdia do seu Criador, desesperada pelo acervo dos sofrimentos daí conseqüentes e inclemência dos remorsos, é convertida aos alvores

da Fé, pela doçura irresistível do Evangelho do Meigo Nazareno!... Que cerimônia, que ritual, quais festividades e pompas existentes sobre a Terra poderio ombrear-se

com a magnificência do santuário secreto de um núcleo de estudos e labores espirituais onde os missionários do Amor e da Caridade do Unigênito de Deus em Seu nome

esvoaçam, mergulhados em vibrações ilibadas e puras, oferecendo aos iniciados modernos, que se congregam em cadeias mentais excelentes, o precioso exemplo de nova

prática da Fraternidade!... Em que setor humano depararia o homem glorificação mais honrosa para lhe condecorar a alma, do que essa, de ser elevado à meritória categoria

de colaborador das Esferas Celestes, enquanto os Embaixadores da Luz lhe desvendam os mistérios do túmulo ofertando-lhe sacrossantos ensinamentos de uma Moral redentora,

de uma Ciência Divina, no intuito generoso de reeducá-lo para o definitivo ingresso no redil do Divino Pastor?!...

Homem! Irmão, que, como eu, descendes do mesmo Foco Glorioso de Luz! Alma imortal fadada a destinos excelsos no seio magnânimo da Eternidade! Apressa a marcha

da tua evolução para o Alto nos caminhos do Conhecimento, reeducando o teu caráter aos fulgores do Evangelho do Cristo de Deus! Cultiva tuas faculdades anímicas

no silêncio augusto das meditações nobres e sinceras; esquece as vaidades depressoras; relega os prazeres mundanos que para nada aproveitam senão para excitar-te

os sentidos em prejuízo das felizes expansões do ser divino que em ti palpita; alia para bem distante do teu coração o egoísmo fatal que te inferioriza no concerto

das sociedades espirituais... pois tudo isso mais não é que escolhos terríveis a dificultarem tua ascensão para a Luz!... Rasga teu seio para a aquisição de virtudes

ativas e deixa que teu coração se dilate para a comunhão com o Céu... Então, as arestas do calvário terreno que palmilhas serão aliviadas e tudo parecerá mais suave

e mais justo ao teu entendimento aclarado pela compreensão sublime da Verdade, pois terés dado abrigo em teu seio às forças do Bem que promanam do Supremo Amor de

Deus!... E depois, quando te sentires afeito às renúncias; quando fores capaz das rígidas reservas necessárias ao verdadeiro iniciado das Ciências Redentoras; quando

tiveres apartado o teu coração das ilusões efêmeras do mundo em que experimentas a sabedoria da Vida, e empolgada se sentir a tua alma imortal pelo santo ideal do

Amor Divino - que teus dons mediúnicos se entreabram qual preciosa e cândida flor celeste, para a convivência ostensiva com o Mundo Invisível, despetalando aljôfares

de caridade fraterna àpassagem dos infelizes que não souberam a tempo se precatar, como tu, com as forças indestrutíveis que à alma fornece a Ciência Imarcescível

do Evangelho do Cristo!

7

Nossos amigos - os discípulos de Allan Kardec

Nos intervalos que se seguiam de uma reunião àoutra não voltávamos ao nosso abrigo da Espiritualidade. Permanecíamos antes no próprio ambiente terrestre, em virtude

de ser a viagem a empreender excessivamente dificultosa para grupo numeroso e pesado, tal como o nosso, poder repeti-la em trânsito diário. Assim foi que ficamos

entre os homens cerca de dois meses, tempo necessário à consecução das reuniões íntimas de que carecíamos e de outras tantas de preparação iniciática, onde apenas

os princípios e conceitos morais e filosóficos eram examinados, sem a prática dos mistérios.

Nossa qualidade de suicidas, cuja aura virulada por irradiações inferiores poderia levar a perturbação e o desgosto às pobres criaturas encarnadas das quais nos

aproximássemos, ou delas receber influenciações prejudiciais ao delicado tratamento a que éramos submetidos, inibia-nos permanecer em quaisquer recintos habitados

ou visitados por almas encarnadas.

Convém esclarecer que éramos entidades em vias de reeducação, e, por isso mesmo, submetidas a regras muito severas de conduta, o que impedia de vivermos ao léu

entre os homens, influenciando molestamente a sociedade terrena... coisa que fatalmente sucederia se continuássemos rebelados, recalcitrantes no erro.

Éramos então conduzidos a locais pitorescos, nos arredores das povoações em que nos encontrássemos, e onde se tornasse difícil o ingresso dos homens: - boa ques

amenos, prados ensombrados por árvores frutíferas, colinas férteis e verdejantes onde o gado saboreava a relva fresca da sua predileção. Tendas eram levantadas e

aldeamento gracioso, invisível a olhos humanos, mas perfeitamente real para nós outros, e a que doce poesia bucólica assinalava de matizes sedutores, surgia sob

o zimbório eternamente azul dos céus brasileiros, onde o carro flamejante do Astro Rei resplandecia com a pompa inigualável dos seus raios revigorantes.

A noite, terna melancolia adoçava nossas amarguras de exilados do lar e da família, quando, voltando de assistir às arrebatadoras preleções evangélicas, durante

as reuniões dos espiritistas cristãos, nos quedávamos a meditar, sob o silêncio inalterável das colinas ou da placidez dos vergéis, rememorando as lições fecundas

sobre a existência do Ser Supremo como Criador e Pai, enquanto fitávamos a umbela celeste marchetada de estrelas lucilantes e lindas. Profundas eiucubrações então

dilatavam nosso raciocínio, ao mesmo tempo que contemplávamos, enternecidos quais jovens enamorados, aquele espaço sideral arrastando a glória invariável com que

o Arquiteto Supremo o dotou: - aqui, eram astros fulgurantes e imensos, sóis poderosos, centros de força, de luz, de calor e de vida; além, mundos arrebatadores

de beleza e grandeza inconcebível, cujo esplendor chegava até nossas vistas de précitos do mundo invisível como amoroso aceno fraterno, a afirmar que também eles

abrigavam outras humanidades, almas nossas irmãs em marcha para a redenção, enamoradas do Bem e da Luz, e, como nós, oriundas do mesmo sopro paternal divino que

em nosso âmago sentíamos agora palpitar, apesar da extrema pobreza moral em que nos debatíamos! E por toda a parte a expressão gloriosa do pensamento do Altíssimo

a falar do Seu poder, do Seu amor, da Sua sabedoria!

Não raramente, sob o sussurro mavioso das frondes que engrinaldavam aquelas colinas, ante as dúlcidas virações que refrescavam a noite clarificada pela refulgência

dos astros que rolavam pela imensidão, nossos amigos, os discípulos de Allan Kardec, isto é, os médiuns, os doutrinadores, os evangelizadores cujo altruísmo e boa-vontade

tanto contribuíam para alívio de nossas inquietações, visitavam-nos em nosso acampamento, pela calada da noite, mal seus corpos físicos repousavam em sono profundo.

Confabulavam conosco piedosa e amorosamente, pois tinham livre acesso em nosso aldeamento de emergência, ampliavam explicações em torno da excelência das doutrinas

que professavam, revelando-se respeitosos crentes na paternidade de Deus, na imortalidade da alma e na evolução do ser para o seu Todo-Poderoso Criador!

Grandes entusiastas da Fé, concitavam-nos ao amor a Deus, à esperança na Sua páternal bondade, à confiança no porvir por Ele reservado ao gênero humano, à coragem

para vencer, como bases inalienáveis de serenidade no grande esforço pelo progresso! Afiançavam ser, todos eles, atestados insofismáveis, patéticos, da excelência

dos ensinos filosóficos ministrados pela Doutrina de que eram filiados, Doutrina cujas bases, assentadas na moral grandiosa do Divino Modelo e na Ciência do Invisível,

transformara-os em rijas fortalezas de Fé, capazes de resistirem a toda e qualquer adversidade com ânimo sereno, mente equilibrada e sorriso nos lábios, estampando

o céu que traziam em si mesmos graças aos conhecimentos superiores que tinham da Vida e dos destinos humanos! Expunham, então, cheios de eloqüência, os ardores da

adversidade com que muitos deles lutavam, e, ouvindo-os, abismávamo-nos, e nossa admiração crescia, tornando-os maiores no conceito que deles fazíamos: - este varão

respeitável, chefe de família numerosa, era paupérrimo, vivendo a lutar sem tréguas pela subsistência dos seus; aquele outro, incompreendido no lar, isolado no seio

da própria família, que lhe não respeitava o direito sagrado de pensar e de crer como lhe aprouvesse; esta senhora, carregando a pesada cruz de um matrimônio desventurado,

subjugada ao imperativo de duras humilhações e desgostos diários!... Eis, porém, mais esta, que vira morrer o filho único em plena juventude, arrimo e doçura da

sua viuvez e da sua velhice!... enquanto esta jovem, nas vésperas do consórcio ternamente almejado, se vira recompensada, na sua doce e prometedora dedicação, com

o perjúrio abominável daquele que lhe despertara os primeiros arroubos do coração!... pois, o ser iniciado no Espiritismo Cristão não exclui a necessidade de grandes

reparações e testemunhos dolorosos!

No entanto, a serenidade, a paciente conformidade presidiam a tais choques em seus corações! Haviam-se voltado confiantes para o seio amorável de Jesus, fiéis

ao convite terno que Lhe conheciam permanente! Abriram os corações e o entendimento às doces influências celestes, alcandorando-se aos influxos assistenciais de

seus guias instrutores... e agora marchavam confiantes, demandando o futuro, certos da vitória final! Não tiveram pejo, antes foi com visível bom-humor que narraram

que dentre eles havia os que iam para o cumprimento do dever em suas reuniões sem ter feito a refeição da tarde, por escassez de recursos, mas que nem por isso se

sentiam desgraçados, pois esperavam que o Pai Supremo, que veste os lírios dos campos e provê as necessidades dos pássaros que voam no ar (9), também teria com que

lhes remediar a situação, tão depressa quanto possível... e fortes se sentiam para, por si mesmos, e escudados na Fé e no bom ânimo dela conseqüente, reagirem contra

a penúria do momento, e vencerem!

Desse convívio, por assim dizer diário, resultou que grandes afeições e simpatias indestrutíveis se estabelecessem de parte a parte, mormente entre nós, desencarnados,

que nos sentíamos sinceramente agradecidos pelo interesse que nos dispensavam e as inestimáveis mercês que lhes devíamos. (10)

(9) Mateus, capítulo 6, versículos 19 a 21 e 25 a 34.

(10) Com efeito, no decurso de nossas atividades mediúnicas tivemos ensejo de fazer sólidas relacões de amizade com habitantes do plano invisível. Em determinada

fase de nossa existência, quando testemunhos dolorosos e decisivos nos foram impostos pela Lei das Causas, pequena falange de antigos sofredores e que havíamos auxiliado

antes, inclusive alguns suicidas e dois ex-obsessores que se tornaram nossos amigos durante trabalhos práticos para a cura de obsidiados, tornaram-se visíveis em

certa visita que nos fizeram, oferecendo préstimos para nos suavizarem a situação. Nada sendo, porém, possível porqüanto a situação era irremediável, misturaram

com as nossas as suas lágrimas, visitando-nos freqüentemente e assim nos proporcionando grande refrigério com a prova, que nos deram, de tão benévola afeição. -

(Nota da médium)

Tínhamos licença para segui-los em jornadas laboriosas, no desempenho da beneficência. Poderosamente interessantes, tais labores serviam-nos de magnificentes

lições, de vez que, arraigados a insano egoísmo, não compreendíamos como poderia alguém dedicar-se ao bem alheio com tão elevadas demonstrações de desinteresse e

amor fraterno. Não me eximirei de dedicar algumas linhas destas narrativas à descrição das operosidades a que assistimos então, para só nos referirmos ao que era

realizado por eles em corpo astral, durante as horas dedicadas ao sono e ao descanso físico-material.

Os médiuns, e demais iniciados cristãos encarnados, comissionados pelo Instituto Maria de Nazaré, mereciam a sua confiança e estavam sob a sua vigilância até

findarem os compromissos que haviam assumido com os seus diretores. Muitas vezes, porém, essa vigilância estendia-se por tempo indeterminado, passando o aprendiz

terreno a fazer parte da falange de trabalhadores da Colônia, o que será o mesmo que dizer que se tornava colaborador da magna Legião dos Servos de Maria. Se eram

verdadeiramente dedicados ao ministério apostólico que experimentavam sob os auspícios da grande doutrina compilada pelo chefe da Escola em que se iniciaram, isto

é, por Allan Kardec, não limitariam o concurso da sua boa-vontade às sessões semanais de cunho secreto, em o núcleo a que pertenciam. Ao contrário, dilatariam o

raio das ações próprias empreendendo esforços favoráveis à exaltação da Causa a que serviam.

Pela noite a dentro, aqueles a quem nos ligávamos transportavam-se a grandes distâncias, em corpo astral, associando-se a seus mentores e guias para nobres realizações.

Em nossa falange cada grupo de dez ou mes mo em número menor, poderia associar-se-lhes no intuito de instruir-se, segui-los nas peregrinações dignificantes em prol

da causa esposada pelo Mestre Magnânimo, desde que seus tutelares e assistentes dirigissem os serviços e que mentores da Legião tomassem parte na comitiva.

Durante os dois meses de nossa convivência na Terra, tive ocasião de segui-los algumas vezes, acompanhado de outros cômpares da falange, inclusive Belarmino,

e seguidos de nossos afetuosos amigos de Canalejas e de Ramiro de Guzman.

Encaminhados por seus instrutores espirituais, visitavam hospitais através do silêncio da noite, abeirando-se dos leitos em que gemiam pobres enfermos desesperançados

e tristes, no piedoso interesse de lhes ministrarem alívio e vigores novos com aplicações magnéticas vitalizantes, de que eram fecundos depositários. Falavam-lhes

amigavelmente, valendo-se da sonolência em que OS viam mergulhados, reanimavam-nos transfundindo-lhes os alvores da Fé e da Esperança que iluminavam seus Espíritos

de crentes fiéis, sugeriam-lhes coragem e vontade de vencer através de conselhos e alvitres cuja inspiração recebiam de seus bondosos acompanhantes. Com eles, assim,

ingressamos também em domicílios particulares, observando que o intuito que levavam era sempre o de servir e aprender, quer se tratasse de visita aos palácios, às

choupanas ou até aos prostíbulos, pois entendiam, com seus guias, que também aqui existiam corações a consolar, Espíritos enfraquecidos a reerguer e aconselhar!

De outras vezes solicitavam nossa cooperação ~ empenho de consolar grandes infelizes, isto é, pessoas encarnadas que atravessavam testemunhos dolorosos na série

de provações convenientes, e cuja tendência para o desânimo e a desesperação poderia tornar-se fatal. Levavam-nos então para a sede da agremiação a que pertenciam

e, ali, enquanto seus fardos materiais continuavam em profundo sono, assim como os daqueles por quem se interessavam, reanimavam os pobres sofredores expondo-lhes

conceitos vivos e prudentes, ministrando-lhes os grandiosos, ensinamentos evangélicos que enriqueciam suas próprias almas e deles fa ziam grandes e animosos batalhadores

diários, incapazes de se julgarem vencidos, desanimados, desesperados!... E era então que emprestávamos nossa dolorosa experiência, aquiescendo em falar da sinistra

aventura que o desânimo nos reservara arrastando-nos para o abismo do suicídio! Belarmino encontrava ensejos, então, para expandir seu verbo arrebatador de orador

fecundo e brilhante; e por mais de uma vez pôde ele arrebatar, de uma queda certa, infelizes que já se inclinavam para a enoitada região da qual provínhamos. Tudo

isso valeu-nos aproveitamento valioso, elucidações de alto valor, exemplificação sedutora, ao passo que reação consoladora nos reanimava, fornecendo-nos esperança!

Ao fim de dois meses, porém, nada mais sendo necessário recebermos do plano material terreno, fora ordenado o regresso da falange à sua Colônia do Astral.

Não foi sem profunda comoção que abraçamos esses ternos e singelos amigos, na última visita ao nosso bucólico aldeamento para as despedidas, e cuja placidez

comunicativa do coração tão sadio vigor emprestara às nossas almas vacilantes e apreensivas. Conquanto seus corpos carnais se mantivessem adormecidos quando iam

ver-nos, era bem certo que os enxergávamos realmente, como homens ou mulheres, sem que chegasse a impressionar-nos a diferença do envoltório.

Hipotecamos-lhes gratidão eterna, apresentamos-lhes protestos de afeição inquebrantável, prometemos-lhes visitas freqüentes tão depressa no-lo permitissem as

circunstâncias, retribuição das gentilezas e provas de consideração com que nos haviam honrado, assim nos víssemos para tanto capacitados. Por sua vez prometeram

continuar interessando-se pelo drama que nos aprisionava, quer orando à Clemência Divina em nosso favor, ou nos transmitindo suas expressões de amizade através das

missivas telepáticas que suas faculdades anímicas principiavam a produzir, promessa que imensamente nos desvaneceu.

Com efeito, após chegarmos ao nosso nevado asilo, freqüentemente víamos suas figuras amigas se destacarem na lucidez dos nossos aparelhos de televisão, envol

tas sempre nas ondas opalinas da prece e dos pensamentos generosos com que encaminhavam a Deus os bons votos que faziam pela melhoria de nossa situação.

Se, passando dois longos meses sobre a crosta terrestre, hóspedes dos serenos céus brasileiros, não nos concederam os guardiães a devida autorização para visitarmos

sítios queridos de nossa Pátria, cujas recordações saudosas umedeciam de pranto as fibras sensíveis de nossas almas, deram-nos, no entanto, a conhecer estes amigos

prestativos e gentis, dóceis e humildes, os discípulos do nobre mestre da Iniciação - Allan Kardec -, a cuja memória, desde então, passamos a render respeitoso preito

de admiração! E pensávamos, enternecidos e sinceramente encantados: - Uma doutrina como essa, capaz de lapidar corações, abrilhantando-os com as cãndidas manifestações

da Bondade, como víamos irradiando em torno dos nossos novos amigos, não pode estar distante das verdades celestes!

Passaram-se dois anos, longos e trabalhosos, durante os quais muito choramos sob o peso de frementes remorsos, analisando diariamente o erro cometido contra

nós mesmos, contra a Natureza e as sábias Leis do Sempiterno, votando-nos à situação amara deixada pelo suicídio! Voltamos algumas vezes a assistir a outras reuniões

nos gabinetes terrestres de experimentações psíquicas, visitando nossos amigos e lhes falando por via mediúnica.

Por esse tempo relacionara-me com um amável aparelho mediúnico, isto é, um médium dotado de peregrinas faculdades, o qual me visitava, e aos demais, freqüentemente,

quer através dos pensamentos e irradiações benévolas que dirigia a nosso favor ou no fervor da oração. Era compatriota meu, o que me atraiu e sensibilizou poderosamente,

forçoso será confessar! Perscrutador, corajoso, impávido, mesmo imprudente, entusiasta insofrido que também era das Ciências Invisíveis, para as quais se inclinava

com férvido encantamento, ia ao extremo de rondar, qual romântico enamorado, as muralhas de nossa Colônia, em corpo astral, durante o repouso noturno ou em expressivos

transes mediúnicos, intentando atrair-nos a fim de pôr-se em comunicação direta conosco, o que preocupava soberanamente nossos instrutoreS e a direção da Colônia.

Não lhe permitiam a entrada por assaz perigoso para ele contacto tão direto com ambiente privativo de réprobos, mas ofereciam guarda e assistência para o retorno,

levando em conta a sinceridade das intenções em que se escudava, e uma vez que atravessaria locais precipitosos da Espiritualidade. Tão amável quão intrépido amigo

possuía, é certo, conselheiros e guias, assistência particular, como médium que era. Não obstante possuía também - o livre-arbítrio - a vontade livre para agir como

lhe aprouvesse, uma vez que lhe fora recomendado precatar-se com as disciplinas apropriadas ao exercício das faculdades mediúnicas, as quais compete ao iniciado

observar com o máximo rigor! Ele, porém, arrojava-se imprudentemente, pelo Invisível a dentro, atrevendo-se por sombrias plagas sem esperar convites ou oportunidades

oferecidas por seus maiorais, escudando-se na ardente Fé que lhe inspirava o desejo do Bem. Ora, por uma das vezes que visitamos nossos amigos brasileiros, proporcionaram-nos

os dedicados mentores uma entrevista amistosa com o amoroso compatriota. Inesperadamente visitamo-lo, fomos vistos facilmente por ele, que se rejubilou sinceramente,

enquanto me davam ordens de algo dizer-lhe por via mediúnica, como recompensa à sua grande dedicação! Eis-me comovido, indeciso, perturbado, escrevendo para meus

antigos amigos de Lisboa e do Porto, depois de tantos anos de ausência! Não visitáramos, no entanto, senão o médium, retornando aos postos de concentração da falange

imediatamente.

A despeito, porém, de tudo isso, as disciplinas dos primeiros dias prosseguiam sem alterações: - continuávamos hospitalizados, submetidos a tratamento meticuloso

e exercícios complexos para corrigenda dos vícios mentais, assim como a instruções e prática nos serviços de reeducação. Conhecíamos já a lógica férrea da Reen carnação

- fantasma que apavora qualquer Espírito delinqüente e a um suicida em particular, e que ele reluta em aceitar, intimamente convencido, no entanto, de que é verdade

que se impõe; que procura negar por que a teme, sentindo, todavia, que a cada dia que passa, a cada minuto que se escoa no estágio consolador onde assistem seus

guias desvelados, é por ela atraída como o bloco minúsculo de aço pelo ímã poderoso e irresistível, e a qual porfia em afastar das próprias cogitações, sabendo-a

inevitável de seu destino como a morte o é dos destinos humanos! Entretanto, não a experimentáramos ainda pessoalmente, vasculhando os arquivos reveladores da subconsciência

a fim de contemplarmos nosso ser na plenitude da inferioridade moral que lhe era própria. Nossa qualidade dê suicidas, cujas vibrações excitadas nos torturavam a

mente com repercussões e impressões excessivamente dolorosas, retardava a consecução desse progresso que se verifica facilmente nas entidades normais ou evolvidas.

A esse tempo haviam-se estreitado poderosamente as nossas relações de amizade com o pessoal dos serviços hospitalares, e particularmente cada grupo com os seus

guias responsáveis mais diretos, isto é, médicos, enfermeiros, vigilantes, instrutores e psiquistas.

Ora, o assistente que mais assiduamente nos seguia era o jovem médico espanhol Roberto de Canalejas, cujas peregrinas qualidades intelectuais e morais observávamos

diariamente. Ele e seu pai Carlos de Canalejas, pequeno fidalgo espanhol, alma de apóstolo, coração angelical, e mais Joel Steel, mereciam, do nosso pavilhão em

geral e de nossa enfermaria em particular, as mais efusivas demonstrações de amizade e respeito. Roberto, porém, não era entidade muito evolutida, conquanto fosse

avantajado o cabedal de prendas morais por ele dura-mente adquirido através de existências planetárias. Tratava-se de Espírito em marcha franca no carreiro áspero

do progresso, e viera para o estágio de Além-túmulo não havia sequer um século, após encarnação reparadora muito acerba, na qual a dor de brutal traição conjugal

despedaçara-lhe o coração e a felicidade que julgara fruir. Tivera Roberto nada menos do que o lar destroçado pelo perjúrio da esposa a quem amara com todo o devotamento

possível a um coração de esposo; vira morrer a filha querida, primogênita dessa união que tudo fizera supor auspiciosa e duradoura, aos sete anos de idade, vítima

da nostalgia originada pela ausência materna, agravada com a tuberculose herdada dele próprio, seu pai, que, por sua vez, a adquirira durante abnegadas pesquisas

em enfermos portadores do terrível mal, pois, como médico, dedicara-se a humanitários estudos em torno do até hoje insolúvel problema! Sofrera humilhações penosas

e mil situações difíceis, por causa do casamento desigual que fizera, pois o destino levara-o a apaixonar-se irremediavelmente pela encantadora Leila, filha do Conde

de Guzman, o nosso muito estremecido amigo da Vigilância! Correspondido com veemência pela volúvel menina, que então contava apenas quinze primaveras, a ela se unira

pelo matrimônio não obstante as relutâncias de D. Ramiro, cuja penetração psicológica em torno da própria filha não augurara feliz desfecho para o importante acontecimento.

Roberto de Canalejas, em verdade, não passava de pobre e obscuro filho adotivo de um fidalgo generoso que lhe dera nome e posição social, mas cuja fortuna fora disseminada

em meritórias obras de socorro e proteção à infância desvalida.

Nos últimos quartéis do século 17 tivera Roberto uma existência no centro da Europa, tornando-se suicida no ano de 1680. Por essa dolorosa razão, já no

século 20, conforme nos achávamos na Espiritualidade, ainda sofria conseqüência do malsinado ato de então, pois o seu drama conjugal verificado na Espanha, na primeira

metade do século 19, mais não fora do que a experiência a que não se quisera submeter ao findar do século 15II! Esse nobre amigo, cujo aspecto grave e meditativo

tanto nos atraía, aparecia no Além-túmulo tal como existira em vestes carnais durante a última existência, passada na Espanha: - estatura mediana, barba negra e

cerrada elegantemente terminada em ponta, qual usavam os aristocratas da época, e acompanhada de bigodes bem tratados; cabeleira volumosa e farta, tez branquíssima,

quase nívea, olhos negros, grandes, pensativos, lembrando ciganos andaluzes, e mãos longas indicando o exercício continuado do pianista ou o mal terrível que fizera

tombar seu último fardo carnal. Ele próprio revelara-me essa pavorosa síntese de sua vida, durante os serões em que nos acompanhava pelas aléias mortas do parque

do Hospital. Fizera-o, porém, no intuito altruístico de elucidação, concitando-nos ao valor para enfrentar o futuro que áspero nos aguardava, porqüanto ao suicida

cumpre reparar a fraqueza, de que deu provas, curando-se do desânimo que o ata à inferioridade, com testemunhos decisivos de fortaleza e resoluções salvadoras.

Ou fosse porque ele conhecera e amara Portugal, tendo ali vivido os últimos meses de sua vida, recebendo como derradeiro pouso para a sua armadura humana a argila

portuguesa; fosse porque, além de médico, era também artista de elevado mérito, porqüanto cultivava as belas-letras e a música, enquanto a verdade era que nosso

grupo se compunha de intelectuais portugueses orgulhosos de sua heróica Pátria, o certo foi que afetuosa simpatia a ele nos enlaçou, fundindo-se logo em imorredouro

afeto fraternal.

Belarmino de Queiroz e Sousa, o poliglota filósofo que, a esse tempo, só de longe em longe recordava o antigo monóculo, era dos que mais vivaménte se empolgavam

com a nova amizade, pois no amigo pretendera descobrir de algum modo um similar. Confessara de Canalejas que tivera a desdita de professar doutrinas materialistas

quando encarnado, renegando a idéia do Ser Supremo e repelindo a luz dos sentimentos cristãos pelo domínio exclusivo da Ciência, fato que o desamparara grandemente

durante os contínuos dissabores da existência, agravando, mais tarde, a própria situação moral, quando a adversidade lhe desferira o supremo golpe no lar doméstico.

Continuadamente entretinham longas dissertações em torno dos tão palpitantes temas materialistas à luz da ciência psíquica, respondendo Roberto com lógica irretorquível

aos argumentos vivos de Belarmino, que mal iniciara a reeducação no campo espiritual, pois trazia aquele, sobre o interlocutor, a vantagem de conhecimento. muito

mais profundos não somente em Filosofia como ainda em Ciência e Moral... E era de vê-los, amistosa e fraternalmente discutindo sobre os mais belos e profundos assuntos:

- o poliglota desejando reaprender, renovando cabedais nobre as ruínas das antigas convicções; o jovem doutor acendendo para ele fachos de luzes Inéditas com que

norteasse a trajetória do porvir, estribando-se em fatos positivos que tão do agrado eram do interlocutor! Muitas vezes nós outros, os ouvintes, sorríamos à socapa,

por observarmos a nulidade do pobre Belarmino, que se considerara iluminado na Terra, em presença de um simples assistente hospitalar de uma Colônia de suicidas,

humilde trabalhador que nem mesmo méritos sensíveis possuia na Espiritualidade!...

Um dia em que demoram um pouco mais a visita aos nossos apartamentos, avisando-nos de que fora informado que receberíamos alta dentro de poucos dias, falei-lhe

eu, não sem certo constrangimento diante da indiscrição de que usava:

"- Meu caro Sr. doutor! Os pequeninos relatos de vossa vida, que tivestes a magnanimidade de confiar-me, calaram fundamente no âmago de meu ser, comovendo-

-me profundamente, e fazendo-me refletir. Fui romancista na Terra e, escrevendo, procurei estampar em minhas humildes produções determinado caráter moral. Deixei

na Terra obra vultosa se não em qualidade - pois hoje reconheço que bem pequenos foram os meus cabedais intelectuais - pelo menos em quantidade!... Confesso, porém,

que raramente inventava os meus romances! Eles foram antes filhos do conúbio da observação com os retoques sentimentais de que várias vezes usei para enfeitar a

dureza da realidade e assim mais rapidamente cativar editores e leitores, dos quais dependia a minha bolsa quase sempre vazia... o que não deve ser qualidade muito

recomendável para um escritor terreno!

Quem sabe, Sr. doutor, vossa lhaneza forneceria ainda alguns informes acerca do próprio drama pessoal, que tanto me impressionou, para que algum dia possa

eu voltar a visitar a Terra e, através de um aparelho mediúnico, narrar aos homens algo Interessante Intercalado com as luminosas doutrinas que começo a aprender?...

Quem sabe poderia eu transmitir aos antigos leitores de minhas obras terrenas as radiosas novidades que aqui defrontei, romanceando-as com aspectos reais da vida

íntima, tão humana e tão instrutiva, de Espíritos que aqui eu conheça, e que foram homens e também sofreram, e também amaram, e também lutaram e morreram, como toda

a Humanidade?... E isto porque tenho ouvido asseverar, os nossos mestres locais, ser muito meritório para um Espírito, desejoso de progredir, o romper as barreiras

do támulo a fim de relatar aos homens as impressões colhidas na Espiritualidade, a moral que a todos os recém-vindos da Terra aqui surpreende!. .

Quedou-se ele pensativo, enquanto rude melancolia lhe ensombrava o semblante que eu me habituara a ver sereno, o que me trouxe arrependimento do que havia proferido.

Passados alguns instantes, porém, respondeu, como ressuscitando do passado por mim timidamente lembrado:

"- Sim! É meritório para um Espírito esse labor, justamente por se tratar de um dos mais difíceis gêneros que é dado a algum de nós realizar! Com maior facilidade

penetraremos um antro de obsessores, nas camadas bárbaras da esfera terrestre, a fim de retê-los, cassando-lhes a liberdade, ou um covil de magias com seu arsenal

de intrujices, onde atrocidades se praticam com desencarnados e encarnados, a fim de anularmos tentativas criminosas; com mais presteza convenceremos um endurecido

no mal à volta a uma reencarnação expiatória do que conseguiremos vencer o cerrado espinheiro que representa a mente de um médium a fim de conseguirmos transmitir

centelhas das claridades que aqui nos deslumbram!

De inicio deverei esclarecer que não existem muitos médiuns dispostos a tão melindroso gênero de tarefa!... e quando se nos depara um ou outro dotado com as necessárias

aptidões, além de os reconhecermos deseducados da moral cristã, elemento indispensável ao fim idealizado pelos grandes instrutores que estimulam o gênero de experiência,

entrincheiram-se eles de tal forma no comodismo, indispostos para as disciplinas que a seu próprio benefício deles exigimos, assim como na dúvida e na vaidade de

se presumirem iluminados, predestinados, indispensáveis ao movimento de propaganda do Invisível, que anulam completamente nosso entusiasmo, como se suas mentes nos

atingissem com duchas geladas! Daí o preferirmos as almas simples, os humildes e pequeninos, os quais, por sua vez, por não disporem senão de bem pequenos cabedais

intelectuais, exigem de nossa parte perseverança, dedicação e trabalhos exaustivos para algo revelarmos aos homens através de suas faculdades!

Minha vida, prezado amigo, ou antes, minhas vidas, através das migraçôes terrenas em que tenho experimentado as lides do progresso, relatadas que fossem, com

efeito, aos seus leitores, oferecer-lhes-iam lições que não seriam de rejeitar! A vida de qualquer homem ou de qualquer Espírito é sempre fértil de sequências elucidadoras,

romance instrutivo que arrebata, porque reflete a luta da Humanidade contra si própria, através de longa jornada em busca do porto florido e áureo da redenção! Poderá

colher sua observação aqui mesmo, pois na estreiteza deste asilo há bons temas educativos para transmitir aos humanos por via mediúnica. Mas estou capacitado a adverti-lo

de que as mais decepcionantes dificuldades avolumar-se-ão, enfrentando os seus louváveis desejos, ainda porque todos os entraves surgem diante de um suicida, pois

colocou-se ele em situação anormal, que afetou até a mais insignificante fibra da sua organização psíquica, assim como o seu destino! No entanto, as suas nobres

intenções, sua perseverança, o amor ao trabalho, o anseio pelo bem e o belo poderão operar milagres e estou certo de que seus futuros mestres e guias educadores

orientá-lo-ão a respeito.

Quanto aos informes solicitados teria satisfação em fornecer-lhos, meu amigo! Reconheço-o sinceramente intencionado e o Espírito, uma vez despido dos preconceitos

terrenos, perde o pejo, que o homem conserva, de revelar aos amigos os infortúnios e particularidades que o confrangem. Infelizmente, porém, não sinto em mim o desprendimento

necessário para reviver o drama terrível que ainda me conturba! Medir o passado cujas cinzas ainda se encontram palpitantes, aquecidas pelo fogo interior de um amor

inesquecível, que amortalha de saudades e pesares insopitáveis todos os meus passos na Espiritualidade; extrair das sombras da subconsciência a imagem idolatrada

da perjura, a quem não pude jamais desprezar, tentando conceder-me o consolo supremo do esquecimento; vê-la ressurgir dos refolhos de minhas lembranças tal como

existiu ainda ontem, formosa e sedutora, enlaçada ao meu destino pelo matrimônio, e reviver as horas felizes do convívio conjugal, quando as imaginava imorredouras,

sem perceber que eram enganosas, fictícias, tão só oriundas da minha sinceridade, da fé que me inspirava, da minha grande boa-vontade, será padecer pela segunda

vez a insuportável aflição de reconhecê-la adúltera quando todo o meu ser anseia pela ver redimida da infâmia que a arrojou ao bâratro repugnante da mais torpe situação

que a um Espírito feminino poderá macular: - o adultério! Não posso, Camilo, não posso! Amo Leila e sinto que tal sentimento desdobrar-se-á comigo através dos evos,

porque me há acompanhado ele pelo destino em fora desde muitos séculos... desde quando a voz maviosa de Paulo de Tarso ecoava vitoriosa e pura, anunciando a Boa-Nova

sob as frondes pujantes das florestas da velha Ibéria!... E não descansarei enquanto não a tiver novamente a meu lado, exculpada da afronta dirigida a mim, a si

mesma, à Lei de Deus, a nossos filhos e à sua qualidade de esposa e mãe, pelas reparações cruciantes a que se submeteu, levada pelos remorsos!"

Fez uma pausa, durante a qual deixou transparecer nos olhos a imensa ternura que vivia em seu coração e continuou em tonalidades humildes, que me levaram a duplamente

admirar o adamantino caráter que havia três anos eu observava diariamente:

Pudesse eu, Camilo, e evitaria as dores da expiação para minha pobre Leila, chamando-a para o meu convívio carinhoso e apagando de nosso entendimento, como outrora

o tentei, as nódoas do delito com o ósculo do perdão que de há muito voluntária e de boamente lhe concedi! Contudo, ela mesma nada quer aceitar de mim antes de ressarcir

o próprio débito ao embate das tormentas de uma reencarnação amortalhada nas lágrimas de rijos sofrimentos, a fim de poder considerar-se digna do meu amor e do perdão

de Deus! Sua consciência entenebrecida pelo erro foi o austero juiz que a julgou e condenou, pois, com a alma chagada pelas dentadas do remorso, apavora-se tanto

com o próprio passado e tanto o execra que nada, nada será capaz de mitigar as ardências que a torturam senão a dor irremediável no acrifício da expiação terrena!

Bem quisera eu aproximar-me dela, refrigerar minhas audades falando-lhe pessoalmente, em vigília ou durante o sono, consolando-a, incitando-a à luta pela vitória

com os meus protestos de perene amizade! No entanto, não posso nem mesmo aproximar-me porque, se me percebe, apavora-se e procura fugir, envergonhada com a mácula

de que a acusa a consciência! Quanto a mim, poderei vê-la ou acompanhá-la em qualquer momento que o deseje, porém, cautelosamente, a fim de me não dar a perceber,

para evitar desorientá-la..."

"- Convenço-me cada vez mais, Sr. doutor, de quanto os meus leitores estimariam tornasse eu para narrar-lhes os comoventes episódios que percebo nas entrelinhas

de vossas exposições..."

"- Pedirei ao pai de Leila que posteriormente leve ao conhecimento do meu caro escritor lusitano o drama que tanto o atrai... Quem sabe?!... O trabalho é consagrado

como elemento primordial do progresso e a intenção nobre e generosa que mspire o trabalhador sincero sempre obterá o beneplácito divino para as suas realizações...

D. Ramiro de Guzman encontra-se à altura de fazê-lo. Trata-se de um Espírito forte, experimentado nas lutas do infortúnio, e que sabe dominar as emoções, possuindo

em grau adiantado a disciplina mental. Poderá e quererá fazê-lo, pois comprometeu-se comigo mesmo a pugnar pela reeducação moral da juventude feminina na Terra,

em memória de sua infeliz filha tão amada por seu coração de pai, mas que tantos e tão acerbos desgostos lhe causou... mau grado a educação aprimorada que se esforçou

por fornecer-lhe. Falar-lhe-ei a respeito."

Compreendendo-o disposto a retirar-se, observei ainda, fiel à impertinência da antiga curiosidade do romancista, que em toda a parte fareja substâncias sentimentais

com que engrandecer seus temas:

"- E... perdoai-me, boníssimo doutor... Vossa esposa... a formosa Leila... onde se encontra presentemente?..."

Levantou-se calmo, firmou o pensamento gravemente, como exercitando mensagem telepática a seus maiorais, e em seguida aproximou-se do esplêndido receptor de imagens,

sintonizou-o cuidadosamente para a crosta terrestre e esperou, murmurando como que para si mesmo:

"- Deve estar entardecendo no hemisfério sul ocidental... Não haverá indiscrição em procurar vê-la neste momento..."

Com efeito! A pouco e pouco a configuração de uma criança destacava-se da penumbra de um aposento de família paupérrima. Tudo indicava tratar-se de um lar brasileiro

dos mais modestos, conquanto não miserável. Uma menina aparentando cinco anos de idade, cujas feições concentradas e tristes indicavam a violência das tempestades

que lhe tumultuavam o Espírito, entretinha-se com seus modestos brinquedos de criança pobre, parecendo mentalmente preocupada com reminiscências que se embaralhavam

aos fatos presentes, pois falava às bonecas como se conversasse com personagens cujas imagens se desenhavam quais contornos a "crayon" em suas vibrações mentais.

Roberto contemplou-a triste-mente e, voltando-se para mim, que me apossaVa do ensinamento deslumbrado ante a majestade do drama cujos primórdios me davam a conhecer:

"- Aí está! Reencarnada na Terra de Santa Cruz; onde palmilhará seu doloroso calvário de expiações... Vive agora fora dos ambientes que tanto amava!... desamparada

pela ausência daqueles que tão devotadamen te a estremeciam, mas cujos coraçôes espezinhou com a mais cruel ingratidão! Leila desapareceu para sempre na voragem

do pretérito!... Seu nome agora é outro: -chamam-lhe Maria... o nome venerável de nossa augusta Guardiã... Para o mundo terrestre será linda e graciosa criança,

inocente e cândida como os anjos do Céu! Perante a consciência dela própria, porém, e o julgamento da Lei Sacrossanta que infringiu, é grande infratora que cumprirá

merecida pena, é a adúltera, a perjura, a infiel, blasfema e suicida, pois Leila foi também suicida, que renegou pais, esposo, filhos, a Família, a Honra, o Dever,

pelas funestas atrações das paixões inferiores.. ."

Duas lágrimas oscilaram no veludo de suas belas pestanas de andaluz, enquanto continuou comovidamente:

"- Oh, Camilo! Glória a Deus! Hosanas à Sua Paternal Bondade, que encobre dos homens encarnados o cortejo sinistro de seus erros pretéritos!... Que seria da sociedade

humana se a cada criatura fosse facultada a recordação de suas passadas existências ..... se todos os homens conhecessem o pretérito espiritual uns dos outros?..

De repente, brado indefinível, misto de pavor, de emoçâo ou vergonha, que tocaria as raias da loucura, abalou o silêncio do humilde lar brasileiro, repercutindo

na placidez da nossa enfermaria de além-túmulo: - a menina acabara de pressentir Roberto, vira-o como refletido nas ondas telepáticas, pois os remorsos segredavam

à sua consciência ser ele a grande vitima dos seus desatinos, e, em prantos, procurara refúgio nos braços maternos, sem que ninguém compreendesse a razão da súbita

crise...

Deteve-se o assistente de Teócrito, isolando apressadamente o impressionante aparelho. "- É assim sempre - exclamou tristemente não tem coragem para enfrentar-me...

No entanto, pensa em mim e deseja voltar ao meu convívio.

Despediu-se e retirou-se meditativo. Nunca mais tornei a falar-lhe no assunto. Todavia, nessa mesma tarde iniciei os apontamentos para a preparação destas humildes

páginas...

Quem sabia lá o que a misericórdia do Altíssimo reservaria para conceder-me?... Talvez me não fosse de todo impossível escrever como outrora... Não possuía eu

agora alguns amigos terrenos capazes de me ouvirem e compreenderem?...

Sim! Eu melhorara muitíssimo, graças ao eficiente tratamento usado no, Hospital Maria de Nazaré... Afirmava-o a Esperança radiosa que fortalecia o meu Espírito!

SEGUNDA PARTE -

OS DEPARTAMENTOS

1

A Torre de Vigia

Que vos parece? Se tiver alguém cem ovelhas, e se se desgarrar uma delas, porventura não deixa as noventa e nove nos montes, e não vai a buscar aquela que

se extraviou? Assim, não é da vontade de vosso Pai, que está nos céus, que pereça um destes pequeninos.

JESUS CRISTO - O Novo Testamento. (11)

Irmão Teócrito enviara-nos mensageiro com honroso convite para uma assembléia na sala de audição do Hospital.

Em ali chegando percebemos que reduzido número de hospitalizados fora distinguido com idêntica solicitação, pois apenas integravam a assistência aqueles dentre

os componentes de nossa falange que receberiam alta do tratamento a que se vinham submetendo.

Não se fez esperar o nobre diretor do Departamento Hospitalar. Acompanhado de Romeu e de Alceste, tomou assento na cátedra de honra, ladeado por aqueles, enquanto

o corpo clínico, que nos assistira durante a internação, aparecia em segundo plano, em tribuna que lhe era destinada.

(11) Mateus, capítulo 18, versículos 12 e 14.

Servindo-se da costumeira dignidade, e mantendo as expressões da mais alta polidez e cordura nunca desmentidas, o preclaro iniciado dirigiu-se aos assistentes

mais ou menos nestes termos:

Bem haja Deus, Criador de Todas as Coisas, no mais alto dos Céus, meus amados irmãos e amigos, testemunhando esta reunião para a qual imploramos Suas vistas de

Pai e Senhor!

Sincera satisfação faz que hoje nossas almas se dilatem em hosanas de agradecimentos ao Mestre Magnânimo, levando-as ao júbilo do triunfo que nos é dado contemplar:

- vossa conversão ao estado de submissão à Paternidade Divina e, portanto, à aceitação do Espírito como originário da centelha emitida pela vontade do Todo-Poderoso

e destinado a gloriosa evolução através da Eternidade! Continuais, não obstante, fracos, vacilantes e pequeninos. Mas um carreiro infindável de pelejas reabilitadoras

nem por isso deixará de se descortinar diante de vós através dos milênios futuros, convidando-vos ao perseverante labor do Progresso para a conquista da redenção

definitiva no seio amoroso do Cristo de Deus.

Certos de que um Pai misericordioso, justiceiro, amantíssimo, vela dedicadamente por sua prole, pronto a estender mão protetora a fim de exalçá-la às imarcescíveis

alegrias do Seu Reino - quem dentre vós não se sentirá encorajado, bastante animado para o prélio compensador, certo da vitória final?... Quem deixará de arregimentar

toda a boa-vontade de que poderá dispor a fim de todos os dias procurar elevar-se mais um grau na longa e difícil, mas não impossível, ascensão, cujo ápice é a comunhão

com o Mestre Bem-Amado, a unidade gloriosa do Seu Amor?...

Reunimos-vos a fim de levar ao vosso conhecimento que se encerra hoje o estágio que era permitido fazerdes neste Hospital, uma vez que as condições orgânicas

do vosso físico-astral, obtendo sensíveis melhoras, mais nada poderiam pretender de nossa hospitalidade. Todavia, não só ainda não vos achais curados como até permaneceiS

enfermos... e enfermos continuareis por muito tempo se a vontade disciplinada e forte não se apresentar em vosso auxílio para o restabelecimento completo! Não desconhecemos

os indefiníveis males, as pesadas angústias e indisposições aflitivas que em vosso íntimo estão a clamar por socorro, sem que compreendais por que vos libertamos

do estágio hospitalar quando de tantos e tantos cuidados ainda vos sentis carecedores! É que, meus caros irmãos - entrais agora em fase nova do tratamento que convém

à vossa recuperação, tratamento esse de ordem exclusivamente moral e mental, pois a verdade é que não precisaríeis de um hospital, tampouco de cirurgiões e enfermeiros

a fim de conseguirdes a recuperação do plano espiritual, se fôsseis individualidades dotadas de qualidades morais elevadas, de desenvolvimento mental estribado nas

virtudes do coração e no cumprimento do dever. Então, vossas vontades, conjugadas às vibrações superiores com que deverieis harmonizar as vossas próprias vibrações,

descerrariam os véus do conhecimento espiritual para o qual vossas mentes se achariam habilitadas, graças às afinidades que lhes seriam espontâneas... e ingressaríeis

natural e francamente no Mundo Invisível como se o fizésseis em vosso próprio lar doméstico - pátria de origem que é, o Invisível, de todas as criaturas! Infelizmente,

porém, bem sabeis que vossa vida terrena, assim como as ações que praticantes não se padronizaram com as preclaras atitudes necessárias à venturosa admissão de um

Espírito nas sociedades do mundo astral. Descurastes da nobreza dos princípios, da elevação dos fins; deseducastes o caráter ao embate febricitante das paixões deprimentes,

que na Terra intoxicam a mente; escravizastes o coração aos preconceitos maldosos; apoucastes a própria alma aos insidiosos embalos do orgulho desorientador e rematastes

a série de imponderações, nas quais vos comprazíeis, com o atentado inominável contra a Lei dAquele que é Único Senhor de toda a Criação, e que, por isso mesmo,

também é Único Soberanamente Poderoso para dispor da Vida de Suas criaturas!

Em tão viciadas condições, jungidos a prejuízos calamitosos, nada lograríeis assimilar na Espiritualidade, não fora o recurso das formas concretizadas, dos empreendimentos

a que vossas mentes estavam habituadas. Convinha tolerar vossa ignorância e fraqueza mental a benefício de vosso próprio progresso! Convinha aplicar a caridade,

santa bastante para as mais importantes consecuções em curto espaço de tempo! Infinitamente misericordiosa, a Providência Suprema faculta aos seus executores liberdade

para servir ao Bem, dispondo métodos suaves, de preferência prudentes e persuasivos. Daí o darmos a todos vós, em meio da calamidade a que vos entregastes, o tratamento

que melhor assentaria ao vosso estado mental, por mais rápido e eficiente no auxílio urgente de que carecieis! quando bastaria, em verdade, a reação mental de vós

mesmos para conjurar o mal que vos afligia - se estivésseis em estado de tentá-la!

Mercê da Sábia Providência, hoje aqui nos reunimos para estas singelas instruções a que já podeis emprestar o valor devido!

Assim é, portanto, que o que nos competia realizar a vosso benefício foi integralmente realizado, isto é, levar hábil e pacientemente vosso estado vibratório

às condições de suportardes programação nova em vossa trajetória de Espíritos delinquentes que, por isso mesmo, muito terão a realizar. Uma vez recuperados ao estado

espiritual, devereis trabalhar a prol da reabilitação. Vossa permanência neste Departamento foi como o curso preparatório para a admissão em planos onde será preciso

demonstreis todo o valor e boa-vontade de que Sois capazes!

Uma nova reencarnação será inevitável no vosso caso. Devereis repetir a experiência terrena que malograstes com o suicídio, negando-vos ao cumprimento do sagrado

dever de viver o aprendizado da Dor, a benefício de vós mesmos, de vosso progresso, vossa felicidade futura! Não obstante, sois livres de a preferirdes agora ou

mais tarde, depois que, mais bem equipados com o cabedal moral que adquirirdes entre nós, vos considerardes aptos para, em uma só etapa terrena, solver os compromissos

expiatórios mais urgentes - o que será de muito proveito para vossos Espíritos e muito meritório!

Compreendestes, certamente, que isso quer dizer que, se reencarnardes já, solvereis apenas uma pequena parcela da divida que adquiristes; se mais tarde, solvê-la-eis

toda, porque estareis em condições favoráveis para a resistência aos embates que tão vultoso expurgo exigiria.

Seria, sim, aconselhável retardardes ainda um pouco a repetição do compromisso terreno para a reparação. Enquanto isso, poderíeis, caso vos sentísseis verdadeiramente

inclinados aos estudos da Ciência do Invisível, fazer um curso de iniciação entre nós, o que - vo-lo afiançamos - vos habilitaria sobremodo para a vitória, suavizando

ainda as agruras e percalços inerentes às experiências reabilitadoras, dolorosas como são elas, como sabeis, pois, o que vos ofereceríamos, com tais ensinos, seria

justamente a Ciência da Vida, sob os auspícios do Grande Educador Jesus de Nazaré, cujas doutrinas a Humanidade insiste em rejeitar, desconhecendo que, rejeitando-as,

é a própria felicidade, é a glória imarcescível para o seu destino infindo que afasta para um futuro remoto!

Essa Ciência, poderíeis apreendê-la na Terra mesma, porque lá existem vários elementos, sólidos e verazes, capazes de iluminar cérebros e corações, impulsionando-os

para o caminho da Verdade. Na grandiosa história da Humanidade rebrilham vultos eminentes, assinalados com as veras credenciais das virtudes e da sabedoria que lhes

conferiram o título de instrutores capazes de orientar os homens para os seus magníficos destinos de filhos da Divindade Suprema. Desceram eles das altas esferas

espirituais, reencarnaram entre seus irmãos, os homens, diminuíram-se no sacrifício do corpo carnal, a fim de servirem aos soberanos desígnios do Criador através

do Amor às criaturas menos evolvidas, às quais procuram educar e elevar, concedendo às operosidades em torno de tão sublime ideal o melhor dos esforços e da boa-vontade

que alcandoram suas almas de missionários e instrutores! Em Jesus de Nazaré encontrareis o mais eminente desses respeitáveis vultos que perlustraram as sombrias

plagas terrenas, e sob cuja orientação agiram os demais, visto que até hoje nenhuma entidade que habitou a Terra teve capacidade para atingir, com o pensamento remontado

às origens do planeta, a época exata em que o Senhor Amado recebeu das mãos do Todo- Poderoso a Terra e suas humanidades para levantá-las do abismo inicial, educá-las

e glorificá-las nas irradiações da Luz Imortal!

Mas... há milênios que vindes reencarnando na Terra e até agora, de tão preciosos tesouros nela depositados pelas inestimáveis bondades do Céu, jamais cogitastes

de vos servir... por eles haveis passado indiferentemente, sem lhes examinar sequer o valor devido, sendo de temer que, se partirdes daqui sem as habilitações que

lá, na Terra, também poderíeis colher, continueis debatendo-vos no mesmo círculo vicioso em que vindes permanecendo... pois sois fracos, não sabeis resistir às tentações

do próprio orgulho e necessitais de forças para recomeçar a caminhada...

Dentre tantos que convosco aqui ingressaram há três anos, muitos continuam em condições de absolutamente nada poderem, por enquanto, tentar. Alguns, presos às

recordações das paixões absorventes, endurecidos no erro das descrenças e do desânimo, completamente incapacitados moral e mentalmente para os serviços do progresso

normal, requererão ainda a tolerância e a caridade do amor santo de Maria, que tanto se compadece dos desgraçados, como Mãe Modelar que é. Outros deverão, ao contrário,

reencarnar imediatamente, a fim de corrigirem distúrbios gravíssimos que em seus corpos astrais permanecem como resultantes da violência do choque recebido com a

morte voluntária. Sem que reencarnem para corrigir tais distúrbios, que lhes obscurecem até' a razão, nada poderão tentar, nem mesmo a repetição do drama que os

levou ao ato execrável, drama que fatalmente será vivido novamente, pois que era um resgate de crimes praticados em existências pretéritas, quando não conseqüências

de desvios atuais pelos quais se tornaram responsáveis perante a Grande Lei, e aos quais se quiseram furtar através do suicídio, aos quais também terão de cobrir,

porque assim o exigirá a consciência deles próprios, desarmonizada e aviltada perante si mesma! São, estes, aqueles mesmos cujo gênero de suicídio, muito violento,

exorbitou da possibilidade de alívio através da terapêutica psíquica em vós outros aplicada, e os quais conheceis bastante para que se torne necessário enunciá-los.

O estágio na matéria, longo, proveitoso, será, como se percebe, a terapêutica urgente e de excelência comprovada, visto que corrigirá a desordem vibratória por arrefecer

a intensidade e ardência da mesma, tornando o Espírito, após tão alucinante parêntesis, à lucidez propícia a nova etapa, preocupando-se, só então, com as experiências

de reabilitação, pois já se encontrará em estado de fazê-lo, com tendências para a vitória!

Como vedes, meus caros amigos, um século, dois séculos... talvez ainda mais!... e o suicida estará sorvendo o fel da conseqüência espantosa do seu ato de desrespeito

à lei do Grande Criador de Todas as Coisas!"

Ouvíamos atentamente, curiosos e pávidos ante a perspectiva do futuro, incapazes de precisá-lo, temerosos da gravidade da falta em que incorrêramos, a qual nos

sabia à alma tão ou mais acremente que uma condenação ao patíbulo, penalizados ao compreendermos a necessidade de deixarmos aquele caridoso abrigo a cuja sombra,

se não encontráramos a satisfação por que suspirávamos - linerecedores que éramos dela - no entanto adquiríramos o mais precioso bem a que um Espírito delinqüente

poderá aspirar para lhe servir de promissor farol nas estradas onde se assentará o seu calvário de expiações: - abnegados irmãos, amigos tutelares fiéis aos elevados

princípios cristãos do Amor e da Fraternidade!

Continuou, porém, Teócrito, satisfeito por perceber nossa atitude mental, que solicitava conselho franco:

"- Chegou a oportunidade de visitardes a Terra, como tanto desejais! Forneceremos guardiães e meios seguros de transporte, visto que sois inexperientes e continuais

ligados à Legião, porqüanto não demos por terminado o concurso que devemos emprestar à causa da vossa reabilitação! Uma vez chegados à crosta terrestre, convém reflitais

com a máxima prudência - orando e vigiando -, como aconselharia nosso Divino Modelo, isto é, raciocinando claramente às inspirações do Dever, da Moral, do Bem, e

não vos deixando arrebatar por antigos desejos e seduções, pelas vaidades, pela ociosidade tão comum nas baixas regiões do planeta.

Advertimos-vos de que vos dareis mal se preferirdes permanecer úa Terra olvidando vossos amigos desta Colônia, o aconchego fraternal e cristão que aqui desfrutais.

Porfiai por não perderdes o desejo de voltar com os dedicados acompanhantes que vos servirão. Se voltardes a este lar, que temporariamente será o único verdadeiro

a que pertenceis, entregando-vos de boamente àdireção maternal de nossa Augusta Protetora, ser-vos-a facultado ingresso em outro Departamento deste Instituto, melhor

dotado do que a Vigilância e o Hospital, e para o qual subireis, não para desfrutar alegrias e venturas a que não tendes direito ainda, porqüanto não as conquistastes,

mas em busca de habilitações para os prélios do progresso que cumpre atinjais!

Antes de demandardes a Terra sois convidados a uma visita de instrução aos Departamentos que compõem os primeiros planos do nosso Instituto. Nada perdereis com

os esclarecimentos que poderão ser fornecidos pela Vigilância, assim também as dependências do Departamento Hospitalar, isto é, o Isolamento, o Manicômio, e ainda

o Departamento de Reencarnação e suas interessantes seções, que muito de perto vos interessarão... pois a verdade é que não deveis rever a Pátria terrena sem os

conhecimentos que nossos Departamentos fornecerão: - estareis mais fortes para resistir às lembranças das antigas seduções... Convém, todavia, não conserveis ilusões

quanto ao que vos aguarda nessa peregrinação pela Terra: - lembrai-vos de Jerônimo!... Há muitos anos já que deixastes os despojos carnais na lama do sepulcro...

Muitos de vós já foram olvidados por aqueles a quem magoaram com o suicídio... se não completamente, pelo menos o bastante para se terem desinteressado pela sorte

do ingrato que não trepidou feri-los com tão acerbo desgosto: - envolvido nas efervescências da vida material, o homem tudo esquece com facilidade... Não julgueis,

portanto, encontrar alegrias nessa peregrinação! Aliás, a Terra jamais concedeu dádivas compensadoras àquele que, sabendo ser descendente de uma centelha divina,

procura marchar para Deus empolgado pelas alegrias celestes que o espreitam... Sentimo-nos, porém, despreocupados quanto a tais particularidades! Convosco não sucederá

o que surpreendeu Jerônimo: -estais preparados para as possíveis decepções, para os choques inesperados de sucessos que ignorais!

Agora, ide repousar... E que o Mestre Divino vos conceda inspirações..."

Na manhã seguinte, mudamos de residência.

Joel conduziu-nos a um pavilhão anexado ao Hospital, espécie de albergue onde se hospedavam os recém-desligados da grande instituição, engrinaldado de rosas

trepadeiras e todo orlado de ciprestes esguios, recordando paisagens clássicas da velha Índia, tão querida e celebrada pela plêiade de mestres a que nos víamos ligados.

Chamavam-lhe Pavilhão Indiano ou ainda Mansão das Rosas. Todavia, as névoas amortalhavam de nostalgias também a esse recanto plácido, envolvendo-o em seu eterno

sudário branco.

Bem-estar indefinível visitava-nos a alma nessa manhã encantadora. Belarmino, que de ordinário se mantinha sério e pensativo, apresentava-se risonho, comunicativo.

João d'Azevedo confessava-se muito esperançoso e afirmava estar disposto a só realizar o que Irmão Teócrito aconselhasse, para o que pretendia entender-se ainda

com aquele boníssimo diretor. Quanto a mim, sentia-me até feliz, permitindo-me mesmo a veleidade de projetos literários para o futuro, pois tinha para mim que na

próxima visita à Terra conseguiria estrondoso sucesso de além-túmulo, voltando às lides literárias que me foram comuns com o concurso do primeiro instrumento mediúnico

que deparasse. Então, estávamos ainda longe de suspeitar o volume das árdegas lutas que a jornada das reparações exigiria de nossos esforços... e o conforto, o carinhoso

acolhimento recebidos daqueles abnegados servos do Bem, tendo desfeito a clâmide trágica que recobrira de dores os nossos Espíritos, levava-nos a raciocinar que,

afinal, o suicídio não fora tão cruel como quereria parecer...

Mário Sobral era o único que se não iludia, pois falou-nos, presenciando nossa satisfação nas primeiras horas que passamos no Pavilhão Indiano:

"- Que Deus assim vos conserve para sempre, amigos!... Minha consciência não me permite tanto!... Acusa-me intransigentemente, não permitindo tréguas ao meu desgraçado

coração! O silêncio que nossos amigos guardam, acerca do crime por mim praticado, apavora-me mais do que se me acusassem diariamente, prenunciando-me represálias!...

Não é possível que meu procedimento com minha esposa e meus filhos, com a desgraçada Eulina, com meus pobres país, passe despercebido à Lei cujos umbrais começam

a se descerrar para meu raciocinio... Se sou criminoso para comigo mesmo, suicidando-me, sê-lo-ei também pelo mal praticado em outrem... Sabes, Camilo?... Há já

algum tempo venho sentindo as mãos entorpecidas... aéreas... vazias... como se houvessem sido decepadas... Às vezes procuro-as, confuso, pois deixo de senti-las

comigo... e, de repente, enquanto a mim mesmo indago do que poderia motivar tal estranheza, visão excruciante conturba-me o cérebro: - vejo Eulina abatida sobre

o canapé, estorcendo-se sob o fragor das bofetadas com que lhe torturei o rosto... a estertorar entre minhas mãos assassinas... que lá estão, separadas de meus punhos,

estrangulando-a!... Oh, meu Deus! Que representará semelhante anormalidade?!... Que mais confusão mental aparecerá para castigar-me?!... Por quem és, Camilo amigo,

dá-me tua opinião valiosa..."

"- Devem ser os pesares que te alucinam a mente, meu caro amigo... Os remorsos que te inquietam a consciência... pois, afinal de contas, não deixaste de amar

aquela pobre mulher... Por que não te aconselhas com Irmão Teócrito?..."

Já o fiz, Camilo, já o fiz..

E então?... que te disse ele?..

"- Aconselhou-me a confiar na Providência Divina, que jamais abandona qualquer criatura que lhe suplique assistência; a resignar-me com o irremediável da

situação por mim mesmo criada e a revigorar-me na Fé para corrigi-la... Incitou-me à oração constante, ao esforço para estabelecer corrente magnética simpática,

em súplicas a Maria para que me socorra, esclareça, console, preparando-me intimamente para o futuro... pois não existe outro recurso a meu alcance a não ser esse,

no momento..."

Pois faze-o!... Se ele a isso te aconselhou éque somente daí virá o de que necessitas..

Tenho feito, Camilo, tenho feito!... - insistiu, excitado e sofredor. - Mas, quanto mais o tento e ao fervor consagro-me, mais me certifico ser essa visão um prenúncio

do futuro: - ao reencarnar, como afirmam Alceste e Romeu que acontecerá, para expiar meu duplo crime, irei mutilado, sem as mãos... porque elas estão ocupadas noutra

parte, a serviço do crime... elas se desonraram em minha companhia, estrangulando uma pobre mulher indefesa... Já nem sequer as tenho, Camilo!... Não as sinto, não

as vejo... foram sepultadas com o corpo de Eulina... e a fim de reavê-las, honradas e redimidas da mácula infamante, precisarei padecer o martírio de uma existência

terrena destituído delas, a fim de aprender no sacrifício, nas torturas inimagináveis daí conseqüentes, na vergonha da anormalidade humilhante, que as mãos são patrimônio

sacrossanto do aparelho carnal, a advertir-nos de que somente deveremos empregá-las a serviço do Bem e da Justiça, e não do crime!... Eulina era duplamente indefesa:

- por ser mulher, e, portanto, frágil, e desamparada da família e da sociedade, pois era apenas uma desgraçada meretriz! Mas... antes de ser assim, tão infeliz e

desgraçada, era, acima de tudo, criatura de Deus, filha de um Ser Supremo, Todo-Poderoso e Justiceiro... como eu também o sou, como tu, Camilo amigo, e toda a Humanidade!

Esse Pai, que a todos os filhos ama indistintamente, agora me pede contas da vida que eu tirei, bem supremo de que só Ele sabe e pode dispor, visto que só Ele sabe

e pode conceder! O direito de filha do Criador Supremo ninguém poderia arrebatar a Eulina!... a ela, coitada, que nenhum outro direito possuía naquele mundo de abjeções,

nem mesmo o de viver, pois que eu não quis que ela continuasse a viver, e por isso matei-a! Eu matei Eulina!... E, agora, ouço repercutir, nos recôncavos mais afastados

do meu Espírito impregnado de remorsos, a voz austera e comovente da Consciência - que é 'como a voz do próprio Deus repercutindo em nosso ser imortal: "- Caim,

Caim!... Que fizeste de teu irmão?... Oh, Camilo, Camilo, meu amigo!... Quando estrangulei Eulina, eu me esqueci de que tanbém ela era filha de Deus! que também

possuía sagrados direitos concedidos por esse Pai Misericordioso e Justiceiro! E agora...

As lágrimas correram em borbotões interceptando-lhe a palavra, e nuvem comovedora recobriu de tristeza o ar sereno da Mansão das Rosas. Aliás, a satisfação que

visitara nosso íntimo naquela manhã originara-se tão-somente do fato de havermos causado alegrias a Teócrito com o progresso conquistado durante aqueles três anos

de internação...

Carlos e Roberto de Canalejas prontificaram-se a acompanhar-nos na visita de instrução sugerida pelo experiente diretor do Departamento Hospitalar. Opináramos

por iniciá-la justamente da Torre de Vigia que, qual fortaleza invencível em plena região bárbara do Invisível, defendia um posto avançado de vigilância contra investidas

nocivas de múltiplos gêneros, visto que até as emanações mentais inferiores, provindas do exterior, eram ali combatidas como das piores invasões a se temerem.

A extensão a percorrer era grande. Um carro singelo e alígero recolheu-nos, pois não vislumbráramos sequer, até então, a possibilidade de nos impulsionarmos com

o pensamento, praticando a volitação. A certa altura da viagem, quando já bem distanciados do Pavilhão Indiano, respondendo a certa confidência de Mário Sobral,

ouvimos que Roberto dizia:

O desânimo é mau conselheiro, amigo Sobral! Será de bom aviso meditares serenamente no alvitre fornecido pela experiência de Irmão Teócrito. Aparentemente

é um conselho trivial e inexpressivo. Mas fica sabendo que encerra sabedoria profunda e representa a chave áurea com que descerrarás barreiras que se te afiguram

existir nas estradas para a reabilitação! Que importa, alias, uma existência de trinta, sessenta anos de sacrifícios, em a qual o corpo carnal poderá ser mutilado,

se através dela é que reconquistaremos a honra espiritual, a paz que nos falta à consciência, no ensejo para a realização salvadora que nos identificará com a Lei

que infringimos?... Não temas os serviços da expiação, Mário, uma vez que todos nós, os que erramos, carecemos do seu concurso para desobrigarmos a consciência e,

portanto, o destino, das responsabilidades aviltantes cujo volume tanto nos indispõe com as harmonias da Lei Divina, criando anormalidades em torno de nós. Tens

o Futuro diante de ti a fim de auxiliar-te na renovação moral de que necessitas! Ele afirmará ao teu raciocínio, se te quiseres dar ao trabalho de ilações prudentes

e sérias, que poderás expungir da alma o reflexo humilhante das más ações com a interferência dos deveres santificadores! Se, portanto, é necessário renovar a experiência

terrena em corpo mutilado, a fim de que aprendas nas dificuldades daí originadas a te servires de todo o conjunto do envoltório carnal somente em sentido dignificante,

não vaciles, enfrenta o sacrifício! pois estás convencido de que erraste, e por isso certamente entenderás justo o assumires a responsabilidade dos atos que praticaste

em detrimento de tua própria individualidade, pois a honra espiritual e a dignidade moral do Espírito assim o exigem! E se a tempo souberes clarear o teu ser com

os resplendores da confiança em Deus, da esperança na Sua paternal bondade, alimentando-o de coragem e resignação, certo de que jamais te abandonará nas asperidades

do caminho reparador o Amor daquele Pai que não condena e sim ajuda a Sua criatura a se erguer do abismo em que se deixou resvalar, poderás até mesmo sorrir à desgraça,

deparar encantos ao longo do calvário que palmilharás!"

A veemência com que o jovem doutor emitira suas abalizadas advertências parecera reanimar nosso mísero comparsa, que silenciou, mostrando-se sereno o resto do

dia.

Eis, porém, que ao longe entreviam-se os sugestivos aldeamentos do Departamento a que pertencíamos. Pensativo, murmurei, sem prever que seria compreendido:

"- Em que recanto destes encontrar-se-á o pobre Jerônimo?..."

"- Vosso amigo Jerônimo de Araújo Silveira encontra-se acolá, detido no Isolamento - retorquiu Carlos de Canalejas -, como infrator que foi dos regulamentos hospitalares.

"- Por que dão a essa dependência a designação de Isolamento?.. ." - interpelou Mário receosamente.

"- Porque para ali são enviados aqueles cujo procedimento se contrapõe às disciplinas exigidas pelos regulamentos do Hospital, os inconformados, que abusariam

da liberdade, sem serem, todavia, verdadeiros rebeldes... Será uma como prisão... Repugna, porém, este vocábulo humilhante aos diretores da Colônia, e que, ao demais,

não traduziria a verdadeira natureza da finalidade a que se destina, como ainda haveis de verificar. .

"- Jerônimo encontra-se, pois, detido?..."

"- Perfeitamente!... A seu próprio benefício e para o bem daqueles a quem ama..."

Mário agitou-se, impressionado, voltando a perquirir:

"- Como é possível compreender-se, Dr. de Canalejas, que Jerônimo, esposo amantíssimo, pai extremoso, se encontre preso, enquanto eu, duas, três, dez vezes criminoso,

permaneço entre bons amigos?..."

"- És um Espírito sinceramente arrependido, Mário, que te deixas aconselhar pelos responsáveis por tua tutela diante de Maria; que desejas ser devidamente guiado

a normas salvadoras, disposto que te mostras aos mais rudes sacrifícios a fim de apagar o passado culposo... enquanto que Jerônimo obsidiou-se com a inconformidade

e a incompreensão, apegando-se intransigentemente a todas as recordações do passado, cuja perda lamenta e do qual vive, sem forças para esquecê-lo, avesso à cogitação

de elementos para suavizar a situação, que seria bem outra se se desse à prudência da resignação!... Aliás, não estiveste longos anos prisioneiro das trevas sinistras

do Vale, cativo, em desesperos, amargando o peso férreo que te esmagava a consciência?... E porventura não te conservas moralmente cativo de ti mesmo, pois tua mente

desgostosa e inconsolável não proIbe ao teu coração e ao teu entendimento toda e qualquer satisfação?..."

"- Surpreende-me verificar que, quando morremos, poderemos sofrer, entre muitas coisas inesperadas e surpreendentes, o fato de nos vermos arremessados a uma

enxovia..." - murmurei, contrariado com a novidade, que se me figurou absurda.

Carlos, porém, delicada e bondosamente, conquistou-me o raciocínio como conquistara o coração, apenas com esta sensata e lógica exposição:

Em primeiro lugar, Camilo, és tu que te referes a "enxovia", quando eu apenas tratei de um Isolamento, pois o vocábulo prisão tornava-se impróprio para a

finalidade que ali se verifica. Em segundo lugar, convinde, todos vós, que não deveria constituir surpresa a existência de prisões aqui, no além-túmulo. Fostes homens

de muitas letras, pensadores eruditos, profundos dialéticos... e tal ignorância se torna notável justamente por serdes esclarecidos!

Pensamos aqui, muitas vezes, depois que chegamos a compreender as atuações gerais dos Espíritos desencarnados inferiores, sobre o que seria a Humanidade terrestre

se não existissem repressões nas sociedades espirituais, uma vez que, mesmo havendo-as, hordas sinistras de malfeitores do plano invisível atacam a todas as horas

os homens incautos que lhes favorecem o acesso, contribuindo para suas quedas e para a desordem entre as nações!

Na Terra há quem não ignore a realidade que acabais de descobrir aqui e que tanto parece desgostar-vos. Jesus referiu-se a esse importante fato várias vezes,

e até mesmo aventou a possibilidade de se atar o delinqüente de pés e mãos. As religiões insistem em apregoar tão sombrio ensinamento; e, conquanto o façam imperfeitamente,

nem por isso deixam de prever uma realidade! Por sua vez, a Terceira Revelação, que, na Terra, há já alguns anos vem apresentando extensas reportagens do Mundo Invisível,

põe a descoberto, para o entendimento de qualquer inteligência, impressionantes pormenores a respeito da palpitante realidade que até mesmo os povos mais antigos

aceitavam e compreendiam na sua justa expressão, como verdades dignas de respeito! Se vos surpreendeis neste momento com a informação de que vosso amigo se encontra

detido no Isolamento dos rebeldes, será porque nunca vos preocupastes com assuntos realmente sérios, preferindo nortear vossos peregrinos dotes intelectuais para

os declives das frivolidades iniprodutivas, próprias das sociedades humanas que se comprazem na ociosidade mental, na inércia do comodismo intelectual!.

Calei-me, contrafeito, rememorando efetivamente não poucas referências que a tal respeito obtivera quando homem, através de leituras e estudos, mas às quais não

prestara senão relativa atenção, pois, enceguecido pela vaidade de supor-me sábio, prudente e lógico, considerava as filosofias religiosas, em geral, fontes suspeitíssimas

do interesse coletivo que as ideara, reservando respeitosas deferências apenas para os Santos Evangelhos, os quais reputava excelentes códigos de Moral e Fraternidade,

estatuídos, com efeito, por um Homem Superior que se apresentaria como o padrão modelo da Humanidade, porém, excessivamente místico para poder ser imitado por criaturas

em choques perenes com esmagadores obstáculos, tanto que, para o meu doentio entendimento, virulado pela ignorância presunçosa, que, fora do próprio âmbito azedado

pelo orgulho, só trevas pode deparar, falira ele próprio na prática das normas áureas que ex-pusera, pois deixara-se vencer num patíbulo infamante, enquanto a Humanidade

continuou resvalando para a sequência de insondáveis abismos.

De Canalejas, porém, continuou, atraindo-nos com a conversação:

"- Ao demais, por que não existiria deste lado da vida prisões e rigores se há cá maior percentagem de delinqüentes que do lado de lá?... pois grandes erros existem,

cometidos pelos homens, contra os quais não há penalidade estatuída na jurisdição humana, mas os quais sobremodo pesam nos incorruptíveis estatutos da Justiça de

Além-Túmulo! Outrossim, quantos crimes deixam de receber corretivos na Terra, não obstante haver para eles penalidades na mesma jurisdição terrena? Ou pensais poderia

o homem viver à revelia da Justiça, ao sabor das próprias inconveniências?... Porventura julgais que a morte transforme em bem-aventurados a quantos se excederam

na prática de desatinos no mundo material ?... Enganais-vos! O homem que viveu como ímpio, desafiando diariamente as leis divinas com atos desarmoniosos em desfavor

de si mesmo, do próximo e da sociedade, em chocante desrespeito ao futuro espiritual que o aguarda, entrará como ímpio, como réu que é, no mundo das realidades,

onde será punido pelas conseqüências lógicas e irremediáveis das causas que criou! Daí o que vedes aqui ou em outras regiões em que prolifere o elemento espiritual

inferior, e também no próprio cenário terreno, porqüanto a Terra oferece à Jurisdição Divina campos vastíssimos para o exercício das penalidades necessárias aos

seus réus: - acumulo de sofrimentos, lutas árduas, incontáveis, no sentido de apagar das consciências culpadas os fogos dos remorsos alucinadores... E como nas estâncias

sombrias do Invisível só ingressam Espíritos criminosos a se julgarem ainda homens, voluntariosos e prepotentes, querendo continuar a agir em prejuízo do próximo

e de si mesmo, a necessidade de rigores se impõe, como na sociedade terrena sucede com aqueles que infringem as leis humanas, pois é bom saibais que as organizações

terrestres são cópias imperfeitas das instituições modelares da Espiritualidade!"

Deslizava o veículo, já se aproximando da meta para a qual nos dirigíamos. Caiu o silêncio em torno, conservando-nos todos nós pensativos com o que acabáramos

de ouvir. Tão simples, tão real se apresentava aquele mundo astral, que sua mesma realidade, sua impressionante simplicidade contribuía para a confusão de nos julgarmos

homens, quando éramos Espíritos!

A Torre de Vigia desenhava-se como incrustada nas camadas acinzentadas da cerração, trazendo à lembrança antigas fortalezas da Europa. Majestosa e sugestiva,

infundiria respeito, senão pavor, ao transeunte das vias do Invisível que lhe desconhecesse a finalidade.

Acompanhados dos guias que levávamos, obtivemos passagem livre em seus pórticos. Comoção penosa precipitou vibrações de angústias em nosso ser acovardado pelas

recordações dos dissabores suportados, pois dir-se-ia que aquele ambiente pesado e sombrio falava à nossa alma dos dramas vividos nas penumbras do Vale Sinistro.

A Torre era, como sabemos, dependência do Departamento de Vigilância, e, conquanto tivesse direção autárquica, havia ela de trabalhar em harmonia com a direção-geral

daquele Departamento, em coesão perfeita de idéias e fraterna solidariedade. Seria o posto de maior responsabilidade de toda à Colônia, se ali pudesse existir algum

menos responsável que o seu congênere, porque situada em zona perigosa do astral inferior, rodeada de elementos nocivos e perturbadores, sendo dever seu a estes

combater, desviar, impedindo o assédio de Espíritos assaltantes, encaminhar para outras paragens infelizes perseguidos por obsessores, que a todo custo na Colônia

se desejassem abrigar, o que não seria possível, porqüanto tratava-se de local especializado para alojamento de suicidas.

A direção interna achava-se a cargo de um ex-sacerdote católico, português, também havia muito iniciado dos Templos de Ciências da Índia. Sob sua orientação serviam

vários outros condiscípulos não iniciados, obe dientes, porém, aos mais exaustivos labores em regiões inferiores, serviços por eles próprios escolhidos voluntariamente,

como expiação pelos desmandos com que haviam tratado os interesses do Evangelho do Crucificado, quando na Terra, investidos da alta dignidade de pastores de almas,

e ao qual haviam conspurcado com a mentira, a hipocrisia, as falsas e ardilosas interpretações! As funções de diretor, todavia, eram apenas internas, limitadas a

uma fiscalização (assistência de Maioral); as providências para a defesa cabiam à sede central do Departamento.

Recebidos por assistentes amáveis, fomos imediatamente conduzidos à sala da diretoria e apresentados por nossos bons amigos de Canalejas, os quais por sua vez

apresentaram a credencial fornecida por Teócrito, solicitando a visita que tanto convinha aos grupos que iniciavam instrução.

Bondosamente acolhido, fomos saudados em nome do Mestre dos mestres e da Guardiã da Legião, tendo ainda o diretor apresentado bons votos pelo nosso restabelecimento

completo e conseqüente progresso. Encantados, notamos não existir superficialidade ou afetação social nas maneiras daqueles que nos falavam. Ao contrário, a simplicidade,

as formosas expressões de vera solidariedade irradiavam indefiníveis atrativos, cativando-nos gratamente!

Concertado o programa da visita entre nossos guias e o diretor, Padre Anselmo de Santa Maria, não se perdeu tempo em conversações ociosas, iniciando imediatamente

o digno dirigente importantes explicações enquanto caminhávamos demandando os pavimentos superiores.

Não nos furtaremos ao grato dever de concluir este capítulo com os informes colhidos durante a curiosa visita.

"- Principiarei por esclarecer, meus queridos amigos - ia dizendo Padre Anselmo, enquanto subíamos que a Torre de Vigia, no momento, acumula afazeres, dada a

circunstância de ainda não se encontrar nosso Instituto definitivamente estabelecido. Há carência de trabalhadores especializados, e todos os nossos Departamentos

se encontram sobrecarregados, desdobrando-se em atividades múltiplas. Nós, por exemplo, os da Torre, atendemos a casos tão variados quanto espinhosos, como vereis,

diferentes mesmo da especialidade de que só deveríamos tratar."

Havíamos, porém, alcançado o pavimento mais alto, pois nossa inspeção partiria em sentido inverso, isto é, do andar superior para os que lhe ficassem abaixo.

Um salão circular, vastissimo, imerso em penumbra, como se as quintessências de que era construído se baseassem nos mais pesados exemplares que por ali existissem,

surgiu à nossa frente, rodeado de cômodos bancos estofados. Portas largas, envidraçadas, estendiam-se em toda a circunferência, deixando ver o que se passava no

interior de cada aposento. A convite do amável cicerone aproximávamo-nos das portas e examinávamos tanto quanto possível o interior, não nos sendo, porém, franqueada

a entrada. No entanto, não ouvíamos um único som: - as vidraças seriam de substâncias isolantes, àprova total de ruído!

No primeiro gabinete existiam estranhas baterias de aparelhos que pareciam ser telescópios possantes, maquinarias aperfeiçoadas, elevadas ao estado ideal, para

sondagem a grandes distâncias, espécie de "Raios X', capazes de perquirir os abismos do Espaço infinito, assim como do Mundo Invisível e da Terra. Outros, porém,

desafiavam nossa compreensão de calouros do mundo espiritual.

No segundo gabinete, telas luminosas, colossais, das quais as existentes nas enfermarias do Hospital pareciam graciosas miniaturas, indicavam haver necessidade,

ali também, de retratarem-se acontecimentos e cenas ocorridos a imensuráveis distâncias, tornando-os presentes aos técnicos e observadores para tanto credenciados,

a fim de serem devidamente estudados e examinados. Semelhantes aparelhos, cuja perfeição o homem ainda não concebe, não obstante já se achar em seu encalço, permitiria

ao operador conhecer até os mínimos detalhes qualquer assunto, mesmo o desenvolvimento dos infusórios nos leitos abismais do oceano, se necessário, bem assim a seqüência

de uma existência humana que se precisasse conhecer ou as ações de um Espírito em atividades no Invisível, 'nas camadas inferiores ou durante missões penosas e excursões

pertinentes aos serviços assistenciais. Todavia, os regulamentos, rigorosamente observados, rezavam sua utilização apenas em casos verdadeiramente necessários.

Existia, porém, ainda um terceiro, o maior de todos, pois ocupava todo um andar da majestosa torre, parecendo tratar-se antes de uma oficina por assim dizer mecânica,

onde os operários seriam eminentes vultos da Ciência. Era este o local reservado à maquinaria magnética que permitiria o uso e a ação de todos os magníficos aparelhamentos

existentes na Colônia, inclusive o do sistema de iluminação noturna, espécie de usina eletromagnética distribuidora de fluidos diversos, capazes para o bom funcionamento

dos mesmos aparelhos. E em todos os compartimentos uma azáfama sem interrupções, labor incessante e árduo, quiçá exaustivo. Muitas damas figuravam no quadro de funcionários

que em tais dependências víamos desenvolvendo meritórias atividades. Pareciam figuras aladas, indo e vindo em silêncio, sérias e atentas, envolvidas em belos vestuários

brancos, tão alvos que se diriam lucilantes, particularidade que nos despertou atenção, fazendo supor à nossa incapacidade tratar-se de uniformes para uso interno,

quando em verdade nada mais era senão o padrão do bom estado vibratório de suas mentes. Esforçavam-se por diminuí-lo, num local incompatível com suas verdadeiras

expansões.

"- Esta fortaleza - continuou Anselmo de Santa Maria -, à qual pertence não só a Torre de Vigia como as demais que aqui se vêem, aquartela o regimento de milicianos

e lanceiros especializados, que fazem a sentinela e defesa da mesma contra possíveis contratempos partidos do exterior. Muitos dos integrantes desse regimento são

discípulos da Iniciação Cristã popular, e ensaiam os primeiros passos na senda dos labores edificantes, caminho da redenção! Alguns foram também suicidas, que agora

experimentam conosco a reparação de antigos deslizes. Outros, no entanto, saíram da mais negra impiedade, pois foram, além de suicidas, temíveis obsessores, e seus

delitos, os crimes que praticaram durante tão lastimáveis ofícios, são bem fáceis de avaliar! Todos eles, porém, são tratados pela direção da Colônia com desvelado

amor e caridade cristã, à qual se acham afetos os trabalhos de auxílio à sua reeducação. Sobre os últimos, isto é, os obsessores, existem mesmo recomendações especiais

provindas de Mais Alto, visto que a Insigne Guardiã da Legião deseja vê-los o mais cedo possível integrados nas hostes dos verdadeiros conversos da Doutrina do Amado

Filho, na Legião dos trabalhadores devotados da Causa Magnânima do Mestre dos mestres! Assim sendo, além dos trabalhos que desempenham e que também fazem parte da

instrução que lhes é devida, todos estudam, aprendem com seus instrutores noções indispensáveis do Amor, da Justiça, do Dever, do Bem legítimo, habilitam-se na Moral

do Cristo de Deus, no respeito devido ao Todo-Poderoso, até que tornem à reencarnação para os testemunhos decisivos. Não obstante, muitos já venceram as primeiras

etapas dos testemunhos indispensáveis, isto é, voltaram já das terríveis reencarnações expiatórias, continuando aqui a instrução para progressos futuros! Não poderei

deixar de fazer referências aos batalhões de lanceiros hindus aqui também aquartelados, os quais, voluntária e abnegadamente, se dedicam a servir de modelo para

os recém-arrependidos, fiscalizando-os e cooperando conosco para sua reabilitação, enquanto prestam outros inestimáveis concursos à direção de nosso Instituto. Esses

hindus, antigos discípulos particulares dos iniciados aqui domiciliados, alguns já bastante encaminhados para a luz da Verdade, são, como facilmente percebemos,

o verdadeiro sustentáculo da ordem e da disciplina que mantém a paz entre os demais.

Nossa vigilância há de ser incansável, rigorosa, minuciosa, dada a zona de desordens em que se encontra situada nossa estância, avizinhando-se da Terra e desta

recebendo seus múltiplos reflexos perturbadores; das gargantas sinistras onde se localiza o vale em o qual aglomeramos nossos futuros hóspedes; das regiões inferiores

onde prolífera o elemento maldoso proveniente das sociedades terrenas, e das estradas por onde perambuiam hordas endurecidas no mal, cuja preocupação é seduzir,

bandeando para suas hostes Espíritos incautos e inexperientes, como vós. Tudo isso sem nomear as ondas malignas invisíveis de fluidos e emanações mentais que sobem

da Terra, engrossando as do invisível inferior, e às quais, desta Torre, damos caça como o faríamos a micróbios endêmicos de peste.

Através dos aparelhamentos que vedes, estamos em ligação permanente com os sucessos desenrolados no Vale dos Suicidas. Graças a eles permanecemos presentes ao

que ali ocorre, de tudo sabemos e tudo ouvimos. Poderíamos exercitar a clarividência, a visão a distância, assim como outros dons anímicos que igualmente possuem

os nossos técnicos, a fim de nos inteirarmos do que necessitarmos saber, pois temos, mesmo na Torre, funcionários capazes de tão vultoso quanto melindroso serviço,

como aquelas operosas irmãs que acolá observamos atentas no cumprimento do Dever. Preferimos, porém, geralmente, os aparelhos, porque seria sacrificar demasiadamente,

sem necessidade, tão preciosas faculdades anímicas num local heterogêneo como este, carregado de influências pesadas, que delas exigiriam grande dispêndio de energias

preciosas, esforços supremos, quando o aparelhamento de que dispomos realiza o mesmo serviço sem exigências vultosas de ordem mental.

Por muito desgraçados, pois, que sejam os galés do Vale, ou os transviados que se aprazem no mal e cujo raio de ação se encontre no caminho de nossas atividades,

jamais se acharão desamparados, pois os servos de Maria velam por eles com o auxílio destes magníficos aparelhos de visão e comunicação e os socorrem no momento

oportuno, isto é, desde que eles mesmos estejam em condições de serem socorridos, transportados para outro local. Mas... existe uma como fatalidade a extrair-se

do ato mesmo do suicídio, contra suas atribuladas presas, a qual impede sejam estas socorridas com a presteza que seria de esperar da Caridade própria dos obreiros

da Fraternidade: - é o não se encontrarem elas radicalmente desligadas dos liames que as atêm ao envoltório carnal, isto é, o se conservarem semi-encarnadas ou semidesencarnadas,

como quiserdes!

As potências vitais que a Natureza Divina imprimiu em todos os gêneros da Criação e, em particular, no ser humano, agem sobre o suicida com todas as energias

da sua grandiosa e sutil atividade! E isso graças à natureza semimaterial do corpo astral que possui, além do envoltório material. Viverá ele, assim, da vida animal

ainda por muito tempo, a despeito mesmo, em vários casos, da desorganização do corpo de carne! Palpitarão nele, com pujança impressionante, as atraçôes vivíssimaz

da sua qualidade humana, até que as reservas vitais, fornecidas para o período completo do compromisso da existência, se esgotem por haver atingido a época, prevista

pela Lei, da desencarnação. Em tão anormal quão deplorável situação permanecerá o suicida, sem que nada possamos fazer a fim de socorrê-lo, apesar da nossa boa-vontade!

(11-a) Isso, meus filhos, assim é que é, e vós, mais do que ninguém, o sabeis! É de lei, lei rigorosa, incor

(11-a) A Excelsa Misericórdia encaminha, geralmente, tais casos, tidos como os mais graves, a reencarnações imediatas onde o delinqüente completará o tempo que lhe

faltava para o término da existência que cortou. Conquanto muito dolorosas, mesmo anormais, tais reencarnações serão preferíveis às desesperaçõeS de além-túmulo,

evitando, ao demais, grande perca de tempo ao paciente. Veremos então homens deformados, mudos, surdos, débeis mentais, idiotas ou tardas de nascença, etc. É um

caso de vibrações, tão-somente. O perispírito não teve forças vibratórias para modelar a nova forma corpórea, a despeito do auxílio recebido dos técnicos do mundo

Invisível. Assim concluirão o tempo que lhes faltava para o compromisso da existência prematuramente cortada, corrigirão os distúrbios vibratórios e, logicamente,

sentir-se-ão aliviados. Trata-se de uma terapêutica, nada mais, recursos extremos exigidos pela calamidade da situação. É o único, aliás, para os casos em que a

vida interrompida deverá ser longa. Ó vós que ledes estas páginas! Quando encontrardes pelas ruas um Irmão vosso assim anormalizado, não pejeis de orar em presença

dele: vossas vibrações harmoniosas serão também excelente terapêutica!

ruptível, irremediável porque perfeita e sábia, a nós cumprindo procurar compreendê-la e respeitá-la, para não nos infelicitarmos pelo intento que tivermos de violá-la!

Daí a calamidade que sobrevém aos suicidas e a impossibilidade de abreviarmos os males que os afligem. O que lhes sucede é um efeito natural da causa por eles

próprios criada, pois se colocaram na melindrosa situação de só o tempo poder auxiliá-los, O que a benefício deles podemos tentar, nós o tentamos sem medir sacrifícios:

- é, de quando em vez, ou melhor, em ocasião justa e adequada, organizarmos expedições de missionários voluntários, que até seu inferno desçam a fim de encaminhá-los

para esta instituição, onde são asilados e devidamente orientados para o respeito a Deus, de quem não se lembraram jamais, quando homens é nos reunirmos para o cultivo

de orações diárias em seu benefício, irradiando centelhas benéficas de nossas vibrações em torno de suas mentes superexcitadas, procurando abrandar as ardências

dos sofrimentos que experimentam com suaves intuições de esperança! Se não se conservassem tão alucinados, soçobrados nos boqueirões da desesperança, da funesta

descrença em Deus, na qual sempre se comprazeram, perceberiam os convites à oração que todas as tardes lhes dirigimos, ao cair do crepúsculo, assim como as falas

de encorajamento, intentando despertá-los para o advento da confiança nos poderes misericordiosos do Pai Altíssimo, pois não devemos olvidar que tratamos com povos

cristãos que mais ou menos se emocionam ao recordar a infância distante, quando, ao pé da lareira, junto ao regaço materno, balbuciavam as doces frases da anunciação

de Gabriel àVirgem de Nazaré, que receberia como filho o Redentor da Humanidade... e nós nos vemos na preocupação de lançar mãos de todos os recursos lícitos para,

de algum modo, enxugar as lágrimas desses míseros descrentes que se precipitaram em tão pavoroso abismo!

Sempre que um condenado tiver extinguido ou mesmo aliviado o carregamento de vitalidade animalizada - esteja ele sinceramente arrependido ou não -, avisaremos

o serviço de socorro da Vigilância, o qual par tirá imediatamente ao seu encontro, trazendo-o para a guarda da Legião. Então, tal seja a sua condição moral - arrependido,

revoltado, endurecido - será encaminhado por aquele Departamento ao local que lhe competir, conforme já sabeis: - o Hospital, o Isolamento, o Manicômio e até para

estas Torres, pois, como dissemos, em virtude de ainda não nos acharmos devidamente instalados, acumulamos afazeres, mantendo, aqui mesmo, postos auxiliares para

custodiar grandes criminosos dos quais seja cassada a liberdade por demasiada permanência nas vias do erro, isto é - suicidas-obsessores.

Com nossos aparelhos de visão a distância - (clarividente-magnético-mecâniCo) - os quais atrairão até nossa presença os fatos e as cenas que precisamos conhecer,

selecionando-as de outros tantos, graças às disposições lúcidas com que são movimentados por nossos técnicos, - assim cómo o ímã poderoso atraindo as estilhas do

aço - localizamos aquele que deverá ser socorrido, traçamos o esquema do trajeto, apresentando-o em seguida à diretoria da Vigilância; esta fornece os elementos

para a expedição... e arrebatamos, com o favor de Deus e o beneplácito do Seu Unigênito, mais uma ovelha das garras do mal...

É rigorosamente proibida a entrada nestes gabinetes a quem aí não exerça atividades. Por essa razão não vos convidarei a uma inspeção minuciosa no conjunto do

aparelhamento. Os funcionários são Espíritos de escol, missionários do Amor, técnicos especializados no gênero do serviço, os quais, podendo desenvolver operosidades

em esferas floridas de luz e de bênçãos, preferem descer aos báratros sombrios da desgraça para servirem, por amor ao Mestre Divino, à causa sacrossanta dos seus

irmãos inferiores e infelizes - verdadeiros anjos-guardiães dos infortunados por quem velam!

São, estes, rendidos por outra turma, de doze em doze horas. Descansarão, se o desejarem, nos jardins do Templo, que, como sabeis, é o mais elevado plano de

nossa humilde Colônia; ou se dedicarão a outros afazeres que lhes sejam afetos ou ainda alçarão às moradas a que em verdade pertencem. Refazem-se, aí, das angús

tias suportadas no ambiente trevoso onde heroicamente laboram em favor do próximo e retornam no dia imediato, fiéis ao dever que voluntariamente abraçaram... pois

convém frisar, meus amigos, que, para os serviços de socorro e proteção aos párias do suicídio, não existem nomeações nem imposições de leis, uma vez que ele mesmo,

o suicídio, está fora da Lei! São tarefas, portanto, realizadas por voluntários, florescência sagrada dos sentimentos de Caridade e Abnegação daqueles que desejam

exercê-las por amor às doutrinas imaculadas do Cordeiro de Deus, daquele Modelo Divino que fez da Caridade a virtude por excelência, uma vez que a lei facultadora

do direito de exercê-la confere o exercício de todo o bem possível em favor dos que sofrem!

"- Admira-me ver personagens tão altamente prendadas desdobrando-se em locais e labores tão pouco agradáveis - observou Belarmino com a azeda impertinência de

quem, na Terra, levou vida afidalgada, de capitalista ocioso, para quem serão desdouro os trabalhos árduos, as lides continuas do dever. - Não existiriam na Legião

funcionários espiritualmente menos evolvidos, mais concordes, portanto, com a natureza do ambiente e dos exaustivos desempenhos nele decorridos ?... Certamente sofreriam

menos, visto que possuiriam menor grau de sensibilidade.. ."

Riu-se Anselmo com bonomia e simpatia, redargüindo:

"- Bem se vê, irmão Belarmino, que desconheceis a delicadeza e a profundidade dos assuntos espirituais, cuja intensidade não é sequer suspeitada no globo terrestre!

Nosso corpo de funcionários menos evolvidos, policiais, assistentes, enfermeiros, vigilantes, etc., etc., poderá apresentar ótimo contingente de boa-vontade, como

realmente apresenta, permanente disposição para o trabalho, desejo de progredir através de atos heróicos, mas não se encontra ainda à altura de tão magno desempenho!

Somente um Espírito dotado de cândidas virtudes e experimentado saber poderia distinguir nos meandros do caráter complexo de um infrator, como o suicida, as verdadeiras

predisposições para o arrependimento, ou se no seu invólucro físico-astral já não se refletem influências do princípio vital demasiadamente pesadas para, então,

providenciar socorros que o encaminhem a local onde esteja seguro. Só um técnico, investido de extensos conhecimentos psíquicos, saberia extrair da memória profunda

de um desses réus, martirizados pelos sofrimentos, o pretérito de suas existências, retrocedendo com ele pelas vias do passado, revendo-lhe a história vivida na

Terra, para, daí, formando-lhe a biografia, estudar a causa que o impeliu ao fracasso, orientando destarte o programa reeducativo que no Instituto será aplicado,

pois é com os apontamentos fornecidos pelos técnicos dos Departamentos da Vigilância e do Hospital que os padecentes admitidos na Colônia serão classificados e encaminhados

para os vários postos de recuperação de que dispomos, os quais se estendem até mesmo às paragens terrenas, através dos serviços reencarnatórios. Só mesmo um ser

abnegado, bastante evolvido na posse de si mesmo, poderia contemplar, sem se horrorizar até àloucura, as localidades inferiores onde a degradação e a dor atingem

a cuhninância do mal, comparado às quais o Vale onde estivestes pareceria confortador!

Por exemplo: - Existem almas de suicidas que não chegam a ingressar no Vale por vias naturais. Ingressar ali já será estar o delinqUente mais ou menos amparado,

porque sob nossa assistência e vigilância, embora oculta, registrado nos assentamentos da Colônia como candidato a futura hospitalização. Há no entanto aqueles que

são aprisionados, ou seduzidos e desencaminhados, antes de atingirem o Vale, por maltas de obsessores, que, às vezes, também foram suicidas, ou mistificadores, entidades

perversas e criminosas, cujo prazer é a prática de vilezas, escória do mundo invisível desnorteada pelas próprias maldades, que continuam vivendo na Terra ao lado

dos homens, contaminando a sociedade e os lares terrenos que lhes não oferecem resistência através da vigilância dos bons pensamentos e prudentes ações, infelicitando

criaturas incautas que lhes fornecem acesso com a própria inferioridade moral e mental! Se escravizado por semelhante horda, o suicida entra a experimentar torturas

à frente das quais os acontecimentos verificados no Vale - que são o resultado lógico do ato de suicídio - pareceriam meros gracejos?

Porque não disponham de poderes espirituais verdadeiros, esses infelizes, que vivem divorciados da luz do Bem e do Amor ao próximo, aquartelam-se, geralmente,

em locais pavorosos e sinistros da própria Terra, afinados com seus estados mentais, tais como o seio das florestas tenebrosas, catacumbas abandonadas dos cemitérios,

cavernas solitárias de montanhas muitas vezes desconhecidas dos homens e até antros sombrios de rochedos marinhos e crateras de vulcões extintos.

Hipócritas e mentirosos, fazem crer às suas vítimas serem tais regiões obras suas, construídas pelo poder de suas capacidades, pois invejam as Colônias regeneradoras

dirigidas pelas entidades iluminadas, e, aprisionando-as, torturam-nas por todas as formas, desde a aplicação dos maus tratos "físicos" e da obscenidade, até a criação

da loucura para suas mentes já incendidas pela profundidade dos sofrimentos que lhes eram pessoais; infligem-lhes suplício, finalmente, cuja concepção ultrapassa

a possibilidade de raciocínio das vossas mentes, e cuja visão não suportaríeis por ainda serdes demasiadamente fracos para vos isolardes das pesadas sugestões que

sobre vós cairiam, capazes de vos levarem a adoecer!

Mas... aos trabalhadores especializados, iluminados por um excelente progresso, nada afeta! São imunizados, dominam o próprio horror a que assistem com as forças

mentais e vibratórias de que dispõem, e até às mais estranhas regiões do globo descem as lentes dos seus telescópios magnéticos, da sua televisão poderosa, assim

como a solicitude dos seus elevados pensamentos de fraternidade cristã... E vão à procura da alma superatribulada dos desgraçados que se viram duplamente desviados

da rota lógica do destino, pelo próprio ato do suicídio e pela afinidade inferior que os arrastou à junção com o elemento da mais baixa espécie existente no Invisível!

Encontram-nos, às vezes, depois de pesquisas perseverantes e exaustivas. Nem sempre, porém, ao localizá-las, e disso informando a direção da Vigilância, a qual,

por sua vez, se entende com a direção-geral do Instituto, poderemos arrebatá-las imediatamente. Será necessário traçar um plano para o resgate, um programa definido,

bem delineado; o concurso de outras falanges, às vezes muito inferiores à nossa, em capacidade e moral, mas conhecedoras do terreno áspero e trevoso em que seremos

chamados a operar; demarches, embaixadas, negociações, empenhos e até truques, batalhas ríspidas, onde a espada não será chamada a intervir, é certo, mas em que

a paciência, a tolerância, o interesse do Bem, a energia moral, a coragem para o trabalho, usados pelos libertadores, causariam admiração e respeito pelo heroismo

de que oferecem testemunho! Não raro descem estes aos locais satânicos onde a alma cativa se estorce flagelada pelos verdugos que a desejam adaptar aos próprios

costumes. Imiscuem-se com a horda. Submetem-se à dramática necessidade de se deixarem passar, muitas vezes, por sequazes das trevas!... Invariavelmente sofrem em

tais ocasiões, esses abnegados obreiros do Amor! Derramam lágrimas amargurosas, fiéis, porém, aos sacrossantos compromissos para com a causa redentora a que se consagraram!

Mas não vacilam no posto de missionários, a que se comprometeram com o Divino Modelo que se sacrificou pela Humanidade, e prosseguem, enérgicos e heróicos, nos serviços

a bem de seus irmãos menores!

E finalmente, após lutas inimagináveis, arrecadam os sofredores que, no tempo devido, não se encaminharam para o Vale; entregam-nos, como de direito, à Vigilância,

que, por sua vez, os dirige para o local conveniente, geralmente para o Manicômio, pois os desgraçados saem enlouquecidos, com efeito, das teias obsessoras em que

se deixaram enredar... E, o que é sumamente importante: - arrebanham também os próprios obsessores, os algozes, os quais mais não são do que Espíritos audaciosos,

de homens maldosos que viveram envolvidos nas trevas do crime, apartados de Deus! Se, além de obsessores, são também suicidas, nossa Colônia poderá retê-los. Hospedamo-los,

no entanto, aqui mesmo, na Vigilância, em local apropriado desta fortaleza, pois, não possuindo eles afinidades para nenhum outro plano melhor que este, são, ao

demais, considerados elementos perigosos e indesejáveis em dependências onde se opera o alevantamento da moral de outros delinqüentes já predispostos ao bem! Mantemo-los

sob severa custódia, procurando, tanto quanto possível, ministrar-lhes forças e meios para se reeducarem e reabilitarem. Daqui não se elevarão a planos mais rarefeitos

e confortadores sem que primeiramente hajam tornado a nova existência carnal a fim de se despojarem do peso dos crimes mais revoltantes que cometeram, pois suas

condições morais e mentais, excessivamente prejudicadas, lhes interceptam maiores possibilidades. A instrução deles limitar-se-á a pequeno aprendizado em torno de

si mesmos, noções das leis fraternas expostas no Evangelho do Senhor e a labores regeneradores exercidos nos palcos da Terra, sob a direção de assistentes rigorosos,

ou em nosso regimento de milicianos, onde mentores especializados no gênero guiá-los-ão à prática de serviços nobilitantes, em oposição ao muito mal que praticaram

no passado. Como milicianos, darão caça a outras hordas obsessoras que conheçam, indicam-nos antros maléficos que bem sabem existir aqui e além, prestando, assim,

concurso valioso à nossa causa, o que muito será levado em conta na programação das expiações a que se obrigaram. Se se tratar, no entanto, de elementos simplesmente

perversos, não suicidas, não nos será permitido asilá-los. Todavia, nosso Serviço de Socorro encaminhá-los-á aos postos de abrigo existentes nas zonas de transição,

um pouco por toda a parte - espécie de postos policiais do Invisível -e, uma vez aí, terão o destino que melhor convir a sua triste condição de Espíritos inferiores,

destino concorde, não obstante, com as leis da afinidade, da justiça e da fraternidade."

Seguiu-se curto silêncio. Estávamos suspensos, surpresos com o inesperado da exposição que nos faziam, a qual, em verdade, valia por uma aula de elevada eru dição!

Anselmo de Santa Maria fitou docemente o olhar em nossos semblantes preocupados pela atenção despertada por sua palavra, e murmurou, como se estendesse o pensamento

através das flóreas estradas perfumadas pela essência incomparável do Evangelho do Magnânimo Educador:

"- Sim, meus filhos!... Assim é que fatalmente teria de acontecer, pois o próprio Nazareno afirmou que o bom pastor deixa o rebanho obediente, amparado em seu

redil, e parte em busca da ovelha transviada, só descansando após reconduzi-la, salva dos perigos que a cercavam!... E acrescentou, para justiça e glória dos nossos

esforços em cooperar com Ele:

"- Das ovelhas que meu Pai me confiou, nenhuma se perderá..."

2

Os arquivos da alma

"Honrai a vosso pai e a vossa mãe. (Decálogo.)

ÊXODO, capítulo 20, versículo 12.

Ia entardecendo. As sombras se acentuavam no horizonte plúmbeo da pesada região. Descemos para o pavimento imediato e, pelo trajeto, arrisquei uma interrogação:

"- Desculpai, Revmo. Padre, o desejo de investigar pormenores de um assunto que tão bem soube aos meus sentimentos de cristão e à minha preocupação de aprendiz:

- Como chegam os diretores desta magna Instituição a saber que Espíritos infelicitados pelo suicídio são aprisionados por falanges hostis, encontrando-se desaparecidos?...

"- Se nos comprometemos perante Jesus ao serviço de auxiliares do seu ideal de redenção, filiando-nos à Legião patrocinada por Sua venerável Mãe - respondeu prontamente

-, manteremos técnicos nesta Torre com o mister exclusivo de procurar os desaparecidos, auxiliados com o emprego infalível dos aparelhos que acabastes de entrever...

Têm eles, cada um, demarcada-a as regiões que deverão sondar... Por sua vez, antigos opressores, regenerados sob nossos cuidados e adidos ao corpo de milicianos,

tocados pelo arrependimento vêm, voluntariamente, indicar localidades do Invisível ou da Terra, do seu conhecimento, onde são aglomeradas as vitimas da opressão

obsessora e onde as maiores atrocidades se praticam. Verificados exatos, esses locais serão visitados e saneados... Geralmente, porém, os avisos e as ordens vêm

de Mais Alto... de lá, onde paira a assistência magnânima da piedosa Mãe da Humanidade, a Governadora de nossa Legião... Se as entidades em apreço não pertencem

à sua tutela direta de Guardiã, poderá o Guardião da falange ou da legião a que pertencerem impetrar o seu favor em prol dos transviados, seu amoroso concurso para

o alvo a ser coliniado, porqüanto existe fraterna solidariedade entre as várias agremiações do Universo Sideral, infinitamente mais perfeitas que as existentes entre

as nações físico-terrenas... Outrossim, por mais desgraçado e esquecido que seja um delinqüente, existira sempre quem o ame e por ele sinceramente se interesse,

dirigindo apelos fervorosos a Maria em seu favor, quando não o fizerem diretamente ao Divino Mestre ou ao próprio Criador! Se, portanto, um suicida não deixa na

Terra alguém que se apiade de sua imensa desgraça, concedendo-lhe brandas e carinhosas expressões de caridade através da Prece generosa, será bem certo que no Além

haverá quem o faça: - afeições remotas, antigos amigos, temporariamente esquecidos graças à encarnação; seres queridos que o acompanharam em peregrinações pregressas,

na Terra; seu tutelar, o amoroso Guardião que lhe conhece todos os passos, como seus menores pensamentos, assisti-lo-ão com os veros testemunhos do amor fraterno,

que cultivam à inspiração do amor de Deus! Se é dirigida a Maria a súplica, imediatamente ordens serão expedidas a seus mensageiros, as quais, por estes distribuídas

aos vários postos e institutos de socorro e asilo aos suicidas, mantidos pela Legião, indicam aos servidores o momento das atividades em torno do novo sofredor,

seu nome, sua nacionalidade, a data do desastre, o local em que se verificou, o gênero de suicídio escolhido. Com tais informes, se, por exemplo, o indivíduo em

questão encontra-se em região pertencente ao raio de nossas ações, a busca será feita pelos servos da Vigilância, conforme ficou dito. Onde quer que se encontre

será localizado a despeito de quaisquer sacrifícios! Geralmente, se não foi arrebatado da situação normal ao caso pelas hordas perversas e obsessoras que o assediavam

desde antes, o trabalho será fácil. Se, no entanto, a tarefa, por muito espinhosa e árdua, carecer do concurso de outros elementos de nossa mesma Legião ou estranhos

a ela, temos o direito de solicitá-los, sendo prontamente atendidos. Há casos, como ficou esclarecido, em que nos vemos na necessidade de apelar até para o concurso

de elementos inferiores, isto é, o auxílio de falanges que nos ficam abaixo em moral e esclarecimentos!

No entanto, se a outro eminente Espírito for dirigida a súplica, será esta encaminhada a Maria e seguir-se-ão as mesmas providências, pois, como vimos af ir-mando,

é Maria a sublime acolhedora dos réprobos que se arrojaram aos temerosos abismos da morte voluntária... Tudo isso, porém, não quererá certamente dizer que nossa

Excelsa Diretora precisará esperar súplicas e pedidos de quem quer que seja a fim de tomar suas caridosas providências! Ão contrário, estas foram perenemente tomadas,

com a manutenção dos postos de observação e socorro especiais para suicidas; com os não especializados, mas que igualmente os acolherão em ocasião oportuna, disseminados

por toda a parte, no Invisível como na Terra, e com os próprios dispositivos da lei de amor e fraternidade, que manda pratiquemos todo o bem possível, fazendo ao

próximo o que desejaríamos que ele nos fizesse, lei que no Invisível esclarecido éamorosa e rigorosamente observada!

De qualquer forma, porém, a Prece, como vistes, externada com amor e veemência em favor de um suicida, é o sacrossanto veículo que carreia, em qualquer tempo,

inestimáveis consolações, mercês celestes para aquele desafortunado, porqüanto é um dos valiosos elementos de socorro estatuídos pela citada lei em favor dos que

sofrem, elemento com o qual ela conta a fim de acionar vibrações balsamizantes necessárias ao tratamento que a carência do mártir requer, constituindo, por isso

mesmo, erro calamitoso a negativa, por parte das criaturas terrenas, desse ato de solidariedade, interesse e beneficência, pela injusta suposição de que seria inútil

sua aplicação por irremediável a desgraçada situação dos suicidas! A Prece, ao contrário, torna-se ato de tão louvável e prestimosa repercussão, que aquele que ora,

por um de vós, faz-se voluntário colaborador dos obreiros da Legião de Maria, coadjuvando seus esforços e sacrifícios na obra de alívio e reeducação a que se devotaram!

Como tendes percebido, por esta pálida amostra, nosso labor é vultoso e intenso. Se as criaturas que atentam contra o sagrado patrimônio da existência corporal

-pelo Todo-Poderoso concedido à alma culpada como ensejo bendito e nobilitante de reabilitação - conhecessem a extensão dos sofrimentos e dos sacrifícios que por

elas arrostamos, é certo que se deteriam à beira do abismo, refletindo na grave responsabilidade que assumirão, quando não por amor ou compaixão de si mesmas, ao

menos em consideração e respeito a nós outros, seus guias espirituais e amigos devotados, que tantos prélios exaustivos, tantos dissabores suportamos, tantas lágrimas

arrancaremos do coração até que os possamos encaminhar para as consoladoras estâncias protegidas pela Esperança!"

O amável cicerone falara da existência, numa daquelas sombrias dependências que circundavam a torre central, cognominada simplesmente - a Torre -, daqueles temidos

obsessores, chefes ou prosélitos de falanges trevosas e perversas, os quais, além de suicidas, seriam também responsáveis por crimes nefandos, previstos nas leis

sublimes do Eterno Legislador como puníveis de reparações duríssimas através dos séculos. Manifestáramos desejo de vê-los. Afigurou-se-nos tratar-se de entidades

anormais, desconhecidas completamente pela nossa capacidade de imaginação, monstros apocalípticos, talvez, fantasmas infernais que nem mesmo apresentariam forma

humana. Sorrindo paternalmente, o velho doutor de Canalejas interrogou ao emérito elucidador, que nos guiava, se seria possível defrontarmos algum deles, visto ser

de utilidade conhecê-los a fim de nos acautelarmos durante a próxima viagem aos planos terrenos, onde enxameiam bandos numerosos da mesma espécie. Padre Anselmo

bondosamente aquiesceu, não porém sem pequena restrição:

Estou informado, pela diretoria do vosso Hospital, das conveniências que cabem aos aprendizes aqui presentes. Concordarei portanto em apresentar-lhes pequeno

panorama do local onde alojamos os pobres pupilos responsáveis por tantos delitos, justamente a Torre que nos fica fronteira. Ali estão localizadas as chamadas prisões,

e ali são eles custodiados sem interrupção, como jamais o seriam prisioneiros na Terra!

Devo inteirar-vos de que tais obsessores se encontram já em vias de regeneração. Sacodem-lhes o pesado torpor em que têm mantido as consciências os embates aflitivos

dos primeiros remorsos. Acovardam-se com o fantasma do futuro. Bem percebem o que os espera na angustiosa plaga das expiações, sob o ardor das variadas reparações

que terão de testemunhar mais tarde ou mais cedo. Amedrontados ante o vulto infamante das próprias culpas, supõem que, enquanto resistirem aos convites que diariamente

recebem para a regeneração, estarão isentados daquelas obrigações... Daqui, porém, não lograrão sair, reavendo a liberdade, sem que o arrependimento marque roteiro

novo para suas consciências denegridas pela blasfêmia do pecado... ainda que permaneçam enclausurados durante séculos - o que não émuito provável venha a dar-se.

Oh, meus caros amigos, vós, que iniciais os primeiros passos nas sendas redentoras dessa Ciência Divina que redime e eleva o caráter da criatura, seja homem ou

Espírito! Oh, vós, cuja visita ao meu posto humilde de trabalhador da Seara do Senhor tanto me honra e desvanece! Colaborai comigo e meus auxiliares desta espinhosa

seção do Departamento de Vigilância! Colaborai com a direção deste Instituto, sobre cuja responsabilidade pesam tantos destinos de criaturas que devem marchar para

Deus! Cooperai com a Legião dos Servos de Maria e com a causa da Redenção, esposada pelo Mestre Divino, orando fervorosamente por estas ovelhas transviadas que resistem

ao doce chamamento do seu Meigo Pastor! Seja o primeiro ato com que iniciareis a caminhada extensa das reparações que devereis praticar - o gesto da sublime caridade

que irá reacender seus imortais aromas de beneficências no seio amoroso do Cristo de Deus: - a Prece pela conversão destes infelizes trânsfugas da Lei, que se arrojaram,

temerários e loucos, ao mais tenebroso e trágico báratro a que épossível chafurdar-se a criatura dotada de raciocínio e livre-arbítrio! Orai! E afianço-vos, acreditai!

- que tereis começado formosamente a programação das ações que devereis realizar para a confirmação do vosso progresso!

Porém, são eles aqui - continuou, depois de uma pausa que não ousamos profanar com nenhuma indiscrição - assistidos por dedicados zeladores. Levada em conta a

ignorância fatal de que deram mostras, escolhendo a prática do mal, único atenuante com que podem contar a fim de merecerem proteção e amparo, a misericórdia exposta

na Lei que nos rege ordena lhes forneçamos ensino e esclarecimentos, meios seguros de se reabilitarem para o reingresso nas vias normais da evolução e do progresso,

elementos com que combatam, eles mesmos, as trevas de que se rodearam. Para isso, retendo-os, cassando-lhes a liberdade, de que muito e muito abusaram, damos-lhes

conselheiros e elucidadores, vultos traquejados no segredo das catequeses de selvagens e nativos das regiões bárbaras da Terra, tais como da África, da Indochina,

das Américas, da Patagônia distante e desolada...

Vinde... e assistireis, através de nossos aparelhos de visão a distância, ao que se passa na Terra fronteira...

Encaminhou-se a um vasto salão que se diria gabinete de fiscalização geral do diretor. Mobiliário sóbrio, utensílios de estudo e farto aparelhamento de transmissão

da palavra e da visão, permitindo rápido entendimento com toda a Colônia, era tudo o que compunha o solitário compartimento. Fez-nos sentar, e ao passo que se conservava

de pé qual mestre que era no momento, prosseguiu na sua atraente elucidação:

"- Eis em que consistem as "prisões" neste recanto sombrio do Instituto Maria de Nazaré..

Aproximou-se dos aparelhamentos televisionadores, acionou-os destramente... e encontramo-nos miraculosamente em extensa galeria cujas arcadas, lembrando antigos

claustros, exprimiam o estilo português clássico, que tanto nos falava à alma.

Não sei se as ondas fluido-magnéticas que se imprimiam como veículo desses aparelhos teriam o poder de se infiltrarem pelas fibras do nosso físico-astral, casando-se

às irradiações que nos eram próprias; não sei se, irradiando suas propriedades ignotas pelo ambiente, nos predispunham a mente para o alto fenômeno da sugestão lúcida

ou se seria esta o fruto poderoso da força mental dos mestres do magnetismo psíquico que invariavelmente nos acompanhavam quando nos levavam a examinar as transmissões,

O certo era que, naquele momento, tínhamos a impressão de que caminhávamos, realmente, por aquela galeria toda envolvida em pesada penumbra, o que transmitia penosas

impressões de angústia e temor aos nossos inexperientes Espíritos.

De um lado e outro da galeria, as "enxovias" apresentavam-se aos nossos olhos surpresos como pequenos recintos para estudo e residência, tais como sala de aula,

refeitório e dormitório, oferecendo conforto suficiente para não chocar o recluso com a humilhação da necessidade insolúvel, predispondo-o à desconfiança e à revolta.

Dir-se-iam pequenos apartamentos de internato modelar, em o qual o aluno recebesse hospedagem individual, pois esses aposentos eram para habitação de apenas um prisioneiro!

Não me pude conter e atrevi-me a externar impressões, dirigindo-me a Padre Anselmo:

"- Pois quê? !... Vejo aqui um educandário, não uma prisão!... Rodeados de amplas janelas e belos e sugestivos balcões por onde penetram ventos sadios, desguarnecidos

de grades e de sentinelas, estes aposentos convidam antes ao recolhimento, à meditação e ao estudo proveitoso, dado o silêncio inquebrantável de que se rodeiam...

Oh! bem vejo a influência generosa de eméritos missionários educadores, afeitos à direção de instituições escolares, não carcereiros a se imporem pela violência!..."

"- Sim - redargüiu sorrindo o nobre governador da Torre -, cumprimos os dispositivos das leis de amor e Fraternidade, sob as normas essencialmente educadoras

do Mestre Magnífico. Realmente, não nos cumpre castigar quem quer que seja, por mais criminoso que se afigure, porqüanto nem Ele o fez! Nosso dever é instruir e

reeducar, levantando o ânimo decaído, o caráter vacilante, através de elucidações sadias, para a regeneração pela prática do Bem!... pois que a punição, o castigo,

o próprio delinqüente os traz dentro de si, com o inferno em que se converteu sua consciência ininterruptamente conflagrada por mil diferentes aflições... o que

dispensa atormentá-lo com mais castigos e represálias! Ele próprio é que se julgará e em si mesmo aplicará as punições que merecer... Quereis um exemplo vivo, dos

mais sugestivos .... Prestai atenção..."

Aproximou-se de um daqueles aparelhos que ornavam a sala, acionou atentamente um novo botão luminoso e, enquanto se reproduzia no espelho magnético um vulto

masculino, em tudo semelhante a nós outros, no vigor dos quarenta anos, ia gentilmente elucidando sempre:

"- Eis um dos temíveis obsessores, chefe de pequena falange de entidades endurecidas e maldosas, portador de múltiplos vícios e degradações morais, criminoso

e suicida, que arrastou ao seu abismo de vileza e misérias quantos incautos - desencarnados e encarnados -pôde seduzir e convencer a segui-lo, e cujos crimes avultam

com tal gravidade nos códigos das leis divinas que não nos admiraríamos ver chegar, de uma para outra hora, ordens do Alto para o seu encaminhamento aos canais competentes

para uma reencarnação expiatória fora do Globo Terrestre, em planeta ainda inferior à Terra, ou para um estágio espiritual em suas circunvizinhanças astrais, em

os quais, num período relativamente curto, poderia expiar débito que na Terra requereriam séculos! Tal cometimento, todavia, seria medida drástica que repugnaria

à caridade e ao inimaginável amor do nosso Meigo Pastor, o qual preferirá, primeiramente, esgotar todos os recursos lógicos e legais para persuadir ao arrependimento

assim como à regeneração, servindo-se da grande ternura e piedade de que só Ele sabe dispor!

Maria intercedeu por este infeliz, junto a seu Divino Filho, enquanto a nós outros recomendou a máxima paciência, a mais fecundas expressão de caridade e de amor

de que formos capazes, a fim de serem aplicados no seu lamentável caso! Assim é que, prisioneiro embora, como o vedes, recebe sem interrupção toda a assistência

moral, espiritual e até "física", se assim me posso expressar, que a sua natureza animalizada e grosseira requisita. A moral cristã, que absolutamente desconhece,

é-lhe fornecida diariamente, como alimento indispensável de que não pode prescindir, na indigência chocante em que se encontra... E recebe-a através do ensino do

Evangelho bendito, durante aulas coletivas, figuradas e encenadas, como presenciastes naquelas reuniões terrenas a que fostes conduzidos, as quais não são mais do

que pequenos postos auxiliares dos serviços realizados no Invisível e é, como os demais alunos prisioneiros, ajudado a examinar os excelsos ensinos do Redentor e

a confrontá-los com as ações que lhe foram próprias... aquele Redentor que, fiel à Sua finalidade de Mestre e Salvador, estende-lhe a mão compassiva, levando-o a

erguer-se do pecado!

Nossos métodos, todavia, mantêm outra espécie de ensinamento, enérgico, quase violento, ao qual somente os iniciados poderão atender, dada a delicadeza da operação

a ser tentada, que requer técnica especial... Por essa razão esta parte será sempre confiada a um especializado dos mais populares em nossa Colônia -um técnico -

Olivier de Guzman, a quem conheceis como diretor do Departamento de Vigilância. Acumula ele, assim, tarefas das mais melindrosas, não só por ser esse o dever que

lhe cumpre, visto que na Seara do Senhor jamais o bom obreiro estará inativo, como também devido à escassez de trabalhadores, a que me referi. Apre ciai o que se

passa no apartamento deste réu-aluno e avaliai por vós mesmos..

Com efeito! Sentado à mesa de estudo, as faces entre as mãos, em atitude de desânimo ou preocupação profunda; cabelos revoltos, cheios e ondulados; semblante

atormentado por pensamentos conflagrados, que emitiam em torno do cérebro evaporações espessas quais nuvens plumbeas, encontrava-se o prisioneiro, ali, à nossa frente,

como presente no mesmo salão em que nos achávamos! Surpreendidos, porém, nesse terrível obsessor reconhecemos apenas um homem, simplesmente um homem - ou um. Espírito

que fora homem! - mas não um ser fantástico! Um Espírito apartado das formas carnais, é certo, mas trazendo a configuração humana, grosseira e pesada, indiciando

a inferioridade moral que o distanciava da espiritualidade! Trajava tal como no momento em que sucumbira, em sua organização carnal, sob o golpe do suicídio: - calça

de fino tecido de lã preta, o que indicava que, na Terra, fora personagem de elevado trato social, e camisa de seda branca com punhos e peitilho de rendas de Flandres.

A julgar pela indumentária entrevista fomos levados a crer que não andaria longe de um século sua estada entre as sombras da maldade do plano invisível, o que às

nossas profundezas anímicas levou penoso frêmito de compaixão. A altura do coração, apesar do longo tempo decorrido, o estigma trágico denunciava-o como integrante

da sinistra falange de réprobos à qual também pertencíamos:

- o sangue, vivo e fresco, como se houvera começado a jorrar naquele momento, derramava-se de largo orifício produzido certamente por florete ou punhal, ferreteando

impiedosamente o físico-astral; derramava-se sempre, ininterruptamente, apesar do tempo, como se se tratasse antes da impressão do fato ocorrido, sobre a mente alucinada

e trevosa do desgraçado!

Eis, todavia, que entrava o mestre que o assistia, o qual, piedosamente, ia, de aposento a aposento, acender nos corações incultos daqueles míseros delinqüentes

as lâmpadas estelíferas do Conhecimento, a fim de que se norteassem com elas a estradas mais compensadoras!

O antigo obsessor levantou-se respeitoso, fazendo vênia própria de um gentil-homem. Olivier de Guzman - pois era ele o mestre - cumprimentou-o carinhosamente:

"- A paz do Senhor seja contigo, Agenor Peffalva !"

O réu não respondeu, conservando-se de cenho contrafeito; e, a um sinal daquele, sentou-se novamente à mesa, enquanto o guia formoso permanecia de pé.

Fisionomia grave, atitudes delicadas, conversação paternal, Olivier de Guzman, que, como os demais iniciados superiores, trajava a indumentária da bela e operosa

falange a que pertencia, entrou a expor ao discípulo a explicação do dia, fazendo-o anotá-la em cadernos, isto é, levando-o a analisá-la, a meditar sobre ela a fim

de cuidadosamente imprimi-la na mente. No dia imediato deveria o discípulo apresentar a resenha das conclusões feitas em torno do assunto ventilado. Consistia essa

aula, por nós presenciada, em importante tese sobre os direitos de cada indivíduo, assim na sociedade terrena que na astral, à luz da Lei Magnânima do Criador; nos

direitos de mútuo respeito, solidariedade e fraternidade que a Humanidade a si mesma deve na harmoniosa cadeia das ações de cada criatura em torno de si mesma e

dos seus semelhantes. Analisaria o aluno a tese melindrosa em presença das próprias ações cometidas durante a existência última, que tivera na Terra, e durante a

permanência no Invisível até aquela data, confrontando-as ainda com as normas expressas nas leis que regem o mundo astral e nos códigos da moral cristã, indispensáveis

ao progresso e bem-estar de todas as criaturas, e dos quais vinha ele recebendo esclarecimentos havia já algum tempo. Ao aluno assistia o direito de apresentar objeções,

indagar em torno de dúvidas que pudesse ter, e até de contestar... observando nós outros o volume de preciosos esclarecimentos fornecidos pelo mestre a cada contestação

do endurecido discípulo! (12)

(12) Seria uma como "doutrinação" levada a efeito pelo Guia, como as que costumamos assistir nas sessões experimentais bem dirigidas, de Espiritismo, certamente

avantajada pelas circunstâncias e pela sabedoria do expositor.

E tal labor, da exclusiva competição da consciência, poderia ser tentado por todos os reclusos, independendo de cultura intelectual!

Perplexos diante da intensidade e extensão dos serviços na Torre, indagamos do paciente elucidador:

"- Uma vez que este pobre Espírito se convença da necessidade do Bem, para onde será encaminhado?... Que vai ser dele?... E por que obtém, apesar da má-vontade

manifesta, mestre de tal valor, lições profundíssimas como as que presenciamos, ao passo que nós outros, que nos dispomos a trilhar o futuro de boamente, através

de vossos conselhos, mal vislumbramos esses iniciados que tanto nos agradam, e nem conseguimos sequer um texto onde aprendamos as leis que nos regerão daqui por

diante, quanto mais apetrechos de escrita!. .

Foi concludente a resposta e não se fer esperar:

"- Em primeiro lugar - esclareceu Padre Anselmo -, não devíeis esquecer que sois enfermos a quem somente agora concederam alta do Hospital, e mais que, havendo

ingressado há apenas três anos neste abrigo, não passais de recém-chegados que nem mesmo concluíram o reajustamento psíquico... Tão flagrante diferença, aliás, se

patenteia nas vossas mútuas condições, que não admitem sequer um confronto para discussões! Não vos adinireis, portanto, que esse, que acolá observamos, obtenha

o que parece imerecido... Vossa época de iluminação virá a seu tempo e não perdereis por esperá-la... Há trinta e oito anos ingressou Agenor Peflalva nesta Torre

e só agora concorda em aplicar-se ao indispensável estudo de si mesmo para acatar a Lei e minorar a situação própria, que lhe vem pesando amarguradamente... De outro

lado, justamente devido à inferioridade moral de que se rodeia, necessita maior vigilância e assistência do que vós, cujos pendores para a conversão à Luz muito

bem auguram para o futuro...

Trabalho prolongado tem requerido o endurecimento do coração em que se entrincheirou aquele pecador, temeroso qual se sente das conseqüências futuras dos desbaratos

que converteram em trevas a sua vida. Fora mesmo necessária a perseverança paternal de um Olivier de Guzman, afeito ao trato com os nativos do Norte e semibárbaros

do Oriente, a fim de convencer o grande transviado que aí tendes ao encorajamento para a emenda! Voltará ele muito breve à reencarnação! Encontra-se excessivamente

prejudicado, em suas condições mentais, para que seja lícito conduzir-se a situações de verdadeiro progresso! Só uma existência terrena longa, dolorosa, operando-lhe

decisivas transformações mentais, por alijar da consciência, sobrecarregada de sombras, considerável bagagem de impurezas, permitir-lhe-á ensejos para novos traçados

na rota do progresso normal... E é a fim de convencê-lo satisfatoriamente a tal resolução, sem jamais obrigá-lo; é no intuito de prepará-lo para a aquisição de forças

suficientes para as pelejas ardentes que enfrentará nos proscênios terrestres, que assim o detemos, procurando moralizá-lo o mais possível, reconciliando-o consigo

mesmo e com a Lei! Se o não fizermos, sua próxima e inevitável reencarnação tornará ao mesmo círculo vicioso em que têm degenerado as demais, o que absolutamente

não convém a ele e tampouco a nós outros, visto que por sua reeducação nos responsabilizamos perante a mesma Lei!

Continuai, porém, observando o que se passa em seus aposentos. .

Prestando seguidamente a máxima atenção, fomos surpreendidos com acontecimentos que se desenrolaram com precipitação, os quais por sua natureza altamente educativa

merecem narrados com especial carinho.

A um gesto do preceptor, vimos que o paciente levantou-se a fim de acompanhá-lo submissamente, como tocado por influências irresistíveis. Caminharam ao longo

da galeria extensa, onde se localizavam as "prisões" dos abrigados, Olivier à frente. Penetraram, dentro em pouco, espaçosa sala, espécie de gabinete de experimentações

científicas. Dir-se-ia um tabernáculo onde nustérios sacrossantos se desvendavam, afirmando ao observador o quanto conviria aprender e progredir em psiquismo, para

se tornar merecedor da herança imortal que o Céu legou ao gênero humano.

O citado gabinete mantinha-se perenemente saturado de vaporizações magnéticas apropriadas à finalidade para que fora organizado, as quais suavemente emitiam fosforescências

azuladas, tênues, sutis, quase imperceptíveis à nossa visão ainda muito débil para as coisas espirituais, e absolutamente invisíveis à percepção embrutecida daquele

que nelas penetrava a fim de se submeter à operação conveniente. Sobre um tablado polido como o cristal via-se uma cadeira estruturada em substâncias que igualmente

se assemelhavam à transparência do cristal, mas pelo interior da qual perpassava um fluído azul, fosforescente, como sangue que corresse pelos canais arteriais de

um envoltório carnal, desde que fossem acionados botões minúsculos, quais pequeninas estrelas, que se apresentavam no conjunto de todo o estranho aparelhamento.

À frente da singular peça, congênere daquela existente na sala de recepções do Hospital, onde assistíramos ao fenômeno do nosso próprio desprendimento da organização

material, retrocedendo mentalmente até à data do suicídio, sob a direção de Teócrito e a assistência de Romeu e Alceste, destacava-se um quadrângulo de cerca de

dois metros, fulgurante qual espelho, placa fluido-magnética ultra-sensível, capaz de registrar, em sua imaculada pureza, a menor impressão mental ou emocional de

quem ali se apresentasse, e a qual vimos ensombrar-se gradativamente, à entrada de Agenor, como se hálito impuro a houvesse embaciado.

Insofrido e curioso perquiri, pondo reparo no aparelho e descuidando-me da discrição que conviria conservar:

"- Dir-se-ia um gabinete de fenomenologia transcendental! Qual a utilidade disto, Revmo. Padre?..."

"- Raciocinais bem! Com efeito, trata-se de um sacrário de operações transcendentalissimas, meu amigo! O aparelhamento que vedes, harmonizado em substâncias extraídas

dos raios solares - cujo magnetismo exercerá a influência do ímã -, é uma espécie de termômetro ou máquina fotográfica, com que costumamos medir, reproduzir e movimentar

os pensamentos... as recordações, os atos passados que se imprimiram nos refolhos psíquicos da mente, e que, pela ação magnética, ressurgem, como por encanto, dos

escombros da memória profunda de nossos discípulos, para impressionarem a placa e se tomarem visíveis como a própria realidade que foi vivida'

Um frêmito de terror sacudiu nossa fibratura psíquica. O primeiro ímpeto que tivemos, ouvindo a resposta sucinta quanto profunda em sua vertiginosa amplitude,

fora o de fugir, apavorados que ficamos ante a perspectiva de vermos também nossos pensamentos e ações passadas, assim devassados.

Intimamente presumíamos que nossos mentores conheciam minuciosamente quanto nos dizia respeito, sem exceção mesmo do pensamento. Mas a discrição, a caridade desses

incomparáveis amigos, que jamais se prevaleciam de tal poder para afligir-nos ou humilhar-nos, nos deixavam à vontade, prevalecendo em nosso imo a cômoda opinião

de que seríamos inteiramente ignorados. O que, porém, em verdade nos alarmava não era o sermos totalmente conhecidos deles, mas a possibilidade de vermos, nós mesmos,

essas fotografias do passado; de assistirmos, nós mesmos, às monstruosas cenas que fatalmente se refletiriam no insuspeitável espelho, analisando-as e medindo-as,

o que inesperadamente surgia para nós como patíbulo infamante que nos aguardaria com um novo gênero de suplício!

"- Uma entidade iluminada - continuou explicando o lente emérito, diretor interno da Torre de Vigia -, já educada em bons princípios de moral e ciência, não se

utilizará desses aparelhos quando deseje ou necessite extrair dos arquivos da memória os pensamentos próprios, as recordações, o passado, enfim Bastar-lhe-á a simples

expressão da vontade, a energia da mente acionada em sentido inverso... e se tornará presente o que foi passado, vivendo ela os momentos que foram evocados, tal

como os vivera, realmente, outrora! Para a reeducação doa inexperientes, porém, assim dos inferiores, tornam-se úteis e indispensáveis, motivo pelo qual os utilizamos

aqui, facilitando sobremodo o nosso serviço.

Todavia, tudo quanto obtivermos da mente de cada um será para nós como sacrossanto depósito que jamais será atraiçoado, podendo-se mesmo adiantar que apenas o

mestre instrutor do paciente será o depositário dos seus terríveis segredos, guardando-os zelosamente para instrução do mesmo, pois assim determinam as leis da caridade.

Esporadicamente, como neste momento, poderemos algo surpreender, visto tratar-se da iluminação da coletividade, ainda com maior razão quando essa coletividade se

anima da boa-vontade para o progresso e do critério que vemos irradiando de vós outros..."

No entanto, Âgenor, visívelmente apavorado com a feição que iam tomando os acontecimentos, apelou para a mistificação, ignorando a alta mentalidade daquele por

quem era servido, o qual piedosamente se diminuiu a fim de ser melhor compreendido:

Não senhor, meu mestre, não senhor! Não fui mau filho para meus pais!... As anotações que ontem apresentei dessa particularidade de minha vida são verdadeiras,

juro-vos!... Existe, por certo, algum engano no pormenor que vos levou a rejeitá-las!... Engano e rigor excessivo para comigo!... Fazeis-me escrever as normas de

um bom filho, de acordo com as leis do Senhor Deus Todo-Poderoso, que eu temo e respeito! Quereis que, mais uma vez, eu as estude para, amanhã, expor minhas recordações

em torno de minha condição de filho, nas páginas do diário íntimo que sou forçado a criar, analisando-as em confronto com aquelas normas... Porém, se tenho certeza

do que venho afirmando em torno de minhas recordações, para que tão exaustivo labor?... Peço-vos, antes, encaminheis a quem de direito o meu rogo de libertação...

Por que me fazem sofrer tanto?... Não existe, pois, perdão e complacência na lei do bom Deus, que eu tanto amo?... pois sou profundamente religioso... e estou arrependido

dos meus grandes pecados... Encontro-me aqui há tantos anos!... Passei por infernais calabouços, nas mãos da horda mal

vada que me arrebatou, após o suicídio, para sua banda... Atormentado, vaguei por ilhas desertas, antes de me submeter aos seus detestáveis desejos... Enfrentei

as fúrias tétricas do oceano, abandonado e perdido sobre rochedos solitários... Durante dez anos me vi acorrentado à cova imunda de um cemitério, onde sepultaram

meu corpo asqueroso, enlameado e fétido! Perseguido fui por grupos sinistros de inimigos vingadores; batido como cão raivoso, maltratado como um réptil, corroído

por milhões de vermes que me enlouqueceram de horror e angústia, sob a tortura suprema da confusão que nada permite esclarecer, sem lograr compreender a trágica

aflição de sentir-me vivo e deparar-me sepultado, apodrecido, devorado por imundos vibriões!... Carregaram-me prisioneiro, os malvados, atado de cordas resistentes,

e prenderam-me na própria sepultura em que jazia... bem... quero dizer... Vós já o sabeis, meu mestre... Em que jazia aquela que eu amei... Sim! Que eu desgracei

e depois assassinei, temendo represálias da família, visto tratai-se de uma menina de qualidade aristocrata... Ninguém jamais identificou o assassino... Mas aqueles

malvados sabiam de tudo e depois do meu suicídio vingaram a morta... De tal forma me vi perseguido que, a fim de me libertar de tal jugo e eximir-me dos maus tratos

que recebia, tive de unir-me ao bando e tomar-me um similar, pois era essa a alternativa que ofereciam... Devo, portanto, ter muitas atenuantes... Depois, além do

mais, aprisionado por lanceiros, emasmorrado no Vale Sinistro, onde padeci nova série de horrores... E agora, nesta Torre, tolhido em minha liberdade, sem sequer

poder recrear-me pelas ruas de Madrid, que eu tanto amava, nem respirar o ar puro e fresco dos campos, como tanto me apraz!... Sou ou não sou filho do Bom Deus?!...

Ou serei irmão do próprio Satanás?!..."

Demonstrando a mais singular serenidade, replicou o mentor generoso:

Em ouvindo alguém estranho as tuas eternas queixas, Agenor Peflalva, suporia que se cometem injustiças no recinto iluminado pelos almos favores da Mag nânima

Diretora da nossa Legião!... No entanto, a longa série de infortúnios que expuseste teve origem apenas nos excessos pecaminosos dos teus próprios atos e na truculência

dos instintos primitivos que conservas... Há trinta e oito anos vens sendo pacientemente exortado a uma reforma Intima, que te assegure situações menos ingratas!

Porém, negas-te sistematicamente a toda e qualquer experiência para o bem, enclausurado na má-vontade de um orgulho que te vem intoxicando o Espírito, por tolher

os movimentos a prol dos progressos que de há muito deverias ter concretizado! Grande complacência há-se desenvolvido aqui, em torno de ti, apesar de não a reconheceres!

Bem sabes que tua retenção em nosso círculo de vigilância equivale à proteção contra o jugo obsessor da falange que chefiavas, assim como não ignoras que de ti depende

a obtenção da liberdade que tanto almejas! Jamais foste molestado aqui. Tesouros espirituais diariamente te oferecemos desejosos que somos de ver-te enriquecido

com a aquisição das luzes que deles se irradiam! Hóspede da Legião de Maria, foste por Ela recomendado à direção deste Instituto, no sentido de não concertarmos

tua volta ao círculo carnal - à reencarnação - sem que positivasses grau de progresso eficiente para o bom êXItO dos futuros testemunhos terrenos, que serão duros,

dada a gravidade dos teus débitos no conceito da Lei!

Diariamente são expostos ao teu exame os motivos por que tua liberdade foi tolhida. Sabes que és culpado. Sabes que arrastaste ao sorvedouro do suicídio uma dezena

de homens incautos, que se deixaram embair pelas funestas sugestões das tuas manhas de obsessor inteligente... desgraçando-os pelo simples prazer de praticar o mal

ou por invejá-los de algum modo... assim como outrora, quando homem, desvirtuavas pobres donzelas enamoradas e levianamente confiantes, levando-as ao suicídio com

a amarga traição com que as decepcionavas - prenúncios do obsessor que futuramente serias... Mas teu orgulho sufoca as conclusões lógicas do raciocínio e preferes

a revolta e o sofisma por mais cômodos, furtando-te às responsabilidades por permaneceres dilatan do a aceitação de compromissos que te apavoram, porque tens medo

do futuro que tu mesmo preparaste com as iniqüidades que houveste por bem praticar! Agora, porém, existem ordens superiores a teu respeito: - urge apressemos tua

marcha para o progresso, forrando-te da permanência indefinida no circulo vicioso que te prolonga os sofrimentos. Para que ponhamos fim a tão lamentável estado de

coisas, faremos a experiência suprema! Quiséramos evitá-la por dolorosa, concedendo-te prazo mais que justo para, por ti mesmo, procurares o caminho da reabilitação.

Advirto-te de que, a partir deste momento, diariamente farás um exame sobre ti mesmo, provocado por nós, lento, gradativo, minucioso, que te faculte a convicção

da urgência na reforma interior de que careces... Sei que será penoso tal cotejo. Provocaste-o, porém, tu mesmo, com a resistência em que te vens mantendo para o

ingresso nas vias do reerguimento moral!

Foste bom filho para teus pais, dizes... Tanto melhor, nada deverás temer ante a evocação desse passado! Será, portanto, por esse confronto que iniciaremos a

série das análises necessárias ao teu caso, uma vez que o primeiro dever que cabe ao homem cumprir na sociedade em que vive será no santuário do lar e da Família!

Vejamos, pois, os méritos que terás como filho, pois todos os que possas ter serão rigorosamente creditados em teu favor, suavizando tuas futuras reparações:

Agenor Peflalva! Senta-te à frente deste espelho, sob o pálio magnético que irá fotografar teus pensamentos e recordações! Volta tuas atenções para a época dos teus

cinco anos de idade, na última existência que tiveste na Terra! Rememora todos os atos que praticaste em torno de teus pais... de tua mãe em particular!... Assistirás

ao desfile de tuas próprias ações e serás julgado por ti mesmo, por tua consciência, que neste momento receberá o eco poderoso da realidade que passou e da qual

não se poderá furtar, porque foi fiel e rigorosamente arquivado nos refolhos iniperecíveis da tua alma imortal!..."

Como todo Espírito grandemente culpado, no momento preciso Agenor quis tentar a evasão. Encurralou-se, de súbito, a um ângulo do aposento, bradando apavorado,

no auge da aflição, o olhar desvairado de perfeito réprobo:

"- Não senhor, meu mestre, por obséquio, éu vo-lo suplico!... Deixai-me regressar ao meu aposento ainda esta vez, para novo preparo! Eu..."

Mas, pela primeira vez desde que ingressáranlos no magno educandário, soou aos nossos ouvidos uma expressão forte e autoritária, proferida por um daqueles delicados

educadores, pois que Olivier de Guzman repetiu com energia:

"- Senta-te, Agenor Pefialva! Ordeno-te!"

O pecador sentou-se, dominado, sem mais proferir uma palavra! Suspendêramos a própria respiração. O silêncio estendera-se religiosamente. Dir-se-ia que a venerável

cerimônia recebia as bênçãos da assistência iacrossanta do Divino Médico das almas, que desejaria presidir ao cotejo da consciência de mais um filho pródigo prestes

a se encaminhar para os braços perdoadores do Pai.

Agenor parecia muito calmo, agora. Olivier, cujo semblante se tornara profundamente grave, como se concentrasse as forças mentais à mais alta tensão, acomodou-o

convenientemente, envolvendo-lhe a fronte numa faixa de tessitura luminosa, cuja alvura transcendente denunciava-a como originando-se da própria luz solar. A faixa,

no entanto, que lembraria uma grinalda, prendia-se ao pálio que cobria a cadeira por fios luminosos, quase imperceptíveis, de natureza idêntica, o que nos levou

a deduzir ser o pálio o motor principal desse mecanismo tão simples quanto magnífico na sua finalidade. A tela, por sua vez, igualmente ligava-se ao pálio por múltiplas

estrias lucilantes, parecendo harmonizada no mesmo elemento de luz solar.

A voz do mentor elevou-se, porém, autoritária, envolvida, não obstante, em intraduzíveis vibrações de ternura: "- Contas cinco anos de idade, Agenor Peflalva,

e resides no solar paterno, nos arredores de Málaga... o único filho varão de um consórcio feliz e honrado... e teus pais sonham preparar-te um futuro destacado

e brilhante!... São profundamente religiosos e praticam nobres virtudes de envolta com as ações diárias.. acariciando o ideal de te consagrarem a Deus, fazendo-te

envergar a alva sacerdotal... Acorda dos refolhos da alma tuas ações como filho, em torno de teus pais... de tua mãe particularmente! Faze-o sem vacilar! Estás em

presença do Criador Todo-Poderoso! que te forneceu a Consciência como porta-voz de Suas Leis'.. ."

Então, surgiu para nossas vistas assombradas o me-narrável em linguagem humana! O pensamento, as recordaçôes do desgraçado, seu passado, suas faltas, seus erimes

mesmo, como filho, em torno de seu.s pais, traduzidos em cenas vivas, movimentaram-se no espelho sensível e impoluto, diante dele, retratando sua própria imagem

moral, para que ele a tudo assistisse, revendo-se com toda a hediondez das quedas em que soçobrara, como se sua Consciência fosse um repositório de todos os atos

por ele praticados, e os quais, agora, arrebatados do fundo da memória adormecida, por transcendentalíssima atração magnética, se levantassem eonflagrados, esmagando-o

com o peso insuportável da tenebrosa realidade!

A lamentável história dessa personagem - assassino, suicida, sedutor, obsessor - ocuparia um volume profundamente dramático. Furtamo-nos ao desejo de narrá-la.

Para o complemento do presente capítulo, porém, apresentaremos pequeno tópico do que presenciamos naquela memorável tarde de além-túmulo, e que julgamos não será

totalmente destituído de interesse para o leitor... já que, infelizmente, nem hoje são comuns os filhos modelos no respeitável instituto da Família terrena!

- Desde os primeiros anos da juventude fora Agenor Pefialva filho indócil e esquivo à ternura e ao respeito dos pais. Não reconhecera jamais na solicitudes

de que era alvo: - seus pais seriam es cravos cujo dever consistiria em servi-lo, preparando-lhe condigno futuro, pois era ele o senhor, isto é, o filho!

- Na intimidade do lar mantinha atitudes invariavelmente despóticas, hostis, irreverentes, cruéis! Fora do lar, porém, prodigalizava amabilidades, afabilidades,

gentilezas!

- Insubmisso a toda e qualquer tentativa de corrigenda.

- Desejosos de lhe garantirem futuro isento de trabalhos excessivos, nas duras lides dos campos agrícolas, que tão bem conheciam; e sabendo-o, ao demais,

ambicioso e inconformado com a obscuridade do nascimento, arrojaram-se os heróicos genitores a sacrifícios imensuráveis, mantendo-o na capital do Reino e pagando-lhe

os direitos para a aquisição de um lugar na companhia dos exércitos do rei, visto que não sentira atração para a vida eclesiástica, desencantando logo de início

o ideal paterno. Pretendera antes a carreira militar, mais concorde com as aspirações mundanas que o arrebatavam, e que facilitaria, ao demais, o ingresso em ambientes

aristocráticos, que invejava.

- Envergonhara-se da condição humilde daqueles que lhe haviam dado o ser e velado abnegadamente por sua vida e bem-estar desde o berço; repudiou o honrado

nome paterno, de Peflalva, por outro fictício que melhor retumbasse a ouvidos aristocratas, proclamando-se mentirosamente descendente de generais cruzados e nobres

cavaleiros libertadores da Espanha do jugo árabe.

- Com o falecimento do velho pai, a quem não visitara durante a pertinaz enfermidade de que fora vítima, desamparou desumanamente a própria mãe! Arrebatou-lhe

os bens, sorveu-lhe os recursos com que contava para a velhice, esquecendo-a na Província, sem meios de subsistência.

- Fê-la verter as inconsoláveis lágrimas da desilusão em face da ingratidão com que a brindara quando mais a vira carente de proteção e carinhos, legando-a

a dolorosa via crucis de humilhações pelo domicílio de parentela afastada, onde a mísera representava estorvo indesejável!

- Negou-se a recebê-la em sua casa de Madrid - pobre velha rude no trato, simples no linguajar, rústica na apresentação -, pois era sua casa freqüentada por personagens

destacadas entre a alta burguesia e a pequena nobreza, em cuja classe contraira matrimônio, fazendo-se passar por nobre.

- Encaminhou-a secretamente para Portugal, visto que teimava a pobre criatura em valer-se da sua proteção na miséria insolúvel em que se via soçobrar.

Enviou-a a um seu tio paterno que havia muito se transferira para o Porto. Fizera-o, porém, aereamente, sem se certificar do paradeiro exato do aludido afim. Sua

mãe, assim, não lograra localizar o cunhado que ali já não residia, e perdera-se em terras lusitanas, onde fora acolhida por favor pelos compatriotas piedosos.

- Escreveram-lhe os mesmos compatriotas, participando-lhe a angustiosa situação da genitora, que novamente lhe implorava socorro. Não respondera,

desculpando-se perante a consciência com determinada viagem que empreenderia

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